Nello, Libero e Giuseppe: do Rio contra Mussolini - PPGHC
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Nello, Libero e Giuseppe: do Rio contra Mussolini - PPGHC
UNIVERSIDADE FEDERAL DO RIO DE JANEIRO Instituto de História Programa de Pós-Graduação em História Comparada MARCELLO SCARRONE Tese NELLO, LIBERO E GIUSEPPE: DO RIO CONTRA MUSSOLINI PERCURSOS POLÍTICOS DO ANTIFASCISMO ITALIANO NA CAPITAL FEDERAL (1922-1945) RIO DE JANEIRO 2013 UNIVERSIDADE FEDERAL DO RIO DE JANEIRO Instituto de História Programa de Pós-Graduação em História Comparada Doutorando Marcello Scarrone Orientador Prof. Dr. Francisco Carlos Teixeira da Silva Tese NELLO, LIBERO E GIUSEPPE: DO RIO CONTRA MUSSOLINI PERCURSOS POLÍTICOS DO ANTIFASCISMO ITALIANO NA CAPITAL FEDERAL (1922-1945) RIO DE JANEIRO 2013 i UNIVERSIDADE FEDERAL DO RIO DE JANEIRO Instituto de História Programa de Pós-Graduação em História Comparada Doutorando Marcello Scarrone Orientador Prof. Dr. Francisco Carlos Teixeira da Silva Tese de Doutorado apresentada ao Programa de Pós Graduação em Historia Comparada da Universidade Federal do Rio de Janeiro como requisito parcial para a obtenção do título de Doutor em História Comparada NELLO, LIBERO E GIUSEPPE: DO RIO CONTRA MUSSOLINI PERCURSOS POLÍTICOS DO ANTIFASCISMO ITALIANO NA CAPITAL FEDERAL (1922-1945) RIO DE JANEIRO 2013 ii Scarrone, Marcello S286n Nello, Libero e Giuseppe: do Rio contra Mussolini: percursos políticos do Antifascismo italiano na Capital Federal (1922-1945) / Marcello Scarrone. __ Rio de Janeiro: UFRJ, 2013. f. 290 Tese (Doutorado) – Universidade Federal do Rio de Janeiro – UFRJ, Programa de Pós-Graduação em História Comparada – PPGHC Orientador: Prof. Dr. Francisco Carlos Teixeira da Silva 1. Antifascismo 2. Fascismo 3. Trajetória Política 4. Biografia 5. Universidade Federal do Rio de Janeiro – Programa de Pós-Graduação em História Comparada I. Título. iii Agradecimentos Chegado ao ponto final do caminho, meu agradecimento vai em primeiro lugar para meu orientador, que com seus conhecimentos, sua sabedoria e paciência me acompanhou nos anos de pesquisa e de trabalho. Se a função principal de um orientador é apontar para o norte, o prof. Francisco Carlos sempre foi generoso em indicações, todas preciosas e determinantes. A ele devo uma abordagem, não somente do tema e do assunto desse trabalho, mas também de toda a disciplina histórica segundo linhas e sensibilidades em nada engessadas em rígidos esquemas acadêmicos. Agradeço aqui também o professor Alberto De Bernardi, que foi co-orientador da pesquisa na Itália e o professor Ângelo Trento, pioneiro investigador da emigração italiana para o Brasil e de sua componente antifascista. Suas sugestões e encaminhamentos forneceram maiores horizontes ao projeto inicial. O apoio do programa de História Comparada há de ser aqui registrado assim como o do CNPq, ao qual devo a bolsa que me permitiu pesquisar nos arquivos italianos. Desses mesmos arquivos gostaria de agradecer funcionários e diretorias, particularmente da Fondazione Feltrinelli de Milão, do Archivio Centrale dello Stato de Roma e do florentino Istituto Storico della Resistenza in Toscana, cujas indicações e auxílios na pesquisa foram fundamentais. Um “grazie” profundo por sua disponibilidade a duas pessoas de Castel Bolognese, terra natal de Garavini: o responsável da Biblioteca Libertária, Gian Pietro Landi, e a filha de Nello e Emma, Giordana, que nos permitiu ver preciosos documentos dos pais, além de conceder uma entrevista. Minha gratidão se estende também aos responsáveis dos acervos brasileiros, entre os quais gostaria de destacar a disponibilidade do Instituto Cultural Ítalo-Brasileiro de São Paulo, que gentilmente concedeu a digitalização completa do periódico La Difesa, e à bisneta de Giuseppe Scarrone, Amneris, moradora da Tijuca, e à filha dela, Ana Lúcia Frusca, às quais devo algumas informações e materiais de arquivo. Um agradecimento especial vai aos meus pais, cujas histórias de vida juvenil se passaram em parte em tempos de fascismo. A pergunta, nem sempre formulada para eles, mas que me acompanhou por anos, era sobre como fosse a existência cotidiana debaixo do regime, e como, mesmo numa tranquila vida provinciana, pudessem ser cultivados sentimentos de repulsa e oposição a ele. O percurso existencial de quem, como meu pai, foi obrigado a servir no exército e, após a campanha da Grécia, enviado, iv prisioneiro dos alemães, para um campo de concentração, se entrelaça com os de muitos outros, jovens como ele, cujas vidas foram marcadas pela guerra. À memoria dele, de seu testemunho, são dedicadas estas páginas, assim como ao cotidiano e ainda hoje presente exemplo de minha mãe, que também atravessou a brutalidade daqueles anos. À minha esposa Ana Lúcia, ao seu constante apoio e à sua presença discreta nos longos anos de trabalho, compartilhando tempos de pesquisa e dias e noites de redação do texto, meu obrigado de coração: também graças a ela, de verdade, tudo isso foi possível, desde o começo e até aqui. A recompensa de tanto esforço está na certeza de que valeu a pena, pelo crescimento de nossa unidade e de nosso amor. v Reconstruir mundos é uma das tarefas essenciais do historiador, e ele não a empreende pelo estranho impulso de escarafunchar arquivos e farejar papel embolorado – mas para conversar com os mortos. (...) Se rompermos todo contato com mundos perdidos, estaremos condenados a um presente bidimensional e limitado pelo tempo: achataremos nosso próprio mundo. ROBERT DARNTON, Boemia literária e Revolução, 1987. Essa misteriosa circunstância pela qual as coisas do nosso passado continuam existindo mesmo quando saem do raio da nossa vida, e, aliás, amadurecem, trazendo novos frutos a cada estação, para uma colheita da qual não sabemos mais nada. A persistência ilógica da vida. ALESSANDRO BARICCO, Esta história, 2007. vi Resumo O presente trabalho investiga tentativas, realizações, e atuações do mundo do antifascismo da colônia italiana do Rio de Janeiro durante os anos de 1922 a 1945, focalizando de modo especifico três percursos políticos e existenciais, o do socialista Giuseppe Scarrone, o do republicano Libero Battistelli e o do anarquista Nello Garavini, emigrados da Itália para a Capital Federal em tempos diferentes, e atuantes cada um deles com modalidades próprias, mas tendo como comum denominador a oposição ao regime de Mussolini e a luta contra a presença do fascismo no mundo e também no Brasil. A reconstrução dos três percursos, a evidenciação de suas diferenças, peculiaridades, semelhanças e analogias, se configura como um estudo no âmbito específico da história política do antifascismo, e, através da análise de três biografias significativas, se apresenta como uma contribuição ao discurso próprio da história comparada. vii Abstract The following thesis investigates attempts, realizations and operations of the antifascist world of the Italian colony in Rio de Janeiro from 1922 until 1945. It focuses specifically on three political and existential pathways; firstly the one followed by Giuseppe Scarrone, secondly the one followed by Libero Battistelli and thirdly the one followed by Nello Garavini. They migrated from Italy to the Brazilian federal capital in different time periods, acting in different modalities, but with their opposition to the Mussolini regime and their fight against the presence of fascism in the world and in Brazil as their common denominator. The reconstruction of the three pathways, the disclosure of their differences, peculiarities, similarities and analogies, is configured as a study of the political history of antifascism, and is presented, through the analysis of three significant biographies, as a contribution to a discourse characteristic of comparative history. viii Riassunto Il presente studio ha per oggetto tentativi, realizzazioni e azioni del mondo dell’antifascismo della colonia italiana di Rio de Janeiro nel período che va dal 1922 al 1945, centrando l’attenzione in modo speciale su tre percorsi politici ed esistenziali, quello del socialista Giuseppe Scarrone, quello del repubblicano Libero Battistelli e quello dell’anarchico Nello Garavini, emigrati dall’Italia verso la Capitale Federale brasiliana in tempi diversi, e avendo ciascuno di loro modalitá proprie di esercizio, ma avendo come denominatore comune l’opposizione al regime di Mussolini e la lotta contro la presenza del fascismo nel mondo e anche in Brasile. La ricostruzione dei tre percorsi, la messa in luce delle loro differenze, peculiaritá, somiglianze e analogie, si configura come uno studio nell’ambito specifico della storia politica dell’antifascismo, e, attraverso l’analisi di tre biografie significative, si presenta come un contributo al discorso proprio della storia comparata. ix Sumário INTRODUÇÃO ........................................................................................... 1 1. PRIMEIRA PARTE Balanço da historiografia do inimigo comum ..... 9 1.1. Olhando para o inimigo comum ................................................................ 9 1.2. Antifascismo: um debate polêmico ........................................................... 25 1.3. Situando o antifascismo no tempo e no espaço ......................................... 28 1.4. Antifascismo: definição, significado, valor .............................................. 38 1.5. Antifascismo em terra de exílio ................................................................ 49 1.6. No Brasil ................................................................................................... 55 2. SEGUNDA PARTE Giuseppe Scarrone ................................................ 66 2.1. “Um velho” ............................................................................................... 66 2.2. Na Itália: cinquenta anos de lutas .............................................................. 68 2.3. Fabricando vidro no Rio de Janeiro ........................................................... 71 2.4. Imigração italiana e a Capital Federal ....................................................... 77 2.5. Cartas e opúsculos contra o fascismo ....................................................... 79 2.6. Primeiros passos do antifascismo na colônia ........................................... 89 2.7. 1926: processo e condenação .................................................................. 96 2.8. Scarrone e La Difesa ............................................................................... 99 2.9. O antifascismo no Rio se organiza ..........................................................105 2.10. Continuando a batalha (1927-1929) .......................................................109 2.11. Anos de crise ...........................................................................................116 2.12. De volta à trincheira ................................................................................120 2.13. Últimos anos ............................................................................................124 x 3. TERCEIRA PARTE Libero Battistelli ...................................................128 3.1. A realidade do exilio ................................................................................. 128 3.2. Um empenho que vem de longe ............................................................... 130 3.3. Primeiros tempos no Rio de Janeiro .......................................................... 137 3.4. A colaboração com La Difesa ................................................................... 142 3.5. No mundo associativo carioca ................................................................... 152 3.6. Protagonistas e coadjuvantes ...................................................................... 158 3.7. Conectado com o antifascismo internacional ............................................. 161 3.8. A viagem de 1930 ...................................................................................... 165 3.9. De volta ao Rio: convergências e divergências .......................................... 169 3.10. Um intelectual ............................................................................................ 175 3.11. Vida pública e vida privada ........................................................................ 184 3.12. 1933-34. Tempos de mudanças: internacionais, nacionais e pessoais ....... 188 3.13. 1935. Um ano e tanto (?) ........................................................................... 196 3.14. Rumo à Espanha .......................................................................................... 205 3.15. Epílogo ....................................................................................................... 215 4. QUARTA PARTE Nello Garavini ............................................................ 221 4.1. Politica e luta pela sobrevivência .................................................................. 221 4.2. Anos italianos ............................................................................................... 222 4.3. Observações sobre o relato autobiográfico ................................................... 224 4.4. Primeiros anos no Rio ................................................................................. 226 4.5. Os “pouquíssimos companheiros” ................................................................ 230 4.6. No Hotel Gloria ............................................................................................. 233 4.7. Uma rede de relações internacionais ............................................................ 235 4.8. Emma ........................................................................................................... 239 xi 4.9. A Minha Livraria ............................................................................................ 244 4.10. O amigo mais querido .................................................................................... 249 4.11. Tempos de guerra ............................................................................................ 251 4.12. O Comitê antifascista italiano ......................................................................... 258 CONSIDERAÇÕES FINAIS ......................................................................... 262 ACERVOS E BIBLIOGRAFIA .......................................................................... 275 xii 1 INTRODUÇÃO 1. A progressiva e cada vez mais rígida implantação do Estado fascista na Itália, sobretudo a partir dos anos 1925-26, levou gerações de opositores do regime a escolhas dramáticas: muitas vezes a alternativa estava entre a luta clandestina em pátria, com a constante ameaça da prisão ou do confinamento em ilhas remotas da península por motivos políticos, e o exílio no exterior – com um conjunto de fatores familiares e profissionais influindo na escolha por uma ou outra das possibilidades. Além do refúgio na próxima França, principal meta do antifascismo no exílio, ou em outros países europeus, vários expoentes da resistência ao regime de Mussolini atravessaram o Atlântico, tendo como destino sobretudo Uruguai, Argentina e também o Brasil. Laços familiares e redes de amizades acolheram e alimentaram a vida e a atuação dos exilados em terra brasileira, onde já existiam ativas colônias de emigrados italianos, em parte ainda com fortes laços com a pátria mãe e em parte voltadas para um maior enraizamento com a comunidade local. Colônias estas onde a simpatia de muitos para o fascismo, alimentada pelos organismos de representação oficial do governo italiano, se defrontava com a indiferença de outros e com a oposição ativa de setores, grupos e movimentos organizados. Na denúncia do cerceamento das liberdades realizado pelo regime de Mussolini e na luta contra o mesmo, o antifascismo italiano no Brasil encontrava interlocutores, companheiros de caminho e aliados em ambientes, organizações e partidos da esquerda nacional, nas suas diferentes vertentes socialista, anarquista, comunista, aliancista, com suas tradições políticas de origem antiga ou mais recente, e variamente empenhadas na sociedade brasileira, particularmente a partir do mundo do trabalho. A presença e a ação de grupos e ambientes do antifascismo italiano no Brasil têm sido objeto de investigação e de produção historiográfica principalmente no que diz respeito ao Estado de São Paulo, cuja numerosa colônia italiana e a intensa rede de relações e atividades nela existente para difundir os ideais de resistência e luta ao regime mussoliniano foram amplamente analisadas, sobretudo através das pesquisas de João Fábio Bertonha. Sob esse ponto de vista, a realidade do antifascismo italiano no Rio de Janeiro aparece com menor destaque seja na pesquisa historiográfica seja quanto ao peso efetivo e à expressividade de suas iniciativas e ações. Menor o número dos antifascistas refugiados na Capital Federal, menor a consistência da coletividade de origem italiana presente, 2 menos patentes suas iniciativas de propaganda, de denúncia, de luta. Mesmo assim, em seu seio, é possível identificar e caracterizar percursos, tentativas, realizações que tornam significativo seu estudo. A proximidade intensa e perigosa da comunidade italiana no Rio de Janeiro com os ambientes da embaixada e mais em geral do mundo diplomático da Capital, com sua preocupação de vigilância e controle, e o convívio dos grupos antifascistas com o centro do poder politico nacional depõem em favor da possibilidade de mapear interessantes singularidades. Além disso, toda experiência de exilio por motivos políticos traz em si características e modalidades de exercício que questionam e instigam quem se aproxima dela com olhar investigativo e participativo. Assim é o caso também da realidade da emigração italiana antifascista para o Rio de Janeiro, independentemente de sua consistência numérica ou de seus resultados efetivos. Talvez possa até se afirmar que sua atuação teve um “peso específico” significativamente maior que a de qualquer outro lugar do Brasil. O presente trabalho não se propõe de oferecer um quadro analítico exaustivo dessa realidade. Ambientes, realizações, tentativas, dinâmicas, questionamentos do antifascismo de origem italiana no Rio de Janeiro estão aqui presentes como pano de fundo e horizonte de compreensão. Seu objetivo primário é a reconstrução de três “percursos” e a tentativa de uma comparação entre eles. São os percursos de três antifascistas italianos que, devido a sua identidade e militância, viveram anos de exilio de sua terra de origem na Capital Federal brasileira. O estudo da atuação da cada um deles, investigado em sua singularidade e colocado no contexto mais amplo da componente antifascista da colônia italiana, junto a uma atenção voltada para surpreender analogias, diferenças e especificidades, constitui o interesse que conduziu nossa pesquisa. 2. Tanto o caminho de Scarrone, empresário do vidro, socialista, expoente da velha emigração italiana para o Brasil, quanto os trajetos do anarquista Garavini e do republicano Battistelli, aqui aportados em meados da década de 20, reconstruídos em suas linhas principais e analisados a partir de uma série de questionamentos iniciais, permitem uma compreensão, ainda que limitada e parcial, do que significasse ser antifascistas no exilio do Rio de Janeiro. A escolha dos três percursos se deve, de um lado, a um papel de destaque que efetivamente eles tiveram no âmbito da coletividade italiana da cidade, do outro, à maior riqueza de fontes e documentação disponível para reconstruí-los. Um terceiro 3 fator guiou a individuação dos percursos: a possibilidade de uma comparação entre opções e identidades politicas diferentes, em seu posicionamento perante o fascismo e modalidades de luta contra ele. Com efeito, algumas perguntas orientaram desde o inicio o caminho da pesquisa e a forma de se defrontar com as fontes disponíveis e as que surgiram ao longo da investigação. Antes de tudo, o questionamento sobre as especificas modalidades e formas de luta que cada um dos três antifascistas adotou em seu percurso, pelo fato de proceder de identidades politicas diferentes e de pertencer a gerações também diferentes. Junto com isso, a pergunta sobre as conexões de cada um com o mais amplo debate do antifascismo italiano, e também não italiano, no Brasil e no resto do mundo, ou seja, através de quais redes de relações se alimentasse sua vontade de resistência ao fascismo, suas determinações, sua própria fé politica. Trocas, intercâmbios, referências, apoios, tanto no âmbito nacional como no internacional. Nesse sentido, a delineação, ainda que de forma rápida e sintética, de figuras colaterais do antifascismo de origem italiana atuantes na capital Federal se tornou uma inevitável modalidade de oferecer respostas a esse tipo de questionamento. Uma atuação antifascista com características próprias, devido a histórias pessoais e pertencimentos diferentes, que se articulava com o enraizamento no tecido urbano do Rio de Janeiro dos anos de 1920 a 1945. Como se configurou, nesse sentido, a atuação de Scarrone, Garavini e Battistelli em relação ao contexto da cidade, a suas dinâmicas sociais ou suas dimensões político-econômicas? Quais as contribuições próprias de sua ação como antifascistas, portanto fruto de suas escolhas e opções politicas, para a vida da cidade e do país que os abrigou? 3. O trabalho se insere no contexto dos estudos políticos sobre o mundo do antifascismo italiano, particularmente daqueles que tratam da emigração antifascista. Por isso ele dialoga com as contribuições mais significativas apresentadas pela historiografia, particularmente de origem italiana, mas não só. O balanço da historiografia do antifascismo italiano apresentado na primeira parte quer situar o trabalho no âmbito mais largo deste debate. Trabalho de história politica, com efeito, em tempos de retomada de significado e valor desta vertente historiográfica. Trabalho, contudo, que escolhe a modalidade da discussão em torno de três casos, da reconstrução narrativa de três percursos de vida e de luta: não ‘biografias’ no sentido mais clássico e tradicional do termo, mas elaboração de perfis que partilham de um 4 mesmo tempo e um mesmo espaço geográfico. De todo modo, queremos nos colocar em diálogo com as provocações de Lawrence Stone, que no começo da década de 1980 pregava a volta da narrativa histórica. Como afirma Giovanni De Luna, reside justamente no modelo narrativo definido por Stone, e em seus elementos principais, a possibilidade autentica de unir as ambições científicas da argumentação histórica com a eficácia interpretativa de um percurso literário. Reconstruir vidas, como as três que compõem o cenário deste trabalho, significa também narrar passos, realizações, dúvidas, tentar oferecer a percepção de existências que se questionam diante de circunstâncias e possibilidades. Antoine Prost recorda que o passado contem também um tempo futuro, a ser entendido como horizonte de possibilidades: o futuro dos biografados, que muitas vezes se esvai na dura reconstrução cronológica das etapas, estava ainda presente diante de cada um deles, na hora de suas escolhas. E a própria Vavy Pacheco Borges, como já Carlo Ginzburg em vários de seus escritos, alerta a reter como significativo, numa narração biográfica, não somente o documentado, mas também o não dito, as incertezas intuídas, ou as possibilidades perdidas. Instigante é sem dúvida, para uma investigação como esta, a desenganada afirmação de Bourdieu segundo a qual toda construção biográfica não passaria de uma ilusão, devida ao fato de querer compreender uma vida unicamente como sucessão de eventos cuja única constante de referência seria um nome próprio; ilusão análoga àquela de quem tentasse se dar conta de um trajeto de metrô sem conhecer a estrutura da rede e as diferentes estações. Longe, então, do pesquisador, a pretensão de possuir e penetrar de forma completa o percurso de uma existência, conserva-se, todavia, a vontade de surpreender uma liberdade em ação, em seu “caráter intersticial” para usar a expressão de Giovanni Levi, na relação entre biografia (isto é, biografado) e o contexto em que se move. Nesse sentido, como horizonte de referência para nossa tentativa, as produções historiográficas de Robert Darnton, Lucien Febvre e Carlo Ginzburg funcionaram como exemplo e ao mesmo tempo paradigma. Tanto a tentativa de reconstrução da “curva de um destino” no caso da biografia de Lutero do historiador francês, como o conjunto de esboços do americano sobre a boemia literária pré-revolucionária, voltado a restituir os “desaparecidos nos inescrutáveis escaninhos da historia”, estiveram presentes diante de nosso percurso para proporcionar pontos de comparação e pistas de trabalho. Assim como foi indicação de um caminho, possível a ser percorrido, a restituição à vida e ao 5 público conhecimento da história de Menocchio, operada pelo pesquisador italiano, com seu uso articulado das fontes e o exercício de imaginação oferecido pelo pesquisador. A esse respeito, por envolver caminhos individuais e experiências pessoais, e por configurar-se de certo modo como uma redução da escala de observação para oferecer luz também ao contexto mais amplo, o presente trabalho dialoga com as práticas historiográficas típicas da micro-história. Embora não assumindo esta aproximação como marco referencial direto do trabalho, a narrativa micro-histórica e seus exemplos mais conhecidos, como o de Ginzburg, entraram no seu mais amplo horizonte de referências. Ulterior, mas não menos importante, referência do trabalho é constituída pela história dos intelectuais. Battistelli, de modo particular, e, em formas diferentes, também Garavini e Scarrone atuavam e se articulavam como intelectuais, embora somente o primeiro possa ser definido como tal a todos os efeitos, reservando para Scarrone a também sugestiva aproximação com o mundo da intelectualidade underground, investigada para outros climas e temporalidades por Darnton. Nesse âmbito, foram sobretudo as contribuições de Sirinelli que se constituíram como horizonte de compreensão. A pesquisa se coloca no âmbito teórico da história comparada. O principal nível de comparação está entre os percursos diferentes vividos pelos três antifascistas italianos que constituem o objeto do estudo. Uma comparação que visa por em evidência semelhanças e diferenças, analogias e descontinuidades dos caminhos políticos, inspirados por linhas ideológicas e políticas diversas. Como pano de fundo há vários outros níveis de comparação, embora não colocados explicitamente como objetivo da pesquisa: entre o movimento antifascista italiano no Rio de Janeiro e o do resto do Brasil, entre o mesmo e a oposição ao fascismo em outras nações, e enfim entre esse movimento e o ambiente político da esquerda antifascista brasileira, mais especificamente da cidade do Rio de Janeiro. A comparação é então realizada certamente entre ‘comparáveis’, como os três percursos políticos em questão, mas ela se alimentou das práticas e dinâmicas de constante comparação experimentadas e realizadas no âmbito do Programa de Pós-graduação, onde sugestões de ordem teórica, metodológica e também de conteúdo contribuíram para os resultados do trabalho. 6 4. Vem a este ponto o que idealmente deveria ter sido colocado no principio, por ser de fato o responsável do empreendimento que aqui encontra sua finalização. As razões específicas que levaram à escolha do tema e de seus recortes. Sem comentários é a importância que para a história italiana o advento do fascismo na década de 1920 e o regime por ele implantado representam, assim como, do outro lado, as vicissitudes da luta antifascista, no país e no exterior. Essa longa conjuntura histórica constitui ainda hoje um ponto de debate no âmbito do pensamento politico italiano e da reflexão mais ampla da sociedade em seu conjunto. Para mim, crescido em anos de pósfascismo, de liberdade e democracia, aquela temporada se configurava como um passado ao qual dirigir perguntas e questionamentos. A experiência de meu pai, sua passagem pelo conflito através da campanha da Grécia e consequente confinamento em campos alemães de prisioneiros de guerra por alguns anos, também se tornava sempre um motivo de indagação, assim como as razões que levaram inteiras gerações a aceitar, tolerar ou enfrentar abertamente o regime de Mussolini. Já na dissertação de mestrado o fascismo e os questionamentos a respeito de seu regime foram colocados ao centro do interesse, no estudo do diário do Ministro Ciano e de sua pretendida tomada de distâncias de Mussolini em ocasião da eclosão do conflito em 1939-40. Agora, a perspectiva de afundar o olhar mais diretamente no mundo da oposição e da resistência ao fascismo se tornava concreta, na medida em que apareciam diante de mim, ao ler e pesquisar sobre os antifascistas italianos atuantes no Brasil, pessoas cujos percursos revelavam aspectos e dimensões particularmente interessantes. Um deles inclusive carregando o meu mesmo sobrenome, embora sem laços de parentesco comigo (em seguida fui descobrindo que dois irmãos de meu avô, ambos Scarrone, emigraram, naqueles anos, um para a França e outro para os Estados Unidos, mas esta era, e ainda é, outra história). A tudo isso se somava o interesse para figuras que carregavam em si uma dupla pertença: à Itália, como terra de origem, e ao Brasil, país de acolhida. A condição do emigrante, assim como do exilado, caracterizando os três, e muitos outros, se aproximava, com as devidas distinções, à minha condição pessoal. Eu também partilhando de duas referências identitárias em termos geográficos, linguísticos, culturais; como outros homens de fronteira, chamado a um duplo pertencimento. 5. As razões acima apresentadas alimentaram os caminhos da pesquisa, realizada em arquivos italianos e brasileiros, onde a documentação destes homens de fronteira ficou 7 recolhida. Dados sobre chegadas e partidas de vapores, fontes policiais, opúsculos, livros e panfletos impressos, correspondências, registros de atividades comerciais, fontes jornalísticas, memórias, depoimentos: a diversidade das fontes documentais exigiu atenções particulares em sua interpretação e leitura. Seu levantamento, registro, análise e sistematização, e sucessiva reelaboração, acompanhados pelo trabalho sobre a bibliografia secundaria, permitiu a delineação dos três percursos políticos e existenciais e a redação final. Ela aqui se articula da seguinte forma. A Primeira Parte oferece um balanço da historiografia do antifascismo italiano. Após reconstruir as principais linhas interpretativas do fascismo, se introduz a temática do antifascismo, seu significado, suas vertentes, seus marcos cronológicos, e os debates sobre os quais a historiografia do mesmo se empenhou, dando espaço para a elucidação das suas mais recentes contribuições. Um espaço a parte é dedicado ao antifascismo da emigração, à sua historiografia, e à produção relativa ao caso brasileiro. A Segunda Parte apresenta o percurso de Giuseppe Scarrone, desde suas primeiras iniciativas socialistas e cooperativistas na Itália até sua emigração para o Brasil, ainda em 1911. A implantação no Rio de Janeiro da Fábrica Nacional de Vidros com suas propostas de participação operária nos lucros, de um lado, e sua atuação como antifascista, sobretudo através da produção e difusão de inúmeros opúsculos, cartas abertas e panfletos, do outro, formam o corpo central desta parte, que acompanha o empresário também em sua condenação pela justiça do regime, assim como documenta de forma mais destacada os primeiros passos do antifascismo italiano na Capital Federal. Na Terceira Parte, mais extensa, em função sobretudo do maior volume documentário, é investigado o caminho de Libero Battistelli, advogado republicano, aportado ao Rio de Janeiro em 1927 com esposa e cunhados. O seu intenso e refinado empenho antifascista, sua rica produção de artigos e ensaios, a colaboração com vários instrumentos da rede internacional do antifascismo, sua participação em iniciativas e associações constituem a parte principal desta seção, que permite compreender dificuldades, problemas e realizações do antifascismo italiano no Rio em seus anos de maior vitalidade. A seção analisa também a adesão de Battistelli ao movimento de Giustizia e Libertá e sua participação na guerra civil espanhola. A Quarta Parte acompanha o percurso de Nello Garavini, anarquista, em seus anos italianos e depois em seu exilio na Capital Federal a partir de 1926, junto com a esposa. 8 A participação nas atividades da Liga Anticlerical, os contatos com os ambientes libertários da cidade e com amigos anarquistas fora do Brasil, o empenho na livraria e editora durante os anos mais difíceis do governo Vargas, e as tentativas de uma presença antifascista dos italianos em tempos de guerra são as linhas de reflexão e análise que compõem esta seção. Algumas considerações finais permitem um olhar de síntese sobre os percursos individuais, favorecendo uma análise comparativa dos mesmos e oferecendo elementos para uma melhor leitura de conjunto do antifascismo italiano na Capital Federal. Grande parte das fontes (ensaios, opúsculos, artigos de La Difesa e outros periódicos antifascistas, correspondências, fontes de polícia italianas) foram produzidas no idioma italiano. No presente trabalho, elas são citadas ou transcritas no idioma português, a partir de uma nossa tradução. 9 1. PRIMEIRA PARTE / Balanço da historiografia do antifascismo italiano 1.1. Olhando para o inimigo comum O Estado autoritário que se estabeleceu na Itália a partir do outubro de 1922, antes como liderança fascista de uma coalizão de partidos de cunho conservador, e depois, a partir da virada de 1925-26, como exercício absoluto do poder por parte de Mussolini e do Partito Nazionale Fascista, foi implantado através de progressivas medidas legislativas e policiais que restringiam as liberdades fundamentais dos cidadãos, proibiam associações e organizações de oposição, amordaçavam ou condicionavam os meios de comunicação, criavam o Tribunal Especial e o degredo policial. Esse Estado representou o inimigo contra o qual, durante mais de vinte anos, na Itália ou em terras estrangeiras, grupos organizados, seções de partido, agremiações ou simples homens e mulheres combateram, usando dos mais variados meios de propaganda e luta. Se o percurso através do qual o fascismo chegou a consolidar seu poder na península, tomando posse cada vez maior do Estado e de suas estruturas, centrais e periféricas, é bastante conhecido, tendo sido objeto de inúmeros estudos monográficos ou comparativos,1 mais importante para os fins de nosso trabalho analítico se configura a discussão acerca das características fundamentais do fascismo italiano, à luz de algumas 1 Particularmente vasta é, evidentemente, a contribuição da historiografia italiana a respeito. Entre as obras mais significativas: AQUARONE, Alberto. L’organizzazione dello stato totalitário. Torino: Einaudi, 1995 (1ª ed. 1965). DE FELICE, Renzo. Mussolini, Il fascista, II – L’organizzazione dello Stato fascista ( 1925-1929), Torino: Einaudi, 1969. ------ Mussolini, il duce / I. Gli anni del consenso (1929-1936). Torino: Einaudi, 1974. -------- Mussolini, il duce / II. Lo stato totalitário (1936-1940). Torino: Einaudi, 1981. LUPO, Salvatore. Il fascismo. La política in um regime totalitario. Roma: Donzelli, 2000. DE BERNARDI, Alberto. Una dittatura moderna. Il fascismo come problema storico. Milano: Mondadori, 2001. GENTILE, Emilio. La via italiana al totalitarismo. Il partito e lo stato nel regime fascista. Roma: Carocci, 2001. PALLA, Marco (org.). Lo stato fascista. Milano: La Nuova Itália, 2001. Entre os mais recentes trabalhos não italianos disponíveis em língua portuguesa TEIXEIRA DA SILVA, Francisco Carlos. “Os fascismos”. In REIS, Daniel Aarão; FERREIRA, Jorge; ZENHA, Celeste (org.). O século XX. Vol. II. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2000, 109-164. PAXTON, Robert. A anatomia do fascismo. São Paulo: Paz e Terra, 2007. PARADA, Mauricio (org.) Fascismos: conceitos e experiências. Rio de Janeiro: Mauad, 2008. MANN, Michael. Fascistas. Rio de Janeiro: Record, 2008. MILZA, Pierre. Mussolini. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 2011. SASSOON, Donald. Mussolini e a ascensão do fascismo. Rio de Janeiro: Agir, 2009. Sobre a discussão a respeito do Estado fascista italiano e de suas principais estruturas, me permito também indicar a primeira parte de minha dissertação, “Na rede do poder fascista, entre diplomacia e razão de Estado. Pensamento e atuação do ministro italiano das Relações Exteriores Galeazzo Ciano, à luz de seu Diário (1937-1940), na véspera do segundo conflito mundial”. Rio de Janeiro: PPGHC / UFRJ, 2008. 10 das principais contribuições da historiografia internacional sobre o assunto. Afinal, se de antifascismo e antifascistas se tratará no presente trabalho, há de se apontar para os que são os traços constitutivos do fenômeno fascista, surpreendidos antes de mais nada na realidade italiana, e, como corolário necessário para uma melhor compreensão do mesmo, em seu contexto internacional. Contudo, antes de enfrentar a análise das linhas interpretativas do fascismo presentes na mais recente historiografia, e como abertura de discurso sobre o que ele representou na visão e na vida de gerações de antifascistas, pode ser interessante apresentar, em suas linhas gerais, mesmo correndo o risco de uma simplificação excessiva, as compreensões que do fenômeno fascista foram elaboradas já a partir do início da década de 1920 pelos próprios opositores dele, no ambiente de um antifascismo italiano que de incipiente ia se fazendo cada vez mais articulado e organizado. Em que medidas e segundo quais percursos essas leituras influenciarão a sucessiva historiografia do antifascismo, produzida após a conclusão da segunda guerra mundial, será analisado e discutido mais para frente. Igualmente tornar-se-á útil retomar uma ou outra dessas leituras na segunda parte de nosso percurso investigativo, quando da análise das fontes recolhidas a respeito dos três antifascistas italianos objeto de nosso estudo. Por enquanto, cabe aqui o registro, em termos comparativos, dessas interpretações do fascismo, quase retratos falados do inimigo, esboçados a lápis e difundidos antes que uma imagem captada por uma câmera o fotografe e tente restituí-lo com maior evidencia de detalhes: tal registro será feito a partir de sínteses elaboradas pela historiografia que se debruçou sobre os documentos produzidos pelo mundo do antifascismo, sobre as quais o consenso dos estudiosos é praticamente unanime, abrindo-se o debate eventualmente acerca da maior ou menor capacidade de um retrato ou de outro, de uma leitura ou de outra, em caracterizar o fascismo em seu tempo. As interpretações do fascismo que foram desenvolvidas e elaboradas desde os primeiros anos após o surgimento dele e particularmente depois de sua implantação na Itália como regime ditatorial e liberticida, e que parte da historiografia chega a apelidar de “clássicas” ou “paradigmáticas”, podem ser esquematicamente reconduzidas a três grandes linhas explicativas.2 2 Nesse percurso através das principais linhas interpretativas do fenômeno fascista elaboradas no âmbito dos opositores do mesmo, no período do entreguerras, será usada uma tripartição reproduzida 11 Em âmbito liberal-conservador, o fascismo foi frequentemente descrito como incidente e/ou acidente, como expressão de uma “doença moral” que acometera a Itália liberal e do qual, mais cedo ou mais tarde, o país encontraria formas e modos para se libertar. Fascismo, então como irrupção imprevista e imprevisível de algo externo ao Estado liberal, algo comparável com as invasões bárbaras que tomaram de assalto o vacilante império romano do século V, ou melhor, numa comparação formulada por Benedetto Croce, com a invasão dos Hyksos, o povo de origem asiática que se infiltrara no reino egípcio em meados do segundo milênio antes de Cristo, dominando-o pelo espaço de algumas dinastias: invasão misteriosa, seja em seu inicio como em seu encerramento, penetração de um povo que veio do nada e ao nada voltou, cuja evocação reforçava a convicção de uma passagem rápida do fascismo pelo país, que, uma vez rechaçados os intrusos, voltaria sem muitos problemas ao velho sistema liberal. Neste mesmo âmbito de considerações, outra metáfora usada, e de formas diferentes reelaborada, foi a do fascismo como parêntese, exatamente para significar suas escassas ou nulas possibilidades de permanência e incidência no tecido político, social e cultural italiano, que, após sua chegada e sucessivo desaparecimento, tornaria a ser moldado pela mentalidade e pela lógica do liberalismo. Quanto de improvável uma análise desse tipo pudesse conter é evidente não somente numa leitura, feita a posteriori, das marcas que o próprio Estado fascista e a guerra na qual empenhou o país deixaram no corpo da nação, mas também na base dos evidentes sinais de profunda transformação e mudança que a passagem do vendaval fascista realizava na sociedade italiana: somente figuras empenhadas numa oposição ao regime de Mussolini de cunho, sobretudo ou exclusivamente, intelectual, como Croce, podiam pensar que o fascismo passaria como um parêntese na história da Itália. Segunda linha interpretativa do fascismo foi a leitura marxista do mesmo, que o caracterizava como reação de classe, isto é, instrumento do capitalismo para responder de forma articulada e eficaz às cada vez mais ameaçadoras iniciativas políticas e sindicais das classes trabalhadoras, no campo como nas fábricas, e assim contribuir a deter a maré montante do socialismo. Leitura que era compartilhada, em formas e por boa parte da recente historiografia italiana. Sua formulação será aqui apresentada a partir de uma síntese particularmente eficaz presente em DE BERNARDI, Alberto. “Il fascismo e le sue interpretazioni. II – La Storiografia” In DE BERNARDI, Alberto; GUARRACINO, Scipione (org). Il fascismo. Dizionario di storia, personaggi, cultura, economia, fonti e dibattito storiografico. Milano: Mondadori, 1998, p. 102135. 12 tempos diferentes e segundo ênfases desiguais, pelos comunistas, pela vertente maximalista do socialismo italiano e, em parte, por republicanos de esquerda. Leitura que, apesar de receber correções e reformulações como a de Palmiro Togliatti, que apontaria para a capacidade do regime fascista de se apoiar nas massas (“regime reacionário de massa” é a fórmula que em 1935 o dirigente comunista usou nas suas Lições sobre o fascismo, dirigidas a um grupo de exilados italianos em Moscou), não se alteraria substancialmente com o passar do tempo. Seria fora do nosso propósito percorrer aqui as etapas através das quais essa formulação e visão do fascismo foi se construindo, as acelerações e correções que sofreu, as adaptações que gerou, levando em conta também que a sustentação desta perspectiva por parte do partido comunista italiano, por exemplo, implicava um constante ajuste com as teses elaboradas pelo partido bolchevique soviético e pela Internacional Comunista. Das primeiras confusas formulações políticas à identificação da própria socialdemocracia com o fascismo (teoria do “social-fascismo”) e à linha identificada como “classe contra classe”, ou “frente única pela base”, excluindo por parte comunista qualquer colaboração e aliança com outros partidos que se dirigiam ao mundo operário, a não ser a união dos próprios trabalhadores como tais debaixo da grande bandeira do comunismo internacional, até a temporada das frentes populares, a partir de 1934, quando não somente os socialistas, mas também outras forças progressistas, de orientação marxista ou não, foram acolhidas num projeto comum de luta ao fascismo: as idas e vindas desta segunda linha interpretativa do fascismo coincidiram com as reviravoltas de uma parte importante do antifascismo italiano e internacional, com seus projetos estratégicos, suas evoluções táticas e suas escolhas operacionais. Disso tudo não será dado conta de forma analítica em nosso trabalho, mas os caminhos percorridos pelo componente do antifascismo que idealmente se reconhece nesta leitura da ditadura mussoliniana e do fenômeno fascista em geral atravessam, seja no plano interno dos Estados como no plano transnacional, os caminhos de outros setores do antifascismo, provocando diálogo, debate, conflito, aprofundamento teórico e político. Uma ou mais concepções de antifascismo estão em jogo aqui: há de se observar que a própria identidade dessa categoria histórica não foi até agora definida ou delimitada em nosso percurso analítico. 13 Houve uma terceira leitura do fascismo que aos pouco acabava encontrando seu espaço no mundo multifacetado da oposição ao regime do Duce, e que sustentaria como orientação de fundo algumas das tentativas mais originais de luta antifascista, como, entre outras, o movimento de Giustizia e Libertá. Ela foi formulada em âmbito liberalradical ou liberal-democrático, in primis por Piero Gobetti3, que em vários escritos falou do fascismo como “autobiografia da nação”, isto é, representação ao vivo de males crônicos dos quais sofria a Itália, desde a época de suas lutas pela unidade nacional, o Risorgimento. Unidade realizada por pessoas que não souberam produzir autêntico progresso, e que deixaram o país nas mãos de forças retrógradas: agora, com o fascismo, era o triunfo delas, de uma Itália bárbara, conservadora, clerical, atrasada. Assim o fascismo, segundo Gobetti, não representava nenhuma “revolução’, e sim uma triste “revelação”: o vir à tona das piores forças da tradição, da velha Itália que não queria passar. Interpretação, a gobettiana, que inspiraria sobretudo, como foi dito, o movimento de Giustizia e Libertá, com sua inclinação pela ação exemplar contra o fascismo, com sua busca de uma vida política que prescindisse de divisões e burocracias partidárias, com a tentativa de construir espaços sociais de autogestão, onde socialismo e liberalismo, com suas melhores sugestões, pudessem se harmonizar. Uma visão quase “moral” da luta contra o fascismo, animada por grande rigor ético e forte dedicação dos militantes, em diálogo de um lado com os representantes do liberalismo histórico, e do outro com as várias forças da esquerda marxista e também com o anarquismo. É tempo agora de entrar na discussão a respeito de algumas das características fundamentais do fascismo italiano, a partir da reflexão historiográfica consolidada em períodos mais recentes. Com isso, se quer, de um lado, mostrar o valor de muitas das intuições e reflexões produzidas na época do entreguerras pelos próprios opositores de Mussolini, e, do outro, ir em busca de uma imagem mais completa daquilo que representou para a Itália e os italianos, mas também para a Europa e o mundo, o fenômeno do fascismo. As três leituras esboçadas acima possuiam, para além das diferentes perspectivas das quais partiam, um ponto em comum: para todas, o fascismo não passava de um 3 Nascido em Turim em 1901, após a guerra Gobetti fundou e dirigiu alguns periódicos, entre os quais La Rivoluzione Liberale, onde propunha uma profunda renovação da vida política. Próximo também do recém nascido movimento comunista, sua visão buscava realizar um liberalismo autêntico, revolucionário. Perseguido e espancado pela policia fascista, se refugiou em Paris para continuar sua atividade editorial, mas morreu, também em decorrência das violências sofridas, no começo de 1926. 14 fenômeno “reacionário”. Contra o velho sistema liberal e parlamentar, contra o proletariado e as forças da esquerda organizada ou contra as tendências progressistas e renovadoras do país, o fascismo era descrito como algo que freava e impedia o normal curso da história, fosse ele o triunfo do socialismo, a permanência do sistema liberal ou a construção de uma Itália aberta aos valores de civilização européia. A historiografia em anos mais recentes coloca um ponto de interrogação sobre o rótulo de reação strictu sensu atribuído ao fascismo, sobre sua presumida vontade de atrasar os ponteiros no relógio da história. É assim que começam a aparecer leituras do fascismo como um fenômeno modernizador: afinal, ele aparece em sociedades e num momento histórico onde as exigências da modernização estão cada vez mais presentes, com todas as contradições que essa presença traz consigo. Gino Germani4 e sua sociologia da modernização ajudam neste tipo de analise, através do conceito de mobilização social, segundo o qual o deslocamento repentino de inteiros grupos sociais provocado pela modernidade, como, por exemplo, o processo de proletarização das classes médias na crise do pós-guerra, provoca ajustes entre as classes e a possível emergência de grupos ou de partidos como o próprio fascismo, que, encarregando-se de mobilizar as mesmas classes médias, acaba por favorecer interesses de outras classes, para depois, uma vez no poder, organizar outra mobilização, a do mundo do trabalho, embora autoritariamente e do alto. Podemos ver, com esse tipo de análise, que a categoria da reação sozinha não dá conta da complexidade do fenômeno fascismo. Modernização do alto, modernização autoritária, modernização corporativa: são algumas das formulas usadas para tentar dar um nome a um regime político onde a busca do desenvolvimento industrial e do progresso tecnológico se aliava à sufocação das liberdades individuais e coletivas, à organização do consenso, à tentativa de controle total da sociedade. Há também quem aponte para uma dupla natureza do fascismo italiano. Fenômeno revolucionário em sua origem e reacionário em sua estabilização institucional: é o que sugere Renzo De Felice, autor da monumental biografia de Mussolini.5 As origens do fascismo, quando ainda ele possui uma configuração movimentista, indicariam, segundo o historiador italiano, o prevalecer nele do elemento revolucionário, com a mistura de 4 Cf. GERMANI, Gino. Autoritarismo, fascismo e classi sociali. Bologna: Il Mulino, 1975. A biografia de Mussolini escrita por Renzo De Felice (Mussolini il rivoluzionario, Mussolini il fascista, Mussolini il duce, Mussolini l’alleato são as quatro partes em que se articula) foi publicada pela Editora Einaudi, de Turim, em oito volumes, a partir de 1963 até 1996. 5 15 proclamas nacionalistas e de declarações anti-sistema (contra o liberalismo e o socialismo, sim, mas também contra a monarquia e a igreja), ao passo que, após a tomada do poder e a consolidação como regime, o fascismo pode ser representado mais adequadamente pela categoria da reação. De Felice chega em vários momentos a afirmar a presença simultânea dessas duas naturezas, até durante o período da estabilização do fascismo como regime, quase duas almas ora convivendo ora conflitando. A leitura defeliciana do fascismo italiano não para por aqui, e merece uma análise mais aprofundada, recordando que os pontos por ela levantados e seus desdobramentos sucessivos, apresentados em entrevistas e/ou artigos na imprensa, acabaram por incluir seu autor no rol dos assim chamados “revisionistas”, fautores de uma releitura do passado direcionada a absolver os fascismos de boa parte de suas responsabilidades históricas.6 O historiador italiano, em sua reconstrução do percurso humano e político de Mussolini, acaba oferecendo uma sua interpretação do fascismo, na qual pelo menos dois pontos fundamentais para o nosso tema aparecem com freqüência e destaque. O primeiro é a tendência em retirar o fascismo italiano de seu contexto internacional, de suas referencias européias com movimentos análogos (o próprio nacional-socialismo alemão, e outros), descrevendo-o como um fenômeno tipicamente e exclusivamente italiano, fruto de características e circunstâncias ligadas ao desenvolvimento histórico e cultural da península. Um segundo aspecto frisado em seu trabalho é a tese segundo a qual, na realidade, foram as velhas elites econômicas e políticas a manter em suas mãos o poder durante o regime mussoliniano, que não passou, portanto, de um governo tradicional, com algumas correções autoritárias. Para De Felice, o fascismo foi somente a “forma” do regime, sua “substância” continuando a ser a do Estado tradicional, embora vestindo camisa negra e com transformações em sentido autoritário. Assim escreve: a velha classe política moderada e conservadora e a burocracia [...] se deixaram “fascistizar”; assim fazendo, porém, garantiram para si a possibilidade de continuarem a manter em suas mãos as tradicionais alavancas de seu efetivo poder, seja político como econômico, e em 6 Para uma visão sintética do debate ao redor da obra de De Felice, cf. SANTOMASSIMO, Gianpasquale. “Il ruolo di Renzo De Felice”. In COLLOTTI, Enzo (org.). Fascismo e antifascismo. Rimozioni, revisioni, negazioni. Roma-Bari: Laterza, 2000, p. 415-429 (mas o volume inteiro, como aparece pelo subtítulo, é dedicado à discussão sobre revisionismo e negacionismo, com interessantes contribuições de pesquisadores de varias nacionalidades), e também DEL BOCA, Angelo (org.). La storia negata. Il revisionismo e il suo uso político. Vicenza: Neri Pozza, 2009. 16 breve espaço de tempo conquistaram também o Pnf [...] e o reduziram substancialmente na dependência do Estado.7 É por esse motivo que De Felice não caracteriza o fascismo italiano como um regime totalitário (a não ser após sua aproximação do nazismo, a partir de 1938; nesse caso o historiador italiano fala de “virada totalitária”). Mais para frente voltaremos sobre essa questão, inclusive para verificar o que se esconde atrás dessa categoria. Aqui se tentará discutir a plausibilidade dessa leitura de De Felice, através do recupero de uma literatura que também estuda as características essenciais do fascismo, italiano e não. Começando com outro grande expoente da historiografia que se debruçou sobre o tema, Ernst Nolte, confrontamos a interpretação defeliciana com um texto do historiador alemão de 1966, que analisaremos numa edição francesa recente.8 Nolte acabava de publicar Der Faschismus em seiner Epoche (1963), uma interessante contribuição ao aprofundamento da temática relativa ao fascismo. Nesta ulterior produção, ele apresenta, no segundo capítulo, alguns traços que definem o fascismo italiano de 1922: origem na grave crise do sistema liberal, devida paradoxalmente não à sua derrota, e sim à sua excessiva vitória; nascimento direto das trincheiras da grande guerra, com o surgimento de novos tipos humanos; relação paradoxal com a burguesia, sendo campeão da idéia burguesa de combater o revolucionarismo marxista, mas realizando a tarefa com métodos e forças completamente alheias à tradição e ao pensamento burgueses; heterogeneidade entre seus lideres, muitos oriundos das fileiras socialistas, e a própria burguesia; retomada do antigo nacionalismo e sua atuação; tendência para a ideologia, mesmo declarando-se voltado para a ação. E conclui: Todas essas características não têm nada de propriamente italiano, mas são européias. Paralelamente à expansão do sistema liberal, a crise do mesmo tinha-se desenvolvido até as fronteiras da Europa e existiam quase que em todo lugar tropas de voluntários de caráter paramilitar e de tendências anti-bolcheviques (...). Comparadas a esses elementos comuns, as originalidades propriamente italianas são relativamente mínimas (...). Em principio, a existência de movimentos análogos era possível em todos os países da Europa: a situação especificamente italiana explicava não a chegada do fascismo, mas somente seu rápido triunfo (...). Claro que no âmbito do mesmo tipo eram possíveis importantes diferenças: a crise do sistema liberal podia ser mais ou 7 DE FELICE, Renzo. Mussolini, Il fascista, II – L’organizzazione dello Stato fascista ( 1925-1929), op. cit. (ed. de 1981), p. 8. 8 NOLTE, Ernst. Les Mouvements fascistes. L’Europe de 1919 à 1945. Paris: Calmann-Lévy, 1991 (a 1ª edição alemã é de 1966). 17 menos profunda, o líder supremo podia ser oriundo não das fileiras socialistas e sim das conservadoras ou nacionalistas (...). Contudo, desde que essas diferenças permaneçam delimitadas pelo quadro das seis características definidas acima, o uso do termo geral de “fascista” se impõe.9 Qual melhor resposta à tese defeliciana que tende a circunscrever o fascismo ao caso italiano, visto como a única autêntica manifestação do fenômeno no cenário internacional e explicado a partir de elementos típicos daquela sociedade? O volume de Nolte oferece em seguida uma interessante panorâmica dos movimentos fascistas nacionais, começando pelos balcânicos e mediterrâneos, passando pelos da Europa oriental e báltica, e concluindo com os da Europa central, setentrional e ocidental. O que é oportuno reter aqui deste passeio pela fenomenologia do fascismo no Velho Continente é que, como Nolte demonstra e outros após ele reforçarão, não ultimo Robert Paxton10, a categoria de fascismo teve diferentes formas de encarnação: nem todas chegaram ao poder em seus Estados, mas todas apresentaram, com graus e intensidades diversas, características similares. Não se procederá aqui na discussão acerca do melhor idealtipo do fascismo; o que interessa é mostrar sua potencial capacidade de tomar forma em todas as sociedades européias (e não) do entreguerras, fato que era repetidamente denunciado, no final da década de 1920 e começo da sucessiva, pelos antifascistas italianos exilados no exterior, indo de encontro à convicção relativamente difundida na opinião publica internacional, incluídos governos e oposições das democracias liberais, de que o fascismo fosse um fenômeno essencialmente ou exclusivamente italiano, fruto de características presentes em sua sociedade ainda pouco desenvolvida e, portanto, impossível de se reproduzir em países mais “civilizados”. Muito indicativo desta convicção, e contemporaneamente sinal de quanto, até nos ambientes do socialismo europeu, o alerta dos antifascistas no exilio era pouco considerado, um trecho do discurso do presidente da Internacional Operária Socialista (IOS), o belga Emile Vandervelde, abrindo o 3º congresso da organização em Bruxelas, em agosto de 1928: 9 Ibidem, p. 77 Cf. PAXTON, Robert. A anatomia do fascismo, op. cit. 10 18 “Se vocês traçarem uma linha ideal de Kaunas a Bilbao, passando por Cracóvia e Florença, se encontrarão diante de duas Europas: uma onde o cavalo a vapor domina, outra onde domina o cavalo em carne e osso; uma, onde há parlamentos, outra, onde há ditadores. E é somente nessa Europa, nesta segunda parte dela, economicamente e politicamente atrasada, que as ditaduras proliferam, mais ou menos brutais, mais ou menos hipócritas, camufladas ou não de um simulacro nacional.”11 Quanto ao antifascismo, essas dificuldades encontradas por dirigentes e militantes de partidos e movimentos de oposição ao regime de Mussolini em fazer entender a periculosidade para a Europa e o mundo inteiro de um sistema como o do fascismo italiano, por sua possível reprodução, em formas diferentes, mas análogas, em qualquer latitude e em qualquer sociedade, voltarão em nossa discussão. A compreensão dos fascismos oferecida por Ernst Nolte permite retirar valor da tese de De Felice, centrada na reivindicação de uma singularidade do fascismo italiano - visto como êxito de circunstâncias próprias do sistema sócio-político do país - e também de uma sua diferença substancial de outros regimes autoritários com os quais é habitualmente comparado (leia-se nacional-socialismo, regimes salazarista e franquista, e outros). Pelo contrário, mesmo com as necessárias diferenças, é possível traçar paralelos e descrever analogias, inspirações convergentes e objetivos semelhantes, a partir dos traços comuns acima indicados por Nolte. É a partir de uma compreensão deste tipo do fascismo italiano que se discutirão mais para frente algumas das mais recentes produções da historiografia do antifascismo. Aqui, para complementar nossas afirmações, numa recente contribuição da historiografia nacional, a análise de Francisco Carlos Teixeira da Silva12, que busca apresentar uma teoria explicativa geral dos fascismos, “superando uma das características básicas dos estudos no imediato pós-guerra: a fragmentação da análise 11 Interessante o comentário de Nolte em seu livro, a respeito dessa colocação: “Isto significava esquecer que o fascismo nascera na Itália do norte, uma região nada subdesenvolvida. E significava também fechar os olhos sobre um fato evidente: o fascismo, quando tiver completados seus primeiros passos, iria representar obrigatoriamente, para o sistema liberal internacional, um perigo mais sério que as ditaduras militares e os regimes conservadores das regiões que estavam num estágio pré-industrial.” Cf. NOLTE, Ernst, Les Mouvements fascistes. L’Europe de 1919 à 1945, op. cit., p. 88-89. 12 TEIXEIRA DA SILVA, Francisco Carlos. “Os fascismos”. In REIS, Daniel Aarão; FERREIRA Jorge; ZENHA, Celeste (org.), op. cit., p. 109-164. 19 em diversas narrativas descritivas e históricas, onde o fascismo aparece como uma etapa da história da Alemanha e, algumas poucas vezes, da Itália”. Assim Teixeira da Silva explica o conceito de fascismo como “uma unidade de traços diversos que dão coerência a um fenômeno”, levando em conta não só os fascismos que conseguiram chegar ao poder, mas também os que não foram coroados de sucesso. Anti-liberalismo e anti-parlamentarismo, organicismo social e liderança carismática, anti-marxismo e negação das diferenças marcam, para ele, “a possibilidade de identificação do fascismo enquanto regime ou forma de dominação especifica”. O autor frisa assim a diferença entre o fascismo e outras vertentes políticas possíveis existentes no interior da direita (conservadorismo, reacionarismo, autoritarismo militar ou partidário): seu “caráter meta-político, mobilizado para a incorporação da nação, de seus corações e de suas mentes, numa concepção de mundo única, excludente e terrorista”.13 Quanto à segunda afirmação de De Felice destacada mais acima, a de uma substancial continuidade entre Estado liberal e Estado fascista, com o segundo que não passaria de uma prolongação do primeiro, agora de camisa negra e com ajustes de caráter autoritário, além das leituras de Nolte e Teixeira da Silva aqui apresentadas, praticamente toda a historiografia mais recente, italiana e não, questiona a interpretação oferecida pelo biografo de Mussolini, insistindo sobre a real novidade representada pelo fascismo italiano no cenário político nacional e internacional. Uma novidade, seja em suas primeiras aparições, ainda nos anos do pós-guerra, seja em sua tomada do poder e sucessiva estabilização como regime de governo. Para caracterizá-lo, boa parte dos autores se confronta com o possível uso da categoria do totalitarismo. Em anos bastante recentes, deixados para trás os ultrapassados debates do tempo da Guerra Fria - quando era frequentemente utilizado por cientistas políticos ocidentais numa operação de substancial equiparação entre os regimes fascistas (particularmente o nazismo) e o comunismo soviético - o conceito de totalitarismo volta a ser retomado por muitos historiadores, sobretudo italianos, para uma melhor compreensão do Estado de Mussolini. Está longe da finalidade e do espírito desse trabalho a intenção de usar o totalitarismo como categoria interpretativa tout court do fascismo, ou como fórmula 13 Do mesmo autor, veja-se a interessante reflexão em TEIXEIRA DA SILVA, Francisco Carlos. “Revoluções conservadoras, terror e fundamentalismo: regressões do individuo na modernidade”. In TEIXEIRA DA SILVA, Francisco Carlos (org.). O século sombrio: guerras e revoluções do século XX. Rio de Janeiro: Elsevier, 2004, p. 123-190. Leitura útil por oferecer novas pistas de análise e levar o questionamento até os dias atuais. 20 capaz de enquadrá-lo num modelo. O que interessa é lembrar antes de mais nada que o termo, nascido originariamente em âmbito antifascista (Piero Gobetti, antes, e o também liberal Giovanni Amendola14, depois, várias vezes usaram em seus jornais as expressões “jogo totalitário da demagogia fascista”, “sistema totalitário” ou “espírito totalitário” para se referir à forma fascista de governar), foi quase imediatamente adotado pelo regime como um dos termos de sua auto-compreensão, e como descrição possivelmente adequada de um projeto – pensado e tentado - de poder e de transformação da sociedade italiana.15 Percorrendo agora rapidamente algumas das leituras historiográficas que se confrontam com a categoria, é oportuno deixar claro, com Philippe Burrin, que, “regimes totalitários e regimes autoritários são dois conceitos que têm o valor de noções úteis e não de modelos explicativos globais que pretendem afirmar a identidade dos fenômenos considerados.” 16 A qualificação de totalitário é atribuída por muitos ao regime fascista italiano, sim, mas geralmente a partir de uma grande ressalva: tratar-se-ia de um totalitarismo imperfeito, ou incompleto. Totalitarismo, por possuir todas as principais características do fenômeno (presença simultânea de um centro de poder que afirma seu monopólio, uma ideologia que reclama exclusividade e uma estrutura de mobilização total da população através de um partido único e de organizações às suas dependências17), mas imperfeito, por não ter alcançado uma plena realização. Alberto Aquarone18, em sua obra que é referência para todos os estudiosos do fascismo do ponto de vista institucional, afirma que o Estado totalitário fascista, assim definido já no titulo de seu livro, na realidade nunca chegou a se realizar plenamente, nunca conseguiu se identificar totalmente com a sociedade. O problema crucial foram as relações com a monarquia e com a igreja católica, além da incompleta fascistização do 14 Deputado liberal democrata, Amendola participou da secessão parlamentar chamada de Aventino, após o asssinato de Matteotti. Em julho de 1925, foi agredido por fascistas: morreria, em consequências das violências sofridas, alguns meses depois, em abril de 1926, em Cannes (França). 15 Uma ótima documentação do surgimento em âmbito antifascista da categoria de totalitarismo e de sua imediata utilização pelo regime de Mussolini se encontra em PETERSEN, Jens. “La nascita del concetto di ‘Stato totalitario’ in Italia”. Annali dell’Istituto storico ítalo-germanico in Trento, I, 1975, Bologna: Il Mulino, 1976, p. 143-168. Ver também nossa dissertação de mestrado: SCARRONE, Marcello, op. cit., p. 35-41. 16 BURRIN, Philippe. “Politique et société: les structures du pouvoir dans l’Italie fasciste e l’Allemagne nazie”. Annales. Histoire, Sciences Sociales, 1988, vol. 43, n. 3, p. 615-637 (a citação está na p. 616). 17 Ibidem, (citando as características do totalitarismo segundo a definição de Juan Linz). 18 Cf. AQUARONE, Alberto. L’organizzazione dello stato totalitário, op. cit. 21 exército. Salvatore Lupo19 reconstrói o percurso da categoria de totalitarismo a partir da posição de Hanna Arendt20, segundo a qual o regime de Mussolini foi uma ditadura unipartidária, mas não pode ser definido totalitário, pela ausência do terror de massa e por respeitar o Estado tradicional e o exército. Lupo concorda em parte com estas afirmações, discordando sobre a tese do respeito pelo Estado tradicional: no fascismo italiano “se sobrepõem confusamente velho e novo, antes de tudo com a diarquia entre fascismo e coroa” 21, e depois com a existência de uma série de elementos que levam o autor a reconhecer a presença no sistema político criado por Mussolini daquela mesma “ânsia do moto perpetuo” característica, segundo a própria Arendt, dos regimes totalitários. Para terminar esta passagem pela historiografia do fascismo italiano, dois entre os autores mais qualificados. Emilio Gentile, num dos seus mais recentes estudos 22, afirma que, para a política fascista depois de 1936, é melhor falar - mas não é só uma questão de palavras – de “aceleração totalitária”, ao invés de “virada totalitária” (como sustenta De Felice para o período a partir de 1938), pois se tratava não da mudança de um percurso político, e sim da acentuação deliberada de um processo em curso, inerente à própria natureza do sistema de poder do fascismo, à sua cultura, à sua ideologia, à sua organização de partido e de regime. Para Gentile a qualificação de totalitário é própria do regime fascista, a ponto de intitular seu trabalho “La via italiana al totalitarismo”. 23 Para ele a escolha terminológica mais adequada é a de “experimento totalitário” e do fascismo como da “via italiana” deste experimento. As fortes dúvidas sobre a utilização do modelo historiográfico do totalitarismo para definir experiências diversas e até opostas como acontecido no passado não impedem a possibilidade de continuar a usar o termo totalitário para caracterizar o fascismo italiano, desde que seja claro que se fala, exatamente, de um experimento totalitário, de um “laboratório totalitário”, como afirma ainda Gentile, sem esquecer que, “mesmo não tendo sido o fascismo o inventor do 19 Cf. LUPO, Salvatore. Il fascismo. La política in um regime totalitário, op. cit. Cf. ARENDT, Hanna. As origens do totalitarismo. III - Totalitarismo, o paroxismo do poder, Rio de Janeiro: Ed. Documentario, 1979. 21 LUPO, Salvatore. Il fascismo. La política in um regime totalitário, op. cit., p. 29 22 Cf. GENTILE, Emilio. La via italiana al totalitarismo. Il partito e lo stato nel regime fascista, op. cit. 23 Gentile admite as expressões “totalitarismo incompleto” ou “imperfeito” (embora com uma dúvida sobre a validade científica delas no âmbito da análise historiográfica), desde que se considere que também os regimes considerados “completamente” ou “ perfeitamente” totalitários encontraram obstáculos, resistências e limites. A esse respeito, ele afirma que “na realidade histórica, o totalitarismo é sempre um experimento continuo, isto é, um processo em ato, e não uma forma completa e definitiva”. Ibidem, p. 149. 20 22 termo [...], ele foi com certeza o primeiro movimento e único regime político que o adotou” 24, atribuindo-lhe um preciso sentido de definição de sua visão da política e da sociedade. Alberto De Bernardi 25 alerta sobre o perigo, quando se fala de totalitarismo imperfeito ou incompleto, de pensá-lo como um totalitarismo falido ou abortado. Na realidade, o caráter de incompleto lhe deriva mais de seu aspecto de edifício em construção. “Totalitarismo em construção“ é, com efeito, a definição sintética de De Bernardi, que atribui a ‘imperfeição’ aos efeitos de longa duração sobre a natureza do regime de suas características de compromisso entre novas e velhas elites, num impacto entre a tentada fascistização da sociedade e as resistências à modernização de um país por muitos aspectos ainda marcado pela presença de estruturas e valores tradicionais. Expressões como esta, que falam de totalitarismo incompleto, totalitarismo em construção, ou experimento totalitário, têm a vantagem de não retirar do regime fascista nem sua novidade perante o sistema liberal tradicional (contra a leitura de De Felice) nem sua pretensão ao domínio “totalitário” das consciências.26 Do outro lado, mostram a não completa realização de tal operação: ditadura, feroz, violenta, implacável contra seus opositores, mas, no vértice, exposta a situações de conflito, a tensões e buscas de equilíbrios, e na base, no tecido da vida social, permeável a formas de resistência e dissenso. Quanto ao vértice, ao nível das estruturas do Estado, parte da historiografia não hesita em falar de regime policrático, ou de poliarquia, para tentar explicar a não monolítica essência do regime de Mussolini, ou, em outras palavras, seu totalitarismo pretendido e não completamente realizado.27 Essas leituras nos encontram substancialmente de 24 Ibidem, p. 151 Cf. DE BERNARDI, Alberto. Una dittatura moderna. Il fascismo come problema storico, op. cit. 26 A 22 de junho de 1925, no discurso de encerramento do quarto congresso nacional do Pnf, Mussolini afirmava: “Queremos que os italianos escolham!... Levamos a luta para um terreno tão claro que a esta altura ocorre estar ou deste lado ou do outro. Não só, mas aquela que é definida como a nossa feroz vontade totalitária [grifo nosso] será perseguida com maior ferocidade ainda... Queremos fascistizar a nação, assim que amanhã italiano e fascista sejam a mesma coisa!”. Cf. MUSSOLINI, Benito. Scritti e Discorsi. Vol. V (1925-1926). Milano: Hoepli, 1934, p. 115-116. 27 Assim De Bernardi, em Una dittatura moderna. Il fascismo come problema storico, op. cit., 165, fala de “um Estado ‘policrático’, no qual o poder carismático do ditador, mesmo sustentado por uma forte concentração de prerrogativas na sua pessoa, convivia com outros poderes num entrelaçamento dialético que constituiu a essência e o teatro da luta política por toda a duração do fascismo”. Robert Paxton, por sua vez, em A anatomia do fascismo, op. cit., p. 138, afirma: “Estudar o exercício do poder fascista [...] não pode esgotar-se numa exposição da vontade do ditador [...]. Significa examinar as 25 23 acordo, por representarem uma explicação suficientemente fundamentada do fascismo italiano em sua fase de regime. Quanto à base, ou seja, à realidade cotidiana de vida dos italianos debaixo da ditadura fascista, haveria aqui de se introduzir a discussão sobre a categoria do consenso ao regime do Duce por parte da sociedade, pois uma reflexão sobre o significado de uma oposição ao fascismo, de uma luta ou resistência antifascista à ditadura, deve interrogarse sobre quais fossem os espaços reais para a sua manifestação. Até que ponto e em que medida esse regime que se pretendia totalitário, nas intenções e como projeto, que buscava controlar pensamento e consciências, atos e escolhas (embora, quanto ao controle do Estado, como visto acima, sua pretensão totalitária fosse obrigada a travar constantes quedas de braço com outras instancias de poder) conseguiu fazê-lo, isto é, arregimentar os italianos e produzir adeptos e seguidores, obedientes e convictos? Pois o discurso do antifascismo começa aqui, como haverá modo de se analisar mais pra frente. Começa das escolhas do dia-a-dia, do projeto pessoal de vida, da conduta cotidiana, além de envolver, é claro, escolhas de luta e militância mais radicais e comprometidas. Deixando para depois a reflexão sobre a possibilidade e/ou legitimidade de vários tipos ou níveis de antifascismo, algumas considerações aqui sobre o consenso podem ser feitas. O temo entrou no debate historiográfico com o quarto volume da biografia mussoliniana de De Felice, publicado em 1974, no qual o historiador italiano apresentava, desde as primeiras páginas, sua tese de “um regime que gozava de uma indiscutível solidez, baseada em primeiro lugar sobre um consenso de massa [grifo nosso], vasto e no qual não apareceriam rachaduras tão cedo” 28 . O livro em seguida expunha razões, formas e limites desse consenso, mas ao redor da categoria defeliciana a discussão começou a ferver, seja no restrito circulo da academia seja no âmbito mais largo da publicística e da publica opinião. Muitas dificuldades perante esse tipo de continuas tensões que explodiram no interior dos regimes entre líderes, partido, Estado e os tradicionais depositários do poder social, econômico, político e cultural. Essa realidade produziu uma significativa interpretação do regime fascista como ‘policracia’, isto é um sistema de governo guiado por múltiplos centros de poder relativamente autônomos, numa continua rivalidade e tensão entre eles”. E Salvatore Lupo, retomando a categoria da diarquia, que o próprio Mussolini usara retrospectivamente em 1944 para descrever seu regime, escreve em Il fascismo. La política in um regime totalitário, op. cit., p. 448: “A diarquia se torna poliarquia, sobreposição desordenada de instituições, burocracias, grupos de interesse. As políticas de governo servem sobretudo a evitar colisões [...] e o ditador é preso num interminável, cansativo papel de mediador entre poderes diversos, externos e internos ao fascismo”. 28 DE FELICE, Renzo. Mussolini, il duce. I - Gli anni del consenso (1929-1936), op. cit., p. 3 (ed. de 1996). 24 leitura da sociedade italiana daqueles anos vinham de setores da historiografia oriunda do mundo antifascista, que alimentavam há tempo a convicção de um fascismo dominador, sim, por sua capacidade de controle rígido da vida política e social, mas com poucos seguidores efetivos, com poucas simpatias no país, com pouco apoio e adesão popular: falar de consenso parecia, para esses setores, creditar ao fascismo significados e valores para a história italiana que na realidade ele não teria tido, e, contemporaneamente, negar a existência de uma vasta opinião pública, silenciosa, talvez, mas de íntimos sentimentos antifascistas. Não se trata aqui de percorrer as etapas do debate, nem de avaliar razões e erros dos ‘partidos’ que na década de 1970 e nas sucessivas se digladiaram em torno da categoria do consenso ao fascismo. Hoje, um maior grau de profundidade dos estudos leva grande parte da historiografia a “aceitar a existência de um consenso ao regime, discutindo acerca de sua periodização, sua intensidade e qualidade, sua duração, assim como a respeito das implicações conceituais (...) do uso do termo para um regime ditatorial”.29 Alguns pesquisadores, como Paul Corner30, preocupados em evidenciar como a grande parte da população não tivesse que poucas possibilidades de escolha para suas ações, seja pelo fato de viver num Estado de polícia, seja pelo controle fascista da maioria dos espaços da vida civil, propõem o abandono da categoria de consenso – ligado a situações de liberdades de escolha incomparáveis com a de uma ditadura como o fascismo italiano – e a descrição da condição da massa da população no começo da década de 1930 como a de “uma convivência com o fascismo sem protestos manifestos e públicos (...), uma espécie de aceitação pragmática do regime”. Do outro lado, além da presença de hipóteses que soam quase como uma reviravolta da categoria defeliciana31, há também uma ampla reflexão sobre existência e significado de formas de dissenso organizado ou espontâneo diante do fascismo na sociedade italiana, acompanhada pelo questionamento se tais manifestações podem ser consideradas como expressão de antifascismo. Com esse tipo de considerações, contudo, já nos introduzimos na discussão acerca do antifascismo e de suas características fundamentais. 29 SANTOMASSIMO, Gianpasquale, “Il ruolo di Renzo De Felice”. In COLLOTTI, Enzo (org.). Fascismo e antifascismo. Rimozioni, revisioni, negazioni, op. cit., p. 423. 30 CORNER, Paul. “Fascismo e controllo sociale”. Italia contemporanea, n. 228, 2002, p. 381-405. 31 Cfr. CASALI, Luciano. “E se fosse dissenso di massa? Elementi per un’analisi della ‘conflittualitá politica’ durante il fascismo”. Italia contemporanea, n. 144, 1981, p. 101-120 25 1.2. Antifascismo: um debate polêmico Após a passagem, necessariamente rápida e por tópicos, através da mais recente produção historiográfica sobre o fascismo, italiano e não, entramos agora naquele mare magnum que é a literatura sobre a oposição ao mesmo. Desde o período da vigência do regime de Mussolini até as primeiras décadas depois de sua queda, a historiografia, particularmente a de língua italiana, produziu obras significativas, muitas das quais inevitavelmente condicionadas palas paixões dilacerantes que animavam seus autores naqueles anos: vários entre eles viveram os anos da ditadura e lutaram contra ela, alguns em seguida participaram da construção das estruturas fundamentais da jovem república italiana. Assim as principais tendências interpretativas do fenômeno do antifascismo e da oposição política ao regime de Mussolini o colocavam, de um lado, em direta continuidade com o evento da Resistência, como antecessor e gerador dos ideais da guerra partigiana, e, do outro, o apresentavam como realização de uma minoria sim, mas que representava de forma mais aguda sentimentos comuns à grande maioria do povo italiano, embora esta maioria não tivesse chegado a escrever nada contra o Duce, ou a pegar nas armas para derrubá-lo. A memorialística fez a sua parte, seja com obras impressas, seja com reportagens e investigações de cunho mais jornalístico. O antifascismo se tornava assim palavra chave do debate histórico e, ao mesmo tempo, do debate político e partidário que acompanhava a edificação do novo Estado republicano, feita a partir do repúdio ao fascismo e a todas suas possíveis novas formas de manifestação, lavrado na Constituição de 1948. Novos ventos no país e na historiografia começaram a soprar já em meados da década de 1970, quando linhas interpretativas do fascismo que o descreviam como um regime construído sobre um consenso bem mais amplo de quanto até então era tranquilamente afirmado começaram a aparecer, sobretudo a partir da leitura oferecida, sobre este aspecto, por De Felice. E como muitas vezes acontece na vida, o pêndulo da história, que estava deslocado para uma visão do fascismo como fenômeno minoritário, fruto da vontade de poucos e imposto despoticamente sobre a cabeça da multidão, tomou uma direção oposta, com diversos historiadores se empenhando na elaboração de uma interpretação do regime de Mussolini como um governo autoritário, sim, mas com orientações quase populistas, limitador das oposições sim, mas sustentado pelo aberto ou pelo menos tácito consenso da maioria da população, responsável pela tragédia da segunda guerra mundial sim, porém mais pela aliança com o nazismo alemão do que 26 por suas próprias tendências imperialistas. Estas interpretações do fascismo, somente em parte apoiadas em pesquisas documentais, contribuíram a gerar uma combativa publicística favorável se não a uma reabilitação da ditadura mussoliniana, pelo menos a um julgamento muito mais benevolente de sua atuação histórica. Eis assim instaurada a controvérsia que, em certos setores, se arrasta até hoje, entre revisionistas (como são definidos os fautores de uma reinterpretação do fascismo no sentido defeliciano) e anti-revisionistas, defensores daquela leitura do fascismo que não lhe concede nenhum tipo de consenso e de um antifascismo visto como expressão heróica de um sentimento que, embora não levado ao fim como empenho na luta clandestina ou como refugio no exterior para continuar a militância, ocuparia mentes e corações da grande maioria dos italianos no entreguerras. Sob este ângulo, os aspectos da história da Itália, ligada ao fascismo, merecedores de esclarecimento e investigações mais documentadas eram e são inúmeros: desde as complexas ramificações do fascismo na sociedade italiana ao apoio de amplos setores da população ao governo do Duce, com certeza, mas também os assassinatos em massa cometidos pelo exército de ocupação na Etiópia, assim como a participação italiana em perseguições raciais, incluindo a realização de campos de concentração, ou a luta conduzida, ainda nos anos 1943-45, por italianos, do lado dos nazistas, ou ainda as responsabilidades de grupos de partigiani quanto a massacres de civis realizados por soldados alemães como represália, só para lembrar alguns. Episódios e fatos muitas vezes esquecidos, removidos, censurados. As contas com o passado fechadas rapidamente, a lembrança como um incômodo a ser evitado (pense-se, por exemplo, nas dificuldades encontradas por Primo Levi para poder publicar É isso um homem, seu relato sobre sua experiência pessoal nos campos de concentração). Escreve agudamente Claudio Pavone 32, um dos maiores pesquisadores da Resistência italiana: As causas das remoções italianas são na verdade múltiplas. Há no fundo a terrível derrota sofrida na guerra conduzida pelo regime fascista e os longos silêncios de quem nela lutara. Há a inusitada variedade de excombatentes, que impediu que eles, em seu conjunto, constituíssem, como acontecera após 1918, um grupo de forte presença política: excombatentes da guerra fascista, com as fortes diferenciações que derivavam, sobretudo para os ex-prisioneiros, da diversidade dos fronts nos quais lutaram; ex-combatentes da guerra contra a Alemanha 32 Claudio Pavone é autor de um ensaio de importância fundamental para a análise da Resistência italiana: Una guerra civile. Saggio storico sulla moralitá nella Resistenza. Torino: Bollati-Boringhieri, 1991. 27 conduzida pela forças armadas do Sul da Itália; ex-combatentes que sofreram a internação em campos de prisioneiros na Alemanha; excombatentes da Resistência; ex-combatentes das forças armadas da República social italiana. E vale acrescentar os que retornavam da deportação política e racial. 33 Seria muito interessante percorrer etapas e reviravoltas nesta batalha acerca do uso público da história, esta batalha pela memória, com versões que se defrontam, às vezes querendo estabelecer “versões oficiais”, mas isso ultrapassa os objetivos deste trabalho. O que cabe aqui é recordar como os ventos do revisionismo historiográfico chegaram a afetar também as interpretações a respeito do antifascismo, reduzido, segundo esta corrente interpretativa, a expressão de um elitismo político sem influência alguma sobre as massas, fruto de elaborações ideológicas, em boa parte estéreis, de poucos intelectuais. Uma nova estação de pesquisas e investigações, favorecida por um maior acesso às fontes documentais e alimentada pela adquirida consciência da complexidade dos fenômenos históricos, se, de um lado, começou a produzir obras de análise do fascismo capazes de avaliações mais equilibradas, alheias a leituras condicionadas por espírito partidário ou por pré-compreensões ideológicas, do outro, gerou também uma renovação e atualização nos estudos sobre o próprio antifascismo. Depuradas da virulência das polemicas das décadas imediatamente sucessivas ao fim da guerra, as novas linhas de pesquisa sobre o tema se destacam por um maior equilíbrio interpretativo, capaz de valorizar a contribuição significativa do antifascismo, seja no exílio como na península, segundo suas vertentes político-partidárias e suas diferentes manifestações, sem dilatar excessivamente sua importância no crescimento da consciência democrática nem reduzir seu efetivo peso na balança política da época, abrindo-se também ao estudo de percursos individuais, de existências particulares, mesmo correndo, às vezes, o risco de afunilar excessivamente a perspectiva de análise. Em seguida, então, entraremos naquilo que definimos como mare magnum, tentando evidenciar as principais temáticas e linhas de tendência. 33 PAVONE, Claudio. “Negazionismi, rimozioni, revisionismi. Storia o política?” In COLLOTTI, Enzo (org.). Fascismo e antifascismo. Romozioni, revisioni, negazioni. Roma-Bari: Laterza, 2000, p. 23-24. 28 1.3. Situando o antifascismo no tempo e no espaço Por muito tempo, a literatura sobre a oposição italiana ao fascismo privilegiou a reconstrução de tempos e modalidades através das quais a luta à ditadura se deu, enfatizando o esforço, sobretudo de socialistas e republicanos, em se reconstituir no exterior, após a fuga além das fronteiras do país de seus principais expoentes, e a escolha, exemplar e heróica, do partido comunista em lutar na clandestinidade na própria península, além do surgimento de organizações novas como o movimento de Giustizia e Libertá. A perspectiva da historiografia destacava essencialmente a dimensão política oficial, a dinâmica e o debate de tipo partidário, gestos e fatos das lideranças, assim como a narração dos eventos ligados à luta clandestina, quase sempre dentro de uma chave de leitura ético-política. Assim os antifascistas, tanto os que fizeram a escolha de permanecer na Itália e combater a ditadura no próprio território da península, quanto os que preferiram tomar o caminho do exílio, os chamados fuorusciti, se tornavam, nas páginas dos estudiosos, os protagonistas de uma epopéia, mesmo com interpretações distintas a segunda do campo de visão (comunistas versus outros grupos de oposição foi a principal discriminante): uma epopéia que, na maior parte dos casos, era diretamente vinculada ao evento da Resistência (1943-45), por sua vez interpretada como guerra de povo contra o invasor alemão e contra seu aliado, o governo fascista da Republica Social. Memoriais, biografias, testemunhos dos envolvidos na luta partigiana e sucessivamente no esforço para a construção de um novo Estado sobre as cinzas da ditadura e o cadáver do instituto monárquico, tudo se juntava à reflexão dos historiadores contribuindo para compor o quadro acima descrito. Nas ultimas décadas do século passado, e na primeira do presente, novos elementos, novos discursos, novas perspectivas entram a fazer parte da reflexão historiográfica sobre o antifascismo, que inicia um lento, ainda incipiente, mas estimulante caminho de renovação. Muitas vezes estes germes de novidades estão presentes mais como intuições, como iluminações, como entendimentos daquilo que seria uma correta e atualizada investigação do mundo do antifascismo, do que como leituras e análises completas e acabadas. Examinaremos aqui três aspectos que permitem situar o fenômeno do antifascismo no tempo e no espaço. 29 Um primeiro aspecto que é recentemente colocado cada vez mais em destaque é a necessidade de pensar o estudo do antifascismo italiano no contexto mais amplo do antifascismo internacional, num âmbito europeu e mundial, e no quadro de uma longa duração, que abrace o entreguerras e a temporalidade do segundo conflito mundial. É desse antifascismo, articulado a partir da Itália com experiências políticas de outros países, como o Brasil, e declinado numa temporalidade que abraça as décadas de 1920, 1930 e 1940, que o presente trabalho se ocupa. Claramente, muitos estudos da categoria política dos fuorusciti, do antifascismo do exílio, levam em conta as relações do mesmo sobretudo com os expoentes dos grupos e partidos da esquerda européia, mas aqui o ponto em questão é o de uma reflexão de cunho comparativo, capaz de perceber analogias e diferenças, de estabelecer confrontos e proximidades. A produção seja italiana seja internacional a esse respeito é relativamente escassa, com um único trabalho de valor que se destaca, o do francês Jacques Droz, de 1985.34 Especialista em história alemã, o autor começa sua análise do antifascismo, que se encerra com o ano de 1939, pelo estudo do posicionamento frente ao fascismo da Terceira Internacional e da Internacional Operária e Socialista (IOS), para em seguida percorrer caminhos, problemáticas, tentativas do antifascismo na Itália, na Alemanha, na Áustria e em países onde o fascismo não chegou ao poder no entreguerras, como França, Espanha e Grã-Bretanha. Ótima narração de percursos diferentes e variegados, com preciosas informações e referências, o volume de Droz lamenta já em seu começo a ausência (que continua até o presente) de obras de síntese sobre o antifascismo europeu do entreguerras, atribuindo o fato a dificuldades derivadas de uma falta de consenso na historiografia sobre o conceito de antifascismo, com fenômenos diferentes se encontrando muitas vezes agrupados debaixo de seu nome. Obra pioneira no panorama da historiografia mundial, a produção de Droz alarga o horizonte da investigação e convida os pesquisadores a aceitar o desfio de pensar seu discurso sobre o antifascismo em termos menos regionais e mais globais. Ainda a esse respeito, os observadores são concordes em qualificar o antifascismo italiano como periférico, pelo menos até 1933: a Itália era o único país no qual o fascismo tivesse chegado ao poder e tanto os governos europeus, particularmente os das democracias ocidentais, quanto suas opiniões públicas hesitavam em tomar uma posição 34 DROZ, Jacques. Histoire de l’antifascisme en Europe, 1923-1939. Paris: La Découverte, 2001 (1ª Ed. 1985). 30 clara contra Mussolini. Até os partidos irmãos de inspiração socialista viviam no meio de indecisões quanto a proclamas e ação. Contudo, como recorda De Bernardi, a constatação, por todos compartilhada, que o antifascismo, até o advento do nazismo, teve uma dimensão completamente periférica, circunscrita às forças políticas italianas, não desmente o fato que desde suas origens ele não pode ser plenamente compreendido somente dentro de um quadro nacional, porque se coloca já nas dobras da assim chamada ‘guerra civil européia’ entre sistemas políticos e ideológicos [...] O antifascismo italiano, com efeito, desde 1925-26 é obrigado a se mover num ambiente político continental.35 Antifascismo, então, como fenômeno europeu, seja pelo fato dos exilados serem uma presença no coração da Europa, particularmente na França, autentica pátria de eleição dos fuorusciti, seja pelo seu papel naquela que De Bernardi, retomando um conceito elaborado por Ernst Nolte36, define como “guerra civil européia”. Concebida pelo historiador alemão como choque entre duas opostas concepções da vida e da organização da sociedade, cuja responsabilidade inicial cairia nas costas do bolchevismo, ao qual o nacional-socialismo teria representado uma resposta, a categoria da guerra civil européia é retomada por De Bernardi sem a preocupação noltiana de registrar prioridades em sua detonação, e sim como chave de leitura adequada para a compreensão do mundo europeu que sai da primeira guerra mundial, onde “o projeto da revolução mundial bolchevique estava sendo confrontado com aquela mistura de nacionalismo anti-liberal e populismo anti-socialista, de anti-racionalismo e organicismo, forjada nos processos de massificação e mobilização inaugurados pelo conflito”37, representada pelo incipiente fascismo, capaz de pôr-se como alternativa tanto à democracia quanto ao comunismo. Sobre a guerra civil européia como categoria útil para ajudar na compreensão do fenômeno do antifascismo, uma interessante contribuição vem de outro pesquisador 35 DE BERNARDI, Alberto. “Per uma interpretazione dell’antifascismo: alcune ipotesi di indagine”. In ALBARANI, Giuliano; GUERRAZZI, Amedeo; TAURASI, Giovanni (org.). Sotto il Regime. Problemi, metodi e strumenti per lo studio dell’antifascismo. Milano: Unicopli, 2006, p. 25. Cf. também DE BERNARDI, Alberto; RAPINI, Andrea (org.). Discorso sull’antifascismo. Milano; Bruno Mondadori, 2007, p. 87. 36 Cf. NOLTE, Ernst. Nazionalsocialismo e bolscevismo. La guerra civile europea, 1917-1945. Firenze: Sansoni, 1988 (1ª ed. alemã 1987) 37 DE BERNARDI, Alberto. “Per uma interpretazione dell’antifascismo: alcune ipotesi di indagine”. In ALBARANI, Giuliano; GUERRAZZI, Amedeo; TAURASI, Giovanni (org.). Sotto il Regime. Problemi, metodi e strumenti per lo studio dell’antifascismo. op. cit., p. 25-26. 31 italiano, Neri Serneri,38 que fala dela como algo capaz de devolver o conflito entre fascismo e antifascismo à historia da sociedade européia da primeira metade do século XX. Para ele, o adjetivo “civil” não é sinônimo de “fratricida”, entendendo com isso o conflito armado entre duas partes contrapostas mas moralmente irmanadas por pertencer à mesma comunidade nacional. Civil indicaria, antes, um conflito interno à ordem política, entre as classes de cidadãos (do latim cives), para definir a ordenação da res publica. Guerra civil então como guerra política por excelência, sinal da fratura na polis e forma extrema para recompor a fratura. Se foi ‘européia’, afirma o autor, é porque indicava uma fratura que dividia a Europa inteira segundo alternativas ideológicas , e se foi ‘guerra civil’ (e não simplesmente conflito internacional) é porque a divisão acima mencionada tocava as sociedades do continente, com fraturas internas e transversais aos diferentes Estados nacionais, e a partir de situações de ‘guerra civil’ já abertas no seio de alguns, como a Itália e a Alemanha, pela chegada dos fascismos ao poder. As conclusões da análise de Neri Serneri apontam na direção de um fascismo que foi italiano só por acidente, isto é por conjuntura temporal, mas na realidade foi fenômeno plenamente europeu, por ter elaborado estratégias destinadas a se reproduzir em outros países e por ter proposto uma ordem nova para toda a sociedade do continente. Assim, o antifascismo foi europeu, por ter definido um denominador comum prático e ideológico para a fundação da democracia e da cooperação internacional. Gerada por fenômenos inicialmente surgidos no Velho Continente, a categoria da guerra civil européia não impede que possa ser de certo modo reformulada para alargar o horizonte de sua compreensão ao mundo inteiro, ou pelo menos àquelas partes do planeta onde as mesmas divisões transversais e internas à sociedade civil se reproduziram, como luta entre o fascismo e o antifascismo. Esse alargamento de perspectiva permitiria assim a inclusão de regiões como as Américas, e o Brasil especificamente, no âmbito de sua utilização. O antifascismo, assim, de fenômeno inicialmente entendido como italiano, e indiscutivelmente periférico até 1933, assume uma perspectiva não somente européia, mas também mundial, como um dos pólos da guerra civil, entendida como confronto interno à ordem política da res publica. Sua configuração no caso brasileiro, como será mostrado mais para frente, envolverá discursos, análises, tentativas, organizações, posicionamentos, lutas tanto contra os 38 NERI SERNERI, Simone. “ ‘Guerra civile’ e ordine político. L’antifascismo in Italia e in Europa tra le due guerre” In DE BERNARDI, Alberto; FERRARI, Paolo (org.). Antifascismo e identitá europea. Roma: Carocci, 2004, p. 78-105. 32 fascismos de proveniência européia e suas ramificações nas colônias de imigrados, quanto contra seus imitadores deste lado do Atlântico, como é o caso do movimento integralista. Adequadamente classificável como o melhor expoente dessa consciência, que leva também a uma prática, de que a luta ao fascismo se define nos termos de uma guerra civil, é justamente um dos três antifascistas aqui analisados, o republicano Libero Battistelli, levando em consideração tanto seu percurso no Brasil, quanto sua luta na guerra de Espanha. Um segundo aspecto que a recente produção historiográfica sobre o antifascismo está colocando em evidência diz respeito à necessidade de situar os protagonistas do fenômeno dentro da sociedade da época, considerando-os como homens de seu tempo e não tanto como precursores de algo que virá. Uma renovada temporada de estudos que focalizam menos os aspectos partidários ou ideológicos da luta antifascista e mais a dimensão humana dos militantes ou dos simples simpatizantes está dando frutos interessantes. A atenção ao vivido, às relações humanas e afetivas, ou a problemáticas de qualquer forma ligadas a âmbitos pré-políticos assume importância maior na literatura. Para isso, fontes documentais como as correspondências, os diários, etc. se tornam objeto de estudo e investigação.39 Essa problemática, mais atenta a dimensões antes bastante negligenciadas, tem diferentes implicações a segunda que se fale do antifascismo no território italiano ou da luta antifascista além das fronteiras. No primeiro caso, o da luta na Itália, recuperar uma leitura mais existencial dos percursos do antifascismo significa interrogar-se sobre a sociedade italiana em quanto tal, no período entre as duas guerras mundiais. Para De Luna, que, em seus trabalhos, se dedica particularmente a essa dimensão, a historiografia do antifascismo deixou excessivamente em segundo plano seu estudo como realidade viva do país. Segundo ele, é preciso romper a dicotomia ‘estudo da história do fascismo versus estudo da história do antifascismo’: na realidade, eles não são gêneros historiográficos, e sim uma única realidade. Sua proposta, pelo fato de acreditar que “a partida entre fascismo e antifascismo [...] ocorreu num campo mais vasto que um confronto entre opostas concepções políticas, por se referir diretamente a dois projetos de construção de 39 Dois exemplos (o primeiro dedicado ao antifascismo comunista na Itália, o segundo à emigração política na França e na URSS) entre vários: DE LUNA, Giovanni. Donne in oggetto. L’antifascismo nella societá italiana. 1922-1939. Torino: Bollati-Boringhieri, 1995 e GABRIELLI, Patrizia. Col freddo nel cuore. Uomini e donne nell’emigrazione antifascista. Roma: Donzelli, 2004. 33 identidades coletivas”,40 se move na direção de uma ‘história da sociedade italiana’ entre as duas guerras. A sugestão deste autor se torna uma fecunda provocação também para quem se propõe de estudar a atuação de antifascistas no exterior: de fato, estes permanecem no âmbito de referências constituído pelo tecido e a vida de uma comunidade italiana, embora fora da Itália, comunidade cujos membros ficam submetidos ao bombardeio de projetos antagonistas de construção de identidade. Será oportuno retomar a questão quando se tratará das temáticas ligadas à emigração e à tentativa de transposição do fascismo em terra brasileira, mas por enquanto a aguda observação de De Luna merece registro e reflexão. A proposta de fazer uma historia da sociedade italiana no período, do outro lado, abre também uma problemática que merecerá mais a frente uma mais ampla reflexão, e que aqui mencionamos rapidamente: a da possibilidade da existência de vários antifascismos, ou melhor, de vários níveis de antifascismo, desde aquele dos militantes e dirigentes políticos àquele de quantos se limitavam a formas de rebelismo indiferenciado, de oposição silenciosa e escondida. A temática do significado do termo antifascismo e da possibilidade de uma multiplicidade de sentidos em seu âmbito, assim como o discurso do assim chamado “antifascismo existencial” é o que está por trás desta discussão, que será apresentada em seguida. Quanto à influência das novas orientações dos estudos do antifascismo sobre a emigração política, é justo recordar que, nesse caso também, político e existencial, ideologia e vivido se misturam, seja de fato, no tempo histórico, seja nos caminhos de investigação e reconstrução do historiador. Obras que se dedicam à análise de percursos individuais ou coletivos de fuorusciti, cavando nos bastidores de escolhas ideológicas e tomadas de posição políticas, e devolvendo, através talvez de um epistolário, ou de outro tipo de documentação pessoal, imagens de militantes ou simples emigrados, são cada vez mais numerosas. E se é verdade o que afirma Leonardo Rapone, quando representa o âmbito do antifascismo no exílio como uma experiência cada vez mais desligada dos desenvolvimentos políticos na península, quase a história de uma “outra Itália”, não podemos negar, ainda de acordo com ele, que essa outra Itália “de certo modo encarna tradições políticas italianas, [...] que se confrontam com aquelas dos países de acolhida”.41 No caso presente, também, foco do interesse são italianos 40 41 DE LUNA, Giovanni. Donne in oggetto. L’antifascismo nella societá italiana. 1922-1939, op. cit., p. 31. RAPONE, Leonardo. Antifascismo e societá italiana (1926-1940). Milano: Unicopli, 1999, p. 9. 34 emigrados, estudados principalmente do ponto de vista de sua atividade politica, mas também levando em consideração outras dimensões de sua existência. Uma terceira linha de contribuição a uma maior caracterização dos contornos do antifascismo percorre a íngreme trilha da tentativa de definição do próprio fenômeno, e de seus marcos cronológicos. Íngreme trilha porque sobre isso o debate historiográfico é bastante aberto e as interpretações nem sempre fluem na mesma direção. Partiremos aqui do pressuposto, ainda a ser discutido em seguida, mas aqui assumido como visão compartilhada pela maioria dos observadores, que descreve fundamentalmente o antifascismo italiano como formado, de um lado, pela luta de resistência, propaganda e difusão de ideais levada a cabo por dirigentes e militantes de organizações e partidos políticos italianos refugiados no exterior (da França à Suíça, da Inglaterra á Bélgica, dos EUA ao Canada, da Argentina ao Brasil e ao Uruguai, para citar os principais), os fuorusciti, e, do outro, pela tentativa de oposição interna - no solo da península - e por isso clandestina, conduzida principalmente pelo partido comunista e também por grupos menores, de varias orientação, entre os quais se destaca o movimento de Giustizia e Libertá. Os marcos cronológicos do fenômeno do antifascismo podem ser assim fixados, de um lado, a partir do surgimento do fascismo como realidade ameaçadora da convivência civil e como violenta tentativa de eliminação das organizações e das municipalidades guiadas por expoentes socialistas ou católicos, e, do outro, até a queda política de Mussolini como chefe do governo, em julho de 1943 ou até o encerramento do segundo conflito mundial, em abril/maio de 1945. Coordenado por um núcleo de pesquisadores de várias universidades, a recente aparição, como ótimo instrumento de pesquisa, de um catálogo bibliográfico do antifascismo italiano42, que reúne pela primeira vez seja as fontes, isto é, o material impresso (monográfico e periódico) produzido por todos os expoentes e as forças organizadas do antifascismo italiano durante os anos do regime, seja a memorialística e a contribuição historiográfica a respeito do tema a partir do fim da segunda guerra até os nossos dias, traz elementos para uma discussão acerca desses marcos cronológicos. Na premissa da obra, assinada por Matteo Pasetti, são indicados os critérios usados no levantamento de dados e na sua ordenação e sistematização, critérios que podem ajudar a orientar metodologicamente qualquer pesquisa sobre o 42 DE BERNARDI, Alberto et alii (org). Bibliografia dell’antifascismo italiano. Em CD-Rom. Roma: Carocci, 2008. Disponível também no site: www.storicamente.org/02tecnostoria/antifascismo. 35 antifascismo. As datas escolhidas como termos a quo (5 de novembro de 1926: legislação do governo fascista que suprime definitivamente partidos, associações e organizações políticas de oposição43) e ad quem (25 de julho de 1943: queda do governo Mussolini) para a catalogação de textos, documentos e periódicos visam caracterizar a própria categoria de antifascismo como fenômeno que se deu a partir da declaração de ilegalidade de qualquer oposição, em 1926: o material publicado a partir desta data, com efeito, ou era publicado na Itália de forma clandestina, ou pelos antifascistas no exterior, no exílio. O antifascismo, então, seria então realidade a ser compreendida entre aqueles dois marcos cronológicos, que caracterizam o fascismo como regime ditatorial. Os autores do catálogo admitem a arbitrariedade de tal escolha, que implica a exclusão de escritos e publicações de época anterior e até de personalidades ilustres quais Gobetti, Amendola ou Gramsci, mas afirmam que ela garante uma maior coerência de método, permitindo “delimitar de forma mais nítida a fronteira entre a produção antifascista ilegal e todos os textos e/ou periódicos que, mesmo dissentindo de forma mais ou menos explicita do fascismo, puderam, contudo, circular livremente”.44 Necessária para um maior rigor metodológico, segundo os autores do catalogo, a delimitação cronológica por eles escolhida é de qualquer forma suscetível de discussão, quando se trata de caracterizar a ação e o pensamento antifascista antes ou depois dos termos temporais fixados, pois, de um lado, deixa de fora o período da Resistência e, do outro, os anos iniciais de afirmação e consolidação do poder fascista na Itália, quando ainda não se tratava de ditadura aberta, mas dela já existiam de certa forma todas as premissas, pois o fascismo, tendo presença e poder real no país, automaticamente produzia um reação a ele em termos que não seria errado definir antifascistas. 43 Implantada com uma serie de medidas legislativas, entre novembro de 1925 e janeiro de 1926, que regulamentavam as associações, restringiam a liberdade de imprensa, e privavam da cidadania quem perturbasse a ordem publica ou diminuísse o prestigio da Itália, a ditadura fascista estabelece suas medidas regulatórias supremas e mais liberticidas no final do ano de 1926. Um atentado à vida do Duce, a 31 de outubro daquele ano, provoca uma duríssima reação fascista nos dias seguintes no país inteiro e a adoção, no dia 5 de novembro, de novos duríssimos decretos, entre os quais a proscrição de todos os partidos, as associações e organizações contrárias ao governo, a revisão de todos os passaportes para o exterior e severas sanções contra o expatrio clandestino, e a instituição do degredo policial para atos cometidos contra a vida e a organização do Estado. Vinte dias depois, a 25 de novembro, a lei pela defesa do Estado introduz a pena de morte para os atentados contra os monarcas e o chefe do governo, e alguns outros graves delitos, estabelece a pena da reclusão de 5 a 15 anos para os fuorusciti que façam propaganda no exterior contra o regime, e institui um tribunal especial para julgar os delitos acima mencionados. 44 DE BERNARDI, Alberto et alii (org). Bibliografia dell’antifascismo italiano, op. cit., premissa, p. 3. 36 Compreensível pelas razões acima apresentadas, sobretudo a escolha do marco a quo, que retiraria a definição de antifascismo para atos, documentos e iniciativas antecedentes tal data, toca diretamente a presente pesquisa. Para o entendimento de nosso trabalho, esse termo a quo, rigidamente entendido, excluiria do campo antifascista parte da produção de Giuseppe Scarrone no Rio de Janeiro, que por essa mesma produção foi processado e condenado, além de outras manifestações de oposição ao fascismo nascidas na cidade já em dezembro de 1924, como a Unione Democratica. Para tanto, ele não será por nós aplicado com a rigidez proposta pelo catálogo bibliográfico do antifascismo italiano. Fixados, embora não como balizas intransponíveis, os limites cronológicos do antifascismo, se trata agora de caminhar na direção de uma sua caracterização mais precisa. Comparáveis aos dois pulmões de um organismo vivente, a luta clandestina no território italiano e a emigração política representam sem dúvidas as duas faces do fenômeno. A historiografia se debruçou sobre as duas vertentes com profusão de intervenções, desde as obras clássicas45 até as mais recentes, ora investigando debates ideológicos e esforços organizativos de socialistas, republicanos, populares, anarquistas no exílio, ora percorrendo os caminhos da clandestinidade comunista ou liberaldemocrática, na maioria dos casos preocupada mais com a dimensão político partidária, mas ultimamente aberta, como já mencionado, a novas perspectivas analíticas. Não é lugar aqui para repercorrer exaustivamente etapas e momentos das duas dimensões do antifascismo. Para isso, há ótimos trabalhos que vão na direção de um olhar de síntese, como os de Jacques Droz46, de Emilio Gentile 47, de Leonardo Rapone48, de Alberto De Bernardi49 e, em língua portuguesa, o de João Fabio Bertonha50. Tentativas, esforços, fracassos, são apresentados e discutidos por esta produção historiográfica. 45 GAROSCI, Aldo. Storia dei fuorusciti. Bari: Laterza, 1953. ALATRI, Paolo. L’antifascismo italiano. Roma: Editori Riuniti, 1973. COLLOTTI, Enzo (org.). L’antifascismo in Itália e in Europa, 1922-1939. Torino: Loescher, 1975. COLARIZI, Simona. L'Italia antifascista dal 1922 al 1940. La lotta dei protagonisti. RomaBari: Laterza, 1976. FEDELE, Santi. Storia della Concentrazione Antifascista, 1927-1934. Milano: Feltrinelli, 1976. 46 DROZ, Jacques. Histoire de l’antifascisme en Europe, 1923-1939, op. cit. 47 GENTILE, Emilio. Fascismo e antifascismo. I partiti italiani fra le due guerre. Firenze: Le Monnier, 2000. 48 RAPONE. Leonardo. “L’Italia antifascista”. In SABBATUCCI, Giovanni; VIDOTTO, Vittorio (org.), Storia d’Italia. 4 / Guerre e fascismo. Roma-Bari: Laterza, 1997, p. 501-559. 49 DE BERNARDI, Alberto. “Per uma interpretazione dell’antifascismo: alcune ipotesi di indagine”. In ALBARANI, Giuliano; GUERRAZZI, Amedeo; TAURASI, Giovanni (org.). Sotto il Regime. Problemi, metodi e strumenti per lo studio dell’antifascismo. op. cit., p. 24-56. E também DE BERNARDI, Alberto; RAPINI. Andrea (org). Discorso sull’antifascismo, op. cit. 37 A este ponto, faz-se preciso indicar, mesmo que de forma sumária, as linhas principais das duas vertentes do antifascismo, considerando, contudo, que nas próximas partes do trabalho vários aspetos serão detalhados com mais profundidade. Após a retirada da Câmara dos deputados dos grupos parlamentares de oposição como protesto pelo assassinato de Matteotti (retirada que ficou conhecida como o Aventino51) e o aparecimento das leis “fascistissimas” de 1925-26, se registram as sucessivas ondas de emigração política, sobretudo em direção à França, com a reconstituição dos partidos de inspiração socialista e republicana no exílio e suas tentativas de estabelecer laços com os partidos irmãos. Em 1927 surgia a Concentrazione di azione antifascista, cartel de partidos e instrumento de luta, marcada por problemas e divisões, e dois anos depois Giustizia e Libertá, movimento oriundo de círculos antifascistas de inspiração liberaldemocrática, cuja aproximação dos antigos partidos provocou discussões, rupturas e o fim da própria Concentrazione em 1934. Enquanto isso, a rede organizativa clandestina do partido comunista na Itália estabelecia contatos, conquistava novos membros, mas sofria com os golpes da repressão seja na base como nos vértices, mudando de tática e de linha sempre de acordo com as diretrizes vindas de Moscou: repúdio pela ação dos outros partidos, acusações de social-fascismo para os partidos socialistas, autorepresentação como únicos expoentes do autêntico antifascismo. Uma mudança de linha ocorreu em 1934 (pacto de unidade de ação com os socialistas), confirmada pelas diretrizes do VII congresso da Internacional Comunista em 1935 e consagrada pela política das frentes populares, sobretudo na França e na Espanha. A segunda metade dos anos 30 registrava assim o protagonismo comunista na luta antifascista, mas também a difícil convivência dessa componente com as outras, desde os anarquistas aos liberal-democráticos: o comum empenho na guerra de Espanha será ocasião de solidariedades e contrastes. A escalada do militarismo fascista e o aproximar-se do conflito tornaram a situação mais incerta, as tentativas de oposição mais complicadas, até que o pacto Molotov-Ribbentrop de agosto de 1939 jogou a 50 BERTONHA, João Fábio. Sob a sombra de Mussolini. Os italianos de São Paulo e a luta contra o fascismo, 1919-1945. São Paulo: FAPESP/Annablume, 1999, Primeira parte. 51 O deputado socialista Giacomo Matteotti denunciara num inflamado discurso na Câmara as violações da liberdade eleitoral perpetradas pelos fascistas, atacando Mussolini e outros líderes do Pnf. No dia 10 de junho de 1924, Matteotti é seqüestrado e morto (seu corpo será encontrado somente dois meses depois). As investigações chegam a responsabilizar e sucessivamente condenar alguns squadristi ligados ao próprio Mussolini. A indignação no país é grande, enquanto os deputados da oposição, menos os comunistas, resolvem retirar-se das sessões parlamentares (“Aventino”). 38 clássica ducha de água gelada sobre o campo antifascista, que somente após a declaração de guerra à URSS por parte de Hitler dois anos depois encontrará de novo certo equilíbrio e força. Mas então a própria emigração política já terá mudado seu principal lugar de fala e de luta: a França, debaixo da ocupação alemã, deixa de ser a pátria do fuoruscitismo, que agora se manifesta principalmente a partir dos centros da America do Norte e do Sul. Estabelecidos de certo modo temporalidades entro as quais o fenômeno se situou e lugares onde ele se manifestou, se trata agora de proceder à uma reflexão sobre significados e razões do antifascismo rumo a uma sua definição mais completa. 1.4. Antifascismo: definição, significado, valor Uma avaliação com a qual a historiografia na sua totalidade concorda é a descrição do antifascismo como fenômeno minoritário. Poucos milhares de inscritos e militantes nos partidos de oposição reconstituídos no exterior, com pequenos grupos nos vários países de emigração italiana, europeus ou americanos. Outros tantos ou pouco mais se empenharam na luta clandestina na Itália: se os números do Tribunale Speciale per la difesa dello Stato fazem fé, mesmo que a respeito deles haja controvérsias, houve cerca de 15 mil pessoas denunciadas e 12 mil enviadas ao degredo, com uma área mais ampla de “advertidos” ou submetidos a vigilância especial (cerca de 160 mil). As pastas de opositores ou suspeitos que a polícia abre no Casellario Politico Centrale 52 durante o regime fascista são cerca de 110 mil. Mesmo considerando essas faixas mais largas, o fenômeno da oposição aberta ao regime, disposta a arriscar uma “advertência” ou uma condenação, representa uma minoria junto da grande massa do povo italiano. Minoria empenhada, engajada, combativa e combatente, mas sempre uma minoria. O mesmo vale para o discurso sobre a emigração política e a luta ao fascismo a partir do exterior: aqui também, no meio de colônias de emigrados da velha ou mais recente emigração, há núcleos mais ativamente comprometidos com a ação antifascista, e maiorias mais distantes, indiferentes, quando não simpatizantes ou partidárias do regime de Mussolini. 52 O Casellario Politico Centrale, instituído em 1896 pelo Ministério do Interior do Reino da Itália, era o serviço do fichário biográfico dos “filiados aos partidos políticos particularmente perigosos para a ordem e a segurança pública”. Incrementado a partir de 1926, após a aprovação das leis de Segurança Publica do regime fascista, continuou sua função também durante os anos da redemocratização, até o fim da década de 1960. Suas pastas são conservadas em Roma, no Archivio Centrale dello Stato. 39 Essa minoria empenhada, ativa, combatente é às vezes caracterizada, no discurso historiográfico, como “vanguarda” ou “elite militante”, portadora de uma consciência que o resto da sociedade não possuía, ou não soube expressar. Antifascismo em muitos casos descrito como “o testemunho, às vezes heróico, de uma minoria que não renunciara a seus ideais”, como foi escrito.53 Uma aristocracia, foi dito também, capaz de dar voz a um sentimento de repulsa ao fascismo difundido em vastos setores da sociedade italiana, os quais não teriam tido a força ou a coragem de manifestar-se. Ora, o discurso, como se viu no primeiro capítulo, é mais complexo, pois a discussão em torno de um estreito ou largo consenso popular ao fascismo mostrou a necessidade de repensar o próprio conceito de antifascismo. Até pesquisadores não suspeitos de revisionismo, como Mario Isnenghi, criticavam aquela imagem de um fascismo sem seguidores, quase uma “igreja vazia, sem religião e sem fieis”, que certas leituras dos anos do regime, fruto sobretudo da necessidade de remover aqueles anos do passado da nação, produziram. “A paisagem histórica que foi progressivamente delineando-se – escreve Isnenghi ainda em 1979 – é aquela de um fascismo sem fascistas, onde um atestado de antifascismo, criptoantifascismo, ou, na pior das hipóteses, afascismo, não é negado a ninguém”.54 Evidentemente, a situação da sociedade italiana era mais complexa, mais rica de nuances. Trata-se a este ponto de definir exatamente o que se entende por antifascismo. Segundo o juízo de Rapone e De Bernardi, o termo entende propriamente caracterizar aquele conjunto de forças organizadas, de partidos políticos e movimentos – mesmo com orientações ideológicas e leituras históricas diferentes - que se empenharam ativamente, no exílio ou na clandestinidade, na propaganda, na conscientização, no esforço de relação com forças e movimentos nos exterior e/ou também na realização de atos exemplares ou de gestos públicos. Há, portanto, um sentido mais restrito de antifascismo que é preciso estabelecer como o círculo mais interno de significados: a oposição do Aventino, e depois os militantes e lideres políticos que se exilaram para salvar suas vidas, suas famílias e poder continuar sua ação e sua luta, assim como os membros do partido comunista ou outras menores formas de resistência interna que escolheram a permanência na península. Chamar estas pessoas de antifascistas, e de 53 COLARIZI, Simona. L'Italia antifascista dal 1922 al 1940. La lotta dei protagonisti, op. cit., p. 2. ISNENGHI, Mario. Intellettuali militanti e intellettuali funzionari. Appunti sulla cultura fascista. Torino: Einaudi, 1979, p. 20-21, cit. in RAPONE, Leonardo. Antifascismo e societá italiana (1926-1940). Milano: Unicopli, 1999, p. 12, nota 3. 54 40 antifascismo seu esforço individual e coletivo é apropriado, segundo toda a literatura existente. Tudo e somente aquilo que pode ser definido como “práxis que sai do quadro normativo do Estado autoritário e tende à sua derrubada”55 merece plenamente o nome de antifascismo, segundo Rapone. Foi também dito que esta minoria, esta parte de sociedade italiana, na Itália ou emigrada no exterior, representava uma “outra” Itália, uma segunda Itália: há afirmações neste sentido, feitas também por expoentes do próprio movimento antifascista no entreguerras, como Carlo Rosselli. Rapone aceita a definição para a oposição no exílio, para a qual acredita que se possa deveras falar de “história de uma outra Itália”, mas não concorda com seu uso para o antifascismo no território da península. Mesmo assim, há pontos de sua produção historiográfica em que apresenta observações interessantes sobre a existência, a ser verificada, de uma eventual “terceira Itália”, constituída por fenômenos de oposição ao fascismo que se situavam num espaço intermediário entre o fascismo e o antifascismo propriamente dito. Fenômenos que ele identifica: certa publicística e certo associacionismo do laicato católico, manifestações de uma parte do mundo da cultura, formas de protesto popular (greves, tumultos, atos mais simples de transgressão, etc...), uma oposição das consciências muitas vezes difícil de decifrar e quantificar, e até casos de “antifascismo de camisa preta” (percursos individuais ou coletivos de amadurecimento de posições antifascistas no interior do próprio mundo fascista). Quanto a esses variados e multiformes fenômenos, todavia, a respeito de alguns dos quais (sobretudo os protestos populares e certa oposição de consciência) outros observadores chegam a usar aquela categoria da qual já se fez menção, a de “antifascismo existencial”, Rapone é firme em sua posição: eles não merecem a etiqueta tout court de antifascismo, pois lhes falta o aspecto fundamental da consciência política e do empenho ativo de luta, ou, pelo menos, da realização de uma efetiva função de contraste ao regime. Sem isso, diz o pesquisador, há protesto, dissenso, não antifascismo. Além do circulo mais interno, esses fenômenos podem representar um circulo mais largo, de resistência passiva, de oposição flutuante, muitas vezes episódica. 55 RAPONE, Leonardo. Antifascismo e societá italiana (1926-1940), op. cit., p. 19. 41 Há interessantes pesquisas sobre pessoas e grupos que manifestavam comportamentos antagônicos ao fascismo não a partir de uma opção ideológica ou de uma pedagogia política, e sim a partir de sua peculiar colocação na estrutura da sociedade, como no caso, por exemplo, de certos grupos de operários nas fabricas. Ora, se, de um lado, os estudos sobre o dissenso na sociedade italiana diante do fascismo têm respondido à exigência de não limitar sua área somente entre os confins da oposição clandestina, investigando territórios e comportamentos onde, embora não desafiando abertamente a legalidade ou colocando em risco a tranqüilidade da existência, a semente de um antagonismo tendia a se manifestar, do outro, se chegou às vezes a tornar quase intercambiáveis termos como antifascismo e “afascismo”, ou a supervalorizar atitudes de antifascismo “popular”, ou das assim chamadas “formas pobres” do protesto (frases escritas nos muros, imprecações contra o regime, gestos de insubordinação diante de uma autoridade, etc.), ou ainda a enfatizar percursos individuais que apresentam algum traço de uma objeção de consciência. Com certeza esta área cinzenta de uma oposição não aberta ao regime merece estudos mais amplos, assim como com outra tanta certeza trata-se de uma região móvel e cheia de nuances. Escreve Enzo Collotti: Consenso e oposição, na realidade, representam duas categorias limite: a maior parte dos comportamentos individuais e de massa, com toda probabilidade, não pode ser identificada com um ou outra das duas categorias, mas com a soma infinita dos comportamentos intermediários, que somente em suas expressões mais explícitas e radicais tomam realmente a forma de consenso e de oposição.56 Quem toma partido para uma adoção mais sistemática da categoria de antifascismo existencial é Giovanni De Luna. Para ele, o político é somente o mais interno dos círculos concêntricos do antifascismo, sendo o mais amplo representado por aquela “área de rebelismo indiferenciado, aspecto conjuntural de fenômenos inscritos em tradições populares anti-estatais de longo período, desde sempre típicos das assim chamadas ‘classes perigosas’”. 57 Embora estimulante por uma serie de aspectos, a visão de De Luna levanta problemas de não fácil solução num percurso de definição do antifascismo. Por isso encontra mais 56 COLLOTTI, Enzo. Fascismo, fascismi. Firenze: Sansoni, 1989, 54-55, cit. in RAPONE, Leonardo. Antifascismo e societá italiana (1926-1940), op. cit., p. 27, nota 36. 57 DE LUNA, Giovanni. Donne in oggetto. L’antifascismo nella societá italiana, 1922-1939, op. cit., p. 54. 42 nossa adesão a posição de Rapone, que sublinha a necessidade de estudar estas várias formas de resistência e oposição, mesmo que descontínuas, parciais, seletivas, ou configuradas como lentos percursos de amadurecimento, como formas menores e episódicas58, alertando, porém, sobre a importância de distingui-las sempre do antifascismo da luta e da propaganda organizada. E, quanto à fotografia da sociedade italiana debaixo do regime de Mussolini, podemos concordar com sua convicção, segundo a qual, se é irreal a hipótese de um “fascismo sem fascistas” (como deixavam pensar, pelo contrario, certas leituras da sociedade italiana no entreguerras produzidas pela exaltação do esforço e do valor da guerra partigiana), irreal também é representar o que não era declaradamente antifascismo na sociedade italiana como uma única realidade impregnada de fascismo, como os “mil fragmentos de outros tantos vários fascismos”, para usar uma expressão de Zunino.59 A discussão sobre a sociedade italiana no entreguerras quanto ao tema do apoio ao fascismo, do consenso e do dissenso é complexa. Afinal, na esteira de Rapone, podemos aceitar, como ponto de partida para uma análise correta do antifascismo presente na sociedade italiana, a afirmação de Paul Corner segundo a qual, num regime de coerção como o vigente na Itália na época fascista, “não era oferecida ao cidadão alguma escolha real entre ser fascista ou antifascista [...]. O antifascismo, fora poucos realmente privilegiados ou outros poucos muito heróicos, era uma opção na realidade inexistente”.60 E o próprio Rapone acrescenta que as freqüentes referências, por exemplo, contidas nos relatórios periódicos dos informantes da polícia do regime, acerca de sentimentos antifascistas presentes em vários setores da sociedade, não devem ser lidas como sinal da existência de largos bastidores para a luta clandestina, e sim como demonstração que havia uma forma ‘compacta’ de conduzir a vida: quer dizer, se vivia debaixo do regime, sim, mas sem conformismos ou anulações.61 É claro que deste modo se chega a uma definição “estreita” de antifascismo, mas isso é necessário para manter claro aquilo de que se fala, e separado de atitudes, 58 O próprio Leonardo Rapone traz em seu interessante volume, Antifascismo e societá italiana (19261940), uma série de documentos de vários tipos de oposição. 59 ZUNINO, Pier Giorgio. L’ideologia del fascismo. Miti, credenze e valori nella stabilizzazione del regime. Bologna: Il Mulino, 1985, p. 373-374 60 CORNER, Paul. “Fascismo e controllo sociale”, Italia contemporânea, op. cit., p. 403 61 Cf. RAPONE, Leonardo. “L’Italia antifascista”. In SABBATUCCI, Giovanni; VIDOTTO, Vittorio (org.), Storia d’Italia. 4 / Guerre e fascismo, op. cit., p. 554. 43 comportamentos e atos que não podem ser chamados de antifascismo propriamente dito. Evidentemente, aqui se discute do assunto na medida em que se refere à vida da sociedade italiana do período. Uma reflexão distinta tem que ser reservada, com efeito, para o antifascismo do exílio, onde, pelo menos numa primeira aproximação, as tintas do mundo antifascista parecem mais definidas, a militância, a luta, a oposição mais abertas, a rejeição do regime mais radical, embora, no que diz respeito ao conjunto da comunidade dos emigrados, dependendo do país hospedeiro, encontre-se também uma grande variedade de posições e opiniões a respeito do governo de Mussolini, lá, na pátria distante. Encontrar-se-á, então, como se verá, o núcleo duro do antifascismo militante e combatente, mas também os emigrados em camisa preta, assim como várias situações intermediarias. Mas como a historiografia lê o fenômeno do antifascismo italiano? Quais os significados que lhe atribui? Atuação de pequenos núcleos engajados, realidade de minorias - seja na Itália como no exterior - empenhadas numa luta muitas vezes ímpar e frequentemente sem muito apoio da opinião pública internacional, núcleos de partidos que se reorganizam no exilio - a partir de 1933-34 - pelas mudanças da situação internacional e portanto encaminhados em direção a uma expressão unitária (embora constantemente atravessadas por divisões e contrastes): se a historiografia é unanime na descrição do fenômeno, quanto à sua interpretação ela é divergente. Deixando de fora algumas visões excessivamente hagiográficas, típicas da produção das primeiras décadas após a segunda guerra, onde o antifascismo é descrito como o precursor da luta “resistencial”, e a ação dos antifascistas celebrada com tons de epopéia, há consenso dos estudiosos da historiografia mais recente sobre o valor e a importância do antifascismo como tal, como fenômeno de seu tempo e dos lugares em que se produziu e não mais diretamente ligado ao levante insurrecional (que teve outros tipos de motivações e outra gênese). Assim, os estudos concluem que o antifascismo foi periférico pelo menos até 1933, sim, mas, ao menos em certos expoentes e certas tomadas de posição, conectado com o contexto europeu e mundial; minoritário como fenômeno, mas significativo para a gestação da moderna democracia; vanguarda que permitiu à consciência européia e mundial não adormecer diante da escalada dos fascismos e de sua pretensão totalitária; dividido e conflitante em seu próprio seio, mas aos poucos capaz de gerar um debate e uma reflexão sobre pontos centrais da vida política e civil; testemunho militante, muitas 44 vezes incapaz de pensar numa ação coletiva contra os fascismos, mas sem dúvida capaz de manter vivos ideais que outros deixaram apagar. As apresentadas acima são algumas das linhas interpretativas do antifascismo italiano, no contexto do antifascismo internacional. O essencial, nessa análise, como vários observadores comentam, é não cair em nenhum dos dois pólos extremos: a excessiva exaltação do fenômeno ou a sua total desqualificação. Sua importância é indiscutível: necessário, contudo, é reconhecer seus limites e suas incoerências. É preciso dizer algo, contudo, sobre as questões mais controvertidas, no plano da interpretação e do juízo histórico. Uma delas se refere à unidade do antifascismo. Aliás: pode-se falar ainda de ‘antifascismo’ ou seria melhor usar o termo no plural? Rapone 62 é claro em sua posição: a unidade é uma aspiração das várias componentes do antifascismo desde o inicio, é um principio originário, uma tensão sempre presente, embora nunca completamente realizada e conseguida, pois cada expressão do antifascismo (anarquista, socialista, popular, comunista, republicana, liberal-socialista, etc...) tende sempre a conservar sua especifica e incancelável individualidade, no plano político e intelectual. Na verdade, duas são as leituras que uma afirmação como essa busca contrastar. A primeira é a de certa visão mais tradicional do mundo antifascista, descrito como realidade unitária porque objeto de perseguição por parte do regime e, portanto, capaz de uma superação, uma sublimação das diferenças ao redor de um mínimo denominador comum, o da luta pela democracia, em nome do qual sacrificar as visões diferentes (interpretação retomada recentemente por Revelli63). A segunda é a leitura, apresentada em sua forma mais completa por François Furet64, segundo a qual o antifascismo em si não teria conteúdo político nenhum, mas seria somente um expediente tático do movimento comunista internacional para penetrar no Ocidente, quase um cavalo de Tróia para a infiltração do comunismo em sua versão estalinista. O historiador francês, que - é importante seja registrado - estuda em seu volume (capítulos VII e VIII) as idas e vindas do antifascismo principalmente a partir da análise da vida política e cultural de seu país, desconsiderando o horizonte mais amplo de seus significados, descreve o 62 Cf. RAPONE, Leonardo, “L’antifascismo tra Italia e Europa” In DE BERNARDI, Alberto; FERRARI, Paolo (org.). Antifascismo e identitá europea, op. cit., p. 1-24. 63 REVELLI, Marco. “Le idee” In DE LUNA, Giovanni; REVELLI, Marco. Fascismo, antifascismo. Le idee, Le identitá, Firenze: La Nuova Italia, 1995, p. 23 64 FURET, François. O passado de uma ilusão. São Paulo: Siciliano, 1995. 45 mundo comunista antes de 1934 como uma organização que levanta, antes de mais nada, a bandeira da revolução e da derrota da ordem burguesa, e que, quando fala de antifascismo, o identifica com a luta pela vitoria dos ideais comunistas: e acrescenta, em seguida, que, a partir desse ano e do sucessivo, as mudanças do comunismo internacional (frente popular na França, relatório do VII Congresso do Comintern) “oferece a Stalin um espaço político para implantar na Europa toda um vasto sistema revolucionário, inteiramente devotado a ele”65, e que, afinal, “Hitler empurra a URSS para o campo da liberdade, onde ela não é mais só a aliada natural das democracias, ela mesma é democrática: não como a França - pois é comunista, mas ainda mais que ela uma vez que suprimiu o capitalismo”.66 Furet até admite que existe um antifascismo de esquerda anterior a 1934-35, “combatendo cada um, na maioria das vezes, sob sua própria bandeira”, mas identifica a novidade que aparece a partir de 1934 com a aceitação comunista de “ceder parte de seu monopólio do antifascismo em troca do abandono, por parte de seus novos aliados, de qualquer anticomunismo”67. Como se vê, ele se lança, em sua leitura dos fatos, numa crítica radical ao proceder do movimento comunista em relação aos fascismos a partir de meados da década de 1930, proceder que ele identifica como mera atitude tática em vista de objetivos mais amplos: a partir de 1935, eles [os comunistas] aparentemente devolveram um pouco de autonomia a todas essas forças intermediarias, não só aos socialistas, mas também aos democratas, aos liberais, aos republicanos: mas se trata de uma liberdade vigiada, uma vez que controlam o espaço do antifascismo e concedem os certificados de filiação.68 A interpretação do historiador francês, segundo Rapone e outros observadores, parte de uma perspectiva excessivamente franco-cêntrica e limitada à relação entre antifascismo e comunismo, não percebendo ou não considerando a relevância histórica de outras dimensões do antifascismo, anteriores e distintas da temporada das frentes populares. 65 Ibid., p. 274 Ibid., p. 287 67 Ibid., p. 328-329 68 Ibid., p. 329. 66 46 Também De Bernardi69, mesmo reconhecendo que o “frontismo” era fruto de um exasperada visão tática da Terceira Internacional, e que, por exemplo, o pacto de unidade de ação de 1934 entre socialistas e comunistas italianos não representou nenhuma tentativa de unidade maior, a não ser a definição de espaços de colaboração para a ação de propaganda, rejeita a leitura de Furet como excessivamente simplificadora de um fenômeno como o antifascismo, que possuía maior respiro e amplitude, e no seio do qual, a partir dos anos 30, embora entre contradições e debates, até certa percepção do valor e do significado da democracia começava a encontrar um caminho na mente de alguns dirigentes do comunismo italiano. Unidade, então, como tensão de todas suas componentes, empenhadas cada uma segundo seus referenciais ideológicos na oposição ao fascismo e na construção de uma sociedade nova. Estas diferenças entre as várias linhas do antifascismo não são, contudo, suficientes para legitimar, segundo a literatura sobre o tema, que se fale de “antifascismos”. Aliás, uma útil sugestão é a oferecida por Franco De Felice70, um dos mais agudos observadores do fenômeno na recente produção, que avança a categoria de “partido do antifascismo”, entendendo com isso o lento amadurecer de uma consciência nova perante os problemas históricos da sociedade européia. Após a guerra que tanto destruiu e tanto marcou o continente, três apareciam, segundo a leitura de F. De Felice, as principais questão em pauta: reformular a idéia de nação, definir uma nova ordem internacional sobre a qual fundamentar a paz e conjugar em termos novos liberdade, justiça e igualdade, ou, em outras palavras, os direitos civis e os direitos sociais. Assim, diz F. De Felice - naquela que é também uma interessante leitura do significado do antifascismo em sua luta - enquanto os fascismos apostam na militarização interna e no expansionismo externo, o antifascismo (e aqui o pesquisador italiano adota o termo de “partido do antifascismo”) aposta em outro tipo de proposta, a do Estado social, da segurança coletiva, da democracia de massa. Um “partido” esse, que não tem uma data de fundação, um secretário geral ou congressos nacionais: é mais algo como o vir à tona no âmbito do antifascismo, sobretudo socialista, liberal e democrático de novas orientações, novas perspectivas, novas convicções, expressão de uma “revolução antifascista” que se opõe à pretensa 69 Cf. DE BERNARDI, Alberto. “Per uma interpretazione dell’antifascismo: alcune ipotesi di indagine”. In ALBARANI, Giuliano; GUERRAZZI, Amedeo; TAURASI, Giovanni (org.). Sotto il Regime. Problemi, metodi e strumenti per lo studio dell’antifascismo, op. cit. 70 Cf. DE FELICE, Franco (org.). Antifascismi e Resistenze. Roma: Carocci, 1997. 47 ”revolução” dos fascismos. Um partido, contudo, que, novamente na análise de De Bernardi,71 só muito lentamente e com muitas dificuldades e resistências conseguiu produzir as tais ‘novas perspectivas’, pois até a segunda metade da década de 1930 nas fileiras socialistas a visão positiva da democracia (apelidada de ‘burguesa’) ainda demorava a decolar. E um ‘partido’, também, para a constituição do qual, segundo De Bernardi, o movimento comunista italiano não teria contribuído significativamente. Além disso, ancorado a uma linha de conduta fundamentalmente pacifista, particularmente em sua componente socialista, o antifascismo não soube prever como o fascismo podia ser derrotado, nem imaginar sua queda através de uma guerra continental. Ficou, na década de 30, representando aos olhos da opinião pública internacional, a resistência de minorias ativas em sua ação de propaganda e de preparação pedagógica, à espera de uma futura crise revolucionaria. Os eventos de Espanha e o aprofundar-se da escalada expansionistas dos fascismos no final dos anos 30 mudariam o cenário. Essa longa discussão acerca do caráter unitário do antifascismo permitiu registrar convergências e divergências entre linhas interpretativas, mas mostrou como, com a exceção de Furet, a maioria dos observadores atribua ao fenômeno um conjunto de significados que o colocam como fator de democratização do cenário político europeu (e mundial), apesar de suas limitações teóricas e práticas. É a partir desse juízo global que devemos colocar as atuações de Scarrone, Garavini e Battistelli, em busca de uma verificação de categorias e análises apresentadas acima. O que pode significar, por exemplo, falar de um “partido do antifascismo”, quando se debaterá a respeito dos percursos políticos dos três investigados? Em que medida diferenças ideológicas podem ter dificultado a elaboração de uma proposta unitária? Como seus percursos individuais se colocam no contexto da tentativa de construção de uma frente unitária antifascista no Rio de Janeiro? Questionamentos que não poderão deixar de levar em conta, como horizonte de referência, juízos como o de Nolte, de 1966, embora limitado à emigração política italiana na França na década de 1920 e começo de 1930: “Os círculos dos emigrados constituíam uma espécie de microcosmo político, cuja impotente agitação contrastava singularmente com a imóvel potencia do 71 Nestas observações somos devedores da análise de De Bernardi presente em seus trabalhos, já várias vezes citados. 48 fascismo; no seio deste microcosmo tramavam-se intrigas improdutivas, mas experimentavam-se também soluções fecundas”.72 Em busca de significados e valores do antifascismo, impossível não considerar a questão da relação entre o mesmo e o fenômeno da luta partigiana contra o nazismo e o fascismo da República de Saló, que interessou particularmente o centro e o norte da Italia, entre 1943 e 1945. A literatura sobre a resistência italiana é enorme, mas os estudos que tentam discutir a relação da mesma com o antifascismo não são muitos, ou, melhor, a tendência predominante na historiografia italiana foi por muito tempo aquela que considerava o antifascismo do entreguerras como uma grande premissa da luta partigiana, uma sua preparação sofrida, uma longa véspera de espera até o glorioso final. Desta forma a investigação sobre o antifascismo e suas especificidades, que tentamos ilustrar acima, ficou muitas vezes negligenciada, quando não reduzida a simples prefácio do estudo da Resistência. Expoentes da clássica historiografia sobre a resistência italiana, como Battaglia, Ragionieri, Quazza e Candeloro (com obras escritas entre 1975 e 1984), compartilham desta linha de leitura, que se tornou quase um paradigma interpretativo. Desta forma, porém, o antifascismo acabava prisioneiro de um cone de sombra, não conseguindo adquirir a fisionomia de um objeto historiográfico autônomo.73 A atual reflexão historiográfica tende a separar os dois momentos, lendo o fenômeno da resistência (ou das resistências européias) como evento imprevisto e espontâneo. Gerado pelo próprio conflito e suas vicissitudes, o fenômeno resistencial seria menos uma conseqüência da tradição antifascista e mais uma reação às terríveis feridas provocadas pela guerra sobre o país e a população, fato mais evidente no caso francês, tcheco ou polonês, mas também no caso italiano, onde as descontinuidades entre antifascismo e resistência superam as continuidades. O ensaio de Claudio Pavone, de 199174, com sua tríplice proposta interpretativa da resistência italiana (guerra de libertação, guerra civil e conflito de classe) oferece uma leitura do evento que mostra seus múltiplos significados: insurreição nacional contra a ocupação estrangeira, luta entre visões contrastantes da convivência civil – fascismo versus antifascismo, e outra luta no seio da anterior, entre diferentes formas de conceber a construção da sociedade futura. Uma proposta de leitura que ultrapassa os propósitos deste trabalho, mas que 72 NOLTE, Ernst. Les Mouvements fascistes. L’Europe de 1919 à 1945, op. cit., p. 99. 73 Para uma interessante panorâmica da visão desses autores cf. o capitulo conclusivo (p.200-229) de DE BERNARDI, Alberto; RAPINI, Andrea (org). Discorso sull’antifascismo, op. cit. 74 Cf. nota 32. 49 com sua contribuição e pelas categorias interpretativas usadas (antifascismo e guerra civil européia, debate e conflito entre diferentes visões da luta contra o fascismo) dialoga com o horizonte de referências dele. 1.5. Antifascismo em terra de exílio Como se viu anteriormente, um dos componentes mais significativos do antifascismo italiano foi a emigração política, seja antes como depois das leis repressoras do regime de Mussolini. A esse ramo do antifascismo italiano se dedicará agora mais atenção pelo fato do presente trabalho se inserir no conjunto de estudos consagrados a esse âmbito. Sua história é narrada em numerosas publicações, algumas de caráter geral e muitas ligadas ao país ou até a região para onde se direcionou a emigração provocada pelo fascismo. 75 Muitos historiadores de debruçaram sobre os feitos da Concentrazione d’azione antifascista, cartel de partidos (os socialistas reformistas e os maximalistas, os republicanos, a LIDU - Lega Italiana per i Diritti dell’Uomo, e os sindicalistas da CGdL – Conferazione Generale del Lavoro) fundado em 1927 em Paris e encerrado em 1934. Outros se empenharam em analisar o surgimento em 1929 do movimento de Giustizia e Libertá (que sempre afirmou a prioridade da ação antifascista na Itália, mesmo usando de espaços organizativos e deliberativos também no exterior), sua aproximação da Concentrazione, a separação das atividades e das tarefas das duas organizações, o diálogo e as incompreensões entre elas. A história dessas duas experiências de luta ao regime de Mussolini se mistura com a do movimento comunista internacional e sua politica de aproximação dos partidos não comunistas no âmbito da política das frentes populares. 75 Além das obras já citadas, como GAROSCI (1953), FEDELE (1976), DROZ (2001), GABRIELLI (2004), vejase: COLARIZI, Simona. “L'antifascismo all'estero”. In Storia dell'Italia contemporanea / Resistenza e Repubblica (1943-1956), vol. 5, Napoli: ESI, 1979. TOMBACCINI, Simonetta. Storia dei fuorusciti italiani in Francia. Milano: Mursia, 1988. FEDELE, Santi. Repubblicani in esilio nella lotta contro il fascismo, 19261940. Firenze: Le Monnier, 1989. ------------. Il retaggio dell’esilio. Saggi sul fuoruscitismo antifascista. Soveria Mannelli: Rubbettino, 2000. TOBIA, Bruno. Scrivere contro. Ortodossi e eretici nella stampa antifascista dell’esilio (1926-1934). Roma: Bulzoni, 1993. 50 A ingente produção historiográfica sobre a Concentrazione focaliza sobretudo os aspectos políticos e ideológicos de sua articulação, ora pondo em evidência sua importância pela rede de contatos a nível internacional e pela ação de testemunho, quase uma tribuna de onde a voz da oposição italiana pudesse atingir os ouvidos da opinião publica européia, ora frisando sua atitude fundamentalmente orientada à espera, sem propor iniciativas ou gestos significativos, e limitada a um papel meramente conservativo e organizativo da vida dos fuorusciti.76 O debate está aberto entre os pesquisadores acerca do significado político desse instrumento de luta, cuja breve existência é vista por alguns como um fracasso, devido a sua composição bastante heterogênea e ao fato de querer transpor para o exterior modelos tradicionais de partido, por outros como uma interessante tentativa de diálogo entre diferentes âmbitos do antifascismo, que levou a um esforço de revisão ideológica, de autocrítica, de renovação. Assim como objeto de estudo e investigação foi a experiência de Giustizia e Libertá, com suas novidades e seu percurso singular, ligado à carismática figura de Carlo Rosselli. Quanto à luta dos anarquistas no exílio, a literatura é menos abundante, voltada principalmente para a reconstrução do percurso humano e político de algumas figuras expressivas, como, por exemplo, Camillo Berneri,77 ou os que repararam no Uruguai, particularmente Luigi Fabbri e sua filha Luce.78 Uma fecunda linha de pesquisa, começada nas últimas décadas, tende a recuperar o discurso sobre o antifascismo no exílio em diálogo com os estudos sobre a emigração. Por muito tempo os historiadores desse campo hesitaram em enfrentar a problemática ligada aos movimentos migratórios e às comunidades italianas no exterior durante a 76 Uma observação de Bruno Tobia propõe uma restrição lexical que merece ser registrada. Pelo fato dos membros da Concentrazione considerarem “prioritária, por ser a única possível, a ação política fora da península, considerada nada mais que uma única, imensa, sufocante prisão”, ele propõe que o termo fuoruscitismo seja reservado somente para os concentracionistas, e não para os membros de Giustizia e Libertá, por exemplo, nem, evidentemente, para os comunistas. Cf. TOBIA, Bruno. Scrivere contro. Ortodossi e eretici nella stampa antifascista dell’esilio (1926-1934), op. cit., p. 129. 77 Sobre Berneri, anarquista que se refugia na França apos as leis fascistissimas, e em seguida em vários paises da Europa, até chegar à Espanha, onde lutará na guerra civil, e encontrará a morte, ver sobretudo FERI, Paola; DI LEMBO, Luigi (org.). Epistolario inédito / Camillo Berneri, Pistoia: Edizioni Archivio Famiglia Berneri / Comune – Assessorato agli Istituti culturali, 1984. Com ele, Battistelli trocará interesssantes correspondências. 78 Fabbri se refugia na França e em seguida no Uruguai, onde fundará a revista Studi Sociali. Morrerá em Montevidéu em 1935. Sobre ele, com o qual seja Garavini como Battistelli se corresponderão, ver o epistolário: GIULIANELLI, Roberto (org.). Luigi Fabbri / Epistolario ai corrispondenti italiani ed esteri (1900-1935). Pisa: BFS, 2005. Sobre Luce Fabbri, uma interessante obra em língua portuguesa é RAGO, Margareth. Entre a história e a liberdade. Luce Fabbri e o anarquismo contemporâneo. São Paulo: UNESP, 2001. 51 época fascista, de certa forma reputando que o estudo destes fenômenos coubesse essencialmente aos historiadores da política do fascismo e do antifascismo. Segundo Rapone,79 é sintomático de tal dificuldade o fato que, até duas décadas atrás, a maior parte das pesquisas sobre as atividades políticas dos trabalhadores italianos no exterior e seu envolvimento com as formas e as dinâmicas da mobilização social dos países que os hospedavam não ultrapassassem o marco cronológico da primeira guerra mundial. Foi exatamente a partir dos anos oitenta do século passado que as duas linhas de pesquisa começaram a dialogar e a se entrelaçar. Contribuição fundamental neste sentido foi a oferecida por estudiosos dos países de destinação da emigração italiana, particularmente a França, que representou o principal centro de acolhida de refugiados oriundos da península. O Centre d’études et de documentation sur l’émigration italienne (Cedei), fundado a Paris em 1983 por Pierre Milza e outros pesquisadores, foi principal incentivador da urgência de reconduzir a experiência do exílio político no mais amplo contexto dos movimentos migratórios, situando-a assim na perspectiva de uma “história social da emigração política”. Os estudos de Eric Vial, Bruno Groppo e outros pesquisadores do Cedei, que, entre outros objetos de pesquisa, se concentraram também na elaboração de um banco de dados sobre a emigração italiana para a França a partir dos arquivos do Casellario Politico Centrale, contribuíram a fortalecer esta tendência. Um primeiro aspecto focalizado por estas pesquisas se refere à determinação dos fluxos migratórios em saída da Itália após o aparecimento do fascismo. As respostas às indagações nem sempre convergem. Para Droz,80 por exemplo, as ondas são fundamentalmente três: a primeira, de 1922 a 1925, com a emigração de vitimas do squadrismo fascista e/ou da paralela repressão policial – sobretudo dirigentes sindicais, de cooperativas ou de prefeituras de esquerda, além de alguns lideres da oposição (Nitti, Sturzo, Donati); a segunda, entre 1925 e 1926, que se estende aos principais lideres do Aventino e a outras personalidades do mundo político da oposição (Amendola, Gobetti, Salvemini, Tarchiani, entre outros); a terceira, após as leis repressivas de novembro de 1926, que envolve numerosos outros expoentes antifascistas (Treves, Turati, Rosselli, Nenni) e vários militantes de base. Já Groppo81 e Rapone consideram também os fluxos migratórios anteriores a 1922, a partir de 1920, quando o fascismo recém nascido 79 RAPONE, Leonardo. “Emigrazione italiana e antifascismo in esilio” In ASEI (Archivio Storico dell’Emigrazione Italiana), 2008. 80 DROZ, Jacques. Histoire de l’antifascisme en Europe (1923-1939), op. cit., p. 30-32 81 GROPPO, Bruno. “Entre immigration et exil: les refugiés politiques italiens dans La France de l’entredeux-guerres” . Matériaux pour l’Histoire de notre temps, 1996, vol. 44, nº1, p. 27-35. 52 começava suas investidas nas cidades e nas áreas rurais do centro e do norte da Itália. A este ponto, a discussão toca um tema interessante, o do entrelaçamento das motivações políticas com as econômicas. Emigração econômica e emigração política coexistem e se sobrepõem, sobretudo no caso da emigração dos militantes da base. Para muitos, diz Groppo, fugir do fascismo e escolher o exílio é ao mesmo tempo escapar das perseguições e encontrar a possibilidade de um trabalho, que se tornara impraticável na condição anterior, na Itália. Acolhendo a sugestão de outro pesquisador do Cedei (Éric Vial), ele propõe chamar essa emigração de “político-econômica”. Rapone argumenta a respeito com análises mais sofisticadas. Os fluxos de saída no começo da década de 1920 são oriundos de dificuldades econômicas, mas também, e, em muitos casos, sobretudo, da necessidade de mudar, de deixar lugares de domicilio perigosos, com perspectivas de vida e trabalho difíceis ou insustentáveis, a causa dos ataques fascistas. Sua análise afirma que as motivações “políticas”, nesses casos, não são meros estímulos políticos à escolha de expatriar de pessoas inquietas, ‘irregulares’, mas se aproximam mais de um mal estar econômico individual de origem ‘política’, ou de uma verdadeira coação ‘política’ para buscar trabalho no exterior. E acrescenta que, se não se qualificará de “antifascista” essa emigração, será por resolver não incluir os primeiros anos da década de 1920 na abrangência do termo, e não porque ela não carregue a marca da ‘política’, pois ela é em tudo e por tudo produzida pelo fascismo. A preocupação em colocar um referencial a quo para situar a emigração antifascista se conecta com as análises acima apresentadas quanto aos marcos cronológicos do antifascismo. Até 1926 pode-se falar explicitamente de “antifascismo”? Nossa resposta é afirmativa, embora a datação da Bibliografia dell’Antifascismo Italiano exclua os anos anteriores às leis liberticídas, por razões de ordem metodológica. Mas, sobretudo quando se trata de emigração devida ao fascismo, ainda mais pelas razões agora apresentadas (uma emigração política que em muitos casos apresentava um forte componente econômico, uma emigração, portanto, que em muitos casos começa antes de 1926), o critério cronológico para definir o que é e o que não é antifascismo não pode ser excessivamente rigoroso. Além disso, é preciso lembrar, com Droz, Groppo e Rapone, que é no exterior, no seio das comunidades de imigrados italianos, que nascem as primeiras organizações italianas que se auto-proclamam antifascistas, como a LIDU na França, em 1922, e a Unione Democratica no Rio de Janeiro, ainda em 1924. 53 Com isso, se chega a tocar a temática do antifascismo produzido e alimentado pelas colônias de italianos no exterior, e de sua relação com, de um lado, as ondas de emigrados que fogem do fascismo e de sua persecução, e, do outro, a sociedade dos países em que vivem. A discussão destas questões constitui também horizonte para a compreensão dos percursos dos três “antifascistas” italianos que são objeto do presente trabalho de pesquisa. O anarquista Garavini e o republicano Battistelli deixam a Itália em ocasião da instauração do regime de exceção com a legislação de 1926: ambos o fazem por motivos políticos e ao mesmo tempo econômicos (violências recebidas, seja à pessoa e à família, seja à propriedade, e impossibilidade de continuar na profissão ou na atividade anterior). Quanto ao terceiro investigado, Scarrone, sua presença no Brasil, na Capital federal, é anterior ao advento do fascismo, tendo ele chegado em 1911: sua vinda foi, como para a maioria, movida por necessidades econômicas, mas junto com elas não foram ausentes motivos políticos, pois sua militância socialista na região de Genova lhe trouxe incompreensões e hostilidades, ao ponto de pensar na emigração como solução, mesmo tendo já 52 anos. Sua qualificação de antifascista lhe vem da continua e obstinada ação de oposição ao fascismo a partir do Brasil, desde os primeiros anos de aparição deste no cenário da vida política italiana. Dois membros, então, do antifascismo do exílio, da emigração política, em sentido próprio, ou, como Vial sugere, político-econômica, e um terceiro expoente do antifascismo da velha emigração. Aquela almejada convergência entre estudos do antifascismo e estudos da emigração da qual se discutiu acima volta agora para fundamentar uma pesquisa que percorre transversalmente as duas dimensões, onde se misturam o aspecto da saída do país natal, do exílio (toda experiência de emigração traz consigo algo da dimensão do exílio) e o da luta política em nome dos ideais de liberdade e solidariedade. 82 A contribuição dos pesquisadores do Cedei, embora limitada ao caso francês, é útil para a elaboração de algumas categorias que, como no caso visto acima, podem ajudar numa descrição mais adequada das condições e circunstâncias ligadas ao tema da emigração devida ao fascismo. Antes de mais nada, pode-se lembrar a constatação, presente num 82 Interessante contribuição a respeito da necessidade desta convergência, com a sugestão de trabalhar os pertencimentos múltiplos, a âmbitos diferentes, a fim de construir uma autentica história social do antifascismo, em CANOVI, Antonio. “Di antifascisti, emigranti, fuorusciti; a propósito di fascismo e mobilitá politica” In ALBARANI, Giuliano; GUERRAZZI, Amedeo; TAURASI, Giovanni (org.). Sotto il Regime. Problemi, metodi e strumenti per lo studio dell’antifascismo, op. cit., p. 111-120. 54 trabalho do próprio Milza,83 que a emigração política (ou político-econômica), isto é, movida também pela necessidade de se afastar de locais onde o clima se tornara irrespirável, se insere no âmbito de um fluxo migratório mais amplo, que registrava, dependendo do país para o qual se dirigia, números bastante elevados desde o final do século XIX, e que continuará, embora reduzido, no entreguerras. Qual então, se assim se pode dizer, o percentual devido à emigração provocada pelo fascismo, mesmo levando em conta a confluência de motivos políticos e motivos econômicos, perto do total da emigração italiana do período? A resposta a questionamentos como esse ainda precisa de aprofundamentos e pesquisas. Interessante, também, a proposta de uma tipologia da emigração política, avançada sempre por Milza84. O pesquisador francês divide o conjunto dos emigrados por motivos políticos em cinco categorias. A primeira se refere aos dirigentes e principais expoentes de partidos e organizações. Emigrados essencialmente por motivos políticos, uma vez em terra estrangeira puderam encontrar-se numa destas três sub-tipologias: ou continuaram exercitando no exílio uma atividade quase exclusivamente política, em conexão com sua atividade habitual, sobretudo no campo intelectual; ou realizaram para sobreviver uma atividade econômica diferente por um certo período; ou mudaram de atividade e essa mudança acabou sendo duradoura. Uma segunda categoria inclui os militantes e simpatizantes do antifascismo já ativos na Itália, mesmo não pertencendo ao grupo dirigente, e que continuavam sua ação política ou sindical no exterior: em geral trabalhadores manuais, uns foram para o exílio por razoes políticas, outros como vitimas indiretas da repressão patronal, então por causas econômicas. Terceiro grupo: foram os militantes, os simpatizantes e outros trabalhadores que, no exílio, abandonaram sua anterior atividade política ou sindical, ora por razoes de segurança pessoal, ora por simples vontade de integração, ora por aproximação, mais ou menos explicita, do fascismo. Uma quarta categoria é constituída por quantos, emigrados por razões não políticas, politizaram-se através do contato com os fuorusciti e suas organizações no exterior. Quinta e última categoria, a imensa massa dos não politizados. 83 MILZA, Pierre. “’Émigrés politiques’ et ‘émigrés du travail’: Italiens en France d’après le fonds du Casellario político centrale”. Mélanges de l’école française de Rome, 1988, vol. 100, nº 1, p. 181-186. 84 Ibidem. É oportuno lembrar que o analisado por ele é o caso da emigração italiana’ para a França, caso que não deixa de ser o mais significativo quanto ao fenômeno em questão, por ser o país de eleição da emigração política antifascista: isso, por sua vez, é devido a uma serie de fatores como proximidade, presença de significativa colônia italiana, forte demanda de mão-de-obra, tratado ítalofrancês de trabalho de 1919 que facilitava as transferências, imagem substancialmente positiva dos italianos junto ao povo francês. 55 Categorias indicativas e não excludentes outros tipos de classificação, mas utilizáveis como ponto de referências também para um discurso sobre a emigração e o antifascismo no Brasil de entreguerras. Assim como sugestivas são as provocações que se podem retirar da contribuição já citada de Rapone,85 quando convida os pesquisadores da emigração antifascista a aprofundar o estudo de suas relações com a sociedade dos países de acolhida. O historiador italiano, em sua análise dos trabalhos sobre a temática do antifascismo no exílio, mostra como a investigação ampliou-se nas duas direções, a vertical (relação entre a emigração recente de caráter antifascista e os núcleos politizados da emigração mais antiga) e a horizontal (mudanças ocorridas na vida das comunidades italianas no exterior a partir da contraposição fascismo/antifascismo). Após uma ampla panorâmica da produção sobre a emigração antifascista em vários países, das Américas à União Soviética, o autor formula algumas criticas à fragmentação e regionalização dos estudos e lamenta a ainda insuficiente capacidade de diálogo e de colaboração entre especialistas das migrações e especialistas do antifascismo, com algumas felizes exceções, como a produção de Bertonha para o caso brasileiro, a respeito do qual o autor cita também como significativas as pesquisas de Angelo Trento. Ambas constituíram uma significativa base de dados, informações, e análises, indispensável como referência para o presente trabalho. 1.6. No Brasil Nessa primeira parte do trabalho, dedicada à discussão da produção historiográfica a respeito do antifascismo italiano, realizou-se um itinerário partindo da análise da realidade do fascismo italiano para depois penetrar no debate em torno do antifascismo e de suas características fundamentais. Cada passo do trajeto completado ilumina, de um lado, e convoca a uma confrontação, do outro, o objeto da presente pesquisa, quer dizer, os percursos políticos e existenciais de Scarrone, Battistelli e Garavini. Assim, a reproposição inicial das principais linhas interpretativas do fenômeno fascista à luz das quais a luta contra ele se articulou na Itália e no exílio, segundo as três 85 RAPONE, Leonardo. “Emigrazione italiana e antifascismo in esilio” , op. cit., passim 56 principais suas vertentes (a liberal-conservadora, a marxista e a liberal-democrática, ou liberal-radical), nem sempre presentes em forma pura na propaganda, na publicística, na imprensa, aliás, frequentemente entrelaçadas uma com a outra, ajuda a situar os percursos individuais de cada um dos antifascistas estudados, como expressão de uma ou de outra linha interpretativa, ou como correção delas. Leituras construídas muitas vezes no âmbito da redação de um jornal ou da mesa diretora de um sindicato podem sofrer re-elaborações importantes quando revisitadas tempo depois, no meio de uma luta conduzida contra um inimigo que almeja conquistar também a pacifica colônia de conterrâneos a dezenas de milhares de quilômetros de distância, com um oceano no meio. Ou, ao contrário, juízos e análises provocadas por eventos trágicos e violentos na terra natal também podem, à luz de sucessivas avaliações e acontecimentos, encontrar confirmação ou passar por um caminho de revisão. Os três tipos de análises lembrados no primeiro capítulo poderão, portanto, confirmar e alimentar convicções, interpretações e escolhas de Nello, Libero e Giuseppe, ou ir de encontro a elas, dialogando com elas e provocando reinterpretações, a partir também de uma vivência do fascismo que não tem mais as conotações experimentadas nos anos do “squadrismo” mais selvagem, ou à luz de um conhecimento do mesmo – como será o caso de Scarrone – que não pôde ser direto, mas somente pelo testemunho de outros. Assim se verá como cada um deles tende a abraçar uma dessas interpretações, reelaborando-a, às vezes entrelaçando uma com a outra. A passagem realizada através das sucessivas compreensões do fascismo presentes na historiografia, principalmente a de língua italiana, torna-se indispensável para que seja claro o que se entende quando aqui se fala e se discute de fascismo, um fenômeno, que, mesmo tendo tido a Itália como seu primeiro local de afirmação, e tendo gerado em resposta um movimento de oposição dentro e fora das fronteiras do próprio país, não pode ser visto e compreendido como exclusivo daquela nação, a partir de traços típicos ou de características particulares. Ao contrário, tratou-se de algo que interessou as sociedades européias e extra-européias, incluindo aqui a sociedade brasileira, tendo como aspectos importantes o impacto com o liberalismo, a queda de braço com o mundo socialista e o diálogo com a modernidade. Nolte, Paxton, Teixeira da Silva, em companhia de boa parte da recente produção historiográfica italiana, registram interpretações do fascismo que vão nesta direção. É então uma leitura do fascismo italiano feita segundo estas categorias, incluindo a referência à de totalitarismo - vista 57 essa última não como chave de compreensão global do regime e sim como registro de uma sua pretensão ao domínio total das consciências e dos corpos - que aqui será usada. Um fascismo que, tanto na Itália quanto no exterior, como se verá, busca organizar o consenso da população. Foi então de um fascismo assim que Battistelli e Garavini se subtrairam, fugindo da legislação vexatória de 1925-26, mas foi diante da tentativa deste mesmo fascismo de penetrar na sociedade brasileira, atingindo a colônia italiana e ao mesmo tempo a opinião pública do país, que eles articulam formas de oposição e resistência, assim como foi diante do crescimento ainda do mesmo fascismo, em suas diferentes manifestações, seja na Espanha seja no próprio Brasil, que foram chamados a tomar posição. Como foi contra esse mesmo fascismo que Scarrone encontrou modalidades e formas originais de protesto e luta. Da caracterização do fascismo se passou à discussão do antifascismo e à sua análise. Fenômeno periférico, foi dito, o antifascismo italiano no exílio, pelo menos até o ano de 1933, mas não por isso menos europeu ou mundial: é a partir desta convicção que, mesmo estudando figuras que resistem ao fascismo de uma trincheira, como a brasileira, que encontra-se muito distante do coração da batalha, poder-se-á perceber os três italianos emigrados em terra carioca como parte deste movimento internacional da resistência ao regime de Mussolini e a todas as formas de fascismo. Articulações, modalidades, operacionalidades, estruturas: tudo isso pode ter encontrado, num lugar ou outro, numa forma ou outra, realizações mais significativas ou eficazes. Mas, mesmo a partir de um ponto de observação e de operação como o Rio de Janeiro, a luta antifascista italiana teve algo de significativo a ser registrado. A categoria interpretativa de “guerra civil europeia”, alargando seus limites pelo menos até as Américas, também oferece interessantes sugestões à pesquisa, quando usada como chave de leitura de divisões e conflitos transversais à própria sociedade brasileira. É importante deixar claro também que a categoria de antifascismo, embora marcada por uma longa convivência com o movimento comunista, soviético e internacional, convivência que se tornou mais tarde, após o desfecho do segundo conflito mundial, apropriação quase exclusiva dele, será nesse trabalho usada para caracterizar vários âmbitos de resistência ao fascismo, varias compreensões e manifestações da luta contra ele, não excluindo, portanto, os componentes socialista, ou republicano, ou anarquista, ou liberal-democrata do próprio movimento antifascista, aliás valorizando-os pelo fato dos três italianos objeto deste estudo pertencerem a algumas destas correntes. 58 A historiografia recente busca recuperar a dimensão existencial, pessoal, da luta e do percurso dos expoentes do antifascismo, como foi discutido acima. Falar do antifascismo não é simplesmente reconstruir caminhos de luta e de discussão ideológica, de confronto público ou de elaboração partidária. É também estudar aspectos certamente menos politizados, mas não por isso menos ‘políticos’ do mundo dos antifascistas, como a vida privada, as dificuldades econômicas, os problemas de trabalho, as relações de afeto, os tempos do lazer, os laços de solidariedade. A presente pesquisa busca evidenciar, quando possível, a partir da documentação levantada, esses espaços e dimensões relativas ao percurso humano e existencial dos três antifascistas, estudados em seu contexto de relações. Não faz parte do campo de interesse da presente investigação a categoria do “antifascismo existencial”, por se referir não ao fenômeno da emigração antifascista, mas fundamentalmente à condição própria de quem vivia debaixo do calcanhar do regime, na própria península italiana. Sua fecunda sugestão, contudo, de estudar a dimensão existencial dos opositores ao fascismo, o vivido, o cotidiano, também e ao mesmo tempo que a dimensão mais especificamente politica, há de ser levada em conta na investigação dos percursos dos três italianos. Vimos também como os marcos cronológicos de 1926-1943 para caracterizar o antifascismo serão por nós transpostos, apoiados por parte da literatura e na convicção de não provocar desta forma vendavais metodológicos: trata-se de garantir legitima cidadania a expressões de antifascismo anteriores ao marco a quo, e que se conectam com outras manifestações sucessivas; será o caso, por exemplo, de parte dos escritos de Scarrone contra Mussolini e seu governo, a partir do próprio ano de 1922. Objeto de analise deste trabalho é o antifascismo ligado à emigração política italiana para o Brasil no entreguerras, especificamente para o Rio de Janeiro, e suas relações com a colônia italiana da cidade e a sociedade carioca. O longo capitulo anterior, com a ilustração de sugestivas linhas de reflexão e perspectivas de estudo, oferece o quadro de referência indispensável para nossa investigação, com seu convite a considerar os profundos laços existentes entre história do antifascismo (e do fascismo) e história das migrações, com sua elaboração de categorias como a de emigração político-econômica, com sua proposta de tipologias. 59 Entrando numa análise mais pontual da historiografia sobre o antifascismo italiano no Brasil, não há dúvida de que a produção de João Fabio Bertonha86 desponta por abrangência e profundidade de investigação. Tanto os caminhos do antifascismo na comunidade de imigrados de origem italiana, quanto os percursos através dos quais o fascismo de Mussolini tentou conquistar espaço na colônia italiana, sua ação de penetração através da propaganda e das propostas culturais, além das atividades assistenciais e recreativas, foram extensamente investigados por Bertonha. Seu estudo da difusão do fascismo italiano no Brasil discute, entre outros pontos de análise, a questão dos fasci italiani all’estero, o organismo criado pelo regime de Mussolini no âmbito do Partito nazionale fascista (Pnf). Sobre o tema, em sentido mais geral, isto é, apresentando as linhas diretrizes e inspiradoras do organismo, criado já em 1922 pelo Grã-Conselho do fascismo com objetivos não dissimulados de ‘fascistizar’, depois do Estado italiano e sua sociedade, também as comunidades nacionais no exterior, um ótimo estudo é o de Emilio Gentile87, que admite abertamente a impossibilidade de escrever uma história completa dos fasci all’estero. Uma história, ele afirma, que talvez nunca seja escrita, tanto pela multiplicidade e complexidade das experiências organizativas, políticas e sociais produzidas pelo organismo em questão, ligadas também às especificidades de cada comunidade italiana no exterior e de cada país de acolhida, quanto pela dispersão ou a perda da documentação. Assim Matteo Pretelli, num artigo de 200888, efetua uma panorâmica da historiografia sobre o tema, mostrando como até então não exista nenhum trabalho de síntese a respeito das linhas gerais da política fascista de propaganda e assistência dos italianos no exterior, a frente de muitos estudos regionais, e algumas recentes coletâneas89. 86 Sobre os caminhos do antifascismo italiano no Brasil veja-se BERTONHA, João Fábio. Sob a sombra de Mussolini. Os italianos de São Paulo e a luta contra o fascismo, 1919-1945. São Paulo: FAPESP: Annablume, 1999. Uma completa leitura sobre a penetração do fascismo junto da colônia italiana em BERTONHA, João Fábio. Sob o signo do fascio: o fascismo, os imigrantes italianos e o Brasil, 1922-1943. Tese de Doutorado em Historia Social. Campinas: UNICAMP, 1998. Vários artigos já publicados sobre fascismo no Brasil, além de novas contribuições sobre a temática mais ampla do fascismo agora estão reunidos em BERTONHA, João Fábio. Sobre a Direita. Estudos sobre o fascismo, o nazismo e o integralismo. Maringá: Eduem, 2008. 87 GENTILE, Emilio. “La politica estera del partito fascista. Ideologia e organizzazione dei Fasci italiani all’estero (192-1930)”. Storia Contemporanea, ano XXVI, n.6, dezembro de 1995, p. 897-956. 88 PRETELLI, Matteo. “Il fascismo e gli italiani all’estero. Una rassegna storiografica”. A.S.E.I. (Archivio Storico dell’Emigrazione Italiana), www.asei.eu, 2008. 89 Cf. FRANZINA, Emilio; SANFILIPPO, Matteo (org.). Il fascismo e gli emigrati. La parabola dei fasci italiani all’estero. Roma-Bari: Laterza, 2003. SCARZANELLA, Eugenia (org.). Fascisti in Sud America. Firenze: Le Lettere, 2005. 60 Voltando ao trabalho de Bertonha, seus escritos, tanto os artigos, quanto as obras de maior fôlego, se distinguem pela pesquisa documentada, utilizando arquivos brasileiros e italianos, e pela rigorosa reconstrução de etapas e momentos tanto da penetração do fascismo na colônia italiana como das respostas que o movimento antifascista tentou fornecer. Sua obra sobre a luta dos italianos contra o fascismo oferece uma reconstrução sumaria do antifascismo italiano fora da Itália, no mundo da emigração, utilizando como marcos cronológicos os anos de 1922 e de 1945, para depois se concentrar sobre o caso brasileiro, do qual estuda articulações, etapas, dissídios e ausências, assim como a distribuição de sua influência nas várias camadas sociais. Obra preciosa por sua abrangência e profundidade de análise, com apresentação rápida ou mais destacada de muitos militantes, e com ênfase sobretudo nos aspectos político-organizativos, tenta algumas conclusões a respeito daquilo que titula como o “fracasso” do antifascismo italiano no Brasil, listando uma serie de fatores, desde a fraqueza da imprensa e das organizações até as dissensões internas, passando pelo escasso apoio da esquerda brasileira, a simpatia do governo e de parte da opinião pública brasileiros para o fascismo ou ainda a forte repressão das autoridades, sobretudo depois de 1935, sem esquecer o fato de certo distanciamento por parte da colônia italiana no Brasil diante das iniciativas do movimento operário, diferentemente, segundo o autor, do caso argentino, por exemplo. Há de se relevar que, pela evidente predominância da colônia paulista, em termos numéricos de população e em termos políticos de organização, no âmbito dos italianos emigrados e radicados no território brasileiro, a produção de Bertonha focaliza principalmente a situação desta comunidade, tanto na discussão da difusão do fascismo como no exame do antifascismo organizado, deixando mais na sombra a situação no resto do país, inclusive na Capital federal. De todo modo, pela riqueza das fontes consultadas, pelo propósito de oferecer quadros sintéticos e tentativas de respostas, e por suo pioneirismo desbravador, o trabalho de Bertonha é leitura indispensável para qualquer pesquisa que queira se mover no âmbito do fascismo italiano e sua difusão no Brasil, ou da história da emigração antifascista nesse país. Com ele dialogar-se-á ao longo deste trabalho e sobretudo em suas conclusões. Falou-se acima de pioneirismo, e a afirmação tem seu significado se relacionada com o conjunto das pesquisas de autores brasileiros sobre a temática do fascismo e do antifascismo italiano no Brasil. Talvez tenha que ser corrigida se incluirmos, no rol das produções significativas sobre o assunto, o trabalho do italiano Angelo Trento, da 61 Universidade de Nápoles, que em sucessivas investidas historiográficas dedicadas à imigração italiana no Brasil, abriu caminhos para a pesquisa a respeito também dos anos do entreguerras, exemplo, nisso, daquela necessidade que estudiosos do fenômeno migratório não se furtem à análise do período fascista e de suas características do ponto de vista da emigração política ou político-econômica. A contribuição mais significativa é um livro,90 aqui publicado em 1989, no qual, a reflexões e análises da histórica imigração italiana no Brasil até a primeira guerra mundial já presentes em edições anteriores da obra, Trento faz seguir um inteiro amplo capítulo dedicado ao período entre as duas guerras. Continuidades e descontinuidades com a emigração anterior, ação do partido fascista e da diplomacia para a difusão do credo mussoliniano, relação da coletividade italiana com o fascismo e com o antifascismo, papel da imprensa e do associacionismo: o quadro da situação é adequadamente investigado pelo historiador italiano em seu volume, fruto de longos períodos de frequentação de arquivos italianos e brasileiros. Seu trabalho, que recentemente produziu uma contribuição mais especificamente dedicada à presença fascista entre os emigrados italianos no Brasil 91, é rico em informações garimpadas em longas pesquisas documentais, interpretadas e reelaboradas para oferecer um quadro de conjunto da situação. Sem conclusões expressamente formuladas, a leitura que Trento oferece da colônia italiana no Brasil de entreguerras é a de um mundo significativamente penetrado pelo fascismo, ora em termos de adesão ideológica convicta, ora no plano de um alinhamento menos politizado, mas expressão de uma popularidade do regime a causa do prestigio que estaria devolvendo à Itália no contexto internacional. A ser destacado é também o distanciamento, presente no trabalho mais recente, diante da afirmação de Bertonha, segundo a qual a classe operária de origem italiana no Brasil alinhou-se com o regime só de forma muito superficial: para o pesquisador italiano, ao contrario, o grau de penetração do fascismo na comunidade italiana no Brasil foi significativamente elevado (embora dificilmente mensurável), ainda mais se comparado com a situação da análoga coletividade na Argentina. Fontes preciosas de dados e registros, minas de nomes e acontecimentos, com sua narração das idas e vindas do fascismo e do antifascismo de matriz italiana junto das 90 TRENTO, Angelo. Do outro lado do Atlântico. Um século de imigração italiana no Brasil. São Paulo: Nobel, 1989. 91 TRENTO, Angelo. “ ‘Dovunque é um italiano, lá é Il tricolore’. La penetrazione del fascismo tra gli immigrati in Brasile.” In SCARZANELLA, Eugenia (org.). Fascisti in Sud America. op. cit., p. 1-54. 62 coletividades de imigrados e da sociedade brasileira de entreguerras, as produções de Bertonha e Trento representam ponto de referência essencial para os estudos do assunto. Quando se fala da antifascismo no Brasil, evidentemente há de se dialogar com a produção historiográfica nacional que lida com a temática, pois, se o antifascismo se manifesta no Brasil desde os primeiros anos da década de 1920 através da emigração italiana que foge da perseguição do regime de Mussolini e também de manifestações originadas pela comunidade italiana ou ítalo-brasileira implantada na sociedade brasileira, ele vai encontrando no mundo político local apoios e colaborações, além, é claro, de oposições e ostracismos. As organizações ligadas à esquerda política, de uma forma ou de outra, com maior ou menor comprometimento, dialogam com o mundo do antifascismo italiano da colônia, mas o momento em que a colaboração ou o reconhecimento mais consistente de sua luta se dá é a partir de 1933, quando os acontecimentos internacionais - leia-se ascensão de Hitler ao poder na Alemanha, organização de comitês contra a guerra a contra o fascismo na Europa, nascimento de frentes unitária ou populares para barrar o avanço da direita – encontram repercussão também no Brasil, onde surge e se afirma o movimento integralista. Entre as palavras de ordem dos partidos da esquerda começa então a aparecer com regularidade o antifascismo. Claramente, são os partidos ligados ao movimento comunista internacional os que tomam a dianteira nesta luta, onde se mesclam proclamas de solidariedade para com os povos oprimidos pelas ditaduras fascistas e apelos em favor da revolução - interpretada de uma forma pelos comunistas ortodoxos, fiéis às diretrizes da Terceira Internacional, e de outra pelos alinhados com o pensamento trotskista - e ainda conclamações à luta contra o integralismo, visto como o fascismo nacional. A produção historiográfica sobre as esquerdas no Brasil dos anos de 1920 e 30 é volumosa, com muitas obras de indiscutível valor e outras menos. Nomes como os de Edgar Carone92, John W. Foster Dulles93, Claudio Batalha94, Paulo Sérgio Pinheiro95, 92 CARONE, Edgard. Socialismo e anarquismo no inicio do século . Petrópolis: Vozes, 1996. ------. A República Nova (1930-1937). São Paulo: Difel, 1976. 93 DULLES, John W. F. Anarquistas e comunistas no Brasil, 1900-1935. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 1977. 94 BATALHA, Cláudio. O Movimento Operário na Primeira República. Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 2000. 95 PINHEIRO, Paulo Sérgio. Estratégias da ilusão: a revolução mundial e o Brasil, 1922-1935. São Paulo: Companhia das Letras, 1991. 63 Marly de Almeida Gomes Vianna96, entre outros, podem servir com sua produção a orientar o pesquisador que queira debruçar-se sobre a temática, auxiliados também por uma recente coletânea que apresenta algumas contribuições interessantes.97 Neste emaranhado de produções sobre a esquerda brasileira dos anos 30, poucas são as que tematizam explicitamente a dimensão antifascista, investigando e trazendo à tona debates, arranjos, iniciativas que a alimentaram e problemáticas que a percorreram. Uma contribuição importante, centrada na reconstrução do percurso da Aliança Nacional Libertadora e de seu papel nos levantes de novembro de 1935, é representada pelo volume de Anita Leocádia Prestes98 que oferece uma abordagem original da figura de Luiz Carlos Prestes como protagonista daqueles eventos, e que traz também em seu subtítulo (“Os caminhos da luta antifascista no Brasil, 1934-35”) a justificativa para seu destaque no conjunto das produções similares. A história da ANL foi reconstruída por vários pesquisadores, mas aqui aparecem de forma clara os laços com a luta antifascista internacional e sua relação também com as dinâmicas próprias da sociedade brasileira do tempo, onde a ameaça fascista, representada pelo surgimento do integralismo, mostrava seu peso. Livro de história política por excelência, poderá se encontrar nele uma narração fiel daquele conturbado biênio da vida nacional, e uma tentativa de explicação das razões que levaram a luta antifascista nacional ao grau de radicalização representado pelos eventos de novembro de 1935. A leitura daqueles anos, sem dúvida alguma os mais significativos para o antifascismo brasileiro, embora o período anterior e o sucessivo representem também etapas importantes na definição de suas características, é conduzida por Anita Prestes tendo como objeto primário de investigação o papel político de Luiz Carlos Prestes, sua relação com o comunismo nacional (representado pelo PCB) e internacional, leia-se IC (Internacional Comunista), e o significado de sua pessoa para o surgimento e a atuação da ANL. 96 VIANNA, Marly de Almeida Gomes. Revolucionários de ’35; sonho e realidade. São Paulo: Companhia das Letras, 1992. 97 FERREIRA, Jorge; REIS, Daniel Aarão (org.) As Esquerdas no Brasil, v.1 / A Formação das tradições (1889-1945). Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2007. 98 PRESTES, Anita Leocádia. Luiz Carlos Prestes e a Aliança Nacional Libertadora: os caminhos da luta antifascista no Brasil (1934-35). Petrópolis: Vozes, 1997. 64 De menor consistência e relevância, até no que diz respeito ao presente trabalho, é a leitura das lutas da década de 1930 presente no trabalho de Ibirapuan Puertas. 99 A despeito da extensa bibliografia primária e secundária, sua pesquisa, voltada para a individuação, nos eventos ligados ao antifascismo durante o governo Vargas, de linhas geradoras da assim chamada “esquerda nacionalista brasileira”, peca por escasso rigor metodológico e certa confusão discursiva. Sem entrar no mérito de suas teses principais, o trabalho não oferece significativa contribuição para a pesquisa sobre o antifascismo de matriz italiana e suas relações com o campo da luta antifascista brasileira. Outra análise desta mesma luta, mas focalizada nas suas diferentes vertentes e nos debates que as acompanharam, a partir de leituras distintas do perigo fascista e da ameaça da guerra “imperialista”, encontra-se na produção de Ricardo Castro100, cuja atenção, além de examinar os eventos de 1934-35, retrocede cronologicamente ao ano anterior, para estudar a constituição da Frente Única Antifascista, em São Paulo. Seu trabalho, representado por artigos e sua tese de doutorado, se detém na análise dos vários componentes das fileiras do antifascismo brasileiro, evidenciando também suas articulações com o mundo da emigração política italiana. Interessante trabalho de pesquisa e de elaboração analítica, útil para poder perceber a complexidade dos percursos presentes e atuantes no âmbito dos debates e das lutas do antifascismo. Cabe assinalar aqui, embora voltada especificamente para o estudo da realidade paulista, a produção realizada no âmbito do PROIN - Projeto Integrado Arquivo do Estado / Universidade de São Paulo, fruto da colaboração entre as duas instituições paulistas. Um conjunto de estudos, realizados sob a coordenação de Fausto Couto Sobrinho, diretor do Arquivo, e dos professores Maria Luiza Tucci Carneiro e Boris Kossoy, facilitou para os pesquisadores o acesso aos prontuários do fundo DEOPS, gerando também uma série de publicações sobre esse acervo da polícia política. 99 PUERTAS, Ibirapuan. Nacionalismo, democracia e bem-estar do povo: a luta antifascista no Brasil e a gênese da esquerda nacionalista brasileira. Rio de Janeiro: [s.n.], 2007. 100 CASTRO, Ricardo Figueiredo de. Contra a guerra ou contra o fascismo: as esquerdas brasileiras e o antifascismo, 1933-1935. Tese de doutorado em História, Universidade Federal Fluminense, Niterói, 1999. ---------. “A Frente Única Antifascista (FUA) e o antifascismo no Brasil (1933-1934)”. Topoi, Rio de Janeiro, n. 5, setembro de 2002. ------------. “O Homem Livre: um jornal a serviço da liberdade (19331934)”. Cadernos AEL, v.12 (Trotskismo), N. 22/23, 2005, p. 59-75. -------------. “A Frente Única Antifascista (1933-34)” In FERREIRA, Jorge; REIS, Daniel Aarão (org.) As Esquerdas no Brasil, v.1 / A Formação das tradições (1889-1945), op. cit., p. 429-451. 65 Trabalhos como os de Lucia Silva Parra101, ou de Viviane Teresinha dos Santos102, entre outros, dialogam com a investigação sobre o antifascismo na colônia italiana e mais em geral na sociedade brasileira do entreguerras, tendo como horizonte de fundo, como foi dito, principalmente a realidade do Estado de São Paulo. 101 PARRA, Lucia Silva. Inventario DEOPS: módulo VII – Anarquistas. Combates pela liberdade. O movimento anarquista sob a vigilância do DEOPS/SP, 1924-1945. Sao Paulo: Arquivo do Estado; Imprensa Oficial, 2003. 102 SANTOS, Viviane Teresinha dos. Inventário DEOPS: módulo V – Italianos. Os seguidores do Duce. Os italianos fascistas no Estado de São Paulo. São Paulo: Arquivo do Estado; Imprensa Oficial, 2001. SANTOS, Viviane Teresinha dos. Italianos sob a mira da polícia política. Vigilância e repressão no Estado de São Paulo (1924 - 1945). São Paulo: FAPESP, 2008. 66 2. SEGUNDA PARTE / Giuseppe Scarrone 2.1. “Um velho” Na idade em que a maioria das pessoas começa a pensar seriamente na aposentadoria, seja aquela profissional e de trabalho, seja aquela que diz respeito ao comprometimento com projetos da vida ou com lutas e ideais que deem sentido à existência, e frequentemente declaram encerrada sua contribuição para as duas dimensões acima, o antigo aprendiz de vidreiro, agora bem sucedido empresário do ramo do vidro na Capital Federal, o italiano Giuseppe Scarrone, partia para uma nova batalha.1 “Um velho” - repetiram durante muito tempo os informes e as denúncias das autoridades diplomáticas italianas no Brasil e também os relatórios da polícia do Reino de Vitor Emanuel III, que a cada ano, e várias vezes a cada ano, se deparavam com folhetos, opúsculos, cartas abertas que Scarrone remetia através do correio para a península. Publicações e escritos assinados pelo próprio Giuseppe, e em boa parte de sua pessoal autoria, enviados tanto para familiares e amigos, quanto para pessoas que ocupavam cargos na sociedade italiana ou tinham um papel de destaque na vida politica, econômica e produtiva do país, mesmo sem que ele as conhecesse. Sem falar das cartas para o Rei e para os expoentes máximos do regime, ministros, secretários do partido fascista, comandantes da arma dos carabinieri e até para o próprio Duce. Um velho, e ainda por cima “imbecil”, “ignorante” e sem algum séquito na comunidade italiana no Brasil, ou um “grafomaníaco” um tanto vaidoso, com manias de escritor. Assim a maioria dos relatórios e das comunicações internas das autoridades policiais descrevia a pessoa de Scarrone. Alguns exemplos, entre muitos: “[Ele] tem a mania de escrever e nada negligencia para que seus opúsculos cheguem à Itália [...] Scarrone é tido como homem exaltado e não goza de influência alguma”2; “esse livreto, como os anteriores, não teve nenhuma importância, e é quase completamente ignorado pela 1 Principais fontes para reconstruir as etapas da biografia de Scarrone são os documentos reunidos em sua pasta no Casellario Politico Centrale (ACS/CPC, busta 4675, fascículo 27661, “Scarrone Giuseppe”) e o artigo MOLINARI, Augusta, “José Scarrone, un vetraio altarese a Rio de Janeiro” In GIBELLI, A. (org.). La via delle Americhe: l’emigrazione ligure tra evento e racconto. Genova: Sagep, 1989, p. 69-79, além de um livrinho publicado pelo próprio empresário, SCARRONE, Giuseppe. Giuseppe Scarrone nelle sue memorie, Rio de Janeiro, 1937. 2 ACS/CPC b. 4675, f. 27661 (“Scarrone, Giuseppe”), informe da Prefettura de Genova, 6.8.1924. 67 nossa colônia e por todos os elementos brasileiros”3; “Giuseppe Scarrone é um semianalfabeto e um ignorante”4; “um exaltado maníaco”5. Um sujeito, então, aparentemente inócuo, mas é notável o fato que este mesmo sujeito, “velho”, inócuo e sem seguidores, obrigou a vigiar comandos de carabinieri, prefetture, seções do partido fascista e órgãos diplomáticos, e que seus escritos lhe valeram uma condenação do tribunal italiano a 2 anos, 2 meses e 25 dias por ofensas ao Rei, além dos dizeres “procurado” e “a ser detido” na capa de sua pasta no Casellario da polícia do Reino. Um velho, então. Pois foi exatamente aos sessenta e três anos de idade que Scarrone, chagado havia onze anos ao Brasil e dono de uma bem encaminhada fábrica de vidros no Rio de Janeiro, começava uma intensa atividade de propaganda, denúncia e contrainformação para amigos, parentes, conhecidos e não, na Itália e no Brasil, escrevendo, publicando, difundindo e enviando cartas e opúsculos, de 1922 até pelo menos 1935, quando forças, lucidez e, quem sabe, vontade, pareceram abandoná-lo. Nesta ação, Scarrone agia como inimigo declarado do fascismo e se colocava numa linha ideal que unia sua luta atual com a que ele e outros paesani (isto é, oriundos de famílias pobres), como ele, conduziram durante muitos anos, em sua terra, contra os monsú, os donos das principais fábricas de vidro e que tinham transformada a atividade em um verdadeiro cartel de empresas, postas nas mãos das mais abastadas famílias da região. Socialista desde sua juventude, Giuseppe continuou sua militância no Brasil, embora nas formas possíveis para um imigrante, e fez de sua criação, a Fábrica Nacional de Vidros, um laboratório onde experimentar uma gestão cooperativista do trabalho. Sua participação nas manifestações e atividades dos antifascistas da colônia italiana do Rio (e do Brasil) não foi das menos significativas, como se verá até pelo destaque que lhe ofereu o principal instrumento neste campo, o periódico La Difesa. Mas sua singularidade reside principalmente naquela persistente ação de denúncia das mentiras e das iniquidades do regime, seja para a coletividade italiana no Brasil e paralelamente para a opinião publica nacional, seja para os destinatários de suas publicações na Itália: uma tentativa de penetrar a cortina de silêncio e aquiescência que parecia reinar na península. 3 Ibidem, telespresso do Ministero degli Affari Esteri, 16.7.1926. Ibidem, telespresso do Ministero degli Affari Esteri, 8.9.1927. 5 Ibidem, telespresso do Ministero degli Affari Esteri, 22.8.1929. 4 68 Nos últimos anos de sua vida, ele, que nunca se naturalizara, apresentou o pedido para alteração do nome. De Giuseppe para José, embora ele usasse os dois de forma quase igual, preferindo Giuseppe nos escritos em italiano e José nos artigos ou publicações em português. Talvez o pedido se devesse às leis com que o Estado Novo varguista tentava controlar atividades e vida dos estrangeiros em território brasileiro, ou simplesmente por um ato de amor pela terra que o acolhera emigrante, trinta anos antes. O Ministério do Interior e da Justiça concedeu a retificação do nome, com publicação no Diário Oficial de 25 de agosto de 1944. Tarde demais: Giuseppe tinha falecido um mês antes, a 29 de julho. Não deu tempo de carregar oficialmente o nome concedido pelo Brasil, sua segunda pátria, assim como não deu tempo de saudar, nove meses depois, o fim do fascismo e de Mussolini na Itália, sua primeira. 2.2. Na Itália: cinquenta anos de lutas Em vários de seus escritos, Scarrone lembra os seus anos italianos. Ora frisando as dificuldades familiares, ora recordando suas iniciativas e tentativas no setor da produção do vidro em sua terra, ora apresentando seus contatos com o mundo do socialismo. As origens modestas da família, ligada ao mundo camponês do interior de Gênova, não proporcionaram para Giuseppe boas condições de vida, nem uma formação regular em sua juventude. Obrigados a mudar frequentemente de local de vida e trabalho, se transferindo de uma chácara para outra, sempre trabalhando a terra para os donos das propriedades, os pais dele conseguiram finalmente se estabelecer num sitio no pequeno município de Quiliano, na província de Savona, onde puderam permanecer estavelmente por uma década. Era o ano de 1862, e Giuseppe já estava com três anos, tendo nascido a 11 de maio de 1859, em Mallare, um município limítrofe. A chácara em que veio à luz era chamada Cianlán, e o nome ficou mais tarde grudado em Giuseppe como apelido. “Em 1872, a família aumentara de 5 para 9 membros, e não havia mais possibilidade para todos trabalharem nos campos, assim nos mudamos [...] e em 1873 nos estabelecemos em Altare, indo todos trabalhar na fábrica de vidro da cidade” – lembrará Giuseppe num livreto de memórias6. Altare era mais uma das vilas da região, mas tinha uma forte tradição na produção do vidro: aqui Giuseppe, empregado inicialmente como 6 SCARRONE, Giuseppe. Giuseppe Scarrone nelle sue memorie, op. cit., p.4. 69 aprendiz de vidreiro, conheceu os segredos da arte que o acompanhará por toda sua vida. Aos vinte anos, o alistamento militar obrigatório o levou longe de casa por mais de dois anos, mas lhe permitiu conhecer o ambiente de uma livraria e tipografia, sugerindolhe a possibilidade de criar uma do gênero em sua terra7. Assim, em 1883, voltando para Altare, abriu uma revenda de jornais, com livraria e papelaria, transformada mais tarde em um café, o Caffé dei Cacciatori. Tamanho espirito de empreendedorismo, ou talvez suas ideias socialistas, com o passar do tempo produziram acusações e inimizades para Scarrone, tido como proprietário de um local de subversivos, e o levaram em 1900 a liquidar o estabelecimento comercial. Uma nova etapa em sua vida: durante cerca de dois anos, como diretor, Giuseppe se dedicou com sucesso à revitalização de uma grande fábrica de vidro da região, mas novas “persecuções” por parte dos monsú levaram a propriedade do estabelecimento a demiti-lo. Também nas empreitadas sucessivas, uma cooperativa vidreira, fundada por ele na própria cidade de Genova, em 1906, composta de consumidores, clientes e trabalhadores do vidro, e uma loja de venda dos produtos do trabalho, teve que enfrentar invejas e obstáculos. Scarrone, com efeito, “nasce ‘paesano’ numa comunidade onde ainda, no começo do século XX, existiam privilégios hereditários. Ser ‘paesano’ significava não poder exercer a arte do vidro, ser excluído da vida administrativa e politica local, obedecer a uma serie de normas da vida cotidiana estabelecidas pelo estreito círculo das famílias dos ‘monsú’”, escreve Augusta Molinari8. E é ainda através de seu estudo sobre a figura de Scarrone que se depreendem noticias sobre as simpatias socialistas dele: Pouco se sabe de sua iniciação ao socialismo, que todavia parece possível relacionar com a presença em Altare, desde o começo do século XX, de núcleos organizados de vidreiros socialistas e de uma ativa Câmara do Trabalho [...] Teve contatos com a Federação dos vidreiros e participou das primeiras tentativas de organização de cooperativas de consumo em Altare e na região do Valbormida [...] Para Scarrone, como talvez para outros socialistas altareses, a adesão ao socialismo toma em primeiro lugar o significado de uma rebelião contra o poder dos ‘monsú’.9 7 Foi durante este período de alistamento que Giuseppe aprendeu a ler, tendo como primeira paixão a leitura dos jornais, como recordava em SCARRONE, Giuseppe. Onorevole Giacomo Matteotti nel 1º anniversario del suo assassínio, Rio de Janeiro, 1925, p. 15. 8 MOLINARI, Augusta. “José Scarrone, un vetraio altarese a Rio de Janeiro” In GIBELLI, A. (org.). La via dele Americhe: l’emigrazione lígure tra evento e racconto, op. cit., p. 69. 9 Ibid., p. 70. 70 Assim, de 1905 a 1907, Scarrone se tornou autor de uma seção10 no periódico socialista genovês Era Nuova, assinando com o pseudônimo L’Emigrato [O Emigrante], na qual apresentava episódios antigos e recentes de violências dos ‘monsú’. Também chegou a publicar vários opúsculos com a mesma finalidade11. Não há muitos elementos para poder reconstruir de forma mais completa a trajetória de Scarrone em seus anos italianos, nem esta é a finalidade principal deste trabalho. De qualquer modo, algumas pistas podem ser traçadas, indicativas de uma personalidade cujas características encontrar-se-ão também em seu percurso brasileiro. Sem dúvida, o sentimento de revolta e inconformação diante da injustiça percebida em sua pele e na realidade social ao seu redor. Chame-se, essa injustiça, discriminação no campo do trabalho, como nestes anos na Itália, ou clima de mentira, violência e sufocamento da liberdade proporcionado pelo regime fascista, como se verá depois. Nisso, o amparo da ideologia socialista, encontrada na juventude, se revelará como uma referência constante em sua existência: uma militância, contudo, condicionada pelas experiências de seus anos juvenis e pelo ambiente de seu município de origem, e talvez por isso não excessivamente elaborada ou fundamentada em leituras e estudos teóricos. As formas próprias com as quais conduzir a luta e manifestar o dissenso tomavam corpo já nesses anos, e eram o artigo de jornal, o panfleto, o opúsculo, às quais se acrescentarão em seguida também as cartas abertas. Sinais de uma facilidade no uso do instrumento gráfico, fruto talvez da sua experiência de anos como dono de livraria e papelaria. E enfim a grande paixão da vida, o vidro, sua produção e transformação, esta arte secular, descoberta ainda adolescente, longamente cultivada e capaz de cruzar várias vezes seu caminho (ora como trabalhador, ora como empreendedor), percebida e perseguida como possibilidade de elevação material e humana das classes mais humildes. Várias, como se haverá modo de registrar, serão as oportunidades nas quais, já no Brasil, manifestará sua convicção de estar realizando uma obra em favor dos menos afortunados, criando empregos e ensinando uma arte, numa tentativa também de realizar uma inicial experiência cooperativista. Ideais socialistas e mentalidade paternalista se dando as mãos, é de se reparar logo, em tal empreitada, cujas raízes foram lançadas nas iniciativas realizadas em Altare e em Genova. 10 O titulo da seção era “Noterelle di vita altarese”. Um deles foi SCARRONE, Giuseppe. La sopravvivenza di una casta. Noterelle di storia e di vita altarese. Genova, 1909. 11 71 Uma derradeira característica talvez seja aquela que permitiu a Scarrone de abandonar a Itália e recomeçar com entusiasmo mesmo num país distante como o Brasil, já cinquentão. A capacidade de se reinventar, em parte apreendida em sua infância a partir das repetidas mudanças de sua família e de seus recomeços agrícolas e profissionais, e, consequentemente, a sensação de ser destinado a uma existência sem raízes muito firmes, a de um perene emigrante, como assinava seus primeiros ensaios jornalísticos. Dificuldades de relacionamento com o ambiente no qual se profissionalizara, invejas e boicotes devidos a origem social e escolhas politicas, foram na base de sua decisão de emigrar. 2.3. Fabricando vidro no Rio de Janeiro Foi “em um momento de raiva”, como ele mesmo recordará anos depois, que Scarrone, à idade já não mais juvenil de 52 anos, tomou a decisão de deixar a Itália e emigrar para as Américas. Era o ano de 1911. Com regular passaporte emitido para o Brasil, Giuseppe embarcou dia 5 de junho em Genova no Argentina, vapor da companhia italiana La Veloce, proveniente de Nápoles e com escalas ainda em Barcelona e Dakar. Entre os 115 passageiros da terceira classe desembarcados no Rio de Janeiro, a 21 de junho, Giuseppe foi registrado como “giornaliero”, de 52 anos, casado12. Certo mistério envolve a vinda da esposa, Rosalia Vadone, que já era a terceira mulher dele, e de Concetta, a única filha, do primeiro casamento. Delas não há registro entre os passageiros do navio, sinal de uma provável viagem sucessiva das duas para se unir ao marido e pai. A escolha do Brasil, e da cidade do Rio de Janeiro, como local onde transplantar experiências adquiridas e onde recomeçar uma atividade, foi fruto, como acontecia frequentemente nestes casos, de redes migratórias parentais e regionais. Existem notações que confirmam casos de várias famílias de trabalhadores do vidro de Altare que se dirigiram a países da América Latina - Argentina, Uruguai, Chile, além do Brasil.13 Provavelmente, embora não saibamos quando, dois irmãos de Giuseppe 12 Cf. Arquivo Nacional /Divisão de Policia Marítima, Aérea e de Fronteira (DPMAF)/Relações de Passageiros em Vapores/Porto do Rio de Janeiro/Notação: BR.AN.RIO.OL.0,RPV.PRJ.12704 13 BRONDI, T. Nozze d’oro. Reminiscenze sulla costituzione della Societá Vetraria di Altare, Bologna, 1907, p.21-22 apud MOLINARI, Augusta, “José Scarrone, un vetraio altarese a Rio de Janeiro” In GIBELLI, A. (org.). La via delle Americhe: l’emigrazione lígure tra evento e racconto, op. cit. 72 emigraram antes dele para o Brasil, Pedro, para São Paulo e Luigi, para a Capital Federal, ambos se dedicando à produção do vidro. Em vários de seus escritos, Giuseppe falou de seus primeiros anos na cidade. Escrevia em 1926: A nossa fábrica, inicialmente foi no Rio de Janeiro filial da Crystaleria Colombo, de São Paulo, cujo fundador foi Pedro Scarrone no ano de 1909. Sucedeu, em 1914, seu irmão Luiz [...] Em 1919, a morte arrebatou do nosso convívio, da nossa fábrica, seu primeiro lutador, o nosso inesquecível chefe Luiz Scarrone. 14 E assim recordava em 1932: Dediquei os primeiros anos de permanência neste patriótico país a aprender seu idioma, seus usos e costumes. Em 1914, já participava da vida econômica e industrial desta praça graças à parceria estabelecida com meu irmão Luigi, pela qual a Fábrica Nacional de Vidros passava para minha gestão e funcionava debaixo da razão social Luigi Scarrone e C. Pouco tempo depois, a fábrica passou para minha propriedade com a razão social José Scarrone, à Rua Gonzaga Bastos.15 Então, apoiando-se inicialmente ao irmão Pedro, já encaminhado na atividade em São Paulo, e em parceria com Luigi, Giuseppe moveu seus passos de vidreiro na capital da República. Começando com um pequeno capital (“Cheguei aqui em 1911 com 100 liras no bolso, trocadas no Banco di Napoli, como o governo sugeria”, escreverá numa carta ao ministro Rocco anos depois16), inicialmente colaborador e sócio do irmão, em 1914 ele assumiu a gestão da fábrica carioca e, cinco anos depois, após a morte de Luigi, aparecia como único proprietário do estabelecimento. O Rio de Janeiro daqueles anos mostrava já os primeiros sinais de um rápido processo de industrialização, embora a maioria dos estabelecimentos tivessem dimensões ainda reduzidas. A fábrica dos irmãos Scarrone, de qualquer forma, de um inicial forno para a produção do vidro, se transformou com o passar dos anos numa das mais importantes 14 ACS/CPC, b. 4675, f. 27661 (“Scarrone, Giuseppe”), SCARRONE, Giuseppe. Fábrica Nacional de Vidros, ano XVII, n.5, 1926, p. 4. A confirmação disso, o primeiro registro de uma transação comercial no Rio de Janeiro com o nome Scarrone é de abril de 1909: se trata de uma compra de barracão e terreno, realizada por Pedro Scarrone. Ver AN, Oficio de Notas do Rio de Janeiro, 1-5D, Livro 476, folha 4 [verso], 13.04.1909. 15 SCARRONE, Giuseppe. Il Brasile. Le sue grandezze, la sua produzione e l’industria del vetro, Rio de Janeiro, 1932, p.24. Daqui para frente, quando não haverá indicação do arquivo, como nesse caso, se entenderá que o opúsculo foi localizado e pesquisado na pasta de Scarrone no Casellario Politico Centrale do Arquivo Central dello Stato em Roma. 16 ACS/CPC, b. 4675, f. 27661 (“Scarrone, Giuseppe”), Carta de Giuseppe Scarrone para o Ministro di Grazia e Giustizia, Alfredo Rocco, Rio de Janeiro, 21.2.[1927?] 73 atividades comerciais do ramo na cidade,17 adotando a partir de 1929 o nome oficial de Fábrica Nacional de Vidros, e tendo sede à Rua Gonzaga Bastos, 314, bairro de Aldeia Campista (atual Vila Isabel).18 Os números que Scarrone apresentou num opúsculo de 1929 testemunhavam de um intenso comprometimento com a produção e de um negócio que estava tendo êxito: quando, em 1914, entrou como sócio, com 14 contos de capital, na fábrica do irmão Luigi, a produção do estabelecimento chegou a 115 contos; 184, em 1915; 340, em 1920; 1.100, em 1923, 1.392, em 1925 e 1.743, em 1928. E assim comentava os dados: Esta fábrica, quando um dia, proprietários, trabalhadores, clientes poderão ser precursores de uma indústria de participação dos lucros, vai ser um marco na história da manufatura do vidro no Brasil. Eu, aos meus 71 anos, toda manhã, às cinco horas, abro o portão da fábrica para os 500 operários que trabalham nela, espero até o trabalho ser bem encaminhado, tomo café, e, com minha pasta debaixo do braço e os sapatos furados, ando pelas ruas do Rio de Janeiro e redondezas, para vender e cobrar, a fim de poder enfrentar todas as exigências financeiras, sendo o capital da fábrica totalmente investido nela.19 Scarrone, então, almejava que seu empreendimento se tornasse uma “indústria de participação dos lucros”. Na fábrica, com efeito, ele tentou implantar, a partir de 1926, uma forma de cooperação industrial entre a propriedade (o capital), os trabalhadores (produtores) e os consumidores (clientes), à luz de seus ideais socialistas e de suas anteriores experiências italianas. No opúsculo de 1926, acima citado, e que, além do catálogo dos produtos, apresentava a fábrica, sua história e características, Scarrone lançava já na primeira página o programa de uma Moderna Cooperação: a FÁBRICA representa e garante o capital, o qual produz juros comerciais; o TRABALHO, pago segundo o uso da praça; a MERCADORIA será vendida pelo preço que alcançar no 17 Escrevia Scarrone em 1926: “Produzimos todo artigo de vidro para uso doméstico e ornamentação, para qualquer indústria de líquidos, para qualquer loja de louças e vidros, farmácia, papelaria ou outra qualquer casa comercial. A fábrica também compra muitos artigos que lhe são indispensáveis, [...] como Carbonato de Soda (barril), Arsênico, Antimônio, Salitre, Cera virgem, Areia, Óleos combustível e lubrificante, Carvão, Lenha, Serragem, Óleos de rícino e de amêndoas, Vasilhames, Barricões, Barricas, Caixas e Caixões para embalagem”. Cf. SCARRONE, Giuseppe. Fábrica Nacional de Vidros, op. cit., p. 6-7. 18 O Almanak Administrativo, Mercantil e Industrial do Rio de Janeiro mostra como, no começo, a fábrica da família funcionasse na Rua do Livramento, 215, Gamboa. Em seguida, por vários anos, ela continuou de pé, começando a certo ponto a coexistir com o estabelecimento da Rua Gonzaga Bastos. 19 SCARRONE, Giuseppe. Undici anni di Partito Fascista e sette di governo, Rio de Janeiro, 1929, p.48-49. 74 mercado; o LUCRO será dividido entre o capital, o trabalho e o consumidor.20 E continuava, mais para frente, transcrevendo o texto do contrato, regularmente depositado na Junta Comercial do Rio de Janeiro, de uma “sociedade em conta de participação” (chegando a afirmar que, se não fosse a única no Brasil, seria pelo menos uma das pouquíssimas existentes), contrato que previa que no balanço anual, que será feito no mês de março de cada ano [...] o lucro verificado será dividido da seguinte forma: 40% aos sócios ostensivos, 20% aos participantes (chefes de seção), 20% aos operários e 20% distribuídos como bonificação (bônus), figurando como desconto em favor dos consumidores.21 Os chamados sócios “ostensivos” eram Scarrone e sua esposa, e os “participantes” uma dúzia de colaboradores. Quanto aos operários, aos quais se destinaria um quinto do lucro anual, Giuseppe explicava, num escrito do ano anterior, que se trataria de “um prémio sobre os ganhos da indústria, distribuído aos que mais tivessem se destacado por produtividade e assiduidade de trabalho”.22 Uma repartição dos lucros, então, que, embora parcial e limitada, pode ser considerada como uma tentativa de reconhecimento do papel de “produtores” representado pelos trabalhadores da indústria, indo na direção de certa corresponsabilidade e coparticipação operária na gestão da empresa. Não muitos são os dados de que se dispõe para acompanhar os passos da empreitada. Vale aqui registrar as considerações do próprio Scarrone seis anos depois do começo de seu projeto. Relatava o empresário: Em 1926 minhas aspirações se concretizaram. Tentai constituir uma ‘Cooperativa Vidreira do Rio de Janeiro’, da qual participassem todos aqueles que tivessem relações de comércio, de trabalho, de capital com a Arte do Vidro. Não me preocupando com trabalho, dificuldades e obstáculos que pudessem surgir, para impedir o conseguimento do meu ideal, apresentei o programa de uma Cooperativa Moderna [...] O projeto obteve entusiástica acolhida por parte dos consumidores; a classe operária se mostrou incerta e desconfiada, apesar de ter destinado a ela, nos balanços dos exercícios financeiros de 1926 a 1929, cinquenta 20 SCARRONE, Giuseppe. Fábrica Nacional de Vidros, op. cit., p. 1. Ibidem, p. 26 22 SCARRONE, Giuseppe. Onorevole Giacomo Matteotti nel 1º anniversario del suo assassínio, Rio de Janeiro, 1925, p. 19. 21 75 e cinco contos de reis. [...] Mas em 1929 meus ideais e sonhos se transformaram em quimeras.23 E continuava listando um por um os problemas que o estabelecimento teve que enfrentar, das multas da Prefeitura pela falta de registros da escola interna da fábrica, às exigências da Comissão Municipal de Higiene, até a lei que regulamentava o trabalho dos menores de 18 anos, sem falar da flutuação cambial e desvalorização da moeda após a revolução de 1930. Mesmo assim, na última pagina do opúsculo, Scarrone ainda não deixava de apresentava sua fábrica como a “mais democrática do Brasil, em que o lucro industrial é dividido entre o capital, o produtor e o consumidor”.24 O que se depreende do relato é que as boas intenções de Giuseppe não conseguiram o êxito aguardado, seja por dificuldades devidas a uma serie de regulamentações trabalhistas e ao momento politico e econômico do país por volta de 1930, seja por, resistências, provavelmente inesperadas, da parte do próprio operariado. Não existe uma documentação que permita entender melhor “incertezas e desconfianças” dos trabalhadores da fábrica de Scarrone, embora se possa pensar tanto à costumeira atitude de suspeita diante de qualquer iniciativa de origem patronal, quanto a uma possível decepção por uma participação nos lucros julgada como inadequada. O socialismo de Scarrone, particularmente em seu entusiasmo com a dimensão cooperativista, aprendida por ele nos congressos da cooperação de 1886 e 1887, na Itália, experimentada em iniciativas em seu país, e que se colocava no âmbito da vertente reformista do socialismo italiano, se chocava com resistências objetivas e talvez com uma atitude subjetiva do próprio empresário, generoso em sua abertura para a classe operária e seus direitos a vida digna e justas condições de trabalho, mas condicionado por uma mentalidade marcada por certo paternalismo. A utopia de Scarrone, a de uma indústria “democrática” com divisão de lucros, esbarrou também nas leis brasileiras em defesa do trabalho dos menores de idade. Em seu opúsculo de 192925, ele se queixava abertamente da regulamentação introduzida pelo legislador naquele mesmo ano, que limitava a seis horas diárias o horário de trabalho para os menores de 18 anos, a ser realizado somente das 5 da manhã às 19, sem turnos à 23 SCARRONE, Giuseppe. Il Brasile. Le sue grandezze, la sua produzione e l’industria del vetro, op. cit., p. 24-25. 24 Ibidem, p. 31. 25 Cf. SCARRONE, Giuseppe. Undici anni di Partito Fascista e sette di governo, op. cit. 76 noite, e proibia completamente o emprego de menores de 14 anos. Scarrone se mostrou contrário não à segunda parte do decreto (embora declarando que a idade mínima para começar um emprego na fábrica poderia ter sido fixada a 12 anos), mas à primeira parte dele, que obrigava a turnos de trabalho excessivamente reduzidos (seis horas, uma das quais dedicada ao descanso) para a faixa de 14 a 18 anos, nisto, ao que parece, partilhando de uma opinião comum a outros empresários e donos de indústria. As razões de sua oposição se fundamentavam, de um lado, em uma diminuição da produção e consequentemente dos ganhos para os estabelecimentos, devido às reduções de horários de trabalho para aquela faixa etária (pois certos custos não diminuiriam em proporção, como os custos específicos da fabricação do vidro, ligados ao fato de ter que manter aceso o fogo de forma intensa e constante, dia e noite), mas, do outro, pareciam ir de encontro à convicção de que, “após a escola primária, quando o aluno não pode ou não quer prosseguir nos estudos, ele deve aprender uma arte ou uma profissão; aguardar os 18 anos, quando o vicio e o ócio já tomaram conta dele, o torna um vagabundo, e não um jovem forte”26. Por experiência pessoal, Giuseppe sabia que a idade melhor para aprender os segredos e as habilidades ligadas à arte do vidro era a idade da adolescência. E confirmava sua posição acrescentando as preocupações de pais que, no escritório dele assim como nas redações dos jornais ou junto ao juiz de menores, lamentavam a redução do horário de trabalho dos filhos, que desta forma acabavam passando boa parte do dia na rua, sem guia ou controle. A diminuição da produção e o consequente encolhimento das entradas, além das multas que a Fábrica Nacional de Vidros recebeu por ter havido casos de menores trabalhando à noite (embora o empresário se defendesse alegando que os menores foram surpreendidos pelos órgãos de fiscalização nos arredores da fabrica e não no interior dela), foram entre as causas que resfriaram o experimento cooperativista de Scarrone. Haverá ainda modo de apresentar alguns desdobramentos da atividade empresarial de Giuseppe e de sua tentativa de favorecer uma participação operária nos lucros, mas é necessário primeiramente analisar formas e características da ação dele no âmbito do antifascismo italiano e brasileiro da Capital Federal. 26 Ibidem, p. 36. 77 2.4. Imigração italiana e a Capital Federal Scarrone fazia parte, no âmbito dos antifascistas da colônia italiana no Brasil, daqueles ligados à velha emigração, isto é, os que deixaram a Itália ainda antes não só das leis que a partir de 1925 começaram a restringir os espaços de liberdade de palavra e movimento, mas também do próprio surgimento dos fasci em 1919, e de suas violentas manifestações. A esse tipo de emigração a historiografia convencionou atribuir a qualificação de “econômica”, querendo frisar sua origem e suas motivações principais, voltadas para a busca de um local e de condições de vida e trabalho que pudessem permitir ao migrante trabalhador um digno sustento seu e da família. Ao mesmo tempo, recebia a especificação de “política” a emigração de quantos deixavam o país como saída de uma situação de dificuldade e perseguição por pertencer a organizações ou partidos políticos, por serem lideres sindicais ou por desenvolver uma ação neste mesmo sentido. Na primeira parte deste trabalho, se mostrou como essa distinção fosse, em muitos casos, imprópria e incorreta. De um lado, a emigração dos fuorusciti após 1925, se claramente produzida por razões de ordem política, na quase maioria dos casos se devia também à impossibilidade real de manter um emprego, ou continuar uma atividade ou uma profissão, sendo as pessoas claramente identificadas como antifascistas. Por outro lado, até saídas da Itália por motivos principalmente econômicos, como foi o caso de milhares e milhares de emigrantes na segunda metade do século XIX e nas primeiras duas décadas do XX, podiam ter atrás delas em certos casos uma vontade de recomeçar após boicotes ou marginalizações geradas por opiniões ou militâncias politicas. O caso de Scarrone deve ser colocado neste âmbito. Eis que então a sugestão de chamar de emigração político-econômica o exilio voluntario de antifascistas após as leis fascistíssimas é feliz, apropriada também para os dois expoentes que examinaremos mais para frente, Battistelli e Garavini, mas de certo modo pode ser alargada para compreender situações como a de Scarrone. Motivos econômicos ou políticos determinantes para a escolha de partir, a emigração de Giuseppe se coloca no quadro das ondas migratórias da Itália para as Américas que caracterizaram décadas e décadas entre o XIX e o XX século. Desta emigração originarse-á também no Brasil boa parte da colônia italiana das grandes cidades e do interior dos Estados, seja em força de continuas novas chegadas da Europa, seja pelo 78 crescimento das famílias já estabelecidas no Brasil. Não é esta a sede para apresentar e discutir idas e vindas do movimento migratório italiano rumo ao Brasil, intenso e elevado sobretudo a partir da década de 80 do século XIX e com uma queda progressiva e constante após as restrições impostas pelo governo do Reino em 1902, nem para analisar origens regionais dos mesmos fluxos migratórios e suas distribuições no território brasileiro, levando em conta o interior e os centros urbanos. 27 Indicamos somente alguns dados, retirados do trabalho de Ângelo Trento, e que podem ser uteis para situar os passos dos antifascistas aqui estudados. Uma estimativa confiável apresenta estas cifras: excluindo os naturalizados, os italianos presentes em todo o Brasil seriam 540 mil em 1900, 600 mil em 1902, para caírem progressivamente para 435 mil em 1930, e se fixarem em 325 mil em 1940. Deste total, a população de nacionalidade italiana no Rio de Janeiro teria somado cerca de 20 mil em 1895, 30 mil em 1901, 35 mil em 1910, 32 mil em 1920 e 22 mil em 1940, explicando-se o aumento durante a primeira década do século XX com a atração que a cidade exerceu sobre outras regiões do país. Do ponto de vista ocupacional, os italianos da Capital Federal estariam ligados sobretudo ao mundo do comércio e de alguns tipos de ofício, mas com vários profissionais liberais e também donos de indústrias (seriam 56 em 1907, incluindo o inteiro Estado do Rio, e passando para 89 em 1920, com uma media de 9,4 operários por fábrica).28 Nesta realidade se inseriu, então, o percurso de trabalho dos irmãos Scarrone, entre São Paulo, meta inicial de Pedro, e a Capital Federal, local da definitiva afirmação da firma da família, sobretudo sob a guia de Giuseppe. Rio de Janeiro: uma cidade com uma presença de milhares de italianos, então, e também uma cidade que, por ser capital da República, concentrava instâncias de controle e de decisão politica, seja pelo lado da autoridade diplomática italiana, seja pelo lado do governo brasileiro. Uma cidade, também, na qual o movimento operário já chegara a criar e constituir instrumentos de defesa e de luta, como sindicatos e federações sindicais, e a reunir-se num primeiro congresso em 1906. No ano seguinte à chegada de Scarrone, se realizava no Rio outro congresso operário, de cunho reformista, que não será reconhecido pelos sindicalistas revolucionários, os quais convocaram em 1913 o 2º Congresso Operário Brasileiro, 27 Para isso, o melhor trabalho disponível, por completitude de dados e informações e análise do fenômeno migratório italiano para o Brasil, é TRENTO, Angelo. Do outro lado do Atlântico: um século de imigração italiana no Brasil. São Paulo: Nobel, 1989. 28 Ibidem, p. 66-67 e 102-103. 79 onde temas candentes foram discutidos, incluindo o cooperativismo e a participação nas competições eleitorais. Após anos de crise, a recuperação da indústria nacional devido ao fim da guerra na Europa aumentou a mobilização operaria e de 1917 a 1920 ocorreram vários episódios de greve na cidade, nas quais a participação anarquista e sindicalista revolucionaria foi preponderante.29 Embora não se possuam elementos para documentar a evolução do pensamento de Scarrone nestes anos, ou suas avaliações das lutas sindicais e politicas do movimento operário da cidade, nem sua atuação antes como sócio e depois como dono de empresa, é provável que tenha acompanhado eventos e debates, interessado como sempre foi aos problemas do mundo operário, possivelmente tendo que enfrentar e solucionar no âmbito de seu próprio estabelecimento reivindicações e greves. De todo modo, é neste quadro que Scarrone se insere, ele, socialista de formação, militante sem partido, pela quase inexistência na época de agrupamentos estáveis com esta orientação30, alimentando sua fé politica provavelmente com a assinatura ao periódico socialista Avanti!, editado em São Paulo, e talvez com instrumentos vindos da Itália. E mantendo contatos com a colônia italiana da cidade, ainda não alcançada pelo fascismo. 2.5. Cartas e opúsculos contra o fascismo Foram sem dúvidas esses contatos e os instrumentos de que dispunha a alertá-lo sobre a periculosidade da organização fundada em Milão, em março de 1919, pelo ex-socialista revolucionário Benito Mussolini: os Fasci di Combattimento, em breve transformados em Partido Nazionale Fascista (Pnf). Informações sobre as palavras de ordem reboantes, as práticas violentas e agressivas das esquadras fascistas, o sufocamento por elas perseguido da presença socialista e católica em centros urbanos e no ambiente rural, e o progressivo aniquilamento da rede de cooperativas, câmaras do trabalho e municipalidades ligadas a esta presença chegaram a ele através daqueles canais, assim como pelas cartas que recebiam de parentes e conhecidos da Itália. 29 Pequena, mas útil obra de síntese sobre o operariado e suas lutas desses anos é BATALHA, Claudio. O movimento operário na Primeira República. Rio de Janeiro: Zahar, 2000. 30 Sobre os partidos socialistas na Primeira República, ver SCHMIDT, Benito Bisso. “Os partidos socialistas na nascente República” In FERREIRA, Jorge; REIS, Daniel Aarão (org.). A Formação das Tradições (1889-1945), vol 1 de As Esquerdas no Brasil, Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2007, p. 131-183. 80 Notícias, informações, relatos. Recebidos, como muitos outros membros da coletividade italiana. Mas que em Scarrone despertaram algo que talvez estivesse de certa forma adormecido desde sua saída da Itália. Um sentimento de revolta contra a injustiça e a prevaricação, como nos tempos em que, paesano, lutava contra as imposições dos monsú. E depois da chegada de Mussolini ao cargo de Primeiro Ministro, obtida em outubro de 1922 com a prova de força da marcha sobre Roma, a sensação de uma progressiva perda de liberdade geral, de um cerceamento coletivo, nacional. Do qual ele percebia sintomas também no próprio cerceamento de suas comunicações com a Itália. Um seu opúsculo de 1928, o decimo terceiro por ele produzido, oferece, anos depois, uma narração detalhada de como surgiu nele a decisão de começar a escrever e publicar contra o fascismo italiano, apresentando, quase como um currículo, a data de cada publicação e suas motivações.31 Assim, se aprende que já em 1922 Scarrone escrevera três cartas abertas contra o fascismo, deplorando as violências de seus militantes armados que impediram em muitas localidades italianas as celebrações da festa do 1º de maio daquele ano e lamentando a censura postal dirigida à sua correspondência com parentes. Não é possível saber a quem elas fossem endereçadas: já a carta aberta do começo de 1923 era dirigida para a imprensa da colônia italiana no Brasil, que se estava se mostrando descaradamente partidária de Mussolini. Nela, Giuseppe acusava os jornais da colônia italiana de ter-se jogado aos pés do novo dono do país visando gratificações, enquanto ele, em ocasião da chegada ao governo do fascismo, resolvera se abster de uma condenação imediata, quase concedendo um ato de confiança ao novo executivo: “Quando um partido, mesmo formado pelos mais baixos aventureiros e usando dos meios mais desprezíveis, chega ao governo, é prudente aguardar seus primeiros atos e suas primeiras manifestações, antes de emitir um juízo”, comentará em sua publicação de 28. Continuando, contudo, atitudes violentas e ilegalidades em todo o país, com a cobertura de Mussolini, Scarrone resolveu publicar seu primeiro opúsculo: Dopo sei lettere aperte sul fascismo (além das quatro acima, ele devia ter redigido mais duas, mas não sabemos para quem). Era o dia 10 de abril de 1923. Deste primeiro livrinho de Scarrone não se conservaram exemplares, mas, com ele, o empresário do vidro começava uma intensa 31 SCARRONE, Giuseppe. Dopo 6 anni di governo fascista in Italia. Rio de Janeiro, 1928, p. 5 ss. In Arquivo da Fundação Feltrinelli em Milão. 81 ação de denúncia das mentiras e dos crimes do fascismo, junto com o desmascaramento da ação pró-regime dos órgãos diplomáticos e da imprensa italiana no Brasil, através de muitos outros opúsculos e panfletos que ele mesmo mandava imprimir e difundia, tanto deste como do outro lado do Atlântico, além de varias cartas, abertas ou não, que continuou enviando para altos expoentes do governo na Itália e para o próprio Rei.32 Ao todo, segundo as palavras do próprio Scarrone, foram 26 opúsculos e folhetos e dezenas de cartas, todos em italiano, sem contar os inúmeros livretos com catálogo produzidos para divulgar o trabalho de sua fábrica. Um antifascismo expresso e alimentado principalmente desta forma, com publicações das quais arcava todos os custos, e que ele difundia na colônia italiana no Rio e provavelmente também em São Paulo, por vezes contando com a colaboração de ambientes e expoentes do antifascismo. Um antifascismo que se manifesta desde os inicios do advento do fascismo na Itália: sem dúvida alguma, nisso, Scarrone foi um autêntico precursor. Se a emigração dele não se devia a uma experiência direta de violências e ameaças, como será para Battistelli e para Garavini; se seu conhecimento da pesada mão do fascismo era indireto; se milhares de quilômetros o separavam das ações das milícias de camisa preta, isso não significou nele uma menor intensidade na batalha antifascista. Pelo que foi possível descobrir através da documentação encontrada em arquivos italianos e brasileiros, indício de um raio de difusão dos impressos bastante amplo, o ritmo das publicações era de ao menos três por ano, aproveitando às vezes de datas significativas, para o fascismo (como 28 de outubro, aniversário da marcha sobre Roma, considerada pelo regime, como o marco inicial de sua afirmação na Itália) ou para o antifascismo (como l0 de junho, aniversário do assassinato de Matteotti33). Isto de 1923, data do primeiro escrito, a 1928. O ano de 1929 contou excepcionalmente com quatro opúsculos. A partir de 1930, o ritmo decresceu, passando a um ou dois por ano. Em 1935, Scarrone se despedia da política ativa, mas continuará nos anos seguintes a publicar sobre sua fábrica. Haverá modo de se investigar a respeito desse encerramento bastante abrupto. Por enquanto, podemos acompanhar de forma unitária o empenho dos 32 Houve, por exemplo, já em 1923, uma carta aberta de Giuseppe ao próprio Mussolini, pedindo conta do boicote imposto a suas correspondências. Várias missivas, enviadas para parentes ou firmas comerciais sem receber resposta, o levaram a escrever para o chefe do governo italiano, a 20 de setembro daquele ano, perguntando: “Esse sistema de governo, esse terror, essas infâmias postais haverão ainda de continuar?”. 33 Cf. nota 51 da primeira parte. 82 primeiros tempos, até 1926, ano marcado por uma condenação de Scarrone, infligida por um tribunal italiano. O segundo opúsculo, que é o primeiro conservado nos arquivos, é também de 192334. Depois da fotografia dele, Scarrone se dirigia ao leitor, explicando as razões da publicação: Jornais e jornalistas da Colônia italiana no Brasil só sabem gritar com toda força de seus pulmões os progressos do governo fascista, a grande energia de seu Presidente Benito Mussolini [...] Uma força irresistível me faz correr para meu arquivo familiar, prelevar e imprimir, às minhas custas, uma pequena coletânea dos delitos que ficaram impunes porque governo fascista e rei declararam que foram cometidos no interesse da...pátria!!! Objetivo deste meu modesto opúsculo é demonstrar aos honestos habitantes do Brasil que não é o caso de se entusiasmar por aquilo que gritam estes jornalistas de além-mar, com a pança cheia de Pátria!35 E acrescentava duas paginas depois: “Para que, aqui também, a história não fique ignorando aquilo que o Fanfulla e todos os outros jornais, em língua italiana, da colônia evitam publicar, com este presente [opúsculo] intervenho para remediar, a fim de que a história tome nota”36. A data de 1 de Novembro de 1923 selava o breve texto de abertura, posto como introdução a uma coletânea de artigos de jornais italianos, principalmente do Avanti!, que documentavam episódios de violência e crimes protagonizados por fascistas na Itália. O livreto, de 34 páginas, trazia no final a carta de protesto para Mussolini lembrada acima. Expressões insufladas de ênfase retorica, erros gramaticais, frases truncadas ou sintaticamente incorretas marcavam o texto, como marcarão praticamente todos os sucessivos, com ressalva de alguns ou de partes de alguns, que assinalaremos, nos quais é provável a intervenção de outras autorias ou de uma edição posterior. Em parte, certas imprecisões podem ser atribuídas à passagem do original, provavelmente manuscrito, e quase sempre em italiano, para o texto impresso na tipografia, com todos os problemas ligados à interpretação da letra ou do idioma estrangeiro. Scarrone, contudo, em várias ocasiões, reconheceu suas dificuldades com a norma culta, justificando-as com a ausência, em sua infância e adolescência, de estudos regulares. 34 SCARRONE, Giuseppe. Dopo un anno di governo fascista. Rio de Janeiro, 1923. O opúsculo foi impresso na Papelaria Confiança, de Alberto Silvares e C., Rua dos Andradas, 71. 35 Ibidem, p. 4. 36 Ibidem, p.7. 83 Mas qual era a imprensa da colônia italiana em conflito com a qual Scarrone se posicionava?37 O diário paulistano Fanfulla é, como se viu, o que ele atacava diretamente: se tratava, com efeito, do mais representativo periódico em língua italiana, com certa difusão também fora de São Paulo, e acabaria sendo também o mais duradouro, pois, fundado em 1893, continuou as publicações até a década de 1960. Sua passagem de folha independente a partidário do fascismo aconteceu já em 1923, imitado, nesta conversão ao regime do Duce, também pelo Piccolo, outro importante jornal paulistano, até 22 antifascista, e rapidamente transformado em órgão do fascio, isto é, a seção do Pnf, da cidade. Claramente havia toda uma imprensa crítica diante do fascismo, particularmente as folhas anarquistas, mas de limitada difusão e dirigidas a um circulo seleto de leitores. Quanto ao Rio de Janeiro, pouquíssimos títulos existiam no âmbito do mundo da comunidade italiana, e todos alinhados com Mussolini (particularmente L’Italico, com nome mais tarde mudado em L’Italiano, órgão do fascio local), sendo esporádicas e sem muita continuidade as tentativas de dar voz impressa à parte antifascista dela. Como se verá, em termos de periódicos, o instrumento principal do antifascismo no Brasil era representado pelo paulistano La Difesa, que alcançará em seu raio de difusão também outros Estados, incluindo a Capital Federal. Rebelião diante da injustiça experimentada em sua pele, com suas cartas censuradas e violadas, e vontade de desmistificação da ação do fascismo na Itália, positivamente descrita pelos órgãos da imprensa italiana no Brasil: por isso, em suma, Scarrone se lançava em sua empreitada publicística. Pode-se acompanhar ano apor ano a escalada desta ação de Giuseppe, partindo pelo ano de 1924. Neste ano, houve mais “cartas abertas”. A primeira foi dirigida no mês de junho para o comandante dos Carabinieri [Carabineiros] de Altare, sua cidade de adoção e de trabalho na Itália. No impresso, Scarrone pedia conta novamente, como já tinha feito no ano anterior em carta para 37 A respeito desse assunto, como de outros aspectos ligados à vida da colônia italiana no Brasil nestes anos, somos devedores do volume de Trento, sobretudo seu documentado capitulo sobre o período entre as duas guerras: TRENTO, Angelo. Do outro lado do Atlântico: um século de imigração italiana no Brasil, op. cit., p. 265-402. Ponto de referência fundamental são também os numerosos artigos e volumes de Bertonha sobre o tema, particularmente o estudo da realidade antifascista paulistana e o sucessivo trabalho sobre fascismo e imigração italiana: BERTONHA, Joao Fabio. Sob a sombra de Mussolini: os italianos de São Paulo e a luta contra o fascismo, 1919-1945. São Paulo: FAPESP / Anablume, 1999 e BERTONHA, Joao Fabio. O fascismo e os imigrantes italianos no Brasil. Porto Alegre: EDIPUCRS, 2001. À produção de Trento e Bertonha se reenvia para um quadro mais completo da vida da coletividade italiana no Brasil durante o período fascista, análise que foge aos propósitos do presente trabalho. 84 Mussolini, da violação de sua correspondência para seus parentes, “que não me escrevem mais por medo que o senhor abra as cartas e envie os bandidos com o cassetete”38. E anunciava a próxima publicação de novo opúsculo, que seria enviado também para o comandante, com pedido que seja deixado livre de circular, sem censura por parte do correio posto sob a jurisdição dele. Na realidade, foram mais dois os impressos saídos das mãos de Scarrone que circularam naquele ano. O primeiro era um verdadeiro livrinho, de 52 paginas, com o significativo titulo de “La Libertá”39, que se configurava como uma coletânea de vários textos, quase como capítulos de uma obra unitária, redigidos pelo autor durante o mês de abril e de maio (no final de cada um havia data e local de sua escrita, geralmente um bairro carioca, como Cascadura, Engenho de Dentro, Piedade, Meyer, Catete, ou até Petrópolis). Começando com mais uma queixa pela forma com a qual sua correspondência dirigida à Itália era vigiada, a ponto de seus familiares terem que abrila na presença dos Carabinieri, Scarrone tocava vários assuntos, quase um cahier de doléances: desde as vexações sofridas nos tempos de sua juventude por parte dos poderosos, à sua atual impossibilidade de voltar para a pátria, devido à sua atitude de denúncia, de uma panorâmica da mais recente história das lutas sociais na Itália, às afirmações sobre o significativo resultado obtido pelas esquerdas nas eleições daquele ano para o Parlamento (“Um milhão e cento e dezenove mil e cento oitenta e oito votos [entre socialistas e comunistas] representam uma potência alertadora, que demonstra que, quando as malversações do governo fascista terminarem, os socialistas poderiam e deveriam ser os sucessores do atual governo”).40 No contesto de uma passagem em que declarava a necessidade para os “produtores”, leia-se trabalhadores do campo e da indústria, de chegar à “propriedade coletiva”, mesmo que fosse incialmente através da “comparticipação na divisão dos lucros”, Scarrone formulava uma definição de fascismo (“último esforço da burguesia”), claramente ligada àquela leitura do fenômeno própria do mundo da esquerda marxista, socialista e comunista, como vimos na primeira parte de nosso trabalho. “Fui e sou socialista de convicção própria, nunca tendo tido tempo para aprofundar-me na escola dos meus predecessores e contemporâneos [...]; agora me encontro completamente 38 ACS/CPC, b. 4675, f. 27661 (“Scarrone, Giuseppe”), SCARRONE, Giuseppe. Lettera Aperta al Signor Comandante la Stazione dei R.R. Carabinieri di Altare (Genova), Rio de Janeiro, 15.6.1924. 39 ACS/Biblioteca, Misc. C, n. 1072, SCARRONE, Giuseppe. La Libertá. Rio de Janeiro, 1924. 40 Ibid., p. 35. 85 isolado no mundo”41 – queixava-se nas primeiras páginas, mas sua análise histórica do fascismo se encontrava alinhada com a daquele universo socialista que sempre foi seu horizonte de referência. O outro opúsculo do mesmo ano, publicado em comemoração ao 2º ano do governo de Mussolini42, trazia em sua parte central mais uma carta ao comandante dos Carabinieri de Altare, ainda lamentando o constrangimento provocado nos parentes ao receber suas noticias epistolares, e já fazia referência ao assassinato de Matteotti, acontecido em junho. A chegada à Itália destas publicações começou a despertar certo alarme nas forças de polícia e no governo: 87 cópias do opúsculo, expedidas a pessoas de Altare e arredores, foram sequestradas pela polícia e o Ministério do Interior foi recebendo informes das autoridades locais a respeito de seu autor.43 O ano de 1925 registrou uma intensificação das publicações do empresário socialista. O regime de Mussolini, superada a crise gerada pelo caso Matteotti e derrotado o movimento desencadeado pelas oposições com a secessão do Aventino, ia se configurando como uma autentica ditadura. A este respeito, como já evidenciado na primeira parte do presente trabalho, quando se discutiu a respeito dos marcos cronológicos para definir e catalogar a produção impressa do antifascismo italiano, não concordamos com quem considera “produção do antifascismo" somente os escritos que apareceram após o dia 5 de novembro de 1926, data da lei fascista que suprime partidos, associações e organizações de oposição. No exterior, como no caso de Scarrone (e também, como se verá, do semanário La Difesa), há produção impressa antes deste marco a quo que merece ser autenticamente caracterizada como parte da propaganda e da publicística antifascista. Desse ano de 1925, se conservam pelo menos três impressos de Scarrone. Um primeiro, coincidente com o aniversario da morte de Matteotti44, celebrava o nascimento, no dia 1º de maio, do Partido Socialista Brasileiro45, e a vontade de seus membros fundadores 41 Ibid., p. 6. SCARRONE, Giuseppe. Commemorando il 2º Anno di Governo Fascista, Rio de Janeiro, 1924. 43 Cf. ACS/CPC, b. 4675, f. 27661 (“Scarrone, Giuseppe”), Informes da Prefettura de Genova para o Ministério do Interior, Genova, 6.8.1924 e 3.12.1924. 44 SCARRONE, Giuseppe. Onorevole Giacomo Matteotti: nel 1ª anniversario del suo assassínio, op. cit. 45 O jornal O Estado de São Paulo de 1º de Maio publicava o manifesto de criação do partido, redigido pelo advogado Evaristo de Moraes, um dos primeiros defensores dos ideais operários, e que veremos em várias ocasiões intimo de Scarrone. Assinado por jornalistas, operários, engenheiros, professores, advogados e comerciantes, o documento de fundação continha várias propostas, como instituição do 42 86 de homenagear o deputado socialista italiano assassinado. Giuseppe, nas primeiras páginas, apresentava as peças documentais de uma batalha de impressos travada entre ele a alguns periódicos da colônia italiana, como L’Italico e La Patria degli Italiani, partidários do fascismo, a respeito da decisão dos socialistas brasileiros. O resto do opúsculo contem elogios do socialismo, referências ao pensamento de Jaurès, considerações sobre o movimento cooperativista e, como se viu acima, esperanças para poder realizar em breve um experimento de cooperação também em sua fábrica, com premio sobre os lucros para os operários.46 Os outros dois impressos do empresário47 repetiam o esquema dos anteriores, isto é, coletâneas de pequenos textos, a maioria assinados no final por ele mesmo, e que podemos imaginar redigidos pelo autor à noite, voltando de suas andanças pela cidade em busca de clientes ou credores, ou em alguma pausa durante as mesmas. Os assuntos sempre ligados ao fascismo na Itália, sua tomada do poder, a vida de Mussolini antes do partido, o programa – depois descumprido - dos Fasci Italiani di Combattimento, a situação econômica atual e a anterior a 1922, as cumplicidades de monarquia e Santa Sé, as ambíguas figuras dos principais hierarcas do regime. Em vários textos seu pensamento é original, sua reflexão própria, sua “indignação” completamente autoral. Assim, na epígrafe de Note, Memorie e Commenti, Scarrone dizia: Constatar fatos nunca desmentidos, criticar sistemas e leis que nunca imaginaríamos adotados na Itália: é um dever mais que um direito. Dizer francamente que assim não dá, e se deve mudar: não é difamar, e sim criticar. Saiba o senhor Mussolini que: em nenhum código, em nenhum dicionário, verdade é sinônimo de difamação. Suprimir a vida alheia para se impor: é ser assassinos. [grifos do autor]48 Uma declaração de intenções e uma denúncia precisa. E ainda a respeito da proposta de lei que ia atingir os italianos no exterior que fossem desenvolver propaganda voto secreto e obrigatório, participação política por classes e o direito de voto a soldados, marinheiros e estrangeiros residentes no Brasil; extinção do Senado; reconhecimento da República dos Soviets e supressão da embaixada brasileira no Vaticano; instrução primária e profissionalização gratuitas; instituição do salário mínimo; liberdade de culto religioso; monopolização pelo Estado de todos os serviços de transporte, da energia elétrica, das minas e semelhantes; estímulo às organizações sindicalistas e proteção a qualquer tipo de cooperativa. 46 Cf. nota 22 47 Os dois opúsculos são SCARRONE, Giuseppe. Note, Memorie e Commenti sul Governo fascista in Italia, Rio de Janeiro, 1925, e SCARRONE, Giuseppe. Il Terzo anno di Governo Fascista in Italia: mentre hanno paura di un morto, Rio de Janeiro, 1925. 48 SCARRONE, Giuseppe. Note, Memorie e Commenti sul Governo fascista in Italia, op. cit., p.1. 87 antifascista, ameaçando-os com a perda da cidadania, o confisco de bens e a prisão ao retornar à Itália, ele comentava: Perder a cidadania italiana? Pouco nos incomoda: somos italianos e ninguém pode tirar isso de nós [...] Confisco de bens? Quem vai para o exterior em busca de fortuna dificilmente deixa riquezas na pátria, e nós não possuímos nem desejamos possuir. Prisão imediata em caso de retorno para a Itália? Enquanto continuar o governo da violência, nós não voltaremos, não se preocupem com isso.49 Em vários outros pontos, o autor se espelhava, apoiando-se, nas análises e juízos análogos apresentados por La Difesa naqueles anos, e também nos sucessivos. De certa forma compreensível, seja por aquele ser o principal instrumento do antifascismo da coletividade italiana no Brasil, seja pela linha de socialismo moderado que, sob a direção de seu diretor, o socialista Antonio Piccarolo50, o periódico propunha, e que se aproximava da visão politica de Giuseppe. Mas muitos dos argumentos apresentados eram comuns a boa parte do fuoruscitismo, e o serão também no futuro, reforçados, aliás, quando, com o surgimento, em 1927, da Concentrazione di Azione Antifascista, o discurso do antifascismo encontrará, de certa forma, seu ponto de confrontação e referência. É possível então afirmar que Scarrone, com seus escritos, funcionava como repetidor de uma posição politica, difusor de uma leitura dos fatos e de uma interpretação do fenômeno fascista presente no âmbito mais largo da coletividade italiana antifascista. Colocava-se, em outras palavras, como instrumento de divulgação em termos panfletários de um discurso antifascista anterior a ele, veiculado pelos instrumentos à sua disposição, e com o qual articulava suas pessoais considerações e reflexões, estas ligadas principalmente à experiência sindical e de trabalho em sua pátria. A difusão e circulação dos impressos, na Itália, apesar da censura e do sequestro do material, e no Brasil, no âmbito da coletividade italiana, sobretudo do Rio e São Paulo, são difíceis de serem avaliadas em termos quantitativos, assim como a efetiva influência que possam ter produzido. 49 Ibidem, p. 8-9. Antonio Piccarolo nasceu na Itália em 1863, onde foi advogado e professor, e participou da fundação do Partido Socialista Italiano. Emigrou para o Brasil em 1904, para dirigir o Avanti!, sempre mantendo-se fiel a uma linha reformista e moderada. Sobre sua figura e sua atuação em São Paulo, ver BERTONHA, João Fabio. Sob a sombra de Mussolini: os italianos de São Paulo e a luta contra o fascismo, 1919-1945, op. cit. e HECKER, Alexandre. Um Socialismo possível: a atuação de Antonio Piccarolo em São Paulo. São Paulo: T.A. Queiroz, 1988. 50 88 Contudo, numa comparação um tanto arriscada, mas que não fica totalmente inverossímil, acreditamos que os opúsculos de Scarrone podem ser aproximados aos panfletos e escritos do mundo da subliteratura pré-Revolução Francesa, estudados por Robert Darnton51. Assim como aqueles circuitos underground do século XVIII atingiam boa parte de seus conteúdos dos grandes textos da elite intelectual do iluminismo francês, ou plagiando-os ou repetindo temas e motivos, ou até distorcendo-os, mas frequentemente a eles remetendo, Scarrone, e outros que desenvolveram aquele tipo de publicística, facilitaram a divulgação de conteúdos da luta antifascista, e de sua motivações, atingindo da fonte do pensamento politicamente mais elaborado e esmiuçando-o. Segundo Darnton, foi no ódio e na paixão daqueles subliteratos que se articulou o extremismo revolucionário, mais de que nas refinadas abstrações da elite cultural. Se não podemos segui-lo nesta afirmação quanto à influência dos panfletos de Scarrone e outros como ele sobre os resultados concretos da luta antifascista, pode-se contudo dizer que foi também de homens como ele, um dos muitos “desaparecidos nos escaninhos inescrutáveis da historia”52, e de seus opúsculos, que se alimentou a resistência ao fascismo. Polícia e governo na Itália continuavam, com efeito, a manter vigilância sobre Scarrone e seus opúsculos, vigilância reforçada pelo fato que o empresário do vidro chegou também a enviar cartas para altos expoentes do regime e para o próprio Rei Vitor Emanuel III. Em julho de 1925, Scarrone endereçava ao Ministro do Interior, Luigi Federzoni, cópia de uma carta dirigida ao soberano, na qual afirmava: Até quando V.M. assina em baixo o que deliberaram as Câmaras, as prefeituras, as províncias, com administrações nomeadas com o cassetete na mão, impedindo aos adversários de votar contra, V.M. está agindo segundo a lei constitucional, mas quando oferece hospitalidade ao Presidente dos assassinos de Matteotti! [...] ainda uma luz eu vejo: V.M. aceitar um dia a afirmação de seu avô, ‘Esta [lei] eu não vou assinar!’.53 As autoridades diplomáticas do Rio de Janeiro foram acionadas a fim de que Scarrone recebesse uma forte advertência e fosse proibido de continuar enviando cartas deste 51 Cf. DARNTON, Robert. Boemia literária e Revolução: o submundo das Letras no Antigo Regime. São Paulo: Companhia das Letras, 1987. 52 Ibidem, p. 134. 53 ACS/CPC, b. 4675, f. 27661 (“Scarrone, Giuseppe”), carta de Giuseppe Scarrone para Luigi Federzoni, Ministro do Interior, Rio de Janeiro, 17.7.1925. 89 tipo, se fosse o caso pedindo a intervenção também da policia local.54 Antes da intervenção da embaixada em 1926, contudo, há o registro de mais uma carta, que Scarrone escreveu, no final de 25 para o então secretario do Pnf, Farinacci, em resposta a uma anterior missiva do mesmo, que lançava contra o socialista uma avalanche de impropérios e ameaças: Giuseppe juntou as duas num só folheto que chegou a imprimir e difundir.55 Mas qual era a realidade do antifascismo da colônia italiana daqueles primeiros anos? Com quem Scarrone se encontrava e dialogava? Em que ambiente encontrava alimento para suas polêmicas publicações? 2.6. Primeiros passos do antifascismo na colônia Como se viu, os impressos de Scarrone debatiam posições e afirmações de órgãos de imprensa da coletividade italiana no Brasil, do Rio e de São Paulo, e manifestavam um pensamento e uma postura que deviam encontrar respaldo em posicionamentos e argumentos presentes num ambiente declaradamente antifascista. Difícil é expressar em termos numéricos esta realidade de oposição a Mussolini e seu projeto de ocupação do poder, ainda mais nestes anos em que o antifascismo italiano estava ainda se articulando e criando instrumentos. Trento critica números apresentados por expoentes do próprio antifascismo na época, que falavam de uma colônia italiana em sua grande maioria antifascista, ou estimavam em 10 mil o total de seus elementos 56. Mais provavelmente, temos que falar de algumas dezenas, ou centenas, concentrados nas grandes cidades, mais em São Paulo do que no Rio, devido à mais numerosa coletividade italiana presente. Relativamente poucos os mais ativos, mais numerosos os simpatizantes, ou os participantes de assembleias e eventos promovidos pelas varias associações, como se verá. Uma realidade na qual “a nova e a velha emigração praticamente se equivaliam, e também se encontravam esporadicamente opositores ativos nascidos no Brasil de pais italianos”57. 54 ACS/CPC, b. 4675, f. 27661 (“Scarrone, Giuseppe”), Reservada do Ministério do Interior para o Ministério das Relações Exteriores, Roma, 10.8.1925. 55 ACS/CPC, b. 4675, f. 27661 (“Scarrone, Giuseppe”), SCARRONE, Giuseppe, Saggio di educazione politica di chi oggi parla in nome dell’Italia. Rio de Janeiro, 25.12.1925. 56 Cf. TRENTO, Angelo. Do outro lado do Atlântico: um século de imigração italiana no Brasil, op. cit., p. 346-347. 57 Ibid., p. 347. 90 É possível que no contexto de uma coletividade italiana no Brasil calculável em centenas de milhares de indivíduos, e algumas dezenas de milhares na Capital Federal, a grande maioria se mantivesse numa posição de indiferença, gradualmente convertendose a uma difusa simpatia pelo fascismo, sobretudo devido ao prestigio que a politica internacional do regime trazia para a Itália, e, de consequência, para as comunidades italianas no exterior. Foi sobretudo no conjunto desta grande maioria, que não manifestava abertamente ou de forma empenhada sua simpatia ou sua oposição ao fascismo, que, com passar dos anos, se consolidou uma posição de apoio a Mussolini e seu governo, embora, muitas vezes, mais como manifestação de um renovado sentimento de orgulho nacional, do que como identificação com os ideais do partido. Interessante, a esse respeito, é um editorial de Il Pasquino Colonial, semanário da colônia paulistana, de junho de 1927. Comentando um discurso de Mussolini, no qual o Duce declarava haver lugar também para “os a-fascistas, desde que honestos e exemplares”, o jornal elogiava as palavras do líder e declarava o valor da “teoria do afascismo, particularmente para os italianos no exterior, teoria para a qual sempre lutamos”. Partindo da convicção que não são todos que podem ou devem fazer politica, afirmava que “o italiano que emigrou, não está no exterior não para fazer politica e sim para trabalhar e melhorar suas condições financeiras, com a obrigação moral de se conservar um bom patriota”. E acrescentava, descartando as posições radicais, mas de fato fazendo o jogo do regime mussoliniano: Ser militantes em campo fascista é perigoso e inútil: nós vimos aqui, no Rio, e nas maiores cidades onde se concentram os italianos, como Buenos Aires ou Nova Iorque, com quanta desconfiança são vistos nossos compatriotas pelos nacionais, e quantas discórdias e lutas estéreis e também violentas atravessem o caminho de quem se filia ao partido. Ser militante antifascista é ainda mais perigoso e inútil, porque, além de travar batalhas sem realização alguma e sem objetivos práticos, o único resultado é o de exacerbar as mentes dos indiferentes, e de atribuir ao nome dos italianos uma áurea, pouco agradável, de pessoas desordeiras e nocivas.58 Uma posição deste tipo, com o passar dos anos, iria mostrar toda sua ambiguidade, pois, apontando como nefasta a propaganda e a atuação dos antifascistas, acabará fazendo pender cada vez mais do lado do fascismo a balança do favor popular no âmbito da colônia italiana, particularmente a partir do começo da década de 1930, período de grande popularidade do regime, na pátria e no exterior. Os a-fascistas, em suma, iriam 58 “Siamo d’accordo com Mussolini”. Il Pasquino Colonial, São Paulo, 4.06.1927, p. 3. 91 se converter mais facilmente em fascistas, embora não necessariamente militantes, do que em antifascistas. Primeiro e mais importante instrumento do antifascismo italiano no Brasil, como foi referido acima, foi o periódico La Difesa.59 Começando suas publicações em abril de 1923, o jornal, redigido e impresso em São Paulo, teve periodicidade variada, mas principalmente semanal (em certos momentos saindo duas vezes por semana), e no final de sua parábola, entre dezembro de 1931 e abril de 32, se transformou em diário, mudando seu nome para L’Italia. De maio de 1932 ao seu fim, em março de 1934, voltou à periodicidade semanal, e no ultimo semestre, também o antigo nome de La Difesa. Vários diretores se sucederam, mas aqueles aos quais se deve principalmente sua linha editorial foram nos primeiros anos o italiano Antonio Piccarolo, socialista moderado, e a partir de finais de 1926, o ex-deputado também socialista Francesco Frola, que do exilio na França chegara ao Brasil para assumir a responsabilidade do jornal e de certa forma de todo o movimento antifascista.60 Não cabe aqui o relato das vicissitudes atravessadas pelo periódico e, de consequência, pelo antifascismo paulistano, na passagem de responsabilidade do primeiro para o segundo, e na condução deste último, que acabou provocando dissensões e divisões no âmbito das fileiras antifascistas. Baste aqui assinalar como a saída de Frola do jornal abriu espaço para a volta de Piccarolo, desta vez em conjunto com Nicola Cilla e Mario Mariani, que se alternaram na direção, nos últimos meses assumida por Bixio Picciotti. Embora produzido em São Paulo, o jornal tinha certa difusão também no Rio de Janeiro, sobretudo através de assinaturas, além da venda nas bancas. Scarrone foi um dos leitores mais fieis e, mais tarde, também assinante: particularmente a partir de finais de 1926, quando nas colunas de classificados começaram a aparecer os anúncios de sua Fábrica Nacional de Vidros, alguns seus breves artigos, além do registro de sua participação em várias subscrições e matérias sobre seus polêmicos opúsculos. 59 Fontes importantes de informações sobre La Difesa em TRENTO, Angelo. Do outro lado do Atlântico: um século de imigração italiana no Brasil, op. cit, p. 367-370, e BERTONHA, João Fábio. Sob a sombra de Mussolini: os italianos de São Paulo e a luta contra o fascismo, 1919-1945, op. cit., passim. 60 Sobre Frola, sua chegada ao Brasil e sua atuação no campo do antifascismo ver TRENTO, Angelo. Do outro lado do Atlântico: um século de imigração italiana no Brasil, op. cit, passim, e BERTONHA, João Fábio. Sob a sombra de Mussolini: os italianos de São Paulo e a luta contra o fascismo, 1919-1945, op. cit., passim, e também as recordações do protagonista, em FROLA, Francisco. Recuerdos de un antifascista, 1925-1938. Cidade do México: Editorial Mexico Nuevo, 1939. 92 Se Giuseppe, afinal, tinha no paulistano La Difesa um instrumento semanal impresso onde atingir materiais e temas para suas batalhas, qual era a realidade do antifascismo no Capital Federal, sua consistência e seus expoentes principais? Os documentos oferecem poucos elementos para uma tentativa de reconstrução do ambiente do antifascismo carioca. Um artigo de La Difesa em finais de 1924 falava de uma colônia na qual os fascistas se encontravam cada vez mais em posições de recuo, após o clamor suscitado pelo caso Matteotti, mesmo buscando uma presença mais acentuada nas sociedades italianas da cidade, e anunciava a criação no Rio de Janeiro daquela que era a primeira associação antifascista no Brasil: a Unione Democratica Italiana, tendo como dirigentes Giovanni Scala, Giovanni Infante, Antonio Corrado Limongi, Armando De Gasperis e Eugenio D’Alessandro.61 Não há muitos registros da atividade dessa sociedade antifascista. Alguns meses depois, um artigo em La Difesa62 reclamava do imobilismo dela, condenada a uma vida de espera diante de iniciativas da parte fascista, e será necessário aguardar até dezembro de 1926 para ver o surgimento de outra associação, a Lega dei Diritti dell’Uomo (Lidu), mais compromissada e ativa. Mas fica o registro dela como primeira realidade associativa antifascista no Brasil. Entre os fundadores da Unione Democratica, estavam alguns dos mais ativos antifascistas daqueles anos. As noticias a respeito de Eugenio D’Alessandro são quase inexistentes, a não ser um registro segundo o qual cinco anos depois ele seria um dos membros da Lega Antifascista na Capital Federal63, ao passo que sobre o romano Armando De Gasperis já possuímos mais informações64. Chegado ao Rio de Janeiro naquele mesmo ano de 1924, com 24 anos de idade, foi funcionário de vários hotéis, como o Glória e o Copacabana Palace, até 1928, quando se mudou para Buenos Aires, trabalhando em bares de clubes locais. Antifascista e republicano, como o caracterizam os informes da policia italiana, nos anos cariocas participou de algumas subscrições para o periódico antifascista e chegou a escrever um breve artigo em uma ocasião, mas quanto a sua atuação no Copacabana há registros de revolta e descontentamento por parte dos funcionários subordinados a ele. Talvez por isso a decisão de se mudar para a Argentina, onde mais 61 Cf. “Cronaca di Rio de Janeiro”. La Difesa, ano III, n. 1, 25.12.1924, p. 2-3. Apesar de terem sido publicados já 29 exemplares do jornal desde sua criação, a numeração dele recomeçou com este número, para sinalizar também um recomeço após uma suspensão de seis meses. 62 Cf. “Cronaca di Rio de Janeiro”. La Difesa, ano III, n.8, 15.2.1925, p. 3. 63 Cf. Diário Carioca, 22.9.1929, p.3. 64 ACS/CPC b. 1657, f. 10286 (“De Gasperis, Armando”). 93 tarde parece ter-se aproximado de Giustizia e Libertá, embora sem muita convicção, se o próprio Battistelli, numa carta a Rosselli de 1933, comentará: “escreverei para De Gasperis, estimulando-o para que acorde”.65A morte o surpreenderá em terra portenha ainda em 1936. Do advogado Antonio Corrado Limongi, emigrado para o Brasil em 1913, quando tinha 34 anos, se falará mais amplamente na terceira parte, sendo sua atuação antifascista mais destacada a partir de finais da década de 1920, quando, com Battistelli e outros, protagonizará batalhas para não ceder ao grupo partidário do fascismo a maioria da Beneficienza Italiana. Os outros dois participantes da fundação da Unione Democratica, pelo contrário, Scala e Infante, eram os verdadeiros articuladores do movimento antifascista carioca, por enquanto fundamentalmente italiano, nestes primeiros anos. O socialista Giovanni Scala fazia parte também, como Scarrone, da velha emigração, dos anos anteriores ao fascismo. Diferentemente do empresário do vidro, chegara ao Brasil ainda pequeno, com 9 anos, em 1897, oriundo da região de Salerno, perto de Nápoles. Mas, como Scarrone, sua fé politica era o socialismo, conhecido e aprofundado no Brasil, provavelmente em São Paulo, onde passou anos. Pelos dizeres oficiais carimbados ou acrescentados a mão no seu prontuário66, Scala era “perigoso”, “temível” e “a ser detido”: sinal que era considerado uma real ameaça para o regime no âmbito da comunidade italiana na Capital Federal. Com efeito, as autoridades da embaixada italiana e as forças de policia afirmavam que era “o verdadeiro deus ex machina de todo o movimento antifascista do Rio [...] Frola não move um passo no Rio sem antes consultar Scala” 67. De origens humildes, caixeiro viajante e representante comercial de firmas farmacêuticas e alimentares, Scala era o responsável carioca pelas assinaturas a La Difesa desde 1925, e o correspondente também: houve diversas matérias narrando os embates entre fascistas e antifascistas na Capital Federal, assinadas G.S., de provável autoria dele. Participou da fundação da Unione Democratica, mas também foi um dos dirigentes da Lidu desde seu inicio, em dezembro de 26, se tornando logo o vicepresidente, com Battistelli presidente. Quando da tumultuada chegada de Frola da 65 AGL, Fundo Carlo Rosselli, fasc. 1, sottofasc. 8, Carta de Libero Battistelli para Carlo Rosselli, Rio de Janeiro [1933] 66 ACS/CPC, b.4649, f.768, (“Scala, Giovanni”). 67 Ibidem, informe da Divisão Policia Politica, n.500/100967, 24.11.1927. 94 França para o Brasil, com sua fuga do navio atracado no porto do Rio68 e seu encontro com expoentes do mundo antifascista carioca, Scala estava na primeira linha: participou, discursando em nome da Lidu, do banquete oferecido ao recém-chegado e foi, com Battistelli, entre os que o acompanharam até Belo Horizonte numa viagem de propaganda.69 De novo junto com o mesmo Battistelli, em 1932 será encarregado de redigir os estatutos da Associazione Antifascista, recém-criada70. Em seu livro autobiográfico, Frola o apresentava como o chefe do movimento antifascista do Rio, atribuindo a esse fato seu afastamento do emprego junto ao Instituto Terapêutico Romano.71 Ainda destacado conferencista em eventos organizados pela Liga Anticlerical carioca72, Scala faleceu em novembro de 32. Uma sessão do Partido Democratico-Socialista em sua homenagem teve discursos de Battistelli, pela Liga Antifascista, de José Oiticica, pela Liga Anticlerical, e de representantes da Coligação Nacional pro Estado Leigo e de organizações maçônicas, organismos todos dos quais Scala fazia parte.73 Originário da mesma região de Scala, e quatro anos mais novo, era Giovanni Infante. Médico, emigrara para o Brasil em 1923. Segundo informações da Embaixada do Rio de 192774, Infante era um dos pouquíssimos intelectuais antifascistas da Capital Federal, e a Unione Democratica teria sido criada em 1924 na própria casa dele. A hipótese é plenamente plausível: com efeito, a Unione, primeiro agrupamento antifascista no Brasil, como foi lembrado acima, devia se inspirar em análogo surgido na Itália um mês antes, em novembro de 1924, a Unione Nazionale delle forze liberali e democratiche (mais tarde mudando para Unione Democratica Nazionale), promovido pelo deputado liberal democrata Giovanni Amendola, em resposta ao assassinato de Matteotti e como forma de compactar as fileiras do antifascismo. Organização de duração efêmera, pois, como todas as outras da oposição, em breve será dissolvida pelas leis fascistíssimas, 68 Frola fora impedido de desembarcar em Santos, tendo seus documentos italianos perdido validade por ordem do governo de Mussolini. Tendo assim permanecido a bordo do navio, durante sua volta para a Europa, em ocasião de escala no porto do Rio, Frola conseguiu se evadir da vigilância e fugir da embarcação, tocando assim o solo brasileiro. 69 Cf. FROLA, Francisco. Recuerdos de un antifascista, 1925-1938, op. cit., p. 50. 70 ACS/CPC, b.4649, f.768, (“Scala, Giovanni”), Telespresso da embaixada italiana no Rio de Janeiro, n.310281.5421, 20.5.1932. 71 Cf. FROLA, Francisco. Recuerdos de un antifascista, 1925-1938, op. cit., p. 155. 72 Cf. “Na Liga Anti-clerical do Rio de Janeiro. Uma conferencia sobre as origens do fascismo”. Diario de Noticias, Rio de Janeiro, 29.3.1932. 73 Cf. “O Partido Democrático Socialista realizou hontem uma sessão ‘in memoriam’ de João Scala”. Diario de Noticias, Rio de Janeiro, 2.12.1932, p.3. 74 ACS/CPC, b.2633, f.767, (“Infante, Giovanni”), Informe Divisão Policia Politica 500/10967, 24.11.1927. 95 teve, contudo, certa influencia naquele momento difícil. Infante era da mesma região de Amendola, e, do Brasil, se correspondia com ele: em 1926, La Difesa publicava uma carta do deputado italiano para o médico emigrado, na qual ele respondia a uma anterior deste, poucas semanas antes de sua morte.75 Nas comunicações internas da policia italiana, Infante é declarado socialista, como Scala e como Frola. Em ocasião da chegada deste da França, Infante teve um papel de destaque, ajudando o ex-deputado em seus primeiros dias no Brasil. Mas, em seguida, além de algumas subscrições às quais aderiu em favor de La Difesa, e de uma participação registrada em assembleia da Lidu, sua presença no movimento antifascista da Capital foi se afunilando cada vez mais. Em 1935 regressava à Itália como representante de um instituto hospitalar italiano e no ano seguinte estava de volta ao Brasil. Uma sua entrevista, recém-chegado, a um jornal carioca76 registrava expressões de apoio ao regime de Mussolini, como era fácil prever pela liberdade de movimento da qual estava gozando. Seu retorno à Europa no final do mesmo ano foi pelo dirigível alemão Hindenburg, com destino Frankfurt,77 e o regresso ao Rio em 1937, pelo vapor Augustus. Entre 1938 e 40 mais duas viagens de ida e volta para a Europa, até que a guerra provavelmente o obrigará a permanecer de forma mais continuada no Brasil. Um documento do consulado do Rio avançava a hipótese de que “as frequentes viagens à Itália devem ter adormecido nele o espirito antifascista”. 78 Provavelmente esse mesmo espirito já adormecera antes das viagens, que se deviam, por sua própria realização, ao fato do Infante estar negociando com as autoridades governamentais sua volta às fileiras da situação. A uma conspícua doação para o Consulado italiano do Rio de Janeiro, Infante anexava, em outubro de 1940, uma carta na qual lamentava não poder tomar parte da guerra da Itália contra os inimigos, pois “na hora solene da Pátria, o dever me fez encontrar confinado neste longínquo país [...] sinto, contudo, toda a paixão e o orgulho da hora histórica que estamos vivendo. Ao nosso grande povo, renovado para nova ardente fé, ao nosso grande e invicto condottiere, criador do ressuscitado Império de Roma, vai toda minha devota 75 “Una lettera nobilíssima”. La Difesa, ano III, n.68, 18.4.1926, p. 2. Em julho de 1925, Amendola foi agredido por fascistas: morreria, em consequências das violências sofridas, alguns meses depois, em abril de 1926, em Cannes (França). 76 Diario de Noticias, Rio de Janeiro, 21.8.1936. 77 Ibid., 3.12.1936. 78 ACS/CPC, b.2633, f.767, (“Infante, Giovanni”), Telespresso do Consulado italiano no Rio de Janeiro, n.4199, 2.8.1939. 96 gratidão”.79 O cônsul transmitia estas palavras de Infante a Roma, pedindo que o mesmo fosse cancelado do fichário dos subversivos, o que ocorreu em seguida. Infante não foi o único caso de antifascistas que, com o passar do tempo e o fortalecimento do regime mussoliniano, abriram mão de seus antigos ideais e propósitos de luta, revendo sua posição diante do fascismo, voltando para as fileiras da ordem e abraçando de formas mais ou menos intensas a ideologia e as diretrizes fascistas. No âmbito da comunidade italiana na Capital Federal, levando em conta os antifascistas mais em vista e compromissados, o de Infante é um caso que se destaca, mas é possível que tenham ocorrido outros episódios. De qualquer forma, foi em contato com esse ambiente onde as figuras acima descritas se moviam que Scarrone, nos primeiros anos da vigência do fascismo, encontrou alimento para suas investidas “gráficas” contra Mussolini e seu regime. E foi numa cidade onde esse incipiente antifascismo se deparava com a vigilância e a ação do consulado e da própria embaixada, que Scarrone sofreu advertências e intervenção judicial. 2.7. 1926: processo e condenação Cartas desafiadoras para altas hierarquias do partido e do Estado, incluindo Mussolini e o próprio Rei. Opúsculos denunciando crimes e ilegalidades perpetradas pelo regime. A atividade publicística de Scarrone lhe mereceu em 1926 uma condenação pela justiça italiana. É possível acompanhar os passos do processo através do impresso que Giuseppe produziu, naquele mesmo ano, como o significativo titulo de “La mia difesa”.80 Endereçado ao Procurador de Genova, repartição em cuja jurisdição começou o processo contra ele, o livrinho narrava os eventos que levaram à condenação de Scarrone. A 8 de março de 1926, o Procurador acima pedia à Câmara dos Deputados autorização para abrir uma processo contra o empresário socialista, por crimes previstos nos artigos 4, 5, 79, 122 e 123 do código penal italiano. As acusações eram de vilipendio da própria Câmara e ofensas ao Rei, ao Exercito e à Milícia, delitos perpetrados através de 79 Ibid., Telespresso do Consulado italiano no Rio de Janeiro, n. 3708, 10.10.1940. SCARRONE, Giuseppe. La mia difesa avanti al Tribunale speciale che in Italia proibisce di parlare, all’estero impedisce la critica, privando dei beni e della cittadinanza italiana a chi ha il coraggio di criticare. Rio de Janeiro, 10.6.1926. 80 97 impressos sequestrados pela polícia no começo do ano81, e dirigidos a políticos italianos, cônsules estrangeiros com sede diplomática em Genova, além de sociedades e agremiações locais. Por sua vez, o próprio Ministro da Justiça, Alfredo Rocco, se dirigiu à Câmara, também pedindo autorização pelos mesmos motivos, e, em fins de março, Scarrone foi convocado perante o cônsul italiano no Rio de Janeiro. Aqui lhe foi notificada a abertura de processo contra ele, em virtude da Lei sobre os fuorusciti, n. 108, de 31 de Janeiro de 1926, e Giuseppe saiu do encontro com a autoridade diplomática italiana carregando na mão o verbal de notificação e cópia da própria Lei. A defesa de Scarrone era representada pelo opúsculo citado, no qual ele declarava substancialmente duas coisas: o desconhecimento por parte dele de crimes cometidos, tendo simplesmente publicado e enviado cartas abertas e impressos para relatar fatos, para noticiar acontecimentos, para apresentar situações, sempre em nome da verdade; e a recusa de ter alimentado ou difundido sentimento anti-italianos, porque em sua ação ele sempre foi movido pelo amor da pátria. E isso Giuseppe reafirmava, documentando em seguida, com breves noticias sobre cerca de trinta fatos de crônica acontecidos recentemente na Itália, o progressivo e sistemático cerceamento da liberdade no país o constante produzir-se de violências e ilegalidades por parte dos fascistas. O opúsculo foi enviado em várias cópias, como já acontecera com os anteriores e acontecerá com os sucessivos, para diferentes endereços na Itália: um informe da “Prefettura” (órgão territorial representando localmente o governo central) de Genova nos diz que os cinco exemplares sequestrados pela policia junto ao correio de Altare eram dirigidos ao próprio correio, à cooperativa de consumo, ao pároco da cidade, e a duas fábricas de vidro locais.82 Naquele ano de 1926, mesmo tendo recebido a notificação de que, na Itália, a máquina da justiça estava sendo acionada contra ele, Scarrone redigiu e publicou mais um impresso político, em ocasião do quarto aniversário da marcha sobre Roma.83 A epígrafe declarava sem rodeios o propósito do opúsculo: 81 Se tratava de dois opúsculos de 1925 (“Il terzo anno di governo fascista in Italia” e “Note, Memorie e Commenti...”). 82 Cf. ACS/CPC, b. 4675, f. 27661 (“Scarrone, Giuseppe”), Informe da Real Prefettura de Genova, 4.9.1926. 83 SCARRONE, Giuseppe, Inventario dei quattro anni di governo fascista in Italia. Rio de Janeiro, 28.10.1926. 98 Os renegados não somos nós, que, sem ajudas ocultas, honestamente lutamos para o progresso e a liberdade dos povos. Os renegados são vocês, fascistas, vocês que amparam quem assassina, tira a liberdade, humilhando adversários tímidos, com a vergonha da subministração do óleo de rícino, desde que possa subir sublime!84 E, comentando os quatro anos de governo de Mussolini, Scarrone chegava a declarar nas primeiras páginas que “o fascismo não passa de uma tempestade”, e que “a Itália italiana é incomensuravelmente mais bela, mais digna e mais vasta em seu conceito do que a Italiazinha mussoliniana ou farinacciana ou federzonica”. Um fenômeno passageiro, uma “tempestade” que desapareceria em breve: encontram-se aqui ecos de uma leitura do fascismo comum a amplos setores do mundo antifascista, sobretudo de origem não comunista, como foi apresentado na primeira parte. Seguiam uma série de breves textos comentando um ou outro aspecto do regime, perfazendo um total de 72 paginas: o mais volumoso dos opúsculos até então produzidos por Scarrone. Se todos os textos não assinados fossem de sua autoria, é difícil aqui dizer: é verdade que algumas páginas revelavam uma melhor frequentação da língua italiana do que costumavam apresentar os impressos anteriores, mas não parece plausível a interpretação oferecida pela embaixada italiana do Rio, que definia Scarrone um “semianalfabeta e ignorante [...], atrás do qual agem e do qual se servem alguns agitadores coloniais [...]: o senhor Giovanni Scala [...] e o doutor Giovanni Infante” 85 . Se é possível afirmar que o empresário socialista atingia temas e informações nos ambientes do antifascismo italiano da Capital Federal, nos quais Scala e Infante se destacavam, não há elementos para atribuir a estes a autoria de textos, ou transformar Scarrone num marionete movido por outros. O processo aberto contra Scarrone correu e produziu o resultado esperado pelos denunciantes: uma condenação à revelia à pena de dois anos, dois meses e 25 dias de prisão e 1400 liras italianas de multa, pelos crimes previstos pelos artigos 122 e 123 do código penal e pelo art.2 da Lei n. 315.86 A sentença, emitida dia 27 de novembro de 1926 pelo Tribunal de Justiça de Genova, 5ª seção, alcançava Giuseppe no Brasil, impedindo-lhe de realizar ou planejar um retorno definitivo à Itália, ou até somente uma simples viagem à sua terra natal, sendo a ordem de captura transmitida aos postos de fronteira do país. Tempo depois, Scarrone escreveria carta para o Ministro da Justiça, 84 Ibidem, p.1. ACS /CPC, b. 4675, f. 27661 (“Scarrone, Giuseppe”), telespresso Ministero Affari Esteri, 8.9.1927. 86 Ibid., Informe da Real Prefettura de Genova, 5.12.1926, e Informe da Policia para o Ministério do Exterior, Roma, 31.1.1927. 85 99 Alfredo Rocco, anexada a um opúsculo que documentava sua atividade empresarial no Rio de Janeiro, e nela lamentava ter recebido “de Vossa Excelência, por ter escrito ‘Justiça sem Graça e sem Justiça’, [...] uma condenação a dois anos e meio de reclusão, que deixo em memoria de seu novo código87, augurando que um manicômio criminal possa hospedar o rei, Mussolini e seus ministros [...] no fim do fascismo”.88 Assim, sem nenhum sinal de resipiscência, Scarrone continuava sua ação desafiadora de hierarquias do partido fascista e do governo. 2.8. Scarrone e La Difesa Talvez o estímulo tivesse vindo das circunstâncias ligadas ao processo contra ele ou talvez da chegada de Frola ao Brasil como responsável do jornal e da coordenação do movimento antifascista. O fato, de qualquer forma, é que Scarrone começou a se envolver mais estritamente com La Difesa, a partir da segunda metade de 1926. Houve ao menos três comentários sobre o caso dele no periódico, respectivamente em edições de abril, maio e julho. Além de noticiar o fato de seu processo, as matérias elogiavam Scarrone em sua atuação como empresário e como opositor do fascismo, e denunciavam a ação persecutória das autoridades diplomáticas italianas no Rio contra certos expoentes do grupo antifascista local.89 Assim, desde meados de 1926, Scarrone começava a contribuir financeiramente a La Difesa. Suas participações nas subscrições foram sempre regulares e generosas, entre as mais altas do pequeno grupo antifascista da Capital Federal, pelo menos até finais de 1930, quando mudou a direção do periódico. É do mesmo período também o 87 O novo código penal italiano será promulgado em outubro de 1930, mas desde 1925 estava sendo preparado pelo Ministério da Justiça. 88 ACS/CPC, b. 4675, f. 27661 (“Scarrone, Giuseppe”), Carta de Giuseppe Scarrone para o Ministro di Grazia e Giustizia, Alfredo Rocco, Rio de Janeiro, 21.2.[1927?]. O Ministério da Justiça na Itália era e é chamado “Ministero di Grazia e Giustizia”. 89 Assim em “Il caso Biancato e quello Scarrone”. La Difesa, ano III, n 67, 11.4.1926, p.2, o jornal atacava os órgãos diplomáticos italianos no Brasil e convidava seus compatriotas a “se tornar cidadãos do País que os hospeda: somente assim terão uma Pátria que os defenda e não uma inimiga que os persegue”. Na mesma linha, as considerações em “Per avere una cittadinanza”. La Difesa, ano III, n. 71, 9.5.1926, p. 3, onde o autor da matéria elogiava Scarrone (“um bom velho, há muitos anos residente no Brasil, sonhador de uma sociedade melhor, baseada na fraternidade: com efeito, ele transformou em cooperativa sua fábrica, e divide os lucros com seus operários”) e anunciava a criação, por parte da Unione Democratica Italiana, de uma comissão para ajudar os italianos livres nas práticas jurídicas para obter a cidadania brasileira. E em “La mia Difesa”. La Difesa, ano III, n. 84, 22.7.1926, p.4, se anunciava a publicação do homônimo opúsculo de Scarrone, “homenagem luminosa à verdade”. 100 encerramento de um anúncio que o empresário publicou no jornal, em todas as edições, a partir de fim de novembro de 1926. “Giocattoli (brinquedos)”, anunciava a propaganda, e especificava: “bolas de gude, tão procuradas e apreciadas pelas crianças. Fabricação em grande escala com sistema privilegiado, patente n. 21501 do Governo Federal. Venda em todas as casas de brinquedos do país”. Em seguida, em caracteres destacados “Giuseppe Scarrone, Fabrica Nacional de Vidros”, acrescentando endereço e telefone. Numa mistura de italiano e português, o anúncio, mesmo mudando sua formulação, se manteve durante quatro anos, aparecendo todas as semanas na página dos classificados do jornal. No meio de uma página, ou às vezes duas ou três, de propagandas paulistas e paulistanas, o de Scarrone foi o primeiro anúncio do Rio de Janeiro, e se manteve praticamente o único por anos (fora um ou outro que compareceram de forma muito esporádica) e com um tamanho sempre bastante grande. Aliás, na segunda metade de 1928, por cerca de seis meses, os anúncios foram até dois, acrescentando-se um segundo dirigido ao recrutamento de operários para a fábrica, com oferta de bons salários e estada barata nos arredores da mesma. A partir de dezembro do mesmo ano, mudava a formulação da propaganda, de novo uma só, com destaque para a proposta de uma “moderna cooperação” no âmbito da fabrica, com repartição do lucro entre capital, trabalhadores e consumidores, segundo as linhas de conduta que Scarrone estava seguindo desde dois anos antes em seu estabelecimento industrial. E o anúncio se manteve até outubro de 1930. Era costume dos redatores do periódico convidar profissionais liberais, donos de empresas ou estabelecimentos comerciais a publicar anúncios, para divulgar sua atividade e seus produtos no âmbito do público de leitores simpatizantes pelo antifascismo. O outro lado da moeda, contudo, era a possibilidade de acabar na lista negra de consulados e embaixada, sofrendo também boicote por clientes e compradores de fé fascista, o que de fato acontecia frequentemente. Apresentar um anúncio em La Difesa significava, então, enfrentar possíveis e indesejadas consequências financeiras. Manter a propaganda por anos, como no caso da Fabrica Nacional de Vidros, era sinal de uma escolha ainda mais clara pela causa do antifascismo. Único “carioca” entre os anunciantes, Scarrone enfrentou a possível perda de clientes, mas manifestou também desta forma simples de que lado estava. Neste sentido, entre os antifascistas da Capital Federal, titulares de uma atividade comercial, ele foi, sem dúvida alguma, o que mais se destacou. 101 O jornal oferecia também certo respaldo a Scarrone e a sua ação, seja noticiando o aparecimento de um novo opúsculo, seja com pequenos artigos sobre a própria figura do antifascista.90 Durante os mesmos anos, o próprio Scarrone ainda se dava de vez em quando ao trabalho de enviar uma pequena matéria sobre a vida da colônia italiana na Capital Federal. Em janeiro de 1927 91, comentava positivamente a atitude dos membros da colônia italiana no Brasil, que, diferentemente das da Argentina e do Chile, não ofereceram para Mussolini álbuns de homenagem com coleta de assinaturas, lamentando, contudo, que, enquanto em São Paulo o jornal antifascista se encontrava em cada esquina, em cada exercício comercial e livraria, no Rio, devido aos esforços do Embaixador, do Consulado e do fascio, ele fosse boicotado pelas revendas. Meses depois92, Giuseppe ainda comparava a atitude da colônia italiana paulistana e da carioca, quanto a entusiasmo e séquito popular na manifestação dos ideais do antifascismo, tanto em termos de difusão do jornal, quanto em termos de participação de eventos, como, por exemplo, a festa pro-Defesa realizada poucos dias antes em São Paulo e da qual ele mesmo participara, positivamente surpreendido pelo numeroso e ordenado concurso de público. O medo, ao contrário, que ele percebia nos donos de bancas de jornal cariocas, os quais, ameaçados pelas autoridades diplomáticas, não vendiam mais o jornal do antifascismo ou o faziam de forma furtiva, e a letargia dos membros da comunidade italiana local o faziam comentar: Convenci-me de que a colônia de São Paulo é como uma Itália livre, diante da Itália fascista e escrava, representada pela colônia do Rio de Janeiro, onde tudo se faz em surdina, onde os elementos italianos, alheios às necessidades e aspirações da massa colonial, vivem abanando o rabo sem glória e sem honra aos pés do dono, incapaz de afirmações sadias e positivas que devolvam honra à nossa raça e a tornem digna de respeito por parte do país que nos hospeda e dos povos aqui vindos de toda parte do mundo.93 90 Um dos mais significativos foi “Giuseppe Scarrone”. La Difesa, ano III, n.1220, 2.12.1926, p. 2. Em duas colunas, o autor, que assinava como P., narrava o percurso de Scarrone desde sua juventude na Itália até o encontro com o socialismo, suas primeiras realizações cooperativas, os boicotes e a decisão de vir para o Brasil. E também o apoio dos irmãos já emigrados para São Paulo, e a criação da fabrica de vidros, agora uma das maiores do país, onde ele retomara sua “velha ideia socialista”, criando uma sociedade de participação nos lucros com técnicos e operários. E, finalizando, dizia: “Scarrone é um espirito realizador. Merece ser conhecido como homem, como trabalhador, como socialista, mais do que como escritor de opúsculos políticos, que, concordamos, não são perfeitamente respeitadores das regras gramaticais [...] mas que merecem sempre o maior respeito”. 91 “Da Rio. Alla colonia degli Italiani liberi in Brasile”. La Difesa, ano IV, n. 130, 13.1.1927, p. 3. 92 “Da Rio de Janeiro. São Paulo e Rio”. La Difesa, ano IV, n. 162, 12.5.1927, p. 3. 93 Ibidem. 102 Talvez um juízo um tanto radical, de um lado como do outro: nem a comunidade italiana paulistana era tão completamente conquistada aos ideais antifascistas, nem a colônia do Rio tão refém de cônsules e embaixadores, e tão incapaz de atitudes corajosas e livres. Claramente, a entidade numérica da coletividade de origem italiana em São Paulo e sua distância do centro nevrálgico do controle diplomático podiam jogar um papel significativo nas articulações do mundo da oposição, mas como se viu e se verá ainda, há sinais de uma presença antifascista na Capital Federal que não podemos negligenciar, embora se possa concordar com Scarrone que ela fosse fraca e tímida. O próprio Frola se empenhará, com viagens ao Rio, em animar suas fileiras, como participante das quais ainda chegará naqueles mesmos meses, como se verá, Libero Battistelli. Em mais duas contribuições para La Difesa, uma de 193094, outra do ano sucessivo95, Scarrone falava de uma de suas paixões, o teatro, mostrando como as companhias italianas em tournée ao Brasil tivessem fracassado ultimamente, e imputava isso à “fascistização” da arte: “onde entra o fascismo sai a honestidade, o bom gosto, a arte, tudo o que há de belo e de bom” - escrevia no primeiro artigo. Mas desde o final de 1930, a participação de Scarrone no jornal pareceu resfriar. O anúncio da fábrica não apareceu mais nas páginas de classificados, assim como não houve mais subscrição dele em favor do periódico. O próprio jornal, então, foi ao seu encontro, numa visita que o encarregado de manter os contatos com os leitores e assinantes fora de São Paulo realizou na Capital Federal.96 Em maio de 1931, relatando sua passagem pelo Rio de Janeiro, o encarregado escrevia: Visito – é preciso dizer? – Battistelli e Scarrone, que conhecia somente de nome [...] Longa visita ao nosso velho Scarrone e à sua senhora, que compete com ele em fé e fervor antifascista [...] Scarrone é um cinematógrafo falante de recordações de sua Ligúria [...] Visito a fábrica de vidros, onde ganham seu pão várias centenas de homens, mulheres e jovens.97 94 “Il Teatro italiano in dissoluzione”. La Difesa, ano VI, n.321, 14.8.1930, p.5 “Rio de Janeiro. Una bella figura della Ambasciatrice.” La Difesa, ano VIII, n. 363, 11.7.1931, p. 4. O artigo não é assinado, mas temas e linguagem parecem indicar em Scarrone o autor do texto. 96 Cf. “Vita sociale degli italiani in Brasile. La Difesa in viaggio”. La Difesa, ano VIII, n.357, 30.5.1931, p.4. 97 Ibidem. 95 103 E o artigo continuava destacando os numerosos assinantes que existiam na cidade e nos arredores: “Quantos assinantes, quantos antifascistas! Exilados voluntários, emigrados há muitos anos, prófugos que já passaram pela França, pela Bélgica, e afinal chegados aqui, após quem sabe quais sofrimentos. Muitos carregam no rosto as marcas da dor, diria quase a tragédia de nosso povo: homens que perderam tudo, que vivem sem poder se comunicar diretamente com suas famílias, mas que não se dobraram, que temperaram sua fé, e estão prontos para o momento decisivo. E se passam assim os dias em visitas e visitas: junto com Battistelli, ou com Vozza ou com Semino, de trem, de bond, de barca, os visitamos todos.98 Além do tom um tanto retórico, e de uma estimativa levemente otimística das fileiras cariocas do antifascismo, assunto sobre o qual discutiremos daqui a pouco, pode-se retirar deste relatório o destaque que a figura de Scarrone, junto com a de Battistelli, parecia gozar no panorama dos antifascistas e amigos de La Difesa na Capital Federal, e, ao mesmo tempo no conceito da redação do periódico. Mas é de se relevar que naquele momento, a direção do jornal não estava mais nas mãos de Frola. Desde março do ano anterior, o nome dele como diretor desaparecera, e Piccarolo era anunciado de volta a uma colaboração mais estável. Meses depois, Nicola Cilla assumia a responsabilidade da direção, que passou para Mario Mariani a partir de dezembro de 31, quando o jornal se transformou em diário, com o nome de L’Italia. A saída de Frola de La Difesa, e sua colocação em questão no âmbito da colônia antifascista paulistana, podem ter influído no resfriamento do empresário quanto ao jornal. De Frola, Scarrone era bastante próximo, a ponto de dedicar a ele (“mais que companheiro, amigo do coração”) um de seus opúsculos99, e, como se verá, oferecer em sua homenagem um baquete de despedida em 1937, antes da partida dele para o México, além, de compartilhar, provavelmente, de orientações políticas e econômicas do ex-deputado de Turim, como a própria ideia cooperativista.100 É fato, como vimos, que o anúncio da Fabrica Nacional de Vidros desaparece das colunas de La Difesa, para aparecer logo em seguida nas de dois outros periódicos antifascistas. 98 Ibidem. Cf. SCARRONE, Giuseppe. Undici anni di Partito Fascista e sette di governo, Rio de Janeiro, 1929, p.3. 100 Cf. FROLA, Francesco. A cooperação livre: a economia espontânea do povo. Rio de Janeiro: Atena, 1937. 99 104 O primeiro era o Risorgimento, que Frola, de retorno à América do Sul após sua viagem à França, fundara em Buenos Aires, onde se estabelecera por certo tempo: o anúncio de Scarrone e sua fábrica, inspirada no sistema de “uma moderna cooperação”, apareceu desde o primeiro número, em dezembro de 1930, e se conservará na folha antifascista, que de diária, passará a ser semanal, até ao menos março do ano seguinte. 101 Outro era o quinzenal paulistano Italia Libera, criado por Pasquale Petraccone em novembro de 1930: também instrumento do movimento antifascista de São Paulo, o jornal queria dar voz a grupos e orientações que, pela saída de Frola e a nova gestão de La Difesa, se sentiam prejudicados. De seu diretor falar-se-á com mais amplitude na terceira e quarta parte deste trabalho, mas aqui cabe o registro de sua iniciativa no mundo do antifascismo paulistano e brasileiro. No jornal, que também terá vida breve, apareceu, com regularidade, a propaganda da Fábrica Nacional de Vidros, nos moldes anteriores.102 Como se pode notar, Scarrone sabia da importância do instrumento impresso para a divulgação de ideias e mensagens, a ponto de usar de vários deles até para seus anúncios, que não eram meramente comerciais, por veicular uma proposta de empresa que buscava caminhos alternativos para o capital e para os próprios trabalhadores. Discordando da nova linha de La Difesa, ou simplesmente não concordando com o afastamento de Frola, Scarrone buscava outros meios de propaganda e de presença politica. Não é de se ver nisto (assim como em certo resfriamento também de Battistelli diante do jornal, que analisaremos na terceira parte) uma hostilidade ao tradicional instrumento do antifascismo italiano no Brasil, o La Difesa.103 Talvez possa ser percebida aqui uma postura crítica diante da excessiva litigiosidade do ambiente antifascista paulistano, mais animado, mais numeroso que o carioca, mas também percorrido por rivalidades e divisões que contribuíram em parte a diminuir a eficácia de suas propostas e iniciativas. 101 Há registros do anúncio desde o n. 1, 1.12.1930, até o n. 24, 1.3.1931. O anúncio apareceu com certeza do n. 5, 5.11.1930 até o n.9, 15.1.1931. 103 Interessante, a esse respeito, uma notação na primeira página de La Defesa, em ocasião do anúncio da próxima transformação do periódico em diário: “[do Rio de Janeiro] nos alegremos com o velho companheiro José Scarrone, que logo nos escreveu a respeito da iminente publicação do diário”. Cf. “Il quotidiano degli italiani liberi del Brasile: L’Italia”. La Difesa, ano VII, n. 381, 1.12.1931, p.1. 102 105 2.9. O antifascismo no Rio se organiza Como foi dito acima, data de dezembro de 1924 a criação da primeira associação antifascista do Brasil: a Unione Democratica, fundada no Rio de Janeiro. Interessante é também registrar a simultânea constituição da sociedade anônima “Estabelecimento Graphico Italo-Brasileiro”, com publicação no Diário Oficial em data 3 de dezembro do mesmo ano.104 Entre seus sócios fundadores encontravam-se nomes como os de Antonio Corrado Limongi, (com o maior número de ações), Eugenio D’Alessandro, Scala (provavelmente Giovanni), e o próprio José Scarrone (usando a grafia de seu nome em português), além de muitos outros. A sociedade, com sede a Rua Sacadura Cabral, 63, tinha como objeto “as indústrias que se relacionam com as artes gráficas, typographia, lithografia, pautação, encadernação, papelaria, fábrica de envelopes, publicação e edição de revistas, jornais e livros, e o comércio dos respectivos produtos”. Uma hipótese é pensar na sociedade, cujas finalidades estavam ligadas ao mundo da editoria e da impressão gráfica, como braço operativo da Unione Democratica e de eventuais futuras iniciativas no âmbito do antifascismo carioca. Não é de todo impossível que o próprio Scarrone fosse a alma da sociedade, tendo em vista seu especial interesse pelo mundo da gráfica e sua determinação em combater o fascismo através de seus impressos, alguns dos quais podem ter sido produzidos nesse estabelecimento. Uma verdadeira mudança de qualidade na organização do antifascismo na Capital Federal foi representada pela presença de Francesco Frola. Não tanto nos primeiros dias, em outubro de 1926, quando, como foi mencionado acima, fugindo do navio onde as determinações do governo italiano o mantinham preso, no porto do Rio, percorreu várias redações dos jornais da cidade, acompanhado por alguns dos principais membros da oposição a Mussolini, entre os quais Scala e Infante, mas sobretudo a partir de seu retorno ao Rio, em dezembro, quando foi acolhido pelos antifascistas com recepção seja pelo Grande Oriente seja pela recém-criada Lega Italiana dei Diritti dell’Uomo (Lidu).105 Da fundação dessa sociedade, organizada segundo o modelo da homônima 104 Cf. Diario Oficial da União, 3.12.1924, p. 25853-55. Cf. “Dai nostri corrispondenti”. La Difesa, ano III, n. 122, 9.12.1926, p.3. A secretaria da sociedade era localizada à Rua 13 de Maio, 50. 105 106 nascida em 1922 na França entre os emigrados italianos106, por sua vez irmã da Ligue française des Droits de l’Homme, participaram sem dúvidas Scala e Scarrone, se os encontramos dirigindo discursos na acolhida a Frola.107 A presença do ex-deputado socialista italiano no Brasil e a orientação mais dinâmica, e aberta a vários componentes do mundo antifascista, impressa por ele a La Difesa aumentaram tiragem e assinantes. E dinamizaram também o ambiente não só de São Paulo, onde ele residia, mas também da Capital da República. Nos anos seguintes, como se verá mais detalhadamente na terceira parte, quando se destacará também o papel significativo de Libero Battistelli, recém chegado ao Brasil, nasceram, no Rio de Janeiro, várias associações, todas no grande âmbito do movimento do antifascismo. De Scarrone, nos anos de 1926 em diante, há registros somente de sua participação na Lidu, com um significativo convite para ele presidir uma das primeiras assembleias da organização, num ato de deferência por sua idade e militância socialista.108 Outras figuras se destacaram nestes anos - além dos que foram acima mencionados em ocasião da fundação da Unione Democratica - mesmo que com uma participação menos intensa. O dr. Petrosino, Trabucchi e De Rosa eram indicados por um informe da Policia politica italiana como “co-fundadores”, junto com os já nomeados Limongi, Scala, Infante e De Gasperis, de uma “Lega Democratica”. 109 Do primeiro não se tem informações de particular relevância, enquanto de Remo Trabucchi e Salvatore De Rosa existem registros mais documentados, no próprio Casellario politico110. O primeiro, nascido em 1892 na província de Pavia, no norte da Itália, chegara ao Rio na década de 1920. Aqui foi cozinheiro chefe no Hotel Glória, onde trabalhava também De Gasperis, e em seguida dividiu sua vida entre São Paulo e Buenos Aires, sempre no ramo da hotelaria. De Rosa, contador, originário da mesma cidade de Giovanni Infante, em 1924 participara da fundação do Estabelecimento Grapico Italo-Brasileiro. Os documentos policiais o apontavam também como sócio da Lidu no Rio de Janeiro, e protagonista de “atividade subversiva”, sendo candidato nas eleições da Societá Beneficienza Italiana 106 Sobre a Lidu na França, ver VIAL, Éric. “La Ligue Italienne des Droits de l’Homme (Lidu), de sa fondation à 1934” In MILZA, Pierre (org.). Les Italiens em France de 1914 à 1940. Roma: École Française de Rome, 1986, p. 407-430. 107 Cf. “Dai nostri corrispondenti”. La Difesa, ano III, n. 127, 30.12.1926, p. 3 108 Cf. “Dai nostri corrispondenti”. La Difesa, ano IV, n. 153, 7.4.1927, p. 6 109 Cf. ACS/CPC, b. 2788, f. 4592 (“Limongi, Antonio Corrado ”), informe Divisão de policia politica, n.500/10967, 24.11.1927. A sociedade antifascista mencionada devia ser, provavelmente, a Unione Democratica. 110 Ver ACS/CPC, b. 5190, f. 4900 (“Trabucchi, Remo”) e b. 1743, f. 4816 (“De Rosa, Salvatore”). 107 na lista de oposição à do consulado111. Contudo, em 1939, um informe da embaixada italiana no Rio relatava de um seu comparecimento espontâneo ao consulado, no qual deplorava sua conduta anterior e declarava nunca ter participado da Lidu.112 Em que medida fossem “espontâneas” essas apresentações junto aos organismos diplomáticos italianos é difícil dizer. Em alguns casos, houve certamente transformação de pensamento e adesão convicta ao fascismo, em outros tratava-se de gestos movidos por razoes de necessidade material, por questões de sobrevivência. Em outros casos ainda, houve autentica infiltração nas fileiras antifascistas. Na lista dos fundadores da sociedade que a policia italiana denominava de “Lega Democratica”, com efeito, havia mais um nome, o de Ulisse De Dominicis. Este, oriundo da mesma região de Scala e Infante, e jornalista, emigrara para o Brasil em 1919: aqui, frequentando os ambientes do antifascismo, trabalhava na realidade como informante por conta das autoridades diplomáticas.113 Identificado em sua dupla ação, a própria La Difesa se encarregou de denunciá-lo e mantê-lo a distância. Se houve antifascistas que debandaram para o lado do fascismo com o passar dos anos, como Infante e De Rosa, ou que trabalharam como informantes do consulado, como De Dominicis, houve outros membros daquela parte da colônia italiana no Rio de Janeiro daqueles primeiros anos que se mantiveram fiéis a suas escolhas. O milanês Giovanni Rizzi, por exemplo, que deixara a Itália para o Brasil ainda em 1912, e era identificado como republicano pelas fichas policiais114: vendedor em loja de tecidos, em seguida fabricante de caixinhas para joias, seu nome aparece nas listas de subscritores cariocas em favor de La Difesa e no grupo que se opunha à lista promovida pelo consulado na disputa pelo controle da Beneficienza. Ainda em 1938, morador do bairro de São Cristóvão, seu nome será identificado pela policia italiana como um dos assinantes cariocas do periódico “Giustizia e Libertá”115. Ou Giuseppe Ignazio Pampuri,116 carpinteiro e pintor, também oriundo da região de Pavia, no norte da Itália, da qual emigrou ainda em 1897, quando tinha doze anos de idade. Naturalizado brasileiro, o seu 111 Cf. b. 1743, f. 4816 (“De Rosa, Salvatore”), telespresso da Embaixada italiana no Rio de Janeiro, 10.5. 1929. 112 Cf. b. 1743, f. 4816 (“De Rosa, Salvatore”), telespresso da Embaixada italiana no Rio de Janeiro, 17.1.1939. 113 Cf. ACS/CPC, b. 1650, f. 2932 (“De Dominicis, Ulisse”), telespresso da Embaixada italiana no Rio de Janeiro, 10.2.1928. 114 ACS/CPC, b. 4352, f. 136642 (“Rizzi, Giovanni”). 115 Ibidem, telespresso da Embaixada italiana no Rio de Janeiro, 30.1.1938. 116 ACS/CPC, b. 3686, f. 14643 (“Pampuri, Giuseppe Ignazio”). 108 nome (agora com a grafia “José”) constava já em 1924 como sócio na fundação do Estabelecimento Graphico Italo-Brasileiro, e como subscritor de doações para La Difesa. Não existem muitos outros registros sobre ele, mas em 1938 o Ministério do Interior italiano pediu investigações sobre ele, constando o seu nome da lista dos assinantes a “Giustizia e Libertá”:117 seu nome assim acabava inscrito no registro de fronteira italiano, como sujeito a ser revistado e sinalizado. Um caso particularmente interessante é o de Domenico Ferraro, da região de Potenza, no Sul da península, chegado ao Brasil com vinte e três anos de idade em 1920: estabelecido inicialmente em Petrópolis, onde trabalhou como motorista, transferiu-se em seguida para a Capital Federal, como representante de firmas italianas. Seu percurso era constantemente acompanhado pelas autoridades de polícia118, até porque a partir do começo da década de 30, se dedicou a enviar para vários endereços italianos instrumentos de propaganda antifascista, como o periódico Il Becco Giallo, ou artigos do jornal da Concentrazione de Paris, acrescentando seus próprios impressos, às vezes uma folha, às vezes um cartão de visita com mensagens antifascistas. Uma possibilidade é que Ferraro, admirado pela postura e atuação de Scarrone, tenha resolvido imita-lo nesta ação de divulgação na Itália dos crimes fascistas através de impressos por ele mesmo criados: em 1926, com efeito, movido pela curiosidade de conhecer o antifascista contra o qual o tribunal italiano estava movendo ação de justiça, Ferraro fora visitar o empresário socialista em sua fábrica e relatou suas impressões num breve artigo que o próprio Scarrone publicou em opúsculo no mesmo ano119. Tempo depois, começavam a chegar à Itália os impressos postados por Ferraro 120, que os documentos policiais definiam de ideias socialistas ou comunistas, embora ele não se declarasse pertencente a algum partido. Em 1938, o Ministério do Interior informava ser ele um dos assinantes cariocas de “Giustizia e Libertá”, assim como Rizzi e Pampuri. No 117 O endereço da assinatura é o mesmo de Nello Garavini: Rua Pedro I, n. 4, Rio de Janeiro. Pampuri morava no mesmo prédio, um andar abaixo dos Garavini. 118 ACS/CPC, b. 2029, f. 6035 (“Ferraro, Domenico”). 119 O opúsculo era SCARRONE, Giuseppe. Inventario dei quattro anni di governo fascista in Italia. Rio de Janeiro, 28.10.1926. O artigo de Ferraro encontra-se nas páginas 8-12. 120 Num deles, um cartão de visita de 1930, Mussolini, em forma de serpente, envolvia com seu fascio littorio a Itália, enquanto uma mão, trazendo a data de 1930, agarrava o animal, tentando impedir que sufocasse o país. No verso do cartão, Ferraro escreveu de seu punho: “Em breve, a Itália saberá se libertar das hienas da monarquia, do clero e do fascio. Muitos padres já tem nojo da conduta do indecente Pio Ratti [o papa Pio XI, Achille Ratti]. Ai da Itália, que, contudo, com grande sacrifício, há de se libertar. Ai, sobretudo, do clero hipócrita. Quanto antes, haverá o acerto de contas. Rio, 3.12.1930. Domenico Ferraro”. Ver ACS/ CPC, b. 2029, f. 6035 (“Ferraro, Domenico”). 109 mesmo ano, como se verá na terceira parte do trabalho, acontecerá sua prisão pelo governo de Vargas, sob acusação de espionagem comunista. Era o mundo da colônia italiana no Rio de Janeiro, animado por várias sociedades de oposição ao fascismo, povoado por socialistas e republicanos, democratas ou sem partido, pertencentes à maçonaria em vários casos, de sentimentos antifascistas firmes, capazes de gerar atitudes desafiadoras do Duce e de seus representantes no Brasil, ou mais frágeis a ponto de permitir retornos para a sombra protetora do regime. Nesse mundo se inseria Scarrone, com sua atuação pública e seus escritos. Ela lhe rendera em 1926 um processo e uma condenação, mas a intervenção da justiça fascista não chegou a diminuir o ímpeto de luta do empresário. É o que se verá a seguir. 2.10. Continuando a batalha (1927-1929) Até o fim de 1926, ao todo, tinham sido seis cartas abertas e oito opúsculos, todos enviados para a Itália, mas também difundidos no Brasil. De 1927 a 29, Giuseppe manteve o ritmo de três ou quatro opúsculos por ano, diminuindo a frequência nos anos sucessivos. Nos impressos, se percebia o mesmo modo de argumentar, enfático e acusatório, cheio de evocações da história italiana e de recordações pessoais, com a prevalência de ataques a Mussolini, visto como o traidor da causa socialista, tendo-se oferecido por dinheiro ao partido da intervenção na primeira guerra mundial, e sucessivamente aos interesses do grande capital com a criação dos fasci em 1919. O estilo continuava repleto de imperfeições gramaticais e lexicais, mas, em alguns textos de 1928 e sobre tudo de 1929, desapareciam erros e frases confusas, para deixar espaço a um linguajar claro e correto: provável intervenção na escrita de algum corretor ou até colaborador. Para o Almanaque de 1929 é declarada pelo próprio jornal La Difesa a colaboração de Battistelli na redação do mesmo, e provavelmente ela é presente também na edição final do apelo ao povo brasileiro do ano anterior, ainda mais que o breve opúsculo é assinado por Scarrone também em nome da Lidu do Rio de Janeiro, da qual Libero era um dos expoentes de destaque já naquela data. Também não é de se excluir uma intervenção de Frola na edição final da alguns textos. Uma hipótese que não há como verificar, mas que pode ser aqui avançada, é a segundo a qual o próprio empresário poderia ter-se 110 oferecido de assinar até textos cujo conteúdo fosse de outros, partindo da constatação evidente de que ele, condenado pela justiça italiana, já não tinha mais nada a perder, e assim podia proteger a expressão de outros. Mesmo assim, em quase todos os seus textos, a grande maioria dos materiais presentes continuavam sendo preparados, escolhidos, elaborados e redigidos pelo próprio Scarrone. Da primeira publicação de 1927, em ocasião da festa do trabalho121, não foi possível encontrar exemplares nos arquivos. Quanto aos outros três daquele ano, o primeiro é um opúsculo com o qual Scarrone assinalava cronologicamente, também no título, o passar inexorável do tempo do Estado fascista: “Dopo cinque anni di domínio fascista in Italia”122. Lançado em setembro, em ocasião da festa pro-Defesa no Rio de Janeiro, em suas 22 paginas trazia assuntos já explorados antes e argumentos já apresentados, mas a abertura merece destaque. Na capa da publicação, Scarrone escrevia: Francesco Frola, quando, em desfeita a Mussolini, desembarcou no Brasil, disse: por enquanto nós, Italianos livres, temos que ter um só partido antifascista [...] Os italianos livres, em qualquer terra ou nação estejam hospedados, têm que acolher o convite, que agora vem de Paris: aceitar seu manifesto, seu programa. As divisões, arte de Mussolini, que conduziram a Itália ao fascismo, devem ser absolutamente evitadas, para não cair em seu jogo.123 Scarrone, em seus escritos, muito raramente falava dos partidos da emigração antifascista, a não ser quando se referia ao partido do qual ele se gloriava de pertencer, o socialista, em sua vertente reformista (o Partido Socialista de Turati, Treves e do próprio Matteotti). Tampouco fazia referências ao programa dos fuorusciti na França, a seus debates e divisões, ao nascimento de novas forças e agrupamentos. Nisso, a diferenças com Battistelli, por exemplo, é profunda, como veremos. Mas é explicável também pela historia dele, de seu antifascismo nascido no âmbito da velha emigração, num mundo de emigrados que não tinham familiaridade com a realidade parisiense ou marselhesa dos exilados. Mas aqui, mesmo não nomeando-a, a referencia à Concentrazione di Azione Antifascista, o cartel de partidos italianos recém fundado em Paris, era clara. Como clara era a indicação de uma luta que fosse unitária. No Rio de 121 SCARRONE, Giuseppe. 1º Maggio 1927: rievocando i tempi passati e l’opera demagogica svolta da Benito Mussolini quando capeggiava la frazione rivoluzionaria del partito socialista italiano. Rio de Janeiro, 1.5.1927. 122 ACS, Biblioteca, Misc. C, n. 542. SCARRONE, Giuseppe. Dopo cinque anni di dominio fascista in Italia. Rio de Janeiro, 10.9.1927. 123 Ibidem, p. 1. 111 Janeiro, ao que nos consta, não se constituirá uma seção da Concentrazione, e em São Paulo isso acontecerá somente em 1931. Mas aqui ecoava a voz do velho socialista, protagonista de várias tentativas de reformas trabalhistas e de muitos episódios de luta contra os privilégios na Itália dos Oitocentos, e do começo do novo século, alertando como somente a unidade das forças garantisse a eficácia da ação. Do segundo impresso daquele ano, uma carta aberta dirigida a Mussolini124, merecem ser destacadas alguns trechos, mesmo que longos, para documentar, de um lado, a revolta contra a censura postal que ainda impedia as comunicações de Giuseppe com seus parentes, e, do outro, a facilidade de trato do empresário com o chefe do governo, à luz de um passado comum: Minha carta aberta se refere ao fato que até aos condenados a morte se concede o direito de escrever e receber cartas de parentes, amigos e conhecidos. Tu, como socialista renegado, e eu, como socialista cooperativista, [...] tratando-nos como nos velhos tempos de nossas estreias, quando costumávamos usar o tu com qualquer idade e grau social. [...] Em 1922 alcançaste o poder [...] após cinco anos, nos quais afortunadamente pudemos nos subtrair às tuas perseguições, estando no exterior, nos isolastes dos mais puros sentimentos de conforto para nossa alma, ao não poder receber a correspondência de nossos entes queridos. [...] Em 16 anos de trabalho, conquistei uma empresa que hoje está entre as primeiras indústrias do vidro da Capital da República brasileira. A tua ira chegou até mim, com uma lei provocadora. [...] Fui chamado pelo cônsul, escrevi minha defesa, houve sessão no Tribunal não de juízes e sim de teus servos em Genova, sem eu saber, mesmo tendo enviado uma pessoa com procuração, se foi constituída a defesa. Soube de ter sido condenado, mas, pela vergonha de causar comentários no exterior, a motivação da sentença, um ano depois, ainda não me foi notificada.125 A terceira publicação de 1927 era um impresso de 4 páginas126, no qual, precedida por algumas linhas nas quais Scarrone “reivindicava” (como aludia o título) seu sucesso comercial, sem ajudas de ninguém e contra a ação de muitos, eram reproduzidos, em tradução para o italiano, dois artigos do vespertino carioca “A Vanguarda” de dezembro daquele ano, ilustrando a atividade da fábrica de vidros, sua produção, seu sistema de comparticipação nos lucros. Uma anotação manuscrita de Scarrone, no final da ultima página, revelava algo sobre a finalidade do impresso e suas formas de circulação: “Enviei quarenta jornais que noticiavam quanto é contido neste impresso. Enviei em 124 ACS, Biblioteca, Misc. C, n. 524. SCARRONE, Giuseppe. Lettera aperta a Benito Mussolini. Rio de Janeiro, 1927. 125 Ibidem, p. 3-6. 126 SCARRONE, Giuseppe. Come si rivendicano gli uomini. Rio de Janeiro, 16.12.1927. 112 seguida quarenta impressos em envelopes fechados, pedindo para acusar o recebimento. Não tendo tido resposta, envio o presente. Giuseppe Scarrone”127. O impresso conservado no arquivo de Roma é um dos que chegaram à Itália, destinados a alguma sociedade ou particular da região de Genova ou de Milão, ou para algum dos endereços aos quais Scarrone costumava enviar seus opúsculos. Ele mesmo acrescentava suas linhas manuscritas aos vários exemplares do texto impresso, um por um. Mas para quem iam essas publicações? Em 1928, alguns informes do Ministério do Interior italiano e de suas repartições territoriais de Turim e Milão apontam o envio, para particulares de varias cidades, de impressos assinados por Scarrone. O próprio Arturo Bocchini, chefe da Policia italiana, em ocasião da entrada no Reino tanto da carta aberta para Mussolini, quanto deste ultimo folheto, telegrafava para todos os prefetti, responsáveis do governo no território, pedindo para “predispor medidas de vigilância a fim de prevenir e reprimir tal delituosa tentativa, sequestrando libelo acima onde se encontrar e procedendo contra detentores do mesmo nos termos da lei”128. Scarrone enviava o material para pessoas de seu conhecimento ou para desconhecidos, geralmente escolhidas pelas listas telefônicas ou comerciais, e em principio pessoas ligadas ao fascismo ou indiferentes, a fim de contribuir para criar um movimento na opinião publica italiana. O empresário, afinal, seguia indicações precisas codificadas também pelo próprio La Difesa,129 que convidava frequentemente seus leitores a enviar de forma sistemática para a Itália panfletos antifascistas, artigos recortados, impressos e até inteiros exemplares do jornal: as instruções recomendavam o uso de envelopes fechados, pertencentes a consulados, hotéis, bancos, firmas brasileiras ou sem identificação; convidavam a endereçar a correspondência para pessoas envolvidas com o fascismo, ou ex-fascistas, ou indiferentes, ou para repartições públicas, firmas comerciais, do inteiro território italiano, mas principalmente da cidade e região de cada um; excluíam terminantemente o envio para amigos ou conhecidos de fé antifascista, para não prejudica-los. Assim Scarrone se inseria numa onda propagandística que do Brasil se debruçava sobre a Itália fascista, com o diferencial que ele mesmo chegava a 127 Ibid., p. 4. Cf ACS/CPC, b. 4675, f. 27661 (“Scarrone, Giuseppe”), Ministério do Interior, Divisão de Policia Politica, telegramas do Chefe de Policia para os Prefetti do Reino, n. 1631, 16.1.1928 e n. 2763, 26.1.1928. 129 Ver, por exemplo, “La propaganda in Italia (istruzioni pratiche)”. La Difesa, ano V, n. 203, 5.2.1928, p. 4. 128 113 produzir impressos e material de oposição, muito do qual, como vimos, acabava barrado pelas autoridades de policia. Nos anos seguintes, mais impressos e mais papel para Scarrone continuar sua batalha. Em 1928, o opúsculo que comemorava os quatro anos do assassinato de Matteotti130 trazia alguns textos que denotavam uma autoria mais acostumada a trabalhar com a palavra escrita, além do interessante relato de uma convocação do próprio Scarrone para o gabinete do cônsul italiano.131 Outro impresso, recordando os seis anos de governo fascista,132reconstruía, um por um, motivações e circunstâncias da escrita e publicação dos opúsculos até então produzidos, incluído o presente, que era o decimo terceiro, e que nascera, segundo a palavra do autor, para “dissipar um equivoco”, percebido numa conversa com um advogado brasileiro, na qual seu interlocutor declarava como muitas pessoas no exterior identificassem a Itália com Mussolini e seu governo. Após outros trechos de varia natureza, o impresso se encerrava com o manifesto da Concentrazione de Paris, de junho do mesmo ano, da mesma forma como o opúsculo anterior trazia outro manifesto, o do Comité de Defesa das Vitimas do Fascismo, assinado por seu presidente, o escritor francês Henri Barbusse. Mas é o “Apelo fraterno dos Italianos livres para o povo brasileiro”133 que demostra a colaboração de Scarrone com outras pessoas e setores do ambiente antifascista carioca. Aqui, pelo estilo do escrito e o tom, e por sua forma linguística irrepreensível, é inevitável pensar numa colaboração, ou numa redação outra: provavelmente, como foi afirmado acima, de Battistelli, naquela data talvez já presidente da Lidu carioca. A assinatura, “Giuseppe Scarrone, também em nome da Lega Italiana dei Diritti dell’Uomo de Rio”, leva a pensar nisso, assim como os próprios temas levantados pelo impresso, que tratava da ação do governo fascista e de seus órgãos ordinários e 130 SCARRONE, Giuseppe. Nel quarto anniversario dell’assassinio di Giacomo Matteotti. Rio de Janeiro, 1928. Fundação Feltrinelli em Milão, Biblioteca, 30701. 131 Depois de reparar como a repartição tivesse mudado da antiga sede da Avenida Rio Branco, 25 - “tão cômoda para os emigrantes e os viajantes italianos, que desembarcando do navio, em poucos minutos podiam encontra-la”, mas talvez “não suficientemente central e chique para os representantes do fascismo e do governo” - para um suntuoso prédio de Praça Marechal Floriano, o empresário relatava de um diálogo com o cônsul no qual este lhe devolvia uma carta que Scarrone enviara para um jurista argentino, protestando por uma entrevista favorável ao fascismo que este tinha concedido no Rio de Janeiro. 132 SCARRONE, Giuseppe. Dopo 6 anni di governo fascista in Italia. Rio de Janeiro, 1928. Arquivo da Fundação Feltrinelli em Milão. 133 ACS, Polizia Politica, Fascicoli Personali, b. 1227 (“SCARRONE, Giuseppe”), SCARRONE, Giuseppe. L’azione del governo fascista e dei suoi organi ordinari e straordinari e la situazione degli italiani all’estero e degli italiani in Brasile in particolare. Rio de Janeiro, 15.10.1928. 114 extraordinários, em relação aos italianos no exterior. O documento, após ter listado intrigas e crimes cometidos por fascistas italianos e representantes oficial do governo de Roma em vários países europeus e americanos, proclamava a fé antifascista da “grandíssima maioria da colônia italiana” no Brasil, e declarava tramas e delitos perpetrados em território brasileiro como sendo de responsabilidade exclusiva dos “delinquentes de camisa negra”, reiterando sentimentos de amizade e afeto para o povo brasileiro, e respeito por suas leis, por parte de todos os antifascistas. No ano seguinte, não se registrou nenhum resfriamento na atitude do velho empresário. Os opúsculos foram publicados com o mesmo ritmo dos anos anteriores, agora provavelmente com maior participação de outros. A coisa é evidente tanto no pequeno impresso de março,134 publicado em ocasião dos dez anos da fundação dos Fasci di Combattimento, primeiro núcleo do partido fascista na Itália, como no Almanacco Antifascista pel 1929,135 oferecido por La Difesa como homenagem a seus assinantes, e escrito, segundo informava o próprio semanal paulistano, com a colaboração de Battistelli. O calendário do ano que se iniciava vinha acompanhado, quando possível, pela identificação das datas de crimes e violências cometidas pelos fascistas na Itália nos anos anteriores. Ainda em 1929, Scarrone mandava imprimir um opúsculo que celebrava o 1º de maio136 e um catalogo, em português, da Fábrica Nacional de Vidros 137, documentando a participação de seus produtos na Feira de Amostras da cidade do Rio de Janeiro. O impresso se tornava oportunidade para Giuseppe discutir a nova regulamentação do trabalho de menores, como foi visto acima, e para ilustrar, inclusive com fotografias, sua empresa, junto à qual funcionava até uma pequena escola noturna de instrução primaria. Mais interessante, contudo, era o último opúsculo do ano 138, em ocasião dos onze anos de partido e sete de governo fascista na Itália. De um lado, as páginas do impresso percorriam as décadas da recente história italiana, desde a unificação do país 134 SCARRONE, Giuseppe. Decimo anniversario della fondazione dei Fasci di Combattimento, in Italia. Rio de Janeiro, 23.3.1929. 135 SCARRONE, Giuseppe. Almanacco Antifascista pel 1929. Rio de Janeiro, 1929. Arquivo da Fundação Feltrinelli em Milão. 136 SCARRONE, Giuseppe. Aprite le porte al lavoro!. Rio de Janeiro, 1.5.1929. Arquivo da Fundação Feltrinelli em Milão. 137 SCARRONE, José. Catalogo Fábrica Nacional de Vidros. Rio de Janeiro, 1929. 138 SCARRONE, Giuseppe, Undici anni di Partito Fascista e sette di governo, ossia, L’ultima fase del transformismo al governo d’Italia. Rio de Janeiro, 1929. 115 até a primeira guerra, marcadas por episódios de “transformismo” politico, do qual o fascismo seria o mais recente exemplo. Do outro, Scarrone pedia desculpas porque esta dolorosa história do transformismo e continua traição dos produtores, deveria ter tido uma pena um pouco melhor do que a minha [...] de todo modo, os leitores vão compreender que um homem sem cultura, com seus 71 anos de idade, pode esperar pouca coisa ainda da politica, no pouco tempo que ainda lhe sobra, mas que [por] toda a campanha que ele conduziu contra o fascismo desde seu inicio, de sua subida ao governo até os nossos dias, o povo proletário e trabalhador [...] aprenda a analisar demagogos e ídolos.139 E concluía suas considerações com algumas breves propostas, que sintetizavam seu pensamento em matéria social: A experiência da vida social nos ensinou que: os homens trabalhadores devem ter a mais completa liberdade de ir onde sua obra possa ser mais útil, mais procurada e mais fecunda; a produção da riqueza, os produtos, devem ter passagem completamente livre [...]; uma caixa internacional, a disposição de embaixadas e consulados, deve prover para a repatriação de todos os cidadãos que tenham necessidade; na politica devem se formar dois partidos, o do capital e do trabalho, não conflitando entre si.140 O restante do livreto continha uma análise da recente lei reguladora do trabalho dos menores, na qual o empresário mostrava, como vimos mais acima141, dificuldades e problemas trazidos para sua fábrica e a produção do vidro, em geral, pelas novas normas a respeito do trabalho dos menores. Esta rica produção de impressos coincide com uma intensificação da propaganda antifascista no Rio de Janeiro naquele mesmo ano de 1929. Além da Lidu, novas siglas faziam sua aparição no âmbito da comunidade italiana da cidade (Itália Libera, Lega Antifascista, a própria Liga Anticlerical) e começavam a interessar setores da sociedade brasileira, com o surgimento de uma Liga Antifascista entre os estudantes de Direito. Essa multiplicação de organizações será analisada mais detalhadamente na terceira parte do trabalho, quando se verá também o papel de Battistelli nesse contexto. O seu registro aqui, contudo, aponta na direção de documentar como Scarrone encontrava-se mais uma vez no centro de uma rede, ainda que pequena, de contatos, iniciativas, esforços para dar 139 Ibidem, p. 24 Ibidem. 141 Cf notas 19, 25 e 26. 140 116 um rosto e um corpo mais real à oposição ao fascismo neste lado do Atlântico. E a de Giuseppe acabava sendo mais uma voz nesta tentativa. 2.11. Anos de crise Ao mesmo tempo em que o ano de 1929 representava um ponto alto do antifascismo italiano na Capital Federal, assinalava, porém, o inicio de uma curva descendente, sobretudo em termos de intensidade de atividade. De 1930 até 1933, o movimento antifascista no âmbito da colônia italiana do Rio de Janeiro registrará desacelerações, quando não um autêntico momento de crise e de reelaboração de discurso e estratégia. Novamente, deixamos para a próxima parte a tarefa de acompanhar mais de perto essa temporalidade e seus desdobramentos. Mas algo é possível antecipar aqui. Vários fatores podem ter contribuído para determinar essa conjuntura. No Rio de Janeiro, a sensação de uma luta fadada ao insucesso: em março de 1929, por exemplo, a maior associação italiana da cidade, a Societá Beneficiente, sempre acima das divisões partidárias, tinha acabado nas mãos de uma diretoria e um conselho alinhados com os órgãos consulares, quer dizer com o governo fascista. No âmbito mais largo do antifascismo brasileiro, a crise de La Difesa, com a saída de Frola e as divisões que revelou no âmbito da colônia paulista, representou mais um fator de debilidade. A própria sociedade e mundo politico brasileiro, a partir de 1930, ficaram polarizados pelas disputas eleitorais que levaram Vargas à Presidência da Republica, e em seguida pelos conflitos ligados à permanência de um governo provisório, até o eclodir da revolução constitucionalista em 32. Será somente com o perfilar-se no horizonte mundial do perigo nazista, após Hitler ser nomeado chanceler na Alemanha em janeiro de 33, e com o despontar no Brasil do movimento integralista, que o antifascismo encontrará de novo um espaço na vida politica e social nacional. Acrescente-se que para o próprio fascismo, o ano de 1929 representou um momento de consagração sem comparações, sobretudo na Itália, mas também em parte da opinião pública mundial: em fevereiro o acordo com a Santa Sé mostrava um Mussolini que estendia a mão ao mundo católico, italiano e não, redundando o gesto em prestigio e consideração internacionais, e, um mês depois, a eleição para a Câmara dos Deputados, realizada sem nenhuma real liberdade de voto, se transformara num plebiscito para o fascismo, com 98 % dos sufrágios. 117 O declinar da parábola do antifascismo se refletiu também na reduzida produção impressa de Scarrone naqueles anos. Entre 1930 e 1932, não há registro de panfletos ou opúsculos, por ele assinados. Não é dado saber em que respectiva medida os fatores acima acenados acabaram contribuindo para a desaceleração na publicística de Giuseppe. Provavelmente, a ausência de Frola como apoio e referência para o mundo do antifascismo contribuiu de forma substancial, visto o resfriamento das relações de Scarrone com La Difesa. O que os arquivos nos restituem, nestes anos, é um Scarrone autor de cartas. Três para Mussolini e uma para a Concentrazione de Paris. Como a dizer, para o próprio inimigo e para a maior organização de oposição a ele. A primeira carta para o Duce, de fim de outubro de 1930,142 escrita enquanto Vargas estava se instalando no Palácio do Catete após o movimento revolucionário que o levara à Presidência da Republica, ainda transborda de sentimentos de ódio e expressões de revolta contra o fascismo e seus métodos, aos quais Scarrone aproxima atitudes politicas e escolhas do presidente deposto, Washington Luís. Ele escrevia, comentando as devastações realizadas por populares de jornais partidários do antigo governo, como o “novo prédio de 25 andares de A Noite [...], com sua maquinas rotativas de ultimo modelo [...] quebradas, danificadas e jogadas na rua”: o deposto governo, como o fascismo, proibira a palavra contraria a ele, suprimiu todos os jornais adversários; todo dia, numerosos cidadãos eram aprisionados em seus cárceres, por ter levantado voz contraria ao governo; as eleições para o presidente da Republica [...] ocorreram da mesma forma que o último plebiscito na Itália: era um verdadeiro fascismo mussoliniano.143 Após ter lembrado para Mussolini como ele tivesse definido a democracia um regime em “putrefação”, Scarrone continuava afirmando que “aquela democracia que na Itália é considerada algo em putrefação” conseguira, no Brasil, tomar “as rédeas do poder, após, não nove, como o fascismo, e sim 49 anos, depois da deposição do imperador Dom Pedro II em 1889! [...] e como primeiro ato de esperança [...] libertou deportados e prisioneiros políticos e decretou a liberdade de imprensa”. Após o elogio à democracia brasileira, o pensamento volvia ao “povo italiano, que se deixara enganar pelo demagogo”, e às “seis cartas abertas e 19 opúsculos” por ele escritos no passado. 142 ACS/CPC, b. 4675, f. 27661 (“Scarrone, Giuseppe”), carta de Giuseppe Scarrone para Benito Mussolini, Rio de Janeiro, 30.10.1930. 143 Ibidem. 118 “Desde as comemorações do oitavo ano, não escrevi mais”, continuava Giuseppe, recordando como naqueles mesmos dias lhe tivessem perguntado sobre as razoes de seu silêncio. A resposta continha uma declaração de impotência (“nunca fui homem que resolve tudo com a força, e ainda que o fosse, com meus 72 anos, e daqui do Brasil, poderia fazer muito pouco para a Itália”), mas se prolongava num proclama de luta, contra o “fascismo, nascido no sangue e que no sangue deverá morrer [...] Ai daquele dia no qual vos ocorrerá o que ocorreu aos fascistas brasileiros a 24 de outubro de 1930!”. Scarrone, então, não renunciava aos seus ideais de luta, mas parecia ciente da dificuldade de conseguir resultados concretos com sua ação panfletaria contra um inimigo que estava tão longe e contra o qual somente poderia uma insurreição popular, em nome da democracia e da liberdade, como acontecera no Brasil. Outra carta mais breve, de uma semana depois, para Mussolini, reafirmava o conceito: “No Brasil, após 41 anos de plebiscito como o último realizado na Itália, fez nascer a democracia [...] Na Itália, onde a democracia foi posta para sempre (?) em putrefação, se coloca diante dos jovens o machado do fascio e o juramento de fidelidade”144. O empresário sentia o peso dos anos, talvez, e as dificuldades de uma luta conduzida de um país tão distante, por um movimento antifascista, inclusive, que não sabia manter unidas suas próprias forças. A carta para o organismo antifascista, de dezembro de 1931, também revelava algo a respeito de seus sentimentos.145 Nela, o empresário se dirigia “ao partido Socialista e em particular à Direção do Partido Socialista Italiano com sede em Paris”. A sua era, pelo título, uma “carta aberta para os antifascistas”, mas, de fato se tornava uma declaração em defesa das atitudes de Frola e de sua gestão do semanal paulistano. O ex-deputado socialista, afinal, fora para por Brasil dirigir o periódico convidado pelos seus correligionários políticos da colônia italiana e com a aprovação dos vértices do antifascismo italiano em Paris. Justo era então se dirigir a estes vértices para declarar insatisfação por como o “companheiro e amigo” tinha sido tratado em São Paulo. Uma das frases iniciais da carta, contudo, é reveladora de um estado de animo, presente em Scarrone e possivelmente em muitos outros antifascistas italianos: 144 ACS/CPC, b. 4675, f. 27661 (“Scarrone, Giuseppe”), carta de Giuseppe Scarrone para Benito Mussolini, Rio de Janeiro, 6.11.1930. 145 ISRT, AGL, appendice II , fasc. 3. SCARRONE, Giuseppe. Lettera aperta agli Antifascisti. Rio de Janeiro, 12.12.1931. 119 Uma crise econômica esgotou tantas nossas energias e diminuiu nossas atividades politicas. No Brasil e especialmente em São Paulo, tínhamos uma maravilhosa atividade antifascista muito simpatizante com a população local, não só, mas as próprias autoridades e a magistratura, chamada a intervir em várias situações, em muitos casos nos fez justiça, julgando em nosso favor.146 O olhar retrospectivo, que julgava encerrado aquele “maravilhoso” passado, levava em seguida a julgar de forma pessimista o momento presente, no qual, “liquidado” Frola, seus adversários políticos se propunham a transformação do semanal em diário (L’Italia). Scarrone, não julgando propícia a situação para tanto, declarava querer continuar como um “simples assinante”, numa atitude de “benigna observação”. Poucos meses depois, em maio de 1932, na terceira carta para Mussolini,147 após ter lembrado que seus opúsculos lhe procuraram “a intimação da lei sobre os fuorusciti, quando ainda não tinha sido aprovada, por meio do cônsul italiano no Rio de Janeiro” e “uma condenação a 29 meses de cárcere [...] pela qual nunca mais reverei a Itália”, Scarrone escrevia: “O fascismo, a este ponto, o vejo forte, estável, inamovível [grifo do autor]. A ponto de não ver mais necessidade de crítica, e dessa opinião me parecem ser também meus companheiros de luta, cujas invectivas são muito mais brandas que antes, sinal que eles também veem a força”. Afirmações inusitadas na boca e na pena de quem lutara por anos a fio contra o fascismo, com seus escritos e sua participação do mundo antifascista do Rio. Nenhuma aprovação do regime, ou passagem do lado do vencedor, claro, mas, ao que parecia, a resignada aceitação de uma situação, de uma realidade (os três adjetivos sublinhados de seu punho), contra a qual a crítica se tornava inútil. Afirmações que completavam uma parábola iniciada meses antes, com a suspensão dos opúsculos e uma participação menos intensa no jornal antifascista de São Paulo? Talvez seja plausível pensar em cansaço, em momentâneo desânimo, em estar advertindo o peso dos anos, ou numa sensação de isolamento ou de fragilidade no campo antifascista. Estranha a declaração que envolvia os companheiros de luta, tornando-os participes da atitude proclamada por Scarrone. É possível que Giuseppe percebesse sinais disto nos contatos com outros antifascistas da Capital Federal: como se falou acima, era evidente uma situação de dificuldade e crise: mesmo assim, sua afirmação soava um tanto radical. Mas uma hipótese sugestiva pode ser aqui registrada. Mais para frente, o 146 Ibidem. ACS/CPC, b. 4675, f. 27661 (“Scarrone, Giuseppe”), carta de Giuseppe Scarrone para Benito Mussolini, Rio de Janeiro, 19.5.1932. 147 120 empresário, após ter lembrado brevemente sua atividade no ramo do vidro em Altare, escrevia: “tive sempre adversários, nunca inimigos”. E declarava o objetivo da carta: o pedido de libera circulação para uma sua próxima publicação, um opúsculo onde se falaria do Brasil, suas riquezas e a indústria do vidro, “sem referências alguma ao fascismo”, anunciando que enviaria cópia dele, como fizera com “as 6 cartas abertas e os dezenove opúsculos” , e despedindo-se de Mussolini com um “seu adversário, sincero sempre, Giuseppe Scarrone”. Interpretar as declarações acima como uma mera captatio benevolentiae do Duce, atitude instrumental de Scarrone para favorecer a entrada no Reino de um seu escrito mais técnico, é, então, mais uma possibilidade a ser levada em conta. Com efeito, no mesmo ano, Giuseppe mandava imprimir o opúsculo anunciado148, cujos temas se limitavam a uma análise sumaria das riquezas econômicas do Brasil, a um protesto contra o aumento dos preços de importação dos perfumes, coisa que chegava a prejudicar os fabricantes de recipientes em vidro, e à descrição da fábrica (“a mais democrática do Brasil”) com sua proposta de divisão dos lucros. 2.12. De volta à trincheira As autoridades do governo de Roma e os órgãos diplomáticos no Rio de Janeiro tomaram nota da novidade na atitude politica de Scarrone. Um telespresso do Ministério das Relações Exteriores trazia um breve relatório do cônsul do Rio, que afirmava: A respeito da mudada atitude politica dele, o autor, oportunamente interrogado, repetiu quanto escrevera em sua carta a S.E. o Chefe do Governo, isto é, que ‘o Fascismo, a esta altura, é tão forte e enraizado, que qualquer oposição contra ele é vã’, entendendo com isso somente reconhecer a solidez inabalável do Fascismo, sem contudo aprovar sua doutrina e seus métodos149 Os informes oficiais a respeito de Giuseppe, para os anos de 1932 e 33, continuavam batendo na tecla dos anos anteriores: Scarrone como um incapaz, um velho maníaco exaltado e sem coragem, com manias de escritor, sem ter ninguém que o levasse a serio, e por isso, fundamentalmente inócuo. E agora, com as declarações presentes na carta a 148 SCARRONE, Giuseppe. Il Brasile, le sue grandezze, la sua produzione e l’industria del vetro. Rio de Janeiro, 1932. 149 ACS/CPC, b. 4675, f. 27661 (“Scarrone, Giuseppe”), telespresso Ministério das Relações Exteriores, 22.10.1932. 121 Mussolini, definitivamente não mais perigoso. A ponto da ordem de prisão emitida contra ele ser revocada por efeito de amnistia150. Mas o consulado italiano no Rio, ainda em 1935, deverá comunicar a Roma que “Giuseppe Scarrone, embora de idade avançada, continua manifestando suas ideias socialistas e publicando de vez em quando uns opúsculos, gramaticalmente incorretos”151. Com efeito, o velho empresário, tinha retomado suas periódicas publicações contra o fascismo: entre 1933 e 1934, Scarrone escrevera mais quatro opúsculos. De um primeiro, somente quatro pagine, escrito como resposta a uma pergunta que o consulado divulgara (“O que você diria para Mussolini, se pudesse falarlhe?”), e no qual Giuseppe ia lembrando as ilegalidades cometidas pelo fascismo em sua escalada ao poder e as feridas infligidas à sociedade italiana em seus anos de governo, registramos a fase final: “E agora, entre livres cidadãos, haveria cordiais saudações, mas como o que nos divide do fascismo é o sangue, nos limitamos a dizer: ‘Até as futuras reivindicações sociais!’”.152 Ainda em 1933, apareceu “Mussolini non sbaglia mai”153. Tomando como pretexto responder a um italiano, encontrado no tramway enquanto ia fazer compras à feira livre de Praça 7 de Março, e que enaltecia as obras do Duce, em detrimento de quanto não conseguiram fazer os socialistas em tantos anos, Scarrone se lançava numa requisitória contra o fascismo e suas pretensas realizações, que, quando boas, não passariam de plágios, e quando ruins, de sabotagens, de propostas ou práticas fruto de trinta anos de trabalho socialista na Itália, sem nunca ter governado o país, inclusive. O livreto, de 32 paginas, era dos mais veementes e inflamados saídos da pena do velho empresário do vidro, quase a demostrar que a antiga vis polemica não estava por nada sepultada. A expressão que dava o titulo ao impresso era a mesma estampada em quadros nos consulados e nas repartições públicas italianas: “frase dos idiotas, repetida nos cinematógrafos”, Scarrone a usava como refrão para sublinhar a retórica do regime e o sufocamento de qualquer manifestação de dissenso. 150 Ver ACS/ CPC , b. 4675, f. 27661 (“Scarrone, Giuseppe”). Nota da Prefettura de Genova, n. 3597, 24.2.1933. Em ocasião dos dez anos do regime, Mussolini concedera anistia a vários presos políticos e comuns. 151 Ibid., Telespressso do MAE, n. 321306, 25.11.1935. 152 SCARRONE, Giuseppe. Dopo 15 anni di partito e 11 di governo fascista in Itália. Rio de Janeiro, 25.9.1933. 153 SCARRONE, Giuseppe. Mussolini non sbaglia mai!. Rio de Janeiro, 1933. Arquivo da Fundação Feltrinelli em Milão 122 No ano seguinte, 1934, mais dois opúsculos. Um se abria celebrando Garibaldi154, herói da unidade italiana, e sua esposa Anita, transformando-se logo em mais uma coletânea de pequenos textos de uma ou duas páginas, ao clássico estilo dele, sobre o fascismo na Itália e os enganos de Mussolini. Interessante, entre outras, a matéria retirada num exemplar de março de La Libertá, na qual o órgão oficial da Concentrazione de Paris falava de Scarrone, ótimo e ativo combatente antifascista [...] todo ano, do bolso dele, publica panfletos e opúsculos de propaganda antifascista que difunde amplamente em todos os ambientes [...] Scarrone é um humilde trabalhador, escreve sem alguma pretensão literária e com um estilo muito simples. Sua modesta obra, embora marcada por certo simplismo, é uma contribuição importante para a causa do antifascismo.155 Até o principal instrumento do mundo antifascista italiano, então, se ocupava da singular atuação de Giuseppe: infelizmente, num de seus últimos exemplares publicados, já que dois meses depois a Concentrazione encerrava sua existência. Outro impresso de Scarrone vinha à luz naquele ano 156 , deixando perceber que o espirito de luta do velho socialista continuava igual. Assim na introdução estava escrito, em claras letras: Usurpação, incêndios, assassinatos, privação de toda liberdade de imprensa e individual, imposições, ilegalidades de todo tipo e espécie foram perpetrados sob a hipócrita aparência de interesse da Pátria [...] Há 12 anos o fascismo com estes sistemas domina e impera, acorrentando uma nação laboriosa [...] Tratando destes tristes assuntos, em 12 anos mandei imprimir 24 opúsculos, com críticas sinceras e justas. Cada publicação era alimentada pela esperança que fosse a última, mas, desgraçadamente, a sucessão cada vez mais dolorosa de inqualificáveis acontecimentos, me aconselhou em continuar numa publicação que colocasse as coisas em claro. 157 154 BN / SCARRONE, Giuseppe. Anita e Giuseppe Garibaldi. Dopo 85 anni dalla morte dell’una e 52 dell’altro: reminiscenze e confronti. Rio de Janeiro, 2.6.1934. 155 Ibidem, p. 16. 156 ACS / Biblioteca / Misc. C., n. 522. SCARRONE, Giuseppe. Fasi dell’opera di Mussolini. 16 anni di partito e 12 di governo fascista in Italia sono passati ma l’orizzonte é oscuro. Rio de Janeiro, 1934. 157 Ibidem, p. 3-6. Scarrone apresentava em seguida a razão imediata do presente opúsculo, o vigésimo quinto. Ao saber, através do paulistano Fanfulla, que Mussolini aceitara a sugestão do embaixador no Brasil de imprimir, com tiragem limitada, uma edição luxuosa do livro no qual o Duce evocava a vida do irmão Arnaldo recém-falecido, edição cujas rendas seriam revertidas para as obras de assistência dos fasci no país, o empresário dirigira uma carta para o consulado do Rio, encomendando um exemplar do volume, e para tanto incluindo o dinheiro para a compra, 100 mil reis, mas também acrescentando algumas linhas de acusação contra o líder do fascismo, responsável do assassinato de Matteotti, e perseguidor da viúva e dos filhos dele. O consulado, semanas depois, enviava um envelope selado para Scarrone, devolvendo o dinheiro. 123 A capa do impresso trazia uma fotografia que Scarrone retirara de um dos primeiros números de Giustizia e Libertá, periódico que começara a ser publicado em Paris pelo homônimo movimento, e que evidentemente o empresário lia ou recebia, talvez até como assinante, se corresponde à verdade o que um informe do Ministério do Interior italiano afirmava a seu respeito, três anos depois: “Recebe Giustizia e Libertá, que distribui como propaganda”. Passavam os anos, mas Scarrone não parecia desistir de sua batalha. De um lado se apoiando nos instrumentos ainda a sua disposição, tanto os nacionais, como La Difesa embora o periódico paulistano nos primeiros meses de 1934 estivesse encerrando suas publicações - quanto os do exterior, fosse o periódico da Concentrazione, o de G.L. ou até o anarquista Studi Sociali, editado em Montevideo por Luigi Fabbri, que incluiu o último opúsculo de Scarrone entre os livros recebidos.158 Do outro, possivelmente, encontrando os antifascistas que, apesar da aparente solidez do regime mussoliniano, do tempo que passava sem resultados evidentes, das feridas devidas a incompreensões e diferenças, ainda se declaravam tais e ousavam alguma iniciativa. Sufocadas as associações tradicionais da comunidade italiana no Rio de Janeiro, preservadas somente uma ou outra sociedade antifascista, como se verá com mais amplitude na parte dedicada a Battistelli, o mundo da oposição ao fascismo encontrará, contudo, nos anos de 1933-34, particularmente em São Paulo, um interlocutor importante em organizações da esquerda brasileira, socialista e, sobretudo, comunista, tanto da ortodoxia bolchevique quanto da galáxia trotskista. A Frente Única Antifascista e os vários comitês antiguerreiros e antifascistas foram sinais de um despertar do antifascismo brasileiro, em parte provocado também pelo rápido crescimento do movimento integralista. Não há possibilidade de acompanhar esta aceleração do antifascismo no Brasil pelos escritos de Scarrone, não havendo registros da mesma, assim como não há indícios neles de alguma reação diante da afirmação nazista na Alemanha. Pode se supor que ele acompanhasse os eventos tanto do Brasil como da Europa e de sua pátria longínqua. Mas o que há de se registrar aqui é o opúsculo de 1 de maio de 1935, como o qual 158 Cf. Studi Sociali, ano V, n. 36, 10.12.1934. 124 Giuseppe se despede publicamente da política ativa159. Aproximando-se a data de seu 76º aniversário, Scarrone rememorava uma vida inteiramente dedicada à luta pela qual quase tudo sacrifiquei, à luta de todo dia e toda hora pela defesa dos verdadeiros produtores da riqueza, do proletariado, enfim, que trabalha, sofre e infelizmente quase sempre se cala [...] Estas afirmações sirvam de despedida de minha vida ativa na política [...] a esses trabalhadores dedico todo meu trabalho, meus opúsculos, as minhas publicações.160 E continuava, em forma de carta para o diretor de uma importante sociedade produtora de vidros de sua cidade na Itália, seu antigo desafeto, narrando de forma sucinta tentativas e ostracismos sofridos na primeira parte de sua vida, e realizações obtidas em terra estrangeira, “na hospitaleira e grande Republica do Brasil”, onde “comecei uma vida nova, num ambiente novo, dedicando-me ativamente à arte do vidro e consagrando as poucas horas de descanso à propaganda de meus ideais e à mia defesa”. 161 Quase um testamento, politico e existencial, por parte de um homem que, prestes a encerrar seus anos de vida, deixava gravadas as razões de um empenho e de um testemunho. 2.13. Últimos anos Um carimbo azul no frontispício do opúsculo estampava 28.5.1935, Anno XIII E.F., indício de mais uma apreensão por parte da policia do regime, ao seu chegar ao correio italiano. A “Era Fascista” celebrava seu decimo terceiro ano de existência, encaminhando-se para a próxima conquista de mais um lugar ao sol, com ataque e conquista da Etiópia, enquanto no Brasil, a ANL, com seu programa antifascista e antiimperialista, estava em seus últimos dias de existência legal, e em breve a repressão do levante comunista de novembro deixaria congeladas por um bom tempo as palavras de ordem da esquerda, nacional como estrangeira, particularmente após a instauração do Estado Novo. Os antifascistas italianos sofreriam aumento de vigilância, perquisições, prisões, como se verá na terceira parte deste trabalho, seja pela repressão a tudo que levantasse suspeita de comunismo, seja pela campanha de nacionalização do governo Vargas e sua atitude rigorosa com os estrangeiros. 159 SCARRONE, Giuseppe. Prendendo congedo dalla politica ativa. Rio de Janeiro, 1.5.1935. Ibid., p. 3-4 161 Ibid., p. 7. 160 125 Nestes anos, Scarrone também, anunciada a despedida da vida politica ativa, concentrava suas atenções no trabalho. Na Fábrica Nacional de Vidros, sua criação, não conseguiu aplicar da forma desejada os seus princípios cooperativos, inspirados no socialismo um tanto romântico que o caracterizava. Várias dificuldades, como acima foi mencionado, tornaram menos radical do que esperava a realização do projeto: uma legislação que, visando regulamentar o trabalho dos menores, acabava prejudicando a aprendizagem da arte do vidro, diminuindo os relativos lucros162; exigências da fiscalização que incidiram pesadamente no balanço do estabelecimento; normas trabalhistas introduzidas pelo governo Vargas que, beneficiando os trabalhadores, criavam ônus para a empresa,163 fora o aumento de impostos sobre alguns produtos ligados ao mercado do vidro. A fábrica se confirmava com o passar dos anos como uma das principais da praça carioca, se não de todo o Brasil. Nem o incêndio que a danificou gravemente em janeiro de 1936, devido a um descuido durante uma troca de plantão, com derramamento de vidro incandescente liquido a 1000º de calor, conseguiu deter sua afirmação na cidade. Nesta ocasião, Scarrone mandava imprimir um opúsculo, em duas versões (italiano e português)164, narrando os eventos ligados ao incêndio e explicando um pouco a história da fabricação do vidro, e em seguida começava uma coletânea de livrinhos escritos em português, com o título “A Revolução na Indústria Vidreira”,165 trazendo o catálogo da fábrica, junto com informações e comentários sobre as técnicas da produção do setor. A trajetória de Scarrone estava chegando ao ponto final. Um dos últimos registros de sua existência e possivelmente o último de sua ação politica, antes do governo brasileiro proibir por decreto atividades neste sentido realizadas por estrangeiros,166 é o de um 162 Scarrone reafirmava em um conceito já apresentado anos antes: “Uma coisa que não pode ser aceita nem discutida é a idade de 18 anos para aprender o trabalho do vidro. [...] Ele é uma arte, como a música, a poesia, a escultura, a pintura [...] Na aprendizagem deste trabalho rápido e de capacidade mental, agilidade e calculo rápido, [...] é preciso ter uma agilidade que aos 18 anos o homem não possui mais”. Cf. SCARRONE, Giuseppe. O incêndio na Fábrica Nacional de Vidros, Rio de Janeiro, 1936, p. 12. 163 Scarrone se queixava, por exemplo, da lei das férias, que criava sérios problemas financeiros para sua empresa. Vários foram os trabalhadores da Fábrica Nacional de Vidros que entraram na justiça contra a empresa reclamando férias. Ver, como exemplo, o Diário Oficial da União de 4 de dezembro de 1937, p. 23991. 164 BN / SCARRONE, Giuseppe. O incêndio na Fábrica Nacional de Vidros, Rio de Janeiro, 1936. 165 Desta coletânea foi possível localizar somente alguns exemplares: n. 4 (1938), n. 6 (1939) e n. 13 (1942). Vale lembrar como, a partir de 1938, a legislação sobre os estrangeiros chegava a proibir o ensino realizado em línguas estrangeiras e mais tarde até o uso público de idiomas como o alemão, o japonês e o italiano. 166 Cf. Decreto-lei n.º 383, de 18 de abril de 1938. O art.1 dizia: “Os estrangeiros fixados no território nacional e os que nele se acham em caráter temporário não podem exercer qualquer atividade de 126 banquete, oferecido em seu estabelecimento, como homenagem ao “companheiro de ideias e amigo caríssimo conde Francesco Frola”, prestes a deixar o Brasil para alcançar a Universidade de Cidade de México, onde obtivera pelo governo do país a nomeação a docente. O próprio empresário relata em mais um opúsculo167 o evento, que se dera a 31 de outubro de 1937, destacando a participação, além de Frola (“proscrito da Itália, como eu, por ser contrario ao regime vigente”), dos representantes da Embaixada mexicana, do engenheiro Luigi Ferrero, dos proprietários da Editora Athena e do advogado Evaristo de Moraes.168 Nenhuma outra noticia foi possível levantar a respeito da vida de Giuseppe, nem de sua ação de antifascista. Os últimos anos da década de 1930 e os primeiros da sucessiva se passaram debaixo do rígido controle do Estado Novo, e somente a entrada do Brasil na guerra contra o Eixo permitirá aos antifascistas italianos tentar uma reorganização. Mas, a esta altura, o mais que octogenário Scarrone já não se empenhava mais. A perda da esposa, em fevereiro de 1944, o afetara profundamente. Poucos meses depois, em julho, também Giuseppe (José) encerrava seus dias de vida. natureza politica nem imiscuir-se, direta ou indiretamente, nos negócios públicos do país”. E o art. 2 acrescentava: “É-lhes vedado especialmente organizar, criar ou manter sociedades, fundações, companhias, clubes e quaisquer estabelecimentos de caráter politico, ainda que tenham por fim exclusivo a propaganda ou difusão, entre os seus compatriotas, de ideias, programas ou normas de ação de partidos políticos do país de origem [...] manter jornais, revistas ou outras publicações, estampar artigos e comentários na imprensa”. Texto retirado de GARCIA VARGAS, Eugenio (org.). Diplomacia Brasileira e Politica Externa. Documentos Históricos (1493-2008). Rio de Janeiro: Contraponto, 2008, p. 421-423. 167 SCARRONE, Giuseppe. Giuseppe Scarrone nelle sue memorie. Rio de Janeiro, 1937. No livrinho, o empresário faz preceder, à menção do banquete em homenagem a Frola, algumas páginas sobre infância, juventude e suas primeiras experiência de trabalho na Itália. 168 Ferrero era mais uma figura do antifascismo italiano no Rio de Janeiro: sua relevância e seu papel se tornaram significativos a partir de 1942, na liderança do grupo dos Italianos Livres na Capital Federal. Dele se falará em forma mais ampla na quarta parte do trabalho. A Editora Athena era de propriedade de um grupo de italianos antifascistas, tendo como seu diretor Pasquale Petraccone. Dele e de seus companheiros de trabalho e de ideias (Luigi Cingolani, Carlo Alessandro Tamagni e Filippo Ferri) se discutirá mais amplamente nas partes terceira e quarta deste trabalho. Aqui cabe registrar que, pela Editora Athena, Frola tinha publicado, naquele ano de 1937, um livro sobre a cooperação, com o título A cooperação livre (a economia espontânea do povo). Evaristo de Moraes, “Príncipe do Foro brasileiro”, como o define Scarrone no opúsculo, se destacara desde os anos 1920 como defensor da classe operaria em muitas de suas lutas sociais, e como um dos fundadores, em 1925, do Partido Socialista Brasileiro (ver nota 45). Sua presença em eventos promovidos pela Lidu do Rio, ou por La Difesa, também fora significativa. Neste mesmo ano de 1937 ele assinava o prefácio do livro de Frola. Uma boa introdução à sua vida e ação se encontra em MENDONÇA, Joseli Maria Nunes. Evaristo de Moraes, tribuno da República. Campinas: Editora Unicamp, 2007. 127 Um trecho escrito ainda onze anos antes vale como epilogo e síntese de sua existência: Esse é o meu socialismo. Que no fundo se reduz a uma só formula a ser aplicada: atribuir ao capital uma cota indispensável para que ele não somente não se esgote, mas progrida, para tornar cada vez mais eficiente a obra da produção, considerando o capital como coisa distinta da pessoa de seus detentores provisórios, como elemento destinado à produção de coisas úteis: máximos salários possíveis [...] Esse é o meu socialismo. Retrogrado, talvez, limitado, talvez, mas que é fé tenaz de meu coração, que é lembrança de minha juventude e da maravilhosa primavera dos ideais de reivindicação social em meu país! É o socialismo que a milícia de Mussolini teme a ponto de escalar, para sua vigilância, um exercito de camisas negras; é o socialismo que não teme a prisão e o exílio, pois é próprio daqueles que possuem a certeza de alcançar a meta.169 169 SCARRONE, Giuseppe. Mussolini non sbaglia mai!, op. cit., p. 32. Arquivo da Fundação Feltrinelli em Milão. 128 3. TERCEIRA PARTE / Libero Battistelli 3.1. A realidade do exilio Não é de todo impossível imaginar os sentimentos e as reflexões que se formaram no pensamento de Libero Battistelli, advogado bolonhês de 34 anos, quando chegaram à Capital Federal as primeiras informações acerca do naufrágio do Principessa Mafalda, na manhã de 26 de outubro de 1927. Era o mesmo vapor que o transportara da Itália para o Rio de Janeiro seis meses antes, em companhia da esposa e dos cunhados, e agora, aquele que era tido como um dos melhores Ocean liners da época, se encontrava afundado ao largo do litoral da Bahia, entre Caravelas e Abrolhos, com um balanço final de mais de trezentos mortos num total de cerca de 1200 entre passageiros e tripulantes. O registro de chegada ao porto do Rio de Janeiro do vapor holandês Alhena1, uma das embarcações que acorreram ao socorro do Principessa Mafalda, traz os nomes de 50 passageiros resgatados, provavelmente todos oriundos da terceira classe, pois receberam imediatamente encaminhamento para a Hospedaria da Ilha das Flores, fora duas mulheres que pediram para ser reenviadas para a Itália, tendo perdido seus maridos no naufrágio. A travessia do Atlântico, que há décadas representava para muitos italianos a esperança de trabalho e fortuna em terras americanas para garantir uma vida digna para si e suas famílias, tornara-se também para pessoas como Battistelli, empenhadas numa oposição aberta ao governo fascista, a única saída diante de uma condição insustentável. A de Libero tinha sido uma decisão não fácil, amadurecida após meses de busca de uma solução para sua vida e a de sua esposa Enrica, diante do progressivo estreitamento dos espaços de liberdade e segurança para os opositores do regime de Mussolini. E, embora a viagem que o trouxe ao Brasil tenha sido realizada na primeira classe, devido a uma posição financeira relativamente tranquila, um elemento comum igualava a sua condição à das dezenas de emigrantes que embarcavam na segunda ou na terceira classe: o abandono da terra natal, de raízes construídas com o tempo e de uma rede de relações que davam significado e continuidade à existência. Um abandono que, embora 1 Arquivo Nacional (AN), Divisão de Policia Marítima, Aérea e de Fronteira (DPMAF), Relações de Passageiros em Vapores (RPV), Porto do Rio de Janeiro (PRJ), Notação: BR.AN.RIO.OL.0.RPV.PRJ.22463 129 desejado como temporário, se apresentava, naquelas circunstâncias históricas, sob a aparência de um exilio a tempo indeterminado. De 1927 a 1936, por nove longos anos, Battistelli enfrentou a realidade do exilio em terra brasileira, no Rio de Janeiro, onde fixou sua morada até os eventos da guerra civil espanhola se perfilar no horizonte como oportunidade para ele se engajar na tentativa prática de derrotar a onda montante dos fascismos. Mas antes disso, a experiência do exilio, com seu componente de impotência e desilusão, marcara atos e pensamentos. Poucos meses após sua chegada ao Rio, Libero escrevia em La Difesa: “Paciência! A virtude humilde, cotidiana dos homens simples [...] é única nossa força atualmente. Abandonamos, com a modesta casa em que nascemos, com o trabalho que nos dava a dignidade de viver [...] as esperanças sempre vivas [...] Além dos montes e sobre o mar te carregamos, Paciência, como viático [...] que guardávamos para nosso exilio [...] Estavas ao nosso lado quando, passada a primeira alegria para o livre respiro em terra livre, sentimos sobre nossa cabeça de fugitivos a inclemência das novas constelações”.2 Dois anos depois, respondendo a um contato epistolar do anarquista Camillo Berneri3, que se encontrava em Paris, confessava: “Residir no Brasil, e particularmente no Rio de Janeiro (São Paulo, com seu núcleo numeroso de italianos, com seu semanal antifascista etc...está mais diretamente a contato com o centro), significa ficar automaticamente na periferia da vida intima de emigração antifascista. Tirando as noticias oficiais, que chegam pela imprensa ou através das circulares da Concentrazione ou dos partidos [...] só indiretamente pude conhecer fatos e homens do nosso meio”.4 E, em 1932, numa carta a Carlo Rosselli, líder de Giustizia e Libertá, comentava sua condição: “Obrigado por sua carta, que, se fosse um telegrama, resolveria todos os problemas do balanço do correio francês. Mas eu a teria desejado ainda mais longa, 2 “Pazienza”. La Difesa, Ano IV, n. 194, 4.12.1927, p.2. Cf. nota 77 da primeira parte. 4 Carta de Libero Battistelli a Camilllo Berneri, Rio de Janeiro, 17.9.1929, In FERI, Paola; DI LEMBO, Luigi (org.). Epistolario inédito / Camillo Berneri. Pistoia: Edizioni Archivio Famiglia Berneri ; Comune – Assessorato agli Istituti culturali, 1984, p. 49. 3 130 porque neste exilio, o único comércio espiritual possível para mim é o epistolar, e aqui eu corro o risco de desaprender o uso do cérebro”.5 A condição de exilado pesava nos ombros de Battistelli, mas o tornava também, de certo modo, mais livre para enfrentar temas polêmicos, tocar assuntos delicados, travar diálogos com os mais diversos expoentes do mundo antifascista. Num artigo sobre a postura que os revolucionários deveriam adotar diante das instituições parlamentares, escrito, ainda em 1935, em forma de carta ao anarquista italiano Luigi Fabbri, exilado em Montevidéu, onde dirigia a revista Studi Sociali, Battistelli conseguia destacar um aspecto positivo de sua realidade: “O exilio nos coloca, de certa forma, fora do tempo e do espaço. E a atualidade, que não podemos influenciar, nos livra de sua contingencia”.6 Quando da publicação desse texto no periódico de Fabbri, em agosto de 1936, Libero e sua esposa estavam atravessando o Atlântico de volta para a Europa, a bordo do vapor inglês Delambre, destino Liverpool, e depois a França, onde irão se colocar a serviço da defesa da Espanha republicana diante do ataque das forças de Franco. Após nove anos de exilio no Rio, uma nova etapa da luta. A morte que surpreenderá Battistelli no front aragonês no ano seguinte encerrará um percurso de vida dos mais significativos no âmbito do antifascismo exilado. 3.2. Um empenho que vem de longe Libero Battistelli nasceu em Bolonha, uma das mais populosas cidades do norte da Itália, a 21 de janeiro de 1893, de Ermanno e Maria Dari.7 O nome (Libero significa “livre”, em italiano) lhe foi atribuído pelo pai, como ele mesmo advertiu numa correspondência com Rosselli, na qual recordou que “esse batismo foi desejado, com 5 Carta de Libero Battistelli a Carlo Rosselli, Rio de Janeiro, 27.4.1932, In Istituto per la Storia della Resistenza in Toscana (ISRT), Arquivo de Giustizia e Libertá (AGL), Fundo Carlo Rosselli, fasc. 1, sottofasc. 8. 6 “I Rivoluzionari e il Parlamento”. Studi Sociali, Montevidéu, Ano VII, Serie II, n. 3, 15.8.1936, p. 4. 7 Para uma reconstrução do perfil biográfico de Battistelli, ver ALBERTAZZI, Alessandro; ARBIZZANI, Luigi; ONOFRI, Nazario Sauro (org.). Gli Antifascisti, i partigiani e le vittime del fascismo nel bolognese: 1919-1945, Dizionario Biografico, Bologna: Istituto per la storia della resistenza e della società contemporanea nella provincia di Bologna "Luciano Bergonzini" (ISREBO),1985-2003, verbete “BATTISTELLI, Libero”. Site: http://www.iperbole.bologna.it/iperbole/isrebo/strumenti/strumenti.php Ver tambem ACS/CPC, b. 411, f. 29269 (“Battistelli, Libero”) e BERTONHA, João Fábio. “Libero Battistelli e Giustizia e Libertá no Brasil: um aspecto da luta antifascista italiana na América do Sul”. Diálogos, Maringá, vol.3, p. 213-234,1999. 131 certa dose de retórica e gosto discutível, por meu pai, admirador de Carducci”.8 E o nome, inspirado nas rimas do poeta e nos seus anseios pela autêntica liberdade da pátria em tempos de Risorgimento,9 ficou quase como uma marca de nascença para o jovem Battistelli. A família tinha-se transferido de Forlí, centro menor da região chamada Romanha, para Bolonha cinco anos antes, e, dois depois do nascimento de Libero, morreu o irmão dele, com seis meses de vida. Em 1908, nova transferência, desta vez para Brescia. Aqui aconteceram os estudos de Libero, incluindo sua formação em direito. Durante a primeira guerra mundial, ele foi oficial de artilharia. Após a guerra, teve residência precária em Bolonha, até se estabelecer definitivamente na cidade, a partir de 1921. Foi no ambiente bolonhês, composto tanto da realidade urbana da própria capital da região como da vida e da cultura dos centros menores do interior, prevalentemente agrário, que amadureceram escolhas e estilos de vida. Era um ambiente marcado, de um lado, pela radicada presença de ligas camponesas, cooperativas, câmaras do trabalho e sindicatos de inspiração socialista ou republicana, do outro, a partir sobretudo de 1920, pela tentativa violenta de destruição e sufocamento deste mundo associativo por parte das esquadras fascistas, que estendiam sua ação também contra municipalidades governadas pela esquerda. E de um destes episódios - o ataque fascista à sede da prefeitura de Bolonha no dia 21 de novembro de 1920, em ocasião da posse da nova junta municipal, formada em sua maioria por socialistas - Battistelli oferecerá uma reconstituição bem documentada e uma interpretação original, num artigo (“I fatti di Palazzo d’Accursio e l’assassinio Giordani”) escrito nos primeiros anos de seu exilio carioca e que será publicado póstumo.10 Nele, são esquadrinhadas cumplicidades e conivências entre fascistas, forças de polícia, imprensa e magistratura, bem como 8 Carta de Libero Battistelli a Carlo Rosselli, Rio de Janeiro, 24.7.1933, In ISRT/AGL, Fundo Carlo Rosselli, fasc. 1, sottofasc. 8. Giosué Carducci (1835-1907) foi um célebre poeta italiano da segunda metade do século XIX, professor universitário na cidade de Bolonha e propugnador de ideais republicanos e laicos. 9 Risorgimento é a denominação com a qual a historiografia italiana identifica o processo de formação da unidade do país ao longo do século XIX, começando pelos movimentos insurrecionais do começo do século, passando pelas guerras de independência de meados do século, até a sucessiva campanha de Garibaldi para a conquista das regiões meridionais. A região de Veneza, obtida da Áustria e a cidade de Roma, ocupada em 1870, completaram o processo. 10 ANTONIONI, Ezio. “Un inedito di Libero Battistelli”, In Fascismo e Antifascismo nel bolognese: 19191926, 8º caderno de La Lotta, Bologna, 1969, p. 29-42. O episodio, originado pela agressão fascista à multidão reunida na praça principal de Bolonha, que aguardava a posse da junta municipal, causou a morte de onze pessoas, atingidas por tiros ou granadas de mão. 132 virtudes e limites do movimento socialista local, do qual o autor critica duramente a tendência de alguns expoentes à demagogia ou ao aburguesamento. E foi nesse mesmo ambiente que Libero conheceu e avaliou propostas politicas dos vários setores do subversivismo, definição carregada de uma conotação positiva e que ele aplicará, sobretudo em sua reflexão mais madura a partir do exilio, aos expoentes do socialismo, do sindicalismo, do anarquismo, de parte do republicanismo, e, mais tarde, do partido comunista e do movimento de Giustizia e Libertá. No âmbito do subversivismo bolonhês com que ele se embateu nesses anos, seu contato com o anarquismo foi mínimo, mas em um ponto foi significativo, e vale seu registro aqui como indicação de uma simpatia, de uma abertura que caracterizarão em futuro sua posição politica e certas escolhas, seja no Brasil, como na Espanha republicana. Será o próprio Libero a mencionar a circunstância em 1932, quando, convidado a proferir algumas palavras durante um evento promovido no Rio de Janeiro pelos anarquistas brasileiros, pela Liga Anticlerical e a Associação Antifascista em memória de Errico Malatesta, o expoente libertário falecido naquele mesmo ano, lembrará de um comício ao qual assistira, ainda em 1919, em Bolonha. Após vários expoentes do mundo politico local, com destaque para socialistas revolucionários e socialistas reformistas, todos empenhados em proclamações revolucionárias regadas a muita demagogia, chegou a hora do célebre anarquista. Battistelli recordará a fala inflamada daquele homem, o qual afirmava que a revolução não caia do céu, mas era preciso fazê-la, cabia aos trabalhadores, aos próprios proletários fazê-la [...] e era preciso preparála [...], materialmente - armando-se, e espiritualmente - dispondo-se ao sacrifício [...], pois a luta seria dura, não se ganharia com aplausos nos comícios [...] e sim lutando nas ruas e nas praças [...] e depois da vitória far-se-ia necessário um espirito de sacrifício ainda maior.11 E acrescentará ter experimentado naquela hora a “impressão nítida e tristemente profética de que com aquelas multidões não se poderia fazer a revolução [...], mas também a percepção que finalmente estávamos diante de um verdadeiro revolucionário”.12 Começou naqueles anos a militância de Libero. Ele lembrou seus inicios e a escolha do partido republicano (PRI) na carta a Berneri já citada: 11 12 “Parole su Errico Malatesta”. Studi Sociali, Montevidéu, Ano XVIII, Serie III, n. 5, 31.5.1946, p.16-18. Ibidem. 133 Entrei tarde na vida politica. Em 1922, quando uma simples declaração de apartidarismo bastaria para disfarçar conformismo e covardia. Entrei tarde não só por uma preocupação de seriedade e ponderação na decisão, mas também porque nenhum dos partidos políticos italianos correspondia plenamente às minhas ideias pessoais [...] Minha escolha pelo partido republicano se deve mais a uma proximidade do que a uma identificação ideológica com ele [...], nela tendo certa influência o exemplo de Mario Bergamo13 [...] cuja integridade moral tornava preferível lutar ao lado dele. 14 Republicano, então, e de esquerda, como Bergamo. Battistelli se filiou ao partido, que, apesar de sua escassa consistência numérica15, após a chacina de novembro de 1920 e o enfraquecimento dos socialistas, parecia ter-se tornado o único capaz de enfrentar o fascismo montante na cidade de Bolonha, e se empenhou, junto com o colega advogado, na defesa de perseguidos políticos pelo fascismo, particularmente dos trabalhadores da região de Molinella.16 Por causa disso, como o próprio Bergamo, foi ameaçado e agredido, tendo casa e escritórios destruídos. 13 Advogado em Bolonha, Bergamo adere em 1920 ao partido republicano, do qual tenta favorecer a orientação para a esquerda. Envolvido na defesa de vários militantes perseguidos pelas esquadras armadas de Mussolini, se torna objeto de violências por parte dos fascistas (agressões e destruição do escritório). Eleito deputado em 1924, no ano seguinte é nomeado secretario nacional do partido, e se muda para Roma. Em novembro de 1926 sai da Itália e se transfere para a França, onde continua sua batalha antifascista. Em 1935, contudo, se aproximará do regime, permanecendo em Paris até o fim do conflito, se recusando a voltar para a Itália mesmo após o fim da guerra. Cf. ALBERTAZZI, Alessandro; ARBIZZANI, Luigi; ONOFRI, Nazario Sauro (org.). Gli Antifascisti, i partigiani e le vittime del fascismo nel bolognese: 1919-1945, op. cit., verbete “BERGAMO, Mario”. 14 Carta de Libero Battistelli a Camillo Berneri, Rio de Janeiro, 17.9.1929, In: FERI, Paola; DI LEMBO, Luigi (org.). Epistolario inédito / Camillo Berneri, op. cit., p. 48-49. Também na carta de 27.4.1932 para Rosselli, citada acima, Libero, justificando sua adesão atual a Giustizia e Libertá, recorda os motivos de sua antiga filiação ao partido republicano: ele menciona como, apesar da maior proximidade de suas ideias com aquelas dos socialistas do que com as dos republicanos, as atitudes covardes da maioria dos lideres socialistas bolonheses comparada com a coragem do republicano Bergamo o fez decidir por aquele partido. E acrescenta uma frase significativa: ”Meu posto foi então entre os republicanos, assim como agora é entre vocês. Porque a identidade moral e de caráter é muito mais importante do que a identidade ideológica”. 15 Battistelli lembra em um artigo, escrito no exilio do Rio de Janeiro e publicado póstumo, sobre um atentado à vida de Mussolini, realizado em Bolonha por Anteo Zamboni em outubro de 1926, que “republicanos em Bolonha éramos 67!”. Cf. DELLA CASA, Brunella (org.) “Libero Battistelli: ‘L’attentato Zamboni’”. Contemporanea, Ano III, n.4, outubro de 2000, p. 679-700. 16 Pequeno centro rural da província de Bolonha, Molinella se destacara como local de intensas lutas de camponeses contra latifundiários desde o final do século XIX e nas primeiras décadas do XX, com a reivindicação de direitos e melhorias, sob a liderança do socialista Giuseppe Massarenti, líder de ligas camponesas e eleito por duas vezes prefeito da cidade. A mobilização levou à obtenção de contratos de trabalho agrícola que serviram de modelo para outros centros da região, e à criação de estruturas de amparo ao trabalhador. As agressões fascistas, que de 1920 até 1926 atingiram muitas áreas do norte da Itália, foram particularmente intensas contra a população e as instituições de Molinella (incêndio e devastação de sedes de ligas camponesas, de cooperativas, bibliotecas etc...). 134 Ainda em 1921, Libero conheceu Enrica Zuccari,17 de profissão costureira, nascida em 1896 na própria Molinella, e os dois casaram com rito civil no dia 25 de abril de 1925. Mas naquele ano, o ambiente não se apresentava mais favorável para a construção de uma família, nem para a atividade profissional, devido às repetidas ameaças e violências. O fascismo estava consolidando seu poder no governo do país: primeiro ministro desde outubro de 1922, Mussolini tinha superado a crise de 1924, ligada ao assassínio de Matteotti18, e caminhava a largos passos para a consolidação da ditadura, de fato inaugurada com o discurso de 3 de janeiro de 1925. No tempo de dois anos, 1925-26, as sucessivas intervenções legislativas do regime (as leis “fascistíssimas”) foram reduzindo os espaços de liberdade na vida politica e civil do país, e os principais membros dos partidos, assim como simples militantes socialistas, republicanos, liberais, ou anarquistas, tiveram que abraçar a dolorosa escolha da emigração. Muitos dos expoentes do antifascismo italiano expatriaram em direção à França: em 1925 era a vez do católico Giuseppe Donati, do historiador Gaetano Salvemini e dos liberais Piero Gobetti e Giovanni Amendola. No ano seguinte, particularmente logo após o atentado de Zamboni de 31 de outubro contra o Duce e a recrudescência da repressão que se seguiu,19 serão os próprios dirigentes dos partidos do Aventino (os socialistas Claudio Treves e Pietro Nenni, o republicano Mario Bergamo, entre outros) a deixar a Itália de forma repentina e, às vezes rocambolesca, como no caso do velho líder socialista Filippo Turati, que, aos 70 anos, será ajudado por militantes a alcançar a ilha da Córsega, território francês, fugindo da Itália a bordo de uma barca a motor. Na França, os emigrados políticos, ou fuorusciti, se concentraram prevalentemente na cidade de Paris ou em regiões onde a existência de colônias italianas podia favorecer sua inserção no território e a tentativa de reorganização de uma militância politica.20 Provavelmente, Libero Battistelli e sua esposa pensaram seriamente a uma solução deste 17 Para noticias sobre Enrica ver ACS / CPC b. 5601, f. 125895 (“Zuccari, Enrica “). Cf. nota 51 da Primeira Parte. 19 Cf. nota 43 da Primeira Parte. 20 Sobre os primeiros passos da emigração politica italiana na França, ver sobretudo TOMBACCINI, Simonetta. Storia dei fuorusciti italiani in Francia. Milano: Mursia, 1988; DROZ, Jacques. Histoire de l’antifascisme en Europe (1923-1939). Paris: La Découverte, 2001; GROPPO, Bruno. “Entre immigration et exil: les refugiés politiques italiens dans La France de l’entre-deux-guerres” In: Matériaux pour l’Histoire de notre temps, 1996, vol. 44, nº1, p, 27-35; RAPONE, Leonardo. “Emigrazione italiana e antifascismo in esilio” In: ASEI (Archivio Storico dell’Emigrazione Italiana), 2008; FEDELE, Santi. Storia della Concentrazione Antifascista, 1927-1934. Milano: Feltrinelli, 1976. TOBIA, Bruno. Scrivere contro. Ortodossi ed eretici nella stampa antifascista dell’esilio, 1926-1934. Roma: Bulzoni, 1993. 18 135 tipo: afinal, a vida em Bolonha estava se tornando impossível, para quem não se conformava em viver no silêncio e na adaptação. O passaporte de Enrica, uma cópia do qual é conservada nos arquivos brasileiros21, mostra os percursos de amadurecimento da decisão de expatriar do casal. Entre abril de 1925 (três meses após o discurso do Duce) e março de 1927, Enrica e Libero saíram cinco vezes de trem do território italiano (respectivamente em abril e agosto de 1925, fevereiro e agosto de 1926, março de 1927), saídas todas realizadas com destino a França, passando pela Suíça. O passaporte, com efeito, foi concedido em abril de 1925 pelas autoridades italianas somente para os dois países europeus, pelo prazo de um ano, e foi renovado em junho de 1926, com as mesmas condições. As saídas dos dois em direção à França, realizadas com intervalos de 5 ou 6 meses e com uma permanência fora do país que ia de poucos dias a duas ou três semanas, sugerem uma tentativa de verificar as possibilidades da instalação da família em território francês. Talvez em Marselha, no litoral mediterrâneo, meta de alguns expoentes da área republicana, como Ferdinando Schiavetti e Francesco Volterra. Ou em Annemasse, pequeno centro da Haute-Savoie, localizada a pouca distancia da fronteira suíça e de Genebra: a região, desde tempos mais antigos, era terra de emigração italiana, e Genebra foi asilo histórico para gerações de refugiados políticos. Annemasse contava com a presença de muitos italianos da região de Bolonha, e, junto com alguns centros limítrofes, seria refúgio de outros membros do partido republicano, como Eugenio Chiesa e Cipriano Facchinetti.22 A meta final talvez fosse a própria Paris - hipótese sugerida pela constante passagem do casal Battistelli por Vallorbe e Porrentruy, cidades fronteiriças da Suíça localizadas na rota em direção à capital francesa – para onde, aos poucos, como vimos, os principais expoentes dos partidos italianos se transferiram, e onde o próprio Bergamo, líder do partido republicano, amigo e colega de Battistelli, se estabeleceu em janeiro de 1927, após ter saído da Itália em novembro do ano anterior. De qualquer forma, essas saídas do casal, breves, mas regulares, além de indicar a tentativa de preparar uma colocação adequada no mundo da emigração, fazem pensar na possível existência de uma rede de 21 Processo de Naturalização de Enrica Zuccari Battistelli, IJJ6 N.123/1929, Secretaria de Estado da Justiça e Negócios Interiores, Diretoria do Interior/ Arquivo Nacional. O processo de naturalização de Libero, mesmo tendo acontecido na mesma época do de sua esposa, não foi localizado no acervo do Arquivo Nacional. 22 Ver MONTELLA, Fabio. “La vera Italia é all’estero. Esuli antifascisti a Ginevra e nell’Alta Savoia”. Diacronie. Studi di Storia Contemporanea, 29/01/2011. URL:<http://www.studistorici.com/2011/01/29/montella_numero_5/> 136 amizades e relações da qual Libero participasse ativamente. Talvez o advogado bolonhês tivesse-se oferecido como elemento de contato entre a Itália e alguns ambientes dos fuorusciti, talvez ele até chegasse a participar do primeiro congresso do PRI no exílio, que aconteceu na cidade francesa de Lyon em agosto de 1926 (naquelas semanas ele justamente se encontrava na França). A intenção dos Battistelli era de qualquer forma a de emigrar para a França, como o próprio Libero confirmou na carta já citada a Berneri23: “Circunstâncias imprevistas e um tanto ficcionais, me ofereceram – enquanto estava preparando a fuga para a França – uma saída mais fácil e segura em direção ao Brasil”. Por que a desistência da solução francesa e a decisão para o Brasil? Ainda a 3 de fevereiro de 1927 a polícia de Bolonha confirmava o visto para a França, carimbado novamente no dia 12, e os Battistelli se encaminharam para nova viagem em direção deste país em março. Mas no começo do mês faleceu a mãe de Libero, e este fato talvez possa ter derrubado uma derradeira resistência dele diante de uma proposta, quem sabe já existente há tempos, para emigrar na América Latina. Tratava-se, provavelmente, de uma oportunidade de trabalho coletiva, oferecida também ao cunhado Andrea Zuccari, irmão de Enrica, que viajará para o Rio junto com a esposa Clara e o casal Battistelli. Este, numa depoimento para a policia em ocasião de uma investigação e devassa na fazenda da família em Magaratiba, em 1938, declarará ter saído da Itália e aportado ao Brasil com um “contrato coletivo de trabalho proposto pelo comendador Lurati”, que se dizia proprietário de uma fábrica de sedas em Niterói, mas que mais tarde se descobriu ser “um aventureiro e um jogador”24. Isto corresponde também à noticia fornecida pela policia italiana, segundo a qual Enrica Zuccari emigrara para o Brasil, “para assumir junto com o marido a direção técnica de uma firma comercial de propriedade do comendador Augusto Lurati25 no Rio de Janeiro.26 Assim, o passaporte de Enrica (e certamente também o de Libero) foi validado dia 2 de 23 Carta de Libero Battistelli a Camilllo Berneri, Rio de Janeiro, 17.9.1929. In FERI, Paola; DI LEMBO, Luigi (org.) Epistolario inédito / Camillo Berneri, op. cit., p. 49. 24 AN / Fundo Tribunal de Segurança Nacional – C8 , Código C8.0.PCR.0190 ,ficha 237938, processo N. 471 (“ Zuccari, André”) 25 Augusto Lurati, após ter sido, desde 1921, sócio arrendatário de um Cassino-Teatro em Copacabana, nas dependências do Hotel Copacabana Palace, desistira da empreitada e em 1924 saudava os amigos brasileiros através do jornal, anunciando sua volta à Europa, a fim de comprar maquinários para construir uma grande fabrica de seda em Niterói. Cf. Correio da Manhã, 12.4.1924, p.7 26 Cf. ACS/CPC, b. 411, f. 29269 (“Battistelli, Libero”), Informe da “Prefettura” de Bolonha para o Ministério do Interior, 24.11.1936. 137 abril pela autoridade policial com destino o Brasil, com visto concedido no sucessivo dia 12 pelo cônsul brasileiro em Milão. Interessante, a respeito, é a data do casamento civil dos cônjuges Zuccari, irmão e cunhada de Enrica: 17 de março de 1927, quase estivessem regularizando uma situação em vista de uma partida imediata para o exterior.27 3.3. Primeiros tempos no Rio de Janeiro A viagem aconteceu, como foi mencionado acima, no vapor Principessa Mafalda, saindo do porto de Genova no dia 15 de abril. O trajeto foi o de sempre: escala em Barcelona, navegação ao longo do litoral africano até a escala em Dakar e depois a travessia do Atlântico. Duas semanas de viagem e a entrada no porto do Rio dia 24 de abril. Libero e Enrica viajaram na primeira classe, levando duas bagagens, e, ao desembarcar, declararam Hotel Gloria como destino na Capital Federal, enquanto Clara e Andrea Zuccari, este último se apresentando como eletricista, viajaram na segunda. Endereço de destino para este casal foi Rua do Ouvidor, 24, fato que deixa pensar num apoio familiar ou profissional.28 Nenhum deles, de qualquer forma, foi encaminhado para a Ilha das Flores, ponto de trânsito obrigatório, pelo contrário, ao desembarcar no Rio, para os 24 passageiros italianos da terceira classe, como havia tempo era previsto pelas leis do Estado brasileiro para os imigrantes em busca de trabalho. Não é dado saber por quanto tempo o Hotel Gloria, o endereço mais prestigioso da rede hoteleira da cidade, permaneceu a residência de Battistelli. Em 1928 seu endereço para a correspondência, indicado no final de uma carta para o socialista Pietro Nenni em Paris,29 será Rua 13 de Maio, 50: o mesmo que o semanal antifascista La Difesa, desde finais de 1926, comunicava a seus leitores e assinantes como seu ponto de referência na Capital Federal, por ser a sede da secretaria da Lidu, a Liga Italiana dos Direitos do Homem, da qual Battistelli estava participando. Já a partir de 1929, Libero fixou sua 27 Processo de Naturalização de Clara Riccó Zuccari, IJJ6 N.113/1930, Secretaria de Estado da Justiça e Negócios Interiores, Diretoria do Interior. Arquivo Nacional. No Processo de Naturalização do marido, Andrea Zuccari (também IJJ6 N.113/1930), consta também copia do passaporte deste, expedido pela autoridade policial de Bolonha dia 10 de abril de 1927, poucos dias depois da expedição dos documentos de Libero e sua esposa. 28 Ver Arquivo Nacional (AN), Divisão de Policia Marítima, Aérea e de Fronteira (DPMAF), Relações de Passageiros em Vapores (RPV), Porto do Rio de Janeiro (PRJ), Notação: BR.AN.RIO.OL.0.RPV.PRJ.21978 29 ACS / Archivio Pietro Nenni, b. 3, f. 178. Carta de Libero Battistelli para Pietro Nenni, Rio de Janeiro, 18.7.1928. 138 residência em um sobrado da Rua Sete de Setembro, 96, onde sua esposa abriu também uma oficina de modas e costuras, coadjuvada pela cunhada. É de se pensar que aquela proposta inicial do comendador Lurati (fábricas de sedas) tenha durado pouco tempo, talvez se revelando uma fraude, ou tenha de alguma forma dado origem à oficina de moda de Enrica. Mas qual era, ao tempo de sua chegada ao Brasil, o perfil politico de Battistelli, e que ambiente encontrou na Capital, no âmbito da colônia italiana e do mundo do antifascismo? Republicana, e de esquerda, fora sua formação ainda na vida politica em Bolonha. Republicano, então, mas “sui generis”, como ele se definiu na sua primeira carta a Berneri, acima citada: No partido [republicano], tentei fazer com que fossem acolhidas como ortodoxas as minhas ideias pessoais (orientação classista do partido, frequentes e estreitos contatos com os vários segmentos socialistas, e mais com os comunistas do que com os reformistas, etc...), às vezes conseguindo, às vezes não. Tudo isso poderá explicar meu republicanismo um tanto sui generis e meu escasso sentido de disciplina estritamente partidária.30 E também na segunda, quando já se anunciava uma aproximação entre ele e o expoente anarquista: “Entre um anarquista ‘sui generis’, com ‘fama de republicano federalista’ e um republicano ‘sui generis’ com fama de comunista marxista, os pontos de contato não devem faltar”.31 Como se vê, a singularidade que Battistelli atribuía à sua militância republicana era feita tanto de conteúdos (entre outros, a defesa de uma configuração do partido que não tivesse medo de uma escolha classista, fato que lhe fizera ganhar a fama de ‘comunista marxista’) quanto de atitudes (dialogo aberto com o mundo socialista e comunista, e com o próprio anarquismo). Na carta acima mencionada a Nenni, um dos membros mais jovens do Partido Socialista Italiano (PSI), de orientação maximalista, e que emigrara para Paris, onde o partido reconstituiu sua secretaria e voltara a publicar o seu jornal Avanti!, Battistelli ofereceu uma lembrança dos tempos do Aventino, quando, em Bolonha, ele e outros republicanos agiam como trait-d’union entre reformistas e maximalistas, as duas correntes em que o 30 Carta de Libero Battistelli para Camillo Berneri, Rio de Janeiro, 17.9.1929, In FERI, Paola; DI LEMBO, Luigi (org.) Epistolario inédito / Camillo Berneri, op. cit., p. 49. 31 Carta de Libero Battistelli para Camillo Berneri, Rio de Janeiro, 16.11.1929, In FERI, Paola; DI LEMBO, Luigi (org.) Epistolario inédito / Camillo Berneri, op. cit., p. 54. 139 socialismo italiano se encontrava dividido. Papel singular, devido, continua Libero, à ausência de hostilidades preconceituosas, e também ao fato de os republicanos possuírem, de um lado, um programa parecido como o dos reformistas e, do outro, um “temperamento revolucionário” afim com o dos maximalistas. Assim Battistelli podia falar de igual para igual para Nenni, ao qual recordava que ele “foi por longo tempo um dos nossos, e [que] ainda hoje é o mais republicano entre os socialistas, assim como eu me orgulho de ser um dos mais socialistas entre os republicanos”.32 Essas correspondências com Nenni e Berneri são dos primeiros anos do exilio brasileiro de Battistelli, antes de uma viagem à Europa, em 1930, que terá repercussões decisivas sobre sua orientação política. Mas desde já é percebível uma característica que o acompanhará constantemente não só em suas contribuições teóricas para o debate no seio do antifascismo exilado, mas também em suas atuações tanto no contexto carioca e mais em geral brasileiro, quanto no cenário europeu de meados dos anos Trinta: uma constante disponibilidade ao diálogo com todas as componentes do mundo do antifascismo, uma facilidade de trânsito em setores e grupos diferentes daquele ao qual ele pertencia, a consciência que o fundamento de uma possível vitória na luta contra o fascismo repousava unicamente em uma real vontade e capacidade de encontro e de trabalho comum acima das diferenças ideológicas ou programáticas. Republicanismo sui generis, portanto, o dele, assim como mais tarde será pertencimento também sui generis a Giustizia e Libertá, com aberturas para o mundo socialista e simpatias alimentadas e cultivadas para o anarquismo e também para o comunismo. Catapultado literalmente num “mundo novo”, como o Brasil deve ter-se apresentado aos seus olhos, num Estado ainda repleto de incongruências e desigualdades, mas mesmo assim regido pelo regime republicano que ele sonhava para a Itália (embora não pareceu manifestar grande simpatia pelo governo Washington Luís, que encontrou em 1927, diferentemente de como irá saudar a mudança que se anunciava com a chegada ao poder de Vargas em 1930, como se verá mais para frente), Battistelli foi gradualmente se inserindo na Capital Federal, em sua colônia de imigrados italianos, no ambiente do antifascismo carioca e brasileiro. Amparado por certa tranquilidade financeira e pela atividade de sua esposa, com a oficina de costura que em breve abriria no centro do Rio, 32 Carta de Libero Battistelli para Pietro Nenni, Rio de Janeiro, 18.7.1928. ACS / Archivio Pietro Nenni, b. 3, f. 178. 140 um atelier, onde trabalhariam, em certo momento, até 20 costureiras, teve a possibilidade de se dedicar em tempo integral, pelo mesmo nos primeiros anos, à discussão política, à elaboração ideológica, à luta antifascista conduzida nas páginas dos jornais e nos locais de reunião da colônia italiana. O mundo do antifascismo italiano no Rio de Janeiro, em meados de 1927, era o que as paginas de La Difesa apresentam, e que já foi descrito na segunda parte deste trabalho: um punhado de homens generosos (alguns de antiga emigração, outros recémchegados), ligados a diferentes orientações políticas, mas fundamentalmente de área socialista, republicana ou liberal-democrática, e empenhados na difusão do semanal que chegava de São Paulo e que encontrava muitas vezes a hostilidade de donos de bancas de jornais partidários do Duce; homens capazes de constituir organismos de luta antifascista e envolvidos na defesa de espaços de socialização da colônia italiana, quais a Societá Italiana di Beneficienza, diante da pressão dos organismos consulares e da própria embaixada a fim de que se completasse sua “fascistização”; homens, em definitiva, animados por boas intenções, mas cuja atuação não parecia ter muita resposta entre os italianos da Capital Federal. Da mesma forma como, exceto contatos e alianças com alguns expoentes do mundo politico e intelectual da cidade, o antifascismo permanecia – igualmente ao que acontecia na França ou em outras nações que abrigavam os fuorusciti - um movimento substancialmente italiano, por ser considerado fenômeno substancialmente italiano o próprio fascismo. As campanhas nas quais se lançaram os exilados, deste lado como do outro do Atlântico, e nas quais Libero também se empenhou, visavam mostrar quanto fosse errada essa visão e leitura da realidade politica da ditadura fascista, e quanto esta última representasse, por suas características de exemplaridade, uma ameaça à liberdade de qualquer povo e Estado, mas a tomada de consciência das sociedades e do mundo politico internacional, e também latino-americano, a respeito dessa ameaça haverá de acontecer somente anos depois, quando da chegada ao poder na Alemanha do partido nacional-socialista, e mesmo assim de forma parcial. Battistelli chegou nesse contexto e aos poucos foi se inserindo, tecendo relacionamentos e amizades, realizando escolhas e tomadas de posição, esclarecendo e elaborando seu pensamento. As fontes nas quais é possível se apoiar para reconstruir seus passos nestes anos são as correspondências trocadas com expoentes do antifascismo no exterior e os 141 artigos que ele escreveu para La Difesa, com a qual começou a colaborar a partir de julho de 1927. São rastros que ajudam na delineação de um percurso, ou, melhor, da “curva de um destino”, como lembra Lucien Febvre no prólogo de seu livro sobre Martinho Lutero.33 Pois é isso que se pode fazer também com Battistelli, e os outros protagonistas deste trabalho: tentar preencher o espaço entre uma evidência e outra, um marco e outro, um texto e outro, uma intervenção e outra, a fim de reconstituir uma curva, na qual é possível também identificar modulações, variações de acento e de registro, cientes, contudo, de que há de se evitar de “apresentar situações de confusa simultaneidade como sendo sucessivas”34, fugindo da imposição da camisa de força de uma rígida sucessão de fases lá onde há a natural fluidez de um pensamento humano que cresce, muda, retorna, se corrige, muitas vezes à luz de eventos e circunstâncias externas. Passos e acentos, de qualquer forma, que eram desde logo concentrados no objetivo primário de sua atuação em terra de exilio: oposição ao fascismo italiano e onde quer que se apresentasse, apoio ideal e prático a toda iniciativa virada à sua derrocada, contribuição na elaboração do cenário futuro do país finalmente libertado da ditadura. Os instrumentos que em 1927 estavam à disposição de Battistelli para tanto, no ambiente do Rio de Janeiro, eram a Lega per i Diritti dell’Uomo (LIDU) e La Difesa, dirigida naquele momento por Frola, em São Paulo. Libero participava das assembleias da primeira, da qual chegará a ser nomeado vice-presidente, assim como é de se supor que frequentasse, como muitos membros da associação, os ambientes da Maçonaria: a documentação da policia italiana, baseada em relatórios e informes da embaixada do Rio de Janeiro, o sugere.35 Pode-se supor também que ele participou da comemoração de Matteotti, promovida pela Lidu a 10 de junho de 1927, e realizada no Salão da Aliança dos Operários em Calçados, na Rua do Acre, 10: um artigo de La Difesa 36 fala da divulgação do evento nas semanas anteriores, das muitas adesões (entre as quais a do Partido Comunista, do Partido Socialista, de expoentes da Maçonaria, de várias organizações de trabalhadores, de Mauricio de Lacerda e de Agrippino Nazareth, redator –chefe do jornal A Vanguarda) e das falas de expoentes do mundo politico e 33 Cf. FEBVRE, Lucien. Martinho Lutero, um destino. São Paulo: Editora Três Estrelas, 2012, p. 11. Ibidem, p. 243. Febvre cita aqui André Gide, e comenta: “Impressionante formulação. E quantas vezes nós, historiadores, descuidamos da lição que ela encerra? Como se não houvesse artifício nessa cronologia ‘estritamente objetiva’ de que tanto nos orgulhamos”. 35 Cf. ACS/CPC, b. 411, f. 29269 (“Battistelli, Libero”). 36 “L’indimenticabile serata a Rio de Janeiro”. La Difesa, Ano IV, n. 170, 19.6.1927, p. 1-2. 34 142 intelectual da cidade, como Azevedo Lima, deputado eleito pelo Bloco Operário37 e o ex-deputado Nicanor Nascimento, além do advogado Evaristo de Moraes e do próprio Frola, chegado de São Paulo para a ocasião, e que resolveu permanecer algumas semanas na Capital Federal para impulsionar o movimento antifascista. Em setembro, Battistelli, junto com Scala e outros, acompanhou numa viagem a Belo Horizonte o diretor de La Difesa, onde este proferiu algumas conferências.38 A proximidade de Libero com Frola, que se registra desde esses primeiros tempos de sua permanência no Brasil, pode ter tido origem em uma daquelas suas viagens rumo à França dos anos anteriores: afinal, o expoente socialista se exilou em meados de 1925 naquele país, onde chegou a colaborar em Paris com o primeiro jornal antifascista de certo calibre publicado no exterior, Il Corriere degli Italiani.39 Não é de se descartar a hipótese de Libero ter conhecido Frola em uma de suas entradas em território francês, nem a possibilidade, ainda mais sugestiva, que a eventualidade de uma transferência para o Brasil possa ter-lhe aparecido como viável em coincidência com o convite para dirigir La Difesa que o expoente socialista recebeu de São Paulo ainda em agosto de 1926. Talvez uma palavra, ou um apelo para uma colaboração, nesta circunstância ou mais tarde, possam ter agido como mola propulsora para um empenho na luta antifascista deste lado do Atlântico. 3.4. A colaboração com La Difesa Do semanário antifascista paulistano, Battistelli foi um colaborador constante e qualificado a partir de julho de 1927: até novembro de 1930 escreverá 51 artigos, assinando a maioria (31) com seu nome inteiro, uma parte (17) como Libero, e alguns (2) com as simples iniciais, além de um que, mesmo sem assinatura, é indubitavelmente de sua autoria. Se se excetuam os vários diretores ou redatores-chefes que o periódico teve em seus nove anos de vida, e que muitas vezes escreviam sem assinar, ninguém 37 Sobre o Bloco Operário, ver KAREPOVS, Dainis. A Classe operária vai ao Parlamento: o Bloco Operário e Camponês do Brasil (1924-1930). São Paulo: Alameda, 2006. 38 Cf. FROLA, Francisco. Recuerdos de um antifascista, 1925-1938. Cidade do México: Editorial Mexico Nuevo, 1939, p. 50. 39 Sobre a parábola de Il Corriere degli Italiani, que contribuiu à batalha do antifascismo italiano na França sobretudo no período anterior ao surgimento da Concentrazione, e que chegou a registrar uma notável tiragem de 10 mil exemplares diários, ver TOMBACCINI, Simonetta. Storia dei Fuorusciti italiani in Francia, op. cit., p. 36-43, e também TOBIA, Bruno. Scrivere contro. Ortodossi ed eretici nella stampa antifascista dell’esilio, 1926-1934, op. cit., p. 13-56. 143 chegou a publicar no periódico tantas matérias como ele num equivalente espaço de tempo. Os três anos de sua colaboração correspondem grosso modo ao período da gestão Frola do semanário, e aos primeiros tempos da direção que o substituiu, indício de uma maior identificação de Battistelli com a linha politica do primeiro, mas também de seu reconhecimento do valor do instrumento como difusor dos ideais do campo antifascista, mesmo quando se encontrava conduzido por militantes com os quais ele não tinha imediata afinidade. Em maio de 27, Frola podia se orgulhar, a poucos meses de distância de sua chegada ao Brasil e à direção do periódico, de ter alavancado os assinantes (de poucas centenas para 5 mil) e a tiragem (de 1500 exemplares para 12 mil): mesmo com dados possivelmente um pouco inflados, Battistelli encontrou o jornal nesta situação de crescimento e dele começou a participar, inclusive com sucessivas subscrições (a primeira de muitas outras foi de julho do mesmo ano). La Difesa conduzia sua batalha dirigindo-se principalmente aos imigrados da colônia italiana, com matérias produzidas em sua maioria no Brasil, mas também com documentos ou artigos provenientes dos círculos do antifascismo na Europa. Um olho era para a vida na Itália debaixo da ditadura, outro para a situação das comunidades italianas em terra brasileira. Durante um ano, de julho de 27 a junho de 28, Battistelli assinou seus artigos (17) simplesmente como “Libero”. Os temas eram variados, da situação internacional à ingerência de Mussolini nas questões internas brasileiras, dos apoios monárquicos e clericais ao regime à situação dos antifascistas exilados. Suas observações registraram problemas, denunciaram conivências, tentaram abrir perspectivas para o futuro da Itália após a derrota do fascismo. Deve-se registrar que nesse intervalo de tempo alguns fatos marcaram o cenário internacional e também o brasileiro: enquanto na Itália o regime endurecia a repressão e em Paris a Concentrazione d’Azione Antifascista ia articulando sua ação de denuncia e luta, em meio a muitas dificuldades, em agosto de 27 o governo de Washington Luis aprovou a que foi apelidada de “Lei celerada”, que atingia organizações e imprensa de esquerda, fechando clubes militares, sindicatos e colocando o partido comunista na ilegalidade. Um regime republicano que silenciava as oposições não devia agradar muito quem, como Battistelli, lutara pela liberdade diante de qualquer opressão. De todo modo, sua atenção nas colunas do semanário antifascista tendeu a se voltar principalmente para o caso italiano e seus reflexos na colônia dos compatriotas no Brasil. 144 O primeiro artigo dele40 se referia aos vultosos empréstimos recentemente concedidos ao Estado fascista por governos democráticos ocidentais, como EUA e Reino Unido: Libero declarava que tais empréstimos, com seu ônus, não poderiam de forma alguma gravar nas costas das formações politicas que haveriam de substituir o regime do Duce. O argumento era o mesmo apresentado por grande parte do antifascismo no exilio: Mussolini não representava a Itália, e estes empréstimos não eram dirigidos ao governo do país e sim ao fascismo como tal, não empenhando, portanto, de forma alguma os cofres nacionais. Battistelli partilhava da convicção de que havia uma outra Itália, autêntica, digna deste nome, e que se exprimia através da voz dos exilados em nome da liberdade: uma outra Itália, que lutava contra a “anti-Itália”, representada pelo fascismo (devolvendo para ele o epíteto com o qual o regime de Mussolini alcunhara o fuoruscitismo). Uma outra Itália que um dia chegaria ao poder, e aquele dia havia de ser preparado com diligência e seriedade. Disso Libero tinha e sempre terá plena convicção, e em muitos escritos irá colocando o questionamento de como seria ou deveria ser essa Itália do futuro. O problema era que boa parte da emigração politica parecia confiar, naqueles anos de 1927-28, num próximo e iminente fim do regime fascista, por fraquezas internas, por conflitos intestinos, por um colapso econômico inevitável ou até pela própria ação de propaganda dos exiliados. Poucos tinham a coragem de se confrontar com uma hipótese, que alguns, como Salvemini num artigo de maio de 1927 em uma revista norte-americana, tentavam avançar: a de que Mussolini teria vida longa se ele continuar desfrutando do apoio de boa parte da opinião pública internacional, como estava acontecendo, e que seria ilusão pensar num levantamento popular no país até quando o ditador pudesse contar com a ajuda econômica de países como Inglaterra e Estados Unidos. Isto podia significar, continuava Salvemini, que o fascismo iria cair somente por um incidente externo (uma guerra, ou uma tomada de posição explicita e coletiva da comunidade internacional), e que a chave para a solução do problema italiano estava fora da Itália.41 Os antifascistas italianos no exílio terão que se questionar longamente diante dessas afirmações, dessas possibilidades e impossibilidades: muitas vezes sua ação nos anos 40 “La necessaria diffida”. La Difesa, Ano IV, n. 176, 31.7.1927, p. 2. Cf. “Mussolini, il papa e il re” [maio de 1927], In Opere di G. Salvemini, VI, Scritti sul fascismo, II, Milano: Feltrinelli, 1966, p. 74-285, apud RAPONE, Leonardo. “Antifascismo, guerra, nazione”. In DE FELICE, Franco (org.). Antifascismi e Resistenze. Roma: La Nuova Italia Scientifica, 1997, p. 267-289. 41 145 futuros será marcada pela consciência de uma impotência em derrubar a ditadura, de uma incapacidade radical de sublevar uma nação transformada, de um lado, em regime de polícia e cárcere, e, do outro, em consenso organizado e controlado. E boa parte das dificuldades do antifascismo, acima das divisões internas e das incompreensões reciprocas sobre os métodos de lutas ou os programas futuros, nasceu exatamente deste profundo sentimento de impotência, sobretudo a partir do começo da década de 1930, quando, de uma parte, Mussolini e o regime pareciam gozar de sua mais alta popularidade e muitos governos ocidentais, incluindo a própria França, não escondiam simpatia ou vontade de colaboração com o fascismo, e, da outra, os partidos irmãos (socialdemocratas, republicanos, incluindo os conselhos e organismos internacionais por eles formados) continuavam pouco atentos ou solidários com a causa do antifascismo.42 O que fazer diante de uma situação como essa? Battistelli advertia toda a fragilidade da postura do antifascismo dentro desse contexto, a ponto de descrever a luta do movimento com tintas um tanto pessimistas. “Pessimismo” foi, com efeito, o titulo de seu segundo artigo,43 e, embora nele se referisse, criticando-a, à postura amarga e desiludida de Arturo Labriola, politico italiano de área socialista emigrado para a França, sua conclusão era que a situação não podia não suscitar esse sentimento. Mesmo assim, Libero propunha de fazer desse pessimismo a “premissa heroica de um dever a ser cumprido a qualquer custa”, prosseguindo: “Nós continuamos a luta com todos os meios, sem possibilidade de trégua (...) até o final”, sem ilusões nas “possibilidades revolucionárias do proletariado italiano”, nem “na autônoma desagregação do fascismo ou nas inelutáveis leis econômicas do regime capitalista”. Nos meses a seguir, as intervenções de Battistelli se abriram a registros diferentes. Em muitas delas é evidente sua atenta observação dos acontecimentos internacionais, da viagem à Espanha do subsecretario do Ministério fascista das Corporações à disputa de fronteiras entre Itália e Áustria, ou ao atentado contra o Rei Vitor Emanuel III em 42 Sobre esta problemática, ver as páginas iluminantes de Rapone e de De Bernardi, em muita de sua produção. Cfr, por exemplo, DE BERNARDI, Alberto; RAPINI, Andrea (org.), Discorso sull’Antifascismo. Milano Bruno Mondadori, 2007, p. 142: “Até a guerra civil espanhola, o antifascismo permanece [...] sem a força, nem depois da chegada ao poder de Hitler, de impor a alternativa fascismo versus antifascismo como central, seja na vida interna dos Estados, seja no contexto das relações internacionais entre os Estrados.”. Ver também RAPONE, Leonardo. “Antifascismo, guerra, nazione”. In DE FELICE, Franco (org.). Antifascismi e Resistenze, op. cit. 43 “Pessimismo”. La Difesa, Ano IV, n. 180, 28.8.1927, p. 2. 146 Milão, ou ainda à vitória socialdemocrata nas eleições alemãs. Os artigos, que, a partir de julho de 1928, começaram a receber a assinatura “Libero Battistelli” (por um total de 4 em 1928 e 20 no ano seguinte), nunca perdiam a oportunidade de criticar a postura da Itália fascista e as pretensões imperialistas de Mussolini, como também a posição ambígua da casa de Saboia diante do regime. Dois deles, inclusive, chegaram a serem publicados na primeira página (um dos quais no lugar do editorial, normalmente escrito pelo diretor): indício de certo prestígio alcançado pelo autor.44 Outra matéria de Battistelli, crítica da concepção destorcida que o fascismo tinha da “latinidade”, oferecia notações interessantes a respeito das “Américas, com suas jovens Repúblicas do Atlântico e do Pacífico, cheias do vigor produzido por uma vida libre em territórios ricos e vastos, orgulhosas de seus progressos e mais ainda de sua independência, acolhedoras de quantos ainda chegam a elas das velhas pátrias europeias em busca de trabalho e de liberdade”.45 Desse mesmo espirito acolhedor é que Battistelli estava usufruindo, e a notação acima parece matizar um pouco a tristeza das afirmações de uma semana anterior, no artigo já citado, no qual ele falava de “indiferença das coisas, não hostis, mas estranhas”, nessa nova condição que impedia “voltar atrás, pois todas as pontes tinham sido por nós voluntariamente destruídas”.46 De particular importância, pelo assunto tratado, são alguns artigos que analisam a situação internacional. O primeiro é um texto de janeiro de 1929.47 Seu titulo aludia à possibilidade que o fascismo, em virtude de uma forma de contágio, pudesse se estender com facilidade a outras nações, além da Itália. Como acenado acima, esta eventualidade parecia extremamente remota aos expoentes políticos das democracias europeias, tanto para os governantes mais conservadores quanto para os próprios lideres das oposições, incluindo boa parte dos socialistas europeus. O exemplo, lembrado no primeiro capitulo, da intervenção do próprio presidente da IOS, o belga Emile Vandervelde, abrindo o congresso da entidade poucos meses antes, é bastante ilustrativo dessa análise da situação politica internacional e da convicção da escassa periculosidade do fenômeno 44 “Sparafucile”. La Difesa, Ano V, n. 209, 18.3.1928, p. 1 e “Possibilitá”. La Difesa, Ano V, n. 214, 22.4.1928, p. 1. 45 “Latinitá”. La Difesa, Ano IV, n. 195, 11.12.1927, p.3. 46 “Pazienza”. La Difesa, op. cit. 47 “Il contagio”. La Difesa, Ano VI, n. 245, 27.1.1929, p.2. 147 fascista para países de democracia avançada. Battistelli indicava aqui exatamente o contrário: o rei de Sérvios, Croatas e Eslovenos, Alexandre, acabava de implantar um regime ditatorial em seus domínios, e outros países (Bulgária, Hungria, Espanha) já se encontravam submetidos a análogos sistemas políticos, sinal de um contágio em progressiva extensão. É verdade – argumentava Libero - que o mal agride antes os organismos mais fracos, mas em seguida a epidemia pode se estender também aos mais fortes, pois “não há diferença de essência entre Franceses e Búlgaros, Anglo-saxões e Italianos, entre Alemães e Sérvios [...] mas uma simples diferença [...] de situação histórica acidental [...] A peste fascista já invadiu meia Europa. À Europa ainda sadia e à florente América cabe se defender do contágio”.48 Um perigo, então, para todos. O fascismo como proposta politica possível para qualquer povo e realidade social, a qualquer latitude. Nisso, sua análise do fenômeno autoritário diferia daquela apresentada por Vandervelde, que julgava impossível sua implementação em países marcados por “cavalos a vapor” e “parlamentos”: a Alemanha aos pés de Hitler, quatro anos depois, será a clamorosa confirmação da hipótese levantada por Battistelli. E um contágio, pode-se deduzir por sua alusão à América, do qual nem os países do novo continente podiam se considerar imunes, mesmo com o Atlântico no meio. A lição contida nessa advertência mostrará seu valor também no Brasil em 1933, quando começará a mobilização antifascista também no âmbito das esquerdas brasileiras, impulsionada pelo despontar do integralismo. Battistelli apresentou, meses depois, considerações análogas também num artigo para Il Pungolo (L’Aguillon), revista quinzenal da emigração politica italiana publicada em Paris. Como se verá mais a frente, Libero dialogava desde sua chegada ao Brasil com vários instrumentos da emigração antifascista, recebendo e difundindo exemplares da Europa e colaborando com alguns deles. O artigo, de julho de 1929,49 partia de uma constatação: “A importância internacional do fenômeno [do fascismo], que, embora tipicamente italiano, é aclimatável (com formas e intensidades diferentes) também fora da Itália; [...] aclimatou-se de fato na Espanha, Portugal, Hungria, Bulgária, Lituânia, Albânia. Fica latente na Romênia, Jugoslávia, Polônia. Pode surgir e tornar-se perigoso na 48 Ibidem. “Internazionale repubblicana o alleanza contro le dittature?”. Il Pungolo (L’Aguillon), Ano I, nn. 17-18, 1-15.7.1929, p. 140-142. 49 148 Grécia, nos Estados do Báltico, na Áustria e talvez na própria Alemanha”.50 E contra essa difusão de ditaduras, Battistelli chegava a propor uma aliança antiditatorial, de cunho republicano, compreendendo, junto com os antifascistas italianos, todos os opositores das ditaduras. E citava o exemplo do Brasil, onde estava sendo construída uma aliança entre o antifascismo italiano e os exilados portugueses. Após uma tentativa de indicar meios e instrumentos de luta, objetivos e possíveis estratégias, o artigo se encerrava afirmando que a aliança contra as ditaduras “seria o núcleo verdadeiro e profundo dos futuros Estados Unidos da Europa [...] índice de uma consciência europeia com bases principalmente morais”.51 Essa preocupação com o ideal de unidade politica (e moral) do Velho Continente apareceu com força em outro artigo de Battistelli em La Difesa, no mês de setembro de 1929. Em “L’unione europea”,52 ele comentava a proposta do Primeiro Ministro francês Aristide Briand de constituir uma união aduaneira entre os Estados europeus, declarando-se favorável, desde que fosse na linha indicada por Giuseppe Mazzini, um dos principais expoentes do Risorgimento italiano do século XIX, republicano como Battistelli e inspirador de muitas ideias politicas deste. Para Mazzini, a Europa unida (os “Estados Unidos da Europa”) era um fim, um ideal que podia ser perseguido e realizado somente por Estados politicamente homogêneos, quando cada um deles já tivesse conseguido sua liberdade politica interna. A identidade dos ordenamentos internos seria elemento primordial, conditio sine qua non da unidade: homogêneos são os Estados da Federação Norte Americana, brasileira ou mexicana, homogêneos são também os cantões suíços assim como as republicas socialistas soviéticas. Mas, completava Battistelli, se a união da Europa for não o fim e sim um simples meio, para apaziguar os conflitos no continente, quase um estratagema para dar legitimidade a governos ditatoriais, como o de Mussolini, a proposta havia de ser recusada e combatida. De união aduaneira a forma de garantia do statu quo territorial, de facilitação de comércios a manutenção e consagração de relações internacionais e de governos nacionais, o passo seria muito breve. E o fascismo italiano conseguiria uma legitimação inaceitável. Portanto, concluindo o artigo, Libero propunha 50 Ibidem. Ibidem. 52 “L’unione europea”. La Difesa, Ano VI, n. 279, 22.9.1929, p. 2. 51 149 “oposição decidida [ao plano Briand]. Protesto com todos os poucos meios à nossa disposição. Denúncia perante toda a opinião pública, democrática e socialista internacional, da fatal esterilidade, da fatal transformação em sentido conservador e reacionário que a entrada das ditaduras acarretaria para a entidade.”53 A proposta de Briand, lançada oficialmente no mesmo mês de setembro de 1929 num discurso na Liga das Nações, acabou não vingando, devido, de um lado, à morte repentina, um mês depois, de seu principal aliado, o Ministro das Relações Exteriores da Alemanha, Stresemann, e, do outro, ao fim do seu gabinete em novembro. O mundo, até o mundo econômico, de qualquer forma, já não era mais o mesmo: em outubro, a queda da Bolsa de Nova Iorque abrira cenários de crise geral também para as economias europeias, impondo escolhas e estratégias diferentes. Libero retomará três anos depois o tema dos Estados Unidos da Europa em seu primeiro artigo para os Quaderni di Giustizia e Libertá54: a discussão sobre a unidade europeia circulava amplamente nas fileiras do jovem movimento antifascista e Battistelli participava do debate com sua intervenção. Esta contribuição de 1932 e as dos anos a seguir serão analisadas mais para frente, mas aqui cabe o registro da insistência de Libero, no artigo, sobre a importância da homogeneidade como condição tanto da paz na Europa quanto da união politica do continente: uma homogeneidade, porém, cuja essência não pode ser a raça, a língua ou a religião, e sim o regime politico, isto é, os fundamentos políticos e sociais dos Estados. A convicção de Battistelli a respeito da impossibilidade de um diálogo e de uma construção comum europeia entre governos democráticos e ditaduras acompanhou todos os anos de sua militância e seus pronunciamentos públicos na imprensa antifascista: dialogar com Mussolini, e mais tarde com Hitler, na tentativa de garantir uma situação de tranquilidade nas relações internacionais e talvez no intuito de moderar suas manifestações mais radicais nunca poderia ser o caminho da paz e da harmonia na Europa, pois, nos Estados regidos por ditadores, faltaria o fundamento do projeto, isto é, a liberdade e os princípios básicos da democracia. 53 54 Ibidem. “Disarmo e Stati Uniti d’Europa”. Quaderni di Giustizia e Libertá, nº 4, setembro 1932, p. 29-37. 150 Em dezembro de 1929, uma terceira intervenção de Libero55, que o mostra observador atento dos fatos internacionais, apareceu no periódico antifascista paulistano: nela, se criticava a forma absoluta e indiscutível que tomara o princípio de ‘não intervenção’ dos Estados na vida política de outros Estados. O princípio, argumentava Libero em seu escrito, se teve uma sua função importante durante algumas décadas do século XIX, quando garantiu o liberalismo politico e sua afirmação em vários países, agora ameaçava transformar-se em tabu, em pura declaração teórica – por ter sido um princípio frequentemente violado -, mas que virava álibi para não agir no plano internacional quando reafirmado como regra por “liberais, democráticos e socialistas que estão no poder na França, Inglaterra, Alemanha e Estados Unidos, e que seriam, se quisessem, os árbitros da situação mundial”56. Um princípio em nome do qual nenhuma democracia liberal se permitia interferir com o percurso de Estados ditatoriais e sufocadores da liberdade. Um princípio que, em sua reafirmação naquele momento, se transformava em indiferença e desinteresse politico. Mais um grito de alerta que Battistelli lançava, mais um protesto contra o imobilismo de países com uma longa tradição democrática diante do estabelecimento do fascismo no mundo. Essas contribuições de Battistelli, assim como outras, revelavam uma capacidade de observação da situação internacional e de reflexão sobre a mesma, fundadas em leituras e estudos. As frequentes referências a eventos da história politica, sobretudo, mas não exclusivamente, europeia, demonstravam um profundo conhecimento das dinâmicas internas de regimes e Estados do passado e uma surpreendente capacidade de elaboração teórica. Homem de amplos estudos, de longas reflexões, compromissado com a bandeira do antifascismo e que tentava transformar suas intuições em instrumentos de luta, embora limitados como podiam sê-lo revistas e jornais: isto era Battistelli naqueles primeiros anos de exilio carioca. Esta era a sua principal forma de participar da batalha, sem dúvida experimentando toda a precariedade de uma condição que corria o risco de deixar prevalecer a esfera teórica sobre a ação prática. Há, contudo, uma serie de artigos que Libero escreveu periodicamente para La Difesa com um registro completamente diferente, marcado por um tom mais leve e irónico. Em dezembro de 1927 aparecia uma matéria57 na qual Battistelli anunciava ter recebido de 55 “Il tabú del ‘non intervento’”. La Difesa, Ano VI, n. 291, 29.12.1929, p. 1-2 Ibidem. 57 “Plebiscito?”. La Difesa, ano IV, n. 197, 25.12.1927, p. 2 56 151 Roma uma carta de um amigo sacerdote, que deixara o ministério, e que lhe relatava a respeito das intenções secretas do Papa de decretar um plebiscito para que o povo da capital, dos territórios do antigo Estado Pontifício ou até da península toda decidisse se continuar a obedecer ao Rei da Itália e a Mussolini ou se escolhesse aceitar a dominação da Santa Sé. Uma votação para reestabelecer o antigo poder temporal da Igreja, derrubando monarquia e fascismo, eventualidade que o autor da carta se augurava não se realizasse, porque ele mesmo cairia nas mãos de seus maiores inimigos, sendo um ex-sacerdote: para tanto, ele chegava a pedir ajuda ao amigo no Brasil para que mobilizasse Maçonaria, imprensa, e os próprios exilados antifascistas a fim de denunciar a manobra clerical e impedir a tentativa. O personagem, evidente fruto da fantasia de Battistelli, serviu ao autor para apresentar sua critica mordaz às autoridades da Igreja católica e ao próprio regime fascista, que naquela época estavam se aproximando em um dialogo diplomático que se concluirá em fevereiro de 1929 com o Tratado de Latrão, acordo que regulamentava as relações entre o governo italiano e a Santa Sé. O anticlericalismo, a negação de valor a tudo que na religião é estrutura exterior, ostentação e compromisso com o poder, a denúncia da cumplicidade de homens e setores da igreja com a injustiça social e a ditadura58 caracterizaram constantemente a atitude política e humana de Battistelli, que se declarava abertamente não católico e agnóstico, embora, como se verá, certas suas colocações e escolhas estivessem curiosamente próximas do autêntico espírito evangélico. Durante o ano de 1928, Battistelli pareceu ter-se esquecido de seu correspondente romano, até que em março de 29, um mês após a assinatura do tratado, lhe concedeu novamente a palavra. E assim nasceram doze artigos, quase um por mês e tendo todos como título “Ultime da Roma” (“Últimas [notícias] de Roma”)59, nos quais, com o mesmo tom irônico, o autor tornava seu personagem protagonista de tramas secretas, ora a favor, ora contra o regime de Mussolini, denunciando nas entrelinhas cumplicidades e conivências entre parte do mundo católico e o fascismo. A última aparição do ex-padre nas colunas de La Difesa ocorreu em fevereiro de 1930, quando 58 Cf. também “Un Santo”, La Difesa, ano IV, n.186, 9.10.1927, p. 3 (onde Battistelli enaltece a postura do bispo de Madri, crítico da atitude anticonstitucional do rei da Espanha), “A Proposito di um gagliardetto”, La Difesa, ano V , n. 206 [207], 4.3.1928, p. 2 (onde Battistelli ataca o apoio ao fascismo da parte da igreja, como no caso das subscrições de eclesiásticos e instituições religiosas para a compra de uma flamula para o ‘fascio’ de Botucatu) 59 Os artigos apareceram em La Difesa, nos nn. 253, 259,265, 274, 276, 278, 281, 285, 286, 287, 288 e 297. 152 ele anunciava sua próxima partida de Roma com destino o Brasil, onde esperava desfrutar da paz e da sorte que não estava mais encontrando na Itália (e a viagem seria feita em companhia de Farinacci, ex-secretário do Pnf e notório expoente da “linha dura” do regime, mas recentemente caído em desgraça perante o Duce!). Em várias de suas intervenções em La Difesa, Battistelli não se furtava também de fustigar atitudes acovardadas de italianos emigrados para o Brasil, que motivavam seu apoio ao fascismo com razões esdrúxulas, as quais soavam mais como desculpas esfarrapadas para não se empenharem na causa do antifascismo.60 Libero não deixava, com efeito, de participar da vida da colônia italiana e de acompanhar os caminhos dos organismos associativos de seus compatriotas no Rio de Janeiro, de um lado, se envolvendo com os agrupamentos mais diretamente ligados ao empenho antifascista, como a Lega per i Diritti dell’Uomo, e, do outro, participando de momentos importantes das sociedades mais tradicionais da colônia. 3.5. No mundo associativo carioca Uma entidade que se destacava naqueles anos no panorama associativo do Rio de Janeiro era a Societá Italiana di Beneficienza e Mutuo Soccorso. Organismo tradicional de apoio e de promoção em favor da colônia italiana da Capital Federal, nos moldes de agrupamentos análogos presentes em outras cidades do Brasil,61 a partir de 1927 sua ação foi objeto de várias tentativas de controle por parte do consulado e da embaixada italiana. Em ocasião de algumas assembleias, os sócios abertamente partidários do fascismo buscaram substituir o grupo dirigente com outro, mais alinhado com iniciativas e propostas oriundas do regime de Mussolini, mas encontraram a resistência da componente antifascista. A tentativa de setembro de 1928 é descrita pelo correspondente carioca de La Difesa, num artigo62 que relata as manobras das autoridades consulares para alterar estatutos e mecanismos de eleição do conselho da sociedade e conseguir um controle praticamente direto da mesma, e que destaca o papel do “Dr. Battistelli” que, com sua intervenção, conseguiu impedir a indébita intromissão. 60 Cf. “Dialoghetti... immorali”. La Difesa, ano V, n. 218, 20.5.1928, 5. Algumas breves notícias sobre sua origem no Rio de Janeiro se encontram em VANNI, Julio Cezar. Italianos no Rio de Janeiro. Niterói: Editora Comunitá, 2000, p. 85-87. 62 Cf. ”Bernardo Attolico vuole ingoiare il patrimonio della Societá di Beneficenza di Rio”. La Difesa, ano V , n.236, 23.9.1928, p. 3. 61 153 Um mês depois, segundo relata A Manhã de 2 de outubro63, outra assembleia e outra tentativa do grupo pro-fascio. Na ocasião, um dos dirigentes, o advogado Antonio Corrado Limongi, teve um papel de liderança na defesa da entidade e de seus regulamentos. O controle da Beneficienza significava também a possibilidade de dispor dos cofres da sociedade, e sobre isso alertava Battistelli num artigo em La Difesa,64 sugerindo a hipótese que os organismos consulares estivessem querendo se servir do dinheiro da sociedade (cerca de seiscentos contos) para completar o financiamento da futura Casa da Itália, destinada a hospedar estruturas diplomáticas, associações e organismos culturais ligados ao consulado.65 A tentativa de controle se repetiu em fevereiro de 1929, quando numa assembleia66 a componente pro-fascio pediu que o próprio cônsul fosse declarado sócio de honra. Seguiram-se protestos da parte antifascista, tumultos e o ferimento de alguns sócios, entre os quais Adriano Zuccari, cunhado de Libero, sem dúvida também presente na reunião. Finalmente, um mês depois, aconteceu o que o consulado e seus partidários esperavam: numa votação que se prolongou propositalmente até altas horas da noite, obrigando vários sócios a voltar para casa sem poder manifestar sua opção, e que ocorreu num clima de ilegalidade e aberta fraude, o conselho que saiu das urnas acabou sendo dominado por uma maioria claramente fascista ou simpatizante. Todos os antifascistas, segundo relata La Difesa,67 diante das intimidações e das evidentes irregularidades do pleito, tinham abandonado por protesto a reunião antes do escrutínio final, anunciando recurso na justiça, mas isto não impediu que a presidência confirmasse o resultado. O Correio da Manhã 68 anunciava o êxito da votação: num total de 911 sócios presentes e 784 votantes, a lista apoiada pelo consulado conquistara as 18 cadeiras da maioria do conselho (com destaque, entre os conselheiros, para o arquiteto 63 Cf. A Manhã, 2.10.1929. “L’Assalto alla Beneficienza”. La Difesa, ano VI, n.246, 3.2.1929, 3. 65 Uma carta do presidente da seção carioca da Societá Dante Alighieri, responsável pela escola italiana, comendador Erminio Vella, comunicava aos organismos responsáveis em Roma que o presidente brasileiro Washington Luís prometera ao embaixador italiano Attolico a doação de um terreno central para a futura Casa da Itália, para a construção da qual concorreria, entre outros, o patrimônio da Societá Italiana di Beneficenza, além do próprio edifício onde ela tinha sua sede, que seria vendido. Cf. Arquivo da Societá Dante Alighieri em Roma, Carta do presidente Vella para direção da Societá Dante Alighieri em Roma, Rio de Janeiro, 4.9.1929. 66 Cf. “Rio de Janeiro. Gesta fasciste alla Beneficienza”. La Difesa, ano VI, n.247, 10.2.1929, p. 3. 67 “Rio de Janeiro. Gesta fasciste alla Beneficienza”. La Difesa, ano VI, n.252, 17.3.1929, p. 3. 68 Cf. Correio da Manhã, 17.3.1929, p. 11. Cerca de 2/3 dos sócios votaram nos membros da lista profascio, enquanto os candidatos da lista antifascista receberam aproximadamente 1/3 dos votos. 64 154 Antonio Jannuzzi, que trabalhara na abertura da Avenida Central e na construção de vários prédios da mesma), deixando para a lista de oposição as 7 vagas destinadas à minoria. Nesta, havia nomes de conhecidos antifascistas como Giovanni Infante, Salvatore De Rosa, Anselmo Garritano, e o próprio Limongi. A longa queda de braço para o controle da Beneficienza revela a existência, no âmbito da colônia italiana do Rio, ao menos na parte dela organizada em torno de associações, de amplos setores que apoiavam o fascismo e seus representantes oficiais, seja do partido, como da diplomacia. E também a presença de um grupo de oposição antifascista, embora, por várias razões, menos numeroso, mas não menos combativo. A tentativa de influência do consulado nos organismos associativos da comunidade italiana aconteceu na Capital Federal nos moldes de ações similares que se registraram em varias cidades brasileiras, começando por São Paulo, onde a atuação neste sentido do cônsul local, Mazzolini, foi exemplar e particularmente insistente, naqueles mesmos anos. Para as autoridades diplomáticas, representantes no exterior da Itália governada pelo fascismo e guiada pelo Duce, conseguir controlar as decisões das mais importantes entidades da colônia significava poder dar visibilidade ao discurso fascista, a sua ideologia e projeto politico e cultural, e, ao mesmo tempo, eliminar vozes dissonantes, sufocar as oposições e restringir a possibilidade de denúncia e de propaganda do antifascismo exilado.69 Assim, também na Capital Federal, cônsules e embaixadores, se dedicaram à construção de um consenso ao fascismo através da conquista do mundo associativo da colônia, destacando-se nessa ação o embaixador Bernardo Attolico, titular da sede diplomática de 1927 a 1930. Difícil é avaliar os resultados em termos quantitativos. Pode-se aqui registrar um simples dado, sobre os inscritos ao fascio do Rio de Janeiro em 1932: seu número somaria um total de 1.100 pessoas.70 Quanto à presença antifascista no Rio, já se analisaram as primeiras formas de organização, desde o ano de 1924, e a ação de difusão na cidade do semanário La Difesa, assim como a atuação de alguns expoentes deste grupo. O principal ponto de agregação, como se viu, era representado pela Lega per i Diritti dell’Uomo, mas em breve surgiram outras denominações e siglas de oposição ao fascismo, particularmente 69 Para uma análise mais completa e detalhada da ação da diplomacia italiana no Brasil durante o período fascista ver BERTONHA, João Fabio. O Fascismo e os imigrantes italianos no Brasil. Porto Alegre: Edipucrs, 2001. E também TRENTO, Angelo. Do outro lado do Atlântico: um século de imigração italiana no Brasil. São Paulo: Nobel, 1989, p. 301-346. 70 Cf. RUBBIANI, F.. Almanacco degli Italiani del Brasile pel 1932. São Paulo, 1932. Apud TRENTO, Angelo. Do outro lado do Atlântico: um século de imigração italiana no Brasil, op. cit., p. 312. 155 nos últimos anos da década de 1920. No âmbito da Lidu, Battistelli foi gradualmente conquistando espaço e uma posição de liderança: em outubro de 1928, foi ele a representar a organização quando da chegada ao Rio do socialista Emil Vandervelde,71 e em fevereiro do ano seguinte convidava, em nome da entidade, todos os membros dela e os italianos livres que fossem sócios da Beneficienza a participar da assembleia da mesma.72 Um relatório do consulado italiano do Rio de Janeiro sobre “as associações subversivas antifascistas do Rio de Janeiro”, de junho de 1929,73 apresentava Battistelli como presidente da Lidu, tendo Giovanni Scala como vice, além de qualificá-lo também como membro venerável da Fratellanza Italiana, loja maçônica da cidade. Sobre a Lidu, não existe muita documentão a respeito de sua atuação no Rio de Janeiro, mas é possível imaginar, na base também das raras informações dadas pelo jornal La Difesa, que sua obra se desenvolvesse no campo da denuncia pública do regime de Mussolini (através de eventos como a comemoração anual de Matteotti, ou a celebração do 1º de maio) e numa atividade de apoio a refugiados, na esteira da ação da mesma organização, bem mais consistente, contudo, em terra de França. Em julho de 1928, por exemplo, a Lidu de Rio de Janeiro e o comitê da Concentrazione Antifascista criado na Capital Federal enviaram ao embaixador mexicano no Brasil um telegrama no qual manifestavam seus sentimentos de tristeza pelo assassinato do general Obregon, enaltecendo sua ação como “o Libertador do Mexico de uma tirania que lembrava aquela que pesa sobre o povo italiano”.74 O que aparece a partir do cruzamento das comunicações das autoridades diplomáticas italianas no Rio com as notícias veiculadas pelos jornais, tanto La Difesa como a própria imprensa carioca, contudo, é a intensa movimentação da componente antifascista da colônia italiana, entre 1928 e 1929. Houve manutenção de organizações, 71 Cfr. Diario Carioca, 21.10.1928, p.3 e A Manhã, 21.10.1928, p. 2. O politico belga protagonizara três anos antes um episódio que o antifascismo italiano celebrou longamente: durante a Conferência de Locarno (Suíça), em outubro de 1925, realizada entre as principais potências europeias para discutir os problemas postos pelas fronteiras ocidentais da Alemanha estabelecidas pelo tratado de Versalhes, ele, à época Ministro das Relações Exteriores de seu país, recusou apertar a mão de Mussolini, alegando essa estar ainda suja do sangue de Matteotti, o socialista italiano assassinado pelo regime fascista no ano anterior. A acolhida dos antifascistas italianos (além de Battistelli, estava representada também a Liga Antifascista por seu presidente Francesco Itria) a Vandervelde, no Rio para proferir uma conferencia literária, queria testemunhar o apreço por seu gesto corajoso. 72 Cf. Diario Carioca, 3.2.1929, p. 2. 73 Cf. ACS/CPC, b. 411, f. 29269 (“Battistelli, Libero”), Embaixada da Itália no Rio de Janeiro, telespresso N. 35434/3052, 25.6.1929. 74 Cf. “Gli antifascisti e gli avvenimenti del Messico”. La Difesa, ano V, n. 228, 29.7.1928, p. 2 156 como a Lidu, e criação de novas, como Itália Libera, do qual Francesco Itria seria membro da comissão executiva, ou a Lega Antifascista, com o mesmo Itria como presidente,75 sendo Libero um dos membros da Comissão Executiva, segundo um “telespresso” da embaixada do Rio de maio de 1929.76 Com efeito, segundo relatos da imprensa, as duas associações nasceram no espaço de poucos meses: em setembro de 1928 foi fundada a Lega Antifascista77, e em março do ano seguinte foi a vez de Itália Libera78: ambas declaravam querer somar forças na luta contra o fascismo, reconhecendo o papel da Lidu como órgão de ligação com as organizações antifascistas internacionais, e afirmando seu não envolvimento com a politica local. O antifascismo, então, não ficava parado, nem calado. Apesar da derrota no caso da Beneficienza Italiana, ou até por causa dela, nasciam organizações no âmbito da colônia italiana, com o objetivo de mostrar aos compatriotas o caráter liberticida do fascismo e do governo de Mussolini. Lidu, comitê da Concentrazione Antifascista, Itália Libera, Lega Antifascista... Cada uma com um nome e em parte um programa diferente. Um artigo em La Difesa,79 assinado L.B. (iniciais de Battistelli), registrava uma significativa manifestação desta multiplicidade, referindo de uma reunião antifascista, dia 23 de março de 1929, na Capital Federal, promovida pela Federação Sindical Regional do Rio de Janeiro como resposta ao convite do Comitê Internacional Antifascista, presidido pelo escritor francês Henri Babusse: a adesão da componente italiana, representada pela Lidu, a Lega Antifascista e Itália Libera, se juntava àquela de grupos e setores da esquerda brasileira, quais a Liga Estudantil anti-imperialista, o Bloco Operário e Camponês (BOC), o Comitê Antifascista da Faculdade de Direito e a quase totalidade das ligas operárias da cidade. Battistelli, em sua crônica, afirmava que 75 Cf. ACS/CPC, b. 411, f. 29269 (“Battistelli, Libero”), Embaixada da Itália no Rio de Janeiro, telespresso N. 35434/3052, 25.6.1929. 76 ACS/CPC, b. 411, f. 29269 (“Battistelli, Libero”), Embaixada da Itália no Rio de Janeiro, telespresso N. 1543, 23.5.1929. O conselheiro de embaixada que redige a comunicação atribui erroneamente à Lega Antifascista uma data de fundação ( 23 de março de 1929) que na realidade é da organização Itália Libera. Cf. “Rio de Janeiro”. La Difesa, ano VI, n.253, 24.3.1929, p. 3 77 Cf. Diario Carioca, 22.9.1929, 3: “Com extraordinário número de aderentes realizou-se no 20 do corrente, no salão nobre do Cruzeiro do Sul, à praça 11 de Junho, a sessão de fundação da Liga Antifascista do Rio de Janeiro. Presidiu-a o professor Francisco Itria”. Nas semanas seguintes, o mesmo periódico noticiava a respeito de várias intervenções públicas da associação contra o fascismo italiano, em ocasião do 7º aniversario da marcha sobre Roma (28.10.1929) ou da comemoração do fim da guerra mundial (4.11.1929). Além de Itria, Eugenio D’Alessandro e Eugenio Sciammarella aparecem publicamente como membros da entidade. Ver tb A Esquerda, 22.9.1929, 6. 78 Cf. “Rio de Janeiro”. La Difesa, ano VI, n.253, 24.3.1929, p. 3. 79 “Rio de Janeiro. Riunione Antifascista Brasiliana”. La Difesa, ano VI, n.254, 31.3.1929, p. 3 157 as associações antifascistas italianas escolheram “deixar à reunião o seu mais bonito caráter: o de uma espontânea manifestação antifascista do generoso povo brasileiro”, mas que “os promotores quiseram que sentassem à mesa da presidência também os amigos prof. Itria, que dirigiu a reunião, e o adv. Libero Battistelli”. A fala de vários oradores, entre os quais se destacaram alguns expoentes do BOC, como Minervino de Oliveira, interventor municipal, e Paulo de Lacerda, faziam o articulista concluir que o evento permitiu “lançar as bases para uma organização antifascista exclusivamente brasileira” e que tornava-se necessário para “os exilados e os antifascistas italianos [...] renovar aos legítimos representantes deste grande país a expressão de sua gratidão”. O Diário Carioca do dia seguinte80 trazia detalhes do evento, indicando o local da reunião (a União dos Trabalhadores em Padarias) e o numero dos participantes (cerca de mil pessoas), além de relatar que o próprio Battistelli falou em nome da Lidu. A intensificação da presença pública dos antifascistas italianos do Rio nos primeiros meses de 1929 chegou, portanto, a envolver setores do mundo politico e da sociedade carioca em iniciativas contra a ameaça internacional do fascismo, contribuindo para o surgimento de um incipiente antifascismo brasileiro, que chegará a uma mais madura expressão a partir de 1933. Exemplos disso foram a fundação de uma Liga Antifascista também entre os estudantes de Direito, no Centro Acadêmico da Faculdade, em abril de 29, como relata La Difesa, 81 e a criação (ou recriação, após “um silencio de quinze anos”) da Liga Anticlerical do Rio de Janeiro, com a adesão de intelectuais, políticos, ligas de trabalhadores e associações estudantis: destinada a combater a influência no âmbito politico e social de uma igreja católica cada vez mais comprometida, após o tratado de Latrão, com o regime de Mussolini e orientada em sentido reacionário, a Liga representava mais um âmbito onde cultivar e manifestar a oposição a toda forma de fascismo.82 Toda essa multiplicidade de siglas e organizações se, de um lado, representava um sinal de vitalidade, do outro, evidenciava a tendência para a fragmentação. Afinal, o antifascismo da Capital Federal acabava por percorrer caminhos análogos aos do 80 Cf. “Um protesto contra o fascismo internacional”. Diário Carioca, 24.3.1929, p. 2. Cf. “Rio de Janeiro. Liga Antifascista”. La Difesa, ano VI, n.256, 14.4.1929, p. 3. 82 Quem noticia o ‘ressurgimento’ da Liga Anticlerical é o próprio Battistelli, num breve artigo em La Difesa, ano VI, n.269, 14.7.1929, p. 3, no qual é anunciada também a publicação em milhares de exemplares do manifesto da associação. A ênfase no anuncio deixa supor uma participação de Libero na fundação da Liga. Na quarta parte do presente trabalho se destacará a presença anarquista (particularmente José Oiticica) em sua fundação. 81 158 antifascismo paulistano, só aparentemente unanime naquele momento por baixo da liderança de Frola, mas em realidade percorrido por divisões e rivalidades, e aos da própria Concentrazione de Paris, que, na qualidade de cartel de partidos, falava com uma só voz, mas não conseguia esconder as diferenças de acento e de mentalidade presentes em seu interior, e que a levarão ao fim no espaço de poucos anos. 3.6. Protagonistas e coadjuvantes Quem eram afinal os homens que, além e junto de Battistelli, se moviam nessa galáxia do antifascismo italiano na Capital Federal? Além dos que foram apresentados no segundo capítulo por ter se destacado desde os primeiros anos da década de 1920, como Scala (sempre uma referência para o mundo do antifascismo carioca), D’Alessandro, Infante (embora com uma atuação cada vez mais comedida), De Gasperis (desde meados de 1928 transferido para Buenos Aires), Trabucchi, De Rosa, Pampuri, Rizzi e o próprio Scarrone (que vimos ser coautor com Battistelli do Almanacco Antifascista pel 1929), dois expoentes da oposição se sobressaíram no Rio de Janeiro neste final dos anos ’20. O primeiro é Antonio Corrado Limongi. Advogado, emigrado para o Brasil em 1913, co-fundador em ’24 do primeiro agrupamento antifascista brasileiro, a Unione Democratica, em 1929 já estava com 50 anos. Protagonizara, como foi visto, várias lutas contra as manobras para “fascistizar” a Beneficienza, numa ação de liderança que lhe proporcionou ameaças e violências, e que contribuiu para convencê-lo da necessidade de uma militância mais expressiva, ele que até então não tinha assumido compromissos em entidades explicitamente antifascistas. Após a derrota no pleito da Beneficienza, Limongi escreveu para o cônsul, devolvendo a honorificência de Cavaleiro da Coroa Italiana, recebida no passado, e afirmando querer abraçar a causa do antifascismo e da república.83 Os passos dele depois desta decisão não são documentáveis, até 1933, quando a embaixada no Rio informava que Limongi, residente em Niterói, dirigia, havia cerca de um ano e meio, um semanal, Il Popolo d’Italia, no qual atacava fascismo e autoridades diplomáticas, e que por causa disso lhe fora notificada pela policia carioca a suspensão da publicação por tempo indeterminado. 83 Cf. “Rio de Janeiro”. La Difesa, ano VI, n.253, 24.3.1929, p. 3. 159 A ação de Limongi incomodava não pouco embaixada e consulado no Rio de Janeiro, particularmente por sua ação de denúncia de ilegalidades cometidas por sociedades italianas do ramo da armação naval, potencialmente prejudicando negócios a serem realizados entre elas e o governo brasileiro. As fortes pressões das autoridades diplomáticas italianas na Capital Federal junto ao Ministério da Justiça brasileiro levaram à prisão e ao imediato decreto de expulsão de Limongi, em finais de novembro de 1934, emitido no quadro de um conjunto de providências tomadas contra suspeitos de atividades comunistas: o italiano fora acusado de alimentar propaganda subversiva, após a policia ter encontrado material e maquinários de tipografia junto de sua residência.84 Embarcado poucos dias depois num navio com destino a Itália, Limongi foi obrigado a deixar esposa e filhos no Brasil, de nada valendo as tentativas de recurso de amigos e políticos da esquerda brasileira contra o decreto de expulsão, tentativas baseadas no fato dele possuir passaporte brasileiro. A embaixada emitiu recomendação para que fosse mantido sob forte vigilância e encaminhado para o confinamento, mas, a pedido das autoridades brasileiras, sem que houvesse deferimento ao Tribunal Especial da Itália: o conjunto destes elementos configurava o decreto contra Limongi nos termos de um favor do Ministério da Justiça ao governo italiano. A acusação de comunismo (claramente forjada), o curtíssimo tempo intercorrido entre a prisão e a expulsão (realizada sem alguma forma de protesto por parte das autoridades italianas, como seria de se esperar por se tratar de um seu compatriota), e o pedido do governo brasileiro para que se evitasse um processo junto ao tribunal italiano (e para que se permitisse aos familiares do expulso de se reunir com ele num próximo futuro) depõem a favor da hipótese de um decreto benevolentemente concedido às autoridades italianas, que, pela campanha de imprensa promovida pelo Limongi, viam ameaçada a possibilidade de armadores italianos terem possibilidade de sucesso no âmbito do programa naval militar do Brasil. 84 Cf. ACS/CPC, b. 2788, f. 4592 (“Limongi, Antonio Corrado”), telespresso do MAE, n.306213, 9.3.1933; telespresso da Embaixada d’Itália no Rio de Janeiro, n.2602, 25.9.1934; telegrama do MAE, n.324511, 5.12.1934; telegrama do MAE, n.325395, 17.12.1934. Ver também: APERJ, MJNI, Departamento Federal de Segurança Publica, Prontuário n.7508 (“Limongi, Antônio Conrado”); APERJ, Secretaria de Segurança Pública do Estado do Rio de Janeiro, Delegacia de Ordem Politica e Social, Prontuário n.11763 (“Limongi, Antônio Conrado”). 160 Um relatório “reservado” do embaixador Cantalupo ao Ministério das Relações Exteriores da Itália85 reconstrói, do ponto de vista das autoridades italianas no Brasil, a atividade de Limongi e suas campanhas jornalísticas, mostrando os bastidores do decreto de expulsão, e as concessões feitas pela ocasião ao governo brasileiro. Curiosamente o fascículo relativo a Limongi conservado no Archivio Centrale dello Stato em Roma traz também o depoimento por ele fornecido às autoridade de policia, dia 15 de dezembro, logo após sua chegada à Itália, no qual negava as acusações que provocaram a expulsão, admitia contrastes com elementos fascistas e com o próprio consulado do Rio ainda em ocasião do caso da Beneficienza, mas negava ataques ao regime ou atitudes antifascistas, protestando sentimentos de italianidade sempre nutridos por ele em sua ação politica ou jornalística: afirmações de um homem que ne espaço de três semanas fora preso, expulso e embarcado de volta ao seu país, sem possibilidade de defesa. Nos anos a seguir Limongi permaneceu confinado em sua cidade natal, Maratea, no sul da Itália, vigiado pela policia e sofrendo repetidas perquisições e violações de correspondência, até o governo brasileiro revogar o decreto de expulsão, em julho de 1937. Mas tiveram que passar mais de dois anos antes dele poder voltar ao Brasil e abraçar a família: uma carta do secretario do fascio da Capital Federal aos seus superiores em Roma, na qual se fazia menção da revogação do decreto, e se pedia encarecidamente para que fosse impedida a volta ao Rio de Janeiro do Limongi, autor, nos seus anos de Brasil, de “nefasta atividade antinacional e antifascista”, prolongará até dezembro de 1939 seu confinamento. Segunda figura importante daquele fim da década de 1920, no Rio de Janeiro, foi Francesco Itria86. Socialista, nascido em 1889 em Paola, no sul da Itália, professor de escola primaria, recusou-se de prestar juramento de fidelidade ao fascismo e foi afastado do emprego, em outubro de 1926. Por alguns meses, ausentou-se de sua cidade, provavelmente em busca de alternativas para o sustento familiar, mas sempre sendo objeto de vigilância por parte da policia, que em fevereiro do ano seguinte lhe negava o passaporte e dispunha investigações em todo o território nacional para identificar seu 85 ACS/CPC, b. 2788, f. 4592, (“Limongi, Antonio Corrado”), Relatório reservado, N. 3278/1236, 29.12.1934. 86 ACS/CPC, b.2651, f.3851, (“Itria, Francesco”). Para alguns breves dados biográficos, ver PAPARAZZO, Amelia (org.). Calabresi sovversivi nel mondo: l’esodo, l’impegno politico, le lotte degli emigrati in terra straniera (1880-1940). Soveria Mannelli: Rubbettino, 2004, p. 61-62. 161 paradeiro. Depois, repentinamente, foi concedido o passaporte, com destino Venezuela, para onde Itria emigrava em abril de 1927. No país latino-americano, se estabeleceu em Maracaibo, trabalhando numa ourivesaria. Mas já em outubro do mesmo ano, Francesco se encontrava no Rio de Janeiro, morando junto ao conterrâneo Vincenzo Perrotta. As redes tradicionais de parentesco e de procedência geográfica, facilitadoras da difícil escolha da emigração, funcionavam também para os exilados políticos em tempos de fascismo. Na Capital Federal, não é dado saber como Itria vivia, mas seu antifascismo se destacou desde os primeiros tempos, na qualidade de presidente da Liga Antifascista e membro de Itália Libera, como assinalado acima. Esteve presente na acolhida de Vandervelde e foi colaborador do jornal carioca A Esquerda, onde chegou a escrever com o pseudônimo de Spartaco Romano87. O telespresso da embaixada italiana no Rio de 25 de junho de 1929, já citado,88 chegava a relatar aos superiores em Roma a respeito de uma próxima viagem de Itria á França, onde seria enviado em missão por Frola a fim de manter contato com os organismos centrais do antifascismo exilado. O constante monitoramento policial em cima dele não chegou, contudo, a confirmar tal hipótese, mas documentou somente uma ausência do país de alguns meses em 1931, com permanência em Buenos Aires. Ao redor de figuras como estas, e de outros que desde os primeiros anos de 1920 se declaravam abertamente como opositores do fascismo, é que se agregava na Capital brasileira o mundo da emigração antifascista. Poucas dezenas de pessoas, por falar daquelas realmente ativas e compromissadas, a ponto de empenhar-se num esforço financeiro, como assinar o La Difesa ou participar de subscrições em favor do periódico. Talvez algumas centenas, se se contam os que compartilhavam os ideais antifascistas, e que chegavam a frequentar reuniões e assembleias (como as da Beneficienza), sem chegar, contudo, a uma militância mais efetiva. 3.7. Conectado com o antifascismo internacional Ao mesmo tempo em que colaborava com La Difesa e se envolvia com os organismos locais de luta ao fascismo, nestes primeiros anos de sua permanência no Rio de Janeiro, 87 Como exemplo, o artigo “Va fuori d’Italia, va’ fuori ch’é l’ora! Verso il disastro. L’economia imperiale”, A Esquerda, 2.2.1928, p. 4. 88 Cf. nota 75. 162 Battistelli não deixava de tecer um diálogo com expoentes do fuoruscitismo na Europa. De alguns, como Bergamo ou Montasini, era amigo já antes de sua saída da Itália, de outros, como Berneri e Nenni, se tornou correspondente neste período, às vezes a partir da leitura de artigos publicados em periódicos. Com efeito, Libero recebia vários jornais e revistas em sua residência carioca, e com alguns deles ele mesmo colaborava. Sobretudo se tratava de publicações editadas na França, principal ponto de confluência dos lideres do antifascismo italiano. Em uma delas, L’Iniziativa, revista mensal que saiu por poucos meses em Paris em 1928, aberta a várias linhas politicas do antifascismo exilado, aparece uma matéria, assinada por Battistelli,89 sobre a necessidade da derrubada do instituto da monarquia na Itália, para que se pudesse dar um passo a frente no caminho da civilização. Os argumentos do republicanismo são apresentados para justificar uma escolha cada vez mais essencial, após as evidentes responsabilidades da coroa na chegada do fascismo ao poder e no estabelecimento da ditadura. A direção do periódico contava também com a presença de Camillo Berneri, mas é a partir de uma carta enviada por Libero em 1929 para La Veritá, quinzenal editado pelo próprio anarquista no subúrbio parisiense, que começou uma correspondência entre os dois, ambos, como referido acima, se considerando “sui generis” em sua respectiva militância politica.90 As cartas trocadas entre Berneri e Battistelli nos meses finais de 1929 (duas de cada lado)91, além das reciprocas apresentações, tratavam sobretudo de um assunto inquietante para o antifascismo no exilio: o da presença de infiltrados, de espiões, nas fileiras do mesmo. E abriam para um possível encontro entre os dois em breve, no encerramento de Libero em sua segunda carta: “Planejo ir para a Europa por uma breve estada na próxima primavera [...] terei o prazer de conhecê-lo pessoalmente”.92 Uma amizade que se anunciava e que irá se consolidar nos anos 89 “Inchiesta sulla monarchia”. L’Iniziativa, Ano I, n.8, 15.10.1928, p. 5. O periódico tinha como subtítulo “rassegna politica mensile” e era publicado em Paris, Rue des Rosiers, 3. 90 Em sua segunda carta para Libero, Berneri relata brevemente seu percurso politico ao correspondente, como já fizera antes Battistelli para ele: “Abandonei o movimento socialista porque continuamente acusado de anarquismo; entrado no movimento anarquista, ganhei a fama de republicano federalista. O que é certo é que sou um anarquista sui generis, tolerado pelos companheiros por minha atividade, mas compreendido e seguido por pouquíssimos [...] A maioria dos anarquistas é ateia e eu sou agnóstico, é comunista e eu sou liberalista (isto é a livre concorrência entre trabalho e comercio cooperativo e individual), é antiautoritária de modo individualista e eu sou simplesmente autonomista-federalista”. Cf. Carta de Camillo Berneri a Libero Battistelli, [1929]. In FERI, Paola; DI LEMBO, Luigi (org.). Epistolario inédito / Camillo Berneri, op. cit., p. 18-21. 91 Cf. Paola Feri, Luigi Di Lembo (org.) Epistolario inédito / Camillo Berneri, op. cit., 18-22; 48-50; 54-55. 92 Libero Battistelli a Camillo Berneri, Rio de Janeiro, 16.11.1929. In: FERI, Paola; DI LEMBO, Luigi (org.). Epistolario inédito / Camillo Berneri, op. cit., p. 55. 163 futuros, culminando à época da guerra civil espanhola, e uma viagem de Libero à Europa, que com toda probabilidade chegou a mercar profundamente a orientação de seu antifascismo, como se verá. Outro correspondente de Libero nestes anos foi Pietro Nenni. Na realidade, deste período se conserva somente uma carta de Battistelli para ele, da qual já foram citados trechos acima e que representa um primeiro contato, quase uma apresentação de Libero para o expoente socialista.93 Além de lembranças pessoais dos tempos de Bolonha, Battistelli, como melhor resposta ao vazio que seguiria à queda do fascismo, sugeria ao interlocutor a fusão entre republicanos e socialistas num grande partido comum, pelas convergências de seus interesses e interpretações dos problemas da sociedade italiana: os republicanos, segundo Libero, poderiam corrigir alguns excessos do socialismo, como certas influências germânicas (temperando-as com sua tradição tipicamente italiana) e o excesso de materialismo (oferecendo-lhe sua concepção quase religiosa do dever cívico). Haveria assim um partido socialista-republicano, ou republicanosocialista. Não é possível conhecer a resposta à proposta de Battistelli, mas nela ainda se consegue perceber ainda certa crítica ao comunismo, entendido como fenômeno ditatorial a ser evitado – crítica que, pouco tempo depois, foi objeto de revisão, como se verá. Além dos periódicos citados, Battistelli dialogava também com outro instrumento do antifascismo no exilio: Il Pungolo (L’Aguillon), também editado em Paris. Fundado por um antifascista de área católica, Giuseppe Donati, mas aberto à colaboração de socialistas e liberais, o quinzenal queria constituir-se como ponto de diálogo entre todas as componentes do antifascismo no exilio, polemizando às vezes com certas atitudes intransigentes e arrogantes da Concentrazione e de seu órgão oficial, La Libertá.94 Battistelli, de seu exilio carioca, interveio em suas colunas com cinco contribuições, entre junho de 1929 e fevereiro do ano seguinte. A primeira95 era uma robusta análise do fenômeno bolchevique e da revolução de outubro, em busca de quanto existia de fiel à doutrina de Marx nas providências tomadas pelo regime soviético após sua 93 Futuramente, de 1934 até 36, Libero escreverá pelo menos outras quatro cartas para Nenni, desta vez com um tratamento já mais intimo. 94 Sobre Il Pungolo e seu fundador Giuseppe Donati, ver TOMBACCINI, Simonetta. Storia dei fuorusciti italiani in Francia, op. cit., p. 115-121. 95 “Marxismo e dottrine amarxiste nella rivoluzione russa”. Il Pungolo, Ano I, nn. 15-16, 1-15. 6.1929, p. 119-122. O periódico trazia como subtítulo “Rassegna periódica di critica e cultura” e era editado em Paris, Rue du Croissant, 15. 164 implementação, e de quanto fosse oriundo de outros fenômenos e ideologias políticas: Libero insistia para uma fecunda revisão teórica da doutrina marxista, eliminando o muito de caduco que estava contido nela, em busca do comunismo autentico, convidando para essa tarefa, além dos expoentes dos partidos da esquerda, também republicanos e anarquistas. A proposta de um trabalho em conjunto começava a delinear-se desde aquele momento histórico como uma das principais características do antifascismo de Battistelli, que afirmava na abertura de seu artigo como “os relativos ócios políticos aos quais o exilio nos obriga, devem ser nobilitados por um intenso trabalho de preparação teórica em vista da práxis de amanhã”96. De seu segundo artigo, sobre a oportunidade de uma aliança contra as ditaduras, já foi dito acima,97 enquanto o terceiro se detinha sobre o problema das minorias étnicas e sua presença no corpo dos Estados, reconstruindo o percurso do principio de nacionalidade, antes e depois da Revolução Francesa, circunstância em que o sentimento de nação faria sua primeira aparição na história. Mas o ponto alto da intervenção de Battistelli é representado per os dois últimos artigos, críticos de certas tendências “moderadas” presentes no seio do antifascismo exilado (leia-se Concentrazione e até o próprio Pungolo). Battistelli indignava-se com estas tendências, e reivindicava com orgulho sua participação do ”subversivismo” de 1919 e até de 1924: se houve uma culpa do movimento popular na Itália daqueles anos, dizia ele, foi exatamente de não ter levado a subversão até sua últimas consequências. Battistelli se declarava arrependido: não, porém, de ter sido ‘subversivo’, e sim de não tê-lo sido suficientemente.98 Cobrado, no mesmo número, pela direção do jornal a explicar melhor sua proposta politica99, ele replicava com um artigo publicado em fevereiro de 1930. Talvez essa matéria100 represente uma primeira elaboração da forma de regime politico que Battistelli auspicava para o futuro da Itália e que considerava modelo ideal também para qualquer Estado do mundo: uma república social, a ser perseguida e instaurada com métodos revolucionários, e , se for necessário, a ser defendida inicialmente até com métodos não necessariamente próprios da democracia e do liberalismo. Uma república social fomentadora de autonomias e federalismos, e que tenderia gradualmente à 96 Ibidem. Cf. notas 49-51. 98 Cf. “Per intenderci (se possibile)”. Il Pungolo, Ano I, nn. 23-24, 1-15.10.1929, p. 189-190. 99 Cf. “Per non equivocare (se possibile). Il Pungolo, Ano I, nn. 23-24, 1-15.10.1929, p. 191-192. 100 “Per comprenderci (se possibile)”. Il Pungolo, Ano II, serie 2, n.2, 15.2.1930, p. 14-15. 97 165 supressão total e absoluta da propriedade privada. Como se vê, uma proposta ousada por um expoente republicano, mas coerente com aquela orientação de esquerda que ele reivindicava como própria desde os anos bolonheses, com soluções politicas e sociais (instauração por via revolucionária, socialização da propriedade) típicas do movimento comunista. 3.8. A viagem de 1930 Diálogo com o mundo do antifascismo através da imprensa, seja a brasileira, seja a produzida na França; correspondência com alguns expoentes da oposição ao fascismo; presença ativa e protagonismo no mundo do associacionismo antifascista da colônia italiana no Rio; tentativa de elaboração teórica de um projeto alternativo ao regime. Battistelli viveu os primeiros anos de exilio à luz destas linhas de pensamento e ação. Mas em 1930 uma viagem à Europa, segundo se pode depreender da documentação oficial e privada, se tornava responsável por uma significativa modificação em seu percurso no âmbito do movimento antifascista. Planejada com meses de antecedência,101 a ida ao velho continente foi também cercada de garantias. Desde novembro do ano anterior, Libero e sua esposa tinham-se naturalizados brasileiros.102 Uma viagem internacional, com destino a Europa, realizada por um tranquilo casal de brasileiros, teria permitido uma maior liberdade de movimento do que a mesma viagem empreendida por cidadãos italianos, sobretudo quando, como no caso de Battistelli, fichados no Casellario Politico Centrale e assinalados no boletim dos procurados como elementos a serem detidos e revistados em caso de volta à Itália. A experiência vivida por Francesco Frola em sua ida à França no ano anterior representara um alerta, pois ele, tendo perdido sua cidadania italiana em 1926, só conseguiu das autoridades 101 Cf. nota 92. Ver também o artigo “La Crociera in Italia degli Italiani del Brasile”. La Difesa, Ano VI, n. 273, de 11.8.1929, p. 2. O artigo não é assinado, mas sua autoria é com toda probabilidade de Battistelli, pois o comentário à viagem organizada pelo fascio de São Paulo, para que italianos e seus descendentes pudessem conhecer de perto o fascismo e o país por ele governado, e as críticas pelos seus altos custos, apresenta o valor de uma passagem de segunda classe na rota Rio-Cherburgo (ida e volta), isto é entre 55 e 65 mil libras esterlinas, correspondentes a 5 ou 6 mil liras italianas. Exatamente a rota e a classe escolhidas pelo casal Battistelli por sua ida à Europa meses depois. 102 Cf. Portaria da Diretoria do Interior de 25.11.1929, publicada no Diário Oficial de 26.11.1929. 166 brasileiras um passaporte que declarava ele ser “sem nacionalidade”, o que lhe permitiu a viagem, mas não o dispensou de apreensões na hora da chegada a Marselha.103 A escolha pela naturalização, além de representar um ato de consideração, mesmo que inicial, para o país acolhedor, significava uma maior segurança nas viagens, assim como na própria permanência em território brasileiro para militantes do antifascismo e da esquerda em geral, embora não fosse garantia automática diante da ameaça da expulsão, como os casos de Limongi e, como se verá, de Mario Mariani demonstraram. De toda forma, passaporte brasileiro na mão, Libero e Enrica embarcaram, provavelmente no mês de abril104, no vapor Alcântara, de propriedade inglesa e tendo como destino Cherburgo, cidade da Normandia a 350 quilômetros de Paris. As semanas seguintes foram dedicados a contatos com o grupo dos fuorusciti italianos residentes na capital francesa, culminando numa conferência pronunciada por Battistelli a convite da associação dos jornalistas “Giovanni Amendola”, na noite de 3 de maio. O fichário da policia105 apresenta informações recolhidas pelos organismos diplomáticos italianos em Paris, que destacavam o pequeno publico de ouvintes (cerca de 70 pessoas), a presença dos principais nomes do antifascismo italiano (dos socialistas Treves, Turati e Nenni, a Lussu, Rosselli e Facchinetti, expoentes do recém-nascido movimento de Giustizia e Libertá, aos membros da Lidu como De Ambris e aos republicanos como Montasini) e o tema da palestra (“Italianos e antifascistas no Brasil”). Os informes da Embaixada em Paris referiam do destaque dado por Battistelli em sua colocação ao empenho dos antifascistas no Brasil, cujos frutos não foram muito significativos, contudo, devido ao pequeno numero de militantes e à exiguidade dos recursos, apesar da maioria dos membros da colônia permanecer de sentimentos antifascistas. Não é possível saber se a viagem de Battistelli para Paris tivesse alguma relação com a de Frola, realizada alguns meses antes (Frola permanecera na capital francesa cerca de quatro meses, de dezembro de 1929 a março de 1930). Se estivesse planejada uma 103 Ver FROLA, Francisco. Recuerdos de un antifascista, 1925-1938. Cidade do México: Editorial Mexico Nuevo, 1939, p. 139-143. 104 É provável que o casal Battistelli tenha escolhido para a ida à Europa o mesmo vapor utilizado para a volta, na mesma rota (Rio-Cherburgo-Rio). O Alcântara chegara ao Rio de Janeiro, proveniente de Southampton, no dia 29 de março de 1930, após uma viagem de aproximadamente 15 dias. Em seguida continuara viagem até Buenos Aires, de onde retornara para o porto carioca no dia 12 de abril. Cf. BR_RJANRIO_OL_RPV_PRJ_24922. Tudo indica que esta foi a data de embarque dos Battistelli no vapor direto à Europa, onde chegaram após cerca de 15 dias. A estada no velho continente não deve ter ultrapassado, portanto, os dez dias. 105 Cf. ACS/CPC, b. 411, f. 29269 (“Battistelli, Libero”), Embaixada da Itália em Paris, dois telegramas (ambos com n. 5687): o primeiro de 25.4.1930, e o segundo de 6.5.1930. 167 espécie de investidura para alguma forma de liderança de Battistelli no âmbito do antifascismo brasileiro, encontrando-se Frola contestado em sua atuação em São Paulo, ou se se tratasse de uma missão de Libero, a mando do mesmo Frola, talvez aquela atribuída a Itria pela embaixada italiana no Rio, como visto acima. Ou se sua origem se deva mais simplesmente à vontade pessoal de Battistelli de um confronto e de um diálogo com o ponto mais expressivo do movimento antifascista no exterior. De todo modo, o contato com os expoentes do fuoruscitismo em Paris foi fecundo para Battistelli, que conseguiu perceber valores e limites da experiência da Concentrazione e foi apresentado ao movimento que mais influirá sobre sua visão e ação politica no futuro, Giustizia e Libertá.106 Com efeito, desde meados de 1929, encontravam-se em Paris três antifascistas fugidos do confinamento ao qual tinham sido condenados pelo fascismo numa ilha do Sul da Itália - entre os quais se destacava por seu espirito de liderança Carlo Rosselli - e agora ponto de referência de um grupo que colocava como prioridade a luta na península, propondo aos partidos no exilio a unificação total dos esforços para abater o regime de Mussolini, e a constituição de um único movimento revolucionário. Após meses de conversas com os lideres da Concentrazione, surdos diante dessas exigências, os membros do grupo resolveram fundar um movimento autônomo, Giustizia e Libertá. Nascia assim, em outubro de 1929, uma nova entidade, mais ágil e livre por não se constituir como partido politico, menos interessada ao lento e às vezes estéril trabalho de propaganda dos organismos do antifascismo exilado, mais voltada a valorizar formas de luta ao fascismo no território italiano, reanimando, onde fosse possível, uma oposição latente e silenciosa: isso também através de eventuais gestos espetaculares, como serão lançamento de panfletos dos céus das cidades italianas 107 e até atentados contra expoentes do regime. Battistelli encontrava o mundo dos antifascistas italianos em Paris exatamente no momento em que o surgimento da nova sigla questionava profundamente os caminhos por eles percorridos até então. Declaradamente republicano, como de resto o próprio cartel dos partidos, GL em breve esclarecerá suas orientações politicas, declarando-se, 106 Sobre origens e história do movimento, ver indicações bibliográficas apresentadas na primeira parte. No dia 11 de julho de 1930, um pequeno avião partido da Suíça sobrevoava Milão e lançava sobre a cidade milhares de panfletos, convidando a população à revolta contra o fascismo: eram assinados Giustizia e Libertá. A essa ação espetacular outras deveriam seguir, mas a maioria delas não saiu do papel. 107 168 particularmente através do trabalho de elaboração teórica de Rosselli, por um ‘socialismo liberal’, titulo do ensaio publicado por este último no final de 1930 em Paris. Um socialismo que pretendia se reformular prescindindo dos esquemas demasiadamente rígidos do marxismo e do materialismo histórico, e que, em sua luta revolucionaria para uma sociedade de iguais, buscava não perder de vista o valor supremo da liberdade. Propósitos vistos com certa suspeita pela componente de orientação socialista da Concentrazione, a ponto que o próprio acordo, que será selado entre esta organização e GL em novembro de 1931, dividirá tarefas e competências, mas nunca chegará a dissipar um permanente clima de difidência reciproca entre os dois aliados. É provável que no breve período passado em Paris, a contato com os fuorusciti, Libero tenha percebido humores e tendências existentes no âmbito da Concentrazione, e ao mesmo tempo tenha ficado positivamente impressionado pela novidade representada por GL. Battistelli sempre se destacou, como vimos, por sua postura politica não conformista, (“republicano sui generis”, “o mais socialista dos republicanos”), rebelde a rígidas disciplinas de partido, e, provavelmente, advertiu desde aquele momento o perfil do novo movimento, com seus proclamas de um socialismo revolucionário e da urgência da ação, mais consoante com o seu próprio perfil, superando até eventuais diversidades de visão. Como vimos, escreverá em 1932 para Rosselli: ”Meu posto foi então entre os republicanos, assim como agora é entre vocês. Porque a identidade moral e de caráter é muito mais importante do que a identidade ideológica”.108 De todo modo, as fontes policiais italianas109 relatavam que Battistelli teria recebido em Paris a missão de trabalhar para arrecadar fundos para o movimento antifascista internacional (coisa até provável), e que ele prolongaria sua viagem indo para Bélgica, Alemanha e Suíça, por negócios privados (a negociação de maquinários agrícolas alemães destinados ao Brasil): afirmações não verificáveis, e em parte duvidosas, até porque apresentadas como para acontecer no mês de junho, data na qual Libero e esposa já estavam de volta para o Rio de Janeiro. Talvez uma passagem pela Bélgica, indicada por Libero na hora do desembarque no Rio como sua ultima residência, possa 108 Cf. Carta de Libero Battistelli a Carlo Rosselli, Rio de Janeiro, 27.4.1932, In Istituto per la Storia della Resistenza in Toscana (ISRT), Arquivo de Giustizia e Libertá (AGL), Fundo Carlo Rosselli, fasc. 1, sottofasc. 8. 109 Cf. ACS/CPC, b. 411, f. 29269 (“Battistelli, Libero”),Ministero dell’Interno, Direzione Generale della Pubblica Sicurezza, Divisione Affari Generali e Riservati, N. 441/09603, 27.5.1930 e Divisione Polizia Politica, N. 500/11295, 7.6.1930. 169 corresponder à verdade110. Outra informação transmitida e que pode ser verissímil, contudo, diz respeito à compra em Paris, por parte de Emilia Battistelli, de tecidos e roupas para a sua loja carioca de costura. Atividade que sem dúvida devia ajudar de forma significativa no sustento do casal na Capital Federal, permitindo a Libero de se dedicar com mais tranquilidade a seu empenho politico. A volta para o Brasil de Battistelli e senhora aconteceu no vapor Alcântara, com saída do porto inglês de Southampton. O casal embarcou em Cherburgo, chegando ao Rio no dia 23 de maio de 1930111. A bordo do navio 168 passageiros, todos declarando na hora do desembarque, além das generalidades e outras informações, sua religião: havia católicos, protestantes, ortodoxos, judeus e muçulmanos, mas os Battistelli, curiosamente (ou coerentemente) foram os únicos a se declarar “sem religião”. De qualquer forma, agora eram um casal de “brasileiros”, de retorno da Europa, viajando na segunda classe. 3.9. De volta ao Rio: convergências e divergências Pode-se pensar que a experiência parisiense tivesse fortalecido os propósitos de Libero: afinal retornava ao Brasil com a confirmação e o apoio das várias componentes do mundo do fuoruscitismo, e em acréscimo uma abertura de crédito tributado pela mais recente sigla do mesmo, Giustizia e Libertá. Em breve ele ia se tornar o responsável do movimento pelo Brasil e pela América Latina. Talvez pudesse ter advertido certa inveja pelos homens exilados na França: terra mais próxima da Itália do que o longínquo Brasil, e politicamente mais solidária com as lutas do antifascismo italiano do que o mundo politico e a sociedade carioca. Mas ainda havia no Rio de Janeiro uma atividade comercial para prosseguir, cunhados para ajudar, e uma rede de amigos e companheiros empenhados no esforço de resistência ao fascismo no âmbito da colônia italiana e da Capital Federal. 110 Desde dezembro do ano anterior, Camillo Berneri, o anarquista que se correspondia com Libero, estava detido no cárcere de Bruxelas, acusado de planejar um atentado contra o Ministro italiano Rocco, durante sua visita à cidade. Um encontro, ou tentativa de encontro, com ele por parte de Battistelli não é de se excluir. Sobre Berneri neste período, ver o perfil do anarquista na pagina do Archivio Berneri www.comune.re.it/biblioteche/berneri.nsf?OpenDatabase e TOMBACCINI, Simonetta. Storia dei fuorusciti italiani in Francia, op. cit., p. 138-140. 111 Ver Arquivo Nacional (AN), Divisão de Policia Marítima, Aérea e de Fronteira (DPMAF), Relações de Passageiros em Vapores (RPV), Porto do Rio de Janeiro (PRJ), BR_RJANRIO_OL_RPV_PRJ_25039. 170 O cenário de meados de 1930, no qual Libero voltava a se inserir após sua ida à Europa, mudara bastante. Na verdade, desde o ano anterior, novas figuras tinham aparecido no âmbito da comunidade italiana antifascista, e é o caso de mencioná-las aqui, pois, embora diretamente ligadas ao antifascismo italiano de São Paulo, local de sua principal atuação, tiveram algum tipo de contato com Battistelli. O primeiro nome novo é o de Goffredo Rosini.112 Quando desembarcou no Rio de Janeiro, em março de 1929, vindo da França, onde passara três anos, sempre trabalhando a serviço do partido comunista, como já fizera antes de sair da Itália, ele tinha no bolso uma carta de apresentação de um dos fuorusciti de Paris para Battistelli113. Tendo como destino a cidade de São Paulo, onde um tio dele morava, Rosini encontrou antes Libero na Capital Federal: um ponto de referência seguro para um antifascista como ele, recém-chegado em terra brasileira. Foi ele que nesta ocasião falou longamente de Berneri para Battistelli, como este lembrou em sua primeira carta para o anarquista114. Os vários informes da policia italiana e do consulado de São Paulo em 1929 apresentavam Rosini como colaborador de La Difesa, ora indicando-o como possível sucessor de Frola, ausente do Brasil desde meados do ano, na direção do periódico, ora sugerindo a hipótese que ele mesmo, já em São Paulo, teria convidado outro italiano exilado na França, Mario Mariani, para assumir a liderança do movimento antifascista no Brasil, numa tentativa de superação dos contrastes existentes entre Frola e Piccarolo, que estavam dividindo abertamente a colônia paulistana. O que é certo é que, por recomendação do cônsul italiano em São Paulo, foi submetido a vigilância por parte da policia local, e detido algumas vezes sob acusação de propaganda comunista, ainda em 1929. Uma carta para um amigo que estava em Paris, sequestrada pelas autoridades, denunciava as divisões no seio do antifascismo da cidade (dois periódicos antifascistas - Il Risorgimento, órgão da Concentrazione, ligado a Piccarolo, e La Difesa, órgão da Lega Antifascista, ligado a Frola - que se faziam a guerra) e ao mesmo tempo mostrava como para um comunista como ele, mesmo que pudesse parecer uma traição, o caminho da colaboração, particularmente com La Difesa (“que não é nem concentracionista, nem anti-concentracionista, e nem anti-comunista”), 112 Sobre Rosini ver os documentos do ACS/CPC, b. 4418, f. 23664 (“Rosini, Goffredo”). Ver também TRENTO, Angelo. Do outro lado do Atlântico, op. cit., p. 352-353. 113 ACS/CPC, b. 4418, f. 23664 (“Rosini, Goffredo”). Informe da Policia Politica Italiana para a Embaixada do Rio de Janeiro, 5.4.1929. 114 Cf. Libero Battistelli a Camillo Berneri, Rio de Janeiro, 17.9.1929, in Paola Feri, Luigi Di Lembo (org.) Epistolario inédito / Camillo Berneri, op. cit., 18-22; 171 era o único possível, dada a série de prisões de estrangeiros ligados à esquerda e várias expulsões dos mesmos.115 Nesta circunstâncias o consulado em São Paulo refere também de outra carta,116 da qual, porém, ainda não conseguira cópia, dirigida a Rosini por “um comunista italiano residente no Rio que assina Libero”: informação explicitada dias depois pela embaixada no Rio de Janeiro, que identificava em Battistelli o autor da correspondência.117 Outro antifascista de destaque naquele período, cuja trajetória cruza a de Battistelli, foi Mario Mariani118, acima mencionado. Com efeito, este, romancista afirmado na Itália, se encontrava desde 1927 na França, onde desenvolveu atividade antifascista e chegou a fundar um partido de inspiração socialista. Expulso da França, em seguida refugiado na Bélgica, abandonou a Europa, convidado a ir para o Brasil por Trento Tagliaferri, italiano de orientação anarquista, que ia se estabelecer na Bahia: Tagliaferri abriria uma casa de jogos, a Cycle Ball, e Mariani atuaria como conferencista e pintor. A mesma estrutura que hospedaria Mariani, faria o mesmo com outro expoente do mundo do fuoruscitismo italiano na França, Nicola Cilla, antes ligado ao PCI e mais tarde à Concentrazione parisiense. Os informes e circulares da policia italiana e dos consulados de Bruxellas, da Bahia e sucessivamente de São Paulo mapeavam os movimentos de Mariani, até sinalizar sua presença na capital paulistana, onde já em setembro de 1929 era tido como o redator de La Difesa, após a saída de Frola, apesar do nome deste aparecer ainda na primeira pagina do periódico como diretor até março de 1930. A chegada de Mariani levaria o jornal por caminhos diferentes dos de Frola, e o antigo desafeto deste ultimo, Piccarolo, voltava a oferecer sua colaboração, seja debaixo da direção de Cilla (a partir de julho de 1930), seja da de Mariani, sucessiva a esta. 115 Para mais amplos trechos da carta de Rosini ver TRENTO, Angelo. Do outro lado do Atlântico, op. cit., p. 353, e João Fabio Bertonha. Sob a sombra de Mussolini, op. cit., p. 159-160. 116 ACS / CPC b. 4418 f.23664,(“ Rosini, Goffredo”), “riservata personale” do consulado geral de São Paulo, 25.6.1929, e telespresso da Embaixada da Itália, n.2160, 1.7.1929, onde se diz: “Tenho o prazer de comunicar que a assinatura ‘Libero’ talvez seja a do advogado antifascista Libero Battistelli, residente no Rio de Janeiro, rua 13 de maio, 50, Presidente da Lega dei Diritti dell’Uomo, venerável da loja maçônica Fratellanza Italiana, membro da comissão executiva da Lega Antifascista, e agora colaborador de La Difesa”. 117 O percurso sucessivo de Rosini acompanhou as andanças do periódico paulistano; em 1933, foi um dos protagonistas da criação da Frente Única Antifascista em São Paulo. Após passagens pelas prisões e saídas do Brasil rumo ao Uruguai e à Argentina, em 1937 as fontes divergem: para o consulado estaria ainda preso em São Paulo, enquanto, segundo informações recolhidas anos depois pelo trotskista brasileiro Mario Pedrosa, Rosini teria lutado na guerra civil espanhola, de onde, ferido, teria sido transportado para a União Soviética e aqui fuzilado por ter declarado ser trotskista. 118 Ver sua pasta no ACS/CPC, b.3059, (“Mariani, Mariano”). 172 O percurso de Mariani nos interessa aqui na medida em que seus passos se cruzaram com os de Battistelli. Um dado interessante se encontra numa longa reportagem, publicada em La Difesa em 1931, que tentava dar conta a posteriori das razões e dos percursos que levaram à saída de Frola e à chegada de Mariani para substitui-lo. Numa passagem se depreende que Libero intermediou a assinatura de vários contratos com editoras cariocas119 para a publicação no Brasil de obras do próprio Mariani. Voltando a 1930, no mês de junho, logo depois do retorno de Libero e sua esposa da Europa, Mariani, acusado de comunismo, recebeu um decreto de expulsão do país.120 A decisão do poder executivo foi sucessivamente consagrada por uma sentença do Supremo Tribunal, que não concedeu o habeas corpus, apesar de uma intensa campanha em favor do italiano na imprensa brasileira, e das numerosas declarações de expoentes do mundo politico, como Mauricio de Lacerda e Evaristo de Moraes. La Difesa tinha liderado esta ação de denúncia e de apoio a Mariani, inclusive publicando uma declaração da Lidu do Rio (presidida por Battistelli) em favor do antifascista121, e, quinze dias depois, um artigo do próprio Libero que indicava abertamente no cônsul italiano em São Paulo, Mazzolini, o autor da falsa acusação, criada para eliminar um opositor do fascismo. 122 Interessante é também a intervenção com a qual Battistelli saudava Mariani em La Difesa, em ocasião de sua expulsão: “Queremos dizer-lhe todo nosso afeto e nossa admiração. Oriundos de escolas politicas diferentes, homens e não ovelhas, não concordamos com ele sobre algumas coisas, e este dissenso manifestamos abertamente [...], mas gostaríamos de lembrar neste momento que Mariani continua a grande e gloriosa tradição dos artistas rebeldes. {...] Acima de qualquer dissenso, nós todos, republicanos ou socialistas, democráticos ou sem partidos, como antifascistas e como italianos, somos orgulhosos dele”.123 119 Deve tratar-se da Companhia Editora Nacional e da Editora Freitas Bastos, que publicaram obras de Mariani naqueles anos. Há uma edição da Freitas Bastos de 1930 do livro Pobre Christo, de Mariani, ilustrada por Di Cavalcanti, artista que, por ocasião da campanha anticomunista desencadeada após o levante de 1935, encontrará temporário refugio na fazenda de Battistelli em Mangaratiba. 120 Para o processo, ver AN/IJJ7, processo de expulsão “Mario Mariani”, 1930. Ver também TRENTO, Angelo, Do outro lado do Atlântico, op. cit., p. 354-355 e BERTONHA, João Fábio. Sob a sombra de Mussolini, op. cit., p. 84. Uma análise mais detalhada do processo está em SANTOS, Viviane Teresinha dos. Italianos sob a mira da policia politica: vigilância e repressão no Estado de São Paulo (1924-1945), São Paulo: Humanitas, 2008, p. 259-264. 121 “Vita sociale italiana in Brasile. Da Rio de Janeiro. La Lidu per Mario Mariani”. La Difesa, ano VI, n. 313, 15.6.1930, p. 4 122 Cf.” L’onorevole delatore”. La Difesa, ano VI, n. 315, 29.6.1930, p. 2 123 “Saluto a M. Mariani”. La Difesa, ano VI, n. 316, 6.7.1930, p. 1-2. 173 Divergências, então, entre os dois, pois Battistelli apoiara abertamente nos anos passado a atuação de Francesco Frola e a linha por ele impressa ao semanário antifascista124. A chegada de Mariani coincidiu com a exclusão, no âmbito da coletividade italiana em São Paulo, dos partidários de Frola, do grupo de seus amigos, e abriu de novo as portas para Piccarolo e outras figuras de antifascistas. Estas divergências, contudo, não impediram a Battistelli, de um lado, de reconhecer o papel e a coragem de Mariani, e do outro, de continuar uma colaboração com o periódico pelo menos até finais de 1930.125 Mariani conseguiu evitar a expulsão fugindo para Montevidéu, voltando para São Paulo poucos meses depois, quando da chegada de Vargas ao poder, em outubro de 1930. Para a ocasião, Battistelli escreveu em La Difesa,126 afirmando a solidariedade dos antifascistas italianos com o movimento revolucionário e lembrando como, pelo contrario, a derrotada “oligarquia brasileira” simpatizava com o fascismo. Libero chegava a enumerar as iniciativas do mundo do antifascismo italiano da Capital Federal, como a saudação da Lidu à revolução, publicada em A Batalha e o Diário de Noticias (do “amigo Agripino Nazareth”), e o pedido da mesma Lidu para que fosse cancelado o decreto de expulsão de Mariani. 127 124 Assim Battistelli teria-se manifestado sobre Frola e sua atuação nos primeiros anos no Brasil: “Durante o tempo em que ele guiou o movimento antifascista não se verificou no nosso campo nenhum dissidio de caráter político. Republicanos, como eu, socialistas de todas as gradações, filocomunistas, anarquistas, todos os antifascistas de esquerda seguiam fraternalmente a batalha comum”. A lembrança é do próprio Frola em seu livro I tre furfanti (Piccarolo, Mariani e Cilla), São Paulo, 1931, p. 23. 125 Nas paginas autobiográficas nas quais, nos anos 70, Nello Garavini, anarquista e amigo de Battistelli, lembra sua longa temporada no Rio de Janeiro, o autor dedica algumas linhas também às divisões do antifascismo no Brasil, a Mariani e à relação deste com Libero: “O melhor jornal antifascista brasileiro era La Difesa, publicado em São Paulo e dirigido por Francesco Frola, antes, e, depois, por Mario Mariani; redatores eram Cilla e o prof. Piccarolo. Entre Frola e estes últimos acendeu-se uma antipática polêmica pessoal, que desanimou todos os antifascistas italianos no Brasil. Nós, os antifascistas do Rio, não tomamos partido, pois se tratava mais de questões pessoais do que de ideias. Esta atitude enfureceu Mariani, oriundo como eu da Romanha [região da Itália perto de Bolonha]: ele queria que nos colocássemos do lado dele contra Frola. O movimento antifascista da colônia italiana de São Paulo desagregou-se, e isso foi uma pena, pois São Paulo era uma das poucas cidades da América do Sul onde o antifascismo fosse realmente forte. [...] Quando, anos mais tarde, Mariani veio morar no Rio de Janeiro, fechou-se num isolamento inexplicável. Não falava com nenhum dos antifascistas e afastou-se também de Libero Battistelli, embora tivesse sido acolhido por ele com muita gentileza”. GARAVINI, Nello. Testimonianze. Anarchismo e antifascismo vissuti e visti da un angolo della Romagna. Imola: La Mandragora, 2010, p. 170-171. 126 Cf. “Rio, la Rivoluzione e ...Mario Mariani”. La Difesa, ano VI, n. 332, 15.11.1930, p.2 127 Segundo informações presentes em TRENTO, Angelo. Do outro lado do Atlântico op. cit., BERTONHA, João Fabio. Sob a sombra de Mussolini, op. cit., e SANTOS, Viviane Teresinha dos. Italianos sob a mira da policia politica: vigilância e repressão no Estado de São Paulo (1924-1945), op. cit., Mariani continuou na direção de La Difesa e na liderança da Lidu, mas em 1933, em dificuldades econômicas, tentou um acordo com o regime fascista, aceitando abandonar o empenho antifascista em troca do pagamento de direitos autorais passados. Obtida a autorização pelo próprio Mussolini, e de posse de um passaporte 174 Mas este foi o último artigo de Battistelli para o periódico paulistano. Em 1930, escrevera somente oito vezes no jornal. Nos próximos três anos (e três meses), com o jornal sob a direção de Cilla e depois, a partir de dezembro de 1931, do próprio Mariani, e em seguida de Bixio Picciotti, Libero não escreverá mais, nem em La Difesa, nem em seu alter ego, L’Italia. Ainda participará de duas subscrições em 1931, mas nenhum artigo publicado: não é dado saber se por iniciativa dele mesmo ou se por decisão da direção.128 Battistelli colaborou ainda com Frola e seu periódico recém-lançado em Buenos Aires, onde o ex-diretor de La Difesa tinha aportado após sua volta da Europa. Risorgimento: quotidiano antifascista, era o nome daquilo que começou como um diário em dezembro de 1930, mas em breve se transformou num semanário, mesmo assim sobrevivendo por poucos meses. Libero publicou dois artigos. Em dezembro de 1930, 129 enalteceu o papel das nações latino-americanas, que conquistaram a liberdade e instauraram regimes republicanos em virtude de autenticas revoluções: aqui também, como já no ultimo artigo para La Difesa, elogios para a “revolução” varguista, apontada por ele, junto a análogos casos da América do Sul (afinal estava escrevendo para um periódico portenho), como exemplo para uma Europa onde soprava o vento da reação. No mês de maio de 1931130, num dos últimos exemplares do periódico, perguntava-se sobre as relações entre a Santa Sé e o Estado que haveria de se estabelecer após a derrota do fascismo na Itália. Divergências, sem dúvida, e uma escolha de campo foi o que levou Battistelli a se afastar do grupo que estava levando pra frente o empenho em La Difesa. Ou, talvez, fosse a decisão de se posicionar fora de questionamentos e acusações que não iam contribuir à causa do antifascismo. Ou, ainda, após ter advertido, na brevíssima para Espanha, Portugal e América do Sul, concedido pela embaixada italiana do Rio após ele ter declarado que o usaria para um tour de propaganda comercial em favor do açúcar brasileiro, Mariani viajou para a Argentina, onde encontrou também Cilla, naquele país desde alguns anos. Mariani retomará sua ação antifascista em terra portenha, voltando para a Itália em 1947, e retornando de novo ao Brasil, onde morrerá em 1951. 128 Em maio de 1931, em ocasião de uma passagem pelo Rio de Janeiro, Ugo Scalabrino, encarregado pelo jornal de visitar assinantes e antifascistas em geral do interior do Estado de São Paulo e de outras capitais, encontrou Battistelli (e, como já vimos, também Giuseppe Scarrone). A conversa com Libero evidenciou opiniões discordantes sobre o movimento no Brasil. O visitante chegava a lamentar a inexistência de seções dos partidos socialista e republicano italianos na Capital Federal, onde se registrava somente a presença da Lidu, como grupo de elite. Cf. “Vita sociale degli italiani in Brasile. La Difesa in viaggio”. La Difesa, ano VIII, n. 357, 30.5.1931, p. 4. 129 Cf. “Storia che si ripete”. Risorgimento, Ano I, n. 11, 11.12.1930, p. 3. 130 Cf. “Problemi italiani: il Papato”. Risorgimento, Ano I, n. 31, 7.5.1931, p. 3 175 temporada na França, quanto egoísmos, protagonismos ou preconceitos pudessem dividir e, portanto, enfraquecer as tentativas de luta, talvez se tratasse, para Libero, de uma evidência cada vez mais forte e urgente: a da necessidade de intensificar a análise e o debate sobre o futuro que o antifascismo planejava construir. Os anos a seguir, de 1931 a pelo menos 1934, representaram para Battistelli o tempo da reflexão e da elaboração de um projeto de sociedade alternativo àquele que os fascismos estavam colocando, ou querendo colocar, em ato na Europa e no mundo. 3.10. Um intelectual Em 1931, Battistelli publicava no Rio de Janeiro I Fuori-classe, um pequeno livro de 43 páginas, escrito entre julho e setembro do mesmo ano131. Diante de um fascismo cada vez mais triunfante em sua pátria, consagrado pelo Tratado de Latrão e pelas eleições plebiscitárias de 1929, em que 98% dos votantes aprovaram as listas únicas apresentadas pelo partido fascista, e, possivelmente, tomado por dúvidas a respeito dos rumos do ímpeto inovador do governo Vargas, e de suas promessas de revolucionar os equilíbrios de classe no Brasil, Libero talvez percebesse a necessidade de ordenar seus pensamentos e oferecer de forma mais completa uma sua pessoal contribuição ao debate do antifascismo. Foi nesse pequeno instrumento de reflexão e em seus artigos dos anos sucessivos, publicados no periódico Problemi della Rivoluzione Italiana e nos Quaderni di Giustizia e Libertá, que o republicano, por enquanto ainda simples simpatizante, mas, com o passar do tempo, expoente destacado do movimento de Rosselli, condensou sua posição. Autêntico intelectual, segundo ambas as definições consagradas pelos estudos de Sirinelli132, isto é, a sociológico-cultural, mais ampla e que diz respeito a criadores e mediadores culturais, e a mais restrita, fundamentada na noção de engajamento politico. Battistelli se enquadrava nas duas, sendo tanto produtor e difusor de instrumentos de mediação cultural, com seus artigos e seus opúsculos, quanto pessoa diretamente empenhada no debate e na luta politica. Pode, ainda seguindo Sirinelli, não ter 131 BATTISTELLI, Libero. I Fuori-classe: tentativo di una determinazione e di un orientamento politico dei residui sociali, Rio de Janeiro, 1931. O livreto foi impresso em São Paulo, pela Tipografia Cupolo, Ladeira Santa Ephigenia, 21. 132 Ver SIRINELLI, Jean-François. “Le hasard ou la nécessité? Une histoire en chantier: l’histoire des intelectuels”. Vingtième Siècle. Revue d’Histoire, Paris, n.9, janeiro-março 1986, p. 97-108. E também --------. “Os intelectuais” In RÉMOND, René. Por uma história política. Rio de Janeiro: EdUFRJ/FGV, 1996, p. 231-269. 176 pertencido ao grupo dos “grandes intelectuais” de seu tempo (como Gobetti ou Nenni, Gramsci ou Rosselli), e se enquadrar mais adequadamente no âmbito dos intelectuais menores, mas sua contribuição nos parece uma das mais significativas do conjunto do antifascismo no exilio. Seu texto mais denso e elaborado, I Fuori-classe buscava determinar, como enunciava de forma um tanto hermética o subtítulo, o lugar politico de uma categoria social que se colocava entre a burguesia e o proletariado, formada por cidadãos que não se enquadravam em nenhum dos dois polos dos clássicos esquemas “bi-classistas “ (ricos vs pobres, exploradores vs explorados etc...). Chamados por muitos de classes médias, Battistelli sugeria a denominação de fuori classe (fora da classe, ou das classes) e os definia assim: “todos os que recebem integralmente e unicamente o correspondente de seu trabalho, que não se alteraria, sensivelmente e relativamente, se mudar a constituição econômica da sociedade”. E em seguida ia listando os que poderiam ser colocados nesta categoria politica: dos profissionais liberais aos funcionários públicos, dos quadros de empresas privadas aos técnicos, dos oficiais de exército e marinha aos artistas, cientistas e magistrados, até artesãos, estudantes e aposentados. Na Itália, comentava Battistelli, cerca de um terço da população masculina acima dos 18 anos eram fuori classe. Daí a importância de estudar esta categoria social, que, em países onde nem burguesia nem proletariado possuírem uma maioria absoluta em termos de classe (de novo, como a Itália), podia representar o fiel da balança, além do fato que fuori classe eram praticamente quase todos os dirigentes políticos, de uma como de outra das duas classes antagonistas. Depois de mostrar como o pertencer a uma classe geralmente gerava uma consciência do pertencimento à mesma e de seus interesses (consciência sempre clara para os capitalistas133, às vezes obscurecida ou adormecida para a classe trabalhadora), a análise de Libero ia discorrendo sobre os interesses, ou, melhor, as “forças ideais” que agiam sobre os fuori classe: das “conservadoras e reacionárias” (ou egoístas), como patriotismo, ordem e legalidade, às “sentimentais” (que agiam em sentido progressista), como pacifismo, humanitarismo ou liberdade, até 133 Battistelli dizia que “nos capitalistas [...] a consciência de classe é geralmente claríssima. Um empresário ou um proprietário de terras que sejam sinceramente socialistas, nunca é porque ignoram de pertencer a uma classe cujos interesses contrastam com os postulados da doutrina socialista, mas sempre porque julgam que os interesses de sua classe não mereçam defesa” (I Fuori-classe, op. cit., p. 19-20). Talvez, entre os exemplos, aqui não citados, mas presentes na mente de Libero ao escrever estas linhas, estivesse também o caso de Giuseppe Scarrone, com sua fábrica de vidros e sua fé socialista. 177 chegar a caracterizar a força ideal completa e plenamente realizadora de uma renovação da sociedade, a justiça. “É então à ideia-força da Justiça que se deverá principalmente apelar a fim de que os fuori classe participem de forma eficaz e duradoura da luta politica para a renovação da Sociedade”: assim Libero introduzia o leitor nas conclusões de seu escrito. Que proclamava a iniquidade da exploração econômica dos trabalhadores e da divisão da sociedade em classes, e a urgência da derrubada do capitalismo. A luta para a afirmação do socialismo deverá ver o proletariado aliado necessariamente aos fuori classe para que seja possível a vitória, diferentemente daquilo que afirmavam os teóricos marxistas, que costumavam negligenciar a convocação destes setores para a revolução. Não é dado saber muito sobre a repercussão do livrinho de Battistelli, difundido tanto no Brasil quanto no exterior. Houve uma breve resenha na revista gielista134, que elogiava a elaboração teórica do autor, criticando, contudo, o papel de liderança atribuído aos fuori-classe sobre a classe operaria, que, pelo contrário, deveria se dirigir autonomamente. Montevidéu. 135 Houve outra na revista anarquista Studi Sociali, publicada em Sinais de uma circulação provavelmente limitada ao restrito âmbito do antifascismo italiano no Brasil, alguns países latino-americanos e a França. O que talvez seja possível dizer aqui é sobre as circunstâncias que podem ter levado Battistelli a formular suas reflexões. Ele mesmo um fuori-classe, enquanto advogado e também jornalista, após sua ida à Europa, mesmo continuando sua filiação republicana, começava um caminho de aproximação do movimento de Giustizia e Libertá, cujos membros eram principalmente oriundos do mundo intelectual italiano, próximos aos setores médios da sociedade. Como carregar ideais e programas de inspiração socialista a partir desta origem social, desta proveniência tudo menos que proletária? À pergunta, que devia estar constantemente presente na reflexão de Rosselli e companheiros, e que habitava também os pensamentos de Battistelli, o livro de Libero oferecia um esboço de resposta. Mas é verissímil que o escrito encontrasse suas razões de urgência também numa singular polemica provocada por uma carta dirigida por um amigo republicano a Battistelli e por uma sucessiva carta deste último para um dos dirigentes de GL em Paris. 134 135 Cf. Quaderni di Giustizia e Libertá, ano I, n. 2, março 1932, p.73-74. Cf. Studi Sociali, ano II, n. 16, 10.1.1932. 178 No começo de junho de 1931, o republicano Pietro Montasini, vice-secretário da Concentrazione antifascista de Paris, escreveu para Battistelli136 a fim de alertá-lo acerca da natureza e de algumas características do movimento de Giustizia e Libertá, assim como ele as julgava pela atuação de seus dirigentes na capital francesa. GL, segundo o expoente republicano, era um movimento incapaz de dialogo, centralizador, desejoso de dominar o mundo do antifascismo no exilio, hegemonizado por um grupo liberal e ultraconservador, que provocara a recente saída de elementos republicanos e socialistas que até pouco tempo antes estavam presentes nas suas fileiras. Montasini escrevia ao amigo (“sabendo que você é, no Brasil, um dos que ajudam o movimento de Giustizia e Libertá”) de forma pessoal, mas parecia interpretar o pensamento de amplos setores de seu partido, se não da inteira Concentrazione. Battistelli deve ter respondido a Montasini, mas é conhecida a carta que ele escreveu imediatamente para Lussu137, dirigente de GL com o qual se correspondia desde sua estada em Paris no ano anterior: nela, Battistelli resumia os juízos e as críticas de Montasini, acompanhando-as com expressões que manifestavam sua surpresa (“Eu, republicano e gregário inútil, mas sincero de GL, duas coisas que até então me pareceram compatibilíssimas”) ao saber das divergências existentes entre o movimento e a Concentrazione: Confesso-te que a noticia deste dissidio me surpreendeu. No breve tempo de minha permanência em Paris [...] tive a impressão que GL e Concentrazione fossem sim coisas diferentes, como deviam ser, mas não contrastantes [...]. Era logico que GL, por sua natureza (secreta, quase), por seu campo (a Itália) e por seu fim (a ação) fosse simultaneamente mais vasta e mais escolhida que a Concentrazione. E que fosse absolutamente independente, sem que isto impedisse a socialistas e republicanos de participar do movimento. [...] Divisão de trabalho, necessária, mas não separação e, em caso algum, oposição.138 E concluía sua carta com um pedido de esclarecimento, o único que lhe importasse realmente de todas as criticas a GL: se correspondesse a verdade a “preponderância dos elementos monarquistas e conservadores [em GL], o que imprimiria a todo o 136 Carta de Pietro Montasini a Libero Battistelli, Paris, 2.6.1931. ISRT, AGL, Fundo Giustizia e Libertá, fasc. 12, sottofasc. 1, ins. 2. 137 Carta de Libero Battistelli para Emilio Lussu, Rio de Janeiro, 19.6.1931, In SCHIAVI, Alessandro. Esilio e morte di Filippo Turati (1926-1932), Roma: Opere Nuove, 1956, p. 442-445. 138 Ibidem. 179 movimento um endereço em desacordo com os votos e as esperanças dos antifascistas italianos (eu incluído)”.139 A pergunta que Libero colocava aos companheiros de Paris era então se GL podia se apresentar ao mundo do antifascismo como um movimento autenticamente inovador, de “esquerda”, aberto para a transformação da sociedade em sentido socialista. E se seus dirigentes e quadros, na sua maioria fuori-classe, estavam dispostos a se aliar ao proletariado num caminho revolucionário.140 Seu pequeno livro, escrito logo após a troca de cartas descrita acima, vinha para mostrar a necessidade desta aliança e indicar, quem sabe, à própria liderança de GL, criticada por vários antifascistas pelo conservadorismo de sua linha politica, qual o autêntico percurso de um fuori-classe. 141 Todo o ano de 1932 verá Battistelli se desdobrando para reafirmar sua visão da batalha antifascista e sua leitura da situação italiana, em cartas e artigos para várias publicações do mundo do exilio. Uma primeira, significativa contribuição foi uma carta dirigida genericamente para GL, no mês de fevereiro, tendo como titulo “Observações críticas ao programa de Giustizia e Libertá”142. Esse programa (ou melhor, um esquema de programa) tinha sido publicado um mês antes, no primeiro número da nova revista, os 139 Ibidem. Ainda em sua carta, mesmo formulando a interrogação acima, Battistelli mostra de não acreditar nas críticas a GL apresentadas por Montasini. Ele diz, com efeito: “Para nos entendermos: quando você [Lussu] e Rosselli são chamados de ‘liberais’ [...] tenho bastante cultura política para sorrir [...] A única acusação que seria para mim importante tenho a impressão que seja infundada, mas desejo a confirmação que meu faro e algum conhecimento dos homens não me enganaram”. A referência para “faro e conhecimento dos homens” eram evidentemente os dias passados por Libero em Paris no ano anterior. Quanto ao restante do mundo do antifascismo, em 1930 Rosselli publicara em Paris seu Socialismo liberal, mas evidentemente, a um ano de distância da saída do livro, dúvidas e questionamentos se agitavam no âmbito do fuoruscitismo, porque uma coisa eram proclamas e propostas do líder reconhecido de GL, outra coisa atitudes, declarações, comportamentos e frequentações politicas de vários entre os membros da direção do movimento. 141 A respeito da continuação do debate, não constam nos arquivos correspondências de ou para Battistelli que tratem diretamente da participação deste nos desdobramentos da polêmica. Mas a discussão que se seguiu no âmbito do fuoruscitismo em Paris pode ser mapeada facilmente, antes de tudo pelo fato dos lideres de GL ter repassado aos dirigentes socialistas (e por consequente da Concentrazione) a carta de Libero para Lussu que citava as críticas de Montasini, exigindo explicações a respeito da tomada de posição do próprio vice-secretário da Concentrazione. Seguiu uma troca de mensagens, sobretudo entre Rosselli e o velho líder socialista Turati, mas com a participação de outros expoentes do antifascismo no exilio na França. Arestas foram aparadas, pontos difíceis esclarecidos, até que, em novembro do mesmo ano de 1931, Giustizia e Libertá entrava a fazer parte da Concentrazione antifascista. 142 Libero Battistelli a GL. “Osservazioni critiche al programma di Giustizia e Libertá”, Rio de Janeiro, 27.2.1932. ISRT, AGL, Fundo Giustizia e Libertá, fasc. 3, sottofasc. 2. Ver também o texto em ZUCARO, Domenico (org.). Socialismo e Democrazia nella lotta antifascista (1927-1939), Milano: Feltrinelli, 1988, p. 162-165. 140 180 Quaderni di Giustizia e Libertá,143 que Libero também recebia em sua residência carioca, e dos quais aparece, desde o n. 2 (março de 1932), como o responsável pelo envio de assinaturas para a América do Sul, até pelo menos agosto do ano sucessivo (n. 8). O esquema de programa respondia a solicitações de várias componentes do antifascismo para que GL manifestasse com mais clareza seus entendimentos e suas ideias.144 Nesta contribuição, Battistelli intervinha sobre dois aspectos do programa: a questão da Constituinte e o tema da propriedade privada. Sobre o primeiro assunto, Libero chegava a sugerir que não se fizesse menção à convocação de uma Constituinte, pois este instituto poderia colocar freios ao plano de renovação do governo revolucionário, uma vez este ter derrubado o regime fascista e começado a esboçar o novo rosto do país. Quanto ao segundo tema, Libero era categórico: “O esquema de programa afirma como principio, apesar das numerosas e graves exceções [...], o da propriedade privada. Preferiria, ao contrário, que fosse afirmado o princípio socialista, fora exceções”, E apresentava várias justificativas, sobretudo a de que “um programa deve ser sempre mais amplo e avançado daquilo que seus próprios autores pensam em boa fé de poder realizar”. Um Battistelli, então, fuori-classe, mas abertamente partidário da socialização da propriedade, e de uma atitude revolucionária na tomada do poder que chegasse, inicialmente, até à dispensa das garantias constitucionais para favorecer seu sucesso. Uma visão socialista e “subversiva”, presente de certo modo desde os tempos das lutas em Bolonha, que se tornava agora explicita. Uma carta do próprio Rosselli a Libero, dois meses depois, provocava a resposta imediata deste último,145 que mostrava a consolidação de sua adesão a GL, e consagrava de certa forma sua passagem das fileiras do partido republicano ao movimento de 143 De janeiro de 1932 a janeiro de 1935 foram publicados 12 números, com periodicidade aproximadamente trimestral. A revista, dirigida por Carlo Rosselli, era editada em Paris, 103, Faubourg Saint-Denis. 144 “Fruto do debate e das discussões das posições dos vários membros do movimento [...] o esquema refletia sua heterogeneidade [...] Particularmente o paragrafo sobre as estruturas políticas futuras apresentava características imprecisas e indeterminadas. Com efeito, de um lado, se fazia referência à tradição democrático-republicana, sugerindo a criação dos típicos institutos do sistema parlamentar, do outro, se afirmava que a República que nasceria das cinzas da ditadura se basearia essencialmente nas classes trabalhadoras e em suas organizações autônomas, o que fazia pensar num Estado formado por conselhos. [...] Existia um comum denominador [...] o acordo sobre alguns motivos inspiradores, como a liberdade e a autonomia”. Quanto ao “campo econômico e social”, o esquema previa na agricultura “um regime misto” (pequenos proprietários camponeses junto com propriedades coletivas) e uma “reforma industrial que temperava o principio da socialização com a iniciativa privada”. Cf. TOMBACCINI, Simonetta. Storia dei fuorusciti italiani in Francia, op. cit., p. 158-161. 145 Carta de Libero Battistelli a Carlo Rosselli, Rio de Janeiro, 27.4.1932. ISRT, AGL, Fundo Carlo Rosselli, fasc. 1, sottofasc. 8. 181 Rosselli. De Giustizia e Libertá, com efeito, ele tinha-se declarado “gregário inútil, mas sincero” na carta a Lussu do ano anterior, mas agora chegava a escrever para Rosselli, como já vimos: ”Meu posto foi então [1922] entre os republicanos, assim como agora é entre vocês. Porque a identidade moral e de caráter é muito mais importante do que a identidade ideológica”. Uma identidade moral e de caráter, talvez nunca uma completa identidade ideológica: em parte, é de se pensar, pela um tanto fluida consistência ideológica de GL, mas sobretudo, a partir de muitos dados presentes na documentação, por uma sistemática recusa em Battistelli de rígidos esquemas interpretativos e por uma abertura, como já foi visto, diante de percursos políticos diferentes do seu. A carta para Rosselli contribui a esclarecer seu pensamento sobre o projeto politico de GL. Antes de tudo, Battistelli enfatizava a importância e o valor revolucionário de certos “mitos retóricos”, principalmente para as massas, que, em força dos mesmos, infelizmente ainda se identificavam com o “partido dos pequenos politiqueiros de Paris” (isto é, os lideres históricos socialistas). A argumentação era apresentada a partir de considerações sobre a evolução do pensamento de Lenin, retirado da leitura de suas obras, seja do primeiro como do segundo período: interessante sinal de um interesse em Battistelli para aquele que podia ser considerado o protótipo do revolucionário. Além disso, ele contribuía com outras observações a respeito da questão da abolição da propriedade privada e dos perigos ligados à convocação de uma Constituinte por parte de um futuro governo revolucionário. Um trecho da carta revela como uma das inspirações para estas reflexões viessem a Battistelli do exemplo brasileiro, e, ao mesmo tempo, mostra quanto ele acompanhasse os fatos políticos nacionais: “E permanece também o outro perigo: que a convocação da Constituinte seja reclamada prematuramente (quando o governo ainda não tiver completado a transformação fundamental) por uma oposição bastante hábil em se valer do mito da soberania popular e em denunciar por cada atraso as intenções ditatoriais do governo. Aqui, no Brasil, uma tática parecida está trazendo graves embaraços para o governo provisório. Os velhos conservadores reclamam em alta voz a Constituinte prometida e naturalmente atraem debaixo desta bandeira democráticos e liberais sinceros. Os governistas-revolucionários, em boa ou má fé, respondem afirmando a necessidade de uma preventiva, e ainda não completada, modificação dos organismos políticos. E, para se defender, estes, oriundos de posições de esquerda, acabam por adotar métodos fascistas. A Itália não é o Brasil, mas as promessas [de Constituintes] são perigosas em qualquer lugar”.146 146 Ibidem. 182 Notações finais da correspondência revelavam o compromisso de Libero com GL e sua revista, ciente, contudo das dificuldades do ambiente, não somente brasileiro. Anunciava o envio futuro de algum artigo, embora de forma irregular, devido às circunstâncias e ao isolamento; declarava a impossibilidade de recolher assinaturas, pedindo, contudo, o envio de cinco ou seis exemplares, que ele mesmo iria vender ou distribuir, sempre se responsabilizando pelo pagamento, e, quanto à organização do movimento, pedia para “não contar com a América em geral, e com a do Sul em particular”.147 Mais quatro contribuições de Libero ainda no ano de 1932 demonstram sua vontade de intervir no debate internacional, fugindo do isolamento geográfico ao qual o condenava a permanência na “periferia da emigração antifascista”. Desde agosto de 1931, circulava Problemi della Rivoluzione Italiana, uma revista publicada em Marselha por um grupo de republicanos de esquerda.148 Ligado desde sua filiação política a esta corrente do PRI, Battistelli se sentia à vontade para manifestar no periódico desta mesma área opiniões e entendimentos a respeito da luta antifascista, ainda mais sabendo que se tratava de uma publicação que visava se colocar como instrumento de debate politico, sem excessivas preclusões. Assim em março de 32, apareceu um primeiro artigo de Battistelli,149 que apresentava as características de um “antifascismo integral”, autêntico protagonista de uma revolução que saberia salvaguardar ambos os polos que nenhum movimento revolucionário conseguiu manter unidos: a liberdade e a igualdade (ou a justiça), sacrificadas, ora a primeira (na revolução bolchevique), ora a segunda (na revolução francesa). Battistelli, auspicando uma revolução antifascista para a Itália, mostrava como ela, visando abater o fascismo, ao mesmo tempo defensor da iniquidade econômica e supressor da liberdade política, poderá ser completa, realizadora de uma sociedade “comunista, regida de forma democrática”. E para apoiar sua proposta, Libero recordava a tradição originalmente italiana das “Comunas, exemplo máximo de democracia operária até os tempos mais recentes”. Fundamentado, como outros textos de Battistelli, em leituras e 147 Ibidem. Editora era a E.S.I.L. (Edizioni Sala Italia Libera), situada em Marselha, 3, Boulevard de la Corderie. O subtítulo da publicação, mensal, mas com periodicidade irregular, era: “Aprofundar o conhecimento da crise italiana e a consciência dos problemas do antifascismo”. Os republicanos Volterra, Schiavetti e Chiodini estavam entre os fundadores. 149 “Uguaglianza e libertá. Elementi di antifascismo integrale”. Problemi della Rivoluzione Italiana, n. 7, março de 1932, p. 3-15. 148 183 análises de amplo respiro, o artigo parecia usar com bastante liberdade fórmulas do linguajar politico do tempo, como a categoria de comunismo. É clara, em muita parte de sua produção e de seu comportamento, a estima do autor pela tentativa de realização social e econômica do comunismo soviético, mas também sua crítica ao sufocamento da liberdade que o mesmo comportava. Clara também é a disponibilidade a colaborar com expoentes do mundo comunista italiano (de Rosini, como vimos, a voluntários na guerra civil espanhola). ‘Comunismo’, na interpretação e na construção politica de Battistelli, parecia cada vez mais sinônimo de um regime politico de autêntica igualdade social. Para isso, não há dúvidas, lutou a vida inteira. Poucos meses depois, outro artigo150 aparecia nas páginas da revista, assinado por ele. Mais uma vez se apresentava o problema de como a revolução, uma vez tomado o poder, podia se manter sem perder seu élan, sua força, e sem sucumbir diante dos grupos contrarrevolucionários ou ultrarrevolucionários. Daí a necessidade que a “república socialista e democrática”, que, segundo Battistelli, poderia se instalar após a queda do fascismo, saiba manifesta prontidão de ação e iniciativa, na atuação de seu programa. Aqui, Libero, que aproveitava para se caracterizar como “republicano muito sui generis”151, introduzia uma nota de apreciação para o esquema de programa de GL, que, “afirmando a necessidade de mudanças bastante radicais, é decididamente revolucionário”: nisto, indo na contramão de comentários críticos ou até negativos sobre o movimento de Rosselli e seu programa, presentes em vários números da revista. Do artigo de Battistelli publicado naqueles mesmos meses nos Quaderni152 já foi dito acima, mas merece uma menção aqui, antes de tudo, para lembrar a tese principal do mesmo, segundo a qual, para a construção real da paz, de nada adiantariam as corridas ao desarmamento ou as tentativas de unir os Estados em federações ou uniões, sendo a verdadeira e única solução a busca de homogeneidade, isto é, a tentativa de fazer com que em todos os Estados, no interior das várias nações, prevaleça o ideal comum da justiça. Se se deseja a paz, tem que se construir a justiça, afirmava Battistelli, fundamentando nela as estruturas político-sociais dos Estados. Justiça: de novo a palavra chave, o valor supremo, que já aparecera em I Fuori-classe. 150 “Inconvenienti di segnare il passo”. Problemi della Rivoluzione Italiana, n. 11-12, julho-agosto de 1932, p. 3-7. 151 Confirmando assim (com o acréscimo de um “muito”) análoga definição de seu pertencimento politico presentes nas duas cartas enviadas três anos antes para o anarquista Camillo Berneri. 152 “Disarmo e Stati Uniti d’Europa”. Quaderni di Giustizia e Libertá, nº 4, setembro 1932, p. 29-37. 184 Libero, contudo, chegou a enviar artigos não só para periódicos impressos na Europa. Studi Sociali era uma revista de orientação anarquista,153 criada e dirigida pelo italiano Luigi Fabbri, que emigrara ainda em 1926 para a França e, expulso deste país, refugiouse no Uruguai. Conhecido o periódico e o próprio diretor provavelmente por intermédio do também anarquista Nello Garavini – exilado com a família no Rio desde 1926, e com o qual, como veremos mais para frente, Libero estabelecera uma forte amizade, além das diferenças ideológicas - Battistelli contribuía com pequenas doações em dinheiro e com alguns textos, que apareciam na revista, mesmo que norma do periódico fosse publicar somente o que correspondia mais ou mesmo exatamente à sua linha teórica. Em julho de 1932, foi a vez de uma contribuição de Libero sobre a crise do Partido Republicano Italiano154, que em ocasião de seu congresso realizado alguns meses antes na França, se dividiu em dois grupos: uma maioria que votara pela saída do partido da Concentrazione, e uma minoria que votou para a permanência. Battistelli chegava a prever o desaparecimento até do próprio partido, sem julgar isso negativo, se podia ajudar na criação de algo novo, de uma nova agremiação, que, aproveitando das tendências de renovação presentes entre os socialistas, soubesse criar um movimento único e unido, não só formalmente, como aparentava ser a Concentrazione, e não só “para a ação”, como se declarava GL. Contribuição de um republicano “sui generis”, participante de Giustizia e Libertá, ao qual, contudo, não poupava críticas, e publicada num periódico anarquista: símbolo de uma atitude de empenho e vontade de confronto a 360º. 3.11. Vida pública e vida privada Após a crise com o grupo dirigente de La Difesa, Libero, então, foi aprofundando seu pensamento e a reflexão sobre o projeto politico do antifascismo. A apresentação e análise dos textos acima, longe de cristalizar a figura de Battistelli como um intelectual dado a elucubrações teóricas, evidencia a paixão política de quem advertia a necessidade de fundamentos sólidos e diretrizes claras para que a oposição à ditadura fascista pudesse ter sucesso: ainda mais tendo que exercer a oposição do outro lado do 153 Revista bimensal, inicialmente, e com periodicidade variada, depois, trazia como subtítulo “Rivista di libero exame”. Começou a circular em março de 1930, sendo impressa inicialmente em Buenos Aires e depois em Montevidéu. 154 “La Crisi del Partito Repubblicano Italiano e alcuni suoi possibili effetti”. Studi Sociali, ano III, n. 20, 25.7.1932, p. 6. 185 oceano. Essa preocupação acompanhará Libero até as vésperas de partir para a guerra na Espanha, mas sempre em unidade com o desejo de ação e testemunho prático. Assim, ainda nos primeiros anos na década de 30, no Rio de Janeiro, ele se destacava no contexto da coletividade italiana e no âmbito mais amplo da sociedade da Capital, por iniciativas e tomadas de posição de cunho antifascista. Partida da Itália no mês de dezembro do ano anterior, uma esquadrilha de 11 hidroaviões italianos chegava no dia 15 de janeiro de 1931 à Baia de Guanabara, completando a primeira travessia do Atlântico em grupo, feito que queria celebrar tanto as capacidades técnicas da aeronáutica italiana, quanto as qualidades morais do aviador debaixo do fascismo. Líder da façanha era Ítalo Balbo, Ministro da Aeronáutica e um dos mais destacados expoentes do regime. Sua chegada ao Rio teve ares de triunfo: celebrado pelas autoridades brasileiras, recebido até pelo presidente Vargas, festejado pela imprensa e por expoentes do mundo politico e da sociedade carioca, Balbo ocupou por muitos dias as páginas dos diários nacionais. Os antifascistas se mobilizaram, denunciando desde logo em Balbo o responsável de crimes e violências ainda nos anos 20, entre as quais o assassinato do sacerdote católico don Giovanni Minzoni, em 1923, na região de Bolonha. Não há muita documentação a respeito dessa mobilização, fora as matérias publicadas por La Difesa, mas segundo o relato de Garavini, a esposa deste, Emma, e a de Battistelli, Enrichetta, “foram nas principais ruas do Rio de Janeiro distribuindo milhares de panfletos contra o fascismo, com impressa a imagem de don Minzoni, assassinado pelos capangas às ordens de Balbo”.155 A mão de Libero estava provavelmente atrás desta iniciativa, se, três meses depois, as autoridades consulares do Rio foram acionadas pelo Ministério do Interior italiano a fim de esclarecer o caso do envio da Capital brasileira de duas misteriosas cartas, uma para o capitão do aeroporto de Orbetello (de onde partira a esquadrilha) e outra para o pároco do mesmo, que tinham-se felicitado com Balbo, por telegrama, pelo sucesso de sua expedição. As missivas manifestavam desaponto pela atuação dos dois 155 GARAVINI, Nello. Testimonianze: anarchismo e antifascismo vissuti e visti da un angolo della Romagna, op. cit., p. 184. A esposa de Libero se tornou protagonista também de um abaixo assinado, que recolhia as assinaturas de várias mulheres brasileiras (talvez as funcionárias de seu atelier), e que foi publicado pelo Diário de Noticias, 18.1.1931, p.6. Nele se lê, entre outras coisas: “As mulheres brasileiras levantam seu protesto, lembrando que o Brasil ainda não é uma colônia de Mussolini e ainda não foi conquistado pelas camisas pretas de Ítalo Balbo”. Entre as assinaturas, a de Enrichetta Battistelli e de sua cunhada Clara Zuccari. La Difesa também registrou o protesto em sua edição do ano VII, n. 340, 25.1.1931, p. 2 (“Manifestações da imprensa e da opinião publica brasileira, Diário de Noticias”) e p. 4 (“Il freddo a Rio”). 186 (indignas tanto do uniforme de oficial da aeronáutica, quanto do hábito sacerdotal), os acusavam de servilismo perante o fascismo e lembravam os crimes de Balbo. Encabeçadas com a fórmula “Associação dos homens livres” e levando em anexo “um manifesto com a imagem de d. Minzoni e dizeres em língua espanhola [sic]”, eram assinadas “Battistelli ou Battistini”.156 Sempre naquele ano, há noticia da criação de um novo organismo no âmbito do antifascismo no Rio de Janeiro, a Associação Antifascista. Battistelli e Giovanni Scala, segundo informações transmitidas a Roma pela embaixada italiana, em maio de 1932, teriam sido encarregados, pelos componentes, “poucos elementos antifascistas anticlericais e comunistas brasileiros”, de “redigir o estatuto da nova associação”157, que não é dado saber se se tratasse efetivamente de algo novo, ou da reformulação de agremiações anteriores, numa tentativa de revitalização. Nestes primeiros anos da década de 1930, com efeito, não há mais notícias de atividades no Rio de Janeiro das antigas organizações, quais Italia Libera, a Lega Antifascista ou a própria Lidu.158 Um dado interessante, contudo, presente no estatuto, revela algo a mais: quando se falava, no art. 1, da finalidade de “combater todos os partidos, grupos, correntes ideológicas, politicas e econômicas já existentes ou que se tentar criar, debaixo de qualquer nome ou forma, em qualquer país, cujo programa seja uma derivação do fascismo italiano” pode156 Ver ACS/CPC, b. 411, f. 29269 (“Battistelli, Libero”), informe Ministério do Interior, comunicação n. 441.04801, 15.4.1931. 157 Ver ACS/CPC, ACS/CPC, b. 411, f. 29269 (“Battistelli, Libero”), Embaixada da Itália no Rio de Janeiro, telespresso n. 310281.5421, 20.5.1932. O estatuto declarava, no Art. 1: “Está constituída na cidade do Rio de Janeiro, com sede a Rua Theophilo Ottoni, 148, a Associação Antifascista, cujas finalidades serão as seguintes: a) combater todos os partidos, grupos, correntes ideológicas, politicas e econômicas já existentes ou que se tentar criar, debaixo de qualquer nome ou forma, em qualquer país, cujo programa seja uma derivação do fascismo italiano. [...]; b) combater, portanto, o fascismo italiano, considerado exemplo e modelo de todas as tiranias reacionárias que se instalaram ou se busca instalar no velho e no novo continente, opondo-se especialmente a suas intrigas e intervenções nos países de imigração italiana”. E no Art. 2: “Os meios para conseguir estas finalidades serão fornecidos pelas atividades intelectuais e práticas dos associados. [...] sempre nos limites das leis brasileiras, a atividade se desenvolverá especialmente através da propaganda por meio da imprensa, com conferencias, discussões, estudos etc...” 158 Talvez possa ter havido influência dos eventos que se passaram no interior da colônia italiana antifascista de São Paulo, onde Frola, retornado de Buenos Aires, continuava adversário do grupo que editava La Difesa (Piccarolo, Cilla, Mariani), mas a Lega Antifascista, que o próprio ex-diretor do periódico controlava antes e que por isso se recusava em aderir à Concentrazione de Paris, tinha agora aberto as portas para o organismo unitário do antifascismo internacional, desde março de 1931. Ver “L’adesione effettiva della Lega Antifascista alla ‘Concentrazione’ di Parigi votata all’unanimitá dall’imponente assemblea generale di S. Paulo”. La Difesa, Ano VII, n. 318, 28.3.1931, p.1. Uma hipótese, mas que não há como verificar, sugeriria que a Lega Antifascista carioca teria também aderido ao organismo de Paris, e os antifascistas contrários a esse passo teriam dado vida à nova denominação; outra possibilidade, ao contrário, indicaria que a própria Lega carioca, não querendo seguir o exemplo paulista, ter-se-ia transformado na nova entidade. 187 se supor que o organismo pensasse no incipiente movimento integralista, que começava a se apresentar em ruas e praças brasileiras.159 De todo modo há registros da participação de Battistelli, junto com Scala e outros, de inciativas promovidas pela Associação Antifascista, assim como pela Liga Anticlerical, ambas bastante ativas na cena cultural e politica carioca naqueles anos, e cuja sede coincide, na Rua Theophilo Otoni, 148, 2º andar. Palestras e comemorações se sucedem durante o ano de 1932.160 Em junho foi o próprio Battistelli, em nome da Associação Antifascista, a comemorar o oitavo aniversário do sacrifício de Matteotti161. No segundo semestre do ano, coube ainda a ele, a pedido da Liga Anticlerical, da Associação Antifascista e dos anarquistas da cidade, entre os quais Oiticica e Garavini que recorda o fato em suas memórias162 - celebrar a figura de Errico Malatesta, o libertário italiano recém-falecido. O homem público, protagonista de encontros e debates, se completa com a figura do homem em sua vida privada. Um exemplo significativo no começo do ano de 1933. Entre janeiro e fevereiro, a esposa adoeceu gravemente e, internada em casa de cura, sofreu uma intervenção cirúrgica. Libero resolveu acompanhar de perto a evolução do caso e as terapias, e se instalou no próprio hospital durante dias. Na circunstância, várias cartas dirigidas a Garavini,163 oferecem relâmpagos de sua personalidade. Pedindo insistentemente que nem ele nem sua esposa recebessem visitas, até ele mesmo liberálas, e se dando conta da estranheza da solicitação feita a pessoas que sabia quanto os amassem, tentava uma justificativa (“sou um bicho selvático, de humor péssimo, e o esforço para escondê-lo é pesado para mim”164), mas acabava declarando o motivo principal: “Se trata de uma espécie de batalha na qual não quero ter um instante de distração. Depois, se haverá um depois, encontrarei na amizade o conforto e o repouso 159 Desde o começo de 32, o escritor Plinio Salgado começara a articular grupos de vários Estados que nutriam simpatias para o fascismo italiano. Em fevereiro congregou intelectuais desta tendência na Sociedade de Estudos Brasileiros, e em outubro lançou o Manifesto da Ação Integralista Brasileira (AIB). 160 Em janeiro foi a vez de Edgar Sussekind de Mendonça, com palestra sobre o fascismo do ponto de vista internacional (Cf. Diário de Noticias, 28.2.1932, p. 8) e em março Giovanni Scala discursou sobre as origens do fascismo (Cf. Diário de Noticias, 29.3.1932, p. 7). 161 Cf. Correio da Manhã, 9.6.1932, p 2. 162 Cf. GARAVINI, Nello. Testimonianze: anarchismo e antifascismo vissuti e visti da un angolo della Romagna, op. cit., p. 169. 163 Ver Biblioteca Libertaria Armando Borghi (BLAB), Fundo Nello Garavini, Cartas de Libero Battistelli a Nello Garavini. 164 BLAB, Fundo Nello Garavini, Carta de Libero Battistelli a Nello Garavini, Rio de Janeiro, [1933]. 188 destes dias que pesam como anos”165. A existência, até em seus aspectos mais íntimos e pessoais, era percebida, por Libero, como uma batalha, quase se tratasse de deter o ataque das esquadras fascistas ou de lutar pela organização do antifascismo. E as muitas expressões a respeito do valor da amizade e da solidariedade testemunhavam de uma prática de vida que era, como já foi visto e se verá mais a frente, condição e método também de organização e de luta política. 3.12. 1933-34. Tempos de mudanças: internacionais, nacionais e pessoais O ano de 1933 representou um ponto de inflexão na curva do antifascismo. A chegada de Hitler ao poder na Alemanha, em janeiro, demonstrava claramente a possibilidade do fascismo se instaurar em países de elevado desenvolvimento capitalista, e a contemporânea derrota, naquele país, de ativos e organizados partidos de esquerda, como o socialista e o comunista, soava como sinal de alarme para o mundo do antifascismo, italiano e não.166 Promovidas pelos franceses Henri Babusse e Romain Rolland, as iniciativas do movimento Amsterdã-Pleyel (do nome das sedes de dois congressos internacionais contra o imperialismo, o fascismo e a guerra, o primeiro na capital holandesa, em agosto de 32, e o segundo na sala Pleyel de Paris, em junho de 33) agitavam o mundo intelectual europeu, mas seus efeitos reais eram muito escassos. Mussolini era adulado pela opinião pública internacional e, em seu país, parecia cada vez mais firme no poder, a ponto de conceder, em ocasião das celebrações dos dez anos do regime, em 1932, uma ampla anistia aos presos políticos e comuns, revocando até o decreto que infligira a perda da nacionalidade e dos bens para alguns fuorusciti. Na capital francesa, a Concentrazione não conseguia resolver os eternos problemas de conflitos internos e diversidade de visão, particularmente entre socialistas e GL, e a morte de alguns dos lideres históricos do socialismo, como Turati e Treves, acrescentou as dificuldades. Os primeiros meses de 1934 assistirão ao fim de sua parábola, e em agosto socialistas e comunistas italianos assinarão um pacto de unidade de ação. 165 Carta de Libero Battistelli a Nello Garavini, Rio de Janeiro, 19.1.1933. Para acompanhar de forma comparada os passos de reelaboração teórica e organização prática do antifascismo europeu, útil (e ainda único) instrumento é o trabalho de DROZ, Jacques. Histoire de l’antifascisme en Europe (1923-1939), op. cit.. 166 189 No Brasil, respondendo aos convites europeus, nasciam Comitês “contra a guerra imperialista”, tanto no Rio como em São Paulo, tendo como protagonistas sobretudo os comunistas, cuja principal referência, a Internacional Comunista, oscilava neste período ainda entre a antiga politica de isolamento, com a recusa de alianças com a socialdemocracia, e a incipiente perspectiva da frente única. Ponto alto desta politica foi a criação da Frente Única Antifascista (FUA) em junho de 1933, em São Paulo,167 com o apoio de várias organizações antifascistas e de esquerda italianas e brasileiras: em primeira fileira, além dos trotskistas da Liga Comunista168 e o PSB paulista, o italiano Rosini e o grupo socialista Matteotti, liderado por Frola. Nesta conjuntura, Battistelli não parece ter tido um papel particularmente destacado: pode-se supor por causa ainda de certa distância, propositalmente mantida por ele diante do antifascismo italiano de São Paulo, ou também porque o movimento revelava uma evidente condução comunista, não é claro até que ponto aceita por ele. Não há registros de uma sua participação em eventos realizados na Capital Federal pelos comitês antiguerreiros, embora seja possível sua presença no grande evento de 23 de agosto de 1934, no Teatro João Caetano, o Iº Congresso Nacional contra a Guerra imperialista, a Reação e o Fascismo. O que temos neste período é a continuação de sua colaboração com os periódicos do antifascismo italiano no exilio, e de sua correspondência, particularmente com Rosselli. Mas alguns juízos sobre a situação do antifascismo no Brasil apareciam entre as suas várias reflexões. Dois artigos de Battistelli apareceram novamente em Problemi della Rivoluzione Italiana. Em março de 1933169, Libero apelava para que na ação politica fosse sempre claro o valor moral da mesma: só assim se fugiria o risco da ação pela ação, coisa inútil, e o próprio antifascismo evitaria maquiavelismos, cálculos, suspeitas recíprocas. Interessante uma notação, que abre o texto, a respeito da ação revolucionaria como era vivida no Brasil, segundo o autor, ele que assistiu pessoalmente, fora as revoltas 167 Sobre o nascimento da FUA e mais em geral o panorama das esquerdas brasileiras e o antifascismo nestes anos, ver a produção de Ricardo Figueiredo de Castro. Particularmente CASTRO, Ricardo Figueiredo de. Contra a guerra ou contra o fascismo. As esquerdas brasileiras e o antifascismo, 19331935. Niterói: UFF, Tese de Doutorado, 1999. 168 Sobre o papel dos trotskistas, ver MARQUES NETO, José Castilho; KAREPOVIS, Dainis. “O trotskismo e os trotskistas: os anos 1920 e 1930”. In FERREIRA, Jorge; REIS, Daniel Aarão (org.). As Esquerdas no Brasil. A formação das tradições (1889-1945), vol. 1º, Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2007, p.379406. 169 “Appunti sui problemi dell’azione”. Problemi della Rivoluzione Italiana, n. 17-18, maio 1933, p. 3-11. 190 tenentistas e a coluna Prestes, a pelo menos dois movimentos que se autodenominaram de revolução, em 1930 e 1932: Vivo em um país onde a palavra revolução é demasiadamente priva de um conteúdo finalístico ideal (aqui as pessoas são revolucionárias – e com notáveis habilidades técnicas – por tradição, por hábito, por despeito, por esporte, contra A, contra B, contra C, indiferentemente) para eu não ter um horror sagrado pelo ativismo como fim em si mesmo.170 Em janeiro do ano seguinte, a mesma revista dedicava um número inteiro a um longo ensaio de Libero sobre a crise política e econômica mundial e seus possíveis cenários futuros.171 Em quarenta densas páginas, reveladoras, como outros textos anteriores, de conhecimentos profundos e análise incomum, o autor concentrava uma reflexão que percorria a historia da humanidade, desde os tempos regidos pelo sistema escravista aos mais recentes, governados pelo regime assalariado. Convicção de Battistelli era que o caminho da humanidade teria entrado no tempo da crise do sistema assalariado, e que o capitalismo, à luz dos progressos tecnológicos, do domínio dos meios de transporte, da aumentada possibilidade de controle do trabalho, estivesse preparando uma nova solução escravista, desta vez reduzindo a escravos os proletários de seus próprios países (além das “tentativas hitlerianas, aparentemente loucas” - comenta Libero – “de encontrar a diferença [entre senhores e escravos] no próprio seio das massas alemãs [...] [com] a divisão entre arianos puros e mestiços semitas, eslavos e latinos”). A leitura dos fascismos, realizada aqui por Battistelli, os interpretava não como “fenômeno ocasional ou transitório, ou também [...] como o último estagio da reação capitalista” e sim como primeira etapa do retorno ao sistema escravista, marcada pelas providencias tomadas pelos regimes fascistas contra o proletariado, isto é, a eliminação da possibilidade dele influenciar o endereço politico do Estado e a destruição de qualquer liberdade sindical. E o final do artigo convidava a rejeitar as leituras acima apresentadas do fascismo por serem incapazes de combatê-lo eficazmente (seja a democrática, que via nele um fenômeno temporário, passageiro, como a bolchevique, que o interpretava também como etapa provisória, que tinha que ser deixada evoluir), e a abraçar a que Libero sugeria, “mais francamente e abertamente revolucionária”, em nome da qual proletariado e “fuori classe” se empenhariam numa luta defensiva e ofensiva ao mesmo tempo. 170 171 Ibidem. “La reazione in marcia”. Problemi della Rivoluzione Italiana, n.19-20, gennaio 1934, p. 1-45. 191 Leitura interessante, cheia de sugestões e até de intuições proféticas. Quanta influência possa ter tido no debate do antifascismo e no círculo dos leitores da revista, é difícil dizer. Mas eram ideias que Libero cultivava e com as quais discutia também com Rosselli. Algumas cartas de Battistelli para o líder de GL revelam seus questionamentos sobre os caminhos do antifascismo e suas escolhas. Numa primeira, sem data certa, mas provavelmente do primeiro semestre de 1933172, Libero lamentava não ter tido a possibilidade de ir para a Europa, como planejado, por causa da doença de sua esposa, e adiava o projeto para o ano seguinte. Seguia-se a afirmação da urgência, gerada pelo advento do hitlerismo na Alemanha, que a análise do fascismo fosse reformulada, e que o próprio antifascismo revisse seus caminhos, e lançava para o amigo algumas pistas de reflexão, sobre a volta ao sistema escravista através do próprio fascismo, que desenvolveria em seguida no artigo para a revista Problemi. A carta comentava a respeito da difusão dos Quaderni di Giustizia e Libertá na Capital Federal: Acredito que dificilmente a difusão aqui possa ser aumentada. Também por causa da quase impossibilidade de transmitir o dinheiro das assinaturas. De qualquer forma, a de vocês é uma publicação destinada às elites. E as elites são sempre muito restritas. Aqui mais ainda... A chegada dos Quaderni é aguardada ansiosamente e com alegria por quatro ou cinco pessoas. O esforço de vocês é compreendido e admirado. Mas tudo se limita a isso.173 E continuava afirmando desconhecer a situação em São Paulo, mas declarando desastrosas as condições em Montevidéu, e só um pouco melhores as de Buenos Aires. E concluía: Como disse desde o começo, a América do Sul é terra aridíssima. A distância enfraquece o interesse. O atraso destrói a atualidade. A crise econômica e politica local faz com que todos se ocupem mais da situação local do que daquela italiana ou europeia. Dos antifascistas daqui, 99% não voltaria para a Itália, mesmo se o fascismo acabasse. Você entende, portanto, o grau de calor do antifascismo deles.174 O ceticismo de Battistelli sobre a difusão do instrumento de GL se reflete em seu mais amplo pessimismo a respeito da situação do antifascismo italiano no Brasil e na 172 ISRT, AGL, Fundo Carlo Rosselli, fasc. 1, sottofasc. 8. Carta de Libero Battistelli para Carlo Rosselli, Rio de Janeiro [1933] 173 Ibidem. 174 Ibidem. 192 América Sul em geral. Quadro que corresponde à realidade daqueles anos também na avaliação de quem, como Trento e Bertonha, se debruça em suas pesquisas sobre o antifascismo de italianos e descendentes no Brasil. Uma carta sucessiva, de julho,175 é indicativa do pensamento de Libero sobre o antifascismo anarquista e o comunista. Afirmando a necessidade de manter aberto o canal de comunicação com expoentes dos dois mundos, como Luigi Fabbri (“tido como um mestre pelos amigos anarquistas” e cuja “viva simpatia para o nosso movimento” poderia “eliminar muitas difidências proletárias”) e Angelo Tasca176 (“acredito ter sido eu o primeiro a procurar Tasca de minha iniciativa para tentar um acordo, uma ação comum com ele, que, naquela época, abril de 1930, já estava fora do partido comunista, mas era, mesmo assim, e acredito seja ainda hoje, um comunista”), Libero mostrava sua abertura para as duas componentes do antifascismo, com ressalvas particularmente diante da rigidez do principio ditatorial do comunismo, mas com enorme simpatia para sua afirmação da primazia da luta pela igualdade. Sendo a atitude de diálogo e de colaboração com os outros a tônica da carta, particularmente significativa é toda a segunda parte, provocada por uma pergunta dirigida a Libero por Rosselli a respeito de sua amizade com Bergamo.177 Battistelli aproveitava da oportunidade para indicar o que, segundo ele, deveria ser o método comum de comportamento e de trabalho entre companheiros de luta, com palavras que vale a pena de transcrever amplamente: Gostaria, aliás, que a amizade, ou pelo menos a camaraderie, sancionassem para os amigos e os companheiros, um particular direito: o direito ao erro. Isto significa que, quando nos encontramos diante de uma pessoa respeitável por sua conduta, por sua honestidade intelectual etc.. e que tem uma militância no nosso campo (um pouco mais a direita ou um pouco mais a esquerda não tem importância), a denúncia de seus “erros” não deveria implicar subjetivamente numa desestima nem objetivamente numa inútil aspereza. [...] Com certeza prefiro quase a hipocrisia convencional [...] à ostentada brutalidade das condenações e à intolerância que faz com que todo dissenso apareça como fruto de estupidez ou de má fé. [...] Ninguém pode pretender a infalibilidade. 175 ISRT, AGL, Fundo Carlo Rosselli, fasc. 1, sottofasc. 8. Carta de Libero Battistelli para Carlo Rosselli, Rio de Janeiro, 24.7.1933. 176 Angelo Tasca foi um dos fundadores do partido comunista italiano em 1921. Perseguido pelo fascismo, emigrou para a França. Em 1929 foi expulso do partido por seu anti-stalinismo. Anos depois, se aproximou do partido socialista, manifestando uma orientação anticomunista. O livro dele, Nascimento e advento do fascismo, publicado na França em 1938, foi uma das primeiras leituras do fascismo. 177 Sobre ele ver nota 13. Naquele período, Mario Bergamo estava manifestando abertas criticas contra o percurso da Concentrazione e acabou sendo marginalizado pelo conjunto dos antifascistas italianos exilados na França. 193 Cada um de nós acredita estar do lado da verdade e deve defender a verdade dele [grifos do autor], mas a consciência da possibilidade de um erro nosso deve nos tornar tolerantes a respeito da legitimidade do erro do outro. Uma indicação de conduta politica que Battistelli trazia de sua experiência pessoal, seja na Itália como no Brasil, já que a abertura para outros percursos políticos sempre foi uma de suas características. Isso é visível, como já mencionado, através da correspondência, que lhe permitia de dialogar com gielistas e republicanos, mas também com comunistas (incluindo trotskistas), socialistas, anarquistas, sendo excluído somente quem abertamente se declarasse do lado do fascismo. E também transparece pelas atitudes práticas e pela modalidade de organização da oposição antifascista, também num ambiente tão distante e numa “terra aridíssima” como aquela onde se encontrava. Duas cartas dos mesmos anos são elucidativas a respeito. Numa breve missiva a Rosselli,178 Libero se queixava da atitude de dois personagens que lhe foram recomendados como fiduciários de GL para São Paulo e que em seguida manifestaram atitudes de apoio aos fascistas locais. Abertura com todos sim, então, mas tendo a coerência moral como condição para a colaboração e o trabalho comum, e preclusão para quem debanda para o lado do inimigo. Libero escrevia: Muitos companheiros sem cartas de recomendação, desconhecidos a presidentes do conselho passados ou futuros, operários, simples funcionários, pequenos comerciantes, perderam, aqui também, emprego, possibilidade de carreira, negócios, para defender sua dignidade. É verdadeiramente uma pena que outros, aqueles que deveriam ser de exemplo, se comportem com tanta baixeza. E me parece necessário que um movimento, cuja característica de distinção é o rigor moral, intervenha de alguma forma. Numa correspondência mais longa para os amigos de GL179, que devia ser do segundo semestre de 1934, quando a Concentrazione já não existia mais e o mundo do antifascismo italiano na França se encontrava numa situação de incerteza, com socialistas e comunistas se aproximando numa frente única, Battistelli avançava uma sugestão: Seria de grandíssima utilidade se os dirigentes dos vários grupos antifascistas, e talvez os antifascistas tout court, tivessem o meio e o hábito de se encontrar diariamente ou quase. Entendo as dificuldades 178 ISRT, AGL, Fundo Carlo Rosselli, fasc. 1, sottofasc. 8. Carta de Libero Battistelli para Carlo Rosselli, [Rio de Janeiro][1933 ou 1934] 179 ISRT, AGL, Fundo Giustizia e Libertá, fasc. 3, sottofasc. 1. Carta de Libero Battistelli para os amigos de GL, [Rio de Janeiro] [1934] 194 numa cidade grande como Paris, mas é uma dificuldade contornável. Tive a impressão, em 1930, que a sede da Concentrazione, os escritórios de La Libertá servissem um pouco para isso. Agora, poderia servir um lugar qualquer, batizado ‘Circulo de Estudos Sociais’, ou ‘Circulo antifascista’, ou talvez um café no centro. Estou convencido que, se saindo do trabalho, ou à noite, vários antifascistas ‘influentes’ dos vários grupos, tivessem o hábito de se encontrar sem nenhuma formalidade, ‘para bater um papo’, não somente desapareceriam muitas antipatias e prevenções pessoais, mas as decisões poderiam ser tomadas com uma rapidez que as tornaria eficientes. Mais para frente, após ter recomendado a necessidade de um acordo com os comunistas, mais do que com os socialistas (pelo fato dos primeiros, de índole mais revolucionária, representarem as elites operarias, assim como GL representava os fuori-classe, isto é, o mundo intelectual, estudantil, da livre profissão, e uma revolução na Itália poderia ser desencadeada somente a partir de uma aliança entre as duas elites, que arrastariam a massa num segundo momento), Battistelli voltava sobre o ponto do contato continuo e constante, que dispensava comunicações escritas, encontros marcados etc., afirmando: No Rio de Janeiro, as distâncias são maiores do que em Paris. Todas as noites, porém, de 6 às 7 horas, os companheiros que aqui residem (e eu quando estou na cidade) se encontram, após o trabalho, e antes do jantar, às vezes por poucos minutos, no escritório central de um deles. São 6 ou 7, e isto no Rio significa ‘todos’. Mas em Paris, aqueles que contam de verdade devem ser uma dúzia. Não seria impossível, então, criar o mesmo hábito. Uma metodologia de trabalho e de diálogo que, praticada no longínquo Brasil 180, podia se tornar útil e eficaz também em Paris, o coração do mundo da emigração antifascista. Pela forma com que reclamava de Rosselli uma intervenção, pelas indicações e sugestões que apresentava, pela preocupação misturada com desânimo às vezes sobre a complicada difusão dos Quaderni, presentes nas correspondências, era evidente uma partilha plena por parte de Libero dos ideais do “nosso movimento”, como se referia a GL nesta ultima carta. Os próprios informes do Ministério do Interior italiano a seu respeito181 o apresentavam como “um elemento importantíssimo de ‘Giustizia e Libertá’, que providenciaria a coleta de fundos em favor do dito movimento, enviandoos mensalmente para Paris”, confirmando as providencias a serem tomadas em caso de 180 Ver também as páginas que Nello Garavini dedica ao amigo Libero em suas memórias, frisando particularmente a proximidade deste com muitos anarquistas, que o amavam de forma especial. Cf. GARAVINI, Nello. Testimonianze: anarchismo e antifascismo vissuti e visti da un angolo della Romagna, op. cit., p. 179. 181 Cf. ACS/CPC, b. 411, f. 29269 (“Battistelli, Libero”), informe do Ministério do Interior, 11.4.1933 e Real Prefettura de Bolonha, comunicação para o Ministério do Interior, 14.12.1933. 195 passagem da fronteira. Numa carta a Nenni de 1934182, como resposta a um possível convite do interlocutor para que ele, republicano de esquerda, entrasse nas fileiras do partido socialista, Battistelli afirmava não poder fazer parte do mesmo, embora respeitasse muitos membros dele e fosse amigo de alguns (“em consciência [...] eu não sou socialista”), e declarava seu pertencimento a GL desde 1930. Num artigo publicado em junho de 1933 nos Quaderni,183 Libero, partindo da análise do insucesso da socialdemocracia alemã e das críticas ao marxismo por seu caráter eminentemente religioso, evidente também no movimento comunista, ia se perguntando como reformar o próprio comunismo. A resposta residia na necessidade de eliminar seu rígido dogmatismo e, sobretudo, sua insistência no principio ditatorial, sendo, contudo, tal revisão impossível em tempos breves, os tempos exigidos pela situação italiana e internacional. E aqui Battistelli reconhecia em GL o movimento mais apto para enfrentar a crise italiana, por não ser desprovido (como a socialdemocracia) de espirito revolucionário, por não ser desrespeitador (como o comunismo oficial) das autonomias, por ser organizável (ao contrário do anarquismo), por não ser exposto (como o partido republicano) à difidência do proletariado. E acrescentava: “de todos os partidos e agrupamentos existentes, GL é o que representa a mais perfeita antítese do fascismo, porque liberal e autonomista [...], democrático e igualitário [...], politicamente e economicamente revolucionário”. No mesmo registro, as páginas de mais uma contribuição para a revista Problemi, 184 de área republicana. Após o fim da Concentrazione, ele se perguntava quais as perspectivas para o antifascismo e quais os passos mais urgentes. Conclusão de Libero: Parece-me que o critério decisivo há de ser o da força viva, do potencial revolucionário dos vários agrupamentos que se formaram. E esse critério me parece excluir todos os partidos pré-bélicos e substancialmente pré-fascistas (contando como data de nascimento do fascismo 1919 e não 1922). Restam então em jogo o Partido Comunista e Giustizia e Libertá (a corrente anarquista estará ao lado ou na vanguarda de quem tome a iniciativa revolucionária [...]). 182 ACS / Arquivo Pietro Nenni, b. 3, f. 178. Carta de Libero Battistelli para Pietro Nenni, Rio de Janeiro, [1934]. 183 “Breve svolgimento di alcuni ‘temi’ proposti da G.e L. “. Quaderni di Giustizia e Libertá, n.7, giugno 1933, p.117-128. 184 “Dopo la crisi concentrazionista. Osservazioni alle osservazioni”. Problemi della Rivoluzione Italiana, n. 25-26, settembre 1934, p. 14-18. 196 Um Battistelli, então, que, oriundo de um percurso no campo do republicanismo, e de um republicanismo de esquerda, dialogava com as mentes mais abertas de tal formação politica, como o grupo de Marselha, mantendo, contudo, certa distância; um Battistelli que não queria se declarar socialista, mesmo sendo “o mais socialista entre os republicanos”, guardava aberturas para com o comunismo, ditadura a parte, manifestando talvez uma simpatia maior para com o trotskismo; um Battistelli, enfim, que tinha afinidade e trocas intelectuais com o mundo anarquista, mas que afinal abraçava a proposta política de GL por seu valor moral, seu espirito revolucionário e sua abertura. Um Battistelli, todavia, que não devia se sentir tranquilo. As expressões de desapontamento sobre o êxito da difusão dos Quaderni no Brasil, a sensação de terra árida da América do Sul, a distância de São Paulo – desde o começo percebido como o centro do antifascismo no Brasil, mas com o qual, após o caso Frola, havia certa dificuldade de relações -, o grupo de 6 ou 7 a que se restringe a oposição a Mussolini no Rio - unido e animado, capaz de dialogar com o anarquismo local, com o mundo da intelectualidade e até da politica, ao redor, como se verá, de duas pequenas mas ativas editoras - mas evidentemente reduzido e sem muitas perspectivas, até pela enorme distância do centro europeu da resistência: é provável que Libero advertisse certa insatisfação. Não sabemos se a decisão de escolher uma pequena fazenda a 100 quilômetros da cidade, na região de Mangaratiba, onde começou a passar, a partir deste período, a maior parte de seu tempo, foi fruto mais desta insatisfação ou da busca de um retiro onde refletir e escrever com mais tranquilidade. De todo modo, Battistelli fixou sua residência na “Fazendinha”, transformando a casa e dedicando-se ao cultivo de laranjas e bananas. 3.13. 1935. Um ano e tanto (?) Para o historiador, é sempre presente o perigo de reconstruir o percurso existencial dos indivíduos que formam o objeto de seu estudo à luz daquilo que ele já conhece do futuro deles e da história do mundo, consagrando como inevitáveis escolhas e decisões. Antoine Prost nos lembra que o tempo vivido pelos homens sobre o qual o historiador se debruça em sua pesquisa é formado, para eles também, por um passado, um campo de experiências passadas (à luz do qual faziam escolhas), um presente e a expectativa de 197 um futuro, um horizonte de expectativas: esse “futuro passado”, sobretudo, era feito de alternativas possíveis, esperanças, receios.185 Reconstruindo, ou tentando reconstruir, a “curva do destino” de Battistelli, ano após ano, assim como de outros antifascistas estudados (reconstrução já por si precária devido à precariedade dos registros, em muitos casos constituídos quase que exclusivamente por artigos e cartas), é preciso estar cientes deste fato. Qual podia ser, em 1935, o “horizonte de expectativas” de Battistelli? Por tudo que foi dito até aqui sobre Libero e seu pensamento, acompanhando-o de certa forma num crescendo de formulações e elaborações, num amadurecimento de posições, pode ser fácil atribuir a ele - neste ano tão agitado e decisivo para os futuros desdobramentos da politica europeia e marcado pela crescente mobilização das forças do antifascismo internacional, até no Brasil, com o mundo politico europeu pronto para condenar a agressão fascista à Etiópia e os fuorusciti italianos na França prognosticando a iminente queda de um Mussolini derrotado em terra africana, e já vislumbrando a volta triunfal deles para a pátria liberta – a clara e firme determinação em continuar e intensificar sua batalha contra o fascismo, que culminaria na escolha paradigmática do ano seguinte, isto é, o envolvimento na guerra civil de Espanha. Mas pode se pensar também que não tenha sido assim. Diante de Libero, como de todo mundo, de resto, havia sempre um leque de possibilidade. Neste caso, entre elas, a de se afastar um pouco do calor da luta e do debate, até fisicamente. Talvez a escolha da fazenda tenha sido neste sentido. Talvez a partir de certo desapontamento com o contexto do antifascismo, ou de certa resignação por entender que uma luta contra o fascismo conduzida do outro lado do Atlântico não podia ter muita capacidade de incidência ou perspectivas de êxito, ou talvez por se sentir definitivamente identificado com um movimento, como GL, que privilegiava a ação e a ação na Itália. A diminuição de certos registros (cartas para expoentes do antifascismo, documentação da imprensa) ou a mudança de tom em outros (artigos), ou ainda o surgimento de outros novos (prefácios de livros), contribuam talvez a reforçar esta hipótese. O ano de 1935 foi o ano da definitiva união das forças de esquerda na frente popular francesa, da consagração da politica das frentes populares pela Terceira Internacional, 185 Cf. PROST, Antoine. Doze lições sobre a história. Belo Horizonte: Autêntica, 2008, p.162-168. 198 do ataque da Itália fascista à Etiópia com o consequente protesto de boa parte da opinião publica mundial.186 No Brasil, foi o ano do surgimento da Aliança Nacional Libertadora e sua marcha rumo à tentativa de afirmação politica, com o PCB cada vez mais envolvido com sua liderança e o programa que se tornava cada vez mais orientado para a luta contra o imperialismo, palavra de ordem da Internacional Comunista, até a cassação da associação em julho, e o levante de novembro.187 Nessa aceleração do movimento antifascista internacional e nacional, embora em grande parte devida à virada de 180º dos partidos comunistas, que abandonavam a politica do isolamento e as acusações de socialfascismo e aceitavam trabalhar lado a lado com socialistas e partidos liberais e democráticos para derrotar a ameaça do fascismo, a atuação de Battistelli parecia a de quem olha um pouco de longe. Uma carta para Luigi Fabbri, escrita nos primeiros meses de 35, e que será publicada em Studi Sociali em 1936188 pela filha do anarquista, falecido no ano anterior, tentava destrinchar o problema, delicado sobretudo para os libertários, da postura a ser tomada nos pleitos eleitorais. Seja a abstenção como a participação, comentava Libero, já tiveram seus fracassos: a primeira, dos anarquistas espanhóis, favorecera a vitória eleitoral da direita, a segunda, de socialistas e comunistas alemães, não impediu a chegada de Hitler ao poder. A solução que Battistelli apresentava consistia em separar a atividade revolucionária da atividade eleitoral, deixando esta para os parlamentares (candidatos democráticos a serem eleitos) e abrindo aquela para todos (o voto como instrumento para todos os cidadãos, inclusive os revolucionários). Mas além das considerações e argumentações de Battistelli, o interessante eram algumas linhas iniciais: “Pode parecer estranho ao senhor, e aos eventuais leitores, que nestes momentos, e por um italiano, sejam evocadas discussões teóricas [...] Mas o exílio nos coloca num certo sentido fora do tempo e do espaço. E a atualidade, que não podemos influenciar, nos liberta de sua contingência”. No começo desta terceira parte, estas 186 Ver ELEY, Geoff. Forjando a democracia. A história da esquerda na Europa, 1850-2000, São Paulo: Perseu Abramo, 2005, p.307-324 (“O fascismo e a frente popular: a politica de recuo, 1930-1938”). 187 Para um quadro completo da conjuntura, ver PUERTAS, Ibirapuan. Nacionalismo, democracia e bemestar do povo: a luta antifascista no Brasil e a gênese da Esquerda Nacionalista Brasileira. Rio de Janeiro: [s.n.], 2007. E também VIANNA, Marly de Almeida Gomes. “O PCB: 1929-1943” In FERREIRA, Jorge; REIS, Daniel Aarão (org.) A formação das tradições, vol. 1º de As Esquerdas no Brasil, op. cit., p.331-363. Sobre a transição da FUA à ANL, ver CASTRO, Ricardo Figueiredo de. Contra a guerra ou contra o fascismo. As esquerdas brasileiras e o antifascismo, 1933-1935, op. cit. 188 “I rivoluzionari ed il parlamento”. Studi Sociali, ano VII, n.3, 15.8.1936, p. 4-6. 199 mesmas linhas foram citadas como exemplo da capacidade de enxergar o aspecto positivo da condição de exilado. Mas elas carregam uma ambiguidade que torna possíveis várias leituras. Vantagens do exílio, sim, mas também limitações, como a de não poder “influenciar a atualidade”. Livres de sua contingência, sim, mas impedidos de intervir sobre ela. A atualidade italiana, evidentemente, e provavelmente também a brasileira. Restava, no final, o pensamento, e a escrita. A impressão de frustração, então, embora contemporizada por certa liberdade de pensamento e juízo, permanece. Possivelmente, uma polêmica entre ele e o próprio Rosselli nas colunas de Giustizia e Libertá no começo do ano pode ter contribuído a alimentar essa frustração. Desde maio de 1934, com efeito, o movimento gielista publicava um semanal na capital francesa com esse titulo: Giustizia e Libertá.189 Um editorial de novembro do mesmo ano, não assinado, mas inspirado ou escrito diretamente por Rosselli,190 criticava atitudes de certos antifascistas exilados, arrogantes na defesa de seus méritos antigos e reduzidos a simples repetidores de palavras de ordem e esquemas de análise ultrapassados, incapazes de valorizar o positivo que se movia na Itália. Battistelli escreveu um artigo, publicado em fevereiro do ano seguinte,191 respondendo a algumas das críticas. Certamente, ele dizia, a tática da luta antifascista deve ser indicada por quem vive na Itália, mas há de ter acordo com a componente que vive no exterior, onde o clima é livre, ao contrário do da península, que é “de estufa”. Sem esse acordo, a eventual revolução italiana “não será a nossa”. Palavras fortes, de quem, mesmo reconhecendo os limites do antifascismo da emigração, reafirmava o valor de uma experiência. Um comentário do próprio Rosselli ao artigo de Libero, na mesma edição do jornal, apontava o “erro de Battistelli, que nos escreve do Brasil”, assim como de “muitos exilados que perderam o contato com a vida italiana: o de julgar que na Itália ninguém mais tenha capacidade de pensar, estudar, agir.” O líder de GL continuava afirmando, pelo contrário, a existência na Itália de grupos de jovens que estudavam e discutiam com uma coragem e uma inteligência que raramente se encontrava entre os exilados. Concluindo com estas palavras: 189 O título completo era Giustizia e Libertá (Justice et Liberté). Movimento unitario di azione per l’autonomia operaia, la repubblica socialista, un nuovo umanesimo. Sede do periódico era Paris, 21, Rue du Val –de-Grace. 190 “Pericoli dell’esilio”. Giustizia e Libertá, ano I, n. 27, 16.11.1934, p.1. 191 “Osservazioni sull’esilio”. Giustizia e Libertá, ano II, n. 5, 1.2.1935, p.3. 200 Battistelli é homem de valor e um caro amigo. Mas desta vez nos parece fora do caminho. E o fato que um espirito límpido como ele possa ter perdido a esse ponto o contato com a realidade italiana e com a própria (modesta) realidade dos fuorusciti, demonstra que temos que insistir ainda, e muito, sobre as teses contidas em “Pericoli dell’esilio”.192 As observações críticas de Rosselli podem ter deixado alguma marca em Battistelli, ainda mais por virem do líder do movimento no qual Libero se reconhecia e com o qual estava colaborando (também financeiramente, participando de subscrições, registradas nas colunas do periódico). Se não se pode pensar que a sua relativamente modesta contribuição ao jornal durante todo o ano de 1935 (além do citado acima, Battistelli enviará somente mais três artigos para o semanal parisiense, e sobre temas bastante secundários193) dependesse de certo distanciamento da proposta do mesmo e do próprio movimento (não há nenhum indicio neste sentido), é evidente que a palavra do amigo produziu ao menos um tempo de reflexão e reelaboração. A própria correspondência de Libero se rarefez, se o único registro certo em 1935 é a carta para Fabbri, acima lembrada. Há na verdade outra carta194que as autoridades policiais italianas conseguiram interceptar, e que abre mais uma fresta de compreensão sobre Libero e seu pensamento. Em fins de setembro de 35, Battistelli escrevia para um amigo e colega, advogado em Bolonha, republicano, perguntando para ele como se explicasse na Itália a “loucura” que tomou conta dos responsáveis da coisa publica, em querer se lançar na guerra etiópica. Mas a abertura, neste caso também, é reveladora: Caro Pierino, faz muito tempo que não tenho noticias suas, e naturalmente as desejo. Começo, então, dando noticias minhas. Estou vivo. Moro pela maior parte do tempo numa “fazenda” [...] Produzo bananas (!) e laranjas. No tempo livre, sou editor (tradução para o português de um livro italiano de Lussu, de “Minha Infância”, de Máximo Gorki, de “Petróleo”, de Upton Sinclair). Tive vários problemas (doenças, perdas financeiras etc...) e os solucionei, por enquanto. Não cheguei a “fazer a América” e não me queixo, pois não 192 C.R. [Carlo Rosselli], Giustizia e Libertá, ano II, n. 5, 1.2.1935, p.3. “Letteratura rivoluzionaria. Le Temps du mépris di André Malraux”. Giustizia e Libertá, ano II, n. 30, 26.7.1935, p.2 (uma resenha crítica do último romance do escritor francês); “Osservazioni sullo sport”. Giustizia e Libertá, ano II, n.34, 23.8.1935, p.3 (desaconselhando o proletariado seja da prática como da fruição do esporte); “Osservazioni a distanza”. Giustizia e Libertá, ano II, n. 45, 8.11.1935, p.3 (sobre a próxima partida, como voluntários na guerra de Etiópia, de trezentos italianos de São Paulo). 194 ACS/CPC, b. 411, f. 29269 (“Battistelli, Libero”), carta de Libero Battistelli para Piero Valenza, Rio de Janeiro, 30.9.1935 apud Informe Prefettura de Bolonha, 29.10.1935. A carta foi interceptada, mas entregue ao destinatário. 193 201 era esse o meu objetivo. Escrevo coisas que queriam mudar a cara do mundo, e que obviamente não deixam marca nenhuma. Uma conclusão bastante amarga e desiludida para um homem como Libero. Desapontamento, contudo, que não lhe impedia de trabalhar, como falava para o amigo, no campo intelectual e cultural, como editor de textos. Uma forma de manter levantada a bandeira do antifascismo, oferecendo ao público carioca e brasileiro algumas contribuições importantes do pensamento de esquerda, ou, mais em geral, democrático, e também participar do momento politico da cidade, agitada em 1935 pelas manifestações públicas da ANL e sucessivamente por suas atividades clandestinas. Com efeito, Libero ajudava com sua contribuição pelo menos duas editoras ligadas ao mundo do antifascismo italiano no Rio de Janeiro. A primeira era a Minha Livraria, dirigida pelo amigo anarquista Nello Garavini, que possuía uma livraria nos arredores da Praça Tiradentes. Ele e sua atividade editorial constituirão o objeto da quarta parte deste trabalho, mas vale aqui antecipar algo sobre a participação de Libero na empreitada. Da publicação em português de alguns dos títulos da editora era o próprio Battistelli que se encarregava, cuidando das traduções e, às vezes, se ocupando dos contatos com os autores para as autorizações e os direitos autorais. Para duas das obras citadas na carta acima (“Minha Infância” e “Petróleo”), ele se empenhou com a tradução e ajudou nos custos de publicação. Como testemunho disso, algumas passagens de uma carta que Libero escrevia quando já se encontrava na Espanha: O êxito de Minha Infância é plenamente satisfatório. Cobertos, com as primeiras vendas, os custos arcados por Pongetti [responsável legal da editora], poderá haver algum ganho, me parece, com as vendas sucessivas. Quanto a Oil [Petróleo], você decide. Se quiser partir para a publicação, achando que não vai ter perdas, ela deveria ser feita com os lucros de Minha Infância. Como facilmente entenderá, nestes momentos e a esta distância, não posso dispor de outros capitais. Falei com Upton Sinclair duas ou três vezes, mas não de negócios. Aconselhei-o para escrever para você, único a par da situação. 195 O próprio escritor norte-americano, após a morte de Libero, escreveu uma breve carta para a esposa, recordando o marido: “Me correspondi com ele por vários anos. Foi ele que deu encaminhamento à publicação dos meus livros no Brasil e devo a ele a 195 Biblioteca Libertaria Armando Borghi (BLAB), Fundo Nello Garavini, carta de Libero Battistelli para Nello Garavini, Espanha, [1936 ou 1937]. 202 belíssima tradução de Petróleo que acabo de receber do Rio de Janeiro. Em seguida me escreveu das trincheiras da Espanha [...]”.196 Se, pela Minha Livraria, Libero deu voz a dois autores da esquerda mundial como Gorki e Sinclair, por outra editora prefaciou dois livros italianos, traduzidos para os leitores brasileiros e publicados justamente naquele ano de 1935, quase uma contribuição à componente antifascista presente na movimentação da sociedade brasileira. A editora Athena tinha sido fundada por um italiano formado em ciências econômicas e comerciais, Pasquale Petraccone.197 Ele tinha chegado da Itália em 1926 para São Paulo, onde participara das atividades dos antifascistas da cidade, mas, dissentindo do grupo que tomara o lugar de Frola em La Difesa (no qual chegou, contudo, a publicar alguns artigos198), criou, em finais de 1930, um seu jornal, Italia Libera, quinzenal que teve curta duração. Em seguida, mudara-se para a Capital Federal, onde informações do consulado italiano o identificavam em 1933 como “um dos signatários de um manifesto de convocação de uma reunião organizada pela Lega Antifascista, em protesto contra o plano Mussolini e as persecuções antissemitas de Hitler”199. No Rio, Petraccone foi representante de várias firmas comerciais ligadas ao ramo da papelaria e criou a Athena. Especializada em obras filosóficas (Platão, Campanella, Hegel, Voltaire e Rousseau), a editora difundia também poesia (Dante Alighieri) e livros ligado ao mundo do antifascismo (Frola e o conde Sforza, entre outros). Membro do grupo dos mais chegados a Battistelli - que costumava se referir a ele e aos colaboradores dele na editora (Tamagni, Cingolani e Ferri) com o apelido de “delinquentes”200 - Petraccone publicou, em 1935, “Aspectos moraes da vida política”, do filosofo italiano Benedetto Croce,201 com prefácio assinado por Libero, que apresentava o autor como o mestre de uma inteira geração na Itália. Pela ocasião, Battistelli se perguntava se, diante da antítese entre liberalismo e socialismo analisada por Croce, fosse possível construir uma nova síntese, na qual a igualdade econômica 196 “Upton Sinclair per Libero Battistelli”. Giustizia e Libertá, ano IV, n. 37, 10.9.1937, p.3. Cf. ACS / CPC, b. 3899, f.21607 (“Petraccone, Pasquale”). 198 O mais polemico foi “Al di fuori dei partiti, per l’antifascismo”. La Difesa, ano VI, n .307, 1.5.1930, p. 4. Nele, Petraccone, como o titulo resumia, perguntava se não tivesse chegado a hora de aposentar os partidos e as velhas denominações politicas, inúteis para a luta do antifascismo, mais preocupadas em se contrapor e diferenciar do que em construir uma oposição eficaz ao fascismo. 199 Cf. ACS / CPC. b. 3899, f.21607 (“Petraccone, Pasquale”), Informe do Ministério do Interior, Divisão Geral de Segurança Pública, 20.11.1933. 200 Cf. Biblioteca Libertaria Armando Borghi (BLAB), Fundo Nello Garavini, cartas de Libero Battistelli para Nello Garavini. Rio de Janeiro, [fevereiro de 1933] e Espanha, [1936 ou 1937]. 201 CROCE, Benedetto. Aspectos moraes da vida politica. Rio de Janeiro: Athena, 1935. 197 203 não fosse um fim em si, mas meio, ulterior e necessário, após a igualdade jurídica e a politica, para o desenvolvimento de uma liberdade maior, mais verdadeira e universal. Era a famosa pergunta que voltava na reflexão de Libero, a de muitas cartas, de muitos artigos: como conciliar igualdade e liberdade, como construir uma sociedade socialista ou comunista que não precisasse de uma ditadura para se manter. Provavelmente no mesmo ano, apareceu “Marcha sobre Roma...e arredores. O fascismo visto de perto”, de Emilio Lussu, um dos líderes de Giustizia e Libertá, pela editora Cultura Politica (a coincidência do endereço faz supor que fosse a própria Athena sob outra denominação, para poder publicar sem problemas um texto ligado a temas políticos). Escrita em Paris alguns anos antes, a obra reconstruía eventos e bastidores da marcha que coincidiu com a chegada de Mussolini ao poder na Itália. Battistelli, em sua introdução ao volume, esclarecia como já o fascismo tivesse que ser considerado, não mais um fenômeno estritamente italiano, e sim universal. “Conhece-lo é condição essencial para uma defesa a tempo. E é nessa defesa que pensamos, apresentando ao público brasileiro a presente tradução”.202 Destinatário era possivelmente o mesmo público que lotava teatros, ruas e praças da Capital, e de outras cidades brasileiras, em ocasião de comícios e eventos da ANL. Um público que aprendera a reconhecer nos integralistas uma tentativa de imitação do modelo fascista europeu e que começava a articular slogans e palavras de ordem num projeto onde o antifascismo era, contudo, uma das componentes, e não necessariamente a mais importante.203 E um público sobre o qual iria se abater a repressão das autoridades governamentais, após o levante comunista de fins de 35. Battistelli acompanhou de longe os eventos de 35, dedicando-se sobretudo à atividade editorial, mas há alguns registros, do começo do ano sucessivo, de uma sua participação 202 Cf. LUSSU, Emilio. Marcha sobre Roma...e arredores: o fascismo visto de perto. Rio de Janeiro: Cultura Politica [1935?], p.5-9 (Introdução de Libero Battistelli) 203 Ricardo Figueiredo de Castro aponta para este aspecto, quando realça a diferença entre a linha politica da FUA e a da ANL, e mais ainda a do próprio PCB, que desta última era, em certo modo, o motor: “O antifascismo foi, após a ANL, hegemonizado e apropriado simbolicamente pelo PCB, que se tornou assim o guardião de seus valores e feitos, diluindo-o, entretanto, nas questões mais amplas colocadas pela ANL, como o anti-imperialismo e a luta contra o latifúndio. Outrossim, repetindo a perspectiva de seu Comitê Antiguerreiro, tendia a confundir fascismo com autoritarismo, em geral. [...] A perspectiva teórico-política da FUA de realçar a especificidade do fascismo no quadro mais geral do autoritarismo e sua perspectiva de unir as esquerdas foi politicamente derrotada.” Ver CASTRO, Ricardo Figueiredo de. Contra a guerra ou contra o fascismo. As esquerdas brasileiras e o antifascismo, 19331935, op. cit., p. 200. 204 ainda em 1935 numa campanha de imprensa, junto a alguns periódicos da Capital: objetivo era favorecer uma imagem positiva do antifascismo italiano, tentando dissociálo da identificação “italiano=agressor” que a guerra de Etiópia estava produzindo em amplos setores da opinião pública. Campanha, contudo, encerrada pela reação que se seguiu ao levante de novembro. Assim, escrevendo, provavelmente no começo de 1936, para os amigos de GL em Paris, Libero anunciava o próximo envio de “uma relação detalhada dos eventos brasileiros de fim de novembro”, mas adiantava já alguns fatos: Comunico-lhes as consequências mais diretas do movimento insurrecional, de seu fracasso, da consequente reação. O jornal “A Manhã”, que hospedava diariamente um nosso artigo em italiano e um ou dois artigos em português, foi fechado. Desta forma, acabou o maior veiculo de propaganda antifascista e antiguerreira. Outros jornais, como “A Noite”, que também acolhiam nossa propaganda, assumiram posturas reacionárias [...]. A reação atingiu às cegas todos os elementos “de esquerda”, entre os quais nossos aliados. [...] Francesco Frola foi detido (provavelmente por indicação da embaixada italiana) [...] temos certeza de sua inocência [...] e esperamos que para ele, como para outros brasileiros que se encontram nas mesmas condições, o prejuízo se limite a uma breve permanência no cárcere.204 [...] Nossa atividade, que tivera discretos resultados em orientar a opinião pública em sentido antifascista, teve uma parada brusca. 205 Pouco tempo depois, numa carta para Nenni206, Libero fazia considerações análogas a respeito da interrupção da campanha na imprensa brasileira que ele e outros estavam conduzindo junto à opinião pública local para resgatar a imagem dos italianos, no momento em que o governo de Mussolini se lançava para a guerra na África. Campanha “conduzida – recordava - de comum acordo, por um comunista italiano207, pelo socialista Frola e por mim”. Esta frase, inclusive, era dita como exemplificação daquilo que Battistelli tinha acabado de dizer para Nenni: “se não sou teu companheiro de partido, sou certamente teu companheiro de ‘parte’. E, neste momento, para mim, a ‘parte’ conta muito mais do que o partido”. Retornava, em suma, a atitude, já assinalada 204 Frola foi detido a 19 de dezembro de 1935 e libertado cerca de um mês depois. Cf. FROLA, Francesco. Recuerdos de un antifascista (1925-1938), op. cit., p. 189-190. 205 ISRT, AGL, Fundo Giustizia e Libertá, fasc. 3, sottofasc. 1. Carta de Libero Battistelli para amigos de GL, Rio de Janeiro, [1936]. 206 ACS / Arquivo Pietro Nenni, b. 3, f. 178. Carta de Libero Battistelli para Pietro Nenni, Rio de Janeiro, [1936]. 207 Este “comunista italiano” pode ser identificado com Cingolani, ou o próprio Petraccone (se corresponde à verdade que teria abraçado o trotskismo naquele período), para nos limitarmos ao Rio de Janeiro, ou, estendendo o raio de ação da campanha a São Paulo, Goffredo Rosini, se efetivamente se encontrava no Brasil naquela época (ver nota n. 117) 205 várias vezes antes, da máxima abertura e colaboração com quem estivesse do mesmo lado, com quem fosse da mesma ‘parte’, sem problemas de partido. Há registros também de que na repressão pós-levante comunista, alguns intelectuais encontraram abrigo e proteção na “Fazendinha”. Numa cronologia da vida de Emiliano Di Cavalcanti208, se diz que no fim do ano de 1935, o pintor e sua esposa Noemia se refugiaram, por razões politicas, em Mangaratiba, na casa de Battistelli (apresentado como antifascista ligado a Plinio Mello e Mario Pedrosa) e junto com eles também Newton Freitas. Deste último há também uma noticia, em livro de Moacyr Werneck de Castro209, segundo a qual ele, em fins de 35, para fugir da repressão, “passou uma temporada na Ilha Grande”. Provavelmente uma rede de relações politicas e amizades, entre expoentes da esquerda brasileira, do antifascismo italiano e do grupo trotskista da Capital Federal, do qual faziam parte Pedrosa, Mello e, provavelmente também Petraccone, trotskista, como se verá, segundo a policia brasileira, quando de sua prisão em 1938.210 3.14. Rumo à Espanha No começo de maio de 1936, as tropas italianas entravam em Addis Abeba. Era o fim da guerra, a Etiópia entrava a fazer parte do império colonial fascista.211 Uma decepção para o mundo do antifascismo no exilio, que esperava uma derrota militar do exército 208 GULLAR, Ferreira; MINDLIN, José; PERLINGEIRO, Max. Di Cavalcanti 1897-1976: pinturas, desenhos jóias. Rio de Janeiro: Pinakotheke, 2006, p.33. 209 CASTRO, Moacir Werneck de. Europa 1935. Rio de Janeiro: Record, 2000, p.200. 210 Há também noticias de um livro de Di Cavalcanti, “Curto Circuito”, que estava no prelo em outubro de 1935 pela Athena, a editora de Petraccone. Cf. ”Romances modernos”. A Manhã, 6.10.1935, p.12. 211 Um artigo de Libero sobre a conquista fascista da Etiópia e suas consequências, que será publicado pelo periódico de GL somente no final do ano, quando ele se encontrava já na Espanha, mostrava as dificuldades para europeus de se transformar em colonos em regiões tropicais, devido ao clima, e ao tipo de lavoura e de solo. Libero falava de sua experiência (“Vivo numa fazenda brasileira a 22’ de latitude Sul, isto é, a uma distância do equador muito maior do que a mais longínqua parte da Abissínia”) e explicava que era por essas razões (clima, solo, condições de trabalho) que o imigrado europeu ou escolhia regiões mais temperadas ou, logo que pudesse, se dedicava ao artesanato, ao comercio ou à indústria. Mas se estas eram “as condições do trabalho agrícola no Brasil tropical, que conheço por experiência plurianual, numa situação geográfica e climática muito melhor daquela da Etiópia, colonizado há mais de quatro séculos, com grandes investimentos de capitais, provido de estradas férreas, rodovias, serviços de navegação, com razoáveis mercados de consumo internos, com muitas grandes cidades, com um comércio de exportação de seus principais produtos há tempos organizado”, quais podiam ser – se perguntava Battistelli - as esperanças para colonos italianos que fossem para a Etiópia, país sem todos os recursos do Brasil? Cf. “Testimonianza”. Giustizia e Libertá, ano III, n. 52, 25.12.1936, p.3. 206 do Duce e a sucessiva queda do regime. Esta parecia se afastar definitivamente, mas os novos eventos espanhóis acabaram reacendendo as esperanças. Desde fevereiro uma coalizão das esquerdas tinha conquistado a maioria nas eleições espanholas. O governo da Frente Popular, reunindo republicanos, socialistas e comunistas, tentava assim tomar conta de um país onde as posições politicas se estavam rapidamente radicalizando. A jovem republica espanhola assistia a uma contraposição profunda entre as esquerdas e setores moderados, conservadores ou tradicionalistas. E foi exatamente apoiando-se nestes setores que se desencadeou o levante dos militares, a 18 de julho. Amplas regiões da Espanha acabaram dominadas rapidamente pelas tropas rebeldes, mas o governo republicano conseguiu controlar a maior parte do território. Era o começo de um conflito que assumirá o aspecto de uma guerra civil, mas que envolverá rapidamente outros países, de um lado e do outro, seja com apoio diplomático seja com o envio de armas e homens, embora nunca de forma oficial. 212 Desde o inicio da guerra, muitos expoentes do mundo da emigração antifascista perceberam, na divisão que se criara na península ibérica, uma reprodução em escala reduzida do grande confronto em ato na Europa e no resto do mundo: de um lado os fascismos (Hitler e Mussolini se empenharam no apoio aos rebeldes), do outro o mundo dos opositores (a França do governo da frente popular e a União Soviética em primeira linha, embora com diferentes gradações na solidariedade para o governo de Madri). O lugar dos antifascistas, italianos e não, estava na Espanha republicana, na defesa do governo legitimo e contra a agressão fascista, foi dito e escrito. Desde julho e agosto dezenas e dezenas de voluntários se dirigiram para a fronteira franco-espanhola, para se juntar às forças regulares. E para os antifascistas italianos, a possibilidade de lutar finalmente contra os fascismos, ainda que fora da Itália, fazia aumentar a esperança de poder fazer, em breve, a mesma coisa em sua pátria, segundo o slogan (“Hoje na Espanha, amanha na Itália”) lançado por Carlo Rosselli em seu discurso à Radio de Barcelona a 13 de novembro daquele mesmo ano. Entre o fim de julho e as primeiras semanas de agosto se constituiu a coluna italiana de voluntários, promovida por Rosselli e formada, em sua maioria, de anarquistas. As notícias chegavam também do outro lado do Atlântico. Libero recebia regularmente 212 Sobre a guerra civil espanhola, a bibliografia é enorme. Além das obras consultadas para acompanhar pontualmente o percurso e as vicissitudes da coluna italiana, um bom e ágil instrumento de síntese é BROWNE, Harry. Spain’s Civil War. London: Longman, 1996. 207 Giustizia e Libertá, no qual publicara um artigo no mês de maio sobre a questão religiosa italiana213. E o semanário de Rosselli se tornara, desde os primeiros dias da guerra, porta-voz da necessidade da luta. Não é difícil imaginar Battistelli impaciente diante do precipitar dos eventos. Numa carta de 1967 para um correspondente italiano, Enrica lembrará algo daqueles dias: “Cerca de um mês antes da revolta na Espanha, resolvemos fazer uma viagem à Europa, e, para economizar, escolhemos um navio cargueiro inglês, o Delambre, que fazia escala somente em Santos. Libero pediu ao consulado do Rio o visto para Espanha, Inglaterra, França e Bélgica. Antes de partir, chegaram as primeiras notícias, ainda confusas, sobre a Espanha. Com certeza, foi naquele momento que Libero resolveu participar, caso chegasse a tempo (a viagem devia durar uns 25 dias). Prova disso é seu testamento, escrito de seu punho dia 28 de julho”.214 Battistelli, então, aproveitou da viagem planejada anteriormente para alcançar em seguida a Espanha. A determinação em empenhar-se, de uma forma ou de outra, na guerra espanhola nasceu naqueles dias. Assim o final de julho e o começo de agosto foram dedicados aos preparativos para a viagem, que, dadas as circunstâncias, podia ter desdobramentos imprevistos. Um testamento foi redigido215, a biblioteca transferida da cidade para a fazenda. Aos amigos, a simples noticia de uma ida para São Paulo, de trem. Para os mais íntimos, a revelação do verdadeiro destino somente antes da despedida na estação carioca.216 Em Santos, dia 5 de agosto, Libero e Enrica, únicos 213 “Osservazioni sul problema religioso italiano”. Giustizia e Libertá, ano III, n.19, 8.5.1936, p.3. Na conclusão de seu escrito, Libero afirmava: “O ateísmo, antítese de religiosidade, não é por nada antítese de moralidade. De uma ética imanente, que deriva seus preceitos não de revelações sobrenaturais, e sim da dolorosa experiência da humanidade. Ética que pode em grande parte coincidir com a do cristianismo, e até com a do catolicismo, mas que não busca comprazer a Deus nem conquistar benemerências junto dele, e sim tornar menos infeliz possível, e para o maior número possível de pessoas, a ‘condition humaine’. Divinizar o homem? Humanizá-lo, diria. [...] O humanismo de GL me parece que tenha, ou deva ter, esse significado. Individualmente e socialmente.” 214 Carta de Enrica Battistelli para Lorenzo Vanelli, Rio de Janeiro, 1967. Istituto Nazionale per la Storia del Movimento di Liberazione in Italia (INSMLI) de Milão, Fundo AICVAS b. 12, fasc.75 e Fundo Arquivo AICVAS, b. 2, fasc.10. 215 Nele, Libero escrevia: “Peço para minha esposa que não chore demais por minha morte. Procure se distrair o mais intensamente e rapidamente possível, evitando, por exemplo, o luto, as visitas ao cemitério e tudo o que poderia lembrar a perda. Que minha recordação seja para ela doce, não aflitiva. Se encontrar um companheiro digno não tenha hesitação em casar novamente, sem medo de ofender com isso a minha memoria. Seja fiel às minhas ideias, que ela conhece. É a única fidelidade que prezo”. 216 Assim anota Garavini em suas memórias: “Battistelli [...] pediu para mim e minha esposa para acompanhá-los para a estação ferroviária, ele e sua esposa Enrichetta, tendo que viajar para São Paulo. Pouco antes de entrar no trem, nos falou que iria para a Espanha, lutar contra o fascismo. ‘Todos sabem que vamos para São Paulo... mas depois iremos para Santos e, de navio, até Londres, depois a Paris e de Paris para Barcelona.’” Cf. GARAVINI, Nello. Testimonianz: anarchismo e antifascismo vissuti e visti da un angolo della Romagna, op. cit., p.179. 208 passageiros assinalados, embarcavam no Delambre, pequeno vapor britânico com 38 tripulantes, com destino Liverpool.217 Por um curioso jogo de circunstâncias, nos mesmos dias em que Battistelli e a esposa seguiam seu caminho rumo à Europa para lutar contra o fascismo, outros italianos chegavam ao Brasil, brindados, por aquele mesmo fascismo, com uma viagem-prêmio. Eram setenta e cinco estudantes, de várias regiões da Itália, de sexo masculino e idade entre 14 e 19 anos, arregimentados pela ONB (Opera Nazionale Balilla), organização da juventude fascista, e tendo o consulado italiano do Rio de Janeiro como ponto de referência no Brasil. Por viajar na terceira classe, no vapor Conte Biancamano,218 possivelmente esbarraram com alguns dos outros jovens italianos que viajavam na mesma classe, uma meia dúzia, entre 15 e 18 anos também; estes, porém, não premiados pelo regime, mas obrigados a expatriar em busca de trabalho e fortuna. Ou podem ter avistado outros jovens que também estavam na 3ª classe: Chama, 19 anos, costureira polonesa de Varsóvia; Luigi, 19 anos, agricultor húngaro de Budapeste; Victor, 13 anos, estudante libanês de Beirute. Todos judeus. Quem sabe alguns destes escapando de um futuro campo de concentração. Desembarcados na Capital Federal no dia 4 de agosto, os setenta e cinco avanguardisti219 reembarcaram de volta para a Itália no mesmo navio dez dias depois, desta vez do porto de Santos, após uma provavelmente prazerosa permanência em território brasileiro, tendo, contudo, visto e conhecido deste país o que as autoridades consulares italianas, que os acompanharam em todos seus deslocamentos, acharam por bom que conhecessem.220 O caminho deles não cruzou com o de Battistelli no cais de Santos por poucos dias, mas é de se imaginar que o encontro teria trazido à mente de Libero aquelas afirmações de Rosselli sobre a resistência ao fascismo que certa juventude na Itália estava conseguindo construir, e talvez teria suscitado a vontade de uma pergunta ou um desafio a alguns dos setenta e cinco, disciplinados e doutrinados pelo regime. 217 AN, SPMAF (Serviço de Policia Marítima, Aérea e de Fronteiras)-SANTOS, Fundo BS, Saída de Vapores, Porto de Santos, Agosto de 1936, Caixa 557, Dep. 112. 218 AN, BR.AN, RIO.OL.O.RPV,PRJ.29987. 219 “Avanguardisti” (“vanguardistas”) eram denominados os inscritos à ONB, órgão do Partido Fascista italiano de caráter paramilitar, com idade entre 14 e 18 anos. 220 AN , SPMAF – SANTOS, Fundo BS, Saída de Vapores, Porto de Santos, Agosto de 1936, Caixa: 557, Dep. 112 209 É possível mapear os deslocamentos de Battistelli e sua esposa até a Espanha através das informações que seus artigos, sua correspondência e as comunicações da policia italiana nos trazem. Antes de chegar à Inglaterra, o navio fez escala em Las Palmas, nas Canárias, arquipélago espanhol que se encontrava nas mãos das forças rebeldes. Libero aproveitou as poucas horas de tempo para se aventurar pelas ruas da cidade, onde um soldado do exército lhe pediu os documentos. Num artigo que será publicado meses depois no semanário de GL,221 ele se perguntava o que estivesse levando aquele jovem soldado e “os milhares como ele, a matar e morrer pela causa dos generais, dos latifundiários, dos jesuítas”. E nenhuma das possíveis explicações que enfileirava para tanto (o amor pela pátria, o instinto de classe ou de casta, a disciplina militar) lhe parecia satisfatória, encontrando como certa uma só resposta: uma passividade cega ou obtusa, que Libero declarava ser incapaz de gerar heroísmos. “Continuamos nossa viagem rumo às brumas de Liverpool. Chegarei a tempo para assistir ao despertar da consciência do soldado de Las Palmas?” se perguntava Battistelli encerrando seu escrito. De Liverpool para Londres, onde as noticias da mobilização de GL e de outros agrupamentos começaram a chegar com mais detalhes, e onde se fez mais clara a determinação da luta, como Libero lembrará meses depois numa carta para Enrica escrita no front: Você me diz, sem me censurar por isso, que sacrifiquei o amor por você em nome do amor pela Liberdade. Não, Nina. Somente percebi que para ser realmente digno da estima por mim mesmo e de teu amor, eu tinha que fazer esta escolha. Você me ama por aquilo que sou, assim como eu. E conhecendo-me, você logo compreendeu, ao ler em Londres sobre as ações dos companheiros italianos, que não teria sido possível eu agir diversamente.222 Com efeito, a coluna italiana, promovida por Rosselli, com a mediação de Berneri em Barcelona, e composta de elementos oriundos de GL, de republicanos de esquerda, mas, sobretudo, de anarquistas (e enquadrada como seção italiana, na coluna anarquista Francisco Ascaso), já tivera seu batismo do fogo em fins de agosto, na batalha de Monte Pelado, na região da Aragão.223 221 “Il soldato di Las Palmas”. Giustizia e Libertá, ano III, n. 45, 6.11.1936, p. 3. “La prima lettera dal fronte”. Carta de 29.10.1936, publicada em Giustizia e Libertá, ano IV, n. 27, 2.7.1937, p. 3. 223 Para as noticias sobre a participação do antifascismo italiano na guerra civil espanhola, ver sobretudo CANALI, Giulia. L’antifascismo italiano e la guerra civile spagnola. Lecce: Manni, 2004. Para a 222 210 No começo de setembro, o casal Battistelli já se encontrava em Paris, ponto central do antifascismo no exilio. Uma carta para Luce Fabbri, filha de Luigi, escrita na capital francesa no final do mês, preanunciava o próximo destino de Libero: Paris, 29.9.36. Querida Luce, [...] com o maior entusiasmo, daqui a poucos dias irei oferecer minha contribuição à luta e ao trabalho. Exatamente naquela coluna italiana que, aberta para todos os antifascistas, é formada sobretudo por anarquistas e membros do grupo de GL. E exatamente naquele setor catalão-aragonês onde tenta-se o primeiro experimento de organização autônoma anarquista. [...] Se minha posição espiritual diante do anarquismo é um pouco a de Tomé diante de Cristo, queira lembrar que Tomé conseguiu se sair com uma amorosa reprovação.224 Ainda em setembro, Battistelli se deslocou para Barcelona, entrando em contato com a coluna e seu líder, Rosselli, e também com o antigo correspondente, o anarquista Berneri. Após semanas de preparação, começava sua participação nas operações de guerra no front aragonês, na localidade de Huesca.225 A ofensiva de Almudevar, em novembro, durante a qual Battistelli comandou uma bateria, teve êxito incerto, e as criticas dos anarquistas dirigidas nesta ocasião a Rosselli, junto com os decretos do governo de Madri de desarticular as milícias de voluntários e enquadrá-las no exército regular, levaram ao fim da coluna italiana como tal. Por outro lado, estavam sendo organizadas as Brigadas Internacionais, e desde outubro, comunistas, socialistas e participação mais especificamente anarquista, ver LEMBO, Luigi. Guerra di classe e lotta umana: l’anarchismo in Italia dal biennio rosso alla guerra di Spagna (1919-1939), Pisa: BFS, 2001, p. 142-222. 224 Carta de Libero Battistelli para Luce Fabbri. “Testimonianze”. Studi Sociali, ano VIII, n. 5, 28.3.1936, p.3. 225 É dai que, entre finais de outubro e começo de novembro, foram escritas a carta para a esposa, que já foi mencionada acima, e uma segunda para Luce Fabbri. Da primeira vale registrar mais algumas linhas, indicativas dos sentimentos de um homem que, mesmo tendo lutado na guerra mundial, se encontrava a guerrear novamente, quase vinte anos depois: “Teremos lutado lado a lado também na Espanha, mesmo que a natura do combate tenha nos separado materialmente, dando-nos lugares e responsabilidades diferentes. Te peço, portanto, para continuar a trabalhar no Comitê e no jornal, mesmo que tuas tarefas sejam humildes. [...] Veja, eu também, às vezes, sinto saudade da Fazenda e da paz dela. Mas, pensando bem, creio que aquela vida, segura e tranquila, não fosse propícia para o nosso amor, e portanto para a nossa felicidade. [...] Nosso amor surgiu com um caráter em certo sentido heroico: quando a minha vida, a vida que você aceitava compartilhar, era incerta e inquieta, aventurosa e combatente. Assim nasceu, e somente em circunstancias difíceis como estas ele se manifesta em sua plenitude. [...] Não tenha medo que eu me exponha voluntariamente ao perigo. Não tenho vaidade de glória. Cumpro e cumprirei serenamente meu dever” (Cf. “La prima lettera dal fronte”. Carta de 29.10.1936, publicada em Giustizia e Libertá, ano IV, n. 27, 2.7.1937, p. 3.). Da segunda, que trazia as impressões diante da vida de uma cidade como Barcelona, completamente controlada pelos anarquistas, ocorre destacar o sentimento de admiração de Libero pela tranquilidade com que o experimento libertário estava acontecendo e de apoio pela tentativa em ato (Cf. “Ultima lettera a Luce Fabbri”. Studi Sociali, ano VIII, n. 5, 28.3.1936, p. 3) 211 republicanos italianos participavam delas com uma segunda coluna italiana, o batalhão Garibaldi. Rosselli queria manter juntos os voluntários de GL, constituindo um novo batalhão, mas Battistelli se manifestou favorável a um acordo com essa segunda coluna. Ao nascer o batalhão Matteotti, formado por gielistas, Libero não aderiu e manifestou a Rosselli, numa carta em março de 1937, sua vontade de se juntar ao Garibaldi. A motivação, é de se reparar, não podia ser outra: favorecer a unidade entre as várias correntes politicas, algo que sempre perseguira, no Brasil como agora na Espanha.226 Após a adesão de Libero ao batalhão Garibaldi, naquele mesmo mês de março, registrou-se também em Rosselli uma disponibilidade de abertura para os comunistas. Libero chegava a Madri para se juntar ao batalhão, que em abril já se transformava em Brigada Garibaldi: por sua vez, o primeiro batalhão deste novo agrupamento militar foi logo posto sob o comando de Battistelli. Durante todos esses meses, de outubro de 1936 a maio de 1937, Battistelli se dividirá entre Barcelona, Paris - onde encontrará um ou outro dos lideres do antifascismo que não permaneciam estavelmente na Espanha, e onde sua esposa foi internada num hospital por um tempo - e o front. Como se viu, numa constante tentativa de favorecer a apresentação de um rosto unitário do antifascismo italiano. Das cartas, dirigidas aos lideres de GL, ou a expoentes socialistas ou anarquistas, como Nenni e Berneri, e de alguns artigos publicados em periódicos, é possível depreender pensamentos e orientações do período. Para Nenni, Battistelli escreveu uma longa carta (a lápis, pedindo desculpas por não ter o tempo para passar a limpo o texto), ainda no período em que a coluna italiana estava movendo seus primeiros passos: ele convidava o interlocutor a orientar os seus companheiros de partido a favorecer a adesão dos socialistas à formação existente, sem criar outra coluna italiana (como, pelo contrario, ocorrerá). Duas colunas no mesmo front, comentava Libero, seria sinal de “imaturidade politica”. E acrescentava: Como você sabe, por razoes de caráter e de distância, sou absolutamente alheio às competições partidárias. Tenho amigos republicanos, gielistas, socialistas, comunistas, anarquistas. E tenho a 226 “Uma minha participação no batalhão Garibaldi seria um remédio parcial para a inalcançável unidade material, representando um sinal tangível de unidade espiritual ou pelo menos de fraternidade ou de ausência de dissídios [...] Como já lhes falei, seja para as relações futuras, seja para a repercussão na Itália, contatos estreitos e cordiais entre nós e o batalhão Garibaldi, entre nós e as correntes politicas representadas nele, me parecem desejabilíssimos”. Carta de Libero Batistelli para Rosselli e Cianca, 9.3.1937, apud CANALI, Giulia. L’antifascismo italiano e la guerra civile spagnola, op. cit., p. 62-63. 212 feliz experiência de que não é difícil caminhar de acordo, quando se possui uma visão bastante ampla dos problemas e um espirito de tolerância. 227 Escritas no período da crise da primeira coluna italiana, provocada, como vimos, por tensões entre a componente anarquista e a liderança gielista, duas cartas para Berneri testemunham dos sentimentos de amizade de Libero e atestam respeito e estima para os companheiros anarquistas com os quais ele colaborou por meses. Numa delas escrevia: Você possui, sobre seus companheiros, toda a autoridade que, em campo anarquista, for possível. Eu só tenho aquela dada por certa serena equanimidade. Mesmo que escassa, vou exercê-la. Tenho certeza que você vai fazer o mesmo. Provavelmente vamos conseguir; e não somente entre os indivíduos, mas também entre os grupos, permanecerá a convicção de ter percorrido juntos um bom pedaço de caminho, de ter combatido o inimigo comum, unidos uns com os outros.228 Com efeito, uma atitude de sincera abertura e simpatia para o anarquismo sempre caracterizou Battistelli, a ponto de afirmar a claras letras, numa outra carta para Nenni229, já em 1937, na qual aceitava entrar a fazer parte do batalhão Garibaldi, principalmente formado, como se viu, por comunistas e socialistas: “Declaro desde já que me recusarei de lutar contra os anarquistas espanhóis, ainda que batizados pela ocasião de ‘contrarrevolucionários’ ou de ‘quinta coluna’, ou contra o Governo da Catalunha, mesmo que seja acusado de separatismo - ou até de cumplicidade com Franco”. Parecia prever, naqueles primeiros meses de 1937, o que aconteceria no começo do mês de maio, com os duríssimos choques em Barcelona entre libertários e grupos mais radicais, de um lado, e forças da esquerda comunista e socialista, do outro, uma guerra civil dentro da própria guerra civil, um choque fratricida entre componentes da esquerda espanhola e internacional que provocou centenas de vitimas, entre as quais o próprio Berneri. E foi exatamente a amizade com o libertário italiano que levara Libero a colaborar com o quinzenal anarquista Guerra di classe. Impresso em Barcelona e dirigido por Berneri, o jornal hospedou em dezembro de 1936 a mesma carta para Luce Fabbri que aparecerá 227 ACS / Arquivo Pietro Nenni, b. 3, f. 178. Carta de Libero Battistelli para Pietro Nenni, [Espanha], [1936]. 228 Carta de Libero Battistelli para Camillo Berneri. [Espanha], [1936]. In FERI, Paola; DI LEMBO, Luigi (org.). Epistolario inédito / Camillo Berneri, op. cit., p. 56. 229 ACS / Arquivo Pietro Nenni, b. 3, f. 178. Carta de Libero Battistelli para Pietro Nenni, [Espanha], [1937]. 213 meses depois em Studi Sociali, e também o anúncio (e depois o relato) de uma conferência que “o capitão Libero Battistelli, de Giustizia e Libertá” proferiu, em abril de 37, na sede da Casa dos Italianos antifascistas em Barcelona.230 Triste, mas cheio de profunda simpatia e amizade, era enfim o breve texto231 em que Libero lembrava o amigo, “meu irmão Camillo”, caído nas jornadas de maio em Barcelona. Sem entrar no mérito dos eventos que levaram Berneri à morte, Battistelli chamava o fim dele de “martírio” e o amigo anarquista de “santo” (“amor e sacrifício levados a uma altura tal que apavora o mais comum dos humanos”), de “irmão”, lembrando a atitude fraterna com a qual sempre o acolhera e sua ultima saudação, unida ao dom das obras de Santa Teresa. (Curioso presente, diga-se de passagem, de um anarquista, por principio anticlerical, para o amigo, também anticlerical e ateu declarado).232 Diálogo com socialistas, anarquistas, decisão de aderir a uma brigada promovida pelo movimento comunista internacional. Libero, contudo, declarava também na Espanha seu pertencimento a Giustizia e Libertá, de um lado, reafirmando, na carta a Nenni acima citada, que sua adesão à brigada Garibaldi “havia de ser desejada [grifo do autor] pelo movimento de GL do qual eu figuraria como representante”, do outro, publicando alguns artigos no semanário, que permitem acompanhar seu percurso politico e humano na Espanha da guerra civil, e seu pensamento diante de atos e escolhas de um processo revolucionário. Em “Fratelli”233, escrito enquanto estava no front aragonês, Battistelli registrava suas impressões diante de muitos soldados do campo nacionalista que abandonavam suas fileiras e passavam do lado das forças republicanas. Ele mesmo descrevia o encontro entre dois irmãos, um rebelde que aderindo às forças legalistas acabou reencontrando seu irmão miliciano. Em “Lettera senza indirizzo”234, Libero escrevia, em forma de 230 Cf. Guerra di classe, ano II, n. 13, 21.4.1937 e “Classi e nazioni nella politica internazionale”. Guerra di classe, ano II, n. 15, 5.5.1937. 231 “Mio fratello Camillo”. Guerra di classe, ano II, n. 20, 1.7.1937, p.2. 232 A amizade entre Berneri e Battistelli encontra um registro no testemunho de um antifascista que participou da coluna italiana: “Em Barcelona, me chamou atenção a simplicidade de Libero Battistelli e Camillo Berneri. Entre o escritor de Giustizia e Libertá e o professor anarquista existia uma comunhão perfeita. Passavam horas e horas, sentados um ao lado do outro, contentando-se de trocar um olhar, um sorriso. Mas quando se despediam, tinham esquecido todas as feiuras que humilham um processo revolucionário, e voltavam, com fé rejuvenescida, a enfrentar incompreensões e egoísmos do próximo”. BRACCIALARGHE, Giorgio. Nelle spire di Urlavento: il confino di Ventotene negli anni dell’agonia del fascismo. Firenze: L’Autore libri, 1970, p.50. 233 “Fratelli”. Giustizia e Libertá, ano IV, n. 3, 15.1.1937, p.1. 234 “Lettera senza indirizzo”. Giustizia e Libertá, ano IV, n. 14, 2.4.1937, p.2. 214 carta (“mesmo que a Senhora nunca possa ler”), agradecendo uma senhora da alta burguesia castelhana que o hospedou em sua casa durante a passagem do batalhão Garibaldi pela aldeia onde ela morava. Agradecimento pela hospitalidade, pela gentileza, por ter acolhido o intruso, e digressões sobre o que a revolução niveladora acabará fazendo com pessoas daquela classe social e o que , pelo contrário, poderia se abster de fazer (“como seria bonita – e impossível - uma revolução niveladora que permitisse, às boas senhoras de certa idade, terminar sua vida tranquila no vilarejo em que nasceram, com os serviços da criada Socorro e do empregado José”). Em “Il ‘cura’ di Valdeavero”235, o encontro com uma singular experiência de reforma agrária, pela qual todos os habitantes do pequeno município às portas de Madri, incluindo os filhos do antigo latifundiário da aldeia, trabalhavam coletivamente a terra, agora propriedade comum. Todos, e neste todos estava também o pároco do local, “transformado em camponês coletivista”, e com o qual Libero acabou trocando uma conversa. Homem ainda apavorado pelas mudanças ocorridas, um tanto ambíguo em sua rápida conversão a elas (“campesino ocasional, sacerdote para sempre”), o “cura” se salvara da morte. E Libero anotava: Agora é sereno. Mas nos olhos da irmã dele vejo passar uma onda de terror. Penso à Catalunha, ao Levante, ao Aragão, ao atroz simplismo das revoluções todas, ao fácil e rápido critério de condenar o presunto adversário não por aquilo que fez e sim por aquilo que é. Padre ou proprietário, como já foi ‘padre ou aristocrático’. O feliz vilarejo de Valdeavero evitou esse simplismo. Valha seu exemplo. Esse foi o último artigo de Libero. Menos de um mês depois, ele tombava no front aragonês. Nas primeiras horas do dia 16 de junho de 1937, entre os municípios de Chimillas e Alerre, no setor de Huesca, Aragão, após um bombardeio realizado pela artilharia e pela aviação, alguns batalhões da Garibaldi se lançavam ao ataque das trincheiras inimigas. Atingido pelo fogo das metralhadoras, Battistelli ficou ferido e permaneceu inalcançável durante horas, por estar em território aberto, entre as duas linhas. Somente ao final do dia pôde ser socorrido. Transportado a Barbastro e depois a Lérida, foi em seguida levado para o Hospital geral da Catalunha, em Barcelona, onde a esposa o assistiu constantemente. A bala atingira o braço esquerdo e perfurara o pulmão. Após dias de condições estacionárias, surgiram complicações, e Libero faleceu 235 “Il ‘cura’ di Valdeavero”. Giustizia e Libertá, ano IV, n. 21, 21.5.1937, p.1. 215 dia 22 de junho. O corpo, após um enterro solene, foi sepultado no Cemitério de Montjuic em Barcelona.236 Escrevendo da Espanha para Garavini, Libero dizia ao amigo anarquista: De mim posso dizer que são satisfeito de meu gesto, que pretendo continuá-lo até o fim [...] Independentemente de tudo, se trata de uma experiência preciosíssima e insubstituível para os antifascistas italianos. Nada melhor do que esta experiência pode mostrar o que haverá de fazer e o que haverá de evitar. Em todos os campos: político, econômico, militar etc.237 No dia da morte de Libero, pela manhã, chegara, às trincheiras do front de Huesca, a noticia do assassinato de Carlo Rosselli, junto com o irmão Nello, acontecido na França exatamente uma semana antes, por mãos de um grupo da direita francesa, talvez a mando dos serviços secretos fascistas.238 Libero, segundo o testemunho de sua esposa, tomou conhecimento da morte de Rosselli, antes de começar o ataque239. Perscrutar os sentimentos daquelas horas não é aqui dado ao pesquisador. Mas é possível supor que tenham-se produzido nele, geradas pela noticia recebida, uma determinação mais firme e uma audácia maior em se lançar contra a trincheira inimiga. E, quem sabe, o grito: !Nó pasarán! 3.15. Epílogo A narração dos fatos espanhóis talvez tenha ocupado muito espaço, mas a justificativa é bastante clara. Único expoente do antifascismo italiano no Brasil a se envolver como 236 Nas semanas seguintes o periódico Giustizia e Libertá lembrou Battistelli com a reapresentação de alguns textos dele e vários artigos de expoentes de GL. Cf. Giustizia e Libertá. Ano IV, n. 26, 25.6.1937, p.3; n. 27, 2.7.1937, p.3-4; n. 29, 16.7.1937, p.3; n.30, 23.7.1937, p.3; n.35, 27.8.1937, p.3; n.37, 10.9.1937, p.3. Também foi publicado por GL em Paris um opúsculo especial que recolhia alguns destes textos: Libero Battistelli, compagno ed eroe esemplare, Paris, 1937. 237 BLAB, Fundo Nello Garavini, Carta de Libero Battistelli para Nello Garavini. Espanha, [1936 ou 1937]. 238 Cf. NITTI, Francesco Fausto. Il maggiore é un rosso. Torino: Einaudi, 1974, apud CALANDRONE, Giacomo. La Spagna brucia: cronache garibaldine. Roma: Editori Riuniti, 1974, p. 164-165. 239 Carta de Enrica Battistelli para Lorenzo Vanelli, Rio de Janeiro, 1967, In Istituto Nazionale per la Storia del Movimento di Liberazione in Italia (INSMLI) de Milão, Fundo AICVAS b. 12, fasc.75 e Fundo Arquivo AICVAS, b. 2, fasc.10. 216 voluntário na guerra civil espanhola240, Battistelli, devido a sua naturalização, é também mais um brasileiro que participou do conflito, além dos que a historiografia já tem apresentado.241 A luta e a morte dele serão vistos por seus companheiros de Giustizia e Libertá na Europa e pelo grupo dos antifascistas do Rio e também de São Paulo como um exemplo de vida e um testemunho político e humano a ser celebrado. A viúva, voltando ao Rio alguns meses depois, contribuirá em alimentar a memoria do marido, em nome do qual os antifascistas da Capital Federal realizaram algumas coletas em apoio à causa espanhola. Foram também estas coletas, promovidas em nome de um “comunista” tombado na Espanha do lado das tropas às ordens de Moscou - como a policia italiana e brasileira leram os eventos -, que levaram a investigações, perquisições e prisões no âmbito do pequeno grupo antifascista da colônia italiana no Rio. Petraccone foi identificado como responsável desta ação de solidariedade: semanas após a morte de Libero, escrevera um breve artigo em memória do amigo caído na Espanha para o periódico de GL, recordando sua presença no meio do “pequeno grupo do Rio”, e o nome dele comparece no próprio jornal como responsável pelo envio de dinheiro para a organização242. Petraccone começara suas frequentações com as prisões cariocas já em agosto de 37, quando foi preso por dois dias a fim de prestar esclarecimentos a respeito de comunistas paulistanos foragidos das prisões locais, e ainda em finais de outubro do mesmo ano (curiosamente três semanas após as autoridades diplomáticas italianas terem indicado nele o responsável pela doação a GL), quando seu estabelecimento comercial se tornou objeto de busca e apreensão de livros e outro material. Identificado e fotografado, Petraccone foi posto em liberdade no mesmo dia. No mês seguinte, a 10 de novembro, o presidente Vargas dissolvia o legislativo e promulgava nova constituição: era o Estado Novo em seus primeiros passos. No mesmo dia, os jornais cariocas anunciavam a prisão de Domenico Ferraro, italiano com 240 A notícia de uma presença de Goffredo Rosini na guerra de Espanha é bastante controversa. Cf. BATTIBUGLI, Thaís. A solidariedade antifascista. Brasileiros na guerra civil espanhola (1936-1939). Campinas (SP): Autores associados; São Paulo: Edusp, 2004. 242 As doações do Rio para GL, depois da partida de Battistelli para a Espanha, foram as seguintes: 4.12.1936 (“Petraccone”, 625 fr,-), 26.6.1937 (“os amigos de GL”, 960 fr,-) e 8.10.1937 (“entre companheiros antifascistas do Rio de Janeiro e de São Paulo, em nome do companheiro Libero Battistelli”, 4000 fr,-). Informações recolhidas pela policia politica italiana atribuíam a Petraccone o cheque e a carta que acompanhava esta última mais significativa doação, com o pedido de “destinar metade do valor para GL e outra metade para a ação na Espanha”. Cf ACS/CPC, b. 411, f. 29269 (“Battistelli, Libero”),Informe Divisione Polizia Politica, Roma, 24.1.1938. 241 217 nacionalidade brasileira, acusado de propaganda comunista e subversiva, qual espião a serviço de Moscou.243 Dele já foi apresentado, na segunda parte, o percurso na década de 1920 e inicio de 1930. Aqui há de se registrar sua prisão, entre as motivações da qual estavam seus contatos com F.S.Nitti, ex-presidente do Conselho italiano, exilado em Paris, descrito pela imprensa carioca como “chefe da espionagem moscovita na Europa”, quando na realidade era um simples expoente do fuoruscitismo radical, e conhecido de Ferraro por ser oriundo da mesma região deste. A permanência no cárcere se estenderá por alguns meses, provavelmente até agosto de 1938, quando um telespresso da Embaixada italiana no Rio informou sua libertação. Não há registros de uma frequentação do grupo de Battistelli por parte de Ferraro, mas o fato é possível. De todo modo, sua prisão permite perceber o clima de rigorosa vigilância e repressão ao qual o antifascismo na Capital Federal (e no resto do país) estava sendo submetido. Assim, em 1938, a vontade disciplinadora do governo se abateu também sobre Petraccone e seus colaboradores na Athena. Nos primeiros dias de janeiro, o editor, seus dois sócios, Luigi Cingolani244 e Carlo Alessandro Tamagni245, e o guarda-livros da firma, Filippo Ferri246, foram detidos, e em seguida recolhidos à Casa de Detenção, “a fim de serem processados e expulsos do território nacional, por serem nocivos aos interesses do país”, segundo os prontuários da Secção de Segurança Social da DESPS (Delegacia Especial de Segurança Politica e Social). A acusação era de manter contatos com elementos comunistas (Pedrosa, Aristides Lobo) e de promover a IV internacional no Brasil com coletas em favor da organização Socorro Vermelho (ala trotskista), com fundos a serem destinados para os combatente da Espanha republicana , servindo-se por isso do nome do “celebre líder comunista Libero Battistelli”.247 243 Cf. “Preso Domenico Ferraro que agia sob dupla nacionalidade”. Diário da Noite, 10.11.1937, p.1-2, e “Fazia propaganda comunista no Brasil”. Diário de Noticias, 10.11.1937, p.1. Para informações das autoridades policiais e diplomáticas italianas sobre Ferraro, ver ACS /CPC b. 2029, f. 6035 (“Ferraro, Domenico”). 244 ACS/CPC, b. 1349, f. 19722 (“Cingolani, Luigi”). Originário da região de Macerata, é apresentado como comunista pelo fichário da policia, que também refere que saiu da Itália em 1925. Após anos em São Paulo, se mudará para o Rio na década de 1930. 245 ACS/CPC, b. 5012, f. 65200 (“Tamagni, Carlo Alessandro”). Republicano, oriundo da região de Mântua, no norte da Itália, era entre os antifascistas mais jovens, tendo nascido em 1908. Expatriara em 1921. 246 ACS /CPC, b.2041, f. 110927 (“Ferri, Filippo”). Nascido em Nápoles em 1903, de profissão contador, emigrara para a França em 1930, segundo informes do fichário da policia italiana, e seis meses depois embarcou para Buenos Aires. Em 1933 se transferia para São Paulo. 247 Cf. AN MJNI Serie 5 ( Assuntos Políticos) / Subsérie 23 (Expulsão e Deportação)/ Caixa 535 / Processo 1331 / 39. Protocolo 2220, ano 1938: Expulsão de Pasquale Petraccone, Luiz Cingolani, Felippe Ferri, 218 Nova busca e apreensão na firma, memorial do advogado de defesa, Evaristo de Moraes, declarações de dezenas de estabelecimentos comerciais e bancos cariocas e paulistas que abonavam a postura profissional de Petraccone, e em abril o chefe da policia que remetia o caso ao ministro. Somente em junho, porém, os acusados deixaram a prisão, por ordem do delegado. Postos em liberdade com a condição de deixar o território nacional em dez dias, os italianos foram novamente detidos quinze dias depois, e mantidos na prisão apesar do TSN ter emitido sentença absolutória. No final, após mais de dois meses, o ministro mandou arquivar o processo e soltar os imputados. Petraccone seria antifascista, sim, mas não comunista, a coleta seria uma simples subscrição em favor da viúva Battistelli, as cartas de Lobo para Petraccone não seriam tão perigosas assim, e os testemunhos de ligações com Socorro Vermelho todos “na base do saber e do concluir, sem apresentação de fatos”: foram as conclusões da justiça brasileira. A onda de suspeitas de atividade subversiva atingiu também os parentes de Libero. Enrica, numa carta da década de 60, falará de documentos e manuscritos do marido que “a policia política [...] subtraiu numa das várias invasões do meu domicilio”248. Em 1938, a Fazendinha de Mangaratiba, distrito Alto da Serra, foi alvo de investigações: a prisão de Petraccone e companheiros em janeiro, noticiada pela imprensa carioca249, levou dias depois a um mandato de busca e apreensão na residência de Battistelli, o “comunista” em nome do qual estava sendo organizada a arrecadação de fundos e a rede subversiva. A delegacia da policia civil de Angra dos Reis, acionada pelo delegado de Mangaratiba, abriu inquérito policial contra André Zuccari, o cunhado, e outros. Zuccari e os funcionários da residência foram interrogados, além de um comprador que aparecera à Fazenda Laperrière (como era conhecida antigamente) ou Battistelli: a mesma, com efeito, tinha sido posta à venda por Enrica, também em meados de janeiro, com anúncios em jornais. Zuccari admitiu conhecer Tamagni, Cingolani e Petraccone (por eles frequentarem ocasionalmente a fazenda), e também a editora Athena, no Rio de Janeiro, mas negou qualquer envolvimento com comunismo ou subversão. Como o nome de Zuccari não apareceu nas investigações realizadas no Rio a cargo de Carlo Alexandre Tamagni. Cf. também MJNI/ Departamento Federal de Segurança Pública / DPPS / Prontuário n. 10.902 (“Pasquale Petraccone”). 248 Carta de Enrica Battistelli para Lorenzo Vanelli, Rio de Janeiro, 1967, In Istituto Nazionale per la Storia del Movimento di Liberazione in Italia (INSMLI) de Milão, Fundo AICVAS b. 12, fasc.75 e Fundo Arquivo AICVAS, b. 2, fasc.10. 249 “Uma célula comunista destruída pela Secção de Segurança Nacional”. O Jornal, 14.1.1938, p.7. 219 Petraccone e sócios, o delegado pediu arquivamento e o Tribunal de Segurança Nacional concedeu, a 23 de março de 1938.250 Tempos de repressão, tempos de silêncio forçado no Brasil para o antifascismo, seja o de origem italiana, seja o nacional. O Estado Novo reduzirá aos mínimos termos a atividade e a propaganda, já afetada pelas providências do governo após o levante de 35.251 Ameaçados de prisão ou atingidos por inqueridos policiais, os poucos antifascistas não encontraram mais o espaço que podiam ter antes. Houve quem emigrou, como Frola, para o México, em janeiro daquele mesmo ano de 1938, houve quem continuou com prudência. Ver-se-á no próximo capitulo como outro editor, Nello Garavini, sobreviveu aos anos de restrição e controle. O antifascismo italiano foi atravessando anos de crise e dificuldades, reforçadas pelos decretos que atingiam as atividades politicas dos estrangeiros,252 até retomar certo vigor e certa coragem somente após 1942, como se verá. Quanto a Battistelli, não é errado considera-lo como o expoente mais maduro e consciente do antifascismo italiano da capital Federal, se não do Brasil todo. Um simples balanço de sua atuação, votada, antes de tudo, ao estabelecimento de laços e à construção de espaços de diálogo e de colaboração entre várias correntes e experiências253, mostra como em termos quantitativos, sua produção (cartas, artigos, 250 AN / Fundo Tribunal de Segurança Nacional – C8, código C8.0.PCR.0190, ficha 237938, processo N. 471 (“André Zuccari”). 251 Sobre o progressivo estabelecimento da legislação de segurança nacional, ver SILVA, Francisco Carlos Teixeira da. “Os tribunais da ditadura: o estabelecimento da legislação de segurança nacional no Estado Novo”. In PINTO, Antonio Costa; MARTINHO, Francisco Carlos Palomanes (org.). O corporativismo em português: Estado, politica e sociedade no salazarismo e no varguismo, Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2007, p. 273-303. 252 Ver SEYFERTH, Giralda. “Os imigrantes e a campanha de nacionalização do Estado Novo” In PANDOLFI, Dulce (org.). Repensando o Estado Novo. Rio de Janeiro: Fundação Getulio Vargas, 1999, p. 199-228. 253 O auto de busca e apreensão nos permite de lançar um olhar, ainda que parcial, sobre a biblioteca de Battistelli conservada na fazenda, e documentar seus multiformes interesses políticos. Há livros que demonstram interesse por temáticas ligadas ao socialismo e à própria União Soviética, como História do Socialismo e das lutas sociais, de Max Beer, Le Socialisme Constructif, de Henri de Man, Democracia e Marxismo, de Giuseppe Saragat, Outras Revoluções virão, de Mauricio de Medeiros, Ma vie, de Léon Trotsky, Psicologia do Povo Russo, de Máximo Gorki, Contos soviéticos, e até números de Lo Stato Operaio, o periódico mensal do PCI, editado em Paris. Referências ao anarquismo, como Scritti, de Errico Malatesta, Lo Specchio della grande rivoluzione de Pietro Kropotkin, Dias de Ira, de Helios Gómez e Studi Sociali, a revista de Luigi Fabbri. E obras oriundas do ambiente da emigração antifascista, como Un Italien revolté, de Mario Bergamo, Italia socialista, de Alberto Jacometti e A inquietação do mundo, de F.S.Nitti, além das revistas Quaderni di Giustizia e Libertá, e a mensal Socialismo, de Frola. Outros volumes deviam se encontrar nas prateleiras, mas isto é quanto os documentos dos investigadores nos transmitiram. 220 palestras, depoimentos) foi das mais ricas do antifascismo italiano em ação no Brasil, contando somente os artigos que foi possível identificar e as cartas que os arquivos nos conservaram254. Em termos de conteúdo, foi o testemunho constante de uma abertura ideológica e de uma vontade de construção politica singulares, que culminaram na decisão de transformar proclamas e teorias numa prática real de combate contra o fascismo. 254 No Rio de Janeiro, Battistelli escreveu um romance (“Un operaio qualunque”) que continua inédito: a figura do protagonista era inspirada na vida do cunhado, Andrea Zuccari e nos eventos de Molinella da década de 1920, dos quais Libero conservava lembranças e compilações de noticias. Uma cópia conservada em Paris se perdeu com a guerra, outra que estava na residência carioca sofreu sequestro policial. Talvez ainda exista em algum arquivo público ou particular o manuscrito original. 221 4. QUARTA PARTE / Nello Garavini 4.1 Politica e luta pela sobrevivência “No Rio de Janeiro, os antifascistas italianos eram talvez os que menos conseguiam se adaptar, sobretudo pela dificuldade de encontrar um emprego. Vi advogados, professores, escritores, médicos, sem trabalho por dezenas de anos e podem-se imaginar os sofrimentos deles e de seus familiares”1. Assim Nello Garavini começava o capitulo do volume de suas memórias dedicado ao exilio na Capital Federal, onde ele, a esposa Emma e a filha Giordana passaram vinte e um anos, fugindo das leis “fascistíssimas” e da ameaça da prisão ou do confinamento. E a essa triste notação, o anarquista italiano acrescentava algumas linhas sobre ele mesmo na nova situação: Pessoalmente, podia me considerar entre os mais afortunados, pelo fato de ter encontrado logo emprego. Fui limpador de moveis num restaurante no bairro de São Francisco em Niterói; depois, no Rio de Janeiro, no Hotel Glória, fui mensageiro, ascensorista, ajudante de garçom, garçom. Depois fui vendedor, livreiro, representante.2 Dos três antifascistas italianos cujo percurso em solo carioca é investigado no presente trabalho, o primeiro, Giuseppe Scarrone, chegava ao Rio em 1911, no âmbito dos fluxos da emigração que ainda traziam da Itália centenas de homens e mulheres por ano, e aqui, mesmo começando com pouquíssimos recursos, conseguiu firmar-se na atividade que principalmente exercera em sua terra, a de fabricante de vidro. Libero Battistelli, saindo da Itália debaixo do fascismo, em pleno vigorar da legislação liberticida, aportava à capital da Republica sem poder praticar aqui a advocacia: o apoio de um pequeno capital pessoal e a renda do atelier de costura da esposa lhe permitiram se dedicar com mais liberdade e intensidade à publicística antifascista e ao trabalho organizativo. Já no caso de Nello, também emigrado numa das primeiras ondas de fuorusciti, uma vez no Brasil, foi preciso inventar-se uma profissão, articulando exercício da politica e luta pela sobrevivência: o ideário anarquista lhe proporcionou círculos de amizades e espaços de debate, mas seu antifascismo entrelaçou-se com a também difícil labuta pelo pão de cada dia. 1 GARAVINI, Nello. Testimonianze: anarchismo e antifascismo vissuti e visti da un angolo della Romagna, Imola: La Mandragora, 2010, p. 161. 2 Ibidem. 222 A existência no Rio de Janeiro de um tio precedentemente emigrado foi uma ajuda preciosa nos primeiros tempos, sem falar da presença da esposa, com sua atividade de professora. Mas em Garavini e suas peripécias de exilado, mesmo com toda sua singularidade, é possível de certa forma condensar destinos e vicissitudes de muitos outros que buscaram refugio em terra estrangeira contra o fascismo de sua pátria. Nello não colocou, entre as profissões que exerceu no Rio, a de editor. Com efeito, depois de ter passados por vários empregos, em 1934 passou a administrar uma pequena livraria nos arredores da Praça Tiradentes: ela funcionava também como editora, com o nome de Minha Livraria, publicando dezenas de títulos, escolhidos a dedo entre clássicos da esquerda comunista e libertária e traduções de textos mais recentes e inovadores. Desta obra se discutirá mais para frente, mas ela fica registrada desde já como o ponto alto de seu antifascismo militante, conduzido em nome do ideal anarquista que o marcara desde sua juventude na Itália. Um antifascismo que atravessará os anos difíceis do Estado Novo varguista, com as restrições impostas também à colônia italiana, identificada tout court com o inimigo, e buscará seu reconhecimento em tempos menos sombrios, mesmo a custa de polêmicas com irmãos do mesmo campo de luta. Nello não se naturalizou brasileiro, como Libero, nem passou o resto de sua vida no Brasil, como Giuseppe. Sua perspectiva era a do retorno em sua terra, livre da ditadura, e assim aconteceu. Mas os anos brasileiros, que aqui indagamos, entraram com um peso importante na formação e no amadurecimento de uma consciência. 4.2. Anos italianos Nello Garavini nasceu em Castel Bolognese, na província de Ravenna, a 28 de janeiro de 1899.3 Pequeno centro da Romanha, região norte da Itália, a cerca de 50 quilômetros de Bolonha, a cidade, como toda a área ao seu redor, se distinguia, desde finais do século XIX, como um território propício para tendências politicas ligadas à esquerda, 3 Informações para a reconstrução do percurso existencial e politico de Garavini se encontram principalmente em ACS/ CPC, b. 2277, f. 52637 (“Garavini, Nello”). Ver também LANDI, Giampiero. “Nello Garavini: un uomo”, Il Castello, Castel Bolognese, marzo 1985. ----------------. “Nello Garavini”, site: www.castelbolognese.org/nellogaravini.htm. GARAVINI, Nello. Testimonianze: anarchismo e antifascismo vissuti e visti da un angolo della Romagna, op. cit., passim. 223 como o socialismo, o anarquismo, o cooperativismo, o sindicalismo revolucionário. Várias lideranças destes movimentos nasceram ou atuaram na região, caracterizada havia tempo por um intenso anticlericalismo. O anarquismo entrou na vida de Nello com o sangue e a educação familiar. O pai, Pietro, possuía uma cantina em Castel Bolognese, que funcionava como local de encontros de libertários. Foi neste ambiente que Nello cresceu, em contato com o pai e os colegas dele, tendo a oportunidade de ouvir ocasionalmente conferências de expoentes do anarquismo, como Errico Malatesta, lendo literatura libertaria e estudando textos como autodidata (Nello não chegou a completar seus estudos secundários). Ainda muito novo, se empenhou na campanha contra a entrada da Itália na guerra, contribuindo em seguida na ação de estímulo à deserção dos jovens diante do alistamento militar. Na sua cidade fundou com alguns coetâneos o grupo anarquista juvenil e a Biblioteca Libertária, se destacando por seu espirito de liderança, que lhe valeu o apelido de “Lenin”. Empenhado em difundir os princípios do anarquismo, Nello participou de congressos regionais e até nacionais. Os dois anos após a guerra, 1919 e 20, foram marcados na Itália por uma intensa ação de reivindicação popular, seja no campo como nas fábricas dos principais centros urbanos. Lutas camponesas, organização de cooperativas, criação de uma rede de instituições em favor dos trabalhadores, greves operárias: o país parecia na iminência de uma revolução nos moldes da soviética. Os mesmo anos foram marcados, contudo, pelo aparecimento e progressiva afirmação do fascismo, que se dedicou, sobretudo nas regiões de maior presença socialista, ao desmantelamento daquela rede de solidariedades e de organismos. O movimento libertário também foi alvo da violência das esquadras fascistas, e Castel Bolognese não representou nenhuma exceção. O próprio Garavini em duas ocasiões sofreu agressões. Permanecendo perigosa a situação para os anarquistas, particularmente após a marcha sobre Roma e a chegada de Muissolini ao poder, já que as esquadras fascistas continuavam em sua onda de ataques, Nello e Emma Neri (professora de escola primaria com a qual ele casara a 4 de junho de 1923) se mudaram para Milão, em 1924, onde em outubro nascera a filha Giordana. Aqui, devido ao anonimato que a grande cidade proporcionava, a militância de Garavini pôde continuar de forma mais tranquila, em contato com vários expoentes do anarquismo milanês. 224 O endurecimento da ditadura no ano seguinte, contudo, fez com que Nello e Emma aceitassem o convite que chegava do Rio de Janeiro, onde se encontrava havia vários anos Antonio Garavini, tio de Nello, ele também de sentimentos libertários, mas com um perfil menos militante e mais aventureiro. 4 Antonio solicitara o sobrinho a se mudar para o Brasil e Nello, antecipando possíveis e iminentes decretos governativos que atingissem os expoentes da oposição, e restringissem a possibilidade de expatriar, resolveu deixar Milão e o comércio de vinhos e flores que tinha iniciado na cidade, e se preparar para a saída do país. Assim, a 12 de maio de 1926, Nello, Emma e Giordana embarcavam em Genova no vapor Conte Verde, com destino Rio de Janeiro. 4.3. Observações sobre o relato autobiográfico Uma das fontes usadas para a reconstrução e a discussão do percurso existencial e politico de Garavini, e de seu antifascismo vivido durante a emigração no Rio, foi o livro de memórias, escrito por ele nos anos de 1970, e publicado recentemente. Um inteiro capitulo, o sétimo, é dedicado ao exilio em terra carioca. Nomes, fatos, encontros, ocupam as páginas do relato, que percorre as duas décadas com intenção de reconstituir etapas de uma vida e ao mesmo tempo oferecer um quadro do mundo da colônia italiana e de seus laços com a realidade brasileira, a partir do ângulo de visão de Nello, de seus contatos, de suas frequentações. Os arquivos não conservaram muitas cartas do anarquista, embora ele escrevesse bastante, sobretudo para Luigi Fabbri e outros libertários: a maioria das correspondências que existem, dirigidas à família na Itália, tendo que passar pelo crivo da censura, não permitem reconstruir de forma satisfatória seu pensamento e sua ação politica. Ótimo instrumento de trabalho, então, se revelou o volume das memórias, imprescindível como ponto de partida na elaboração de um trajeto existencial, mesmo que essa elaboração visasse principalmente, no nosso caso, a análise de discursos e práticas no contexto específico do antifascismo. Todavia, 4 Sobre Antonio Garavini ver ACS/CPC, b. 2277 (“Garavini, Antonio”). Na Capital Federal, Antonio Garavini (apelido “Ansena”), nascido em 1972, se encontrava desde os primeiros anos do século XX, após ter saído da Itália ainda em 1894, com destino Santa Fé, ter voltado para sua terra dois anos depois e retornado para a América do Sul em 1897, desta vez para Santos. Segundo informe de 1912 da legação da Itália no Brasil, Antonio, apelidado de “Tigre”, após “ter peregrinado em vários Estados da Federação como empresário de espetáculos, lutador, repórter de jornais, atualmente trabalha como croupier no clube High Life de Rua do Catete, endereço luxuoso da Capital [...] aqui mantem por sua conta um pequeno cabaré, com rendas discretas [...] mesmo manifestando ideias libertarias [...] não o reputamos perigoso”. 225 um relato autobiográfico como esse necessita de algumas breves considerações preliminares, a fim de que possa ser adequadamente aceito na sua qualidade de fonte. Philippe Artières, analisando as práticas de arquivamento do eu 5, quais uma autobiografia ou um diário intimo, afirma que “arquivar a própria vida é pôr-se no espelho, contrapor à imagem social a imagem intima de si próprio, e nesse sentido o arquivamento do eu é uma prática de construção de si mesmo e de resistência”.6 Construir a própria imagem do autor faz parte, então, da intencionalidade do escrito autobiográfico, seja um livro de memórias ou um diário. Artières precisa: O arquivamento do eu não é uma prática neutra; é muitas vezes a única ocasião de um individuo se deixar ver tal como ele se vê e tal como ele desejaria ser visto. Arquivar a própria vida é, simbolicamente, preparar o próprio processo: reunir as peças necessárias para a própria defesa, organizá-las para refutar a representação que os outros têm de nós. 7 E ainda, no que diz respeito ao papel central dos destinatários e das condições de produção do arquivo, Artières afirma que sempre arquivamos as nossas vidas em função de um futuro leitor autorizado ou não (nós mesmos, nossa família, nossos amigos ou ainda nossos colegas). Prática íntima, o arquivamento do eu muitas vezes tem uma função pública. Pois arquivar a própria vida é definitivamente uma maneira de publicar a própria vida, é escrever o livro da própria vida que sobreviverá ao tempo e à morte.8 Autores de autobiografias, ou de memórias, então, são sempre, de certa forma, “editores” de si mesmos. Ter consciência disso foi fundamental na hora de trabalhar com a fonte representada pelo relato autobiográfico de Garavini. Ele, que foi “editor” por alguns anos na cidade do Rio de Janeiro, trinta ou quarenta anos depois “editará” o relato de sua vida, para, como diz a certa altura, “demonstrar como os anarquistas tiveram um papel de primeiro plano nas batalhas contra o fascismo”. Sendo este seu 5 ARTIÈRES, Philippe. “Arquivar a própria vida”. Estudos Históricos, Rio de Janeiro, vol. 11, nº 21, 1998, p. 9-34. 6 Ibid., p. 11. 7 Ibid., p. 31. 8 Ibid., p. 32. 226 objetivo, ficamos alertados diante de ênfases ou ausências que o próprio relato possa apresentar. Como explica Verena Alberti9, se alguém se põe a escrever uma autobiografia, é porque tem em mente fixar um sentido em sua vida e dela operar uma síntese, que envolve omissões, seleção de acontecimentos a serem relatados e desequilíbrio entre os relatos [...], operações que o autor só é capaz de fazer na medida em que se orienta pela busca de uma significação: busca essa que lhe dirá quais acontecimentos ou reflexões devem ser omitidos e quais (e como) devem ser narrados.10 Escrever, de certo modo, a história do anarquismo italiano diante do fascismo, vista a partir de sua terra natal e do exílio brasileiro, e neste contexto, narrar momentos de sua vida: esta é a razão do escrito de Nello. Que é fonte importante, pelo seu valor de “testemunho” (assim se apresenta inclusive o volume, em seu título), mas que, em quanto documento, exigiu uma metodologia de trabalho e de pesquisa atenta a suas peculiares características. 4.4. Primeiros anos no Rio O Conte Verde, após onze dias de viagem, aportava no Rio de Janeiro. Entre os 76 passageiros da terceira classe que desembarcaram (de um total de mais de seiscentos, que prosseguiam para Santos ou para Uruguai e Argentina), estava a família Garavini: Nello, Emma e Giordana. Os primeiros tempos foram de adaptação, morando entre muitas dificuldades na região de Niterói, onde Nello trabalhava num restaurante. Com a ajuda de um amigo do tio, Garavini conseguiu mais tarde um emprego no Hotel Glória, um dos mais importantes e afamados da Capital. Antes como mensageiro e ascensorista, como vimos, e depois servindo às mesas. E a família foi se transferindo de início para a Rua Barão de Guaratiba, no Catete, e, mais tarde, para a Praia do Flamengo. Garavini se inscreveu ao Centro Cosmopolita, associação dos empregados em Hotéis, Restaurantes, Cafés, e anexos, e participava de reuniões da agremiação, na qual se destacavam elementos libertários e comunistas, entre os quais, recorda Garavini, aconteciam “discussões acesíssimas”. E acrescenta: “Havia anárquicos cubanos e chilenos muito inteligentes: com linguagem profunda e muita oratória, eles colocavam 9 ALBERTI, Verena. “Literatura e autobiografia: a questão do sujeito na narrativa”. Estudos Históricos, Rio de Janeiro, vol. 4, nº 7, 1991, p. 66-81 10 Ibid., p. 77. 227 em cheque os comunistas, os quais, não querendo, por sectarismo, se renderem aos primeiros, usavam dos meios habituais, isto é, convidar oradores e deputados alheios à organização”11. Evidente a veia polêmica do autor a respeito do comunismo, e a ênfase com que enaltece a contribuição libertária nas discussões e lutas. Sobre o ambiente anarquista carioca que ele encontrou naqueles anos, Garavini apresenta, em suas memórias, os principais expoentes, que com o passar do tempo foi conhecendo pessoalmente: entre os brasileiros, “o prof. José Oiticica, fundador da Liga Anticlerical, Fabio Luz, o escritor, Sebastião Baptista”, além de muitos estrangeiros, portugueses, espanhóis, italianos. Com o passar dos anos, a Liga Anticlerical, associação muito ativa no começo do século XX e refundada, após anos de crise, em 1929, por alguns expoentes da esquerda, entre os quais o próprio Oiticica, se tornou um centro de discussão e educação popular, frequentado também por muitos anarquistas. Nello e a esposa aqui encontraram companheiros de fé e outros antifascistas italianos que participavam das conferências. Com efeito, a colônia italiana, em seu componente antifascista, estava se movimentando de forma significativa naquele ano de 1929, como foi apresentado na segunda e terceira parte do presente trabalho. Associações surgiam ou se reforçavam - embora algumas tradicionais da coletividade italiana emigrada estavam sendo conquistadas por lideranças de cunho fascista – e setores da sociedade brasileira apoiavam suas lutas e simpatizavam com seus ideais. Da participação de Garavini nestas agremiações não há registros, a não ser a frequência das reuniões da Liga Anticlerical. Esta parece ter sido verdadeiramente o local onde ele e a esposa alimentaram e expressaram seu antifascismo nos primeiros anos de sua permanência no Rio de Janeiro, de 1926 ao começo da década de 1930, e onde buscaram manter vivos os princípios do anarquismo. Sua preocupação, evidentemente, havia de ser a de outros libertários do tempo, isto é, privilegiar a divulgação e propaganda do ideário como tarefa principal do militante, antes ainda de um empenho no sindicato ou em organizações politicas de qualquer natureza. Não é possível acompanhar os passos de Garavini, contudo, sem delinear, mesmo que de forma sucinta, o quadro de referência do anarquismo brasileiro daqueles anos. Anos de crise, foi escrito, anos de reformulação e renovação, pode ser acrescentado, 11 GARAVINI, Nello. Testimonianze, op. cit., p.163-164. 228 reformulação e renovação, todavia, incapazes de proporcionar novo alento ao movimento libertário, cujo auge fora alcançado nas décadas anteriores. Não é aqui o lugar para apresentar realizações e conquistas, iniciativas e conjunturas nas quais o anarquismo se destacou, no Brasil em geral e no Rio em particular. Muitos se debruçaram sobre a história das décadas da Primeira República, investigadas pelo viés do surgimento do fenômeno do anarquismo, seu crescimento e seu declínio.12 Presença significativa no movimento sindical e contribuição para o nascimento das primeiras organizações operárias, atuação em greves e protestos no mundo do trabalho, criação de uma imprensa combativa, realização de círculos e grupos recreativos e educativos, fomento a uma arte engajada: são somente algumas das vertentes da presença libertária na sociedade brasileira do período. Uma presença que revelava no seu seio diferentes orientações, sendo, contudo, as duas principais a anarco-comunista e a anarco-individualista, dependendo se objetivo do movimento seria um uso coletivo dos meios de produção ou o fim de qualquer tipo de estrutura social. Ou, ainda, no que dizia respeito à presença no meio sindical, sensibilidades diferentes, que se contrapunham quanto ao significado da mesma - se prejudicial, ou meramente instrumental, como simples ocasião de propaganda dos ideais libertários, ou até necessária para uma afirmação pratica do anarquismo no mundo. De comum, porém, havia a recusa de Estado, governos e partidos, além de igrejas, hierarquias e autoridades. Se muitos entre os anarquistas atuantes no Brasil eram os italianos, também italianas eram algumas das figuras que mais se destacaram, principalmente no âmbito de São Paulo. Os nomes de Gigi Damiani, Oreste Ristori e Alessandro Cerchiai 13 são os mais 12 Alguns trabalhos sobre a temática: TOLEDO, Edilene. “A trajetória anarquista no Brasil na Primeira Republica”. In FERREIRA, Jorge; REIS, Daniel Aarão (org.) A Formaçao das Tradiçoes (1889-1945), vol. 1ºde As Esquerdas no Brasil, Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2007, p. 53-87. -------------. Travessias revolucionárias: ideias e militantes sindicalistas em São Paulo e na Itália (1890-1945). Campinas: Unicamp, 2004. ADDOR, Carlos Augusto. “Anarquismo e movimento operário nas três primeiras décadas da República”. In ADDOR, Carlos Augusto; DEMINICIS, Rafael Borges (org.). História do Anarquismo no Brasil, vol II, Rio de Janeiro: Achiamé, 2009, p. 13-35. SAMIS, Alexandre. “Anarquismo, bolchevismo e crise do sindicalismo revolucionário”. In ADDOR, Carlos Augusto; DEMINICIS, Rafael Borges (org.). História do Anarquismo no Brasil, vol II, op. cit., p. 37-49. RODRIGUES, Marco Aurelio Santana. “Anarquismo e Imprensa Operária do Rio de Janeiro na Primeira República”. In ADDOR, Carlos Augusto; DEMINICIS, Rafael Borges (org.). História do Anarquismo no Brasil, vol II, op. cit., p. 173-184. 13 Sobre Damiani, ver BIONDI, Luigi. “Na Construção de uma Biografia Anarquista: os Últimos Anos de Gigi Damiani no Brasil”. In: DEMINICIS, Rafael Borges; REIS, Daniel Aarão. (org.). Historia do Anarquismo no Brasil. Niterói; Rio de Janeiro: EdUFF; Mauad, 2006, v. 1, p. 251-278. Sobre Ristori, ver ROMANI, Carlo. Oreste Ristori: uma aventura anarquista. São Paulo: Annablume, 2002. Sobre a presença 229 significativos deste ponto de vista. Assim como a referência a Errico Malatesta, histórico expoente do movimento libertário desde as últimas décadas do século XIX e agora octogenário na Itália, vigiado pelo regime de Mussolini, mas sempre uma lenda viva para todos os anarquistas, incluindo Garavini, que por ele nutria uma verdadeira admiração. A crise evidente do anarquismo, tão intensamente presente nas lutas do movimento operário brasileiro, e vivendo no final da década de 1920 uma clara fase de retração, deve ser atribuída, de um lado, à intensa repressão do mesmo pelas autoridades de governo, com destaque pela deportação, na Presidência de Arthur Bernardes, de centenas de expoentes para a colônia militar da Clevelândia do Norte, no Amapá14, e do outro, ao surgimento do Partido Comunista, com a atração exercitada por ele sobre militantes anarquistas e simples trabalhadores. Contribuindo, também, para o fenômeno as menos numerosas levas de imigrantes estrangeiros que aportavam ao Brasil. Assim, na própria Capital Federal - onde, por exemplo, foi possível documentar uma significativa e constante atuação do Centro Galego15, ponto de referencia de imigrantes oriundos daquela região da Espanha, em boa parte anarquistas, somente até 1922, deixando supor seu declínio nos anos sucessivos – a proposta libertaria foi atravessando anos de crise. Neste contexto, o anarquismo como componente do antifascismo italiano se revelava pouco significativo já no final da década de 1920. Garavini, numa carta a Malatesta, de maio de 1932, informando o idoso amigo sobre “as novidades do Brasil”, se queixava da escassa presença de companheiros na Capital da Republica: “Aqui no Rio há pouquíssimos companheiros, enquanto em São Paulo me dizem que são em número razoável, em grande parte italianos emigrados em 1898. Com efeito, lá, os movimentos e a luta de classe são mais sérios e homogêneos”.16 De todo modo, Garavini se inseriu, através da Liga Anticlerical carioca, numa rede de relações com outros libertários e com diversos antifascistas de outras tendências. anarquista no contexto do antifascismo ver BERTONHA, João Fábio. Sob a Sombra de Mussolini. Os italianos de São Paulo e a luta contra o fascismo, 1919-1945. São Paulo: FAPESP / Anablume, 1999, p. 145-148. 14 SAMIS, Alexandre. Clevelandia: anarquismo, sindicalismo e repressão politica no Brasil. São Paulo: Imaginário, 2002. 15 Cf. FERNANDEZ, Eliseo; LOPES, Milton; RAMOS, Renato. “A imigração galega e o anarquismo no Brasil”. In DEMINICIS , Rafael Borges; REIS, Daniel Aarão. (org.). Historia do Anarquismo no Brasil , vol. 1, op. cit., p. 75-93. 16 ACS/CPC, b. 2277, f. 52637 (“Garavini, Nello”). Carta de Nello Garavini para Errico Malatesta, Rio de Janeiro, 18.5.1932. 230 4.5. Os “pouquíssimos companheiros” Mesmo sendo em número tão reduzido, Garavini não deixava de lembrar os nomes de seus companheiros libertários italianos em seu volume de memórias. Se contem algo verdadeiro a afirmação de Tolstói, recordada por Ginzburg, segundo a qual “um fenômeno histórico só pode se tornar compreensível por meio da reconstrução da atividade de todas as pessoas que dele participaram”17, um breve estudo destas figuras pode contribuir a esclarecer melhor o percurso existencial e politico do próprio Nello. Assim ele escreve sobre os companheiros, encontrados naqueles anos: Conhecemos, entre os italianos [...] o libertário Luigi Tosone. Alguns anos depois, conheci outros anarquistas italianos, entre os quais o bom Giuseppe Segatta, Ottorino Peotta, Emilio Spinaci [...] Visitava também meu tio Ansena, que era um anarquista individualista, Bibbi, Agnesini, Maddalena etc... 18 De alguns, registar-se-á somente o nome, por ser muito problemático reconstruir algum dado biográfico, como no caso de Tosone, ou por ter sua militância desenvolvida só de forma ocasional no Rio de Janeiro, como Bibbi.19 Outros permitem colocar mais peças no mosaico de um conjunto de antifascistas de orientação anarquista e/ou comunista, seja da velha como da mais recente emigração, que tiveram contatos mais ou menos intensos com Garavini, e contribuíram para a imagem do antifascismo militante da colônia italiana na Capital Federal. O sobrenome Maddalena se refere na realidade a dois irmãos calabreses, que os arquivos policiais italianos detalham em suas orientações politicas e seus deslocamentos. Antonio,20 o irmão mais velho, expatriara uma primeira vez da Itália ainda em 1894, quando tinha somente 12 anos, voltando para a península oito anos depois e no ano seguinte embarcando novamente para o Brasil. De profissão sapateiro e declarado anarquista pelo prontuário, se estabeleceu em 1906 na Capital Federal até sua morte, acontecida em 1932. Informações, como se pode perceber, bastante escassas, 17 GINZBURG, Carlo. O fio e os rastros. Verdadeiro, falso, fictício. São Paulo: Companhia das Letras, 2007, p.265-266. 18 GARAVINI, Nello. Testimonianze, op. cit., p.165. 19 ACS/ CPC, b. 635, f. 13835 (“Bibbi, Gino”). 20 ACS / CPC, b. 2904, f. 87377 (“Maddalena, Antonio”). 231 como também as relativas ao irmão Arturo,21 nove anos mais novo, e identificado como comunista. Sua saída da Itália realizara-se em 1923, quando Mussolini já governava o país, com chegada no mesmo ano ao Rio, onde trabalhou como autista, não escondendo suas ideias contrárias ao fascismo. Seu nome apareceu várias vezes nas subscrições em favor do jornal La Defesa, entre 1929 e 32. De convicções comunistas era também o mecânico eletricista Giacobbe Giacomo Agnesini,22 de 1899 (o mesmo de Garavini). Natural de Parma, emigrara em 1923 para a cidade francesa de Marselha a fim de se subtrair a retaliações de fascistas, tendo sido anteriormente protagonista de ataque e agressões a alguns deles. Munido de regular passaporte, deixava a Europa em 1925 chegando ao Rio de Janeiro. Um informe consular23 o declarava inscrito na lista antifascista em ocasião das eleições na Societá Italiana di Beneficienza em 1929, mas em seguida aparentemente teria se afastado de uma militância extensiva: os relatórios periódicos da Embaixada de Itália na Capital Federal o apresentavam, com efeito, como tranquilo dono de uma garagem de carros e em seguida de uma pequena loja de conserto de aparelhos radiofônicos, conduzindo vida apartada da comunidade italiana, e até nutrindo, em anos mais recentes, “entusiasmo pelas obras pelo fascismo realizadas, especialmente da façanha na Etiópia”.24 Por isso, as providências contra ele ficaram abrandas, retirando-se o nome dele do boletim dos procurados. Arrependimentos e mudanças de orientação politica não eram impossíveis, como já se documentou anteriormente nesse nosso trabalho, em vários casos devidos a situações econômicas difíceis ou problemas familiares, ou simplesmente à distância da terra natal ou a um desejo de tranquilidade. Difícil, de qualquer forma, imaginar, no caso de Agnesini, que um histórico de luta e oposição ao fascismo se pudesse transformar tão facilmente em seu oposto: o fato do nome dele ser lembrado por Garavini induz a pensar que não se devesse tratar-se de uma conversão sincera, e sim talvez de um disfarce perante os órgãos oficiais do regime. Encontrar-se-á mais para frente documentação ulterior de seus sentimentos antifascistas. 21 ACS / CPC, b. 2904, f. 42675 (“Maddalena, Arturo”). ACS/CPC, b. 24, f. 85 (“Agnesini, Giacobbe Giacomo”). 23 Ibid., informe Embaixada da Itália, Rio de Janeiro, 16.2.1934. 24 Ibid., Informes Embaixada da Itália, Rio de Janeiro, 17.12.1934 e 3.6.1936. 22 232 Os outros três anarquistas citados, cada um de sua forma, acrescentam mais detalhes ao nosso quadro. O milanês Emilio Spinaci,25 nascido em 1882, tinha um currículo bastante movimentado: expatriado clandestinamente para a Suiça, após o advento do fascismo, de lá alcançava Paris e depois Antuérpia, onde embarcou para Montevidéu e em seguida Buenos Aires, para onde já emigrara anteriormente. Em 1930 estava em Santigo do Chile, trabalhando para uma casa italiana de produtos medicinais, e dois anos depois de novo em Montevidéu. Os informes policiais acompanhavam seus deslocamentos muitas vezes com atraso: em 1932 era registrada uma passagem por Barcelona e Genebra, com sucessiva vinda ao Brasil, em agosto de 1933, e retorno à Europa (Barcelona, ou até Itália) no ano seguinte. Estas contínuas transferências não eram comuns em emigrados, mas em certos casos aconteciam: para o anarquista Spinaci, é possível pensar em perseguição policial com consequente fuga, e também em busca de oportunidades de trabalho, a partir de redes de solidariedade internacional (Barcelona, Genebra, Montevidéu, entre outros, eram centros de destacada presença anarquista). Outro amigo dos Garavini, Ottorino Peotta,26 da região de Vicenza, no norte da Itália, e somente um ano mais velho que Nello, teve um percurso diferente. Após varias intervenções policias em sua juventude, devido à sua atividade anarquista, resolveu se dedicar ao trabalho (era técnico na produção de vidro numa fábrica nos arredores de Milão). Em 1932 emigrava para o Brasil com regular passaporte (esposa e filha o seguiriam mais tarde) e regular contrato de trabalho, a fim de transportar para uma firma de Rio de Janeiro um maquinário capaz de estampar decorações sobre vidro, invento de sua autoria. As autoridades fascistas italianas abonavam a conduta de Ottorino, que somente dois anos antes tinha sido ameaçado de confinamento, em virtude até de uma sua carta com a qual ele renegava sua antiga fé. Os informes policiais sobre sua estada na Capital Federal falavam todos de um bom trabalhador, empregado no ramo dos produtos sanitários, sem contatos com a colônia italiana e alheio à politica. O que não correspondia totalmente à verdade, se Nello o considera em seu volume de memórias e o Dicionário Biográfico dos Anarquistas Italianos lhe dedica um verbete,27 assim como 25 ACS/ CPC, b. 4912, f. 44642 (“Spinaci, Emilio”) ACS/ CPC, b. 3845, f. 97632 (“Peotta, Ottorino”). 27 ANTONIOLI, Maurizio; BERTI, Giampietro; FEDELE, Santi; IUSO, Pasquale. Dizionario Biografico degli Anarchici Italiani, vol. 2, Pisa: BFS, 2004, p. 320-321 (verbete “Peotta, Ottorino”). O verbete se conclui com estas palavras: “Permanecendo fiel até o fim de sua vida aos ideais libertários, morre no Rio de Janeiro, mais que octogenário”. Ainda em 1942, em ocasião de algum sucesso militar aliado, Garavini e 26 233 ao irmão dele, Luigi, também anarquista, condenado por alguns atentados contra fascistas na Itália, e procurado por anos pela polícia, entre Milão, Paris e a Bélgica, até encontrar a morte em 1945 no campo de concentração nazista de Mauthausen, na Áustria, onde tinha sido internado no ano anterior.28 O caso de Giuseppe Segatta,29 anarquista da região de Savona, fica um tanto complexo. Nos primeiros meses de 1929, o consulado italiano de Nice assinalava sua presença na cidade francesa30. O anarquista teria saído do litoral italiano a bordo de um veleiro carregado de mármore que aportou em Antibes, de onde teria se deslocado para Nice e enfim para Marselha. Meses depois embarcava para o Brasil, chegando em julho à Bahia, onde fundaria um círculo de Itália Libera, junto com outro antifascista italiano, Trento Tagliaferri, com o qual veio da Europa. Em vários momentos posteriores, Segatta será assinalado em diferentes cidades brasileiras, sempre, ou quase, ligado a Trento e às casas de jogos que este abria - ora em Curitiba, ora em S. Ana do Livramento (RS), ora na própria Bahia. Os dois tiveram passagem para o Rio, também. Sobre Tagliaferri, se falará de forma mais extensa nos capítulos finais desta quarta parte, quando da reconstrução dos anos da guerra. Aqui cabe o registro desta parceria com o anarquista, nomeado por Garavini com uma expressão de simpatia (“o bom Giuseppe Segatta”), mas que mais tarde se desentenderá com Nello e outros, a respeito da atitude a ser mantida pelos antifascistas italianos no Rio na iminência do fim do fascismo. 4.6. No Hotel Glória A carteirinha do Centro Cosmopolita registrou a inscrição de Nello com a data de 1º de maio de 1927, matrícula n. 239131. Dos primeiros meses de 1927, então, até o ano de 1933, ele trabalhou como funcionário do Hotel Glória. Recorda em suas memórias: outros enviarão, como antifascistas italianos, um telegrama de felicitações ao embaixador britânico no Rio: o nome de Peotta estava entre os que assinavam. 28 Ibid., p.319-320 (verbete “Peotta, Luigi”). 29 ACS/ CPC, b. 4730, f. 4048 (“Segatta, Giuseppe”). 30 Ibid., informe consulado italiano de Nice, 30.4.1929. 31 Biblioteca Libertaria “Armando Borghi” (BLAB), Castel Bolognese, Fundo Nello Garavini. 234 No Hotel [...] éramos cerca de trezentos funcionários, em grande maioria portugueses, espanhóis, italianos, alemães, e, claramente, um terço de brasileiros, como prescrevia a lei. Tinha muita simpatia para portugueses, espanhóis e brasileiros. Os primeiros, honestos, sinceros e ótimos trabalhadores; os segundos, calculadores, revolucionários e ricos de espirito libertário; os brasileiros bondosos, gentis, sensíveis e antifascistas.32 Subindo alguns degraus profissionais, Nello foi se tornando ajudante de maître. Nesta função, sendo o estabelecimento um dos endereços mais procurados pela alta sociedade brasileira e internacional, Garavini viu transitar por seus salões vários personagens do mundo artístico, político e cultural. O seu interessante relato da revolução de 1930, dos sentimentos que inspirara no circulo dos antifascistas italianos e de sua passagem pelo Hotel, merece ser transcrito quase integralmente: A revolução triunfou, quase sem derramamento de sangue, e nós antifascistas ficamos satisfeitos, pois temíamos a linha fascista do presidente Washington. [...] Após a rendição do governo, ocorreram grandes manifestações de júbilo no Rio de Janeiro. Sabíamos tratar-se de uma das costumeiras revoluções sul-americanas, ao estilo ‘sai daí que eu vou entrar’, mas nos entusiasmamos da mesma forma e tomamos parte dela, unindo nossas bandeiras vermelhas e negras às centenas de vermelhas que a multidão desfraldava. [...] Emma chegou a rasgar todas as roupas vermelhas e pretas para fazer bandeiras e se unir às outras mulheres nos milhares de carros que percorriam a cidade. Na realidade, aquela foi a revolução que permitiu a instauração da feroz ditadura de Getúlio Vargas, que resistiu por quinze anos. Poucos dias depois, o Hotel Gloria estava repleto de “vermelhos” revolucionários gaúchos [...] em seguida chegaram os nortistas guiados pelo general Távora [...] Era uma corrida para ver quem se mostrasse mais popular, e nós garçons, naqueles dias, acabamos íntimos desses futuros grandes... Havia Getúlio Vargas e sua charmosa esposa, Osvaldo Aranha e o irmão Luiz, Flores da Cunha, Lindolfo Collor, João Alberto [...] o capitão Cascardo, amigo dos antifascistas italianos, Pedro Ernesto, e dezenas de outros. Todos, indistintamente, queriam mostrar que eram de esquerda.33 Nomes, personagens recordados a distância de anos, assim como o entusiasmo dos antifascistas italianos. Com efeito, como foi mencionado nas outras partes do trabalho, a revolução de 30, com seus proclamas de luta às oligarquias, foi vista por eles com simpatia, quase um antecipação de uma futura, aguardada derrocada do fascismo na Itália. Tanto Scarrone, em seus opúsculos, como Battistelli em nome da Lidu, ou nas colunas de La Difesa, se colocaram nesta linha de pensamento, a mesma aqui exposta por Garavini, que, todavia, com olhar retrospectivo, pode-se permitir aqui um juízo crítico sobre o movimento revolucionário. 32 33 GARAVINI, Nello. Testimonianze, op. cit., p. 162. Ibid., p.166-167. 235 Sobre sua atuação profissional e sua conduta politica em seu período de funcionário do Hotel, há informes nos arquivos policiais italianos, redigidos a partir de relatórios da Embaixada do Rio. Em julho de 1929, estes relatórios afirmavam a respeito de Nello: Desde sua chegada, não se ocupa com a politica [...] a esposa, excelente professora primária e ótima pessoa, conseguiu entrar na Escola Italiana, onde se destaca por zelo e patriotismo [...] Garavini, [...] convocado, declarou ser ‘não anarquista, e sim republicano federalista’ [...] Evidentemente é mais um teórico que outras coisas, e não aparenta ser um elemento perigoso.34 Já em novembro do ano seguinte, a Embaixada tinha que reconhecer que Garavini, “embora seja de caráter taciturno e reservado, resultaria de sentimentos não favoráveis ao regime, a ponto de ter-se oposto a que a orquestra do Hotel tocasse o hino fascista”.35 É possível que uma atitude como essa Garavini tenha mantido também na ocasião especifica da chegada de Italo Balbo, o alto expoente do governo fascista protagonista da travessia aérea do Atlântico em 1931, e hospedado com sua comitiva no próprio Hotel Gloria. Na circunstância desta presença no Rio de Janeiro, houve, como vimos falando de Battistelli, mobilização do pequeno grupo dos antifascistas, incluindo a esposa de Nello, com distribuição de panfletos nas ruas da cidade. 36 Evidentemente, mesmo se comportando sempre de forma discreta, para garantir seu emprego, o anarquista não escondia sua orientação politica. 4.7. Uma rede de relações internacionais No âmbito da comunidade italiana do Rio de Janeiro, os registros de presença ativa de Nello como antifascista, nesses primeiros anos, não são muito numerosos. Desconhecese uma eventual sua participação nos eventos ligados ao “assalto fascista” à Societá Italiana di Beneficienza. O que as fontes contribuem para nos restituir é a imagem de Garavini anarquista, desejoso de alimentar essa sua pertença politica, através de contatos e de instrumentos. Quanto a laços com o mais amplo mundo dos antifascistas da Capital Federal, nas suas memórias, Garavini lembra os nomes de alguns deles, também frequentadores da Liga Anticlerical: “Pasquale Petraccone, Tamagni, Peruso, Anaclerio, Esposito, Garritano, o socialista Scala, Adriano Zuccari, Libero Battistelli, o 34 ACS / CPC, b. 2277, f. 52637 (“Garavini, Nello”). Informe Embaixada da Itália no Rio de Janeiro, 6.7.1929. 35 Ibid., Informe Embaixada da Itália no Rio de Janeiro, 5.11.1930. 36 Cf. GARAVINI, Nello. Testimonianze, op. cit., p. 184. 236 prof. Itria”. Nas partes anteriores do trabalho, já foram apresentados alguns dados a respeito da maioria deles, com o objetivo de compor um quadro mais completo de um ambiente e suas andanças. De alguns, ainda se falará mais para frente, para cotejar a conjuntura do período bélico. Quanto a Battistelli, Garavini o recorda como “o meu amigo mais querido”, e a ele dedicará várias páginas de suas memórias. A respeito de La Difesa (ou L’Italia), mesmo mencionada em seu volume como “o melhor jornal antifascista brasileiro”, não se tem registro de uma sua participação, nem contribuição, fora um único caso, em abril de 1932, quando houve uma subscrição coletiva de vários anarquistas (além dele, Luigi Tosone, Arturo Maddalena e o brasileiro Sebastiao Baptista, entre outros).37 Os periódicos que Garavini recebia regularmente, como dizia em suas memórias, eram publicações anarquistas, como Studi Sociali (de Montevidéu), Il Risveglio (da Suiça), L’Adunata dei Refrattari e Il Martello (ambos de Nova Iorque), além, mais tarde, de Giustizia e Libertá e a revista comunista Stato Operaio. É evidente uma rede, à qual Garavini se apoiava, feita sobretudo de contatos com as comunidades anarquistas de emigrados. Entre essas relações, feitas também de troca de correspondências, a mais significativa e importante foi com Luigi Fabbri, expoente do anarquismo italiano expulso da França e da Bélgica e refugiado em Montevidéu.38 Studi Sociali era o periódico que Fabbri editava na capital uruguaia, com certo sacrifício, devido à escassez de recursos. Garavini assinava o periódico e regularmente contribuía com doações. Ao mesmo tempo, entre ele e Fabbri, um dos mais respeitados expoentes do anarquismo italiano, nascia uma amizade através de cartas trocadas durante anos, de 1930 até a morte de Luigi, em 1935. Nenhum arquivo pôde conservar as cartas de Nello para Fabbri, porque era costume do diretor de Studi Sociali destruir toda correspondência que recebia, após ter respondido a ela. As cartas dele para Garavini, pelo contrário, foram conservadas pelo destinatário 39, e sua leitura permite lançar certa luz sobre o pensamento de Nello, seus dilemas, suas preocupações. Um primeiro elemento que transparece é a constante preocupação de Garavini com os amigos anarquistas e o futuro do movimento, sobretudo com Malatesta, doente em Roma. O velho protagonista de décadas de lutas e iniciativas em nome do anarquismo 37 Cf. L’Italia ( La Difesa), ano VIII, n. 453, 10.4.1932, p.4. Cf. nota 78 da primeira parte. 39 BLAB, Fundo Nello Garavini. 38 237 internacional acabou falecendo em meados de 1932, e Garavini, junto com muitos outros companheiros espalhados pelo mundo, se oferecia para ajudar a viúva e a filha em sua difícil sobrevivência. A mesma preocupação Nello manifestava com o próprio Fabbri, doente e em difíceis condições econômicas, oferecendo-lhe constante ajuda financeira. Cartas de finais de 1931 fazem supor que Garavini levou até em consideração a possibilidade de se mudar com a família para Montevidéu: talvez alguma dificuldade no Rio de Janeiro, ou simplesmente, estando já em terra de exilio, a perspectiva de ficar mais próximo de quem, como Fabbri, estava se mostrando um amigo e um mestre para ele, e eventualmente poder desenvolver uma colaboração na difusão dos ideais libertários.40 Pelas respostas de Luigi, sabe-se que Garavini o interrogava sobre assuntos da atualidade, como os últimos acontecimentos na Espanha, ou sobre publicações do mundo anarquista, pedindo-lhe um parecer ou uma orientação. A importância que Luigi ia assumindo, como um ponto de referência para Nello, transparece a respeito de algumas outras questões que deviam afligir este último, e sobre as quais ele pedia conselho ao amigo mais velho e experiente. Por exemplo, a eventual adesão à Lidu, a respeito de que Fabbri convidava Nello a examinar bem a coisa, pois o organismo tinha um programa diferente do libertário, e uma adesão teria o significado de apoiar ou aceitar a própria Concentrazione, à qual os anarquistas, na França como no resto do mundo da emigração, se mantiveram sempre contrários.41 Ou a atitude diante dos comunistas, em relação aos quais, Garavini parecia mais tolerante e aberto, disponível a um diálogo; Fabbri, pelo contrário, à luz de sua experiência pessoal, se recusava a isso, e assim escrevia a Nello, a respeito: Para entrar num acordo, é preciso os dois querer. Mas como você pode entrar num acordo com quem não quer acordo nenhum, e sim somente submissão cega a seus comandos? Como entrar num acordo com quem hoje insulta e difama e ameaça, e lhe diz abertamente que logo que chegar a uma posição de força vai fuzilá-lo? 42 40 Cf. BLAB, Fundo Nello Garavini. Carta de Luigi Fabbri para Nello Garavini, Montevidéu, 8.10.1931. A resposta de Fabbri não estimulava Garavini no seu projeto, alertando-o sobre os baixos salários uruguaios e a crise econômica, e convidando-o a refletir bem, antes de deixar o emprego e o resto, mesmo manifestando alegria pela eventualidade de ter perto dele um companheiro tão dedicado. O plano de transferência não se realizou, mas não há como descobrir a razão principal. 41 Cf. TOMBACCINI, Simonetta. Storia dei fuorusciti italiani in Francia. Milano: Mursia, 1988, p. 87-92. 42 BLAB, Fundo Nello Garavini. Carta de Luigi Fabbri para Nello Garavini, Montevidéu, 30.7.1932. 238 Apareciam aqui questionamentos e escolhas que agitavam o debate do antifascismo italiano e não, particularmente diante do movimento comunista internacional, que estava se reorganizando e em breve reformularia palavras de ordem e linhas de ação. Mas por baixo, havia a constante polêmica entre libertários e “autoritários”, para usar um termo que o próprio Garavini empregara em suas memórias, quando relembrou as figuras de jovens brasileiros, frequentadores da Liga Anticlerical, que “se aproximavam do comunismo, indecisos entre as nossas fileiras e as fileiras autoritárias, e mais tarde se tornariam políticos, entre os quais Carlos Lacerda e Francisco Mangabeira, além de uma nossa querida amiga que nunca faltava nas reuniões, a jovem poetisa de orientação socialista Cecilia Meirelles”.43 Em abril de 1934, Fabbri desaconselhava Nello de voltar para a Itália, mesmo que fosse para ficar mais perto da família após a morte do pai: Aqueles que no exterior, de uma forma ou da outra, chamaram a atenção dos consulados locais como adversários, voltando, enfrentam problemas sérios. Podem pensar na volta somente os que não estiverem demasiadamente expostos como propagandistas, e somente bancando os “mortos” durante muito tempo antes. E mesmo assim... há pouca segurança!44 Com efeito, no ano anterior, morrera o pai de Nello, e o anarquista cogitou voltar para a Itália, logo desaconselhado pelos amigos. Como se verá, naquela época, ele já deixara o emprego no Hotel Gloria e estava trabalhando no setor comercial, com Petraccone, prestes a se dedicar à sua futura e mais significativa empreitada, a livraria e editora. Nas últimas cartas de Fabbri, avaliações positivas do trabalho editorial de Nello (mesmo com crítica a respeito da tradução em português do titulo do livro “Anarchia” de Malatesta, que acabou ficando “Comunismo Libertário”: Fabbri dizia que o autor não teria apreciado a formulação, seja pelo adjetivo, do qual nunca gostara, seja pela palavra comunismo, nunca nomeado por Malatesta na obra45), e troca de endereços de escritores de esquerda, como Romain Rolland, futuros possíveis autores a serem editados por Garavini. 43 GARAVINI, Nello. Testimonianze, op. cit., p. 165. BLAB, Fundo Nello Garavini. Carta de Luigi Fabbri para Nello Garavini, Montevidéu, 26.4.1934 45 Cf. BLAB, Fundo Nello Garavini. Carta de Luigi Fabbri para Nello Garavini, Montevidéu, 24.4.1935. 44 239 A morte de Fabbri, em junho de 1935, privava Garavini de um amigo e de uma referência clara no âmbito de sua fé anarquista. Continuava a amizade com Luce, 46 a filha de Luigi, que se encarregou por anos de continuar a publicação de Studi Sociali, onde seguirá aparecendo, com bastante frequência, o nome de Nello como subscritor da revista. Para a publicação anarquista, inclusive, Nello conseguiu conquistar leitores e até assinantes, sendo um deles o próprio amigo Battistelli, republicano e membro de Giustizia e Libertá, mas, como foi dito, com simpatias também para o anarquismo. 4.8. Emma A esposa de Nello compartilhava ideais e empenho politico do marido, desde os anos italianos. Ao lado dele em Milão, e no exilio carioca, manifestava em seus atos e palavras franca oposição ao fascismo e dedicação para a causa do anarquismo. Já foi dito a respeito do entusiasmo com o qual fraternizou com a população que saudava Getulio em sua chegada à cidade, quando do movimento revolucionário de 1930. E também da coragem em difundir, em janeiro do ano seguinte, materiais de propaganda contra o Ministro da Aeronáutica e ele mesmo aviador, Ítalo Balbo, chegado ao Rio como protagonistas da travessia do Atlântico, e que em anos anteriores tinha sido responsável por crimes realizados pela milícia fascista. Nesta ação de denúncia pública, Emma estava ao lado de Enrichetta, a esposa de Battistelli, outra figura feminina que apoiava o marido em seu empenho antifascista. A historiografia do antifascismo por muito tempo concentrada exclusivamente na dimensão politica e na luta dos protagonistas principais, leia-se lideres ou destacados expoentes de partidos ou grupos, deixou de explorar temas e aspectos também importantes para a análise do fenômeno: a dimensão do cotidiano, o dia-a-dia de opositores e inimigos do fascismo no exilio e na própria península, os âmbitos de apoio e sustento para que o empenho politico ou público fosse significativo e eficaz. Nisso, pesquisas mais recentes vieram preencher lacunas, mas sobretudo abrir percursos e estimular questionamentos. De como, investigando o antifascismo, seja preciso também falar de formas de resistência e luta à ditadura de Mussolini, realizadas não debaixo de 46 Sobre Luce Fabbri, sua figura, sua trajetória politica e cultural, na fidelidade aos princípios do anarquismo, ver o ótimo estudo de RAGO, Margareth. Entre a História e a Liberdade. Luce Fabbri e o anarquismo contemporâneo. São Paulo: Unesp, 2001. 240 símbolos de partido ou enquadradas em organizações, e sim espontâneas, individuais, mais sinais de rebeldia, às vezes, do que outra coisa, ligadas ao cotidiano da existência, já se falou na primeira parte deste trabalho. E de como essas formas de luta ao regime, ou de oposição a ele, passem hoje a ser estudadas como caso de “antifascismo existencial”. No âmbito desta renovação da historiografia do antifascismo, hão de ser colocadas as pesquisas que se ocupam da dimensão feminina, da contribuição das mulheres ao fenômeno da oposição ao regime, vistas em seu dúplice aspecto de companheiras, esposas ou mães, mais ligadas à dimensão familiar e domestica, e de militantes de um ou de outras das denominações em jogo. Assim, as contribuições de De Luna, de Gabrielli e de Signori sobre o antifascismo italiano e as mulheres revestem um particular significado.47 Os estudos de Bignami sobre anarquistas italianas emigradas para a América Latina48, e as pesquisas de Margareth Rago49 também sobre figuras de mulheres anarquistas, brasileiras e não, oferecem um quadro de referências importante. É possível, portanto, a partir desse conjunto de considerações, realizar a leitura do caminho de Emma Neri Garavini em seus anos brasileiros como mulher, anarquista e antifascista.50 Assumido o compromisso de participar do sustento familiar na cidade do 47 Ver DE LUNA, Giovanni. Donne in oggetto: l’antifascismo nella societá italiana. 1922-1939, Torino: Bollati Boringhieri, 1995. GABRIELLI, Patrizia. Col freddo nel cuore: uomini e donne nell’emigrazione antifascista, Roma: Donzelli, 2004. ----------------.”Antifascisti e antifasciste all’estero”. In ALBARANI, Giuliano; OSTI GUERRAZZI, Amedeo; TAURASI, Giovanni (org.). Sotto il Regime: problemi, metodi e strumenti per lo studio dell’antifascismo. Milano: Unicopli, 2006, p. 100-110. SIGNORI, Elisa (org.). Frammenti di vita e d’esilio. Giulia Bondanini: una scelta antifascista (1926-1955). Zurich: L’Avvenire dei Lavoratori, 2006. 48 BIGNAMI, Elena. “Os circuitos do antifascismo anarquista feminino. Italia e Brasil” In TUCCI CARNEIRO, Maria Luiza; CROCI, Federico (org.). Tempo de Fascismos: Ideologia, Intolerância, Imaginário. S Paulo: EDUSP; Imprensa Oficial; Arquivo Público do Estado de São Paulo, 2010, p. 275-289. --------------“Emigrazione femminile in Brasile. Tra lavoro e anarchia”. In http://www.storicamente.org/07_dossier/emigrazione-femminile-in-brasile_print.htm 49 RAGO, Margareth. Entre a história e a liberdade. Luce Fabbri e o anarquismo contemporâneo, op. cit.; ------------------"Ética, anarquia e revolução em Maria Lacerda de Moura". In FERREIRA, Jorge; REIS, Daniel Aarão (org.) A Formação das Tradições (1889-1945), vol. 1ºde As Esquerdas no Brasil, Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2007, p. 273-293. 50 Emma, como muitas mulheres antifascistas, não possui uma pasta no fichário da policia italiana. Elisa Signori explica estas lacunas do arquivamento policial: “Acostumados a registrar como crimes as manifestações de dissenso politico ligadas a uma precisa militância partidária, ou [...] a gestos, intervenções, práticas de qualquer forma colocadas numa esfera pública [...] os funcionários da polícia fascista são pouco perspicazes em perceber as particulares modalidades do empenho feminino antifascista, frequentemente exercido em uma dimensão privada e cotidiana, e concretizado em papeis, somente na aparência subalternos, de atividades assistenciais e organizativas, de ligação e mediação. Assim o sistema fascista de controle policial, enquanto, de um lado, superestima o fenômeno do dissenso em seu conjunto [...], por outro lado subestima os casos do antifascismo feminino, sendo em 241 Rio de Janeiro, e tendo inclusive uma filha para crescer, Emma acompanhava o percurso do marido, seja com pequenos trabalhos de bordados, seja como arrumadeira no Hotel Gloria.51 Em seguida, tendo obtido na Itália o diploma do curso normal, foi contratada, desde setembro de 1926, pela Societá Nazionale Dante Alighieri, para lecionar em duas de suas dependências, as escolas “Luigi Mercatelli” e a “Principe di Piemonte”. Excelente professora, foi dito dela, até pelos próprios órgãos diplomáticos italianos, mas a escola italiana era mais um âmbito onde aplicar a “fascistização”. Se, nos primeiros anos, quando ainda o ensino da instituição garantia espaços de liberdade, Emma conseguiu conciliar zelo profissional e sentimentos antifascistas, com o ano de 1931 as coisas começaram a mudar. Ao se recusar comparecer a um evento comemorativo do fascismo, Emma foi suspensa do ensino por quinze dias, e, poucos meses depois, quando da chegada ao Rio de Janeiro do secretario dos Fasci all’Estero Parini, diante de nova recusa de participar dos festejos em sua homenagem, houve definitiva expulsão da escola: as razões nunca foram comunicadas oficialmente, mas uma correspondência da Sociedade mantedora da escola para o cônsul italiano acusava abertamente a professora de nutrir “sentimentos de aversão ao regime”.52 Numa carta ao pai, temporariamente a Paris, Emma, sabendo que não havia censura de correspondências em solo francês, narrava em junho de 1931 a respeito de sua primeira punição, mas já deixando entrever a ameaça de futuras intervenções da escola, o que aconteceria em breve. O relato de Emma merece ser conhecido em seus pontos principais: parte invisível e/ou marginal para os olhos da polícia justamente pelos estereótipos seletivos que a guiam [...] Pelo contrário, o tecido do cotidiano [...] é construído ao redor de figuras de esposas, filhas, companheiras, colaboradoras cuja pessoal contribuição de paixão e ideias, de trabalho e organização acaba silenciosamente resumido e incluído na atividade de seus pais, maridos, irmãos, amigos e companheiros”. SIGNORI, Elisa (org.). Frammenti di vita e d’esilio. Giulia Bondanini: una scelta antifascista (1926-1955), op. cit., p. 9-11. 51 Numa carta ao pai, dois anos depois de sua chegada, Emma falava dos momentos iniciais de sua estada no Brasil: “Os primeiros tempos passados aqui no Rio, por uma serie de circunstancias imprevistas, não foram dos melhores. Com “primeiros tempos” [grifo da autora], entendo dizer no máximo dois meses, depois dos quais eu e Nello entendemos quanto valha ter princípios sadios em nossa consciência, e fomos corajosamente empenhando-nos numa luta intensa e tenaz da qual saímos logo vencedores. Em nosso afeto mutuo, no amor pra nossa filha, estava a recompensa do esforço que nos tornou humanos e nos fez experimentar a mais bonita satisfação: a de bastar para nós mesmos e ver coroado com uma razoável economia nosso trabalho”. BLAB, Fundo Emma Neri, Carta de Emma Neri para seu pai Eligio Neri, Rio de Janeiro, 28.7.1928. 52 BLAB, Fundo Emma Neri, Telespresso n. 1983/450 do Consulado italiano no Rio de Janeiro, 30.8.1946, citando carta de 24.6.1931 do Comitê da Societá Dante Alighieri para o cônsul italiano. 242 Meu amadíssimo pai, [...] como você sabe, sou professora na escola italiana, onde, de forma indireta, faz-se política. Apesar disso tudo, não me dobrei nem uma vez, nem estendo o braço para a saudação fascista. Há cinco anos sou professora aqui, e vieram cônsules e embaixadores que trocavam com outros professores e alunos a famosa saudação... mas eu não [...] Dias atrás me recusei perante a turma de aceitar o convite a assistir a um filme cinematográfico de S.E. Balbo, com a travessia aérea. A imposição do diretor era estranha e respondi que aquilo não fazia parte dos meus deveres, acrescentando que ele podia se envergonhar, ele, um vira-casaca, que tinha um irmão no exilio em Buenos Aires devido ao fascismo. O diretor relatou tudo e fui chamada pelo conselho. Apresentei-me diante deste Tribunal Especial. Os conselheiros são pessoas que me conhecem na escola como uma boa professora, o presidente é um tímido covarde [...]53 Após relatar o interrogatório do conselho e suas respostas, que lhe valeram a suspensão temporária, Emma concluía para o pai: “Saiba que nunca experimentei em minha vida satisfação maior do que esta. Eles sabem que estamos no Brasil, e que dentro da escola italiana não poderiam ensinar tanto fascismo”54. A atitude firme de Emma e a coerência com suas ideias trouxeram consequências práticas desagradáveis para ela, assim como para outros professores antifascistas de escolas italianas no exterior que sofreram o mesmo tipo de retaliação por parte das diretorias locais. Nello, em suas memórias, anota a respeito: Nós, de acordo com Battistelli, Scala e Petraccone, solicitamos a imprensa local a levantar a voz contra o fascismo e suas intromissões de natureza politica em terra brasileira, ensinando sua doutrina nas escolas. Todo dia os jornais saiam com títulos garrafais e esta campanha marcou uma vitória em nosso favor e dos antifascistas do Rio de Janeiro.55 Com efeito, em varias ocasiões, alguns dos periódicos brasileiros se posicionaram contra as pretensões fascistas de determinar a tal ponto a vida dos italianos da colônia que isso acabava se configurando uma indevida ingerência na vida nacional, mas a conclusão de Nello acima há de ser matizada: oportunidade para afirmar uma presença, para testemunhar uma posição diferente, sim, vitória do antifascismo, talvez não. Emma continuará por certo tempo ainda como professora, dando aulas particulares, e depois ajudará o marido na empreitada da livraria e editora. Encerrando este capitulo sobre sua figura, a primeira parte da carta ao pai acima mencionada constitui fonte valiosa, não só como documento de uma passagem importante da existência de Emma e Nello, mas também como registro raro de uma comunicação realizada por pessoas de 53 Cf. BLAB, Fundo Emma Neri, Carta de Emma Neri para seu pai Eligio Neri, Rio de Janeiro, 23.6.1931. Ibidem. 55 GARAVINI, Nello. Testimonianze, op. cit., p. 184. 54 243 declarados sentimentos antifascistas com seus parentes na Itália. O fato da carta não ter que passar pelo crivo da censura fascista, sendo endereçada a Paris, local de uma viagem do pai, possibilitava a Emma uma sinceridade e clareza que outras correspondências, também dela, ou de Nello, para os parentes na Itália não puderam apresentar. Assim escrevia: Como vai querido pai? Na verdade, suas cartas [...] nunca puderam darme noticias de suas precisas condições... Morreram todos os generosos, os audaciosos, os verdadeiros? Nós acompanhamos daqui com o maior interesse e com intensa espera o desenrolar dos acontecimentos! Temos noticias através da França, com o jornal La Libertá, da Argentina, de Nova Iorque, de todos os países onde existem ainda italianos livres como nós, incapazes de aceitar, como nós, a cega e perversa maldade de um partido de delinquentes. Partimos há cinco anos, mas não esquecemos nem um momento do que vocês tiveram que sofrer, amordaçados, atordoados pelo habito diário da obediência que não encontra consentimento na consciência... aturdidos (não é verdade?) e talvez desanimados...Isso queria saber exatamente, isto desejo que você me escreva...As pessoas simples, vocês todos, o que fazem, o que pensam..? Sabemos de tudo... das violências...das bárbaras sentenças, do confinamento, tudo o que de mais feroz um governo pode usar para se sustentar, ...e sentimos em nós a indignação, o ódio, o desejo do fim. [...] Quero que você me escreva e me diga sem medo (aqui não há censura) tudo o que você sabe da situação. Quando você voltar para a Itália, você poderá mandar escrever a maquina algumas cartas de informação e envia-las para o Rio sem assina-las. Mesmo que a censura consiga intercepta-las, antes de sair de Genova, ninguém poderia desconfiar de você, sendo escritas a maquina.56 O ardor antifascista de Emma Neri a lançava, então, numa proposta de aproveitamento de espaços de comunicação que ela acreditava serem invioláveis. Evidentemente desconhecia o que pesquisadores informam, isto é, que em 1927 e 1928, a Polícia Política italiana já possuía uma coleção de observações acerca de imigrantes italianos no Brasil e seus descendentes, principalmente em São Paulo e no Rio de Janeiro. Procuravam-se as ligações antifascistas. Vale notar que Roma possuía a copia da correspondência enviada do Brasil à Itália, via Paris, o que indica uma interceptação dos correios na França ou no Brasil.57 56 BLAB, Fundo Emma Neri, Carta de Emma Neri para seu pai Eligio Neri, op. cit. CANCELLI, Elizabeth. “Ação e repressão policial num circuito integrado internacionalmente”. In PANDOLFI, Dulce (org.). Repensando o Estado Novo. Rio de Janeiro: Fundação Getulio Vargas, 1999, p. 309-326. A citação está na p. 317. 57 244 4.9. A Minha Livraria Por razoes de saúde, Garavini deixava em 1933 seu emprego no Hotel Glória, resolvendo se dedicar ao comércio, para o qual sentia mais disposição. A amizade de Pasquale Petraccone, antifascista que de São Paulo tinha-se mudado em 1932 para a Capital Federal, onde abrira uma loja de papelaria e tintas, e também uma editora, a Athena, facilitou as coisas. Garavini trabalhou certo tempo com Petraccone, até chegar para ele uma proposta dos irmãos Pongetti, amigos de Nello e Emma. Donos de uma editora e uma tipografia, para a qual possivelmente Nello vendia tinta por conta de Petraccone, os Pongetti - contará Nello em suas memórias - “me sugeriram a compra de uma livraria no centro da cidade: Praça Tiradentes, cercada por teatros e apinhadíssima de pessoas de manha à noite”. Nascia assim a Minha Livraria, “pequena, artística”, que “já fora de propriedade do escritor Benjamin Costallat”. Livraria e também editora. Com efeito, este, “diletante literário bem sucedido”, segundo Laurence Hallewell58, conseguira publicar e vender com notável sucesso alguns seus romances no circuito comercial carioca, em sociedade com um amigo, Miccolis. O empreendimento dos dois adotara esse nome, Minha Livraria Editora, e chegou a realizar algumas outras publicações na década de 20, mas em 1934 a firma foi adquirida por Garavini, justamente com a colaboração dos Pongetti. Os irmãos, de origem italiana, eram proprietários de uma simples tipografia, mas entraram em meados de 30 no ramo editorial, como informa Hallewell. O setor estava em franca expansão, sobretudo na Capital Federal. Fora um crescimento impulsionado por alguns fatores. Com efeito, ainda em 1920 a situação era diferente, segundo Hallewell: Mesmo que, em 1920, o Rio de Janeiro fosse quase duas vezes maior do que São Paulo, ainda assim não se igualava à capital paulista na atividade livreira [...] O Rio contava com apenas cerca de dez livrarias de alguma importância no centro da cidade, ao passo que São Paulo já possuía o dobro desse número em verdadeiras editoras.59 As “revoluções” de 1930 e 1932 trouxeram novo interesse para os problemas do país na população letrada brasileira, e contribuíram para ampliar o público de leitores potenciais. A depressão econômica também influenciou o aumento do número de títulos 58 Muitas informações a respeito do mercado editorial brasileiro e carioca da década de 1930 são retiradas de HALLEWELL, Laurence. O Livro no Brasil: sua história. 2ª ed. São Paulo: Edusp, 2005, particularmente do capitulo 16, dedicado a José Olympio. 59 HALLEWELL, Laurence. O Livro no Brasil: sua história, op. cit., p. 417. 245 publicados e das tiragens: o preço proibitivo das edições importadas, até então predominantes no mercado, estimulou a produção de livros no Brasil. Esse aumento dizia respeito a São Paulo, mas também ao Rio, cujo mercado crescia de forma marcante pela aumentada importância da Capital Federal no cenário nacional: centro de um poder que se dizia novo, acima de velhas oligarquias regionais, propugnador de reformas ministeriais e organizativas importantes, e, sobretudo, desejoso de “recuperar sua posição de preeminência literária e intelectual, que parecia ter perdido para a capital do café, no inicio do movimento modernista, dez anos antes”60. A mudança de São Paulo para o Rio de uma casa editorial em plena afirmação como a José Olympio, com seu autores nacionais que fixaram quase todos morada na cidade, ajudou muito neste sentido. A loja, moderna, estilo art déco, inaugurada em julho de 1934 na Rua do Ouvidor, arrebanhava um publico de leitores e autores, e suas edições foram crescendo de ano em ano, tornando José Olympio “o maior editor nacional no campo de edições literárias e livros não didáticos”.61 É neste panorama editorial, dominado por José Olympio, mas com o surgimento de outras casas, que Garavini começava sua nova empreitada.62 Provavelmente foi uma sociedade em conjunto com os Pongetti, no começo, e em seguida uma atividade do próprio Nello. A livraria era localizada à Rua D. Pedro I, número 2, próxima da esquina com a Praça Tiradentes, onde surgia o Teatro Carlos Gomes, de propriedade da família Segreto. Pode-se dizer aqui que os Segreto, emigrantes italianos, tinham-se destacado desde fins do século XIX no ramo das diversões na cidade do Rio, adquirindo e gerindo com o tempo varias casas de espetáculos e salas de cinemas. Entre eles e os Garavini deve ter-se estabelecido algum laço de amizade, ou simplesmente de natureza comercial, mediado pela origem comum. Com efeito, além do teatro, vários imóveis da área pertenciam aos Segreto, inclusive os próprios locais da livraria e o prédio ao lado, à Rua D. Pedro I, 4, no quinto andar do qual os Garavini fixaram sua nova residência. No começo a Minha Livraria era somente uma livraria. Assim lembra Garavini: 60 Ibidem, p. 442. Ibidem, p. 443. Os números fornecidos por Hallewell impressionam: em 1933, a editora lançara oito livros. Em 1934, foram 32, e em 1935, “o primeiro ano completo que passou na capital do país”, foram 59. No ano seguinte, o melhor do entreguerras, a casa alcançou o patamar de 69 novas edições. 62 A abertura da firma é registrada no Diário Oficial, Ministério do Trabalho, Indústria e Comercio, 21.12.1934, p. 25512, desta forma: “Firmas individuais [...] De Nello Garavini, para o commercio de livros, à rua Pedro I, n. 2, com capital de 10:000$000”. 61 246 Para falar dela, dos personagens que a frequentavam e de suas histórias, seriam necessários vários volumes. Artistas, atores e atrizes, escritores, editores, poetas, políticos, religiosos, maníacos, geógrafos, militares, estudantes e policiais, todos, sem distinção, falavam, discutiam, propunham e declamavam poesias ou buscavam editores para a publicação de seus textos.63 E acrescenta, sublinhando como aqueles anos de 1934-35, com sua intensa movimentação politica na qual as organizações de esquerda estavam bastante ativas, favoreciam o comercio de certo tipo de publicações: “Nos primeiros tempos ficamos satisfeitos das vendas e dos clientes que nos frequentavam. Vendia-se uma grande quantidade de livros comunistas que tratavam do assunto ‘Russia’...até as maiores livrarias da cidade venderiam muito pouco se não comercializassem aqueles livros”.64 A certa altura, Garavini resolveu entrar no mercado editorial, começando a publicar manuais de cultura social. Era uma forma, por ele encontrada, de unir a atividade comercial com a divulgação do pensamento anarquista. Difundir as ideias libertárias através de livros e da imprensa sempre foi uma das principais características do anarquismo, em suas variadas formas e correntes. Garavini entrava num rio já navegado por outros companheiros em outros lugares e situações, sendo, todavia, um dos pioneiros na difusão editorial, em língua portuguesa, do pensamento libertário no Brasil. A fórmula dos “manuais de cultura social”, por ele excogitada, forneceria textos sobre temáticas de natureza justamente social e politica, privilegiando obras de esquerda, de autores comunistas ou anarquistas. O primeiro volume a aparecer foi a obra de Errico Malatesta, L’Anarchia, numa tradução do titulo que o apresentava como Communismo libertário. Apesar das criticas acima relatadas de Fabbri, a escolha de Garavini parece clara: facilitar a aproximação de um público interessado na temática comunista com um clássico do pensamento libertário. Segundo Nello, o manual vendeu-se muito bem, o que o estimulou a continuar com a coletânea. Os volumes sucessivos foram A Comuna de Viena, do líder socialdemocrata austríaco Otto Bauer, Karl Marx, de Lenin, outra obra de Malatesta, Entre Camponeses, e mais um livro que apresentava teses do movimento anarquista: Deus e o Estado, de Mikhail Bakunin. 63 64 GARAVINI, Nello. Testimonianze, op. cit., p. 172-173. Ibidem, p. 173. 247 O levante comunista de novembro de 1935 trouxe a introdução do estado de sitio e suas consequentes medidas repressoras, além de uma intensificada vigilância sobre imprensa e possíveis ações de militante de esquerda. Garavini resolveu, então, continuar a publicação de seus manuais com uma leve modificação no titulo da coletânea: “Manuais de cultura moderna”, dando espaço também a obra de natureza variada. As três primeiras publicações foram Nicolai e a biologia da guerra, com tradução e prefacio de Fábio Luz, obra na qual o francês Romain Rolland comenta um texto (A Biologia da guerra, justamente) do psicólogo alemão Georg Friedrich Nicolai, Origem do Homem, do naturalista alemão Ernst Haeckel, e O duelo dos sexos, do anarquista francês André Lorulot. Em seguida, houve espaço para alternar traduções de textos estrangeiros com algumas obras nacionais. A Minha Livraria editava então Nietzsche (O Anticristo) e Oscar Wilde (O bom amigo e outros contos, com tradução de Mario Lago); publicava obras como Limitação dos Nascimentos, do médico anarquista argentino Juan Lazarte, e dois volumes do historiador escocês Thomas Carlyle reunindo biografias de grandes personagens, o primeiro com título Dante, Shakespeare, Rousseau, o segundo Napoleão e Cromwell. E mais: Sarobá, coletânea de poemas do sul mato-grossense Lobivar Matos, Verdi, biografia de Jorge Leal Costa Neves e mais uma biografia, Patrocínio, de autoria de Osvaldo Orico. Ainda houve espaço para alguma obra de natureza mais politica como A luta contra Trotsky, do líder soviético Stalin e três obras do escritor russo Máximo Gorki: A minha infância, Psicologia do povo russo e Lenin. Há registros também de uma serie de contatos dos irmãos Pongetti com Stefan Zweig, para cessão de direitos autorais de livros do autor austríaco. Pelo menos sete obras de Zweig foram impressas pela editora dos Pongetti, entre 1935 e 1941, mas de três delas, Holderlin, Kleist, e Stendhal, o recibo de cessão de direitos autorais, datado novembro de 1934,65 tem como destinatário Nello Garavini, embora não se tenha notícias de uma sucessiva edição das obras pela Minha Livraria, e sim da sua publicação pelos Pongetti. É difícil reconstruir exatamente a cronologia das varias edições da editora de Garavini, e até determinar o fim das publicações. Há ainda o registro de pelo menos duas obras da Minha Livraria, dos anos de 1937-38. Uma é De Profundis, o texto em forma de carta 65 Cf. BIBLIOTECA NACIONAL. Stefan Zweig no país do futuro. Catalogo da exposição comemorativa dos cinquenta anos da morte de Stefan Zweig, 1992, Doação Abrahão Koogan, Recibos, p. 82. 248 que Oscar Wilde escreveu na prisão, outra é Petróleo, de Upton Sinclair. Quem cuidou da tradução do romance do escritor americano, assim como de Minha Infancia, de Gorki, foi Libero Battistelli, como vimos em outra parte66, onde é dito também da ajuda financeira e da ação de estimulo e aconselhamento que o advogado de Giustizia e Libertá exerceu junto à editora e ao amigo Nello. Este longo detalhamento das obras publicadas pela Minha Livraria permite de ter uma compreensão global das orientações que Nello imprimiu em sua atividade editorial: de um lado, a tentativa de oferecer ao público brasileiro textos que possibilitassem um conhecimento mínimo, mas suficiente, dos princípios do anarquismo (Malatesta, Bakunin, Lorulot, Lazarte), e, do outro, uma oferta mais ampla de títulos da esquerda internacional (Gorki, Stalin, Lenin, Rolland, Bauer, Sinclair) e alguma obra brasileira. Sem furtar-se a editar também autores polêmicos como Nietzsche e Oscar Wilde. Sobre tiragens e vendas não há elementos para afirmar algo, assim como sobre a resposta do publico em geral. Claramente, há de se entender o período em que a livraria e editora ficou funcionando. Se nos primeiros anos a atividade comercial de Nello conseguiu se encontrar com uma demanda para textos como aqueles que ele editava, após a instauração do Estado Novo o clima se fez mais pesado, tanto para as novas publicações quanto para a circulação de leitores, como lembra o próprio Garavini: Livros com ideias sociais eram retirados e sequestrados nas livrarias, nas editoras e nas residências privadas; as perquisições eram diárias. Quantas perquisições e retiro de volumes também na nossa livraria! Fomos obrigados a destruir milhares de livros, para não correr maiores riscos.67 Nesse contexto de controle e repressão, o anarquista lembrava também da prisão de Petraccone e sócios, da qual de falou em outra parte do trabalho, e chegava a comentar: “Afortunado aquele que, preso, não fosse torturado durante o interrogatório na Rua da Relação”. Com efeito, o próprio Garavini foi convocado pela Policia Central. Em suas memórias, ele não fez menção da data nem do delegado perante o qual teve que se apresentar (indicado com N.N.), embora declarasse que o mesmo era tido como “o mais feroz da Rua da Relação”. O policial o investigou a respeito de uma distribuição de panfletos que instigavam a um levante os marinheiros do navio Bagé. Garavini negara tudo e, declarando ter sempre ficado fora dos assuntos da política nacional, admitiu 66 67 Ver notas 194 e 195 da terceira parte. GARAVINI, Nello. Testimonianze, op. cit., p. 175. 249 simplesmente seu antifascismo. Terminado o inquérito, Garavini pôde voltar para casa, mas não cessaram as investigações sobre ele e sua casa comercial: Desde aquele dia, a livraria ficou constantemente frequentada por policiais que pediam livros comunistas para me pegar: um se declarava meu amigo, outro queria conhecer minha vida no Brasil, outro chegava com a gravata vermelha, outro ainda fazia perguntas para me colocar em dificuldade; havia também quem me seguia na rua durante meu trabalho.68 À repressão exercida pelas autoridades diante dos possíveis focos de comunismo, sempre presente na ação policial brasileira, mas aumentada de forma consistente a partir de 1935 e sobretudo após o golpe de 1937, se somavam as providências do governo varguista contra os estrangeiros, em 1938-39, e a vigilância particularmente estreita sobre os súditos do Eixo, após 1942. A filha de Garavini, entrevistada durante a pesquisa, recorda o medo e a solidariedade naqueles tempos difíceis: Antes éramos perseguidos por sermos antifascistas, e o consulado, a embaixada nos vigiavam, depois, com a guerra, éramos suspeitos porque italianos. Lembro que na época do afundamento de navios por parte dos alemães [...] subi para o quinto andar para almoçar e ouvimos o alarme: pensamos com preocupação na livraria em baixo, pois havia quem assaltava os estabelecimentos alemães e italianos, mas as pessoas que nos conheciam e sabiam de nossa militância antifascista chegaram a defender a loja.69 E, numa outra resposta, acrescenta detalhes ao quadro acima: Muitos estudantes de esquerda frequentavam a livraria, depois perdemos muitos clientes. Alguns iam para a prisão, depois voltavam... Um dia chegou um estudante, minha mãe o conhecia, mas ele estava completamente enlouquecido pelas torturas sofridas... Muitos eram estudantes do interior que vinha para o Rio estudar direito e para ganhar algum dinheiro trabalhavam como escriturários da policia: às vezes, alguns nos alertavam sobre uma próxima perquisição na livraria... nós, contudo, nunca colocamos a fotografia de Getúlio: era obrigatória em todos os estabelecimentos, mas...tivemos sorte, pois às vezes é uma questão de sorte.70 4.10. O amigo mais querido Em 1936 veio a faltar para Garavini também um apoio de fundamental importância, o de Libero Battistelli, partido para a Espanha, da qual não voltaria. O nome dele recorre 68 Ibidem, p. 176-177. Entrevista com Giordana Garavini, Castelbolognese (Itália), 4.1.2012. 70 Ibidem. 69 250 várias vezes no livro autobiográfico de Nello, lembrado sempre com muito afeto e com grande apreciação. De Garavini, Libero tinha-se tornado conselheiro e quase sócio em sua empreitada editorial, como se viu em vários momentos. O primeiro contato entre os dois, emigrados da Itália para o Brasil a distância de um ano um do outro, mas em ambos os casos para fugir da escalada da repressão contra os antifascistas que o ano de 1926 registrara, aconteceu em 1928. Bondade, simplicidade e brilhante inteligência foram as características de Libero que mais marcaram Garavini, mas ele fazia questão de lembrar em suas memórias que “todos os antifascistas do Rio de Janeiro se aproximavam dele e ouviam dele palavras de sinceridade”71. Embora Libero fosse republicano, seguidor coerente “das ideias de Carlo Rosselli e do movimento de Giustizia e Libertá”72, Nello afirma que com ele, após as iniciais concordâncias e diferenças, se criou uma afinidade que tornava os dois “em perfeito acordo sobre quase todos os assuntos do antifascismo”73. Uma interessante notação logo em seguida confirmava uma abertura e uma capacidade de compreensão politica que já foi assinalada na parte a ele dedicada: “Os anarquistas gostavam dele de forma especial. Em sua casa, no buraco onde escrevia, lia, pensava, recebia os amigos, era difícil não encontrar um anarquista; e todos diziam dele que era mais anarquista que nós todos”74. De Battistelli, Nello confessava ter tentado imitar “a maneira de discutir com o adversário em boa fé, e o respeito por todas as opiniões alheias”.75 Uma lembrança diferente nos restitui o homem atrás do empenho, das ideologias e dos debates políticos: ela podia ter complementado a micro historia de Battistelli traçada na parte a ele dedicada nesse trabalho, mas apresentá-la aqui permite unir em seu registro também o testemunho de Nello. Este escreve: Frequentemente ia com ele para sua ‘Fazendinha’ na floresta de Mangaratiba, e com ele passava momentos prazerosos. O que nunca esquecerei foi quando pela primeira vez me levou para aquele lugar selvagem, despovoado, sem casas e com poucas pessoas, habitado somente por cobras e insetos de muitas espécies, que quanto mais invisíveis, tanto mais eram vorazes. Libero e eu ficamos mais de quinze dias numa cabana feita de argila e bambu. Dormíamos sobre colchoes e 71 GARAVINI, Nello. Testimonianze, op. cit., p. 179. Ibidem, p. 180. 73 Ibidem. 74 Ibidem, p. 179. 75 Ibidem, p. 180-181. 72 251 nos alimentávamos de pão e enlatados. Éramos como os camponeses locais, que não sabiam reivindicar seu valor para poder viver melhor do que os selvagens, e como selvagens vivemos naqueles quinze dias, que para nós foram maravilhosos pela solidão, pelo silêncio, pelas belezas naturais que nos cercavam. Entre aquelas belezas, a nossa alma ficava preenchida, encontrávamos a felicidade completa na doce, sincera e leal companhia.76 4.11. Tempos de guerra Morto Battistelli na Espanha, aprisionados e perseguidos pelo regime de Vargas seus amigos e companheiros, como Petraccone e seus colaboradores, emigrado Frola para o Mexico, Scarrone recolhido em seu silêncio, Garavini e outros anarquistas continuando uma atividade mas sempre vigiados pela policia, homens e forças do antifascismo de origem italiana, proibidos de qualquer ação pública de cunho politico, viveram uma estação de espera forçada. Acuados pelo Estado Novo, por sua militância nas fileiras do antifascismo, que os órgãos de policia assimilavam tout court à esquerda comunista, de um lado, e por suas origens italianas, do outro, os antifascistas da colônia começaram a levantar sua voz de novo somente a partir de 1942. O contexto já era outro: os Estados Unidos entrados na guerra contra o Eixo, e o Brasil que estava se alinhando com as democracias liberais aliadas. Apesar de permanecer a proibição de constituir organizações politicas estrangeiras em território nacional, e de continuar a vigorar outras medidas anti-estrangeiros, a nova posição brasileira diante do conflito, os rumos da guerra na Europa e a vontade de marcar de forma clara uma diferença com as autoridades de governo italianas, contribuíram para os antifascistas retomarem folego e iniciativa. Nasceram assim núcleos de Itália Libera, na esteira de organismos análogos presentes em outros países da América Latina e em direta ligação com a Mazzini Society, fundada nos EUA por italianos no exilio, e liderada por Carlo Sforza, diplomata e ministro do Exterior antes da chegada de Mussolini ao poder.77 Figuras de destaque nesta tentativa 76 Ibidem, p. 180. Sobre o quadro mais geral do antifascismo italiano no Brasil neste período, sua retomada e seus rumos, particularmente com destaque para a organização Itália Libera, suas iniciativas e suas modalidades de presença, ver os trabalhos de Angelo Trento e João Fábio Bertonha: TRENTO, Angelo. Do outro lado do Atlântico: um século de imigração italiana no Brasil. São Paulo: Nobel, 1989, p. 394402; BERTONHA, João Fábio. Sob a sombra de Mussolini: os italianos de São Paulo e a luta contra o fascismo, 1919-1945, op. cit., p. 121-141. ---------------------. “Politica em tempos de guerra: a tentativa de reconstrução do antifascismo italiano em São Paulo em 1942-43” In Revista de História, São Paulo, n. 137, 1997, p. 43-63. 77 252 de reorganização, conduzida à luz de uma proposta de cunho republicano, liberaldemocrático, orientada pelos componentes moderados do antifascismo italiano, eram personagens de antiga militância, como Piccarolo, ou Petraccone (de novo em São Paulo, após os difíceis anos 30 no Rio de Janeiro, evidentemente abandonando simpatias trotskistas que pareciam tê-lo caracterizado naquela época). Pela Capital Federal os documentos de Itália Libera falam sobretudo de Luigi Ferrero. Garavini e outros se colocaram numa posição distinta e é por isso que tratar-se-á da conjuntura nesta quarta parte do trabalho. Em seu livro de memórias, expondo sua visão da situação, Garavini escrevia: Houve uma controvérsia entre nós: logo que a Itália ficou derrotada, grande parte dos italianos que tinham sido fautores do fascismo abandonaram suas antigas ideias e como os piores conformistas quiseram se aproximar de nós. Com Enrichetta Battistelli, Adriano Zuccari, Luigi Cingolani, Garritano, il prof. Itria, Tosone e outros, nos opomos decididamente que aquele bando de fascistas entrasse nas nossas fileiras como madalenas arrependidas. De parecer oposto eram Petraccone, Tamagni, Luigi Ferrero, Tagliaferri e o próprio Segatta. Disso resultou uma separação entre os antifascistas - perseguidos juntos por longos anos - que pode ser chamada de amistosa, mas mesmo assim dolorosa.78 Nello colocava a origem das divisões a partir da derrota militar da Itália, mas a documentação mostra que acentos diferentes surgiram no âmbito do mundo antifascista de origem italiana ainda em 1942, diante da tentativa de organização de Itália Libera e das escolhas ligadas a isso. De certa forma, a questão era mais ampla da acolhida ou não de antigos expoentes filo-fascistas. O que estava em jogo era o futuro rosto politico do país, uma vez libertado da ditadura. E mesmo que estivessem distantes milhares de quilômetros, os fuorusciti e exilados no Brasil reivindicavam seu direito de participar nas decisões a respeito desse problema. Itália Libera era uma tentativa de se posicionar como italianos contrários a Mussolini: naqueles anos, era a única com uma estrutura e um programa, mas havia quem não aceitava se alinhar com ela. E isto também no âmbito da colônia do Rio. A imprensa carioca acompanhava as iniciativas da organização, desde o lançamento de seu manifesto, no inicio de fevereiro de 1942, assinado, entre outros, por Petraccone, Piccarolo, Bixio Ricciotti e Luigi Ferrero. Nos meses seguintes, noticias sobre Itália 78 GARAVINI, Nello. Testimonianze, op. cit., p. 185. 253 Libera, ou os Italianos Livres do Brasil iam aparecendo de vez em quando. Até circular uma carta, em maio de 1942, anunciando o surgimento de duas seções da organização, uma no Rio e em São Paulo, e convidando os cidadãos a aderirem: assinava o secretario, Dr. Giorgio Bullaty.79 A esta altura, o Ministério da Justiça e Negócios Interiores solicitou à chefatura de Policia sustar as atividades do Comitê dos Italianos Livres do Brasil, pelo fato de exercer atividade de ordem politica. No mesmo mês de maio, o presidente e principal responsável pelo Comitê, Luigi Ferrero, convocado nas dependências da policia, se comprometeu a acatar a determinação.80 Uma passagem de Sforza pelo Rio, contudo, em agosto, direto a Montevidéu para a Conferência Pan-americana de Itália Libera reacendeu o interesse para a organização. Em sua escala na ida e na volta, Sforza foi entrevistado pela imprensa.81 Nos anos seguintes, mesmo não se constituindo seções da organização (uma tentativa não acatada pelo governo Vargas foi realizada por Trento Tagliaferri em sua volta de Montevidéu, onde participara da Conferencia como representante dos membros brasileiros82), a voz dos “Italianos Livres” era veiculada pela imprensa carioca, frequentemente através de matérias de Ferrero ou entrevistas com ele. Antes de apresentar melhor a outra linha que o mundo do antifascismo carioca apresentava naqueles mesmos anos e que diz respeito mais diretamente a Garavini, é preciso caracterizar brevemente os dois italianos acima citados, como ligados a Itália Libera. Os fichários policiais italianos descrevem o piemontês Luigi Ferrero como socialista83. Nascido em 1889, emigrara para o Brasil antes da primeira guerra mundial, em ocasião da qual voltou para a Itália e foi ferido em combate, o que lhe valeu uma pensão. O retorno ao Rio se dera em julho de 1930, contratado como engenheiro por uma empresa de construções. Os informes da embaixada no Rio acompanhavam seu percurso no antifascismo: se, poucos meses depois de seu retorno ao Brasil, um telespresso apontava pelos “ótimos sentimentos italianos, pela simpatia para o regime” de Ferrero, oito anos depois será declarado “antifascista ferrenho”, assinante de 79 Arquivo Público do Estado do Rio de Janeiro / Delegacia de Ordem Politica e Social (APERJ/DOPS), Serie temática “Italianos”, pasta 3, “Dossiê Italiani Liberi”, 11.5.1942. 80 Ibidem, 18.5.1942. 81 Cf. O Jornal, 14.8.1942; A Noite, 14.8.1942; Diário Carioca, 16.8.1942; Diário da Noite, 27.8.1942. 82 AN IJJ6 N2229, Processo de Naturalização, “Trento Tagliaferri”, carta de Trento Tagliaferri ao Ministro da Justiça Marcondes Filho, 1.9.1942. 83 Cf. ACS / CPC, b. 2034, f. 45494 (“Ferrero, Luigi”). 254 Giustizia e Libertá e de Studi Sociali.84 Em outubro de 1937, como vimos, participara do banquete que Scarrone, socialista como ele, ofereceu em homenagem a Frola, outro socialista. De Frola, inclusive, piemontês como ele, Ferrero era amigo desde os tempos da Itália85. Após a tentativa infrutífera de constituir seções de Itália Libera em 1942, Ferrero continuava sua batalha, liderando um “Comitê Itália Libera do Rio de Janeiro”, cuja voz, a partir do começo de 1943, encontrava eco na imprensa local, cada vez mais aberta a contribuições antifascistas pelos rumos que a guerra estava tomando. Assim há registro de matérias no Diário da Noite, em janeiro, junho e outubro de 1943.86 Quanto a Trento Tagliaferri, seu currículo era bastante curioso. Nem sempre foi considerado exatamente um campeão do antifascismo. Romano e comerciante, de ideias libertárias, segundo Angelo Trento emigrou em 1924 para Uruguai e Argentina, e chegou ao Brasil dois anos depois, passando pelo Rio, por Poços de Caldas e estabelecendo-se enfim na Bahia. Em sua passagem pela Capital Federal há um registro de La Difesa que comunicava como a assembleia geral da Lidu do Rio de Janeiro, em dezembro de 1927, o expulsasse por indignidade moral e politica.87 Da Bahia, sempre segundo Trento, entre 1929 e 1933, esteve varias vezes na França, em contato com outros exilados. Com efeito, os fichários policiais de outros antifascistas, como Mariani e Segatta, ajudam a acrescentar informações ao quadro. Como foi visto a respeito do primeiro, sua chegada ao Brasil se deu com destino o estabelecimento na Bahia de Tagliaferri, com o qual, inclusive, Mariani teria viajado, saindo de Cherburgo e aportando em Salvador a 7 de fevereiro de 1929. Os informes do vice-cônsul italiano local relatam de outra chegada de Tagliaferri à Bahia, no mesmo ano, em julho, desta vez vindo do Porto e junto com o anarquista Segatta. Para quem ele trazia para o Brasil, havia emprego em suas casas de jogos na Bahia, em Curitiba, em Santana do 84 Ibidem, telespresso da Embaixada da Itália, Rio de Janeiro, 4.11.1930 e telespresso da Embaixada da Itália, Rio de Janeiro, 28.9.1938. 85 Cf. FROLA, Francisco. Recuerdos de un antifascista, 1925-1938. Cidade do México: Editorial Mexico Nuevo, 1939, p. 187. 86 Cf. ”A grande missão dos italianos livres do mundo”, Diário da Noite, 15.1.1943; “A reconstrução moral da Itália não pode ser feita com lacaios de Mussolini”, Diário da Noite, 16.6.1943, p. 2 ; “Vinte anos de tirania e traição. Leaders anti-fascistas no Rio entrevistados pelo Diário da Noite”, Diário da Noite, 28.10.194, p. 4. 87 Cf. “Rio de Janeiro. Espulsione”, La Difesa, ano V, n. 200, 15.1.1928, p. 4. 255 Livramento. Passagens sucessivas pelo Rio são assinaladas, em 1933 se encontrava na Capital Federal, 88mas não há muitos registros de seus movimentos sucessivos. De qualquer forma, sua conduta parecia um tanto enigmática. De um lado, o apoio a antifascistas, realizado com viagens e através de doações, do outro, sua atividade de empresário no ramo das diversões, com casas de jogos e casinos abertos em vários pontos do país, até debaixo do Estado Novo: em 1938, dirigiu pedido ao Ministério da Justiça para a construção em Salvador de um Casino-Teatro-Balneário, oferecendo, em troca da autorização, a exibição no local de “duas peças de propaganda do Estado Novo por companhia e por temporada”.89 Pertencente às fileiras do anarquismo, como mostra uma carta para os “queridos amigos de Giustizia e Libertá” de 1937 90 , mas sem problemas para excluir, anos depois, da nova organização os antigos companheiros de fé. Com efeito, em 1942, representava os Italianos Livres do Brasil na conferencia de Montevidéu, não obtendo em sua volta, como foi dito, permissão para abrir uma seção no país. Interessantes, nessa circunstância, são algumas frases de seu pedido de autorização91, quando falava das finalidades da associação (“A fim de render eficiente a vasta obra de reeducação das massas italianas intoxicadas durante vinte anos pela propaganda totalitária, e para desenvolver entre as colônias italianas radicadas no Brasil uma intensa obra de brasilidade e de americanismo”) e dos participantes da mesma (“homens de todos os partidos, excetuados comunistas e anarquistas”). O pedido excluía, então, setores de esquerda mais radicais, perseguidos, inclusive, pelo governo brasileiro, e se inseria na linha getulista da nacionalização das comunidades de origem estrangeira e da cada vez mais evidente aliança com os EUA. 88 Uma noticia de jornal relata que Tagliaferri abriu firma para comércio de diversões, no Rio de Janeiro, à Rua Silva Jardim, 47 e 49, e à Rua Pedro I, n. 25, com capital de 50:000$000. Cf. Correio da Manhã, 20.4.1933, p. 15. Em dezembro do mesmo ano, contudo, parece estar de novo na Bahia: o periódico anarquista de Fabbri, Studi Sociali, recebe uma sua doação de 50 mil reis, da Bahia, por meio de Nello Garavini. Cf. Studi Sociali, ano IV, n. 28, 4.12.1933. 89 Ver AN / Ministério da Justiça e Negócios Internos (MJNI), 4T, série A, subsérie 38, caixa 421, n. 2091/38, 17.4.1938. 90 Cf. ISRT, AGL, Fundo “Giustizia e Libertá”, fasc. 3, sottof. 1, Trento Tagliaferri a “cari amici di GL”, Itabuna, 23.3.1937. Tagliaferri agradecia pelos exemplares do periódico de GL recebidos, reafirmava sua fé libertaria, mas declarava que o coração dele estava com os amigos de GL, que “podiam ter-se lixado de tudo e de todos, e ter permanecido ligados às suas posições sociais e econômicas”, mas, ao contrario, escolheram a via mestra, [...] buscando a unidade nos duros campos de batalha”. Significativas as linhas sobre Battistelli, que na época se encontrava no front na Espanha: “Devo retirar, e faço isso com franqueza, o que escrevi sobre Battistelli. Mesmo que tivesse contra ele todos os preconceitos e todos os ódios, o fato dele se encontrar no coração da luta, e eu estar aqui em segurança, faz com que, entre os dois, ele seja mil vezes melhor que eu”. 91 Ver nota 82. 256 Essa não breve digressão sobre passos e percursos de antifascistas italianos nos primeiros anos 40, situados no contexto de seu passado, ajuda a entender melhor o quadro da luta contra o fascismo na Capital Federal, seus dilemas, suas alternativas. Personagens novos entravam em cena, como Ferrero, outros, como Tagliaferri, assumiam papel de destaque, outros ainda apresentavam um testemunho diferente. Um desses era Antonio Corrado Limongi. Expulso do Brasil, como se viu na parte terceira deste trabalho, em 1934, por pressão das autoridades diplomáticas italianas, pôde voltar ao Rio de Janeiro somente em 1939, apesar do decreto de expulsão ter sido revogado em 1937. Durante aqueles dois anos, Limongi tentou de varias formas ver reconhecidos seus direitos, o de poder voltar a se reunir com seus familiares no Brasil e de poder andar de cabeça erguida no local onde fora injustiçado. Para tanto, os arquivos nos restituem uma carta ao comandante dos carabinieri de sua cidade, na qual apresenta sua situação, pede que seja reconhecido seu direito de voltar e acena um elogio do Duce, referindo-se aos italianos residentes no Brasil como pessoas que devem continuar a ser “orgulhosas de sua estirpe, hoje conduzida rumo aos seus maiores destinos por um Homem providencial”. 92 E dois meses depois, Limongi dirigia uma carta no mesmo sentido para o próprio Mussolini, narrando brevemente as injustiças sofridas e pedindo a intervenção dele. O texto era repleto de expressões elogiosas, de declarações de fé no fascismo, e de juramentos de fidelidade ao mesmo: juro que quando for necessário eu serei sempre na primeira fileira para gritar na cara dos detratores da Itália e do fascismo, que aqui se vive de verdade [...] e age-se com o patriotismo que em quinze anos criou o que nunca fora feito nos séculos passados, e tudo isso por vontade Vossa, providencialmente enviado e sustentado pelo Céu nessa titânica obra para o maiores destinos da Itália e de suas gentes fortes e laboriosas, mas também desta Europa, que necessita da paz por Vós traçada: a paz que de Roma aconselhais ao mundo e que de Roma sabereis impor, se for necessário.93 A autorização para retornar ao Brasil chegaria somente dois anos depois. Na ocasião, o advogado foi obrigado a escrever de seu punho uma declaração na qual se empenhava em “se manter afastado e alheio a qualquer atividade que pudesse prejudicar os interesses nacionais”.94 Os arquivos policiais italianos perderam de vista o Limongi, mas quem voltava a se ocupar dele eram agora os nacionais. O advogado, morador de 92 ACS, CPC, b. 2788, f. 4592, (“Limongi, Antonio Corrado”), carta de Antonio Corrado Limongi para o comandante dos Carabinieri de Maratea, 21.8.1937. 93 Ibidem, carta de Antonio Corrado Limongi para Benito Mussolini, 30.10.1937. 94 Ibidem, declaração de Antonio Corrado Limongi, 31.8.1939. 257 Niterói, manteve uma atuação comedida durante os anos de guerra. Não há registros de uma sua atividade antifascista, mas em 1945, logo após o fim do conflito, ele escrevia ao presidente Vargas pedindo inquérito policial e processo administrativo contra os italianos fascistas que provocaram sua expulsão e perseguição.95 Limongi, forçado na Itália àquelas profissões de fé no fascismo para poder voltar a rever seus familiares, uma vez retornado ao Brasil, não abriu mão de seus sentimentos antifascistas, mas manteve uma posição de retaguarda. Também separado dos familiares, e sofrendo pela situação, mas não aceitando compromissos, Agnesini, do qual já se falara antes, em outubro de 1942 escrevia para o Diário de Noticias uma carta aberta96, na qual alertava seja o conde Sforza seja governo e povo brasileiro acerca de elementos de sentimentos fascistas, e até com carteirinha do partido, que se infiltraram no movimento dos “chamados Italianos Livres”. Agnesini, após ter recordado sua luta ao fascismo, que começara ainda na década de 1920, e lembrado que, por causa disso, havia muitos anos não tinha noticias de sua família na Itália, declarava supérflua a criação da nova organização, existindo havia muito tempo outras, como a Liga Antifascista, criadas por autênticos antifascistas, cuja militância no Brasil datava de muitos anos, diferentemente dos que se declaravam tais agora, por conveniência do momento. E acrescentava: Acredito que o sr. Conde Sforza tenha sido levado a uma conclusão imperfeita porque tendo vivido muito tempo entre as colônia italianos da França e da América do Norte, constituídas em grande parte de italianos que saíram da Itália por não concordar com o regime fascista, supôs que poderia igualar a essas a colônia italiana do Brasil, a qual, além de ser comodista, não é nada antifascista...neste país, com exceção de algumas centenas, toda a colônia estava vinculada há bem pouco tempo, à sociedade fascista, muitos por interesse e outros por ignorância.97 Após declarar que ele e outros italianos estavam dispostos a organizar, se o governo permitir, um batalhão de voluntários antifascistas, “prontos a sacrificar nossa vida para a defesa do Brasil, porque a liberdade desse país é a nossa liberdade”, assinava, colocando até endereço e telefone. 95 Cf. APERJ / MJNI / Departamento Federal de Segurança Publica / Policia Civil do Distrito Federal, prontuário 7508 (“Antonio Corrado Limongi”), carta de Antonio Corrado Limongi para o presidente Getulio Vargas, 17.5.1945. Ver também APERJ / Secretaria de Segurança Pública / Delegacia de Ordem Politica e Social (DOPS) Prontuário 11763 (“Antonio Corrado Limongi”). 96 “Carta aberta sobre o propalado movimento dos Italianos Livres do Brasil”, Diário de Noticias, 4.10.1942, p. 2. 97 Ibidem. 258 4.12. O Comitê antifascista italiano Agnesini, com efeito, entrava naquele grupo de italianos da colônia carioca que - não simpatizando pela iniciativa da qual Petraccone, Ferrero e Tagliaferri se colocavam como lideres - buscavam se apresentar aos seus compatriotas e à sociedade brasileira como herdeiros da tradição antifascista mais autêntica, daqueles setores que se tinham abraçado a proposta antifascista desde a década de 1920, mesmo com acentos diferentes. Cingolani, Itria, Peotta, Esposito, Anselmo Garritano98, Zuccari e o próprio Garavini se posicionavam nesta outra vertente do campo antifascista. Assinando alguns telegramas, publicados por jornais cariocas, simplesmente como “Antifascistas do Rio de Janeiro” ou “Italianos antifascistas do Rio de Janeiro”, e proclamas ou artigos, também veiculados pela imprensa, como “Comitê antifascista italiano” ou “Comitê italiano antifascista do Brasil”, o grupo marcava uma presença no âmbito local e nacional, querendo, de um lado, mostrar uma continuidade com o empenho e as lutas das décadas anteriores e, do outro, se diferenciar das posições dos Italianos Livres, provavelmente considerados moderados, filo-americanos e anticomunistas, quando não excessivamente tolerantes com antifascistas da última hora. Um primeiro telegrama, para o presidente Vargas, declarava: Os Italianos antifascistas, enquanto protestam pelo bárbaro assassínio que os dirigentes do Eixo praticaram ainda uma vez com o afundamento de navios brasileiros, associam-se ao luto do Brasil e hipotecam completa solidariedade a V. Excelência. Pelos antifascistas do Rio de Janeiro: Francisco Itria, Nello Garavini e Luiz Cingolani.99 Na mesma ocasião, os três dirigiam telegrama do mesmo teor para Osvaldo Aranha, Ministro das Relações Exteriores: “Os velhos antifascistas residentes nesta capital hipotecam o seu apoio incondicional e ao mesmo tempo lavram seu protesto contra mais um atentado dos bárbaros do Eixo contra o Brasil. Pelos Italianos antifascistas”.100 O 98 O nome de Anselmo Garritano, que nos anos 40 se destacava como um dos lideres dos Italianos Antifascistas, recorria já em alguns registros da década de 1920: participara como conselheiro da Associação dos ex-combatentes do Rio de Janeiro, em março de 1925 (Cf. La Difesa, ano III, n. 10, 1.3.1925, p. 4) e fez parte da lista derrotada nas eleições pelo conselho da Societá Italiana di Beneficienza, em 1929. Cf. Correio da Manhã, 17.3.1929, p. 11. 99 Diário Carioca, 19.8.1942. 100 Ibidem. 259 jornal apresentava os telegramas como apoio “dos Italianos Livres solidários com o Brasil”: somente cinco dias antes, Sforza passara pelo Rio direto a Montevidéu, para o congresso de Italia Libera, e ficava difícil para a imprensa brasileira diferenciar escolhas e posicionamentos no campo do antifascismo italiano.101 Três dias depois dos telegramas, o Brasil reconhecia o estado de beligerância e no final do mês de agosto declarava guerra ao Eixo. Mais um telegrama, em novembro, para Noel Charles, embaixador do Reino Unido, depois de sucessos do exército britânico no Egito: Cidadãos italianos antifascistas do Brasil exultando estrondosa vitória nossos bravos e heroicos soldados sobre as hordas nazi-fascistas, saúdam os legionários da liberdade na pessoa de V. Excia., esperando continuar triunfos sobre triunfos até o completo esmagamento de Hitler e Mussolini e libertação da Itália gloriosa nossa pátria e pátria imortal do espirito latino. Prof. Francisco Itria, Cingolani Luiz, Nello Garavini, Anselmo Garritano, Peotta Ottorino e Silvio Esposito.102 Mas antes disso, ainda em outubro, promoveram uma coleta para ajudar as vitimas dos torpedeamentos: o nome com que o Diário da Noite os apresentava era “os velhos antifascistas do Rio de Janeiro”103. O jornal fazia questão de frisar, talvez a pedido: “trata-se realmente de velhos antifascistas italianos e brasileiros filhos de italianos que desde a primeira hora combateram Mussolini e seus métodos brutais de dominação partidária”. E acrescentava: “Não são democratas ou ‘livres’ de ultima hora”. A lista, de 60 nomes, com o valor de suas doações, compreendia os assinantes dos telegramas acima e mais velhos conhecidos do mundo do antifascismo, como Maddalena, Anaclerio, Pampuri. Nos papéis de Garavini, foi possível encontrar uma ficha de adesão, com papel timbrado em nome dos “Italianos Antifascistas do Brasil”, seção do Rio de Janeiro, pronta para ser entregue a quem quisesse aderir. Nela apareciam os seguintes dizeres: “Nos países da América, já foi organizado oficialmente o Movimento Antifascista Italiano. Nós, os antifascistas do Brasil, estamos providenciando das autoridades brasileiras a autorização 101 Giordana Garavini, entrevistada durante a pesquisa, lembra a passagem de Sforza pelo Rio de Janeiro e a acolhida dos antifascistas: “Quando Sforza passou pelo Rio, os antifascistas eram um pouco divididos, havia Ferrero etc. Assim fomos para o aeroporto eu, minha mãe e a Enrichetta, e...todo mundo tinha virado antifascista! Inclusive os que nos denunciaram! A Enrichetta foi lá pra frente, se apresentou a Sforza como a viúva de Battistelli, e lá atrás minha mãe foi gritando: Abaixo os fascistas presentes e viva o antifascismo!”. Entrevista com Giordana Garavini, Castelbolognese (Itália), 4.1.2012. 102 Diário Carioca, 8.11.1942. 103 “Os velhos antifascistas ajudam a amparar as famílias das vitimas dos torpedeamentos”, Diário da Noite, 14.10.1942, p.8. 260 e reconhecimento para o funcionamento da nossa organização. Pedimos a sua valiosa adesão”. 104 Em finais de novembro, os mesmos seis antifascistas autores do telegrama para o embaixador britânico assinavam, como “Comitê Antifascista Italiano”, um apelo ao povo italiano, em A Noite.105 Convidando soldados, operários mulheres à revolta contra o fascismo e sua aliada, a Alemanha nazista, o apelo declarava a disponibilidade dos italianos emigrados no Brasil a se alistar como voluntários. Em maio de 1943, mais um apelo do Comitê para a sublevação do povo italiano106. Desta vez Garavini não fazia parte dos assinantes. Os eventos precipitavam na Itália com a queda de Mussolini em julho. No dia seguinte ao fato, de novo a voz do Comitê, na pessoa do secretario Cingolani107, que recorda como no Brasil houve um grupo de italianos que desde o advento do fascismo ao poder se manifestaram como opositores. O armistício assinado pelo governo provisório da Itália com os aliados, em setembro, foi motivo para mais uma entrevista com expoentes do Comitê Italiano Antifascista do Brasil108. Ainda em 1943, então, dois Comitês se dividiam a representação dos italianos antifascistas na Capital Federal: o “Comitê Itália Libera do Rio de Janeiro”, presidido por Ferrero, e o “Comitê Italiano Antifascista do Brasil”, cujas lideranças vimos acima. Nos últimos pronunciamentos desse segundo Comitê, Garavini não aparecia mais: não é dado saber se por alguma diferença de pensamento e orientação sobre a posição a ser tomada, ou se simplesmente para deixar que outros tomassem a dianteira na exposição pública. A guerra encerrada, no dia 15 de junho de 1945, os Antifascista Italianos ofereceram um banquete, na sede carioca do Automóvel Clube do Brasil, como homenagem para os dois correspondentes brasileiros Rubem Braga e Joel da Silveira, que cobriram as operações militares da F.E.B. na Itália.109 No evento, Emma Garavini foi uma das oradoras. O curioso cardápio do almoço, entre um “talharim à bolonhesa” e um “filé 104 BLAB, Castel Bolognese, Fundo Nello Garavini. “Revoltai-vos contra o Eixo! O apelo dos antifascistas residentes no Brasil ao povo italiano.” A Noite, 23.11.1942, p. 3. 106 “Repercussão na colônia antifascista italiana do Brasil do apelo de Winston Churchill”. Diário da Noite, 28.5.1943, p. 7. 107 “Fascismo e a ‘Casa de Savoia’ fizeram a desgraça da Italia”. Diário da Noite, 26.7.1943, p. 8. 108 “Capitulo vergonhoso e infame na moderna história da Italia”. Diário da Noite, 9.9.1943, p. 8. 109 Cf. Diário Carioca, 19.6.1945, p.6. 105 261 mignon F.E.B.”, previa como entrada “frios guerrilheiros” e “salada russa”, e encerrava tudo com uma “torta vitória”.110 Nos últimos anos de sua permanência no Rio, Garavini, que em 1942 vendera a livraria, provavelmente continuou a trabalhar no comércio, como representante de tintas, com sede na Rua do Senado. Em 1946 conseguiu liquidar sua firma e em março do ano seguinte ele e a esposa voltaram para a Itália, agora pacificada e em plena reconstrução econômica, politica e humana.111 O antifascismo, vivido e alimentado nos anos do exilio carioca, durante os quais o encontro com diferentes vertentes e experiências enriquecera suas originais bases libertárias, se tornava agora motivação e estimulo para uma contribuição aos futuros caminhos do país. 110 BLAB, Castel Bolognese, Fundo Nello Garavini. Sempre ligados aos ideais libertários, os Garavini continuaram sua vida em Castel Bolognese. Emma falecerá em 1978 e Nello, poucos anos depois, em 1985. A filha Giordana prossegue até hoje a obra dos pais, acompanhando a atividade da Biblioteca Libertaria “Armando Borghi”, fundada pelo pai e alguns amigos ainda em 1916 e reativada em 1973, inclusive com a própria contribuição de Nello. 111 262 CONSIDERAÇÕES FINAIS Após a exposição e a análise dos itinerários individuais de Scarrone, Battistelli e Garavini, cabem aqui algumas considerações finais que permitam uma síntese dos elementos principais de cada percurso e ofereçam a tentativa de um olhar comparativo sobre os mesmos. Isto nos permitirá, ao mesmo tempo, tecer algumas reflexões sobre a experiência mais ampla do antifascismo de origem italiana no local especifico da Capital Federal durante a conjuntura considerada. 1. Uma primeira série de observações pode ser feita a respeito da atuação e das tentativas de inserção de cada um dos três investigados no contexto da luta do antifascismo italiano. Numa inicial aproximação salta aos olhos o acento diferente em abraçar os caminhos do antifascismo militante: entre Scarrone, membro da emigração anterior à eclosão do fascismo na Itália, e Garavini e Battistelli, forçados ao exilio nos anos da mais forte repressão do regime (1926-27), há um salto geracional e ao mesmo tempo experiencial. A diferença, então, não passa somente pelo dado anagráfico, com o socialista pertencendo à geração anterior à de Nello e Libero, mas também pelo diferente tipo de percepção do fascismo que é vivenciada: enquanto os dois mais novos advertem características e aspectos do fenômeno por experiência direta, tendo que conviver por alguns anos na Itália com ele e atribuindo o exilio à necessidade de se retirar diante de suas ameaças, para o socialista, o fascismo e suas pretensões ditatoriais são fruto de uma experiência indireta, mediada por informações recebidas, ou só parcialmente direta, nos termos de uma censura postal sofrida em primeira pessoa. Isto não significa uma menor ou menos intensa ação por parte de quem, como Scarrone, não se deparou diretamente com as violências e as ilegalidades perpetradas pelas esquadras em camisa negra: a força com a qual o velho empresário rascunha e imprime seus libelos o coloca no mesmo plano de intensidade dos escritos de Battistelli e das redes de solidariedade alimentadas por Garavini. Mas nas entrelinhas é percebível uma diferença de registro. A oposição de Giuseppe a Mussolini e à sua construção aparenta olhar mais para o passado do que para o futuro, diferentemente, por exemplo, do caso de Libero. Scarrone é socialista, aprendeu os princípios da doutrina de forma pragmática e factual, no dia-a-dia, sem escolas de partido, sem muita convivência com os âmbitos próprios da dizer e do fazer da politica. E vivenciou os princípios do socialismo nas experiências de cooperativas que tentou realizar ainda no final do século XIX e na 263 alvorada do XX. Ele pertence a um tempo no qual Mussolini, e vários de seus futuros colaboradores ou ministros, eram socialistas como ele, empenhados nas mesmas batalhas, como os mesmos instrumentos, à luz dos mesmos ideais. Dai a atitude inconformada diante das pretensões e realizações do fascismo naquela Itália da qual é ausente há dez ou quinze anos, mas na qual lutara muitas décadas para a realização de uma experiência alternativa à exploração do operário por parte do capital. O fascismo se mostra aos seus olhos mais como uma traição daqueles ideais antigos do que como uma novidade politica a ser interpretada e combatida. Suas análises do fenômeno, inclusive, denotam uma reflexão politica não muito elaborada e ancorada a uma leitura simplista do mesmo, visto como fato passageiro, que será quanto antes derrotado (ao menos esta é a leitura que prevalece nos primeiros anos de sua produção), ou como a reapresentação, com novos trajes, da antiga opressão das classes superiores e possidentes sobre as classes laboriosas. Scarrone olha, então, para o passado para interpretar o presente, pesca em sua experiência de anos de tentativas socialistas a chave de leitura e assim também o registro de suas acusações e de suas propostas politicas: um socialismo “retrogrado”, ou “limitado”, como ele mesmo o define, mas que construiu sua história pessoal e de trabalho. Auto exilado para o Rio de Janeiro, justamente por não encontrar mais espaço em sua pátria para a realização desse socialismo, e sem muitas esperanças de poder voltar à pátria, tanto pela idade quanto pela atividade implementada no Brasil, sua imaginação de um futuro para a Itália pós fascista não passa da reproposição do mundo anterior a ele, sobretudo daquela tentativa de moldar a sociedade italiana que o partido socialista colocara em ato na primeira década do século, quando parecia que o sol da nova era estivesse bem próximo de surgir. Definir de naïf sua forma de encarnar a luta e a militância antifascista pode soar um tanto irreverente, e o termo pode não constituir uma categoria historiográfica adequada, mas talvez ajude a resumir suas características de fundo: escassa elaboração politica, primitivos esquemas interpretativos, elementares propostas de resistência, tudo unido, porém, a uma permanente e admirável vontade acusatória, e a uma inteligente utilização de espaços de propaganda. Deste ponto de vista, a atuação de Scarrone merece destaque: a longa presença como anunciante, único do Rio de Janeiro, nas colunas do semanal La Difesa, a série de opúsculos e cartas abertas dirigidas ao regime e a sentença que o atingiu, entre os primeiros contemplados pela nova lei contra os fuorusciti, tornam 264 seu antifascismo singular no âmbito da coletividade italiana da Capital Federal, e, de certo modo, do Brasil inteiro. Até seu aparente individualismo nas formas e metodologias de atuação há de ser matizado: tanto pela sua constante participação da vida do periódico do antifascismo, quanto pela presença em associações (pelo menos na Lidu) e pelas relações de amizade e colaboração com alguns expoentes do mundo antifascista, como Frola, Petraccone, Ferrero, ou o próprio Battistelli, em algumas ocasiões. A caracterização de Scarrone, na esteira dos estudos de Darnton, como um intelectual de segundo escalão, como um divulgador, um libelista, reprodutor de um discurso em parte original e em parte oriundo de outras fontes, pode ajudar a situar seu antifascismo no âmbito mais amplo da colônia italiana no Brasil: seus escritos, que têm endereços italianos como alvo principal, acabam difundidos também nos circuitos nacionais, entre os compatriotas emigrados, alimentando um ideário e contribuindo para uma espécie de contrainformação. Único libelista entre os italianos da colônia com uma produção tão rica e contínua, Scarrone, autodidata e editor independente, pertence a uma intelectualidade underground que empenhou não pouco os órgãos de controle e vigilância do regime fascista. Ambicioso e ao mesmo tempo utópico, o esforço de Scarrone em sua luta contra o Behemoth fascista (para usar uma expressão de Franz Neumann)? Se assim afirmarmos, devemos declarar ambiciosa e utópica também toda a luta do antifascismo, particularmente a do exilio, baseada na reiteração de uma condenação, na busca de consensos e apoios para a mesma, na negociação de acordos com as forças politicas dos países de acolhida, e na tentativa da conquista da opinião pública tanto emigrada quanto estrangeira. Uma luta que até na França, a nação onde a emigração antifascista teve um peso claramente superior ao de qualquer outro país de acolhida, se debateu por anos em tentativas e esforços de derrubada do regime de Mussolini aparentemente utópicos, e sem resultados. Pode-se deixar para mais para frente uma conclusão sobre esse aspecto dos esforços e dos eventuais fracassos do antifascismo italiano no Brasil. Numa comparação com Scarrone e suas realizações, porém, podemos olhar agora para a figura de Battistelli, analisado na terceira parte do trabalho. Pelo enfoque assumido como ponto de partida para rever o percurso de Giuseppe, a trajetória de Libero tem um perfil diferente, não somente pela diferente experiência do regime de Mussolini por ele vivida, mas sobretudo pela preocupação principal que parece caracteriza-lo. 265 Republicano de formação, em seguida expoente do movimento de Giustizia e Libertá, Battistelli transita pelos ambientes do fuoruscitismo com liberdade e autoridade. Sua visão do fascismo, e de consequência, da luta ao mesmo, diferentemente daquela de Scarrone, o projeta para o futuro: tanto pela aberta crítica dos partidos existentes (até sua militância no PRI se deve mais ao fascínio pela coragem de um dos lideres, Mario Bergamo, do que a uma sintonia ideológica), cuja reapresentação tout court no pós fascismo seria, segundo ele, impensável, quanto pela convicção que à queda do regime deva seguir algo completamente novo, nos termos de um movimento revolucionário capaz de promover uma sociedade igualitária e livre. E é a isso que ele dedica energias física e intelectuais: à identificação dos percursos de uma autêntica revolução italiana (num país que não assistira a movimentos revolucionários com raízes profundas na sociedade, como aconteceu na Inglaterra, França ou Estados Unidos, nem a um fenômeno qual foi a Reforma protestante na Alemanha, que a uma revolução podia ser assimilado), à elaboração de um projeto de sociedade futura para seu país, ao mapeamento da personalidade e do caráter do revolucionário, sobretudo focando no papel dos lideres, dos dirigentes, dos intelectuais, ou, como ele os chama, dos fuori classe. O dele é um antifascismo que ataca o inimigo pelos crimes cometidos, em primeiro lugar a supressão da liberdade e a traição da justiça. Essas duas palavras acompanham o percurso de Libero desde o começo, desde os anos italianos, e aparecem como leit motif em seus numerosos artigos para os periódicos dos quais é colaborador, até curiosamente se condensar nas palavras-titulo do agrupamento do qual começa a participar, na década de 1930. Um empenho, o dele, que o coloca, mais que Scarrone e o próprio Garavini, nas malhas da mais ampla rede do antifascismo internacional: sua ida à França em 1930, suas correspondências com expoentes de GL, particularmente com o próprio líder Carlo Rosselli, assim como com socialistas, como Nenni, republicanos (Bergamo, Montasini) e até anarquistas, como Berneri ou Fabbri, ou comunistas, como Rosini, testemunham da vontade de dialogar e entender, para construir. Battistelli se caracteriza, como foi visto amplamente na parte a ele dedicada, por sua capacidade de escuta do outro e de diálogo, a ponto de se sentir, antes, republicano sui generis, com simpatias para o socialismo e o anarquismo, e, mais tarde, membro sui generis de GL, com aberturas para o comunismo. Sem os enrijecimentos ou as gaiolas de uma fórmula politica ou da 266 pertença a um partido: a parte (isto é, o empenho contra o fascismo), chega a dizer numa circunstância, conta para ele mais que o partido. Sua influência no âmbito da colônia italiana antifascista da Capital Federal será vista em seguida, mas seu percurso pode ser aqui identificado como o mais significativo entre os de todos os antifascistas que atuaram na cidade. Tanto por sua produção intelectual (de La Difesa, do qual é de longe o colaborador “carioca” mais assíduo e relevante, a outros periódicos brasileiros ou latino-americanos, até as várias revistas e folhas do fuoruscitismo na Europa), quanto por seu protagonismo no mundo associativo do Rio de Janeiro, sem contar a decisão de engajamento na luta do antifascismo na guerra civil espanhola, que o torna único neste sentido. Sem querer retirar o valor de personalidades como Frola ou Piccarolo, ou até Mariani, principalmente atuantes na capital paulistana, a figura de Battistelli tem uma importância e um significado muito relevantes, entre os antifascistas italianos em ação no Brasil naquelas décadas. Quanto a Nello Garavini, seu antifascismo o aproxima por alguns aspectos de Battistelli, no que se refere à conjuntura de sua saída da Itália e à comparticipação de algumas redes alimentadoras da resistência (da Liga Anticlerical a certos circuitos antifascistas latino-americanos), e por outros de Scarrone, por sua fidelidade a uma orientação ideal e política durante todo o período da luta. O anarquismo, neste sentido, constitui o fulcro da posição de Nello (e de sua esposa Emma), seja nos primeiros anos, quando frequentações libertárias acontecem no âmbito da Liga Anticlerical ou junto ao amigo Fabbri de Montevidéu, como anos depois, inspirando sua atividade editorial. Um antifascismo, então, que se alimenta através das publicações recebidas de vários centros mundiais do anarquismo, assim como através de correspondências. Um antifascismo, contudo, que, devido a sua origem ideológica, tem a busca de solidariedades na área libertária como sua preocupação fundamental. Por esta mesma razão, a contribuição anarquista no contexto do antifascismo sempre ficou na periferia do mesmo, tanto no Brasil como na França, por exemplo, um dos motivos sendo, também, o fato dela não se enquadrar nas alas de um partido ou de uma organização unitária. Além disso, o surgimento dos partidos comunistas, seções nacionais da Terceira Internacional, e sua subtração de militantes das fileiras libertárias contribuiu para o recuo do anarquismo, e foi provocando frequentes embates entre as duas realidades. Os confrontos dialéticos e ideológicos entre anarquistas e comunistas 267 na Espanha da guerra civil representam a ponta mais evidente de um embate entre duas tradições e orientações: os choques sangrentos das jornadas de maio de 1937, em Barcelona, são o momento mais trágico de uma divisão no corpo do antifascismo militante. Deste ponto de vista, todavia, o percurso de Garavini permite o registro de pelo menos duas conotações que o tornam diferente: a primeira é a significativa produção, no âmbito de sua editora, de títulos que abrem para uma área mais genericamente de esquerda, incluindo contribuições oriundas do bolchevismo; a segunda se refere à colaboração de Nello com antifascistas de outras orientações ideológicas, sobretudo na conjuntura pós-1942. Um anarquismo, então, que se abre, ainda que parcialmente, para outros horizontes de experiência (sendo, contudo, o apoio aos instrumentos do pensamento libertário a preocupação principal, documentada pelo fato de Garavini participar de forma mínima das subscrições de La Difesa, e ao contrario contribuir generosamente com o periódico anarquista Studi Sociali, publicado em Montevidéu). 2. Um segundo âmbito de considerações se refere aos laços estabelecidos pelos três percursos com os âmbitos do antifascismo local, nacional e internacional. Mesmo não sendo exatamente círculos concêntricos, podemos pensar numa estrutura grosso modo análoga. O primeiro círculo sendo representado pelo antifascismo da colônia italiana da Capital Federal, um segundo pelas presenças e manifestações do antifascismo brasileiro e o terceiro por sua dimensão internacional. Na delineação dos três itinerários político-existenciais, uma preocupação constante do trabalho foi a de reconstituir, mesmo que de forma mínima, o contexto do mundo da comunidade italiana do Rio de Janeiro, apontando o olhar particularmente sobre a componente antifascista da mesma, assim como os laços com os outros dois âmbitos acima indicados. Na segunda parte, foram enfatizados sobretudo os primeiros anos e as primeiras tentativas, assim como os primeiros protagonistas; na terceira parte, os anos centrais de 1927 a 36, e na quarta, o tempo do Estado Novo e a conjuntura da guerra. Nesses mesmos âmbitos se inserem os três investigados, cada um com suas características. Scarrone, embora com seu singular percurso de enfrentamento do regime fascista, não deixa de se inserir numa trama de relações, sobretudo no âmbito da Lidu, da própria Maçonaria, e de tentativas como a criação de uma sociedade gráfica, provavelmente 268 para a difusão de impressos antifascistas, ainda na década de 1920. Scala, Infante e outros são os nomes que acompanham suas andanças, assim como em seguida ele entrelaçará relações de amizade e colaboração com o próprio Frola, Petraccone e Ferrero. Há um registro de aproximação com Battistelli, provavelmente devido à frequentação comum da Lidu carioca. Dos três é o que menos parece ligado ao mundo do antifascismo internacional, embora isso se deva a sua mais antiga chegada em terra brasileira, antes das ondas migratórias provocadas pelas leis fascistíssimas. Quanto a laços com o circulo intermediário, há poucos elementos disponíveis, praticamente só a proximidade com expoentes do socialismo local, como Evaristo de Morais. Seja na conjuntura de 1933-35, como em tempos mais tardios, quando da retomada do antifascismo italiano em 1942, a contribuição de Scarrone, desse ponto de vista, não apresenta registros significativos. Completamente diferente é o caso de Battistelli. A delineação de seu percurso permite acompanhar os anos centrais (1927-1936) do itinerário do antifascismo italiano no Rio de Janeiro. Libero está no centro do debate e das iniciativas, tanto na questão da Societá Italiana di Beneficienza, quanto no surgimento ou na criação de siglas e organizações. E isso tanto no mais restrito âmbito da colônia quanto no mais largo da sociedade carioca. Intervenções na imprensa, participação de eventos e palestras, amizades com expoentes de setores de esquerda da cidade constituem partes de seu percurso, até o ano de 1930. Nomes como os de Limongi, Itria, Mariani, Rosini, o próprio Scala, acompanham os passos de Libero e se destacam na proposta antifascista do período. A crise no periódico La Difesa, com a saída de Frola, contudo, questionando os rumos do antifascismo italiano no Brasil, atingem sua militância, que não diminui, mas se orienta para um período de maior reflexão e pela instauração de um debate aberto com o antifascismo italiano espalhado pelo mundo. Continuam vivos os laços com o antifascismo de matriz brasileira (Liga Anticlerical, Associação Antifascista), embora este encontre suas realizações mais significativas nos anos entre 1933 e 1935, com a Frente Única Antifascista, em São Paulo, os comitês antiguerreiros e a sucessiva criação da ANL. A esta altura, Battistelli, até alguns anos antes tão ativo e empenhado, parece buscar um tempo de reflexão e reconsideração, mesmo se destacando com algumas presenças no campo da editoria e com o apoio a intelectuais brasileiros ameaçados pela repressão do governo Vargas após o levante de 1935. A conjuntura da guerra na Espanha, no ano seguinte, o vê protagonista, e plenamente inserido no debate e nos embates do 269 antifascismo mundial. A memória de seu testemunho acompanhará os antigos companheiros, quais Petraccone e seus colaboradores, em suas tentativas e esforços durante os tempos difíceis do Estado Novo. A inserção de Libero no âmbito da rede antifascista internacional é evidente, como foi dito acima. Aqui, em forma de síntese, tem que ser registrada a que se mostrou, a nosso ver, como a mais preciosa contribuição e indicação metodológica e pragmática dele para o presente e o futuro do empenho do antifascismo: o frequente convite a uma experiência de luta unitária, capaz de valorizar a contribuição de cada um, e alheia sobretudo a preclusões politico-ideológicas. Mais ainda, ele indicava uma metodologia de trabalho no percurso de qualquer âmbito de antifascismo, de qualquer lugar onde se encontrassem expoentes, mesmo de diferentes orientações politicas, válida tanto para a realidade parisiense como para outras: a prática de um diálogo buscado e exercido constantemente, através de encontros frequentes, diários, informais, voltados a criar uma proximidade e intimidade entre os antifascistas do local. Isto ele experimentara na realidade do Rio de Janeiro, sobretudo na década de 1930, mesmo com o grupo dos antifascistas cariocas reduzido a poucas unidades. Fosse a editora de Petraccone o ponto de referência, ou a de Garavini ou ainda um ou outro local de encontro, esta pequena mas significativa prática de confronto e alimentação do ideário antifascista provavelmente permitiu à pequena realidade carioca de não desmoronar diante das dificuldades da luta e, mais tarde, das investidas da ofensiva varguista contra o comunismo. Aproximar essa tentativa daqueles âmbitos onde se alimenta o pensamento de um grupo de intelectuais, sejam eles a redação de uma revista ou um jornal ou uma editora, e que Sirinelli chama de “estruturas de sociabilidade” ou de “microclimas”, parece perfeitamente plausível, assim como caracterizar Libero como uma autêntica figura de intelectual, segundo as indicações do próprio historiador francês. A mesma prática de colaboração, Battistelli perseguiu durante o conflito na Espanha, com alternos resultados, mas sempre buscando um diálogo com anarquistas e socialistas, republicanos e gielistas, e até com comunistas (aliás, foi justamente o desejo de mostrar como GL estivesse disposta a participar do esforço da coluna italiana promovida por socialistas e comunistas que o levou a aderir à mesma). O anarquista Garavini também se insere em circuitos mais amplos. Do ponto de vista internacional, jornais recebidos alimentam o ideário, cartas permitem trocas de experiências, assim como a frequentação de expoentes libertários brasileiros, italianos e 270 de outras nacionalidades, presentes na Capital Federal, sobretudo no âmbito da Liga Anticlerical, favorecem o permanecer de um empenho no âmbito do anarquismo. Laços com expoentes antifascistas italianos de outras orientações também estão presentes em seu percurso. Talvez a mais significativa forma de colaboração com forças e expoentes da esquerda nacional antifascista acontece a partir da experiência da livraria e da editora, assim como, em meados da década de 30, a proximidade com Battistelli e o núcleo antifascista ao redor dele cimenta laços no âmbito da comunidade de língua italiana. Confirmados, negados ou reinventados, esses laços se manifestarão no começo da década de 40, quando da retomada do antifascismo italiano, em ocasião da decisão brasileira de lutar contra o Eixo. Então, nomes como Garritano, Cingolani, Peotta, Maddalena, Agnesini, anarquistas alguns, de outras filiações a maioria, estarão do lado de Nello, na tentativa de mostrar para a sociedade carioca e a nação brasileira que havia antifascistas que não se enquadravam na proposta filo-americana da Mazzini Society e de seus representantes no Brasil, os Italiani Liberi. O registro, afinal, de uma presença com um rosto mais identificado com a componente de esquerda da coletividade italiana do Rio de Janeiro. Ainda no contexto das considerações finais sobre os laços entre os três italianos e os ambientes do antifascismo nacional, particularmente no tempo em que esse último estava mais atuante e militante, isto é, após 1933 e até finais de 1935, não há registros particularmente significativos de apoio ou encontro entre a realidade italiana e a brasileira, no que diz respeito à cidade do Rio de Janeiro. Enquanto em São Paulo, há a significativa colaboração entre expoentes e grupos antifascistas italianos (Frola, Rosini), por exemplo, na criação da FUA, (ainda que esta organização tenha duração efêmera), na Capital Federal, com exceção de algumas tentativas, sobretudo em 35, de presença nos periódicos da cidade, envolvendo o próprio Battistelli, os canais de comunicação e colaboração são quase inexistentes ou pelo menos sem registros documentais. Com Bertonha, então, concluímos que também no caso do antifascismo italiano da Capital Federal, os laços entre ele e o mundo politico nacional foram precários e fracos, de qualquer forma incapazes de sustentar e consolidar uma experiência. Em que medida esses laços foram buscados, construídos ou alimentados pelos italianos, ou, porventura, por eles negligenciados, e em que medida foram impedidos de se estreitar por julgar, a comunidade politica brasileira, que a do antifascismo fosse uma batalha unicamente 271 italiana, é questão a respeito da qual a documentação pesquisada torna difícil uma resposta categórica. 3. Scarrone, Battistelli e Garavini articulam também sua atuação antifascista com uma inserção no tecido socioeconômico da Capital Federal. A esse respeito, a presença de Battistelli é mais discreta: advogado brilhante na Itália, sua atuação no mesmo âmbito sendo praticamente impossível no Brasil, se dedica aqui à atividade de jornalista, ensaísta e militante do antifascismo. Apoiando-se economicamente em recursos próprios e na atividade da esposa, chega a ser proprietário de uma pequena fazenda em Mangaratiba, mas a impressão é que, do ponto de vista de um compromisso profissional, mente e projetos dele estejam em outro lugar. Quanto a Scarrone, ele torna efetiva no Rio de Janeiro aquela empreitada que sempre desejou concretizar em seus anos italianos: uma fábrica através da qual produzir vidro, ensinar uma arte e ao mesmo tempo realizar uma repartição da riqueza gerada, em nome dos ideais socialistas e cooperativistas alimentados desde jovem. A Fábrica Nacional de Vidros chega a dar trabalho a 500 funcionários, mas a tentativa de partilha dos lucros, parcialmente realizada no começo, esbarra em exigências trabalhistas e regulamentações legislativas que a tornam inviável, nos termos em que Giuseppe a tinha concebido. O sonho do paesano - conquistar um lugar na elite econômica da sociedade e assim poder repartir a riqueza entre os produtores da mesma - permanece um sonho, então, só parcialmente realizado. Sua indústria, porém, se estabelece no cenário municipal e nacional, como uma das mais importantes do setor, e sua dedicação profissional, sua figura de empresário, encontram reconhecimento e consideração no âmbito da cidade. Sua contribuição para a sociedade carioca, além da permanente voz levantada contra as injustiças, as inverdades e as ilegalidades perpetradas pelo fascismo e pelos fascistas, na Itália como no Brasil, se consagra a partir do estabelecimento que, junto com seus irmãos, contribuiu a criar, paixão de uma vida e tentativa de construção de um mundo menos desigual. A Minha Livraria, realização comercial de Garavini, tem vida breve. Menos de uma década, entre os anos do crescimento dos movimentos de esquerda nacionais (1933-35) e o refluxo do antifascismo para posições de defesa e de espera, debaixo do olhar controlador e ameaçador do Estado Novo varguista. Quando o clima politico parece fazer-se mais tranquilo, devido a um possível e esperado (mas nunca ocorrido) apoio do 272 governo à presença de italianos desde sempre em luta contra o fascismo, Garavini, talvez cansado de perquisições e investigações, assim como do clima de suspeita cercando todos os italianos indistintamente, ou simplesmente devido a algum tipo de dificuldade financeira com o negocio, já tem encerrado a atividade comercial. Dela, permanecem tanto a publicação de títulos significativos, a maioria em sua primeira edição absoluta no Brasil, sobretudo de literatura anarquista ou de esquerda, quanto a manutenção de um ponto de venda no centro da cidade que é também local de encontro, de trocas culturais e politicas, de alimentação de um ideário antifascista. Pequeno, mais tarde vigiado e controlado, mas espaço de liberdade e de resistência. 4. Algumas considerações merece nesta sede a questão, levantada por Trento e Bertonha em diversos estudos deles, e que atravessa de forma transversal também este trabalho, do assim chamado “fracasso” do antifascismo italiano no Brasil, isto é, sua incapacidade, de um lado, em conquistar adesões e simpatias no âmbito da colônia de compatriotas e, do outro, de se colocar com resultados significativos no contexto da sociedade nacional. Concordamos na análise dos fatores que levaram a uma relativa debilidade da proposta do antifascismo de origem italiana, sobretudo quando se aponta, como explicação, para a já mencionada dificuldade em criar e manter sólidos pontos de contato e solidariedade com o mundo antifascista nacional, por sua vez causada também, após 1935, pelo forte clima repressor instaurado no país. O que parece importante, contudo, é, mesmo assinalando essa situação, nos perguntarmos se a categoria do fracasso seja adequada para descrevê-la do ponto de vista historiográfico. A pergunta vale não somente para o caso brasileiro, mas também para toda experiência de emigração politica antifascista de origem italiana naquele período: o próprio caso da França, para ficar no mais importante, mostra evidentemente como a longa luta contra o fascismo, conduzida naquela nação, mesmo com um apoio da opinião publica e das organizações de esquerda locais bem maior do que no caso brasileiro, acabou em escassez de resultados e abandono de muitas propostas politicas de resistência. O presente trabalho, partindo do ponto de observação da realidade do Rio de Janeiro, revela como os antifascistas italianos encontraram dificuldades de natureza variada para alimentar e sustentar suas propostas e realizações, em parte devidas a seu próprio meio (escassez de instrumentos, reduzido número de militantes ativos, dissensões), em parte devidas à resistência do contexto local e nacional em ouvir sua voz. Isto levou a movimentos pendulares em sua atuação, ora com o multiplicar-se 273 de iniciativas e siglas, ora com evidentes recuos. Da mesma forma, assinalou-se como, em alguns casos, os tempos longos do embate com o inimigo, estabelecido como um regime que conquistava popularidade e consensos tanto na pátria como junto aos governos e opiniões publicas estrangeiras, provocou não poucas desistências nos meios antifascistas. Há aqui de se perguntar, contudo, como avaliar esses aparentes fracassos da proposta. Podemos fazê-lo, nesta sede, a partir dos percursos analisados, de Scarrone, Battistelli e Garavini, comparados também com os dos outros antifascistas que acompanharam seus caminhos no Rio de Janeiro daqueles anos. Para os três, assim com para muitos dos outros, pode-se falar de muitos momentos de frustração, desânimo, até reavaliação de propostas e instrumentos, nunca de abandono de uma tentativa de luta. Neles, certamente havia a consciência das dificuldades dela. Afinal, o próprio fato de ter que se exiliar para sobreviver e resistir, era por si só uma experiência de “fracasso”. Somada a isso, havia a dificuldade em conquistar os membros da coletividade italiana no exterior, a cujos ouvidos a propaganda fascista chegava com força, veiculada na realidade da Capital Federal pelos órgãos da diplomacia aqui presentes. Contudo, pelos itinerários estudados, mesmo com as dificuldades assinaladas, o que permanece é a impressão de uma consciência que se alimentava, até de eventuais fraquezas e fracassos. É difícil determinar como e quanto a ação e o testemunho dos três antifascistas tenha contribuído em sustentar luta e resistência ao fascismo no restante da colônia italiana do Rio de Janeiro, nos meios políticos nacionais ou até na própria pátria deles. Mas talvez até de “fracassos”, como o cerceamento aos opúsculos de Scarrone e sua condenação pela justiça italiana, o controle, as perquisições e a restrição dos espaços para a livraria de Garavini e até a morte na linha de fogo de Battistelli numa guerra que nunca seria vencida pelo antifascismo, até desse tipo de fracassos a luta e o esforço dos antifascistas se alimentava, no Brasil como em outras partes do mundo. 5. “Reconstruir a curva de um destino”, foi falado mais acima para descrever a tentativa de mapear aqui percursos e empenhos dos militantes do antifascismo. É o que se tentou fazer com os três percursos principais, e em forma menor, com os outros. De Luna, mais uma vez, vem em nossa ajuda, dando voz a uma dificuldade sempre percebida ao longo da pesquisa e da redação final: de um lado, havia a vontade contínua de delinear quadros coletivos que oferecessem certezas interpretativas, com seguras margens de 274 conhecimento científico, do outro, a surpresa de se deparar com uma rede de vividos e escolhas subjetivas, transmitida pela multiplicidade das fontes pesquisadas. A solução, se uma solução pode haver diante deste tipo de problema, que é o de conciliar a pluralidade dos casos e das experiências pessoais com a exigência de uma síntese que reconduza a uma unidade a trama das experiências, talvez esteja, como num problema de física, na busca da “resultante” do sistema de forças que atuam num mesmo corpo. Buscar e tentar descobrir essa “resultante” ao final de nosso itinerário, após a leitura e a análise de tantos caminhos pessoais, talvez possa nos restituir uma identidade coletiva do antifascismo italiano em ação. Afinal de contas, como comenta Sirinelli numa recente entrevista, ao contrario da militância, pela qual há o bom e o mau, a história exige um trabalho que compreenda a complexidade. Pois a realidade restituída pelo historiador, por definição, é sempre complexa. Isso foi percebido ao longo da pesquisa: o esforço foi, então, mesmo não podendo deixar de simpatizar com nossos investigados e sua luta, tentar reconstruir termos e dimensões daquela complexidade. 275 ACERVOS E BIBLIOGRAFIA Acervos pesquisados Italia Archivio Centrale dello Stato (ACS) – Roma Archivio Storico Societá Dante Alighieri – Roma Biblioteca Libertaria Armando Borghi (BLAB) – Castel Bolognese Fondazione Giangiacomo Feltrinelli (FF) – Milão Biblioteca Comunale Centrale (Sormani) – Milão Istituto per la Storia del Movimento di Liberazione in Itália (INSMLI) – Milão Istituto Piemontese per la Storia della Resistenza e della Societá Contemporanea (ISTORETO) – Turim Istituto Storico Parri – Bolonha Istituto per la Storia della Resistenza e della Società Contemporanea nella Provincia di Bologna (ISREBO) – Bolonha Istituto Storico della Resistenza in Toscana (ISRT) – Florença Biblioteca Nazionale Centrale di Firenze (BNCF) – Florença Brasil Instituto Cultural Ítalo-Brasileiro (ICIB) - São Paulo Projeto Integrado do Arquivo Público do Estado e da Universidade de São Paulo (PROIN) – São Paulo Arquivo Nacional (AN) – Rio de Janeiro Arquivo Público do Estado do Rio de Janeiro (APERJ) / Delegacia de Ordem Política e Social (DOPS) - Rio de Janeiro Arquivo de Memória Operária do Rio de Janeiro (AMORJ) – Rio de Janeiro Biblioteca Nacional (BN) – Rio de Janeiro Instituto Histórico e Geográfico Brasileiro (IHGB) – Rio de Janeiro Istituto Italiano di Cultura (IIC) – Rio de Janeiro 276 Fontes primárias A) Giuseppe Scarrone Opúsculos Dopo un anno di governo fascista in Italia. 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