Cinema e Psicanálise

Transcrição

Cinema e Psicanálise
Universidade Federal de São Carlos - UFSCar
Centro de Educação e Ciências Humanas
Departamento de Artes e Comunicação
Revista Universitária do Audiovisual
Dossiê #12 – Cinema e Psicanálise
Organização
Marcelo Félix Moraes e Melina Simardel Dantas
Coordenador
Samuel Paiva
Maio de 2012
ISSN: 1983-3725
Equipe Editorial
Coordenador
Samuel José Holanda de Paiva
Vice-coordenador
Pedro Cordebelo Dolosic
Editores Gerais
Fernanda Sales
Jéssica Agostinho
Thiago Jacot
Editores Responsáveis – Dossiê #12 – Cinema e Psicanálise
Marcelo Félix Moraes e Melina Simardel Dantas
Conselho Editorial do Dossiê #12 - Cinema e Psicanálise
Gilberto Alexandre Sobrinho (Multimeios/Unicamp)
Marcelo Gil Ikeda (Cinema e Audiovisual/UFC)
Flávia Cesarino Costa (DAC/UFSCar)
Josette Monzani (DAC/UFSCar)
Samuel José Holanda de Paiva (DAC/UFSCar)
Editores e Revisores do Dossiê #12 - Cinema e Psicanálise
Lucas Scalon
Virgínia Jangrosi
Amanda de Castro Melo Souza
Lidiane Volpi
Sofia Mussolin
Victória Cristina
Patrícia Castilho
Marcelo Felix Moraes
Melina Simardel Dantas
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Índice
Apresentação
Por Marcelo Félix Moraes
Pág. 05
Cinema e Psicanálise – Modos de usar
Por Mirian Tavares
Pag. 06
Cinema e psicanálise: os sinthomas hitchcockianos
Por Mauro Eduardo Pommer
Pag. 12
Documentando entre a memória e a linguagem
Por Larissa Leda Fonseca Rocha e Lívia Janine Leda Fonseca Rocha
Pag. 28
O filme Clube da Luta: Leituras Psicanalíticas Possíveis
Por Miriam Chnaiderman
Pág. 41
Freud e Méliès: cinema, sonho e psicanálise
Por Ronis Magdaleno Júnior
Pág. 55
Os Homens que Não Amavam as Mulheres, uma reflexão sobre o feminino
Por Daniela Quevedo
Pág. 68
Império dos Sentidos: A experiência pornográfica como expressão da liberdade
Por Plynio Thalison Alves Nava e Antonielly Cantanhêde Wolff
Pág. 77
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Lacan com Spielberg – O Olhar Abjeto da Nova Lei
Por Ivan Capeller
Pág. 90
Um método perigoso: o avesso da psicanálise
Por Janaina Namba
Pág. 105
O monstro, o cinema e o medo ao estranho
Por Verônica Guimarães Brandão
Pág. 116
Notas psicanalíticas sobre o Fantasma, de Murnau
Por Amadeu de Oliveira Weinmann
Pág. 127
A Partida, de Yojiro Takita, numa perspectiva psicanalítica do corpo
Por Bianca Scandelari
Pág. 140
A Professora de Piano: Notas Perversas
Por Raya Angel Zonana
Pág. 149
Raquel e o Duplo ou — Programa Moderno de Produção das Garotas de um Diário
Por Alessandro Zir
Pág. 163
O Teremin e a Psicanálise no Cinema Norte-americano
Por Fabrizio Di Sarno
Pág. 171
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Apresentação
A 12º edição do Dossiê da RUA aborda o tema Cinema e Psicanálise nos seus mais
diversos aspectos buscando compreender os meandros dessa relação e os caminhos que se
apresentam com as pesquisas e as reflexões sobre essa temática. Contando com análises
baseadas nas teorias de Freud, Jung, Lacan entre outros teóricos e psicanalistas, os autores
tratam de uma grande variedade de filmes como A Professsora de Piano, A Partida, Bruna
Surfistinha, Fantasma, Clube da Luta, Minority Report, Império dos Sentidos, Os Homens
que Não Amavam as Mulheres e Um Método Perigoso.
Apresentamos também artigos que analisam a obra de Hitchcock, a relação entre o
nascimento da psicanálise com Freud e obra de Méliès, a relação entre a memória e a
linguagem, uma abordagem sobre monstros, cinema e o medo ao estranho, outra sobre o
Teremin e a psicanálise no cinema americano, além de um artigo sobre a própria relação entre
cinema e psicanálise.
Todos os artigos foram apreciados pelo Conselho Editorial do Dossiê composto por
Gilberto Alexandre Sobrinho, Marcelo Ikeda, Flávia Cesarino Costa, Josette Monzani e
Samuel Paiva. Agradecemos a participação valorosa dos autores que contribuíram com os
artigos importantes para essa publicação e aos conselheiros e editores que colaboraram com a
análise, edição, revisão e publicação deste Dossiê. Muito obrigado a todos.
Uma ótima leitura e reflexão sobre Cinema e Psicanálise!
Marcelo Félix Moraes
Organizador do Dossiê – Cinema e Psicanálise
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Cinema e Psicanálise – Modos de usar
Mirian Tavares1
Resumo
As relações entre o cinema e a psicanálise são de diversas ordens: desde as mais óbvias - os dois textos
são frutos da tarda-modernidade e influenciaram a cultura do séc. XX - até as mais específicas –
teorias que tratam do funcionamento da mente humana e das suas relações com o modo de
funcionamento do cinema. Neste texto procuro analisar as aproximações entre o Cinema e a
Psicanálise buscando encontrar as ideias em comum sobre a mente humana que ambos compartilham e
de que maneira, ao longo do tempo, os teóricos do cinema usaram a psicanálise como uma ferramenta
de desvelamento do texto fílmico.
Palavras-chave: Cinema, Psicanálise, Modo de Representação Institucional.
Film and Psychoanalysis – Ways to use
Abstract
The relations between cinema and psychoanalysis are several: from the most obvious - the two texts
emerge in late nineteenth century and influenced the culture and arts - to the more specific - dealing
with the functioning of the human mind and its relations with the operation of the cinema. In this
paper I‘ll to analyze the similarities between cinema and psychoanalysis and how the film theorists
have used psychoanalysis as a tool for uncovering the film.
Keywords: cinema, psychoanalysis, ways of institutional representation.
Luís Buñuel, cineasta e surrealista, disse um dia: bastaria à branca pupila da tela do
cinema poder refletir a luz que lhe é própria para fazer explodir o universo. O que é o cinema?
(Pode parecer uma questão demasiado óbvia). De que maneira nos relacionamos com um dos
textos mais poderosos do século XX? Que resiste ainda no século XXI, apesar de ter perdido
o estatuto de ser o ecrã para onde todos os olhos se voltavam - hoje a TV e os ecrãs do
computador ocupam mais espaço, mas o cinema alcançou outro estatuto. Deixou de ser o
centro fornecedor de imagens, e converteu-se ele mesmo numa grande fonte referencial. É
nele que os outros se alimentam ou se alimentaram. Como ele, um dia, se alimentou do real.
O cinema, neste instante, chega mesmo a ocupar o lugar do real na produção da iconografia
contemporânea.
1
Professora Associada da Universidade do Algarve, Portugal. Coordenadora do CIAC – Centro de Investigação
em Artes e Comunicação (www.ciac.pt)
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Cinema e psicanálise surgem, praticamente, ao mesmo tempo: em 1895, quando os
irmãos Lumière traziam à luz o seu invento (ou melhor, uma versão aperfeiçoada do aparelho
de Edson), Freud publicava, com Breuer, os Estudos Sobre a Histeria. É interessante notar
que Freud nunca se ocupou desta nova arte, apesar de ter feito analogias entre o aparelho
psíquico e alguns aparelhos ópticos. Foi Lou Andreas Salomé que em 1913 disse que a
técnica do cinema era a que mais se aproximava do funcionamento da mente humana no que
diz respeito às nossas faculdades de representação. Para ela, o futuro do cinema poderia
contribuir para desvendar o funcionamento da nossa constituição psíquica. É interessante
observar o percurso de aproximação destes dois textos, a psicanálise e o cinema, tão
fundamentais no séc. XX, ao longo da história. E mais ainda é interessante perceber que tanto
um como o outro colocam em evidência o sujeito e é através dele que vão se constituir
enquanto instrumento de compreensão ou de sedução da mente humana.
O sujeito passa a se reconhecer como lugar originário do sentido. Os aparelhos
ópticos, quando surgem, servem para tirar o sujeito deste centro, é só pensarmos na era de
Galileu e no fim do geocentrismo. Mas são também os aparelhos ópticos que recolocam o
homem no centro da produção imagética ocidental. Através da câmara obscura, o
Renascimento reorganiza o espaço privilegiando o olho do homem, elemento central,
princípio da coerência e da ordem. O espaço geometrizado do Renascimento subverte as
hierarquias da imagética medieval e o aparente caos é substituído por uma nova ordem. Se os
artistas da renascença alimentaram pretensões demiúrgicas, de competir com Deus na criação
do universo (aliás, é nesta altura que o artista passa a ser chamado CRIADOR), concretizam
suas pretensões na criação de um universo imagético mais que perfeito, hiper real, criando, ao
mesmo tempo, a ilusão de que estavam apenas a reproduzir O REAL. E este olhar é
incorporado pela câmara, o homem volta a ter um lugar na iconografia ocidental, depois de ter
sido violentamente banido pelas vanguardas que tenderam, de uma maneira ou de outra, para
a abstracção e dissolução do sujeito. E a câmara, como um olho aperfeiçoado, passeia pelo
corpo do homem, reconstruindo, metafórica e metonimicamente o sujeito.
Falar de cinema é também fazer uma opção por um modelo que melhor se adeqúe
àquilo que queremos sublinhar. Assim, quando falo de cinema neste texto, refiro-me ao Modo
de Representação Institucional (MRI). Conforme Noel Burch, MRI é o termo que substitui e
aprofunda um conceito, o de cinema clássico, produto de Hollywood. E porque nos
interessamos particularmente por este? Por ser exatamente o modelo que mais vai ser
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explorado por todos aqueles que se aproximaram do objeto cinema como espaço de
investigação utilizando o instrumental analítico da psicanálise.
Em 1916 Hugo Munsterberg escreve aquela que é considerada a primeira teoria do
cinema, The photoplay:a psychological study. Nesta obra defendia, já de partida, que o
cinema que realmente interessava era o narrativo. Numa altura em que o cinema descobria a
sua gramática e se organizava enquanto linguagem, Munsterberg já vaticinava qual deveria
ser a vocação do cinema: contar histórias através das imagens. E vai analisar de que modo o
cinema se organiza enquanto dispositivo de representação e, neste processo, encontra imensas
similitudes entre o cinema e o funcionamento da mente humana. Para Musnterberg era óbvio
que as propriedades cinemáticas eram também propriedades mentais, e que o cinema não
acontece no ecrã, onde é projetado, mas é a nossa mente, que organiza o relato, da mesma
maneira que organiza também o mundo que a circunda. Tomemos, por exemplo, o mecanismo
da atenção. A mente não vive apenas num mundo em movimento, ela organiza esse mundo
através da propriedade da atenção. Somos capazes de hierarquizar aquilo que nos rodeia e
construir o nosso próprio percurso no real. O cinema utiliza este mesmo mecanismo só que de
uma maneira bastante perversa. Ele manipula a nossa atenção, obrigando-nos a ver apenas
aquilo que o olho da câmara capta. Além daquela imagem ali plasmada, só há o escuro da sala
que nos circunda.
E o escuro da sala que nos circunda, além da manipulação do nosso olhar, é um tema
que vai gerar os mais profícuos estudos na área do cinema produzidos, como já disse, com
instrumental da psicanálise. É através da compreensão de uma situação cinema que teóricos
como Mauerhofer, Christian Metz, Jean-Louis Baudry, Oudart, Barthes e Emile Benveniste,
dentre muitos outros, vão penetrar nos mecanismos ideológicos deste texto cultural que é, ao
mesmo tempo, instituição, dispositivo e linguagem.
Nietzsche, em O Nascimento da Tragédia, diz: ―ver a si mesmo metamorfoseado
diante de si e agir agora como se tivesse entrado em outro corpo, em outra pessoa‖. Fala-nos
aqui da identificação, necessária para o gozo e catarse diante do texto que se desenrola
perante os nossos olhos. E, ao falarmos do cinema, esta sua afirmação torna-se ainda mais
precisa, pois, conforme Baudry, o cinema é um aparelho de simulação que não se contenta em
fabricar imagens simulacros, percebidas como representação da realidade, mas dirige-se ao
espectador, como sujeito psíquico, provocando o ―efeito-cinema‖, o retorno a um narcisismo
relativo, a uma forma de realidade envolvente na qualos limites do próprio corpo e a sua
relação com o exterior não são muito precisos. O corpo se expande através do olhar. Para
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Emile Benveniste, no cinema, os acontecimentos ―parecem se narrar a eles próprios.‖ Daí a
preferência de alguns estudiosos pelo Modo de Representação Institucional, pois é ele que
necessita, mais do que qualquer outro, ser desvendado. Desmascarado. O cinema clássico
escamoteia o discurso, ou melhor, escamoteia a sua condição de discurso, provocando, no
sujeito, uma identificação maior do que em qualquer outra arte do espectáculo.
A análise da situação-cinema é apenas uma das vertentes de aproximação da
psicanálise ao cinema. Mas, para mim é, sem dúvida, uma das mais interessantes. Nos anos 60
Mauerhofer vai analisar o que leva um sujeito a se entregar, desarmado, quase sempre, a esta
relação com o cinema. Ele nos fala da entrada na sala escura, do corte com a realidade
exterior que seria ainda mais perfeito numa sala de cinema ideal, completamente às escuras. E
neste escuro, que para Barthes cria a mesma sensação do devaneio crepuscular, que coloca o
sujeito num estado pré-hipnótico, surge também outras condições que desempenham papéis
decisivos na situação cinema, tais como: sensação alterada de tempo e espaço, tédio incipiente
e exacerbação da atividade da imaginação. Além disso, Baudry acrescenta mais alguns
aspectos fundamentais para se compreender a situação do espectador. Utilizando o mito da
caverna platônica, Baudry vê o espectador do cinema numa situação similar: ele está ali
―amarrado‖ à cadeira, numa caverna escura (uterina, segundo Barthes), onde só tem acesso às
sombras projetadas no ecrã. Imobilidade em uma sala escura provoca o retorno a um estado
antigo do psiquismo, a uma regressão, da pessoa que dorme. O dispositivo fílmico é vizinho
ao dispositivo do sonho. (Por isso os surrealistas se interessaram tanto pelo cinema e por isso
acreditavam verdadeiramente na sua capacidade transgressora).
Imaginemos agora o sujeito na situação cinema, diante de um filme narrativo clássico,
cujo tema central quase sempre recai no herói que sai de casa, para, depois de cumprir a sua
tarefa, regressar. Maria Rita Kehl faz uma análise interessante deste cinema do eterno retorno.
Para ela, o cinema americano típico está sempre a mostrar o herói a romper com a ordem para,
logo de seguida, restabelecê-la. Ele sai de casa numa situação marginal, periférica, passa por
provas que o reconstroem e o fortalecem (mito do herói) e volta para ocupar um lugar central,
o lugar do pai. Recriando assim o mito descrito em Totem e Tabu, onde se torna necessário
matar o pai primitivo para voltar e inscrever o mito na linguagem. E, como disse Lacan, o
inconsciente é estruturado como uma linguagem, e a linguagem do cinema vai ajudando a
construir e reorganizar o real, também ele partícipe ativo deste jogo que estabelecemos
quotidianamente na tentativa de instaurar e inscrever novos sentidos. Lou Andreas Salomé
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tinha razão quando afirmou, em 1913, a importância do cinema em relação á nossa
constituição psíquica.
Além da situação cinema, há que se ressaltar outra relação importante que o cinema
mantém com o nosso psiquismo. A pulsão escópica. A relação, na pulsão escópica, repousa na
ausência do objecto percebido, daí o caráter imaginário do seu significante, que se torna uma
miragem perceptiva. O cinema pode ser visto como um encontro fracassado, conforme
Christian Metz, entre um voyeur, o espectador, e um exibicionista, o ator. E, ao mesmo
tempo, é estabelecido um jogo da identificação, que pode ser, no caso do cinema, primária ―eu vivo‖ - e secundária - ―eu vejo‖. E é no espaço entre, ou seja, não no que efetivamente
vejo, mas naquilo que o cinema me faz ver, que nos deixamos dominar pelo filme. O filme
que opera, em todos os níveis, provocando tensões. Por exemplo, tensão entre o fluxo
narrativo e o close up, matéria cara à teoria feminista do cinema, que analisa assim a
erotização do rosto feminino no cinema clássico de Hollywood. O rosto, destacado do fluxo
narrativo, provoca stasis e cria uma retórica do não-movimento, uma pequena morte, um
instante de prazer. Que justifica o impulso à escopofilia e reitera o ponto de vista
marcadamente masculino deste tipo de cinema.
A femme fatale revela e oculta. Seu rosto, despido no ecrã, ainda esconde segredos.
Segredos que irão aguçar o desejo do desvelamento, imbricação de epistemofilia com
escopofilia: desejo de conhecer e de ver, mas ao mesmo tempo reconhecer que o visível não
está ao alcance da mão, mas está ou esteve ali. Porque é antes de mais nada fotografia em
movimento, com carácter ontológico que nos relembra uma presença, agora ausente. O isso
foi do Barthes. Na foto, como no filme, a presença fica impressa pela luz, no fotograma. E
esta presença emana provocando o desejo. Desejo que nem sempre deve ser explicitado, daí a
necessidade de sublimação ou recalque. Ele está ali, só que não deve ser presentificado ou
exposto.
Se o cinema serve como mecanismo de recalque ou sublimação, serve também para
revelar o não-dito. Para mostrar o que o espaço das paredes, entre as janelas, esconde. Para
algumas vezes, deixar que o fora de campo invada o cenário e dialogue com ele abertamente.
Mas isso, no cinema do entretenimento, no cinema do M.R.I., no tipo de cinema que triunfou,
acontece muito pouco. E é por isso que Buñuel, que havia celebrado o poder transgressor do
cinema, acaba por dizer: ―Mas, por ora, podemos dormir em paz, porque a luz
cinematográfica encontra-se devidamente dosada e aprisionada‖.
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Referências Bibliográficas
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AUMONT, Jacques. A Imagem. 2ª ed. Campinas, Papirus, 1995.
AUMONT, J. e MARIE, Michel. Dicionário Teórico e Crítico de Cinema. Campinas, SP, Papirus,
2003.
BARTHES, Roland. Mitologias. 3ª ed. Rio de Janeiro, Difel, 1978.
BURCH, Noël. Praxis del Cine. 4 Ed. Madrid, Fundamentos, 1983.
BRUNETA, Gian Pietro. Nacimiento del Relato Cinematográfico. Madri, Cátedra, 1993.
CHNAIDERMAN, Miriam. Ensaios de Psicanálise e Semiótica. São Paulo, Escuta, 1989.
METZ, Christian. A Significação no cinema . São Paulo, Perspectiva, 1972.
MONTIEL, Alejandro. Teorías del cine . Barcelona, Montesinos, 1992.
MORIN, Edgar. As Estrelas: mito e sedução no cinema. Rio de Janeiro, José Olympio, 1989.
TOSI, Virgilio. El Lenguaje de las Imágenes en Movimiento. México, Grijalbo, 1993.
XAVIER, Ismail. O Cinema no Século. Rio de Janeiro, Imago, 1996.
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Cinema e psicanálise: os sinthomas hitchcockianos
Mauro Eduardo Pommer2
Resumo
O conceito lacaniano de sinthoma, aplicado à criação artística, pode auxiliar-nos a compreender a
construção de obras como a de Alfred Hitchcock, onde obsessões temáticas compõem a trama narrativa
na qual vem se inserir o lugar do espectador enquanto sujeito.
Palavras-chave: psicanálise lacaniana; criação imagística; sinthoma.
Cinema and psychoanalysis: hitchcockian sinthomes
Abstract
Lacan‘s concept of sinthome, applied to artistic creation, may help us understand the construction of
works such as Alfred Hitchcock‘s, in which thematic obsessions integrate the narrative web where the
spectator can insert himself as subject.
Keywords: Lacan psychoanalysis, imagistic criation, sinthome
As possibilidades de se refletir acerca das interseções entre os campos do cinema e da
psicanálise conheceram importantes tentativas de sistematização já desde os trabalhos
fundamentais de Metz, Baudry, Kristeva, Rosolato, Guattari, Barthes, Vernet e Bellour, entre
outros, na antológica edição número 23 da revista Communications, em 1975. Foi nela que Metz
inaugurou suas reflexões acerca do ―significante imaginário‖ e sobre as relações identificatórias
entre o filme de ficção e seu espectador; ainda onde Baudry retoma sua célebre noção acerca do
―dispositivo fílmico‖ publicada em Cinéthique, e Bellour trabalha sobre a decupagem de uma
sequência de Intriga Internacional de Hitchcock para propor o conceito de ―bloqueio simbólico‖.
Ainda no domínio francofônico, vale citar a coletânea especial de Cinémaction organizada por
Guy Hennebelle em 1989, colocando lado a lado intervenções de psicanalistas como Alain Dhote
e Félix Guattari e teóricos do cinema, tais como Bergala, Sorlin, Rouch, Metz, Vernet e Vanoye.
No Brasil, um balanço sobre esse campo de conhecimento ocorre em 2000, na coletânea
2
Professor no Curso de Cinema da Universidade Federal de Santa Catarina. Diplôme d‘Études Approfondies na
Université de Paris 1 - Panthéon-Sorbonne (1992), na área de Roteiro Cinematográfico; Doutorado: Doctorat en
Arts et Sciences des Arts - Université de Paris 1 - Panthéon-Sorbonne (1996), com a tese La question du point de
vue dans le récit cinématographique, disponível nas Éditions du Septentrion; pós-doutorado em Cinema na
Universidade da Califórnia, Los Angeles (2003), com pesquisa em scripts (sinopses literárias, argumentos,
roteiros) originais e documentos de produção de filmes de Alfred Hitchcock.
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compilada por Giovanna Bartucci, Psicanálise, cinema e estéticas de subjetivação, dentro do
mesmo espírito de contrapor as contribuições de teóricos do cinema como Fernão Ramos,
Francisco ElinaldoTeixeira e J. C. Bernardet às de psicanalistas como Birman, Kehl e
Chnaiderman, entre outros. Nesse campo das contribuições coletivas, pode-se destacar ainda a
obra organizada em 1999 por Janet Bergstrom, professora de cinema na UCLA, Endless Night –
Cinema and psychoanalysis, parallel stories, contando com contribuições de nomes como
Vernet, Zizek e Peter Wollen.
Em sua sistematização sobre as teorias do cinema na segunda metade do século 20,
Francesco Casetti confere um papel singular à contribuição da psicanálise nesse quadro,
atribuindo-lhe a característica de ter servido, em função de seu caráter de área de conhecimento
não claramente ―disciplinar‖, o papel de elemento de transição entre a fase de predomínio dos
estudos metodológicos – centrados em disciplinas como a psicologia, a sociologia e a semiótica
– e aquela que se articula a partir dos anos 1970, centrada em recortes transversais do objeto de
estudo, que colocarão em destaque temas como a ideologia, o estatuto da representação, o
feminismo, a dimensão textual do filme, os estudos culturais e os novos enfoques
historiográficos do cinema. Desse modo, o próprio fato da psicanálise, enquanto tal, constituir-se
como uma convergência de diferentes saberes, colocando como seu tema central a questão do
sujeito, propiciou terreno fértil à transição dos estudos de cinema em direção a esse novo
paradigma, que Casetti denomina ―teorias de campo‖ (CASETTI, 2003).
Dentro dessa apontada pluralidade de abordagens trazidas à teoria e à crítica
cinematográfica pelo confronto com a tradição psicanalítica, a via que aqui me interessa
desenvolver situa-se frente ao enfoque lacaniano acerca do inconsciente estruturado como uma
linguagem, o cotejamento dessa proposição com possibilidades conceituais relativas à noção de
uma ―linguagem cinematográfica‖, e as implicações disso no que tange ao lugar do espectador,
considerando-se a teoria lacaniana acerca da estrutura do sujeito.
O ponto de partida para isso encontra-se no exame que faz Lacan, em termos metafóricos,
da estruturação do sujeito como construção ótica, do que resulta sua posição teórica constituída
na forma de uma topologia na qual a posição ideal de um suposto observador da cena é condição
de possibilidade de um acesso produtivo ao Real (real aqui tomado no sentido psicanalítico, e
não no sentido filosófico). Em função dessa analogia metafórica da construção ótica como lugar
de um sujeito, pode-se também extrair de sua relação com o aparelho cinematográfico uma
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analogia ótica referente ao processo identificatório experimentado pelo espectador, que traga
avanços teóricos frente à clássica noção de ―dispositivo‖ de Baudry.
Para Lacan, a produção de imagens, e mesmo a constituição psicológica de uma ótica,
implicam que ―a todo ponto no espaço real corresponda um único ponto em um outro espaço,
que é o espaço imaginário [...] o espaço imaginário e o espaço real confundem-se‖ (DOR, 1995,
p. 35). Isso implica a existência de uma base psico-fisiológica para o fenômeno da identificação
via apreensão de imagens, para cujo entendimento faz-se mister a distinção entre imagens reais e
imagens virtuais. Assim: ―A escolha ótica é uma outra maneira calculada, para Lacan, de inserir
a tópica subjetiva no prisma das operações ao mesmo tempo imaginárias, simbólicas e reais de
que ela depende‖ (DOR, 1995, p. 35). Pois o sujeito opera simultaneamente nessas três esferas
psíquicas, a partir da instituição de um lugar estruturante pelo acesso ao simbólico (operante na
própria manifestação do fenômeno), de modo que o mundo real e o mundo imaginário estão
estreitamente intricados na economia psíquica.
Nesses termos, e tendo em conta a proposição topológica lacaniana da contínua transição
operada pela instância do Real entre o Imaginário e o Simbólico, minha atual linha de
investigação constitui-se da tentativa de aplicação desses conceitos ao exame de um corpus
fílmico, escolhido dentre a vasta obra de Alfred Hitchcock, realizador que possui como
procedimento estético central operar circunstancialmente uma espécie de torção no uso das
imagens ―reais‖ (no sentido da realidade diegética) como símbolos, causando um curto-circuito
na qualidade da percepção espectatorial, de maneira a buscar induzir continuamente o espectador
fílmico a confrontar-se com suas formações do inconsciente, como buscarei explicitar adiante.
O viés pelo qual encontrei um ponto de acesso psicanalítico à obra de Hitchcock,
condizente com a extrema formalização presente no pensamento de Lacan, foi aquele expresso
por Slavoj Zizek no artigo ―Alfred Hitchcock ou haverá uma maneira certa de fazer o remake de
um filme?‖ (ZIZEK, 2009). Buscando localizar o que seria a ―substância‖ característica de
Hitchcock, isto é, justamente aquilo que tende a se perder nas novas versões das mesmas
histórias, Zizek recorre a três características centrais, dificilmente traduzíveis para outras versões
audiovisuais, daquilo que identifica como conferindo a esses filmes seu caráter singular. Seriam
estas, especificamente, 1) aquilo que ele nomeia como o sinthoma hitchcockiano (tradução de
sinthome, seguindo a nomenclatura lacaniana); 2) o estatuto do olhar onipresente, de natureza
fantasmática; 3) a situação, também fantasmática, da presença nesses filmes de múltiplos finais
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virtuais como desfechos igualmente possíveis. Acerca da diferença conceitual entre sintoma
(symptôme) e sinthoma (sinthome), desenvolvida no texto deliberadamente críptico do Seminário
23 de Lacan (conforme observa Jacques-Alain Miller), o resumo a seguir pode ajudar a nos
situarmos quanto a suas implicações:
« Le sinthome est un terme employé par Jacques Lacan pour désigner une
particularité de la fonction que l'écriture eut pour l'écrivain James Joyce. Ce concept a
été élaboré dans les années 1975-1976, durant le séminaire intitulé « Le sinthome ».
Ceci prend du sens dès que l'on suit l'élaboration de la psychanalyse depuis Freud
jusqu'à Lacan. Autant Freud situait le symptôme comme étant bien plus une tentative
de guérison qu'une maladie au sens médical du terme, autant Jacques Lacan a
considéré le symptôme comme ce qui permet à un sujet de s'inscrire dans un lien 3 »
(http://fr.wikipedia.org/ wiki/ Sinthome).
Donde se depreende que a noção de sinthome (por oposição ao symptôme
psicossomático) está intrinsecamente imbricada com o exame do ato da criação artística, já no
próprio surgimento do conceito na obra de Lacan. Lacan trata a organização do psiquismo – com
seu trânsito contínuo entre o Real, o Simbólico e o Imaginário – como sustentada por esse
sinthoma, o que torna tal regime de funcionamento análogo ao de uma neurose constitutiva,
tendente a levar os processos mentais a percorrer trilhas repetitivas, previsíveis. Entretanto, para
enquadrar a particularidade das pessoas extremamente criativas, Lacan vai distinguir entre dois
tipos de sinthomas, que ele batiza de sinthome masdaquin e de sinthome qui roule. O primeiro
seria característico daqueles que se contentam com as formas de sublimação própria ao
―semblante‖, isto é, aquelas estabelecidas em torno de noções como o ser e seu esplendor, o
verdadeiro, o bom, o belo, a partir de uma lei de formação inicial. O segundo, equiparado àquilo
que Lacan destaca acerca da forma de organização criativa presente na obra de Joyce, liga-se à
atuação de um imaginário sem freios, produzido pela ruptura circunstancial da formação
caracterizada por Lacan como um nó borromeano, com o decorrente emaranhamento entre a
instância do Real e os processos simbólicos do inconsciente. Em outros termos, a ocorrência
daquilo que o próprio Joyce tratara como suas ―epifanias‖:
―Ainda preciso dizer algumas palavras que eu tinha preparado sobre a famosa epifania
de Joyce. [...] É totalmente legível em Joyce que a epifania é o que faz com que,
graças à falha, inconsciente e real se enodem. [...] A ruptura do ego libera a relação
3
―Sinthome é um termo empregado por Jacques Lacan para designar uma particularidade da função que a escrita
teve para o escritor James Joyce. Esse conceito foi elaborado nos anos 1975-1976, durante o seminário intitulado
`O sinthoma`. Isso ganha sentido quando se acompanha a elaboração da psicanálise desde Freud até Lacan.
Tanto quanto Freud situava o sintoma como sendo mais propriamente uma tentativa de cura que uma doença no
sentido médico do termo, Jacques Lacan considerou o sintoma como sendo aquilo que permite a um sujeito
inscrever-se em um vínculo‖ (Tradução do autor).
15
imaginária, pois é fácil imaginar que o imaginário cairá fora, uma vez que o
inconsciente lhe permite isso incontestavelmente‖ (LACAN, 2007, p. 151).
Dentre aquelas características que Zizek especifica como marcas identificáveis do estilo
de Hitchcock, aquela que me interessa no escopo da presente pesquisa vincula-se à identificação
e à discussão acerca da natureza psicológica e de sua representação no campo da linguagem
cinematográfica do que aí é apontado como manifestação da presença do sinthoma lacaniano
(que este distingue, como vimos, da noção de sintoma clínico), presentes nos diversos motivos
visuais que se repetem de filme para filme, em contextos totalmente diferentes. Os exemplos
desse procedimento estético, elencados por Zizek, são seis: 1) o motivo da queda num espaço
vazio, próximo daquilo que Freud identificara como ―queda suicida melancólica‖; 2) o motivo de
um carro à beira do precipício (quase uma variante do anterior); 3) o motivo da mulher que sabe
demais; 4) o motivo do crânio mumificado; 5) o motivo de uma casa gótica com grandes
escadarias; 6) o motivo da espiral que atrai para suas profundezas abissais (ZIZEK, 2009, p. 8283).
Cabe mencionar aqui que, conforme propõe Peter Wollen em Signos e significação no
cinema, um traço pelo qual se pode reconhecer aqueles realizadores que, em meio às limitações
postas pela lógica da produção industrial dos estúdios e pela natureza coletiva da produção
cinematográfica, lograram guardar sua marca autoral, está justamente a tendência à repetição de
motivos básicos, mas que se apresentam ―em termos de relações móveis, tanto na sua
singularidade como na sua uniformidade‖, onde Wollen reconhece a existência de uma dinâmica
dos signos próxima àquela das permutações que Lévi-Strauss identifica enquanto aspecto latente
na estrutura mítica, tornado perceptível pelo processo de repetição.
―Os mitos, como afirmou Lévi-Strauss, existem independentemente do estilo, da
sintaxe da frase ou do som musical, da eufonia ou da cacofonia. O mito funciona a um
nível excepcionalmente elevado em que o significado consegue praticamente arrancarse ao terreno linguístico onde se mantém em andamento. Mutatis mutandis, o mesmo é
verdade em relação ao filme de autor.‖ (WOLLEN, 1984, p. 106).
Nesses termos, é inegavelmente a construção dos enredos hitchcockianos em torno a
motivos recorrentes um dos fatores fundamentais que dão a seus filmes suas características
inimitáveis. Zizek propõe que tais motivos, sejam visuais, formais ou materiais, constituem um
conjunto de signos materiais ―que resiste ao significado e que estabelece conexões que não estão
alicerçadas nas estruturas simbólicas narrativas: estão apenas relacionadas numa espécie de
ressonância cruzada pré-simbólica‖ (ZIZEK, 2009, p. 83). De tal modo que, contrariamente ao
16
sintoma clínico, visto como código de um significado reprimido, o padrão repetitivo do sinthoma
daria corpo ―a uma matriz elementar de jouissance, de prazer excessivo [...] Assim, os sinthomas
de Hitchcock não são meros padrões formais: já condensam certo investimento libidinal.
Enquanto tais, determinaram seu processo criativo‖ (ZIZEK, 2009, p. 84).
Dentro do estudo dos processos criativos no campo da linguagem audiovisual, tema com
o qual tenho me envolvido ao longo dos últimos anos na qualidade de professor de roteiro
cinematográfico, essa via de acesso à obra de Hitchcock revela-se particularmente fecunda:
―Hitchcock não partia do argumento para sua tradução em termos audiovisuais
cinematográficos, mas começava com um conjunto de motivos (em geral visuais) que
assombravam sua imaginação, que se impunham como seus sinthomas; depois,
construía uma narrativa que servia como pretexto para o uso destes... Tais sinthomas
dão o aroma específico, a densidade substancial da textura cinematográfica dos filmes
de Hitchcock: sem eles, teríamos uma narrativa formal sem vida. Desse modo, todo
discurso acerca de Hitchcock como o ‗mestre do suspense‘, de seus argumentos
tortuosos ímpares etc., erra a dimensão fundamental‖ (ZIZEK, 2009, p. 84).
Cabe aqui destacar que a dinâmica pela qual cenas e situações que poderiam aparecer
corriqueiramente dentro da estrutura habitual do suspense – como o corpo que cai ou ameaça
cair, o nível de conhecimento detido por uma personagem, a mansão ―ameaçadora‖ etc. –
ascendem à categoria de símbolos (de modo a encarnarem sinthomas) está intrinsecamente
articulada à sua retomada, seja num mesmo filme, seja em filmes diversos, seja de modo idêntico
ou de modo análogo. A repetição constitui a condição estruturante para a ocorrência da
substituição significante própria ao processo instaurador do símbolo, como Lacan explica em sua
análise do sentido do jogo infantil ―fort-da‖ – tal qual descrito por Freud –, pelo qual o garotinho
se torna ―mestre de uma ausência‖ (DOR, 1985, p. 115). Nessa medida, a concepção narrativa
hitchcockiana, que pressupõe a construção de uma história principalmente para permitir através
dela a expressão de motivos temáticos, utiliza deliberadamente a força simbólica para atuar sobre
a percepção do espectador como um recorrente lembrete, indicador da ausência que ali se
configura, instituindo por essa via a presença do sinthoma. Tal ―presença‖, experimentada como
uma ausência, serve ao espectador, na dinâmica de seu envolvimento identificatório com a
narrativa, como indicador paradoxalmente vago, mas simultaneamente preciso, do sentido geral
da perda, característica própria à instauração do simbólico. Na expressão de Lacan: ―il faut que
la chose se perde pour être représentée‖4 (DOR, 1985, p. 115).
4
―É preciso que a coisa se perca para ser representada‖ (Tradução do autor).
17
A expressão da criatividade na forma de agendamento do sinthoma aponta para uma
necessária articulação do discurso na forma do reconhecimento de um Outro (le lieu de l’Autre,
nos termos de Lacan), com o efeito de uma comunicação de inconsciente a inconsciente. Essa
dinâmica comunicativa encontra-se na imbricação entre a expressão do desejo e a lógica da
linguagem:
―Le message, en principe, est fait pour être dans un certain rapport de distinction avec
le code, mais là c‘est sur le plan du signifiant lui-même que, manifestement, il est em
violation du code [...] Il faut que la distinction d‘avec la prescription du code soit bien
entérinée comme message au lieu de l‘Autre […] par le locuteur et l‘auditeur pour
que, de part et d‘autre, la néocomposition signifiante soit admise comme message,
c‘est à dire comme création d‘un sens nouveau‖5 (DOR, 1985, p. 215).
Nos termos da estética hitchcockiana, as configurações compostas nos filmes,
características da formação simbólica do sinthoma, constituem a condição indispensável para
que o espectador seja não apenas o receptor de um conjunto de informações objetivas, e sim
também movido emocionalmente como se o diretor do filme o tocasse nos moldes em que um
músico toca um instrumento musical (um órgão, no caso, para nos atermos à metáfora cara a
Hitchcock). Ou seja, o diretor almeja alcançar seu público para além da compreensão que cada
um individualmente detém acerca dos efeitos que a narrativa cinematográfica pode proporcionarlhe. No campo da linguagem, para Lacan, o processo metafórico de que se vale a formação do
sintoma clinicamente observável (sympthôme) por suas manifestações psicossomáticas é da
mesma natureza do sinthoma, nos termos de sua sobre-determinação, o que torna sua
representação capaz de ser portadora de um excesso de informação, indecifrável num nível
literal, mas perturbadora no campo intuitivo. A própria ininteligibilidade dos efeitos provocados
no espectador pela exibição fílmica do sinthoma é fator central para permitir a este ser o veículo
de uma ligação com emoções e conteúdos reprimidos. Levando-se adiante a analogia metafórica
de symptôme e sinthome, podemos observar que na manifestação do symptôme é central a
importância da ―reversão dos afetos‖ ((DOR, 1985, p. 85). Manipular os afetos da audiência via
produção de emoções perturbadoras, que trabalham profundamente sobre a base do processo
identificatório, constitui para Hitchcock o modo pelo qual ele obriga continuamente o espectador
a tomar decisões de foro íntimo quanto a posicionar-se diante do rumo que a narrativa segue,
5
―A mensagem, em princípio, é feita para estar em certa relação de distinção com respeito ao código, mas nesse
caso é sobre o plano do próprio significante que, manifestamente, ela viola o código [...] É preciso que a
distinção com referência à prescrição do código seja bem ratificada como mensagem ao lugar do Outro [...] pelo
falante e pelo ouvinte para que, de uma parte e d‘outra, a nova composição significante seja admitida como
mensagem, isto é, como criação de um sentido novo‖ (Tradução do autor).
18
estando confrontado ao valor positivo ou negativo (e eventualmente reversível) inerente a cada
percepção afetiva. Nesse quadro, a reversão dos afetos de que trata Lacan, nos termos dos
conteúdos sintomáticos (presentes tanto na manifestação enquanto symptôme quanto nas
manifestações enquanto sinthome), só pode se dar na medida em que o suporte da possibilidade
metonímica permita debitar à energia refugada dos afetos o não-sentido da operação de reversão,
quando a transformação se viabiliza pelo bloqueio do sentido anterior.
Por sua vez, o mecanismo responsável por essa substituição metonímica tem no campo
do cinema um apoio fundamental na própria constituição sígnica da imagem, já que nela a
possibilidade de recorte dos significantes revela-se mais fluida, menos definida, do que ocorre
com o significante verbal. Considerando a noção desenvolvida por Lacan acerca do que ele
denomina ―pontos de estofamento‖ (points de capiton), capazes de operar recortes no
deslizamento do discurso entre o plano dos significantes e o plano dos significados, por delimitálos simultaneamente, temos que a fluidez da imagem, ao permitir uma transversalidade no campo
discursivo do filme, acentua sobremaneira a potencialidade de deslocamento quanto ao próprio
local de inserção sintagmática desses ―pontos de estofamento‖. Com isso, as possibilidades
quanto ao deslizamento entre o plano dos significantes e o dos significados ficam
inevitavelmente contaminadas pela inserção da subjetividade espectatorial. Tal mecanismo nos
serve a compreender a razão pela qual o cinema de Hitchcock apoia-se na imagem quase ao
ponto de constituir uma continuidade estética do cinema mudo, no que tange à expressão visual
do sinthoma, contida nas cenas-chave de cada obra. A propriedade narrativa de que o cineasta
lança mão ao empregar deliberada e reiteradamente tal tipo de procedimento está, como vimos,
em permitir-lhe fazer alusão a conteúdos de natureza inconsciente, restituindo com isso ao
discurso sua capacidade originária de enunciar para além do intencionado racionalmente pelo
sujeito: ―l‘enfant ne sait plus ce qu‘il dit dans ce qu‘il énonce‖, com a implicação decorrente de
que, diante da própria condição de acesso à linguagem, diz-se outra coisa que aquilo que se
acredita dizer no que se diz (DOR, 1985, p. 132). Tem-se aí o inconsciente que escapa ao sujeito
falante, pois este se separou dele constitutivamente.
O reiterado uso de símbolos em Hitchcock, isto é, seu emprego da linguagem
cinematográfica de modo a fazer com que certas imagens presentes de modo causal na diegese
adquiram força de símbolo, encontra-se, portanto, em ressonância direta com as propriedades
simbólicas descritas por Lacan quanto à instauração e estruturação do inconsciente. A própria
fundação do sujeito na e pela linguagem, consequência do tipo de relação entretida pelo sujeito
19
com a ordem simbólica, faz com que o real apareça-lhe por meio de um substituto simbólico.
Pois a representação do real para o sujeito surge como cisão entre o real vivido e aquilo que vem
significá-lo, de tal forma que ―a própria ausência vem se nomear‖ ((DOR, 1985, p. 136). Com
referência às estratégias narrativas escolhidas por Hitchcock, tal pregnância do símbolo – capaz
de atualizar para o espectador suas pulsões inconscientes recalcadas – produz na economia
fílmica a recorrente presença de um espaço de clivagem subjetiva, do qual o espectador se vê
feito refém.
Se a aplicação do conceito de sinthoma por Zizek à obra de Hitchcock deve-se à sua
intenção de utilizar as decorrências de semelhante abordagem em seu trabalho de crítica social,
minhas intenções quanto à leitura da obra hitchcockiana propiciada por tal viés têm outro
endereçamento. Como já enunciei mais acima, minha abordagem liga-se à busca de elementos
que auxiliem na elucidação da natureza do processo criativo. Nessa direção, parto de um
confronto com os próprios limites apresentados pelo enfoque realizado por Zizek acerca da
questão do lugar do sujeito diante do enunciado cinematográfico, com relação às finalidades que
tenho em vista.
De saída, devemos ter em conta que, se a obra de Hitchcock se presta particularmente
bem a um exame de tipo psicanalítico, a causa disso está em que ela surgiu dentro de um
contexto social em que a psicanálise vinha se tornando um discurso socialmente difundido,
mesmo se frequentemente sob uma forma de divulgação pouco formalizada. A biografia de
Hitchcock escrita por Donald Spoto, The Dark Side of Genius (SPOTO, 1993), dá bem a medida
do contato do cineasta tanto com essa literatura de divulgação, quanto com seu recurso a
psicanalistas como consultores na elaboração de alguns de seus roteiros. É. Portanto. sobre um
fértil material que se constrói o essencial da ensaística de Zizek sobre tais filmes, já presente
desde Everything You Always Wanted to Know about Lacan (But Were Afraid to Ask Hitchcock).
De modo que sua retomada dos temas psicanalíticos em Hitchcock sob um viés lacaniano – ainda
que suas conclusões por vezes idiossincráticas não tenham recepção unânime – constituem
ampla tentativa de atualização das possibilidades de convergência entre materialismo histórico e
psicanálise, auxiliando na elucidação das influências da psicanálise no discurso artístico do
século 20. Isso posto – usar para a interpretação de um conjunto de textos metodologia coerente
com aquela empregada em sua construção –, avaliemos o a priori de Zizek para sua análise:
―Como interpretar esses gestos ou motivos persistentes? Devemos resistir à tentação de tratá-los
como arquétipos jungianos de significado profundo‖ (ZIZEK, 2009, p. 83). A isso, porém, eu
20
acrescentaria duas outras decorrências: 1) tampouco devemos descartar conjuntamente outras
facetas do complexo pensamento de Jung (mesmo se por vezes carente de sistematização
adequada), que se revela central para a compreensão dos processos criativos; 2) deve-se
igualmente desistir de tomar as conclusões derivadas da aplicação feita pelo próprio Zizek da
psicanálise ao cinema como respostas definitivas acerca do cinema hitchcockiano e às suas
implicações para uma teoria da sociedade onde essa obra se gestou, tema central do artigo
tomado como ponto de partida das presentes considerações. Pois o próprio da criação artística é,
evidentemente, seu caráter polissêmico, e são tantas as visões (pertinentes umas, outras nem
tanto) acerca da obra de Hitchcock quanto é vasto o número dos críticos que a ela se dedicaram.
Para se construir produtivamente uma apreciação acerca dos processos criativos em Hitchcock
precisamos em alguma medida passar além da ideia de que os símbolos numa obra como a desse
cineasta – que busca deliberadamente emular uma dinâmica onírica, tal qual um pesadelo que se
tem acordado (no que se refere às peripécias dos personagens), ou em estado de letargia semihipnótica (caso do espectador) – estejam ali à espera de um deciframento, de uma interpretação
que lhes insira um extra de significação.
Quanto a Jung, deve-se ter em conta as possibilidades interpretativas derivadas de sua
assertiva proposição com respeito a um saber específico próprio ao inconsciente, que atuaria na
criação artística tanto quanto na onírica. Acerca das tentativas de ―tradução‖ dos conteúdos
oníricos, Jung mostra-se incisivo em seu debate com Freud:
―O sonho é um fenômeno normal e natural, e não significa outra coisa além do que
existe dentro dele [...] A confusão nasce do fato de os seus conteúdos serem
simbólicos e, portanto, oferecerem mais de uma explicação. Os símbolos apontam
direções diferentes daquelas que percebemos com a nossa mente consciente; e,
portanto, relacionam-se com coisas inconscientes, ou apenas parcialmente conscientes.
Para o espírito científico, fenômenos como o simbolismo são um verdadeiro
aborrecimento por não poderem formular-se de maneira precisa para o intelecto e a
lógica‖ (JUNG, 2008, p. 112-3).
Tal inadequação entre o processo de criação simbólica e as metodologias de análise
científica tem vastas consequências, que Jung trabalha do ponto de vista da clínica
psicoterapêutica, e com referência às quais gostaria aqui de colocar uma tomada de posição
também no que se refere à análise da criação artística:
―O problema começa nos fenômenos dos ‗afetos‘ ou emoções, que fogem a todas as
tentativas da psicologia de encerrá-los numa definição absoluta. Em ambos os casos, o
motivo da dificuldade é o mesmo – a intervenção do inconsciente. Conheço bastante o
ponto de vista científico para compreender o quanto é irritante lidar com fatos que não
21
podem ser apreendidos apropriada ou totalmente. O problema com esse tipo de
fenômeno é que são fatos que não podem ser negados, mas que também não podem
ser formulados em termos racionais. Para fazê-lo precisaríamos ser capazes de
compreender a própria vida, pois é ela a grande criadora de emoções e ideias
simbólicas‖ (Jung, 2008, p. 113).
Tal dificuldade (ou mesmo impossibilidade) de reduzir ao campo da razão o processo de
criação simbólica – enfatizo aqui o termo de criação, e não do funcionamento discursivo do
símbolo per se – aponta para um paralelismo entre a complexidade específica ao trabalho clínico
e aquela de quem investiga o fenômeno da criatividade artística. Sobre a clínica Jung dirá:
―O psicólogo acadêmico tem total liberdade para afastar das suas considerações o
fenômeno da emoção ou o conceito de inconsciente, (ou os dois). No entanto, ambos
são fatores aos quais o médico deve prestar a devida atenção, já que conflitos
emocionais e intervenções do inconsciente são aspectos básicos da sua ciência. De
qualquer modo, quando ele for tratar de um paciente, vai defrontar-se com esses
fenômenos irracionais como fatos resistentes que não levam em conta a sua
capacidade para formulá-los em termos racionais‖ (JUNG, 2008, p. 113).
Muito embora seja discutível a tentativa de aplicação de uma leitura psicanalítica à
relação entre vida e obra de qualquer artista – veja-se, no caso de Hitchcock, o fato de que
esse tipo de tentativa responde pela parte mais contestada da citada obra de Spoto – parece-me
pertinente estender essas reflexões de Jung àquilo que toca ao tipo de disposição intelectual e
de postura analítica que deve ter quem se proponha ao estudo dos fatores subjetivos
envolvidos no processo criativo de um artista. Assim, resumo na seguinte proposição os
elementos que creio justificarem o escopo da pesquisa aqui proposta: buscar os caminhos do
processo criativo pelos quais aquilo que é da ordem do Real e, por decorrência, em si
destituído de afeto (isto é, construído como linguagem), pode ser trabalhado de modo a gerar
afeto no espectador. Não se trata aqui, especificamente, da questão da estrutura
melodramática, pois no interior da obra de Hitchcock a própria noção de melodrama constitui
para o cineasta unicamente o suporte para a criação de um ―McGuffin‖, ou seja, de formas
vazias que lhe permitem negociar suas intenções autorais dentro do sistema dos estúdios. Sua
verdadeira busca estética consiste em produzir criativamente as condições para explorar
aquilo que Zizek caracteriza como a expressão de sinthomas, de maneira a agir sobre a
própria percepção subconsciente do espectador. Porém, tal como vejo a presença dessas
imagens e situações recorrentes habilmente tornadas símbolos por Hitchcock, para um estudo
de seu trabalho criativo pouco importa qual o sentido último que o autor a elas almejava
explicitamente ou implicitamente atribuir (se é que existiria algum), e sim compreender como
22
elas operam no âmbito da economia narrativa dos filmes. As interpretações que à sua obra
vêm sendo dadas trazem sempre, inevitavelmente, a marca das condições históricas e dos
interesses hermenêuticos de cada um de seus intérpretes, e é tendo isso em mente que
pretendo delas manter distância crítica ao concentrar-me no exame de seu processo formativo.
Dentre os motivos tomados como sinthoma na obra de Hitchcock, na presente
pesquisa ainda em andamento, pretendo dar destaque à recorrência das formas visuais
circulares, motivos, em sua maior parte, não mencionados por Zizek. Tais formas circulares,
com frequência enquadradas frontalmente na forma de inserts, ligam-se a contextos diegéticos
os mais diversos, constituindo imagens que momentaneamente associam-se a estados de
espírito (ou os insinuam) que a sequência da história encarrega-se de confirmar ou negar. Eis
alguns exemplos:
Acesso ao objeto de desejo e à verdade: a fechadura do cofre em Marnie; o anel de
noivado em Rear Window, assim como as lentes da teleobjetiva do fotógrafo Jeff; o furo na
parede em Psycho; as rodas do moinho, que indicam o local da conspiração dos espiões em
Foreign Correspondent;
Suposto alívio: o chuveiro em Psycho, e pouco antes, no mesmo filme, o vaso
sanitário onde se jogam as contas do dinheiro a devolver;
Frustração: o prato com ensopado de peixe em Frenzy; a travessa com frango assado
em The Man Who Knew Too Much – isto é, o alimento insatisfatório;
Vida ameaçada, ou que se esvai: o ralo da banheira e a pupila do olho em Psycho;
mãos que estrangulam, em Strangers on a Train; o laço da gravata em Frenzy; o fio do
telefone que estrangula, em Dial M for Murder; os címbalos da orquestra, em The Man Who
Knew Too Much, que representam tanto a ameaça ao político presente no auditório quanto as
consequências da decisão da cantora, no tocante às repercussões para seu filho raptado.
A unir a presença desses motivos em contextos tão diversos, está um conjunto comum de
substratos, que se poderia esquematicamente descrever como: o caminho para o objetivo, o que
esclarece esse objetivo, ou o aponta, ou tenta ocultá-lo, ou o dificulta, ou o mostra como
desejável. Em comum, portanto, sua presença a lembrar-nos de que, conforme aponta Lacan, a
falta não é especularizável, e, portanto, não pode haver imagem dela. Só pode ser acessada por
processos indiretos, donde o recurso sistemático de Hitchcock ao suspense, como encenação da
falta em ato: algo falta, e a demora na satisfação, continuamente adiada, constitui-se num fim em
si mesma. Pois, tragicamente, se algo surge que venha a ocupar o lugar da falta – de modo que
esta venha a faltar – aparece a angústia de castração (DOR, 1995, p. 47). Nessa linha de reflexão,
23
pode-se perceber como a recorrente imagem do objeto redondo constituído pela fechadura da
porta do cofre em Marnie dá margem a um elenco de associações no contexto da história,
tornando-se suporte para diversas conotações: 1) a apenas aparente segurança do cofre (ou,
simbolicamente nesta situação, o ―feminino‖), pois ele de fato é devassável pela esperta ladra,
aquela que, como mulher frígida, tornou-se mestra da dissimulação; 2) o dinheiro por trás dessa
fechadura da porta, enquanto promessa de liberdade; 3) a atitude ―fálica‖ de penetração no cofre,
passagem no caminho de Marnie em busca da recuperação de sua capacidade desejante. Mas é
em contraponto a isso que o casamento momentaneamente priva Marnie de sua ―falta‖, trazendolhe a angústia de castração, interiorizada a partir da sua convivência infantil frustrante com a
mãe prostituta.
Há outros importantes motivos recorrentes na obra de Hitchcock, como o da comida e
bebida associadas à morte, por vezes na forma de um banquete fúnebre, como em Rope, The
Birds, Dial M for Murder, Psycho... Ou o da comida associada ao sexo, como em To Catch a
Thief, Psycho, Frenzy, etc., conforme tive ocasião de examinar em um artigo consagrado a esses
temas (POMMER, 2001).
Mas é no motivo das formas circulares que gostaria de concentrar a presente pesquisa,
motivo formal ao qual me parece pertinente a aplicação das propriedades topológicas do plano
projetivo conhecido como cross-cap, acerca do qual Lacan destaca o seguinte: ―Essa superfície
assim estruturada é particularmente propícia a fazer com que funcione diante de vocês este
elemento mais inapreensível que se chama desejo enquanto tal, em outras palavras, a falta‖
(DOR, 1995, p. 189). Essa forma, em sua potencialidade enquanto esquema explicativo, mostrase complementar àquela da topologia da figura geométrica batizada toro, gerada por um círculo
que percorre uma trajetória em torno de outro círculo, e que, segundo propõe Lacan, ilustra a
dialética da demanda e do desejo entre o sujeito e o Outro. Tais figuras compostas por círculos
que envolvem círculos prestam-se bastante bem (até mesmo no plano visual, mas mais ainda no
plano da dramaturgia e do enredo) a caracterizar a dinâmica de cenas como aquelas que
envolvem o assassinato em Psycho, com o giro da câmera sobre a pupila do olho e a água
ensanguentada que gira, ralo abaixo, assim como a dualidade da função simbólica da fechadura
circular em Marnie, a que já me referi.
Para além de estimular uma identificação do espectador com os protagonistas, as
estratégias narrativas empregadas por Hitchcock buscam também induzir a identificação do
24
espectador, enquanto sujeito desejante, com a própria imagem quando dotada de potencial
simbólico, situação que, segundo Lacan, torna-se possível já que o sujeito só pode figurar em seu
próprio discurso – isto é, em sua auto-identidade – ao preço de uma cisão, desaparecendo
enquanto sujeito para se reencontrar representado na forma de um símbolo, especificamente
aquele significante individualizado a que cada um atribui o lugar simbólico do pai no
inconsciente. O vazio estrutural deixado pela forclusão desse significante Nome-do-Pai abre
espaço para as imagens que confrontam o espectador enquanto sujeito – daí podermos inferir a
força alusiva dos enquadramentos frontais utilizados por Hitchcock para diversos ―círculos de
círculos‖, como o chuveiro em Psycho e a fechadura do cofre em Marnie (em duas variantes do
tema da ladra). Não há razão diegética a justificar a frontalidade desses planos; ao representá-los
assim, o filme os faz interlocutores da personagem e do espectador, simultaneamente. Eles se
tornam o vazio que devolve o olhar, acarretando uma subjetivação do objeto, num exercício do
estilo que Hitchcock aprendera dos expressionistas. Nos termos lacanianos, um confronto com a
coisidade da Coisa.
Tal confrontação narrativa aparece como decorrência natural do processo descrito na
terminologia lacaniana como sutura, caracterizando a relação do sujeito que fala com seu próprio
discurso, e que Jean-Pierre Oudart estendeu aos enunciados cinematográficos:
―A sutura é um modo de articulação entre dois planos sucessivos, que não se funda no
significado das imagens que devem ser articuladas (...), mas se desenrola em termos
do significante fílmico e especialmente da relação entre campo e fora-de-campo, ou
‗campo ausente‘, aquele que se constitui como uma ‗falta‗ a partir de certos elementos
dados no campo – especialmente os olhares. A sutura é o processo pelo qual a falta em
questão é abolida, para o espectador, por alguma coisa que se produz no segundo
plano‖ (AUMONT e MARIE, 2006).
Pela sua capacidade de assegurar a representação simbólica do sujeito em seu discurso,
no que concerne à posição do espectador, a estética hitchcockiana consegue mobilizar de modo
permanente as instâncias psíquicas relacionadas à atribuição de valorações morais às situações
representadas. Uma vez que, nos termos de Lacan, o sujeito é causado por sua linguagem (e não
sua causa), a preponderância dada por Hitchcock ao conteúdo simbólico da imagem (isto é, para
além de sua presença icônica) promove a imersão do espectador no discurso fílmico enquanto
sujeito, produzindo uma diminuição ou restrição de seu possível distanciamento. Assim, ao
deparar-se com o símbolo tomado como sinthoma, o espectador reconecta-se de forma profunda
com a própria experiência de sua subjetividade.
25
Quanto às decorrências do uso reiterado desse tipo de procedimento na forma de
exercício autoral da linguagem cinematográfica, temos que, para Lacan, um significante é aquilo
que representa um sujeito para outro significante, o qual por sua vez é o constituidor originário
do sujeito receptor do discurso (DOR, 1985, p. 138), já que o sujeito é barrado a si mesmo ($ na
representação lacaniana). Nesses termos, vemos que o estilo hitchcockiano de dar proeminência
ao símbolo faz com que seu cinema com frequência tenha momentos de endereçar-se
explicitamente ao espectador enquanto sujeito, rompendo com a forma enviesada pela qual a
narrativa clássica busca construir a experiência cinematográfica como se fora uma realidade
―autônoma‖, observada por um espectador independente, mesmo se emocionalmente
participante. No caso do cinema de Hitchcock, não é, portanto, somente a câmera que busca
colocar o espectador ―dentro da cena‖ (efeito visado pela decupagem clássica), mas também o
tratamento narrativo do significante enquanto símbolo/sinthoma procura situar à experiência do
espectador simultaneamente para além da identificação secundária (com os personagens) e
aquém da identificação primária (com o dispositivo), para identificá-lo com a própria
possibilidade de uma cadeia narrativa, enquanto sujeito.
Encerro estas premissas com uma alegoria. Ao permitir o trânsito contínuo pela via do
Real entre o Simbólico e o Imaginário, a experiência do cinema hitchcockiano revela-se
perturbadora – para o espectador que aceite ―jogar o jogo‖ de seu gênero de cinema, bem
evidentemente – por permitir uma espécie de ―psicose imagística‖, na qual interior e exterior da
experiência subjetiva são percorridos em sequência, de maneira contínua, imprevista e indistinta.
A fita do filme atua, alegoricamente, como uma fita de Möbius, em que a narrativa fílmica
―constitui o espectador‖, ao passo que este se reconhece nela. As implicações dessa dinâmica no
campo projetivo são vastas, sendo esse um dos aspectos que pretendo aprofundar na pesquisa
aqui esboçada. Considerando que no cinema de Hitchcock os enredos – estruturados sobre
pretextos (literalmente, pré-textos) vazios, os ―McGuffins‖ – existem basicamente para veicular
as cenas capazes de induzir no espectador tais experiências de ―psicotização sob controle‖,
podemos ver nesse procedimento um dos centros de sua estética
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27
Documentando entre a memória e a linguagem
Larissa Leda Fonseca Rocha6
Lívia Janine Leda Fonseca Rocha7
Resumo
Buscamos, neste trabalho, a partir da obra do cineasta maranhense Murilo Santos, pensar o
documentário problematizando seu papel de preservação da memória, exercitando um diálogo entre a
comunicação, com conceitos como lugar de memória, e a psicanálise, com pressupostos como o do
sujeito de linguagem. Utilizamos quatro filmes, sendo dois com a importante particularidade de terem
como tema a própria obra do diretor.
Palavras-chave: Documentário; memória; linguagem.
Documenting between memory and language
Abstract
In this work, we seek from the work of Maranhão's filmmaker Murilo Santos, reflect about the
documentary, questioning its role in preserving the memory; exercise a dialogue between the
communication, with concepts such as place of memory, and psychoanalysis, with assumptions such
as the subject of language. We use four films, two with the important feature to have, as its theme, the
director's own work.
Keywords: Documentary, memory, language
O documentário ―Periquito Sujo‖ (1979), de Euclides Moreira, baseado na obra de
Ferreira Gullar, ―Poema Sujo‖, de 1976, nos brinda com imagens que só podem existir hoje
pelos caminhos das reminiscências: um trem que passa lento embaixo da ponte Camboa. A
ponte resiste aos anos, o trem já não existe mais. Difícil não ver a cena sem ser tomado por
um alerta, por uma tristeza que se disfarça mal. É justamente disso que nos fala este trabalho:
de cinema, memória, lembranças e esquecimentos.
6
Professora do Departamento de Comunicação Social da Universidade Federal do Maranhão, mestre em
Comunicação Social pela Universidade Federal Fluminense. Autora do livro ―Diluindo Fronteiras: hibridizações
entre o real e o ficcional na narrativa da telenovela‖ pela Edufma. Email: [email protected]
7
Jornalista e Radialista formada pela PUC Campinas e especialista em Comunicação em Saúde; Psicanalista
Pesquisadora bolsista Projeto Canguru Hospital Universitário Universidade Federal do Maranhão/Ministério da
Saúde, doutora em Psicologia Clínica pela Pontifícia Universidade Católica do Rio de Janeiro. E-mail:
[email protected].
28
Documentários no Maranhão
É verdade que a produção do Uirá – um Cineclube Universitário que nasceu pelas
mãos da Coordenação de Extensão e Assuntos Comunitários (CEAC) da Universidade
Federal do Maranhão nos anos 1970 e por onde circularam nomes que viriam a marcar a
produção audiovisual do estado, como Murilo Santos e Euclides Moreira Neto – foi
fortemente marcado pela realização de filmes documentários que traziam como temática
questões políticas e sociais e, parte da explicação para isso, estava no próprio contexto de
sufocamento ideológico vivido pela sociedade naquele momento. Desde o início do Festival
Guarnicê8 – por onde efetivamente até hoje escoa a produção cinematográfica local e se
tornam conhecidos os filmes de realizadores independentes9 – foram contabilizados 316
filmes documentários feitos por maranhenses ou tendo o Maranhão como foco de interesse
principal. Cerca de 40% deles trazem como temática central questões relacionadas à política
e/ou sociedade10. Naturalmente o assunto os interessava e interessa ainda hoje.
Mas, junto a isso, é também difícil negar o papel atribuído ao documentário de
preservação da memória, papel que buscamos aqui problematizar, e que remete aos filmes
feitos nos anos 70, que deixam tão expostos os modos de vida desse povo naquela época, mas
também os recentes movimentos de revisitação desse material feito pelos próprios
documentaristas. É o caso de dois filmes lançados recentemente pelo cineasta Murilo Santos.
―Fronteiras de Imagens‖ (2010) e ―Afinado a fogo: o Tambor de Crioula revisitado‖ (2009).
Ambos os filmes são esforços de visita do documentarista a trabalhos anteriores, ―Bandeiras
Verdes‖ (1979/1987) e ―Tambor de Crioula‖ (1979), respectivamente, ambos filmados em 16
milímetros.
―Bandeiras Verdes‖ conta os modos de vida e a expansão camponesa de
comunidades no Vale do Rio Carú, interior do Maranhão. O filme registra esse momento e as
lutas sindicais e camponesas, muitas vezes violentas, que aconteciam no período. A primeira
captação de imagens para o filme aconteceu em sucessivas visitas ao local em 1979, com
8
O Festival Guarnicê de Cinema, hoje com este nome, nasceu em 1977 sob a denominação de I Jornada
Maranhense de Super 8. Em 2012 o festival realizará sua 35º edição.
9
Consideramos como realizadores independentes aqueles que não estão ligados aos mecanismos de produção
audiovisual midiática e que realizam seus filmes com apoio de financiamentos conseguidos em editais públicos
ou por outras vias, mas que conseguem assegurar, de algum modo, uma certa liberdade narrativa do ponto de
vista político e ideológico.
10
Os dados foram coletados pelo projeto de pesquisa ―Documentário no Maranhão: realização, linguagem
audiovisual e memória‖, coordenado pela autora Larissa Leda F. Rocha e realizado no curso de Comunicação
Social da UFMA. O projeto tem financiamento da Fundação de Amparo à Pesquisa e ao Desenvolvimento
Científico e Tecnológico do Maranhão (Fapema).
29
equipamentos menos sofisticados. Em 1985, o documentarista retornou ao local, para captar
mais imagens já com aparelho síncrono e apoio da extinta Embrafilme11. No entanto, o
personagem principal do documentário, ―seu‖ Domingos Bala, já havia falecido, o que não
prejudicou o desenvolvimento do filme. ―Bandeiras Verdes‖ foi apresentado em 1988 no
Festival Guarnicê, tendo Murilo Santos dividido a autoria do material com a montadora Aída
Marques.
Sob inúmeros aspectos ―Bandeiras Verdes‖ é um clássico documentário ao modo
―participativo‖ de Nichols (2009), ou seja, bebe no Cinema Verdade. Mas também brinca com
a exigência do real na narrativa. Em cena que Domingos Bala narra um encontro com os
índios na mata, o documentário usa ―imagens ficcionais‖, como nominou Murilo Santos em
―Fronteiras de Imagens‖, e mesmo com ―receio de macular o real‖ apostou na cena, pois o uso
das ―imagens ficcionais‖ era o melhor modo de narrar a história real do protagonista.
―Bandeiras Verdes‖ funciona como uma tentativa de — na dinâmica narrativa do
documentário — compreender o presente antes que ele se converta em passado. ―Documentar
é algo importante do ponto de vista da humanidade. Subjacente a esse acto (sic) estará,
porventura, a vontade de preservação das nossas memórias, uma tomada de consciência da
nossa diversidade ou uma necessidade de nos manifestarmos‖ (PENAFRIA, 2009, p. 11).
Os documentários podem atuar como elemento de rememoração, mas também como
documentação de um determinado momento histórico, como uma fonte armazenadora de
dados sobre certa temporalidade. E a isso, claramente, serve ―Bandeiras Verdes‖. É, logo, um
documento de época. ―O cinema tem uma missão tão importante quanto urgente a cumprir:
filmar o presente. O cinema é assim chamado a colaborar numa consolidação do presente
impedindo que o mesmo se transforme num passado opaco‖ (PENAFRIA, 2008, p. 2).
Já ―Fronteiras de Imagens‖ (2010), ao contrário de ―Bandeiras Verdes‖ não está
ocupado em narrar um modo de vida, em documentar uma temporalidade, em deixar visível
uma realidade. É um filme que se encaixa no modo ―performático‖ de Nichols (2009) e é ele
todo um esforço de rememoração, de resgate, de resguardar uma lembrança do esquecimento.
Sem disfarces. Sem subterfúgios. O filme, com off narrado pelo próprio Murilo em primeira
pessoa, é todo montado com imagens de arquivo, com fotos feitas durante a produção do
documentário ―Bandeiras Verdes‖ pelo próprio diretor. Em uma digressão, por vezes,
emocionada, Murilo conta a história de como nasceu ―Bandeiras Verdes‖, sua relação com os
11
Embrafilme, estatal que tinha por objetivo produzir e distribuir filmes, foi criada em 1969 e extinta em 1990,
pelo Programa Nacional de Desestatização (PND), desenvolvido no governo de Fernando Collor de Mello.
30
intervenientes, com a família de Domingos Bala, seus sentimentos em relação àquele povo, as
situações que culminaram no registro das imagens. Em parte do filme, Murilo nos conta sobre
a vida dos intervenientes, sobre o material de que se serviu para fazer ―Bandeiras Verdes‖,
numa rememoração permanente. Na outra parte do filme o diretor lembra os procedimentos
na feitura do filme, equipamentos usados, dificuldades técnicas, escolhas narrativas.
―Fronteiras de Imagens‖ é um exercício de rememoração sobre a produção de algo que, em si
mesmo, já é a construção de uma memória, o documentário ―Bandeiras Verdes‖. Murilo
parece desejar durante todo o filme de 2010 relembrar como foi construída sua primeira
lembrança, em 1979. Mas o que se encontra nas fronteiras desse desejo de rememoração?
Sigamos mais um pouco.
Podemos estender as mesmas considerações ao trabalho do diretor em ―Afinado a
fogo: o Tambor de Crioula Revisitado‖ (2009). O filme, também do modo ―performático‖ e
com off em primeira pessoa, narrado pelo diretor, é montado com imagens de arquivo – fotos
da realização do filme ―Tambor de Crioula‖ (1979), e imagens novas, que mostram o diretor
indo ao encontro dos intervenientes registrados no filme de 1979 ou seus descendentes. O
filme é, essencialmente, um encontro com o passado, encontro nunca ingênuo e sempre caro.
―Tambor de Crioula‖, de 1979, obedece à estética do modo ―expositivo‖ de Nichols (2009),
ou seja, forte preponderância da voz de Deus com a apresentação de fragmentos do mundo
histórico numa estrutura retórica e argumentativa. O material foi o resultado de uma das
primeiras experiências do diretor com a película de 16 milímetros, um curta metragem (15
minutos) que buscava registrar a manifestação da cultura popular maranhense, documentar,
pois o realizador acreditava que a expansão do turismo fosse fazer a manifestação sumir das
ruas. O filme de 2009 pede perdão por essa afirmação. O tambor de crioula não acabou,
continua sendo um traço marcante da cultura popular do Estado. Mas o movimento do
documentarista em ―Afinado a fogo‖ não é colocar sob teste o filme de 1979, mas
reencontrar-se com o passado, dar aos intervenientes do primeiro filme um retorno, dialogar
com o passado, fazer as pazes com o presente, marcado por uma angústia confessa do diretor
por não ter mostrado aquela documentação aos documentados. Enquanto ―Tambor de
Crioula‖ fala de hábitos, de formas de se comportar, sendo ele próprio uma tentativa de
arquivamento, da manutenção de um tempo que não vai voltar e que passou impunemente,
―Afinado a fogo‖ é pura rememoração, um retorno a esse passado, um reavivamento do já
vivido, mas que é, ele próprio, a construção de uma nova memória. Murilo, novamente,
parece desejar, durante todo o filme de 2009, exercitar a lembrança do que foi o filme de
31
1979, convocando os intervenientes do primeiro filme – e seus descendentes – a relembrar
com ele e assim constrói um novo discurso – um discurso do presente – sobre seu objeto, o
Tambor de Crioula, mais ainda assim um discurso do presente revisitado pela memória. Nesse
exercício de rememoração ele vai além e constrói novas imagens, impossível não ir, não se
trata de uma escolha, rememorar é ―ir além‖ ainda que não se objetive construir novas
imagens.
Entre a memória e a linguagem
Este presente, que nos dá o tom da lembrança do passado, remete à idéia dos
―enquadramentos de memória‖ de Pollak (1992). Falar de memória e usar o filme
documentário como um lugar para esses debates nos confronta com a necessária observação
do contexto contemporâneo marcado por um ―boom‖ de memória, pelo que Huyssen (2000)
chamou de ―inflação da memória‖. De fato, vivemos hoje um mundo radicalmente marcado
pela emergência das Novas Tecnologias da Comunicação e Informação (NTCI) e, como sua
consequência, do ciberespaço que reconfigura as noções de tempo e espaço, bem como de
identidade, cultura e memória. Os apelos de memória aparecem facilmente seja na moda
retrô, na quantidade de museus, na recuperação de monumentos, no estabelecimento de
patrimônios culturais da humanidade, na obsessão pelo arquivamento coletivo e individual.
Cresce, quase instantaneamente, a quantidade de memória disponível para o arquivamento de
material digital. Nunca se voltou tanto ao passado e nunca se desejou tanto preservá-lo para o
futuro. Experimentamos uma inversão do paradigma vigorado durante o Renascimento e o
Modernismo, no qual as expectativas eram voltadas para o futuro. Agora, as esperanças estão
focadas nos dias já passados, são os anseios pelos ―passados presentes‖ (HUYSSEN, 2000).
Huyssen continua: ―não há dúvida de que o mundo está sendo musealizado e que todos nós
representamos nossos papéis nesse processo. É como se o objetivo fosse conseguir a
recordação total‖ (2000, p. 15).
Isto porque parecemos funcionar em uma visão platônica da reminiscência, observa
Garcia-Roza (2003), segundo a qual recordamos para preencher lacunas de memória em busca
de uma verdade esquecida da qual somos portadores, uma essência que diga o que somos, que
dê o verdadeiro significado ao que fazemos. Desde o início da psicanálise Freud
(1911/1915/1996) se defronta com o fato de que recordar não é preencher lacunas da
memória, não se tratava, para seus pacientes, de recordar algo esquecido ou recalcado, isso
32
era o tempo da catarse, pré-história da psicanálise. O que ele percebeu com aquelas histéricas
é que se trata sobretudo de expressar algo pela atuação, elas repetiam sem saber que o faziam.
Memória viva, atuada, mas ainda assim indo inevitavelmente além e construindo
novas imagens. Pois o humano não diz de uma repetição12 do mesmo, não se trata de memória
de acontecimentos passados, uma memória da consciência, memória-lembrança. A mera
reprodução (movimento mais referenciado à natureza) é quase impossível para este ser que se
encontra além da natureza, o ser de linguagem que é o homem quando repete e produz
novidade, é uma repetição diferencial (GARCIA-ROZA, 2003; 2004). Esse diferencial
produzido quando recordamos uma lembrança é um estranho assustador que remete ao
conhecido, ao velho, ao estranhamente familiar, daí que nos sentimos impelidos a rememorar
sem deixar de sentir receio nesse movimento, pois, lembra Garcia-Roza, só ―o absolutamente
novo, o que jamais se deu na experiência, não pode ser temido‖ (2003, p. 24).
Rememorar, para o homem, portanto, está longe de ser voltar ao mesmo, assim como
um acontecimento, quando repetido, já não é o mesmo. O autor acima referido, esforça-se
para demonstrar como o eterno retorno de que falam os gregos aponta justamente para essa
repetição diferencial: ―a própria repetição de uma palavra não traz com ela a repetição do
sentido (...) a repetição se opõe às leis da natureza; ela diz respeito ao que há de mais interior
na vontade e não às mudanças e igualdades que se dão em conformidade com as leis da
natureza‖ (GARCIA-ROZA, 2003, p. 31-32). Assim, quando afirmamos que Murilo, ao
produzir ―Afinado a Fogo‖ e ―Fronteiras de Imagens‖, cria novas imagens e constrói uma
nova memória, nos referimos também a ―Bandeiras Verdes‖ e ―Tambor de Crioula‖, que, a
partir desse retorno, já não podem ser os mesmos para o próprio diretor, e não só porque
predições não se concretizaram, personagens morreram, ou arquivos não foram encontrados,
mas porque ao revisitar suas lembranças teve que ir além, encontrando-se com novas antigas
lembranças de bandeiras e tambores.
O desejo de lembrar e registrar, arquivar, ainda assim, coloca-se. Coloca-se apesar do
encontro com um estranhamente familiar, e impelido pelo medo de esquecer. É verdade que
lembrança e esquecimento estão em uma relação dialética, dinâmica. Lembrar é também
esquecer. A seletividade do que pode ou deve ser lembrado é uma das características de
memórias apresentadas por Pollak (1992, p. 203), ―a memória é seletiva. Nem tudo fica
12
O conceito de repetição é bem mais complexo na obra freudiana, inclusive se lido a partir do Mais Além do
Princípio do Prazer, ou a partir da obra lacaniana com seu conceito de gozo. Mas para este texto nos limitamos
à leitura feita por Garcia-Roza.
33
gravado. Nem tudo fica registrado‖. Acrescentaríamos a Pollak, que algumas experiências,
por exemplo, a dos desejos infantis, não deixam traços na memória consciente, no entanto
produzem efeitos que perduram toda a vida. O esquecimento é concebido, na psicanálise,
como ativo e não passivo, esquecemos pela eficiência de um funcionamento e não pela
deficiência ou desgaste do material mnêmico (GARCIA-ROZA, 2004).
Atualmente, nos mostramos obcecados com as atividades de lembrar, nossa cultura
está obcecada com a memória e dessa forma, ―está também de alguma maneira tomada por
um medo, um terror mesmo, do esquecimento‖ (HUYSSEN, 2000, p. 19). Para combater esse
terror nos dedicamos mais e mais a processos de rememoração, tanto pública quanto privada.
Monumentos, museus, álbum de fotos, vídeos de família. Arquivos. Cada vez mais arquivos.
Ao mesmo tempo temos a consciência que esses arquivos falham. Como nos lembra Colombo
(1991), os arquivos são imperfeitos.
Pollak (1992) lembra ainda que falar de memória é falar de uma relação tríade entre a
memória, o esquecimento e o silêncio. Diz ele que há enquadramentos de memória, que pode
se transformar num objeto de poder. Na verdade a memória coletiva, organizada, oficial de
uma nação é lugar de disputa de poder e sofre, constantemente, enquadramentos. O presente
dá o tom da lembrança do passado e esse ―tom‖, bem como a própria memória, é
permanentemente construído e reconstruído. A memória é organizada em função de
preocupações pessoais e políticas, é disputada permanentemente. Há um jogo, uma trama em
negociação, há, como diz, memórias subterrâneas que buscam o tempo todo um ―lugar ao
sol‖, um lugar para serem, no presente, lembradas pois podem ser silenciadas mas não,
necessariamente, esquecidas. Ou ainda pode esse mesmo silêncio ser a própria lembrança, ou
―a gestão da memória segundo as possibilidades de comunicação‖ (POLLAK, 1989, p. 13).
Obviamente a construção dessa memória não é arbitrária, então, esse enquadramento tem
limitações e se alimenta de material fornecido pela história.
Esse material pode sem dúvida ser interpretado e combinado a um sem-número de
referências associadas; guiado pela preocupação não apenas de manter as fronteiras
sociais, mas também de modificá-las, esse trabalho reinterpreta incessantemente o
passado em função dos combates do presente e do futuro (POLLAK, 1989, p. 910).
Os dois filmes de Murilo Santos, ―Fronteiras de Imagens‖ e ―Afinado a fogo‖ nos
parecem, claramente, trabalhos que se ligam à ideia do enquadramento de memória. São
trabalhos de ajuste, de reorganização, de ressignificação do sentido do que vimos nos
34
primeiros filmes, logo uma orientação, um enquadramento dos modos de lembrar as primeiras
histórias, nos indicando o que deve ser relembrado e valorizado e o que pode ser ―esquecido‖
na retomada da história. O discurso de Murilo sobre os filmes, feitos cerca de 30 anos antes, é
feito no presente. É seu trabalho como documentarista hoje que revê seu trabalho como
documentarista nos anos 70, portanto é o presente que dá o ―tom‖ do passado, da lembrança
do que já foi, é o Murilo de hoje que avalia a história, que valoriza certas reminiscências,
aponta falhas, traz à luz equivocadas deduções passadas para um futuro que hoje é presente. É
o Murilo de hoje que legitima certas lembranças e deixa outras abafadas nos porões da
memória. Mas não que essa seleção seja toda ela consciente, ou se trate de uma orientação
inteiramente ou quase toda sob domínio da pessoa. É uma edição que ultrapassa o próprio
Murilo, queira ele ou não. Essa seleção pode tornar-se objeto de poder, ser limitada e
alimentada pela história, ou ainda gerenciada pelas possibilidades e tecnologias de
comunicação, mas está submetida ao aparato anímico do sujeito, ao seu Inconsciente. E esse
aparato anímico, sublinha incansavelmente Garcia-Roza (2003; 2004), é antes de tudo um
aparelho de memória e de linguagem, ―a memória desse aparelho é memória de linguagem, de
uma escritura‖ (GARIA-ROZA, 2004, p. 29). A voz em off pode tentar conduzir o outro
nesse passeio de rememoração, mas ultrapassa inclusive a vontade expressa do seu próprio
dono.
Garcia-Roza observa que Freud nos fala da permanência de traços de memória e não
da lembrança de um acontecimento, os traços são permanentes, mas a memória é sempre
diferencial, tem a ver com os diferentes caminhos realizados no aparelho: ―a memória não é
um processo mecânico pontual, não é a reprodução sempre idêntica de um traço imutável,
mas um processo que implica um diferencial de valor entre caminhos possíveis‖ (GARIAROZA, 2004, p. 35). Como se o traço não trouxesse um significado em si, assim os sentidos
podem ser diversos a cada rememoração, uma vez que pode estar o sujeito, a cada
rememoração, em diferentes posições subjetivas, a ponto de dizermos que é de outra coisa que
se trata. Como bem observa o autor, memória tem a ver também com o poder de uma vivência
de continuar produzindo efeitos no sujeito. Daí que uma experiência não é traumática em si
(ou qualquer que seja o acento que tomará), é sua lembrança, melhor dizendo, é sua
representação, sendo reinvestida num après coup, que irá produzir um efeito traumático.
Assim podemos dizer que uma lembrança é tecida ao longo de um processo que a revela e
produz ao mesmo tempo. Nesse sentido, também, o presente dá o ―tom‖ do passado.
35
O aparato anímico do sujeito é também determinado pela linguagem, melhor dizendo,
é estruturado como uma linguagem (LACAN, 1998), assim, é pela palavra que a verdade do
sujeito faz sua emergência, a palavra opera a transmissão do desejo do sujeito, ―em termos
psicanalíticos o que importa não é sua função de informação, mas sua função de verdade‖
(GARIA-ROZA, 2004, p. 15). Desse modo, se o inconsciente não se oferece benevolamente e
sim de modo distorcido, equivocado, dissimulado nos sonhos, nas lacunas do discurso e nos
atos do sujeito, observa Freud (1914/1996), concomitantemente as poderosas forças de
resistência anímica determinam a sequência do material que será recordado, ou, ainda,
repetido, se tomamos este como um modo de recordar. Poderíamos dizer que a produção de
um sonho, de um sintoma, ou ainda de um documentário, por exemplo, pode ser entendido em
função dessa dupla referência: memória e linguagem. A palavra, onde quer que ela esteja,
dissimula e mente, mas também porta uma verdade do sujeito. Retomando as palavras de
Penafria (2009) sem deixar de dialogar com elas, documentar é um importante ato do homem,
no qual subjaz uma vontade de preservar lembranças.
O dilema atual que vivemos de valorizar o passado, de consumir esse mercado de
memória, parece ter como motivo inicial aparente, de acordo com Huyssen, as transformações
de espaço-tempo. A memória é, de fato, todo o tempo espetacularizada e comercializada pela
mídia. É alimentada e usada por ela. E nesse cenário, a enorme influência das novas
tecnologias de mídia são quase óbvias, afinal, são os veículos para muitas formas de memória.
Não é possível falar de memórias, de arquivos, sem falar no desenvolvimento das novas
tecnologias da comunicação e do papel da mídia nesse processo de construção, manutenção,
desenvolvimento e consumo da cultura da memória. A nova mídia tem sim, também,
impactos consideráveis sobre a articulação da temporalidade. A tecnologia se desenvolve cada
vez mais rápido e as inovações técnicas, culturais e científicas, por vezes, já nascem
defasadas. O tempo, hoje, corre muito rápido. O presente se torna passado cada vez mais
rápido. Vivemos, como lembra Nora (1984), uma ―aceleração da história‖.
Experimentamos hoje uma ―lenta, mas palpável transformação da temporalidade nas
nossas vidas, provocada pela complexa interseção de mudança tecnológica, mídia de massa e
novos padrões de consumo, trabalho e mobilidade global‖ (HUYSSEN, 2000, p.25). Barbosa
e Ribeiro (2005, p. 4) acreditam que esse crescimento e estabelecimento de uma cultura da
memória têm relações com ―uma tentativa de compensar o ritmo acelerado das informações,
de resistir à dissolução do tempo, de descobrir outras formas de contemplação para além da
informação rápida. Trata-se de afirmar territórios em um mundo marcado pela fragmentação‖.
36
Lembrar pode trazer uma sensação de segurança, permanência, algo sólido, definido,
no qual podemos nos apoiar diante de um presente e futuro incertos, marcados pela rápida
mudança de tudo. Ora, um mundo em crescente e permanente mobilidade e transformação é
um mundo inseguro. Melman (2008) observa que nos tem faltado o que até então constituiu
nossa organização, psíquica tanto quanto social: a referência à norma, que Freud organizou
numa relação privilegiada com a figura paterna. Identificando como um sintoma moderno a
denúncia suspeitosa de qualquer imagem paterna que sirva de suporte à autoridade,
entendendo a referência paterna não mais como um organizador psíquico, mas como uma
suprema violência, o homem contemporâneo encontra-se em um individualismo do ―cada um
por si‖, que floresce diante de referências pulverizadas e de interesses de que não haja mais
limites que venham se impor às nossas exigências de satisfações. O homem tem assim afetado
o cerne do processo de sua constituição enquanto sujeito e encontra-se, como disse Ehrenberg
(1998), curvado sob o peso dessa liberdade.
A memória seria, então, um terreno sólido contra a pulverização e a fugacidade da
contemporaneidade. Lembrar ajudaria a se identificar, a fazer parte de algo, a ter uma
referência que, desde que bem arquivada, não se perderá nas mudanças nos dias de hoje. Tudo
é muito fugidio, a lembrança não, é algo que se pode ter, que não se dissolve no ar, ―voltamos
para a memória em busca de conforto‖ (HUYSSEN, 2000, p. 32).
Daí um desejo de lembrar o passado que parece ser um fenômeno mundial, embora
com uma conotação claramente regional, local. Afinal, lembra Pollak (1992), memória e
identidade estão em íntima relação, ―a memória é um elemento constituinte do sentimento de
identidade (...) sentimento de continuidade e de coerência‖ (POLLAK, 1992, p. 204).
Nora (1984) observa que, uma vez que a memória não é mais espontânea e que há um
interesse social em preservá-la, precisamos criar lugares de memória, manter arquivos,
organizar celebrações, caso contrário, sem essa vigilância permanente das comemorações,
essas lembranças seriam esquecidas. Precisamos dos lugares de memória para poder lembrar
as memórias que foram privilegiadas como importantes e que não podem ser esquecidas com
o desenvolver da história. Podemos pensar o lugar de memória como uma tentativa de
materialização da reminiscência.
Desse modo, em nossa contemporaneidade, a memória ajudaria a responder quem
somos nós num universo permeado por múltiplos chamados culturais, onde as referências
podem ser fluidas e passageiras, num tempo que passa cada vez mais rápido. No esforço de
rememoração, no intenso movimento de reencontrar-se com o passado há a tentativa do
37
sujeito de encontrar-se, ou ainda reencontrar-se, com essa verdade, tomando-a, erroneamente,
como uma essência, ou uma palavra última, que lhe dissesse quem é.
Naturalmente, a memória e a identidade podem ser negociadas. Pollak afirma que ―a
memória e a identidade são valores disputados em conflitos sociais e intergrupais, e
particularmente em conflitos que opõem grupos políticos diversos‖ (1992, p. 205). É como
também lembra Huyssen, ―a memória é sempre transitória, notoriamente não confiável e
passível de esquecimento; em suma, ela é humana e social‖ (2000, p. 37). Mas não só isso.
Como vimos, quando se trata do ser de linguagem que é o homem, não recordamos uma
lembrança como uma reminiscência em-si, idêntica a si mesma, nem mesmo uma palavra
repetida é a mesma quando se trata do ser humano. Desse modo damos especial peso e
precisão à palavra ―humana‖ da citação de Huyssen.
Para Nora (1993), um suporte, material ou imaterial, só pode ser considerado ―lugar de
memória‖, a partir do momento que representa algo da memória coletiva, tendo aí tanto um
retorno reflexivo da história sobre si mesmo quanto um viver sob o olhar de uma história
reconstituída. Assim, é possível pensar o documentário como um possível reprodutor da
memória social, com as implicações apontadas por Nora, mas também como o ato de um
sujeito de linguagem, um ato que ao tentar fazer uma lembrança constrói outra coisa, e
constrói novamente sem cessar a cada vez que se retornar a ele.
Os documentários ―Bandeiras Verdes‖ e ―Tambor de Crioula‖ são lugares de
memória, arquivam, documentam aquilo que é história, mas ainda é memória que necessita do
arquivo para manter-se vivo, é memória pois comemora, celebra, sacraliza. Mas os filmes
―Fronteiras de Imagens‖ e ―Afinado a fogo‖ também são lugares de memória, e há ai um fato
novo. Trata-se do objeto da história ser a própria história. Toda história analisa o vivido, que é
seu objeto de questionamento, mas, como diz Nora,
a história da história não pode ser uma operação inocente. Ela traduz a subversão
interior de uma história-memória por uma história-crítica (...). Mas alguma coisa
fundamental se inicia quando a história começa a fazer sua própria história. O
nascimento de uma preocupação historiográfica, é a história que se empenha em
emboscar em si mesmo o que não é Ela própria, descobrindo-se como vítima da
memória e fazendo um esforço para se livrar dela (1993, p. 10).
Considerações Finais
Esse fato novo, encontramos também ao pensarmos o ato de Murilo de retorno e
38
debruçamento sobre seu próprio ato, um empenho em emboscar em si mesmo o que não é ele
próprio e, por consequência, cercar o que é.
Pontuamos que a repetição enquanto reprodução do mesmo está para a natureza como
estaria para uma ciência que objetiva que um mesmo estímulo possa levar a uma mesma
resposta (supondo um animal), desse modo uma repetição só possível em condições
artificiais; e mesmo assim, observa Garcia-Roza (2003), é discutível. Transpor o resultado
para o terreno humano é desconhecer que ele é impensável fora do campo do simbólico. Por
isso o autor lembra que Lacan, em algum seminário, afirma que não há behavior humano, mas
ato humano, algo indissociável da linguagem e que se constitui como sentido, ou, diríamos
ainda, radicalmente tendo sempre à espreita de si e de seus atos um não-sentido radical como
verdade. É assim que nos questionamos sobre o ato de retorno de Murilo à própria obra, a seu
próprio ato. Mas, neste ato simbólico, portanto humano, de construir e retornar ao mesmo
tempo, o que Murilo quer reencontrar? Não é só um ajuste com o passado, levantamento do
que mudou, predições que falharam, o que restou ou sucumbiu, embora sejam também
objetivos. Não só o que representa e apresenta em seu retorno, cujo resultado vemos em
―Fronteiras de Imagens‖ e ―Afinado a Fogo‖, mas o que significa o próprio retorno; o que
significa o retorno constante aos nossos arquivos.
Interrogando seu ato, retornando a ele, reencontrando-se com o passado, o sujeito
busca a resposta sobre si. A repetição, nos lembra Garcia-Roza (2003), é constituinte do
sexual, assim repetimos indefinidamente nosso primeiro encontro amoroso, nosso primeiro
romance familiar (FREUD, 1908/1909/ 1996). Esse tempo do infantil que repetimos sem
cessar não é um tempo passado como também não é uma repetição do mesmo. Contudo,
apesar de instaurar uma experiência diferencial (que escapa ao presente texto debater), esse
primeiro encontro amoroso está numa séria de outros encontros anteriores. Não há um
elemento primeiro, um elemento em-si que fosse a referência absoluta e a verdade sob todas
essas repetições, não há uma resposta última que diga desse sujeito. Dito de outro modo, se
para a psicanálise o desejo é a própria busca sem fim de um objeto nunca encontrado e se o
desejo se constitui na alteridade, quando o sujeito se vê diante da grande questão ―o que este
outro13 quer?‖ para, a partir da pergunta, erigir-se como sujeito, sujeito de desejo, o fato é que
13
Aqui se refere mais especificamente ao conceito de Outro da teoria lacaniana e à grande questão lançada a esse
Outro, contudo tal especificidade escapa aos objetivos do presente texto, bastando, para tanto, a ideia veiculada.
39
ele não encontra a resposta. A pergunta não existe, mas não cessamos de perguntar, e este
objeto é faltoso desde sempre, mas não cessamos de procurar.
Referências Bibliográficas
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SANTOS, Murilo. Afinado a fogo: o Tambor de Crioula revisitado. 2009.
SANTOS, Murilo. Fronteiras de imagens. 2010.
40
O filme Clube da Luta: Leituras Psicanalíticas Possíveis
Miriam Chnaiderman14
Resumo
Duas abordagens possíveis de análise do filme ―Clube da Luta‖ são colocadas lado a lado. Na
primeira, de Denise Hausen, a questão da crítica social está em primeiro plano. Na outra, explicitada
em ensaio meu já publicado, a questão do masculino e do feminino norteia a abordagem do filme.
Palavras-chave: Violência, castração, psicanálise, consumo, corpo, sexualidade, feminino, masculino,
linguagem.
The movie Fight Club: Psychoanalytic possible approaches
Abstract
Two possible approaches to analyse the movie ―Fight Club‖ are placed here side by side. In one of
them, by Denise Hausen, the issue of social criticism is in the foreground. In the other one, already
explained in an essay I have published, the issue of masculine and feminine guides the approach of the
film.
Keywords: Violence, Castration, Psychoanalysis, Consumption, Body, Sexuality, Feminine,
Masculine, Language.
Introduzindo a questão
Em 2005 publiquei na Revista da Associação Psicanalítica de Porto Alegre o texto ―O
filme Clube da luta: produção ensandecida de masculinidades‖15. O texto era parte de um
painel que acontecia dentro de um congresso de psicanalistas que tinha como tema
―Masculinidades‖. A partir da leitura do livro recém-lançado Cinema e Psicanálise - o
14
Miriam Chnaiderman é psicanalista, documentarista e ensaísta. Psicanalista, ligada ao Departamento de
Psicanálise do Sédes Sapientiae, mestre em Comunicação e Semiótica pela PUCSP, doutora em Artes pela
Escola de Comunicações e Artes da USP. Ensaísta, vem publicando em vários jornais e revistas artigos sobre
psicanálise, cinema e teatro. Tem dois livros publicados sobre a relação entre arte e psicanálise: O hiato convexo:
literatura e psicanálise (Brasiliense) e Ensaios de Psicanálise e Semiótica (Escuta). Vem participando de debates,
mesas redonda, conferências para profissionais de artes,e psicanálise nas mais diversas instituições e nos mais
diferentes eventos, pelo Brasil todo. É diretora dos curtas documentário: Dizem que sou louco (1994), Artesãos
da Morte (2001), Gilete Azul (2003), Isso, aquilo e aquilo outro (2004), Você faz a diferença (2005) , Passeios
no Recanto Silvestre (2006), Afirmando a vida (2009), Mboi Mirim, Dos ïndios, das Águas, dos Sonhos (2009).
Realizou os médias-metragens, Procura-se Janaína (2007) e Sobreviventes (2008).
15
Revista da Associação Psicanalítica de Porto Alegre, n° 28 – Abril – 2005.
41
conceito de Castração em transversal de Denise Costa Hausen16 e da análise que faz do
mesmo filme, resolvi voltar ao meu texto para indagar de que forma a psicanálise pode operar
na análise fílmica conduzindo por caminhos tão distintos a conclusões tão diversas. Diversas e
não necessariamente divergentes. Mas, tomar as duas análises, do mesmo filme, pode nos
mostrar formas distintas de utilizar o instrumental psicanalítico.
Sobre o livro Cinema e Psicanálise – o conceito de castração em transversal, seus
pressupostos na abordagem do filme O Clube da Luta
Denise Hausen escolhe trabalhar três filmes: O clamor do sexo, de Elia Kazan, de
1961, Império dos sentidos, de Nagisa Oshima, de 1976, e Clube da luta, de David Fincher,
de 1999. A autora justifica a escolha desses três filmes: ―tiveram força de ruptura no trato da
questão da sexualidade, foram propulsores dessas mesmas mudanças e também puderam se
realizar, pela sensibilidade de seus diretores, no sentido da antecipação, pela imagem, de algo
que estava posto no imaginário social‖. Para pensar a sexualidade através desses nossos dois
séculos, Denise se detém no conceito de castração, central na construção freudiana. Todo
percurso de Freud é percorrido, a autora passeando com desenvoltura pelos textos fundadores
– Três ensaios sobre a sexualide (1905) e As teorias sexuais das crianças (1908).Não é meu
propósito aqui discutir a centralidade do conceito de castração na psicanálise tanto freudiana
quanto pós-freudiana, nem abordar as várias possibilidades de leitura desse conceito. Aliás,
Renata Cromberg, no ―Prefácio‖ ao livro faz isso brilhantemente.
Meu foco aqui é refletir sobre de que forma o cinema é trabalhado quando o foco é um
conceito psicanalítico. É visando estudar fatos da cultura que Denise vai se deter no cinema.
Afirma: ―O cinema, tomado como um produto e um produtor do imaginário coletivo, se
oferece como uma alternativa de estudo dos fatos culturais, viabilizando, portanto, ser usado
como objeto de conhecimento.‖ E explicita sua meta: ―Através de sua forma, como do seu
conteúdo, permitiu revelar e informar sobre o conceito de castração‖.
Aqui Denise deixa claro que vai aos filmes tendo um foco ou uma questão: quer ver de
que forma a sexualidade de cada contexto se faz presente nos filmes sendo a castração o
conceito freudiano que a noteia em sua abordagem. Não ignora a existência de outras
abordagens, sendo que inclusive as enumera, indagando-se sobre o conceito de linguagem.
16
Denise Hausen, Cinema e psicanálise - o conceito de castração em transversal. Porto Alegre, Editora
Movimento, 2012.
42
Denise assume que escolhe o cinema como ―pano de fundo habilitado a descortinar
desdobramentos com relação à sexualidade e, portanto à castração‖. Toma o cinema como
―ferramenta de pesquisa outorgando a ela o lugar de poder expressar mudanças ocorridas nos
modos de viver a vida‖.
Sobre meu trabalho com o cinema e o que me norteou na análise de Clube da Luta
Nunca tenho uma questão em mente quando assisto a um filme. Tenho um prazer
enorme de ir sendo conduzida, sem mais. Um delicioso mergulho. Em geral são os filmes que
me colocam as questões, conceituais ou não. Discuto muito, em vários textos meus, o perigo
de utilizar um filme para ilustrar os conceitos psicanalíticos. Não é o que Denise Hausen faz,
pois seu objetivo é utilizar os filmes para refletir sobre fatos da cultura, sobre a sexualidade
em diferentes momentos da nossa história . Seu referencial é psicanalítico, portanto, busca ver
de que maneira os filmes explicitam conceitos tais como o ―complexo de castração‖ para
poder pensar a sexualidade no mundo.
Em relação ao Clube da luta, encontrei-me em situação próxima àquela que Denise
Hausen explicitou: embora seja eu que tenha escolhido trabalhar esse filme, a demanda que
me foi feita era de uma fala dentro de um evento que queria refletir sobre a questão da
masculinidade. Pediam-me também que falasse algo ligado ao cinema, sugeriam que eu
escolhesse um filme. Passei alguns dias pensando e logo me veio à mente o Clube da luta. Eu
não tinha muito claro por quê, embora, de imediato, esse fosse um filme ―de homens‖. Um
filme masculino?
Sempre me coloquei se existiria, por exemplo, uma escrita feminina. Ou se existiria
uma diferença no cinema feito por mulheres. Foi lendo Clarisse Lispector que pude aceitar
que algo do corpo determina sobre nossa escrita. No cinema também. Mas, não sei se o
cinema que ―sentimos‖ como masculino é sempre feito por homens. E há lindos filmes
femininos feitos por homens. A feminilidade ou masculinidade não estão ligados ao
anatômico.
Foi mergulhando no filme Clube da Luta e indo às questões psicanalíticas que ele me
suscitou que tentei me debruçar sobre o masculino (e o feminino, é claro). Sempre que analiso
um filme fico com a sensação que as questões psicanalíticas brotam dele e não de mim ou de
um questionamento teórico. Tanto que, muitas vezes, os filmes questionam a própria teoria.
Penso ser esse o caso de Clube da luta.
43
A construção das análises fílmicas
Em todo seu livro, na análise que Desise Hausen faz dos três filmes, há sempre a
contextualização do campo onde surge cada uma das produções: dá sempre uma breve
biografia dos diretores e atores, situa a crítica de cada momento dos lançamentos ou
relançamentos. E isso é sempre muito útil e curioso. Depois, conta do enredo para então
iniciar sua análise.
No capítulo dedicado ao Clube da Luta há o item ―Reportagens, cartazes de divulgação e
crítica cinematográfica acerca do filme‖. Nesse item, a questão de se o filme incitaria ou não à
violência fica em primeiro plano.
Realmente, o primeiro item de meu artigo já publicado é: ―O filme Clube da Luta
estimularia a violência?‖
Denise Hausen faz um interessante levantamento do que foi dito sobre o filme desde o
seu lançamento, contando que seu produtor, Tom Sherak, teria dito para a imprensa: ―vocês
vão adorar esse filme. Ele é diferente...‖. Na estreia na França o Le monde publicou uma
entrevista com o diretor, Fincher, onde ele contesta o pressuposto de risco com relação a
filmes violentos. No Brasil ele foi liberado para maiores de 12 anos. Nos Estados Unidos,
menores de 18 anos deveriam estar acompanhados. Foi censurado no Reino Unido, teve cenas
de violência suprimidas.
Segundo Denise Hausen ―a imprensa escrita polarizou-se entre considerá-lo um filme
violento ou esperançoso‖. Conta que a produtora exigiu, no Reino Unido, que fosse publicada
uma entrevista com os dois atores principais, Brad Pitt e Edward Norton, onde afirmam a
―impropriedade de considerá-lo como um filme pernicioso ou gratuito em sua violência‖.
Depois do 56° Festival de Veneza, a imprensa o considerou um filme anti-Deus. O autor do
livro no qual o filme se baseou, Palahniuk comentou: ―acho que você pode retratar essas
coisas, rir delas e, assim, tira o poder delas. Daí as pessoas vão desistir de fazer isso‖. A
seguir, Denise Hausen conta o episódio que ocorreu no Morumbi Shopping, durante a
exibição do filme em novembro de 1999. É com esse episódio que inicio meu artigo, no
trecho que, passo agora a reproduzir.
Assim me referia ao episódio do shopping Morumbi: ―O filme O Clube da Luta,
exibido no Brasil no segundo semestre de 1999, ficou ligado a um antes anônimo estudante de
medicina, Mateus Rocha Meira: durante uma sessão, em pleno Shopping Morumbi, depois de
dar um tiro no espelho, na sua própria imagem refletida, o jovem dirigiu-se à sala de projeção
44
e, com a metralhadora semi-automática, adquirida no decorrer daquele mesmo dia, disparou
contra a platéia e matou três pessoas. A matança aconteceu durante as cenas de luta.
Também nos Estados Unidos um jovem de 16 anos foi violentamente espancado numa
briga em Seattle, quando do lançamento do filme. Os pais do adolescente ferido disseram que
os jovens agressores ―estavam lutando como no filme‖, conforme reportagem publicada no Le
monde.
A seguir, eu polemizava com as posições que abominavam o filme, e, principalmente
com Contardo Calligaris:
Contardo Calligaris, no ensaio ―Virilidade em crise‖17 assim escreve:
―Na semana passada, nos EUA, estreou ‗Clube da Luta‘, filme
dirigido por David Fincher, com Brad Pitt e Edward Norton...(...) o
que ficará desse filme no sonho dos espectadores eventualmente
seduzidos, será a seguinte mensagem: para não se perder no
consumismo ornamental que nos aliena, os homens devem se reunir
entre eles, encher a cara reciprocamente de porradas e, enfim, salpicar
a cidade de bombas. Se há um filme que merece ser classificado de
pornográfico, é esse.
Continua Contardo: ―Infelizmente, contrariamente a Thelma e
Louise, Norton e Pitt não se jogam em nenhum abismo. Ao
contrário, eles fundam um grupinho que tem toda a cara de um
partido fascista".
Segundo Contardo, criticar o equivocado ideal masculino da
propaganda Calvin Klein (Contardo está se referindo ao livro de
Susan Faludi, jornalista feminista) poderia levar a aprovar uma
boa homossexualidade reprimida de grupo. Contardo afirma
preferir "qualquer Parada Gay ou qualquer desfile de modahomem à marcha alinhada de enrustidos da SS"
(CHNAIDERMAN, 2005).
Eu, a partir de pesquisa que havia feito para um documentário sobre a violência, havia
tentado um contato com Mateus da Rocha Meira. Assim prosseguia meu artigo:
Mateus da Rocha Meira foi preso e, em 2004 foi responsabilizado por
seus atos, considerado não-psicótico, ou seja, sem direito a qualquer
tratamento especial. Quando tentei entrevistar Mateus para um
documentário que estava buscando fazer, sobre a violência, ele ainda
estava sendo julgado. Negou-se a conceder a entrevista pois o
jornalista Roberto Cabrine havia traído sua confiança e levado ao ar
trechos que ele pedira que não aparecessem. Soube então que Mateus
não se dá com ninguém, arruma briga por todos os lugares de
carceragem pelos quais tem passado e que, assistindo à entrevista na
17
Contardo Calligaris, ―Virilidade em crise‖, in jornal Folha de S.Paulo, 28-10-1999.
45
televisão, arrebentou o aparelho. Tudo leva a pensar em paranóia e
todos sabemos das relações entre paranóia e homossexualismo.
Contardo teria razão, então? Logo que soube que Mateus Meira
fora considerado não psicótico, pensei que o júri deveria ter
assistido ao filme Clube da Luta. Basta assistir ao filme para
perceber a fragmentação dolorosa de Mateus e a confusão total
em que devia estar imerso, invadido por vozes e visões
(CHNAIDERMAN, 2005).
Eu continuava o artigo polemizando ou concordando com outras leituras. Assim, no
segundo item, ―Outras leituras‖, referia-me a Jorge Coli que, contrariamente a Contardo
Caligaris, afirmou que ―o filme de Fincher é ‗diabolicamente inventivo‘ pois é uma história
regressiva de homens-meninos, bonzinhos e inconformados, física ou socialmente
emasculados, sentindo a necessidade imperiosa de se reencontrarem num mundo próprio,
onde uma ‗saudável violência‘, sangrenta e regeneradora é o núcleo18‖.
Continuava citando o ensaio de Paulo Jorge Ribeiro, "A era da frustração: melancolia, contrautopia e violência em Clube da Luta19". Citando meu artigo: ―Para o autor, o que se revela, na
visão de Contardo e de Jorge Colli, é a percepção de uma imagem traumática fornecida por
Clube da Luta, ‗na qual coexiste o mito da indignação (ética) e a sedução da violência e da
câmera‘. Lembra Cães de Aluguel de Tarantino‖. Paulo J. Ribeiro pensa que o Clube da Luta
não é um culto à violência. Afirma:
"De todo modo, este universo em chamas não deixaria também de conter, como sua
tarefa, refletir sobre os possíveis limites na representação da perversidade. Limites
externos - a questão da censura, a existência ou não de temas proibidos às artes, os
prejuízos que essa exposição pode ocasionar - e internos - o fracasso de vários
discursos em dramatizar o fenômeno da gratuidade do mal, em transformar o
Inominável em matéria de reflexão comunicável, o desafio à tendência teleológica
de certas narrativas que vêem na obrigação de apresentar uma justificativa final assimilável e indubitável - para as metódicas carnificinas perpetradas por seus
personagens" (RIBEIRO, 2002).
Abordagens possíveis
Para Denise Hausen, o que norteia a construção do filme é ―a denúncia de uma
sociedade que esvazia o homem‖. Afirma que os personagens são ―viciados em violência
como forma de dar conta de uma angústia sem nome‖. Será que aqui não há uma busca de
18
J. Colli, ―Punhos‖ in ―Caderno ‗Mais‘‖ do jornal Folha de S. Paulo, 7 de novembro de 1999.
Trabalho apresentado na IV Reunião de Antropologia do Mercosul, em Curitiba, no Fórum de Pesquisa
"Estudos recentes sobre arte, cultura e sociedade".
19
46
razão para a violência, quando o filme irrompe em um não-sentido total para o que vai se
passando? A luta seria luta ―ferramenta de resistência a uma sociedade que gera nas pessoas o
despojamento da responsabilidade pela própria vida, da própria angústia do viver, organizada
em torno de pressupostos do consumo que obrigam os indivíduos à aquisição de objetos
talvez inúteis...‖ O filme mostraria então a ausência de qualquer limite e a ausência da
castração. Haveria uma identificação com a imposição social, a luta seria uma forma de
submeter em vez de ser submetido. Os corpos sangram ―na impossibilidade de
reconhecimento de um limite simbólico‖.
Na análise de Denise Hausen, no filme, o ato se encarrega de executar o que seria
função da palavra. Haveria uma impossibilidade de abdicar do mundo das sensações do
corpo.
É interessante pensar que, na abordagem que fiz, também parto da questão da
impossibilidade de simbolização. Faço toda uma reflexão sobre o não-lugar que o feminino
vem ocupando na teoria psicanalítica para tomar o filme como uma importante reflexão sobre
o também não-lugar do masculino.
Afirmava
eu
no
terceiro
subtítulo
―O
enigmático
na
masculinidade‖:
―O filme Clube da Luta interroga até o limite exatamente a masculinidade. Em nosso mundo
contemporâneo, sem dúvida. Mas também questiona radicalmente o como a psicanálise vem
pensando o masculino‖. Eu partia da constatação do quanto a psicanálise vem deixando o
enigmático apenas do lado do feminino e citava Marie Claire Booms, no ensaio "Da sedução
entre os homens e as mulheres: uma abordagem lacaniana"20 onde mostra como nossa cultura
vem colocando a mulher fora da possibilidade do simbólico. Afirma Marie Claire Booms:
... pois numa sociedade que se funda sobre a rejeição para fora do simbólico do
feminino não há significante de A mulher. Há apenas o significante fálico e sua
função para significar a diferença, dividindo a humanidade falante em metade
masculina e metade feminina, segundo a maneira como cada sujeito se inscreveu
em relação à castração que esta função designa (BOOMS, 1987).
A metade masculina tem o acesso ao simbólico bem garantida. Na outra metade, a
nomeada como feminina, haveria um gozo que escaparia à castração, sendo então portadora
de um segredo sempre inviolado. Nessa metade, o acesso ao simbólico ―permanece
problemático‖. É interessante notar que os termos psicanalíticos que Marie Claire Booms usa
20
M.C. Booms, "Da sedução entre os homens e as mulheres: uma abordagem lacaniana" in Homem mulher,
abordagens sociais e psicanalíticas, org. Carmen Da Poian; R.J.: Livraria Taurus Editora.
47
para se referir ao feminino são aqueles que Denise Hausen usa para se referir ao filme Clube
da Luta.
O que eu propunha era, citando meu ensaio, que ―o Clube da Luta inverte a lógica
baseada no falo e recoloca o enigmático do lado do masculino. Daí sua importância. Não por
acaso, em um dos vários grandes momentos do filme, Marla, único personagem feminino,
competindo com o personagem em relação aos grupos de ajuda que cada um deveria
frequentar, afirma sobre os homens portadores de câncer nos testículos: "Eu é que deveria ir a
esse grupo. Você ainda tem as suas bolas..."
Eu refletia então: ―Se o Real, tal como pensado por Lacan, é o verdadeiro contrário da
realidade, não há um significante que dê conta seja de ―O‖ homem seja de ―A‖ mulher‖.
Analisando a mesma cena
Transcrevo aqui de que maneira Denise Hausen nos conta sobre o início do filme:
O filme abre, desde o início, se mostrando como um filme caracterizado pela
velocidade. A velocidade com que inicia sua apresentação, os efeitos especiais são
paradigmáticos dos anos 90. Uma série de fotos mostra uma sequência que tem
início em um close up de uma sinapse. A partir daí, a ―câmera se afasta‖,
mostrando o neurônio, a substância cinzenta, o crânio, a pele e termina em uma
tomada de Jack pensando se deve disparar uma arma ou não. Arma na boca
simulando um felatio. A cena expõe dois homens (HAUSEN, 2012).
No quarto item de meu ensaio, ―O filme - Quem é quem‖, assim descrevo o início do
filme:
As primeiras tomadas de o Clube da Luta são imagens de entranhas entranhas/teias. Os primeiros ruídos são orgânicos, barulhos de vísceras. Um corpo
- nem feminino nem masculino. A câmera penetra e se afasta, a cópula no
movimento da câmera.
Vai surgindo uma epiderme, invólucro pele, gotas de suor, a câmera se fixa em
dois globos oculares - o olho de Bataille, aquele que, se revirado, cega.
Surge a imagem de um revólver enfiado em uma boca. E uma voz em off: ―"Com
uma arma na boca, você fala apenas em vogais‖. Um homem ameaçado de morte
só fala vogais, é um homem feminilizado - a vogal tem a ver com o feminino, as
consoantes cortantes lembram o masculino (CHNAIDERMAN, 2005)..
É interessante observar o quanto a problemática que suscita a análise do filme vai
determinando o olhar. Para Denise, o revólver na boca é um felatio. Para mim, aponta para a
feminilização do homem.
48
Assim continuo minha análise:
O momento inicial do filme, o personagem principal, que dá o foco ao filme (ele
não tem nome ou é chamado por diferentes nomes no decorrer do filme - pois
somos todos nós...) ameaçado de morte fala em off: "Sempre me pergunto se
conheço Tyler Durden". Quem é quem? Em um determinado momento escutamos:
"Sou o fígado de Jack. Sou o ódio de Jack". No momento inicial Tyler tira a arma
da boca de seu parceiro e afirma: "Está ficando excitante". A única excitação
possível é a da proximidade da morte e a busca da morte ou a vida por um fio
permeia o filme todo. Trata-se da busca exasperada de uma linguagem que dê conta
do inomeável do êxtase e da dor, busca tão característica dos místicos. São João da
Cruz afirmava: ―Que mais queres, ó alma, e que mais buscas fora de ti, se tens
dentro de ti tuas riquezas, teus deleites, tua satisfação, tua fartura e teu reino, que é
teu Amado a quem procuras e desejas (...) não vás busca-lo fora de ti, porque te
distrairás....‖ ―A causa é estar ele escondido e não te esconderes também para
acha-lo e senti-lo‖21. O Clube da Luta é montado para que todos possam encontrar
esse amado inomeável – e o encontro tem que ser clandestino, escondido. Na
pertinência à seita, os seguidores passam a olhar o mundo de outro jeito. Os meros
mortais não têm acesso a esse saber do inomeável (CHNAIDERMAN, 2005).
Denise Hausen afirma: ―Na fita, o corpo dos personagens precisa ser batido,
deformando, mostrado com cicatrizes (...) Teatro do psíquico, o corpo precisa ser destruído
para aludir a um sistema social: ‗me dê um soco bem no meio da cara‘, ordena Tyler ao
narrador‖.
Eu, em meu ensaio, buscando a partir do filme colocar questões da possibilidade da
linguagem associadas ao feminino e/ou masculino e Denise Hausen buscando os sintomas do
laço social na construção da sexualidade.
Não que eu abandone a questão do contemporâneo. Cito, logo após o início do filme, a
afirmação em off: "Estamos na primeira fila neste teatro de destruição em massa". Afirmo
então:
a referência, a nós, espectadores, é clara - nós que, em nosso dia a dia e na tela do
cinema e da televisão assistimos, de camarote, a destruição em massa. Zizek
mostrou como no dia 11 de setembro, na destruição do World Trade Center, ficou
evidenciado como a realidade é a melhor aparência de si mesma 22. Zizek faz essa
afirmação para pensar mega-eventos televisionáveis, como a destruição das torres
em Nova Iorque. Mas, podemos pensar essa afirmação também a nível molecular.
Se a realidade é sempre semblante, temos que repensar o masculino
(CHNAIDERMAN, 2005).
21
22
São João da Cruz (1542-1591) – Canções de amor entre a alma e Deus.
Zizek, Slavoy, Bem-vindo ao deserto do real. SP; Editora Boitempo, 2003.
49
Mas, a citação de Zizek vem apenas para problematizar formas da psicanálise pensar o
feminino e o masculino. Citando:
A confusão entre pênis e falo tem colocado o masculino como mais capaz de
simbolização. O falo (pênis?) seria a possibilidade de diferença e constituição da
linguagem. Marie Claire Booms, citada acima, já criticara essa confusão de
conceitos. A partir de Zizek podemos afirmar que a realidade do masculino o torna
puro semblante, ilusão de um simbólico que se esvai e por isso leva a um mergulho
no Real (ZIZEK, 2003).
A questão do consumo e da imagem também é presente na reflexão de Denise Hausen,
quando cita Dantas e Tobler, que falam de indivíduos que se deixam apreender pela
manipulação do imaginário social. Eu cito Zizek: "Na sociedade consumista do capitalismo
recente, a 'vida social real' adquire, de certa forma, as características de uma farsa
representada, em que nossos vizinhos se comportam 'na vida real' como atores no palco..‖
Cito então Badiou para quem a paixão pelo Real, característica do sec. XX, culminaria no seu
oposto aparente – o espetáculo teatral: "Estamos na primeira fila neste teatro de destruição em
massa". Afirmo: ―Se a paixão pelo Real termina no puro semblante do espetacular efeito do
Real, então, em exata inversão, a paixão pós-moderna pelo semblante termina numa volta
violenta à paixão pelo Real‖.
A paixão pelo Real
Para mim o tema do filme Clube da Luta tem como tema a paixão pelo Real . É um
filme que aparentemente exemplificaria a paixão pelo Real. E aí, sim, cairíamos na pura
pornografia de que nos fala Calligaris. A imagem obscena é um conceito que nos vem de
Andre Bazin - é o termo que cunhou para exprimir o que sentia quando ia todas as tardes ao
cinema para ver a morte de um toureiro. A morte é única e sua repetição obscena. A paixão
pelo Real só poderia levar à obscenidade. Mas, é essa paixão pelo Real que é questionada.
Quando Denise Hausen fala da ausência de palavra também está fazendo referência ao
inomeável, ao Real. Afirma: ―O filme é fundado de tal forma que as palavras não sejam ditas
e que o corpo não seja destruído...‖.
Tyler pede que todos se livrem do mundo das aparências e quando organiza um
exército destruidor afirma que está prestando um grande serviço à humanidade. Sua missão é
libertadora - quer libertar o homem do mundo das aparências. Como São João da Cruz.
50
A violência como possibilidade de redenção ou como negação do limite
Assim continuo a análise que faço do filme:
Depois da cena em que o revólver está enfiado na boca do ator, ficamos sabendo,
enquanto a câmera se move por subsolos de prédios, que dois edifícios vão
explodir, foram colocados explosivos em suas fundações. Ouvimos a voz em off:
―Em dois minutos uma cadeia de explosivos vai se iniciar e alguns blocos serão
reduzidos a uma pilha de entulho". ―Depois ficamos sabendo que são os prédios
centrais dos Cartões de Crédito e que os homens serão libertos de suas dívidas com
o capitalismo. Surge então a violência como possibilidade de redenção do mundo
(CHNAIDERMAN, 2005).
Para Denise Hausen, ―atrelada à idéia de uma cultura do consumo vem a da cultura da
imagem...‖ Faz uma crítica do discurso publicitário onde ―a castração como normatizadora da
interdição do gozo se esvai uma vez que o postulado é o dever do gozo suplantar a tudo, até
mesmo o princípio da realidade que advoga que nada se alcança sem que se processe um
trabalho físico ou mental‖. No filme de Fincher, para Denise Hausen, a luta é a única forma
de resistência, sendo o ato a única possibilidade de subjetivação. Ou de não subjetivação,
busca da pura descarga.
Denise Hausen toma como tema norteador de sua análise a frase de um dos
protagonistas: ―somos filhos de uma geração criada por mulheres‖ para afirmar uma ausência
do Pai na sociedade contemporânea. Cita Fantimi no artigo ―Violência e imagens do pai no
cinema contemporâneo‖, onde mostra em o Clube da luta o quanto o pai não é reconhecido
como pai simbólico, aquele que realiza a função castradora.
O fato de o personagem buscar grupos de ajuda apenas atesta a falência da função
paterna: é um médico que em vez de medicar a insônia de Jack o aconselha a procurar grupos
de pessoas que sofrem. Ou seja, o médico não assume a função paterna. Afirma Denise: ―O
médico, por presunção podendo exercer o lugar de função paterna, daquele que cuida, o
remete para o grupo dos que representam a falência‖.
Assim me refiro aos grupos de ajuda: ―Na construção do roteiro, vamos,
paulatinamente, conhecendo nosso personagem e podendo entender o que o leva a procurar
tais grupos de ajuda. A compreensão é sempre a-posteriori: primeiramente surge uma
situação que nos estranha e depois a trama que dá algum sentido ao que estamos assistindo‖.
Relato como surgem os grupos de ajuda:
51
―O personagem é apresentado no trabalho. E, ainda depois, em
sua casa bem montada,"escravo do consumismo". Em off, a
pergunta: "Que tipo de porcelana me define como pessoa?" Há
uma clara referência à porcelana azul de Oscar Wilde, escritor
que assumiu seus conflitos com a masculinidade, tanto em obra
quanto na vida. Ficamos sabendo que o personagem sofria de
terríveis insônias. Procurara um médico que lhe aconselhara
exercícios de relaxamento, e ele, desesperado, lhe implora algo
que o alivie, pois está sofrendo. O médico aconselha que entre
em contato com o sofrimento, indo ver o grupo de homens com
câncer nos testículos‖ (CHNAIDERMAN, 2005).
Denise Hausen afirma que ―a insônia é o início da produção fílmica‖. Recorre a todo
um pensamento psicanalítico que vê na insônia uma das ―primeiras alterações manifestadas
pelos bebês, denunciadora de uma indiferenciação dos corpos, num pressuposto de fusão
vivenciada pelas mães que não identificam, atropelam ou ignoram os sinais expressivos da
necessidade ou vontade peculiar do bebê‖. O filme denunciaria um mundo fusional, sem
distinção entre sujeito e objeto.
Vou refletindo, em meu ensaio, que ―nosso personagem se vicia nesses grupos de
ajuda e a partir daí sua insônia desaparece: alcóolicos anônimos, positividade positiva,
tuberculose, livre e limpo, todos os cânceres possíveis. Há uma busca identificatória
exasperada, onde a perda como marca, traço unário, é vivida no concreto do real do corpo‖.
Concluo: ―A ironia, tão clara na caricatura desses grupos, marca um mundo contemporâneo
onde os modelos ideais se perderam, onde não há mais heróis‖. Prossigo: ―Nesses grupos
conhece Marla, que tem o mesmo vício: não consegue viver sem freqüentar os grupos de
ajuda. Marla entra na sala do câncer dos testículos perguntando: ‗Aqui é câncer, certo?‘"
Em off, a voz: "Ela é uma mentirosa, não tinha câncer nenhum!" "Marla, a grande
turista. Sua mentira refletia a minha!"
Conclusões possíveis
Em meu texto afirmo: ―A questão da morte é tema do filme. Morte tem tanto a ver
com a possibilidade da linguagem - a linguagem só pode acontecer na ausência do objeto quanto com os limites da linguagem‖. Lembro então quando ―em um grupo de autoajuda de
cancerosos, uma mulher anuncia: ‗Tenho uma boa nova: não tenho medo da morte. Só que
gostaria de uma última transa‘".
52
Remeto então ao texto de Foucault onde afirma: "A palavra que demos à sexualidade é
contemporânea, no tempo e na estrutura, daquela pela qual anunciamos que Deus está
morto‖23. Continuo: ―Falar a sexualidade tem a ver com a nomeação de um morto. No filme, a
busca desenfreada por algum Deus. Deus é Tyler, Deus é o clube da luta. Pois, o clube da
briga não era sobre palavras. Não se trata de falar e sim de brigar. A briga é o encontro
místico com Deus‖.
Interessante, tantos anos depois, ler, através do texto de Denise, que o filme, depois de
56º Festival de Veneza, foi considerado um filme anti- Deus.
As conclusões de Denise vão em outra direção. A partir do texto de Freud
Formulações sobre os dois princípios de funcionamento mental, fala de uma perda de contato
com a realidade em Tyler, ―sobretudo a impossibilidade de dar conta do que desagrada através
do pensamento e da palavra‖. Há um não confronto com a própria dor, os afetos indesejáveis
são dissipados. Denise afirma que há um não reconhecimento da castração e portanto uma
impossibilidade de simbolização.
Em minha conclusão lembro que
Zizek nos lembra de Ernest Jünger que, nas trincheiras da Primeira Guerra Mundial
já celebrava o combate corpo-a-corpo como o autêntico encontro intersubjetivo.
Tyler e o personagem fundam um clube onde o combate corpo-a-corpo propicia o
autêntico encontro inter-subjetivo.
Zizek refletiu sobre o sintoma, bastante comum em nosso mundo: a necessidade
que algumas pessoas têm de se auto-mutilar. Esses indivíduos estariam tentando
fugir não apenas da sensação de irrealidade, de virtualidade artificial do mundo em
que vivemos, mas do próprio real que explode sob a forma de alucinações
descontroladas que nos invadem quando perdemos a âncora que nos prende à
realidade (CHNAIDERMAN, 2005).
Denise também discute exatamente essas questões ao final do seu texto: ―é através do
corpo concreto que Tyler emerge, numa metáfora ao primeiro tempo do processo de
constituição psíquica em que o corpo fala direto, Tyler implora que Jack o reconheça e o faça
vivo mediante o toque violento no corpo: não quero morrer sem cicatrizes‖. Cita Lacan,
através de Nasio, que se refere ao corpo como aquele através do qual é possível dizer mais do
que se sabe sobre si mesmo.
Em meu ensaio concluo indo para o final do filme:
23
M. Foucault,―Prefácio à transgressão‖, In: Ditos & escritos III – estética: literatura e pintura, música e
cinema. RJ, Forense Universitária, 2001.
53
quando o personagem atira em Tyler e é ele que sangra, ficamos sabendo que
talvez tudo que aconteceu tenha sido uma explosão do Real, bem no sentido em
que nos fala Zizek. Os dois personagens são um só e nós também nos fundimos ao
personagem. Tyler é também Fincher, o diretor do filme, que insere um pequeno
pênis no canto do quadro da cena – Tyler inseria imagens pornográficas em filmes
inocentes (CHNAIDERMAN, 2005).
A luta é então a automutilação de que nos fala Zizek, a possibilidade de ter alguma
âncora na realidade. Mas, o filme como um todo nos teria mostrado alucinações
descontroladas...
Ausência de castração ou busca exasperada de encarnar um corpo para além de uma
lógica do consumo e da pura imagem?
Concluo meu ensaio afirmando que no final ―abraçado a Marla, o personagem assiste à
destruição dos prédios que são a sede dos cartões de crédito, não é de um encontro
homem/mulher de que se trata: a mulher é o duplo do homem, e o homem o duplo da mulher
naquilo que ambos têm de inomeável e não simbolizável‖.
Afinal, assim como Denise Hausen tinha como foco a questão da sexualidade em
nosso mundo contemporâneo, eu queria desmontar um pensamento psicanalítico sobre o que
consiste o masculino e o feminino. O interessante é poder ver o quanto as duas abordagens se
complementam. E mostrar como, a partir de referenciais próximos, podemos chegar a
diferentes leituras de um mesmo filme.
Referências Bibliográficas
BOOMS, M.C. ―Da sedução entre os homens e as mulheres: uma abordagem lacaniana‖ in Homem
mulher, abordagens sociais e psicanalíticas, org. Carmen Da Poian; R.J.: Livraria Taurus Editora.
CALLIGARIS, CONTARDO. ―Virilidade em crise‖, in jornal Folha de S.Paulo, 28-10-1999.
COLLI, J. ―Punhos‖ in ―Caderno ‗Mais‘‖ do jornal Folha de S. Paulo, 7 de novembro de 1999.
CHNAIDERMAN, Miriam. O filme Clube da luta: produção ensandecida de masculinidades.
In: Revista da Associação Psicanalítica de Porto Alegre, n° 28 – Abril – 2005.
FOUCAULT, M. ―Prefácio à transgressão‖, In: Ditos & escritos III – estética: literatura e pintura,
música e cinema. RJ, Forense Universitária, 2001.
HAUSEN, Denise. Cinema e Psicanálise – o conceito de Castração em transversal. Porto Alegre,
Editora Movimento, 2012.
RIBEIRO, Paulo Jorge. A era da frustração: melancolia, contra-utopia e violência em Clube da Luta.
In: REVISTA DE ANTROPOLOGIA, SÃO PAULO, USP, 2002, V. 45 nº 1.
ZIZEK, Slovoy. Bem-vindo ao deserto do real. SP; Editora Boitempo, 2003.
54
Freud e Méliès: cinema, sonho e psicanálise
Ronis Magdaleno Júnior24
Resumo
Cinema e Psicanálise são duas áreas que se sobrepõem em vários aspectos. Há uma coincidência, não
casual, do período em que surgem no final do século XIX. Georges Méliès e Sigmund Freud são dois
personagens intimamente relacionados à criação do Cinema e da Psicanálise, e, a partir de suas
produções, do lugar do sonho na Cultura. Procuramos fazer uma aproximação das criações destes dois
importantes personagens e apresentar suas contribuições para a Cultura.
Palavras-chave: Cinema, Georges Méliès, Psicanálise, Sigmund Freud, Sonhos.
Freud e Méliès: cinema, dream and psychoanalysis
Abstract
Cinema and psychoanalysis are two areas that overlap in several aspects. There is a coincidence, not
casual, of the period in which they appear in the late nineteenth century. Georges Méliès and Sigmund
Freud are two characters closely related to the creation of cinema and psychoanalysis, and from their
productions, of the place of the dream in culture. We seek to make an approximation of the creations
of these two important figures and present their contributions to culture.
Keywords: Cinema, Georges Méliès, Psychoanalysis, Sigmund Freud, Dreams.
A Cultura expande-se acompanhando o desenvolvimento do Homem, e, de tempos em
tempos, produz indivíduos com capacidades singulares para apreender a demanda humana em
momentos chave da História. Nesse sentido, podemos dizer que não foi por acaso que o
Cinema e a Psicanálise nasceram no mesmo momento histórico: a Europa do final do século
XIX. Nesse momento, no qual a Ciência procurava ganhar espaço sobre as crenças, sobre os
dogmas religiosos e sobre as produções humanas, tanto as externas como aquelas de foro
íntimo, surgem os Irmãos Lumière e Sigmund Freud.
O ano é 1895. Os irmãos Lumière realizam a primeira projeção pública de um filme na
história da humanidade, nos subterrâneos do Grand Cafè de Paris. Não muito longe dali, em
Viena, Sigmund Freud e seu amigo e professor Joseph Breuer lançam aquela que é a primeira
apresentação pública do trabalho psicanalítico, “Estudos sobre a Histeria”, na qual expõem
24
Psiquiatra, Membro da Sociedade Brasileira de Psicanálise de São Paulo, Membro de Grupo de Estudos
Psicanalíticos de Campinas, Doutor em Ciências Médicas pela Universidade Estadual de Campinas, Pesquisador
Colaborador do Laboratório de Pesquisa Clínico Qualitativa da Faculdade de Ciências Médicas da UNICAMP.
55
as primeiras ideias sobre o Inconsciente, a essência da nova ciência que nascia e que ganharia
o nome de Psicanálise.
Ao saber das atividades dos irmãos Lumière, Georges Méliès, uma curiosa figura e
mágico ilusionista de Paris, quis comprar um cinematógrafo para utilizá-lo em seus números
de mágica. Tal aquisição foi desestimulada pelos criadores da máquina com o argumento de
que o aparelho tinha finalidade científica e que não daria certo se tentasse usá-lo como
entretenimento. Méliès insistiu e acabou por conseguir um aparelho semelhante na Inglaterra
e, a partir dele, tornar-se o primeiro grande produtor de filmes de ficção voltados para o
entretenimento, sendo considerado hoje o pai dos efeitos especiais. Produziu durante a vida
mais de 500 filmes, sendo sua primeira produção, datada de 1896, Une partie de cartes.
Une partie de cartes (1896)
Poucos anos depois, em 1899, tanto o Cinema como a Psicanálise tinham feito
progessos importantes. Georges Méliès produz
Cendrillon, a primeira produção
cinematográfica em forma de narrativa fantástica, e Sigmund Freud termina a redação daquela
que seria sua obra seminal: “A Interpretação dos Sonhos”, duas inovações que introduziam
um novo paradigma na Ciência e na Cultura, ou seja, destacar o lugar do sonho e da fantasia
entre os mais nobres anseios humanos.
Assim como os irmãos Lumière, que idealizavam o uso científico do cinematógrafo, a
intenção de Freud era desenvolver um instrumento científico para investigação dos sonhos,
para desvendar seus sentidos e para compreender o funcionamento mental normal e
patológico. “A Interpretação dos Sonhos” sempre foi considerada por ele como sua obra mais
importante, tendo mesmo chegado a afirmar que um insight como este sucede a alguém
56
apenas uma vez na vida. Contam seus biógrafos que Freud guardou o livro já pronto por um
ano, para que fosse publicado apenas na virada do século, em 1900, tamanha era sua
expectativa quanto ao seu potencial transformador da Ciência e da Cultura, opinião que
manteve apesar da desilusão inicial que sofreu com a venda de apenas 351 exemplares nos
primeiros 6 anos após sua publicação.
Ainda que fortemente influenciado pelo positvismo, hegemônico da época, Freud
criou uma revolução ao introduzir no corpo teórico da Psicanálise, elementos praticamente
proscritos da chamada ciência oficial, entre eles, o sentido dos sonhos, a sexualidade, o
Inconsciente e a perversão como constitutiva do indivíduo, mesmo daqueles com os mais
altos princípios e valores morais. De algum modo, Méliès, ao trangredir a imagem e a
realidade com o recurso dos efeitos especiais que criou, também obrigou, lançando mão da
Ciência e de sua coirmã a Tecnologia, um redimensionamento do conceito de Verdade que se
apoiava nos sentidos e na razão. Isso sem falar do efeito transgressor do elemento erótico
claramente presente nas imagens criadas por ele, como no filme L'Eclipse du Soleil en Pleine
Lune, de 1907, no qual o astrônomo (representado pelo próprio Méliès) observa com um
telescópio um eclipse solar. A lua ao passar pelo sol delicia-se prazerosamente desse contato,
expressando em sua face o gozo sexual, momento em que o astrônomo, excitado com o que
vê debruça-se mais e mais da janela e acaba caindo para fora do prédio, tamanha a turbulência
emocional que as imagens vistas provocam nele. Tudo se passa numa aparente inocência, mas
tendo como pano de fundo o coito e a escopofilia, elementos constitutivos da cena primária
que introduz a criança no complicado mundo da sexualidade adulta, campo tão extensamente
explorado por Freud a partir dos ―Três Ensaios da Teoria da Sexualidade‖ (1905).
L'Eclipse du Soleil en Pleine Lune (1907)
57
A perversão da realidade a partir de imagens gera um estranhamento e mesmo um
desconforto no espectador, semelhante ao incômodo provocado por Freud ao afirmar que
somos todos crianças perversas polimorfas no Inconsciente, civilizados apenas à custa da
neurose (FREUD, S., 1905). Contudo, é justamente por introduzir o estranhamento que, tanto
o Cinema como a Psicanálise, causam o fascínio que é responsável pelas suas existências
vigorosas até os dias de hoje.
Historicamente, o filme de Méliès que primeiro realiza a fusão da Ciência com o
irracional, do mesmo modo que a Psicanálise criada por Freud, é Cendrillon, de 1899, a
primeira produção em forma de narrativa fantástica que mescla elementos de irrealidade e
realidade.
Cendrillon (1899)
Nesse estilo, o fantástico e o real estão de tal maneira entrelaçados no argumento, que
se torna praticamente impossível isolar um do outro. Ray Douglas Bradbury (citado por
CERQUEIRA, D.D.P. 2005), chega mesmo a afirmar que um contador de histórias fantásticas
não pode aspirar a outra coisa que induzir no leitor a experiência da presença da irrealidade da
realidade, algo que poderíamos considerar um campo próximo ao do sonho, que é real e
fantasia ao mesmo tempo. TODOROV reforça esta ideia ao propor que o fantástico ―é a
hesitação experimentada por um ser que só conhece as leis naturais, frente a um
acontecimento aparentemente sobrenatural‖ (tradução livre do autor, p. 29). Ainda que esse
autor se refira especificamente à narrativa fantástica, sua fala abarca precisamente a
experiência emocional de estranhamento que temos frente a nossos próprios sonhos, essa
hesitação que é consequência dos lugares aos quais somos lançados ao sonhar, sobretudo no
momento em que acordamos: Como é que fui sonhar isto? Em tempo, foi esta a indagação
58
que levou Freud a lançar-se na exploração do sentido dos sonhos, fundamentando uma
metapsicologia que se tornou o pilar de sustentação de toda a teoria psicanalítica.
O estranhamento é a experiência emocional par excellence frente àquilo que é ao
mesmo tempo familiar e não familiar, e que constitui a essência do fantástico e dos sonhos.
Ao estudar este fenômeno, Freud (1919) lançou mão da concepção de Schelling acerca da
palavra alemã unheimlich, ou seja, ―tudo o que deveria ter permanecido secreto e oculto mas
veio à luz‖ (p.282). O que produz esse tipo de experiência é tudo aquilo que se refere a formas
superadas de pensamento, como o animismo, a onipotência do pensamento e, sobretudo, o
retorno do recalcado. Desse modo, partindo da angústia que necessariamente acompanha a
experiência do unheimlich, Freud propõe, entre os exemplos de coisas assustadoras, a
existência dessa categoria especial em que o elemento que amedronta remete a algo reprimido
que retorna. É a essa categoria de coisas assustadoras que denomina unheimlich, e que remete
a experiência emocional frente aos sonhos, ao sintoma psíquico e, porque não dizer, frente às
construções fantásticas de Méliès e seu cinema.
Na segunda metade do século XIX, os ―théâtre d'ombres‖ eram comuns e muito
apreciados em Paris, sendo os espetáculos realizados com a ajuda de silhuetas animadas por
fios, colocadas entre uma fonte luminosa e uma tela, que representavam reproduções
animadas de questões humanas. Estas apresentações colocavam em cena a relação do Homem
com sua imagem, com seu duplo, com sua sombra e com sua identidade, ou seja, com aquilo
que remetia à parte recusada deles mesmos ou àquela parte reprimida pela sociedade, sendo,
nesse sentido, os ilusionistas agentes de uma espécie de retorno do recalcado social por meio
do espetáculo popular (QUÉVRAIN, A-M. & CHARCONNET-MÉLIÈS, M-G. 1984). Era
nesses mesmos lugares públicos que ocorriam os espetáculos de hipnotismo, através de
técnicas que combinavam artifícios óticos, processos mecânicos, a destreza do ilusionista e a
sugestão. Para estes ilusionistas, sugestionar era desviar a atenção, ou seja, jogar com a
diferença que existe entre a atenção fixa sobre um ponto e a atenção flutuante, sendo aquilo
que opera na sombra, na parte escondida dos olhos, o que permitia a execução do truque.
Estas apresentações refletiam os desejos de um público que queria ser chocado pelo
que via, o gosto pelo irracional e pelo fantástico, em pleno auge da lógica racional. Estava
nesse ponto o caráter subversivo destas apresentações teatrais, assim como o caráter
subversivo da Psicanálise estava em revelar o duplo e a cisão de cada indivíduo, sendo o Eu
social que apresentado aos outros apenas uma parte civilizada de um todo que permanece
selvagem e perverso, arredio a qualquer tentativa de dominação. Foi o anseio popular por
59
expressar-se, ou por sentir-se representado, que permitiu o nascimento da Psicanálise e do
novo gênero teatral proposto por Méliès, que conjugava uma aparelhagem complexa com
jogos de ótica, temas fantásticos e cenários em transformação.
Méliès era fascinado pelas possibilidades e pelos truques oferecidos pelas artes
mágicas ligadas às técnicas cinematográficas inovadoras da época, tendo sido este o motivo
que o levou a comprar, em 1888, o teatro Robert-Houdin, que se tornou o ―Théâtre
d'illusions‖ mais reputado da época. Inicialmente, empolga-se em poder integrar a mágica que
constitui a reprodução de imagens reais com seus programas no teatro, mas logo vê nisso uma
possibilidade maior e monta, na casa de seus pais, seu próprio estúdio cinematográfico
(QUÉVRAIN, A-M. & CHARCONNET-MÉLIÈS, M-G. 1984). Lança-se na árdua tarefa de
criar filmes, mas não filmes comuns e sim aquilo que ele próprio considerava o gênero mais
difícil, ou seja, o gênero ―vues fantastiques‖ que, em suas palavras, tinha como objetivo
―realizar tudo, mesmo o impossível, e a dar a aparência de realidade aos sonhos mais
mirabolantes, às invenções mais improváveis da imaginação (…) tornar real o impossível‖
(Méliès, G. 1907; citado por QUÉVRAIN, A-M. & CHARCONNET-MÉLIÈS, M-G. 1984).
Tratava-se, portanto, de um projeto de colocar em imagens coisas que, até aquele momento,
nunca tinham sido vistas, sendo um modo sem precedentes de criar ilusões e libertar a
imaginação. Provavelmente a novidade não tenha sido absoluta, pois, à noite as pessoas
sonhavam com coisas semelhantes àquilo que Méliès projetava na tela, e que Freud veio da
descobrir serem montagens psíquicas dirigidas pelo desejo. Parte do impacto causado pelo
cinema de Méliès remeta, talvez, a essa familiaridade do público com seus próprios sonhos e
com seu próprio desejo, que agora podiam ser compartilhados ali na tela das salas de
exibição, ainda com o atenuante de ser algo fora deles, projetado, o que permitia o
relaxamento do recalque, a diminuição do conflito, podendo, em decorrência disso, ser
experimentados com prazer.
A produção de Méliès que talvez melhor expresse esse gênero seja ―Le Voyage dans la
Lune‖ (1902), considerado o primeiro filme de ficção científica da história, uma vez que
concretiza, na tela, o desejo do homem de chegar à lua, muitos anos antes de haver qualquer
possibilidade de uma realização dessa espécie pela tecnologia. Curiosamente, é nesse ponto
que se encontra a mais profunda oposição entre Freud e Méliès, pois enquanto este
reivindicava o direito à ilusão e apoiava toda sua arte na criação dela, Freud considerava as
ilusões restos de um funcionamento psíquico primitivo, que deveriam ser abandonados após
sua elaboração psíquica através do processo de análise de sua lógica infantil.
60
Para Freud (1927) a ilusão seria uma forma primitiva de realização ―dos mais antigos,
fortes e prementes desejos da humanidade‖ (p. 43), residindo sua força precisamente na
intensidade desses desejos. Nesse sentido, a ilusão não seria um erro comum de avaliação da
realidade, mas a tentativa de suprir uma necessidade real e o desamparo por meio de um
recurso psíquico primitivo, que, para Freud, não teria qualquer função evolutiva para o
sujeito, mas perpetuaria um modo de atividade mental infantil (FREUD, S. 1927). No final
das contas, Freud propõe como atitude evoluída para a espécie humana funcionar sob a
―primazia do intelecto‖ (p. 68), na qual a razão sobrepor-se-ia à ilusão e aos enganos advindos
dela. Esta oposição de Freud à ilusão se concretiza quando questiona: ―de que vale a miragem
de amplos campos na lua, cujas colheitas ainda ninguém viu?‖ (p. 64). Méliès já havia visto e
conquistado, há alguns anos, esses campos e deixado lá sua marca, que se eternizou na
imagem da lua perfurada pela cápsula interplanetária sonhada por ele.
Le Voyage dans la Lune (1902)
Entretanto, apesar dessa oposição, foi justamente o espetáculo da magia em sua forma
teatral do final do século XIX que aproximou os caminhos criativos de Freud e Méliès, em
suas buscas pelo novo. Méliès vai ao encontro do prestidigitador e ilusionista inglês David
Devant e Freud vai a Paris ao encontro do neurólogo da Salpêtrière, Jean-Martin Charcot. As
sessões de hipnotismo deste último, do mesmo modo que os espetáculos de ilusionismo da
época, eram particularmente impressionantes pelo efeito que provocavam naqueles que as
assistiam (QUÉVRAIN, A-M. & CHARCONNET-MÉLIÈS, M-G. 1984), sendo o poder
quase mágico de suas palavras o truque que causava o intrigante efeito terapêutico que tinham
suas exibições.
Charcot fazia desaparecer os sintomas de suas pacientes apenas com o poder de sua
61
palavra quase mágica, lançando mão da sugestão e da teatralidade. No meio médico da época
a sugestão estava ligada às questões da dupla personalidade, o Homem e seu duplo, sobretudo
nos casos de histeria. Charcot chegou mesmo a criar um laboratório de fotografia médica na
Salpêtrière, com a finalidade didática de tornar visível o desenvolvimento de crises histéricas
(GRAMARY, A. 2008). Vemos nessa situação por que caminhos - que se queriam científicos e
racionais - a parte doente da personalidade, ou seja, a sombra, o duplo obscuro e recalcado, se
encontrava ligada aos aparelhos de espetáculo e à encenação, mesmo no meio médico. Esse
era o clima cultural europeu da época.
Une leçon clinique à la Salpêtrière, Pierre-André Brouillet Charroux,(1887)
Méliès retorna de Londres e passa a atuar como ilusionista, profissão que era mal vista
pelas pessoas a sua volta e que marginalizava aqueles que a praticam (QUÉVRAIN, A-M. &
CHARCONNET-MÉLIÈS, M-G. 1984), assim como Freud, ao retornar de Paris faz um breve
percurso clínico pela hipnose e pela sugestão, práticas mal vistas no círculo científico. Freud
pouco a pouco se afasta das técnicas correntes de hipnose, e cria novas técnicas para
desvendar o mistério das neuroses. A técnica da pressão sobre a fronte do paciente (FREUD,
S. & BREUER, J, 1895), desenvolvida por ele como uma opção ao método hipnótico, guarda
muita semelhança com o ―truque‖ dos ilusionistas, pois ao desviar a atenção do paciente para
um ponto fixo, que é a pressão da mão, libera as associações marginais que estavam
encobertas por reflexões conscientes e por mecanismos de defesa. A pressão da mão sobre a
testa era, portanto, um truque com forte caráter sugestivo. Com esse recurso técnico vemos
62
Freud se afastando do uso da hipnose e utilizando em seu lugar a sugestão, que se aproxima
muito do fundamento das técnicas de magia: um contato corporal para impor sua própria
vontade à do paciente.
Posteriormente Méliès dirige seus esforços para a execução de filmes, e Freud, ao se
dar conta de sua incapacidade para exercer a mágica necessária para o funcionamento das
técnicas sugestivas, abandona-as e cria aquilo que foi inicialmente chamado por Joseph
Breuer de talking cure. Essa técnica consistia em estimular o paciente a falar sobre o que
achasse que estaria relacionado ao sintoma apresentado, visando reproduzir a emoção que
esteve presente em determinada situação traumática de sua vida e que teria um efeito
etiológico na formação do sintoma neurótico. A ab-reação, ou a lembrança do fato traumático
com a revivescência do afeto correlato, faria com o que o sintoma desaparecesse, sendo uma
espécie de purgação (FREUD, S. & BREUER, J, 1895). A recomendação principal que Freud
fazia a seus pacientes era, novamente, semelhante ao truque utilizado pelos ilusionistas, ou
seja, que se deixassem levar, distraidamente para onde suas associações os levassem, para
aquilo que era marginal, para aquilo que era sombra.
É nesse momento que Freud começa a se interessar pelos sonhos de suas pacientes e
pelos seus próprios, empreendendo sua análise, o que dará origem à “Interpretação dos
Sonhos”. Desenvolve uma técnica de análise de sonhos na qual o sonhador é um ator-autor e
seu próprio espectador, que se expressa para o analista não em atos, mas em palavras. Freud
concebe que o sonho é formado, durante o sono, quando a pulsão transforma pequenos
cenários inspirados pelo desejo em fantasias, sendo a atividade mental transformada,
regressivamente, em pensamentos por imagens, que são essencialmente diferentes da
atividade mental de vigília que é formada por pensamentos em palavras. Este modo regressivo
de funcionamento é característico do Inconsciente, e efetua-se por deslocamento, condensação
e figurabilidade (FREUD, S. 1900).
A fantasia e a imaginação são, portanto, peças chaves para a construção do cinema de
Méliès e para a representação psíquica do sonho, assim como para a montagem da
metapsicologia sobre a qual Freud fundamentou sua ciência. Alguns anos mais tarde, o poeta
e crítico do surrealismo André Breton proporia, influenciado pelas concepções de Freud, que
a imaginação é uma via de percepção do mundo, mas que se encontra frequentemente
recalcada. Considera que reduzir a imaginação à condição de escrava da realidade seria
atraiçoar o supremo imperativo de justiça que se encontra no íntimo de cada homem, pois
somente ela seria capaz de mostrar aquilo que pode ser. Isto já seria razão suficiente para que
63
se trabalhasse para retirar a interdição a qual estava submetida. Breton chega mesmo a fazer
uma reverência a Freud na medida em que reconhece que foram suas descobertas que
permitiriam ao investigador da alma humana ir mais longe, ―uma vez que está autorizado a
não levar em conta tão-somente as realidades sumárias‖ (BRETON, A. 2001: 23).
Podemos postular que foi a partir de uma demanda cultural de espaço para o sonho,
para a fantasia, para a imaginação e para o que estava além da razão, que surgiu a Psicanálise
e que Méliès criou, de fato, uma máquina para representar ficções. Contrariamente àqueles
que desejavam utilizar o cinema cientificamente ou como documentário, Méliès queria que o
cinema tivesse um valor cultural com potencial para objetivar e multiplicar o sonho, propondo
realidades que obedeciam a outras regras que aquelas do Establishment. Pela imaginação e
pela tecnologia disponível, Méliès transformava o que pode ser em imagens. Para ele, a tela
não era somente uma superfície de projeção que reproduz o mundo cotidiano, mas também
um lugar que preserva as ilusões, as fábulas, os mitos e as fantasias ligadas às lembranças da
infância, ou seja, era sítio para tudo aquilo que constitui o sonho. Dispor de uma máquina que
podia fabricar o sonho era para Méliès o que constituía a verdadeira libertação da imaginação,
justamente por permitir representar o impensável.
Assim como o espetáculo cinematográfico criado por Méliès veio para subverter o
espírito dos homens, neste mesmo momento histórico, Freud procurava decifrar o ―espetáculo
cinematográfico‖ (num sentido metafórico) representado pelo sintoma histérico e pelos
sonhos noturnos, subvertendo as teorias aceitas na época de que a histeria seria apenas
simulação e os sonhos descargas neurológicas anárquicas e sem sentido. Ao aproximar a
estrutura do sintoma neurótico da estrutura dos sonhos, Freud percebeu que eram o mesmo
fenômeno apresentado de formas diversas: uma representação de fantasias, desejos infantis e
mitos pessoais que se traduziam em imagens, sensações e posturas corporais. Num âmbito
privado, suas pacientes apresentavam a ele seu “cinema pessoal”, com todos os recursos dos
quais dispunham, e através do fenômeno que chamou de transferência (FREUD, S. 1912),
reviviam seus conflitos na sessão de análise relacionando-os com a figura do analista, o que
permitia sua elaboração psíquica e a cura da neurose. Desde essa descoberta o manejo da
transferência tornou-se a principal ferramenta técnica para a cura psicanalítica.
No campo cultural, o ano de 1899 apresenta a sobreposição do surgimento de duas
obras emblemáticas: Méliès produz Cendrillon, sua primeira narrativa fantástica, e Freud
escreve Interpretação dos Sonhos, onde define o papel dos sonhos na vida psíquica e
desenvolve um método para compreender seu significado. Não é por acaso o nascimento
64
simultâneo do Cinema e da Psicanálise, a coincidência histórica destas duas técnicas que
permitiam reabilitar a potência da imaginação e dos sonhos no modo de viver e de criar dos
seres humanos. Contudo, contrariamente a Méliès que construía sonhos na tela de projeção
pública do cinema, Freud desconstruía os sonhos e sintomas de seus pacientes e os seus
próprios, insistindo na importância do sentido profundo que tinham quando desconstruídos e
analisados em seus detalhes.
Podemos dizer que Cinema e Psicanálise tratam dos sonhos e das fantasias dos
homens, pois ambos ocupam-se das mais variadas e desconhecidas emoções humanas. O
Cinema cria o sonho, dá forma real a ele e o projeta na tela vazia, ato semelhante ao do
sonhador que faz o sonho, cria as cenas, une-as em sequências (por vezes incompreensíveis),
dá-lhes forma real no momento em que é vivido e projetado na tela interna da mente daquele
que dorme. Quando assistimos a um filme ou quando dormimos, estamos muito próximos do
sonho: nosso corpo encontra-se entregue à poltrona ou ao leito, há o silêncio e a escuridão, ou
seja, um estado de mente propício ao mergulho necessário, seja pela tela de luz seja pela tela
interna da mente, no universo do fantástico com suas leis próprias. Não é por acaso que o
quarto de dormir dos homens, o cenário dos ilusionistas, as salas de projeção dos cinemas e os
consultórios dos psicanalistas guardam semelhanças quanto aos artifícios utilizados para o
favorecimento do fantasiar, sendo a penumbra, o elemento principal, o ―truque‖ que permite
ao sujeito colocar-se num estado de espírito tal que se torne vulnerável à ilusão e ao sonho, ou
seja, apto a deixar-se distrair e deixar-se enganar.
Tanto Freud como Méliès criaram para suas invenções dispositivos próprios que
modificam o enquadre espaço-temporal dos sujeitos envolvidos, uma cena na qual a
prioridade é dada à imagem e ao imaginário, onde são buscados os sonhos, as fantasias e as
coisas impossíveis. Assim, cineasta e psicanalista têm à sua frente o desafio de dar corpo a
seus objetos, o que exige um enquadre rigoroso de muita auto-disciplina e criatividade.
Chegamos aqui a um ponto de convergência entre Freud e Méliès. A maneira pela qual
Freud concebe a formação dos sonhos e o funcionamento do Inconsciente remete diretamente
ao trabalho do diretor de um filme, sobretudo dos filmes fantásticos, nos quais os efeitos das
imagens sofrem atuações semelhantes àquelas da formação do sonho: figuras que se criam
livremente e que se sobrepõem, objetos e personagens que simbolizam outras coisas, livre
fluir de afetos e emoções, e, sobretudo, a criação de um tempo próprio que não se submete ao
convencionado, um tempo que é presente sempre, mas que flui livremente para frente e para
trás. Podemos dizer que Méliès, com seu cinema inovador, foi um sonhador para o exterior,
65
um construtor de sonhos públicos, assim como fez Freud ao publicar seus sonhos. Méliès o
fez em imagens, Freud em palavra escrita. Não foi por acaso que tanto Freud como Méliès
sofreram uma rejeição inicial, possivelmente defensiva, contra o novo que rompe com
paradigmas anteriores e expõe a intimidade do desejo, rejeição esta
seguida por uma
aceitação resignada devida, certamente, ao potencial heurístico que suas inovações
carregavam em si. Contudo, apesar do grande impacto que tiveram suas invenções, Freud
sofreu – e sofre até os dias de hoje - grande rejeição do meio médico acadêmico, sobretudo,
ao propor que a causa do Inconsciente era necessariamente de natureza sexual, assim como a
obra de Méliès, em sua época, não foi plenamente compreendida, tendo que ser resgatada
muitos anos depois.
Méliès propunha que para se trabalhar com cinema o praticante deveria ser uma
pessoa rigorosa, disciplinada e muito precisa, o que o obrigou muitas vezes a fazer tudo
sozinho, da montagem do cenário ao ator principal. Tudo deveria estar previsto, nada
improvisado (QUÉVRAIN, A-M. & CHARCONNET-MÉLIÈS, M-G. 1984) . Nesse sentido
podemos contrapor o dirigismo de Méliès à neutralidade de Freud frente a seus pacientes, e
supor que estas posturas estejam fundamentadas na natureza inversa do trabalho executado
por cada um deles: Méliès construía sonho, Freud os desfazia, os analisava até os menores
componentes que os constituíam. Méliès reivindicava o direito à ilusão, e Freud a necessidade
de abandoná-la e fazer seu luto. Para Méliès, até por que produzia o cinema mudo, ―a palavra
não é nada, o gesto é tudo‖ (Méliès, G. 1907; citado por QUÉVRAIN, A-M. &
CHARCONNET-MÉLIÈS, M-G. 1984), ao passo que para Freud a palavra era tudo na direção
da cura, do desvelamento do sentido dos sonhos e dos sintomas psíquicos.
De todo modo, são dois maestros que sob suas batutas executavam sua arte inovadora
com genialidade e precisão e teriam sucumbido às pressões de seu entorno se não fossem
personalidades que tinham o desafio e a persistência como características fundamentais, o que
é condição necessária para tornar-se um inovador que rompe paradigmas. Freud criou a
Psicanálise, Méliès o cinema fantástico. Não resta dúvida que o interesse da Cultura naquele
momento era dar contornos lógicos, racionais, para as manifestações da Natureza e do
Homem, mas tanto Freud como Méliès tiveram a sensibilidade de perceber o anseio das
pessoas por não se deixar envolver completamente na dureza da ciência positivista, ávidas que
eram pelo sonho. Freud desvendou o mistério dos sonhos, Méliès criou o sonho
compartilhado, ambos partindo de um anseio científico positivista que foi sendo abandonado,
e que possibilitou a emergência do novo, da criatividade, do salto de qualidade na relação do
66
Homem com o mundo e consigo mesmo.
Referências Bibliográficas
BRETON, André. Primeiro Manifesto Surrealista, Manifestos do Surrealismo. Rio de Janeiro: Nau
Editora, 2001. (Original publicado em 1924).
CERQUEIRA, Dorine Daisy Pedreira de. Jorge Luís Borges e a narrativa fantástica (2005).
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2012.
FREUD, Sigmund. Estudos sobre a Histeria. In: Edição Standard Brasileira das Obras Psicológicas
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_______________. A Interpretação dos Sonhos. In: Edição Standard Brasileira das Obras
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_______________. Três ensaios sobre a teoria da sexualidade. In: Edição Standard Brasileira das
Obras Psicológicas Completas de Sigmund Freud, volume VII, Rio de Janeiro: Imago, 1972. p. 123250. (Original publicado em 1905).
_______________. A dinâmica da transferência. In: Edição Standard Brasileira das Obras
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(Original publicado em 1912).
_______________. O Estranho. In: Edição Standard Brasileira das Obras Psicológicas Completas de
Sigmund Freud, volume XVII, p. 273- 314. Rio de Janeiro: Imago, 1976. (Original publicado em
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GRAMARY, Adrian. Charcot e a Iconografia Fotográfica de La Salpêtrière (2008). Disponível em:
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QUEVRAIN, Anne-Marie & CHARCONNET-MELIES, Marie-George (org). Méliès et Freud: un
avenir pour les Marchands D'Illusions? In: Malthête-Méliès, Madeleine. Méliès et la naissance du
spectacle cinématographique (1981). Paris: Editions Klincksieck, 1984.
TODOROV, Tzvetan. Introduction à la littérature fantastique. Paris: Seuil, 1970.
67
Os homens que não amavam as mulheres, uma reflexão sobre o
feminino
Daniela Quevedo25
Resumo
Este texto foi escrito a partir das considerações perpetradas para o filme “Os Homens que Não
Amavam as Mulheres‖ exibido no evento ―Diálogos Cinemáticos‖. É uma reflexão sobre as
possibilidades da mulher em se inventar no feminino na atualidade. Em conceber uma saída, a partir
da psicanálise, para retirar-se da condição de vítima numa sociedade prioritariamente desigual e
machista.
Palavras-chave: mulher, feminino, psicanálise, cinema, invenção
Men Who Hate Women, It reflects about the feminine
Abstract
This text was written since the author‘s considerations about the film: ―Millennium Part 1: The Men
Who Hate Women‖ wich was exhibited and debated in the event ―Diálogos cinemáticos‖. It reflects
about the feminine and its invention by women of present time. Also about the conception and the
construction of a psychoanalytical and feminine ―way out‖ from the victim condition in our unequal
and chauvinist society.
Keywords: women, feminine, psychoanalysis, cinema, invention
Introdução
O texto a seguir foi produzido para a 14ª sessão do projeto Diálogo Cinemático,
organizado pelo psicanalista Márcio Mariguela e apresentado no segundo semestre de 2011,
em Piracicaba. Fui convidada a participar como mediadora. Num primeiro momento o público
teve a oportunidade de assistir ao longa-metragem Os Homens que Não Amavam as Mulheres,
do diretor Niels Arden Oplev. Em seguida, dialogar por inúmeros caminhos (sistema textual)
e perspectivas cinematográficas, como por exemplo, sobre o argumento, o enredo, as
imagens, a fotografia, a direção, a interpretação, etc. A proposta era que, com o sentimento
ainda bastante presente, a plateia refletisse sobre os pontos mais tocantes da película. Eu optei
25
Daniela Quevedo Jornalista e Radialista formada pela PUC Campinas e especialista em Comunicação em
Saúde; Psicanalista participante da Escola de Psicanálise de Campinas; Cronista do Jornal de Integração
Regional ―A Folha‖ de São Sebastião da Grama. e-mail: [email protected]
68
por falar sobre três personagens que me chamaram mais à reflexão: Martin Vanger, Harriet
Vanger e Lisbeth Salander.
O filme
Os Homens que Não Amavam as Mulheres é o primeiro longa-metragem da trilogia
Millenium e o único dos três dirigido pelo dinamarquês Niels Arden Oplev. Adaptado do
best-seller do escritor sueco Stieg Larsson, esse suspense trata das relações de gênero,
principalmente a violência contra mulher, o racismo e o nazismo na Suécia, pais que possui
uma economia altamente desenvolvida e considerado um dos maiores e mais importantes
países da União Europeia.
A heroína desse thriller é Lisbeth Salander, uma hacker tatuada e cheia de piercings,
que possui passado que vai sendo explicado mais ou menos em flashbacks durante o filme.
Ela trabalha como freelance numa empresa de investigação que a contrata, inicialmente, para
investigar a vida do jornalista Mikael Blomkvist, editor de uma revista econômica, que acaba
de ser processado por calúnia. Lisbeth se une a Blomkvist depois que este é contratado por
um milionário, Henrik Vanger, para investigar o desaparecimento da sobrinha, suspeita de ter
sido assassinada há 40 anos. Como o corpo nunca foi encontrado o patriarca supõe que um
dos membros da própria família, constituída de pessoas gananciosas por dinheiro e poder e
com passado nazista, tenham cometido o crime.
O autor da trilogia Millenium, Stieg Larson (1954-2004) foi fundador e editor-chefe
da revista sueca Expo, que tinha por objetivo denunciar grupos neofascistas e racistas nos
países nórdicos (Suécia, Finlândia, Dinamarca, Islândia e Noruega). Especialista na atuação
das organizações de extrema direita, Larson é coautor de Extremhögern, livro que trata do
assunto. Morreu vítima de um ataque cardíaco, pouco depois de ter entregue os originais dos
romances que compõem a trilogia Millennium: “Os Homens que Não Amavam as Mulheres‖
(2005), ―A Menina que Brincava com Fogo‖ (2006) e ―A Rainha do Castelo de Ar‖ (2007), e
assinar um contrato para transformar o primeiro livro em filme.
A escolha
Fui escolhida. Assisti ao filme pela primeira vez sem saber do que se tratava. Tive um
choque. Deparei-me com um realismo que entendo ser bastante incomum no cinema atual. É
um filme que trata da violência contra mulher sem delicadezas. Não consegui parar de pensar
em algumas cenas durante dias. A imagem de jovens bêbados atacando a protagonista no
69
metrô, a violência psicológica, o estupro sofrido por Lisbeth e praticado pelo seu tutor, a
violência doméstica sofrida por Harriet e por fim os assassinatos das mulheres. Isso num país
como a Suécia, símbolo de civilidade.
Mas as questões de gênero ultrapassam fronteiras. Foi o que me revelou a
coordenadora do ILUMINAR26 Campinas, Verônica G. Alencar, em uma entrevista cedida
semanas antes do evento em Piracicaba. Segundo ela, os casos de violência contra a mulher
são semelhantes em diversos países, mesmo que tenham realidades politico e econômica
diferentes, como é o caso do Brasil, França ou em povos indígenas. Embora o número de
denuncias tenha aumentado com a criação da Lei Maria da Penha27, o quadro brasileiro ainda
é bastante preocupante. A implantação de políticas públicas, intensificadas nos centros de
saúde e o acesso à informação poderiam ser caminhos para mudar essa realidade, acredita
Verônica. Certamente, penso eu. Mas levando em conta os dados apresentados, talvez apenas
um caminho.
No livro, o autor expõe informações que surpreendem. Aponta que na Suécia:
(...) 18% das mulheres foram ameaçadas por um homem pelo menos uma vez na
vida; 46% das mulheres sofreram violência de um homem; 13% das mulheres
foram vítimas de violências sexuais cometidas fora de uma relação sexual; 97% das
mulheres que sofreram violências sexuais após uma agressão não apresentaram
queixa a polícia. (LARSSON, 2005, pg. 08).
No Brasil, de acordo com o Anuário das Mulheres Brasileiras 2011, quatro em cada
dez mulheres já foram vítimas de violência doméstica. Este documento reúne dados da
Pesquisa Nacional por Amostra de Domicílio que demonstra que 43,1% das mulheres já
foram vítimas de violência (MERLINO, 2012).
No entanto, ao trazer para uma cena ―familiar‖ e atual a questão da segregação e da
violência, que pode chegar ao assassinato, o autor dos livros, bem como o diretor do filme,
propõem indagações que vão além das questões como a de implantação de políticas públicas,
acesso a informação, ou o conservadorismo e atraso da sociedade. Há nas relações de gênero,
dois aspectos primordiais e bastante visíveis no filme.
26
Programa do município de Campinas, que atua no cuidado as vítimas de violência sexual urbana e domestica.
Opera com uma rede intersetorial e interinstitucional de serviços nas áreas de saúde, educação, assistência social,
jurídica e de cidadania.
27
Lei de número 11 340, criada em 7 de agosto de 2006, que alterou o Código Penal Brasileiro e possibilitou que
agressores de mulheres no âmbito domestico ou familiar sejam presos em flagrante ou tenham prisão preventiva
decretada. Também decreta: 1. que esses agressores não peguem mais penas alternativas; 2. Aumenta o tempo
máximo de detenção para três anos; 3. Medidas como saída do agressor do domicílio e até proibição de
aproximar-se da mulher agredida.
70
Em primeiro lugar a dominação exercida sobre a mulher. Ela diz respeito à ameaça
hierárquica que esta pode impelir sobre relações capitalistas, prioritariamente masculinas.
Harriet, a neta do magnata Vanger é supostamente assassinada por ser ela a herdeira que
assumiria o controle do grupo empresarial que, no filme, tinha grande poder econômico e
político na Suécia. Um exemplo fictício: uma mulher no comando de um império. Qual o
paradoxo que essa hipótese comporta? Será que, considerando a trama do filme essa situação
seria, em si, ameaçadora? Por quê? Na realidade atual a mulher em quase todo mundo ainda
exerce na sociedade o mínimo de participação política e econômica que seria necessária para
que a desigualdade de gênero diminuísse (MONCAU, 2012).
Para a Psicanálise: o que quer o outro de mim?
Outra perspectiva aponta para o campo da psicanálise e abre caminho para
considerações que dizem respeito à maneira como a sociedade tem lidado com as fronteiras
inconscientes que a diferença entre homem/mulher imprime. A mulher é uma das formas do
estrangeiro (KOLTAI, C., 2000). Como então ela, tida como ―além-fronteira‖, se apresentaria
ao sujeito homem e que reação provocaria?
Para o psicanalista Philippe Julien há um ―outro‖ que possui elementos que se
aproximam da compreensão do sujeito e o torna semelhante (espelho). Ou seja, vejo o outro à
minha imagem e meu Eu se vê no outro (JULLIEN, 1996). É possível ama-lo como
semelhante, como a si próprio. Essa identificação pode estender-se à família, à sociedade e,
por que não dizer, à humanidade, aos bens físicos, psicológicos e sociais (JULLIEN, 2008).
Mas, há um próximo, um Outro (com O maiúsculo). Um diferente. Que está além do
semelhante, daquele conhecido pelo sujeito. Que se mostra muito diferente da imagem que
esse sujeito tem de si próprio. Esse ser parece então terrivelmente estranho. In-compreensível.
Estrangeiro. O que poderia essa figura esquisita querer de mim? Se ele não se parece comigo,
certamente não quer o mesmo que eu. Quer outra coisa. Se eu quero o bem, possivelmente Ele
quer o mal. Assim esse Outro, próximo, mas não semelhante, exibe seu limite, sua fronteira,
que aparece para o sujeito sob o signo de capricho, ou, melhor dizendo, como arbitrário, sem
crença nem moral, que não pode dar garantia alguma sobre o bem-querer que pode conceder
ao sujeito (JULLIEN, 1996).
71
Penso que para a psicanálise é nesse momento que o sujeito se depara com o gozo do
Outro, que segundo Freud, não é a ideia de ―evitação do prazer‖, ou do desprazer, mas aquilo
que é ―mais-além do princípio do prazer, ou seja, o gozo‖ (JULLIEN, 1996). Essa
consideração infere uma compreensão sobre a consequência que o gozo desse ―próximo‖
(desse Outro) tem no próprio sujeito. Não há referencial, não há garantia quanto ao que o ele
quer, quanto a seu bem-querer ou seu mal-querer. Seu des-amor. Seu ódio. E quais seriam
exemplos encarnados desse Outro? Muitos. Mas principalmente homens e mulheres de etnias
e religiões minoritárias. Como negros, latinos, árabes, judeus, islâmico, etc.
O imperfeito
Por outro lado, penso que essa diferença assinala um algo mais, que vai além do ódio.
Vejamos! Se esse próximo, de que falamos – diferente, estrangeiro, mulher –, não se parece
comigo, falta a ele aquilo que eu tenho. Ele é carente, falho daquilo que o faz semelhante a
mim. É portanto, imperfeito. É claro que Ele pode muito bem aprender a ser como Eu. Mas se
insistir em ser diferente? Em não a-prender? Então é por que não tem jeito. É deficiente.
Defeituoso. Portanto pode ter uma vida considerada ―uma vida sem valor‖. Para o filósofo
Giorgio Agamben (2010) quem decide sobre o valor e ou sobre o desvalor da vida é o
soberano. Nessa perspectiva o homem, soberano, politica e economicamente, pode muito bem
escolher que vida é digna de ser vivida.
1) Martin Vanger
Nazistas declarados, os personagens de Martin Vanger e seu pai Gottifrid traçam, no
filme, uma linha macabra de assassinatos de mulheres pelo interior da Suécia. Ironicamente
Gottifrid utiliza-se de passagens do Levítico, livro da Lei dos sacerdotes da Tribo de Levi
(tribo de Israel que foi escolhida para exercer a função sacerdotal no meio do seu povo) para
escolher a maneira de ―purificar‖ e por que não dizer, de sacralizar suas vitimas.
Agamben diz que toda sociedade fixa um limite onde se escolhe quais serão os eleitos,
os ―homens sacros‖:
―...É como se toda valoração da vida e toda politização da vida (como está
implícita, no fundo, na soberania do indivíduo sobre sua própria existência)
implicasse necessariamente uma nova decisão sobre o limiar além do qual a vida
cessa de ser relevante, é então somente a ―vida sacra‖ e, como tal pode ser
impunimente eliminada...‖ (AGAMBEN, 2010, pg. 135).
72
O curso que encadeia o nazismo aos assassinatos de mulheres parece ser evidente.
Embora não caiba nesse texto aprofundarmo-nos de todas questões do estado nacionalsocialista alemão, podemos dizer que o nazismo atribuiu ao Estado, e consequentemente ao
sujeito, a decisão soberana pela escolha de qual vida que não é digna de ser vivida.
Aos olhos de Martin, o pai é fraco, pois se deixa levar por artifícios, como os
religiosos, na execução das vítimas. ―... isso era um projeto de papai. Misturou raça e religião
com seu hobby, mas foi um erro. Não se deve deixar corpos por aí. Pego os meus, ponho no
barco e jogo no mar...‖. Por sua vez, Martin se coloca como o verdadeiro soberano ―...eu faço
o que todos os homens desejam, pego o que quero! Mulheres desse tipo vivem desaparecendo,
ninguém sente falta. Prostitutas, imigrantes!...‖, diz . Num dos diálogos finais acrescenta que
as mulheres sabem seus destinos e mesmo assim se entregam a ele. Rudolf Höss, comandante
do campo de Auschwitz, justificou o extermínio declarando que ―...apenas obedecera ao
desejo das vítimas‖ (ROUDINESCO, 2010, pg. 128).
Em outra fala, Martin enfatiza: ―...As mulheres sempre acham que vão escapar. Basta
um único gesto de humanidade e elas já se iludem. Gosto de ver a decepção no rosto de cada
uma no minuto que entendem que vão morrer...‖. Penso que ele diz do gozo que sente em ser
soberano. Não há nada além dele que possa salva-las.
2) Harriet
Harriet Vanger é apontada no filme como a figura feminina escolhida. Inicialmente
para a sucessão da liderança das empresas Vanger. Depois aos constantes estupros cometidos
pelo pai e irmão. Personagem central da trama, Harriet investiga e descobre os assassinatos de
mulheres cometidos pelos dois. Após sofrer um novo estupro, foge do pai e o mata
―acidentalmente‖ afogado. Passa a ser então violentada apenas por Martin, que segundo
revela em uma das cenas do filme, é ainda mais violento que o pai. Harriet sofre calada. Odeia
calada. Não tem coragem de revelar a verdade a ninguém.
Para o psicanalista Philippe Jullien
... é nesse momento de desarvoramento e desespero que a tentação se apresenta
tomar a si o encargo de restaurar e salvar a figura da autoridade (...) para que assim
determinado grupo, sociedade ou família recupere a força e a coesão. É esse o
trágico moderno‖ (JULLIEN, 1996, pg. 98).
73
Harriet, à moda antiga, escolhe se submeter ao destino. Sua saída? Fugir fingindo-se
de morta.
No entanto, sua atitude resolve apenas o seu problema. Foge e deixa para traz um
resto, um rastro: o irmão Martin. Este, além de continuar a obra do pai morto, violentando e
matando outras mulheres, converte-se desveladamente no escolhido. Ocupa o cargo de líder
das empresas Vanger e assume-se como soberano. O pai, soberano nazista, passa do judeu à
mulher. O filho, da mulher judia (referência bíblica) à mulher comum.
Interessante notar que Harriet deixa mais um resto que mantem sua história atualizada.
Sua posição de mártir, heroína em evidência. Todo ano seu velho tio recebe flores no dia do
aniversário dela. Quem manda as flores? O assassino de Harriet? Aliás, é importante notar
que, ao buscarem o assassino, os investigadores, Blomkvist e Salander, encontram-se no final
com própria ―morta‖.
3)Lisbeth: a heroína moderna
Lisbeth Salander definitivamente não é um personagem qualquer. Não é nenhum
semelhante. Apresentada como uma ciber punk encarna o que seria um estereótipo da mulher
moderna, ou da guerrilheira contemporânea. A causa dessa batalha parece ser sua própria
sobrevivência. Mas é claro, penso que há um mais além.
Todavia pareça que Lisbeth tenha lutado para se vingar daqueles que lhe fizeram mal,
assistindo ao filme já pela segunda vez tive a impressão de que seu revide tenha sido mais que
uma manifestação de ódio. Embora o ódio seja evidente em todas as palavras da protagonista.
Em seu combate cotidiano Lisbeth lança um sinal de basta. Um gesto que assemelha-se com
um Não para a sua condição de vítima. Um não para a sua condição de mulher oprimida. De
estrangeira em sua própria casa.
Na cena em que participa da primeira entrevista com seu novo tutor ele deixa claro ―...
é só você se comportar direitinho que não terá problemas‖. Lê-se: é só você aprender a se
comportar como meu semelhante, pois dessa maneira, eu sei o que é melhor para você. E em
nome desse saber, faça você a minha vontade. Mais uma vez penso no que diz Philippe Julien
sobre o que chama de ―a lógica-do-bem‖: ―Primeiramente o bem que quero para o outro é
decerto aquele que eu queria para mim na mesma situação. Segundo, quero que o bem do
74
outro se realize através de mim. Assim é a vontade-do-bem em sua lógica própria...‖
(JULLIEN, 1996, pg. 47).
Mas a heroína da história se recusa a servir a esse jogo. Num primeiro momento ele, o
tutor, a obriga a fazer sexo oral. Depois, ela finge precisar de dinheiro e o procura na casa dele
com o intuito de filmar o abuso, que certamente aconteceria. Mas o inesperado. Ele a violenta.
A estupra. ―Ora, mas que o Outro não é o outro: ele recusa esse bem que eu quero para ele, ou
para ela.(...) Seu murro [sua negação] (....) tenta despertar-me de minha boa vontade ...‖
(JULLIEN, 1996, pg. 47).
Ao chegar em casa, Lisbeth assiste a gravação. Ao invés da renuncia, diz mais um
Não. Talvez um Não diferente. Em certo sentido decide dar um basta a realização do gozo do
Outro. Este Outro que goza através dela, por meio de sua submissão. Sua saída? Gozar ela
mesma. Volta à casa do tutor. Faz ele assistir à gravação. Violenta-o e tatua em sua barriga a
frase ―Sou um porco sádico e estuprador‖. Ao ir embora é imperativa ―...Vou te dizer o que
vamos fazer (...) Eu é que vou cuidar da minha conta. Você não terá mais acesso (...)
[independência financeira]. Vai escrever todo mês um relatório dizendo que meu
comportamento é exemplar (...) Dentro de um ano pedirá a cassação de minha curatela (...)
[independência psíquica]. Nunca mais me contatará (...) Se fizer enviarei cópias do vídeo à
polícia e à imprensa‖.
Para tanto, assume ela própria a imagem da maldade que vê no outro. Tenta, da mesma
maneira que seu opressor, impor a sua vontade do bem ―(...) a ponto de me tornar, por minha
vez – oh! Surpresa! – mau, mau com esta maldade que comporta – oh! Horror! – meu próprio
gozo‖ (JULLIEN, 1996 pg. 47). Assim, reconhece no espelho, que mostra os dois lados dela
mesma, um terceiro, invisível (irreflexível), que resvala na maldade do seu opressor, mas não
se fixa ali.
No final do filme se lança imperativa quanto a Martin: ―...ele estuprava e matava e
gostava disso. Teve as mesmas chances que nós. Escolhemos o que queremos ser. Ele não era
uma vítima, era um desgraçado que odiava as mulheres‖.
Mas que escolhas, que saídas seriam essas? Em que ética se apoia a heroína para se
distinguir dos outros personagens?
No recorte de outras situações ela deixa evidente suas escolhas. Para começar se
apresenta como ―fora da lei‖. Hacker. Posteriormente revela seus antecedentes de ter
incendiado o pai (justo quem!). Deixa o vilão Martin morrer incendiado. Acusa Harriet de
75
uma covardia pérfida por não entregar o irmão. Investiga e rouba o dinheiro do empresário
Wennerstöm acusado de corrupção.
Não faz o bem. Por outro lado, não fazendo o bem, também não se identifica como
fazedora do mal. Em várias cenas do filme recorda ter aprendido que ―todo ato tem uma
consequência‖. Por isso não é especularmente ou previamente má. Se dispõe a reinventar-se a
cada experiência, ou, por que não dizer, a cada fracasso – o que é Outra coisa. Não se trata
mais nem de bem, nem de mal, mas do estatuto de um ato que permite uma mudança. E essa
mudança vai se constituindo por sua negação.
Lisbeth não se serve de modelo, de amante, de filha arrependida, de justiceira. A cada
enquadre, uma nova saída, uma outra faceta. Um ―Não‖ polimórfico, que parece deixar claro
a todo momento a decisão pela impossibilidade de uma cristalização. Lisbeth em sua posição
de estrangeira revela-se, ela, sem fronteiras, sempre.
A meu ver, destaca-se dessa experiência o ato de inscrever-se numa Outra condição do
feminino. Não há resposta. A condição está por vir.
Referencias Bibliografia
JULLIEN, P. (2008). A psicanálise e o religioso: Freud, Jung, Lacan, Rio de Janeiro, Editora Jorge
Zahar, 2010, p89.
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Editora UFMG, 2010, 197p.
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FREUD, S. (1930-1936). O mal-estar na civilização, novas conferencias introdutórias à psicanalise e
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MONCAU, G. A era da mulher, conquistas e desafios. In: Caros Amigos, a primeira à esquerda. São
Paulo, ano XV, Edição Especial nº 55, p. 08-09, 2012.
MERLINO, T. A era da mulher, conquistas e desafios. In: Caros Amigos, a primeira à esquerda São
Paulo, ano XV, Edição Especial nº 55, p. 04-06, 2012.
76
Império dos Sentidos: A experiência pornográfica como expressão
da liberdade.
Autor: Plynio Thalison Alves Nava28
Co-autora: Antonielly Cantanhêde Wolff 29
Resumo
Na urgência de preservar a tradição, o filme Império dos Sentidos constrói uma narrativa que
fundamenta o resgate das experiências culturais ancestrais do país como crítica ao processo de
ocidentalização, responsável pelo progressivo soterramento do legado cultural japonês. Mediante a
integração de dois movimentos antagônicos – o impulso de eros e thanatos, expressos na performance
realista de sexo entre atores, no recuo às suas práticas culturais primitivas do país e na utilização da
pornografia como expressão da fruição sensual, Império dos Sentidos mostra a sobrevivência da
tradição erótica japonesa ao sinalizar a busca por uma cultura de liberdade. Este trabalho pretende
analisar de que forma esta obra reflete questões acerca da transmissão da experiência, da educação dos
sentidos e compreensão do prazer e sua busca como garantia da autonomia do sujeito.
Palavras-Chave: Erotismo, Cultura, Império dos Sentidos
In the Realm of the Senses: Experience pornography as an expression of freedom.
Abstract
Trying to preserve tradition, the film Empire of the Senses builds a narrative based on the rescue of
cultural experiences of the country as critical to the process of westernization, responsible for the
progressive burial of the Japanese cultural heritage. Through the integration of two antagonistic
movements - the impulse of eros and thanatos, expressed in the performance of realistic sex between
actors, the retreat to their primitive cultural practices of the country and the use of pornography as an
expression of sensuous enjoyment, Empire of the senses shows the survival Japanese erotic tradition,
to signal the search for a culture of freedom.This paper aims to examine how this movie reflects
questions about the transmission of experience, education of the senses and understanding of pleasure
and its quest to guarantee the autonomy of the subject.
Keywords: Eroticism, Culture, In the realm of the senses.
28
29
Graduando em Comunicação Social - UFMA
Graduando em Filosofia - UFMA
77
A Fruição na História Cultural Japonesa
Embora orientada por uma rígida disciplina, os japoneses nunca extraíram de seu foco
a satisfação pelos prazeres do corpo. No interior de uma vida social controlada por uma
conduta rigorosa, a satisfação dos sentidos ocupa lugar privilegiado no Japão, a ponto de sua
fruição ser precedida por um aprendizado. Seja nos tradicionais banhos, na contemplação das
cerejeiras, ou na arte dos origamis - atitudes que sobreviveram à massiva ocidentalização dos
costumes japoneses - tais hábitos, que se encontram imersos no território a que Ruth
Benedict30 traduziu como Círculo dos Sentimentos Humanos31 são reflexos da condução de
uma vida dedicada à apreciação dos prazeres.
Tal assertiva aplica-se também ao território da sexualidade: desde os primeiros anos de
sua vida, as experiências sexuais das crianças japonesas são vividas sem a iminência dos
tabus, tampouco constrangimentos paternos.
―As crianças sabem coisas da vida tanto por parte da liberdade de conversas dos
adultos, quanto devido à proximidade das dependências em que vive uma família
japonesa. Além do mais, suas mães geralmente chamam a atenção para os órgãos
genitais dos filhos quando brincam com eles e lhes dão banho, mesmo quando se
trata de meninos. Os japoneses não condenam a sexualidade infantil, a não ser nos
locais e companhias errados. A masturbação não é considerada perigosa. As
turmas infantis são também bastante livres no lançamento de críticas uns para os
outros – que mais tarde seriam insultos - e na jactância – que mais tarde daria
motivo a profunda vergonha.‖ (BENEDICT, 2002, p.226)
Para uma compreensão da percepção japonesa sobre o prazer erótico, um retrospecto
histórico já seria suficientemente válido para visualizar de que forma a vida urbana oferecia
alternativas compensatórias e regozijantes ao homem japonês. Dividido entre uma jornada
dupla e indissociável de dever e prazer – separadas moral e espacialmente, a priorização do
30
Salvaguardadas as críticas acerca de sua pesquisa sobre o Japão, o método de análise proposto por Ruth
Benedict revolucionou as técnicas de pesquisa antropológica, ao abrir mão de um recurso tão imprescindível ao
antropólogo como o trabalho de campo, para debruçar-se em pesquisas anteriormente desenvolvidas por
antropólogos acerca do Japão e entrevistas com japoneses que, naquele momento, moravam fora de seu país.
31
Ver Ruth Benedict, p. 151.
78
cumprimento de suas obrigações de cidadão, pai e marido não era vista como pretexto ao
usufruto do prazer erótico. Estava circunscrita em uma rotina social como outra qualquer.
Os japoneses recorriam à diversão junto de gueixas, ou usufruíam corriqueiramente
dos favores dos prostíbulos. Frequentavam as casas sem constrangimento e não atrelavam às
suas visitas qualquer indício de comportamento marginal. A atividade das casas de prazer, no
Japão, era regulamentada pelo xogunato e cada proprietária devia seus tributos e satisfações
ao governo. Aos japoneses, o exercício da prostituição não era visto sob a ótica do moralismo.
Legalizada desde a instalação do primeiro bairro do prazer, em 1585, na cidade de Osaka 32, o
concubinato não era visto de forma degradante, embora o status de prostituta não oferecesse
privilégios a nenhuma das mulheres que o praticavam. Segundo Maurice Pinguet (1987)
“Não se projetava sobre esta útil profissão a aura sulfurosa do vício. A prostituta
não inspirava nem desprezo nem nojo. Era lastimada por se ver na obrigação de
se vender ou ser vendida.”
No que toca à produção artística, uma expressão em especial ocupou-se de explorar o
universo dos prazeres do Japão. Nascido no período Edo, o Uykio-o diz respeito a uma
produção desenvolvida pela classe popular, cuja principal característica estava na exposição
do prazer e do divertimento no cotidiano japonês. Esta pintura, que nunca tencionou igualar
suas expressões à natureza, apresentava o mundo dos prazeres como uma espécie de metáfora.
Sua fusão de duas narrativas – literária e visual – num único trabalho xilográfico antecederam
dois séculos das artes visuais europeias ao empreenderem sua técnica em direção oposta à
representação fiel do real.
“A arte japonesa jamais deixou-se seduzir pelo caráter de verossimilhança, de
identificação plausível com a realidade. Talvez a natureza anímica dos japoneses,
seu amor e respeito pelas forças e belezas da natureza tenha sido o mote para que
a própria natureza surgisse na arte sempre como metáfora e não como pura
imitação. Gravura, pintura, escultura, Bunraku, Nô e Kabuki sempre deixaram à
mostra, de uma maneira ou de outra, a artificialidade da representação, sempre
assumindo-se como exercício estético da linguagem.”(MEDEIROS, Afonso.
32
Sobre os bairros do prazer japoneses, ver Cecilia Segawa Seigle, Yoshiwara. The Glittering World of the
Japanese courtesan, Honolulu, University of Hawai Press, 1993.
79
Crônica Visual: a gravura japonesa como matriz da modernidade. Coleção
Desenredos; Ed 4. Goiânia: Funape, 2008. 1v.)
Nas gravuras do Mundo Flutuante japonês, esse caráter crônico de que dispõe sua
narrativa não se poupou de explorar a encenação do sexo em suas gravuras. Dentro da vasta
gama de obras do Uykio-o, a gravura Makura-e é de sumária importância para o
desenvolvimento de uma estética do sexo. Produzidas intencionalmente para estimular
sexualmente os seus leitores, as gravuras, que conceitualmente se aproximam da pornografia,
dispõem de um enorme catálogo dedicado a mostrar a intimidade do japonês, em cenas de
sexo em diversas facetas, que vão da bissexualidade ao uso de primitivas formas de consolos
que penetram as mulheres nas gravuras.
A compreensão de um Mundo Flutuante, onde o prazer protagoniza a narrativa
makura-e, não se furtou a descrever o sexo com o recato eufemista: nestas gravuras, em
particular, as relações sexuais se restringem em grande parte ao âmbito do domicílio, onde
casais são expostos partilhando sua sexualidade – às vezes acompanhados de um terceiro
parceiro – sem qualquer privação de sentido ou recorte moralista do artista xilográfico, fato
que serve como hipótese ao exaustivo consumo desses produtos pelos japoneses do Edo.
“El ukiyo-e y por endeelmakura-e, era uma producción centrada enlo comercial,
dedicada y dispuesta a satisfacerlaincreíble demanda de materialesimpresos, tanto
literarios como visuales, de una ampla masa popular que consumía esta obras de
maneramuy similar a como hoy se consumenloslibros de historietas eróticas, las
revistas de chismes o laspostalitas desouvenir” (GARCÍA RODRÍGUEZ, Amaury.
Desentrañando ―lo pornográfico‖: La xilogravura makura-e. Analesdel Instituto de
Investigaciones estéticas).
Nascido em um momento decisivo da história do Japão – época em que o país efetivou
sua política de isolamento e projetou seu olhar no interior de sua cultura, a estética do Ukiyo-e
possui importância inegável na história das artes do país: sua narrativa, que efetua uma
retomada da tradição estética do Período Heian (794-1192), serve como barômetro para a
compreensão de um movimento singular, o resgate das tradições eróticas diluído no contínuo
processo de ocidentalização ocorrido no século XX.
Com a rendição do Japão e, consequentemente, o fim da 2º Guerra Mundial, uma forte
onda de transformações ocorreu na tradicional esfera social do país. Retomando o
80
empreendimento modernizador ocorrido na Era Meiji, a ocidentalização do Japão no século
XX reflete a mesma força que abalou as estruturas sociais nipônicas há dois séculos. Suas
implicações, entretanto, desencadearam transformações consideravelmente mais abruptas que
as da Restauração, a julgar pela adoção de novos paradigmas de produção industrial, como o
toyotismo, cuja projeção alcançou escalas globais e dinamizou a economia do país através de
uma nova ideologia orgânica da administração da produção capitalista.
No campo cultural, a euforia da ocidentalização deixava claras suas marcas ao
redesenhar as paisagens do Japão: o trânsito dos automóveis de luxo, a importação de gêneros
musicais, como jazz e rock, e a ebulição de uma juventude seduzida pelos ideais da
democracia são traços de um novo perfil cultural inaugurado pela sociedade japonesa após a
ocupação do país pelos Estados Unidos. Estes novos ideais, levados pelos americanos,
presentes no discurso político, na música, no cinema e no progresso, logo foram eclipsados
pelo clima de desconfiança que pairava no Japão.
“O salto do Japão feudal para a economia capitalista industrial se deu de forma
quase milagrosa na superfície, mas, como hoje já se reconhece, acarretou
problemas sociais em todos os níveis. Entre os jovens, havia naturalmente uma
euforia com a liberdade recém-adquirida, mas ao mesmo tempo um desconforto
pela forma abrupta e inapelável da introdução de novos costumes” (NAGIB,1993,
p. 18)
É neste contexto que um grupo de jovens cineastas entra em cena no Japão.
Questionando tendências e subvertendo posições, a Nouvelle Vague Japonesa representa o
segundo momento das transformações culturais do país, caracterizado pela crítica social e
pelo resgate das tradições perdidas com a ocidentalização que atravessou a década de 1950.
Império dos Sentidos: O legado transgressor do cinema novo japonês
Em 1955, após a interrupção promovida pelo governo militarista, o estúdio Nikkatsu
retoma suas atividades de produção. Coroando sua reabertura, os filmes Estação do Sol e
Paixão Juvenil, muito mais do que incorporar valores ocidentais recém-introduzidos no
81
Japão, rompiam o até então inflexível paradigma dos mestres diretores no Japão para se
tornarem precursores da Nouvelle Vague Japonesa, momento histórico fundamental para a
compreensão do novo direcionamento dado ao cinema do país.
“Era o ano marcante de 1960, e os dois filmes-manifesto da nouvelle vague
francesa tinham acabado de ser distribuídos no Japão: Os Incompreendidos
(Lesquatrecentscoups, 1959), de François Truffaut e Acossado (À bout de souffle,
1960), de Jean-Luc Godard. Sob o impacto dessa onda francesa, carregada de
novidades, dois críticos do jornal Yomiurishukan não tardaram em batizar de
nouvelle vague o segundo filme do jovem diretor Nagisa Oshima, Conto Cruel da
Juventude (Seishunzankokumonogatari), que chegava aos cinemas junto com o de
seus contemporâneos franceses. A partir daí a alcunha se estendeu para os demais
colegas de Oshima da produtora Shochiku, notadamente Yoshishige Yoshida e
Masahiro Shinoda. É que a empresa farejou prováveis vantagens comerciais na
utilização da expressão, que vinha a calhar para sua intenção, desenvolvida já nos
últimos anos, de estimular a formação de diretores jovens. Surgiu assim a
“nouvelle vague da Shochiku”, que depois se generalizou para “nouvelle vague
japonesa”, incluindo filmes de outras produtoras” (NAGIB, 2006, p. 160).
Propiciado o encontro da publicidade com os interesses comerciais, a Nouvelle Vague
consolida-se como movimento. Do ponto de vista do gênero, esta peculiaridade não pode ser
vista como óbice. O momento histórico, marcado por profundas transformações no Japão,
aliado à inserção de jovens diretores e novas concepções acerca do cinema, aproximou estilos
e determinou o início de uma nova produção, marcada pela influência do Cinema Veritè, pelas
técnicas dramatúrgicas de Bertold Brecht e pela experiência dialética com as religiões
nacionalistas.
Agregando influências dos novos cinemas ocidentais, os jovens cineastas da Nouvelle
Vague Japonesa buscavam um cinema mais realista como contraponto à percepção tradicional
das grandes produtoras japonesas, para quem a mais remota possibilidade de mudança era
vista com desapreço.
“Na base desse realismo, encontra-se o agnosticismo ou a ausência de metafísica
e de um deus sobrenatural e punitivo tal como concebem as religiões monoteístas.
Embora os jovens cineastas, em especial Oshima, primassem pela rebeldia contra
82
toda forma de autoridade ou figura paterna, sobretudo contra a crença
etnocêntrica na origem divina do imperador que levou o país à guerra, tentavam
resgatar do xintoísmo seu empirismo e intimidade com a natureza e o mundo
material‖ (NAGIB, 2006, p. 131).
Como resultado da intensa busca pelo realismo, um vasto catálogo filmográfico foi
produzido no Japão por esses cineastas. Os títulos, compostos por ficções e documentários,
possuíam uma função-chave para esse novo cinema: apresentar o Japão a um novo elenco de
personagens destituídos de culpa e dotados de instintos e individualidade. A era dos filmes da
Nouvelle Vague japonesa atravessa duas décadas – 50 e 60 – mas sua força estética, que
integra tradição e quebra de tabus, arrastou-se até o final da década de 70, quando Nagisa
Oshima, o mais transgressor e pessimista dos novos cineastas, radicalizou sua experiência
realista através do filme Império dos Sentidos.
Considerado um dos mais ousados filmes eróticos feitos na década de 70, Império dos
Sentidos é o roteiro adaptado de um sui generis caso de homicídio ocorrido no Japão.
“Trata-se da reencenação da história real de Sade Abe, uma criada que,
nos anos 30 (isto é, auge do militarismo), após semanas de sexo de sexo
ininterrupto com seu patrão, o estrangulou e emasculou, para obter o
máximo de satisfação sexual” (NAGIB, 2006, p. 14).
Financiado pelo mecenas francês Anatole Duman, Império dos Sentidos foi o primeiro
filme de Nagisa Oshima produzido por uma empresa estrangeira e, curiosamente, o primeiro
empreendimento do diretor dedicado à exposição da ancestralidade japonesa, cujas
ressonâncias de uma cultura de liberdade sobreviveram a vários séculos de mudanças
ocorridas no país. Sob a tutela da produtora Argos, Nagisa Oshima efetuou seu trabalho sem
grandes interferências de seus investidores, nem forte controle da empresa, cuja única
exigência feita ao diretor dizia respeito ao enfoque erótico dado à história.
“Oshima submeteu dois projetos a Dauman, que se decidiu pela história de Sada
Abe, baseada num fato real. Dauman sugeriu a mudança do enfoque do tema, com
83
que, segundo diz, nada fez senão explicitar um desejo irrevelado do cineasta” (
NAGIB, 1995, p. 146)
Surge, então, o primeiro filme pornográfico de Oshima. Resgatar num homicídio a
nuance erótica do Japão tornou-se para o diretor uma diligência estética: contrastes
cromáticos, a forte presença da cor vermelha, a influência do teatro kabuki e as claras
referências às gravuras eróticas do período Edo, imersas numa atmosfera carregada de
sensualidade e poder, reforçam a transgressão da esfera privada ao promover a afirmação da
individualidade e da publicização de sua intimidade. Como nos filmes da indústria pornô,
Sada Abe e Kichizan são cobertos por olhares, a princípio obscurecidos, tão logo se apressam
a serem convidados pelo casal para o seu ritual de libertação. Sob a atribuição do olhar
voyeaur, Lúcia Nagib (1995) faz uma análise essencial à compreensão deste na trama de
Oshima, na qual, segundo o crítico Pascal Bonitzer, o voyeaur ofereceria ao filme um caráter
de distanciamento.
“Igualmente, como na maioria dos filmes do gênero, dá-se ênfase à figura do
voyeaur, com o qual o espectador se identifica e que, por sua vez, se identifica com
os personagens em ação. Não sendo propriamente uma consciência intermediária,
mas apenas um olho sensível, o voyeaur serve de reforço para a emoção do
espectador e não para seu distanciamento”. (NAGIB, 2005, pág. 157)
Mesmo ultrapassando as limitações padronizadoras do gênero em questão, Império
dos Sentidos dialoga abertamente com o filme pornô. Sua composição, que reflete num
mesmo instante o recuo ao passado de um Japão que celebra a sexualidade e a integração de
um padrão ocidental de cinema à reconstituição de um fato real, atualiza todo o reducionismo
deste gênero, conferindo ao mesmo o imprescindível status de filme pornô, como afirmaria
mais tarde o próprio Nagisa Oshima.
Ao olhar desavisado e desconfiado do espectador, abundam indicações de um link
entre o jidaigeki33 e o filme hardcore34: o caráter conceitual da orgia, visto sob a ótica da
integração dos indivíduos focalizados pelo entusiasmo de Sada Abe, a presença dos consolos,
que penetram orifícios, conferindo à gueixa deflorada a participação em rituais de passagem, a
33
34
Tratam-se dos dramas de época japonês
Filme de sexo explícito
84
contribuição do moneyshot35, além da constante presença do voyeaur, fazem de Império dos
Sentidos um filme meta-pornográfico, que supera a inanição de uma narrativa de estrutura
delicada em favor da celebração dos indivíduos, mergulhados numa atmosfera de total
liberdade, para a vida e para a morte.
Estes dois impulsos – Eros e Tanatos – fundem-se na figura central de Sada Abe, cujas
ações transgressoras ressignificam culturalmente a representação do corpo feminino no
cinema japonês, reposicionando-o em contextos diversos, culturalmente, daqueles por ele
antes ocupados.
Ao dedicar-se ao estudo do cinema novo japonês – e reservar-se mais particularmente
à filmografia de Nagisa Oshima, Lucia Nagib observa uma tripla revolução provocada por
Império dos Sentidos. A primeira refere-se à prática real do sexo na sétima arte. A segunda,
por sua vez, diz respeito à reversão dos efeitos de distanciamento utilizados nos cinemas de
vanguarda para subtrair o efeito do real em suas narrativas. E por último, a terceira revolução
tratará da identificação do ―princípio de realidade‖ ao ―princípio de prazer‖, dois conceitos,
até então, opostos nos estudos da psicanálise e na filosofia da cultura.
Um pequeno percurso da repressão ocidental
Uma das tarefas que cabe à cultura é a educação do homem, uma educação que
preserve e aguce (potencialize) todas as faculdades humanas. Freud afirma que ―A história do
homem é a historia de sua repressão‖. A civilização (considerando-se neste caso, cultura e
civilização como sinônimos) começa quando o homem abre mão da satisfação integral de
suas necessidades. O principio de prazer é reprimido em prol do principio de realidade. Esta
coerção se dá para que haja progresso e para a manutenção da cultura. O principio de
realidade reprime princípios da natureza humana, transformando-os em instintos perversos e
irracionais, que passam a ser prejudiciais à vida na civilização, resultando na supressão das
capacidades e no modo de vida do homem. A civilização decreta que Eros (instinto de vida)
deve ser controlado para não seguir funesto como Thanatos (instinto de morte). Os impulsos
35
Na estética Hardcore, prevalece como característica fulcral o close da ejaculação no rosto da mulher, mais
conhecido como Money Shot, plano que representa na dramaturgia pornô o clímax de uma ação. Para mais
informações sobre o termo, consultar O olhar Pornô: a representação do obsceno no cinema e no vídeo, de
Nuno Cesar Abreu.
85
naturais do homem são convertidos, se antes dedicava-se mais tempo à atividade lúdica (ao
prazer), agora se volta à emergência da produtividade. A história da repressão do homem nos
apresenta tanto sua necessidade de ter cultura como suas sequelas e perdas.
Desde Platão, em sua República, já se havia uma forte presença da repressão em relação
à educação e à mimese. Esta última, segundo o filósofo, é vista como agradável, porém inútil,
e seu perigo está em ser agradável, pois tal sentimento pode ser configurado como um desvio.
Platão nos diz que há uma mimese ―negativa‖, que constrói apenas simulacros e ameaça o
processo de construção da civilização. Como a mimese pode ser uma ameaça no processo de
construção da civilização, se o aprendizado mimético produz prazer e favorece o processo de
conhecimento? Imitar, criar e construir está por trás de toda e qualquer manifestação do ser
humano para expressão dos mais diversos sentimentos.
“A luta começa com a perpetua conquista interna das faculdades “inferiores” do
individuo: as suas faculdades sensuais e apetitivas. A sua subjugação é
considerada, pelo menos desde Platão, um elemento constitutivo da razão humana,
a qual é, assim, repressiva em sua própria função”. (MARCUSE, 1972, p. 107).
As faculdades sensuais sempre estiveram condenadas ao reino das faculdades
inferiores. A disciplina estética prova com o seu nascimento essa subjugação. Se antes não era
levada a sério, quando esta surge enquanto ciência da arte e do belo, continuou a ser vista
como um conhecimento inferior.
Para os ocidentais, as influências da realidade externa dão vazão ao sentimento de
culpa, pois ―à medida que a civilização avança, o sentimento de culpa é ainda mais
―reforçado‖, ―intensificado‖, está em constante incremento‖. (MARCUSE, 1972, p. 83). Os
japoneses, por sua vez, são envolvidos por outro sentimento – a vergonha, não sendo esta o
resultado de uma repressão, e sim de uma conduta, pois consiste no que é bom para a vida
consigo e com o outro, uma vez que os japoneses se ocupam em trabalhar e viver bem em
conjunto. Se o sentimento de culpa é uma espécie de castração para os nossos desejos, os
japoneses, em contrapartida, não abriram mão do prazer: o princípio de prazer atua seguido
de suas potencialidades naturais, nas quais a educação ocupa espaço fundamental para o seu
aprimoramento.
86
A cultura ocidental abriu mão do lúdico em prol do trabalho e da produção, o princípio
de prazer o mostra, enquanto tido como ameaça à civilização. Para os japoneses, contudo, o
prazer é a própria libertação, é um saber lidar com o que é natural ao homem e com o que este
constrói: civilização, técnica, condutas, educação e etc.
O retorno do Erótico
O sexo, visto como uma quebra de tabu - já que não pertence aos conformes da
normalidade e da moralidade, é libertador, pois aspira à consumação efetiva do prazer: a
gratificação. Essa ação erótica se encontra à margem da cultura: tudo o que se mantém livre
vive à margem ou se anula a exemplo da arte. A sexualidade, na maioria das culturas,
permanece no âmbito das instituições monogâmicas, ficando a serviço da procriação – uma
sexualidade procriadora. Império dos Sentidos, na contramão deste juízo, resgata uma tradição
erótica que está entrelaçada com a morte – ―a morte como ápice do prazer‖.
“Os jovens diretores se lançaram no exercício de recuperação de tradições
japonesas de cultivo do corpo humano e do entorno físico sufocadas pelo
militarismo
e
a
ocidentalização...
Assim
dedicaram-se
a
experiências
cinematográficas extremas de sexo, violência e morte, incluindo a pratica (e a
etiqueta) do suicídio” (NAGIB,2006, pág.130 e 131).
Em Império dos Sentidos, o erótico é resgatado pelo relacionamento de Sada Abe e
Kichizan – uma relação transgressora, também exemplificada na cena em que crianças correm
nuas pela chuva, que é um elemento erótico, pelo abrupto toque no órgão genital do menino e,
no decorrer do filme, a pornografia se esvai e dá vazão ao puro erotismo. Oshima, ao trazer de
volta o erotismo, agrediu a cultura moralista ocidental estabelecida, já que mostra indivíduos
livres, cujo comportamento subversivo seria definido pela perversão. A essa imagem,
recorramos ao princípio de prazer e ao princípio da realidade. Quando o princípio de prazer,
assim como a fantasia, é classificado como perversão, tudo o que adquirimos pelo princípio
ordenador nos faz recuar e sentir culpa ao dar espaço a esses instintos que há muito vem
sendo esquecidos, pois o que a cultura tenciona é promover o apagamento de uma natureza
autêntica. O erótico mostra a liberdade da qual abrimos mão para viver em civilização. A isso
se sobressai a proposta de uma educação estética, que não tentaria dominar a natureza e
87
reprimir nossos instintos, mas educar para sermos completos, não considerando uma ameaça
nossos impulsos eróticos.
Considerações Finais
À medida que o Japão se desenvolvia tecnologicamente, parte de seu legado era
soterrado por um massivo processo de ocidentalização, resultando não somente no progresso
do país, mas no esquecimento de uma tradição voltada à busca do prazer, da educação do
corpo e, principalmente, na manutenção de uma cultura de liberdade.
Tais ideais, entretanto, reaparecem no país, em plena euforia de sua americanização.
Através de jovens artistas, efetuou-se um recuo às origens primitivas do Japão, no intuito de
questionar a situação de um país cujo processo de ocidentalização, bem como episódios como
a derrota japonesa na 2º guerra, determinariam o apagamento de suas antigas tradições.
Conhecido como Nouvelle Vague Japonesa, o movimento artístico que buscou o recuo
às origens culturais nipônicas caracterizou-se pelo resgate de um ideal de liberdade cuja
principal expressão, através do cinema, foi a sexualidade e seus desdobramentos no Japão.
Reunindo uma diversidade de cineastas, questionou não somente paradigmas da cultura
ocidental no país, mas o próprio modelo de produção do cinema ao colocar no centro da
discussão a presença do jovem cineasta em confronto com a figura do ―mestre‖, e a relação do
Japão com seu passado cultural.
O filme Império dos Sentidos é uma obra influenciada por esta proposta de resgate e
expõe que, mesmo reféns do processo de ocidentalização, os ideais de liberdade da tradição
japonesa resistiram ao impacto das transformações culturais sofridas pelo país. O filme tem
por intuito visualizar de que modo a experiência de liberdade proposta por sua narrativa pode
ser percebida como modelo para uma cultura ocidental fundamentada na negação do prazer e
no sentimento da culpa.
Império dos Sentidos, ao mostrar a quebra de tabus e a busca incessante pelo prazer,
leva-nos a pensar no principio ordenador da cultura ocidental, como a subjugação dos
instintos efetivada pelos controles repressivos, restando uma proposta de educação estética,
que resgate o prazer e a liberdade e, consequentemente, liberte a civilização de suas amarras
repressivas. À educação estética caberá essa tarefa, já que, assim como os homens, a educação
88
encontra-se no véu da cultura, não oferecendo fundamentos na promoção da autonomia dos
homens: uma educação libertadora.
A necessidade da educação é imprescindível ao convívio em sociedade, mas seu
procedimento deveria estar atrelado à compreensão de sua tarefa de domesticar os instintos,
ao invés da repressão de pulsões que integram a natureza dos homens.
O corpo nipônico é um corpo educado. A pornografia japonesa, como nos apresenta
o filme Império dos Sentidos, de Nagisa Oshima, mostra o resgate do erotismo, mostrando um
homem que, destituído de culpa e de toda a conformidade que o ser-humano mantém com a
sua natureza, torna a sua ação sempre provida de uma moral, pois há um perceptível
reconhecimento nas ações que preservam a espécie.
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89
Lacan com Spielberg - O Olhar Abjeto da Nova Lei
Ivan Capeller36
Resumo
Uma análise do filme Minority Report – A Nova Lei, de Steven Spielberg, a partir do conceito de
olhar-objeto, precedida por uma breve revisão da recepção das ideias de Jacques Lacan pela teoria do
cinema, bem como de sua crítica.
Palavras-chave: cinema; psicanálise; olhar-objeto
Spielberg with Lacan: Minority Report’s Abject Gaze
Abstract
An attempt to read Steven Spielberg‘s Minority Report through the concept of gaze as an object,
opened by a brief revision of the way that cinema theory absorbed Jacques Lacan‘s ideas as well as
criticized them.
Keywords: cinema; psychoanalysis; gaze
O desvão cinematográfico do olhar
O psicanalista interpretado por Bruce Willis em O Sexto Sentido (The Sixth Sense, de
M. Night Shyamalan) empenha-se com todo o seu profissionalismo e sabedoria científica na
compreensão do verdadeiro significado das alucinações a que seu paciente de oito anos de
idade é constantemente submetido - apavorantes visões de pessoas que haviam acabado de
morrer de forma violenta sem que o tivessem compreendido ainda, imagens sangrentas de
gente que relutava em reconhecer seu próprio fim. O Sexto Sentido começa dando-nos a
impressão de que assistiremos à narrativa de um processo terapêutico de cura pela psicanálise
- trabalho a ser realizado através da elaboração verbal deste complexo imaginário de
fantasmas e de sua austera redução à dimensão puramente simbólica de seus elementos
constituintes, atenuando seus efeitos traumáticos e almejando a gradativa desaparição dos
sintomas. Porém, sentado em sua poltrona, o psicanalista conscientiza-se da insustentabilidade
de sua posição e da impotência radical de seu empreendimento, já que até mesmo a
velocidade e o ritmo de assédio das horripilantes imagens que assolam seu paciente são muito
36
Ivan Capeller é doutor em Comunicação pela Universidade Federal Fluminense (UFF) e professor adjunto da
ECO – Escola de Comunicação da Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ).
90
mais impactantes do que o lento trabalho de elaboração simbólica próprio ao trabalho de
análise. Podemos observá-lo no instante preciso em que, percebendo-se como já morto,
compreende o sentido terminal do encontro que tivera com esse último paciente. E é
justamente neste instante que percebemos que seu olhar e seu silêncio ao longo do filme não
representavam realmente sua profunda interioridade subjetiva, refletindo na verdade o vazio
opaco e superficial de um espectro. A própria irredutibilidade final do fantasma a todas as
suas possíveis determinações simbólicas (velho tema dos filmes de terror desde O Exorcista)
é levada neste filme às últimas consequências.
Neste embate entre a razão simbólica que deve ordenar e conferir sentido às imagens e
um imaginário incontrolável e perturbador, há uma diferença radical entre a representação
cinematográfica clássica da ameaça espectral e suas versões mais contemporâneas: enquanto o
cinema de um Hitchcock (Vertigo, 1958) ou de um Tourneur (Cat People, 1942) estruturavase a partir de uma razão interpretante mobilizada para a esconjuração simbólica de fantasmas
imaginários, apresentando espectros ou fenômenos assustadores e inexplicáveis apenas com a
intenção de anular seus possíveis efeitos perturbadores e relegá-los ao desvanecimento
completo no final do filme, o cinema contemporâneo prefere acentuar a descrição labiríntica
das múltiplas armadilhas imaginárias em que o mais experiente analista pode acabar se
enredando.
Essa inversão de ênfase entre os aspectos simbólico e imaginário de um filme é uma
característica presente não só na prática cinematográfica contemporânea como também em
sua teoria, cada vez menos confiante nos modelos de orientação marxista e
semiológico/estruturalista próximos da psicanálise lacaniana que ficaram conhecidos sob a
denominação de teoria do aparato (ou dispositivo) cinematográfico. Tais modelos recorreram
à idéia lacaniana de uma "fase do espelho" na constituição do sujeito humano para descrever o
modo específico com que o cinema obtém a adesão inconsciente do espectador à ideologia
que veicula. Através de sua identificação imaginária com o ponto de vista monocular da
câmera, isto é, com um sujeito do olhar simbolicamente pré-determinado - identificação
facilitada pela impressão fotográfica da realidade em movimento - o espectador é convidado a
estabelecer com o filme uma série de identificações secundárias com os tipos e situações nele
representados, projetando-se psiquicamente na tela e envolvendo-se afetivamente com o
conteudo ideológico da representação, de forma a aceitá-lo acriticamente.
Para Jean Louis Baudry, tanto o aparato técnico necessário ao registro e à projeção de
imagens em movimento como os procedimentos de continuidade que perpassam todas as
91
etapas de execução de um filme (da filmagem à projeção, passando pela montagem) têm o
objetivo de simular imaginariamente um sujeito transcendental do olhar com o qual o
espectador deve se identificar. O que garante a ocorrência deste processo de identificação é o
fato de que o processo de constituição do sujeito exige - em um estágio anterior à aquisiçao da
capacidade de andar e de falar pela criança - a percepção do próprio reflexo especular, da
própria imagem no espelho, como a imagem primordial de um eu ideal com o qual o sujeito
estabelece identificações primárias de forte carga afetiva.
O processo de identificação do espectador ao ponto de vista da câmera enquanto
sujeito transcendental do olhar estimularia os processos mais profundos de identificação
narcísica do espectador consigo mesmo, aproximando a tela do cinema da função do espelho:
fazer com que o espectador identifique-se ao filme, identificando-se a si mesmo como o
próprio sujeito do olhar que constitui o filme.
Autores como Stephen Shaviro, no entanto, desmontam o esquematismo
reducionista implícito à teoria do aparato cinematográfico e revalorizam teoricamente a idéia
de uma irredutibilidade conceitual do imaginário cinematográfico à lei simbólica - uma
tendência que a produção cinematográfica contemporânea parece confirmar. Shaviro insurgese radicalmente contra a ideia de que a imagem cinematográfica seja essencialmente ilusória
e vazia, e de que derive seu poder de persuasão ideológica justamente de uma potência
"imaginária" de atribuição da impressão de realidade a qualquer objeto por ela representado.
Enquanto Metz declara que "aquilo que define o regime escópico propriamente
cinematográfico não é tanto a distância mantida, (…) como a ausência do objeto visto"
(METZ, 1993, p.86), Shaviro afirma que
a imagem não é um substituto representacional para o objeto tanto quanto é - como um
cadáver - resíduo ou traço material do fracasso do objeto em desaparecer completamente
(…) a imagem não é um sintoma da ausência, da falta, mas sim um resíduo estranho,
excessivo, que subsiste quando tudo deveria estar ausente (SHAVIRO, 1993, p.16).
A ontologia da imagem cinematográfica deve afastar-se assim de uma concepção
baseada na representação e na ideologia que procura - nas palavras de Metz -"retirar o objetocinema do imaginário para conquistá-lo ao simbólico, na esperança de anexar a este último
uma nova província" (METZ, 1993, p.9). Tentando apreender as potências intrínsecas de sua
materialidade própria e de sua irredutibilidade essencial a qualquer objeto de representação,
Shaviro não descreve a imagem cinematográfica como um instrumento ou aparato de sujeição
92
e domínio da realidade pela ideologia, mas como um fator de ameaça e de desagregação deste
mesmo domínio:
Ver um filme é algo que resiste aos cânones da "verdade" perceptiva (…) as imagens na
tela são violentamente afastadas de qualquer horizonte ou contexto externo, assim como de
qualquer presença (…) a imediaticidade da imagem curto-circuita os processos de
significação, enquanto sua incorporalidade impede qualquer referência objetiva.
(SHAVIRO, 1993, p.28)
A experiência cinematográfica estaria baseada na reprodução direta de eventos e na
exposição do público aos seus efeitos. Um bom exemplo pode ser estabelecido a partir da
famosa anedota acerca da primeira exibição, em 1895, de L'Arrivée d'un Train à la Gare de la
Ciotat, dos irmãos Lumière:
A materialidade da sensação permanece irredutível a - e irrecuperável pela - idealidade da
significação. Foi pelo choque e pela surpresa deste movimento que se encantaram os
primeiros espectadores do cinema no final do século XIX e não por sua capacidade ou
complacência de reconhecer o real em sua reprodução. Godard evoca esta sensação muito
bem em uma sequência de 'Les Carabiniers' em que seu jovem protagonista vai ao cinema
pela primeira vez. Ao ver o filme de Lumière com a tomada do trem aproximando-se
diretamente a câmera (e portanto da audiência), reação imediata do garoto nao é - como
poderíamos supor - a de tentar fugir correndo, mas a de cobrir os olhos. Ele não reage como
se o trem estivesse realmente ali; ele responde antes à imagem real de um trem. Ele não é
afetado por qualquer suposta verossimilhança representacional da imagem, mas por sua
persistência e movimento viscerais. Um trem está de fato se dirigindo para ele - não para a
sua cadeira na sala de projeção, evidentemente - mas para a sua linha de visão. (SHAVIRO,
1993, p.33)
Há uma irredutibilidade ontológica da imagem cinematográfica ao domínio simbólico
da representação. Para Shaviro, a objetividade material da imagem cinematográfica ultrapassa
- por sua própria constituição e por seus efeitos concretos - qualquer tentativa de
determinação simbólica a partir de um sujeito transcendental do olhar:
Quando eu olho [um filme], minha mente não está presente: a visão e a audição, a
antecipação e a memória, não me pertencem mais. Minhas reações não são internamente
motivadas e não são espontâneas; são impostas sobre mim do exterior. (…) Quando eu olho
um filme, um estranho interesse se apossa de mim, do qual não posso escapar, mas de que
também não posso me apropriar. (SHAVIRO, 1993, p.49)
Ao substituir a idéia de uma representação cinematográfica propiciadora de
identificações imaginárias por um dispositivo de reprodução de imagens que é o único
verdadeiro sujeito dos efeitos cinemáticos que provoca, Shaviro revela-nos o limite
epistemológico comum tanto à teoria do aparato como à sua: a necessária postulação de um
93
suposto sujeito do olhar como garantia da eficácia do dispositivo. Destituindo o espectador de
sua posição de identificação com o sujeito transcendental do olhar, Shaviro não considera
mais a imagem como a representação de um objeto para o espectador, mas sim como o
próprio objeto de reprodução do dispositivo - apesar do espectador: "Não é o olhar [do
espectador] que demanda imagens, mas são as imagens que solicitam e sustentam o olhar
enquanto lhe permanecem indiferentes" (Shaviro, 1993, 20). Portanto a imagem captura o
olhar do espectador e o sujeita de forma completamente inequívoca, sem nenhuma brecha ou
desvio possível de sentido; se antes a relação imaginária de identificação do espectador com o
filme era pensada em suas mediações com a representação, agora é pensada como imersão
direta do olhar do espectador no objeto-imagem - ou, no sentido inverso, como a projeção real
deste objeto sobre o olhar do espectador. É a imagem que atua como sujeito sobre o olhar do
espectador, transformado em objeto: assim a sujeição deste aos efeitos do dispositivo é
completa, sendo a visibilidade deste último total. Shaviro aproxima o dispositivo
cinematográfico do dispositivo panóptico de Foucault, considerando o efeito de subjetivação
no espectador como uma realização direta e integral do dispositivo, o que o impossibilita
pensar em que medida este efeito de subjetivação é também resistência ao dispositivo, e
sobretudo impossibilitando-o pensar o olhar-objeto como aquilo a que resiste o sujeito em seu
processo de subjetivação.
Esta "resistência à resistência" é uma das características mais problemáticas do que Joan
Copjec define como "o argumento panóptico" em um artigo fundamental para a compreensão
da complexa história da recepção das ideias lacanianas pela teoria cinematográfica. No
dispositivo panóptico, a circularidade sem falhas do olhar baseia-se, segundo Copjec, na
equiparação das categorias de visibilidade e conhecimento por um lado, e nas de efeito e
realização, por outro. Pois, se a imagem é perfeitamente reconhecível através de sua
visibilidade integral, o sujeito se realiza inteiramente enquanto efeito do dispositivo:
[Há] um paradoxo manifesto na descrição de Foucault do poder panóptico e na descrição
pela teoria cinematográfica da relação entre o aparato e o olhar. Em ambos os casos o
modelo de auto-vigilância recorre implicitamente ao modelo psicanalítico da consciência
moral, mesmo quando essa proximidade é negada. A imagem da auto-vigilância, da autocorreção, é ao mesmo tempo necessária para construir o sujeito e redundante devido ao fato
de que o sujeito assim construído é, por definição, integralmente correto e 'direito'. A
inevitabilidade e completude de seu sucesso faz com que o gesto ortopédico de vigilância
seja desnecessário (…) a relação entre o aparato e o olhar cria apenas uma miragem de
psicanálise. Não há, de fato, nenhum sujeito psicanalítico à vista (COPJEC, 2000, p.444).
94
Copjec descreve aqui a influência do dispositivo panóptico sobre a teoria do aparato
cinematográfico de Metz e Baudry, demonstrando como a sujeição do espectador ao
dispositivo já era pensada indiretamente pelos teóricos do aparato em sua leitura da fase do
espelho:
Este é o quadro descrito por Metz. O sujeito reconhece primeiro a si mesmo ao identificarse com o olhar e então reconhece as imagens na tela. Mas, o que é precisamente o olhar
neste contexto? (…) o olhar é sempre o ponto a partir do qual a teoria cinematográfica
concebe o processo de identificação (…) o sujeito vem a ser ao identificar-se com o sentido
da imagem. O sentido funda o sujeito. (COPJEC, 2000, p.442)
Há um equívoco fundamental nesta leitura da fase do espelho em Lacan, equívoco que
também se manifesta na analogia traçada por Baudry entre a alegoria da caverna e a sala de
projeção de cinema: a ideia de que a identificação do espectador com as imagens será sempre
eficaz na medida em que se baseia em uma identificação primordial com sua própria imagem
no espelho, garantindo assim sua sujeição aos efeitos ideológicos do aparato.
Segundo Copjec,
a imagem não só parece representar perfeitamente o sujeito, como também parece ser uma
imagem da perfeição do sujeito. A definição comum de narcisismo parece apoiar esta
relação: o sujeito apaixona-se pela própria imagem como imagem de seu eu ideal. A não ser
pelo fato de que o narcisismo transforma-se nesta versão em uma estrutura que facilita a
relação de harmonia entre o sujeito e a ordem social (…) enquanto, na versão psicanalítica,
a relação narcísica do sujeito com seu eu é vista como um conflito disruptivo com outras
relações sociais. Estou tentando apontar aqui para um ponto de discordância entre a
psicanálise e o argumento panóptico que não é de pouca importância: a oposição entre a
força disruptiva do narcisismo e a força de constituição das relações sociais é um dos
postulados básicos da psicanálise. (COPJEC, 2000, p.442)
A identificação primordial de um sujeito consigo mesmo, através de sua imagem, está
longe de garantir a sua adesão à lei social, constituindo-se, pelo contrário, em ameaça
permanente à eficácia integral desta adesão. Assim, o processo narcísico de identificação
imaginária não pode ser considerado como uma fonte de coesão e sentido para o olhar; sua
especularidade coloca o sujeito em fundamental desacordo com sua própria imagem,
alienando-o de si mesmo em seu próprio processo de constituição.
Para Copjec, a psicanálise não "condena" platonicamente o imaginário como fonte de
desengano e desilusão para o sujeito, como pretende Shaviro. Antes, demonstra de que forma
o imaginário será sempre uma fonte de suspeita para o sujeito e de ameaça à sua consistência
simbólica, de que forma o olhar se estabelece contra o sujeito. Embora correto em sua crítica
aos teóricos do aparato e à sua interpretação específica da questão do imaginário em Lacan,
95
Shaviro partilha de seu equívoco fundamental - a confusão da teoria psicanalítica com um seu
objeto, já que a tentativa de redução do imaginário à representação simbólica é considerada
por Shaviro como uma operação teórica da psicanálise (e os teóricos do aparato o
confirmaram em seu equívoco, pois acreditavam ser esta a intenção da psicanálise) enquanto a
própria psicanálise nada mais é do que a constatação cabal da impossibilidade radical desta
redução.
Ao eliminar a necessidade da representação ideológica e da identificação imaginária
para o funcionamento do aparato cinematográfico, Shaviro inverte a relação de determinação
entre o simbólico e o imaginário sem perceber que sua concepção panóptica do olhar apenas
acentua este reducionismo ao invés de evitá-lo. Assim, se o modelo semiológico de aparato
pensado por Metz e Baudry era mais adaptado ao olhar clássico-narrativo que dominava a
produção cinematográfica dos anos 30 até meados dos anos 70, a teoria de Shaviro apresenta
um instrumental de análise evidentemente muito mais apropriado para a discussão do cinema
industrial contemporâneo e de seus efeitos. No entanto, sujeitando o olhar ao dispositivo
panóptico, Shaviro perde a possibilidade de pensá-lo plenamente em seu desvio para o objeto.
Isto ocorre porque ele identifica a função do olhar com o campo escópico ou visual, ou seja,
com a dissociaçao panóptica ver/ser visto.
Joan Copjec, por sua vez, chama a atenção para o fato de que
a teoria cinematográfica introduziu o sujeito em seus estudos, incorporando assim a
psicanálise lacaniana, basicamente através d'O Estádio do Espelho como Formador da
Funçao do Eu. Era a este ensaio que os teóricos faziam referência quando formularam suas
idéias sobre a relação narcísica do sujeito com o filme e sobre a dependência desta relação
ao 'olhar'. Embora o ensaio sobre a fase do espelho realmente descreva a relação narcísica
da criança com sua imagem no espelho, não é neste ensaio e sim no Seminário XI que
Lacan formula o seu conceito de olhar. Aqui (…) Lacan reformula seu ensaio anterior sobre
a fase do espelho e traça um panorama muito diferente daquele que foi pintado pela teoria
cinematográfica. (COPJEC, 2000, p.447)
Para Jacques Lacan, o olhar pode ser tratado como um objeto na medida em que o
considerarmos como aquilo que da imagem não se deixa ver:
Em nossa relação com as coisas, na medida em que esta relação é constituída através da
visão, e ordenada pelas figuras da representação, algo desliza, passa, é transmitido de
estágio em estágio, e é sempre eludido em certo nível - isto é o que chamamos de olhar.
(LACAN, 1979, p.73)
Para além da dicotomia entre o ver e o ser visto, há uma dicotomia fundamental entre
a visão e o olhar que é o próprio fundamento do campo escópico, da visibilidade. Enquanto a
96
visão está ligada ao olho e àquilo que é especificamente ótico na imagem, o olhar responde
pelo desvio ou desencontro constante entre o visível e seu sentido:
Não há e não pode haver visão pura, visão totalmente desprovida de sentido (…) como os
significantes são materiais, ou seja, como são mais opacos do que translúcidos, como se
referem a outros significantes ao invés de referir-se diretamente ao significado, o campo da
visão não é claro ou facilmente percorrível. (COPJEC, 2000, p.449)
Como as leis da ótica mapeiam a propagação da luz apenas através do espaço,
revelam-se insuficientes para entendermos como olhamos uma imagem para não a ver,
elidindo assim o que a faz propriamente imagem - o olhar. Uma descrição puramente ótica do
jogo perceptivo de luzes e cores que conforma uma imagem deve necessariamente excluir de
sua perspectiva a questão da função do olhar. Isto só é possível porque o olhar é precisamente
aquilo que falta à imagem para que esta apareça como tal aos olhos de um sujeito.
A emergência do campo escópico se dá com o desvio do olhar para o objeto e a
instalação do olho como orgão subjetivo da visão. O olhar é aquilo que falta à imagem, aquilo
que é expulso da imagem para que esta possa vir a ser (imagem). Mas a falta de que falamos
aqui não é constitutiva de um "significante imaginário" especificamente cinematográfico
como em Metz ou como em Shaviro - que cita um artigo de 1988 de Kaja Silverman em que
esta fala do "espectro de uma perda ou ausência no centro da produção cinemática"
(SILVERMAN, 1990, p.110-127) e parte daí para criticar o uso da noção de falta pela teoria
cinematográfica. Correto em sua crítica, Shaviro apenas desconhece o fato de que o que a
teoria do olhar-objeto precisamente não faz é localizar a falta na diferença entre a imagem
cinematográfica e as imagens reais. Não se trata da ausência de um referente concreto que
caracterizaria a imagem cinematográfica como um substituto ou duplo da realidade, e sim
daquilo que "aparece [na imagem] como uma 'tela' ou 'mancha', como um 'ponto': o olhar que,
no espaço visual, apresenta-se sempre como um jogo de transparência e opacidade"
(ZUPANCIC, 1996, p.34-35).
O olhar-objeto é o significante da própria falta - daquilo que, na imagem, não se deixa
desvelar pelo campo visual. A constituição de um sujeito transcendental do olhar identificado
à monocularidade perspectiva da camera obscura - uma importante premissa da teoria do
aparato – é, portanto, simplesmente incompatível com a teoria lacaniana do olhar-objeto, pois
a identificação do sujeito já não pode mais ser feita com o olhar enquanto o centro
organizador das significações da imagem, e sim "com o olhar como o significante da falta que
97
esmorece a imagem" (COPJEC, 2000, p.449). O olhar-objeto é ponto de quase dissolução da
imagem, de suspensão de seu sentido, portanto de ameaça à constituição do sujeito:
Pois, para além de tudo o que é exibido ao sujeito, uma questão é colocada: o que está
sendo escondido de mim? O que é que neste espaço gráfico não se expõe, não cessa de não
se inscrever? Este ponto em que algo aparenta ser invisível, este ponto em que algo se furta
à representação, em que algum sentido permanece oculto, é o ponto do olhar lacaniano. (…)
É um ponto em que o sujeito desaparece. A imagem, o campo visual, aparece então com
uma aterrorizante alteridade que impede o sujeito de se identificar com a representação.
Aquela 'sensação de intimidade' é subitamente esvaziada da representação, na medida em
que o espelho assume a função de tela. (COPJEC, 2000, p.450)
A tela não é mais comparada a um espelho, antes é o próprio espelho que adquire aqui
a função de tela: qualquer imagem é uma imagem apenas na medida em que se interpõe entre
o sujeito (da visão) e o olhar-objeto, e não entre sujeito e "realidade". Do ponto de vista do
sujeito, o olhar-objeto será sempre olhar-abjeto, será sempre mau-olhado: isto ocorre porque a
própria constituição do sujeito é atravessada pela dicotomia entre a visão e o olhar. "Ali onde
o sujeito se vê…não é dali que ele se olha…" (LACAN, 1979, p.73).
A ambiguidade do imaginário não está mais situada aqui em relação ao conteúdo de
sua representação ou às suas condições simbólicas de enunciação, mas sim àquilo que a
imagem oculta em sua própria mostração, àquilo que deve ser suprimido do campo do visível
para que este se faça visível. Assim, o sujeito identifica-se com a imagem enquanto
representação ideológica não porque acredite em sua verdade, porque seja enganado por ela
(como pretende a teoria do aparato) - e sim porque sabe que ela é falsa:
Enquanto a posição da teoria cinematográfica tende a enquadrar o sujeito na armadilha da
representação (um erro idealista), a conceber a linguagem como a construção dos muros da
prisão que é a existência do sujeito, Lacan afirma que o sujeito vê esses muros como um
trompe-l'œil e é, portanto, construído por algo além deles. (…) Lacan certamente não está
oferecendo uma descrição agnóstica da maneira com que o objeto real escapa à captura no
interior da rede de significantes. (…) A opacidade da linguagem é considerada a própria
causa da existência do sujeito, de seu desejo. O fato de que é materialmente impossível
dizer a verdade toda (…) funda o sujeito. (COPJEC, 2000, p.450)
Por trás da representação imaginária propiciada pelo campo escópico não há nada
além do olhar-objeto enquanto significante da falta. Esta última reside precisamente na
opacidade material do olhar. A "falsidade" do imaginário garante assim a própria existência
do sujeito, que se verá sempre ameaçado, por outro lado, pela materialidade excessivamente
verista e inquietante de certas imagens, por algo na imagem que não corresponde inteiramente
à imagem e que escapa ao seu sentido.
98
Shaviro concebe o dispositivo cinematográfico exatamente como um dispositivo de
produção desta "inquietude". Sua descrição das propriedades da imagem cinematográfica
enfatiza a materialidade de seus distúrbios, a proliferação monstruosa de seu olhar e seus
reflexos no cinema contemporâneo. Porém, ao basear a materialidade deste olhar na
especificidade de seu dispositivo - a reprodução cinematográfica - Shaviro não percebe que é
a materialidade de qualquer dispositivo de visão que se suporta do olhar enquanto objeto; o
sujeito para Shaviro é apenas um elemento do circuito de reprodução das imagens, e não um
fator de desvio ou resistência ao olhar.
A mera constatação de que há uma descontinuidade radical de sentido entre os
diversos dispositivos de visão e seus respectivos sujeitos do olhar não basta para a
compreensão do olhar-objeto. Este erro ou fantasia acerca de um sujeito do olhar (seja ele
transcendental ou materializado em seu dispositivo) é descrito por Lacan através da fórmula
―vejo-me ver-me‖: a pretensa eficácia e suposta transparência do dispositivo panóptico reside
precisamente nesta ilusão, a de que a dimensão ótico-geométrica da imagem possa esgotar as
possibilidades significantes do campo escópico e operar a sutura entre sujeito (da visão) e
olhar-objeto através de um possível sujeito do olhar. O que a teoria do panoptismo descreve
em termos de potência e produção só pode ser lido pela teoria do olhar-objeto como
manifestação de impotência e ameaça de destruição: o encontro do sujeito com o olhar que lhe
devolve a sua própria imagem deve ser evitado a todo o custo para que a representação
imaginária se estabeleça no campo escópico.
Nossa hipótese é a de que a emergência deste olhar é acompanhada pelo fracasso
imediato do dispositivo panóptico, de sua falência social : é a própria crença na eficácia do
sujeito do olhar panóptico que reforça o caráter socialmente abjeto deste olhar.
O olhar abjeto do dispositivo panóptico
Minority Report - A Nova Lei, de Steven Spielberg, ilustra esta questão de maneira
quase involuntária: Spielberg idealiza um dispositivo panóptico absolutamente sem falhas,
uma sociedade em que até o tráfego dos carros é controlado automaticamente por mecanismos
de identificação imediata de seus passageiros. O sujeito do olhar panóptico está presente por
toda a parte, esquadrinhando e identificando todas as atividades humanas a partir de um olhomecânico tão perfeito que é capaz de proceder ao rastreamento imediato de qualquer pessoa a
partir do padrão reticular de sua íris: o panóptico de Spielberg pretende realizar integralmente
99
a redução do olho a um puro objeto e a captura total do olhar pelo dispositivo. A circularidade
total do dispositivo exige o controle não só do espaço de locomoção dos homens mas
principalmente da temporalidade de suas ações, "realizando" integralmente a existência do
sujeito dentro dos mecanismos do dispositivo panóptico. O olho-mecânico deve ser portanto
complementado por um olho-psíquico sensível às imagens que chegam do futuro
(representado no filme pelos chamados "pré-cognitivos", filhos de ex-viciados em heroína que
nasceram com poderes de vidência), reduzindo ao máximo as possibilidades subjetivas de
desvio (crimes) e configurando assim um sujeito do olhar literalmente empíricotranscendental - o delegado John Anderton da divisao de pré-crimes, que é interpretado por
Tom Cruise.
É sua ação "corretiva" que preenche os intervalos de tempo cada vez menores que são
necessários para a autorregulação do olhar panóptico, tema da primeira sequência do filme: a
interação imaginada aqui entre os aspectos psíquico e mecânico do olhar é quase exata, e é
precisamente neste "quase" que se insere a mancha na imagem, o primeiro sintoma do olharobjeto. No caso, a mancha é claramente representada pelo fato de que todas as casas da rua
em que se passará o crime são iguais, e este só pode ser evitado porque a imagem da porta
entreaberta funciona como o ponto ou mancha a partir do qual o objeto nos olha por detrás da
imagem; é precisamente a identificação deste ponto que permite à polícia evitar o crime e
fechar o circuito do olhar panóptico. Portanto, a realização máxima do olhar enquanto sujeito
do dispositivo apenas desencobre a evidência cada vez mais insuportável de seu caráter
abjeto.
Esta abjeção, resolvida idealmente dentro do dispositivo panóptico nesta primeira
sequência, exerce na verdade um efeito profundamente disruptivo sobre o próprio circuito, e
este é o tema abortado de Minority Report. O olhar-objeto destaca-se com a máxima
intensidade do dispositivo panóptico durante a primeira metade do filme, transformando a
vida de seu protagonista em um inferno. Em uma das primeiras sequências noturnas do filme,
o chefe de polícia Anderton compra nas ruas da cidade uma substância ilegal
(sintomaticamente denominada clarity) das mãos de um traficante; a princípio, ouvimos
apenas a voz de um homem de capuz e óculos escuros que diz saber que ele é o chefe de
polícia, mas que, diante de sua reação de espanto e preocupação, o tranquiliza afirmando
literalmente que "em terra de cego quem tem um olho é rei". No momento em que o traficante
está proferindo esta última frase, a câmera enquadra-o em close enquanto ele tira os óculos
escuros: ele não tem os dois olhos, que foram retirados. Seu olhar para Anderton é abjeto na
100
medida em que é ao mesmo tempo onividente e cego, isto é, sua impotência é pré-condição de
sua onividência. O olhar-objeto aparece aqui em sua plena oposição ao sujeito do olhar
panóptico, ao mesmo tempo em que é esse mesmo sujeito em sua busca pela transparência
total ("clarity") que o provoca, que o conjura.
O olhar-objeto assume outras formas igualmente desagradáveis para Anderton e
ligadas à sua posição central no dispositivo. Ao contemplar-se cometendo um crime com data
e hora marcadas contra um completo desconhecido ("vejo-me ver-me…"), Anderton torna-se
ele mesmo objeto do olhar panóptico, começa a ser perseguido como um criminoso e deve
trocar seus olhos para escapar à vigilância do dispositivo. O desvio total para o olhar-objeto
realiza-se no lapso de tempo de 12 horas em que Anderton deve ficar escondido com uma
venda sobre seus novos olhos, sem poder abri-los. Ao final deste período, sua venda é aberta
pelo olho "escaneador" de um escorpião mecânico da polícia, um dispositivo abjeto de
controle da identidade que, no entanto, lê a sua íris sem reconhecê-lo, deixando-o livre. Nesta
sequência, o desvio do panoptismo aparece como uma decorrência direta da emergência de
um olhar-objeto claramente provocado pelo próprio panoptismo. Mas Spielberg preferiu
ressuscitar aqui, sintomaticamente, a velha "psicanálise de botequim" do trauma pessoal a ser
imaginariamente exorcisado. O confronto com o vazio abissal da não-identidade implícito à
troca de olhos é "preenchido" com as imagens "mentais" do filho desaparecido de Anderton ressubjetivando e repsicologizando o desvio do olhar. A partir daí, o filme afasta-se
progressivamente da questão do olhar-objeto para ensaiar uma crítica de tons "liberais" ao
"totalitarismo" do dispositivo panóptico, perdendo grande parte de seu interesse.
Devemos analisar mais detidamente, porém, a maneira com que Spielberg se afasta da
questão do olhar-objeto à medida em que se aproxima a hora da execução do crime pelo qual
Anderton é perseguido. A sequência de imagens desta execução, já familiar ao espectador,
começa a desenrolar-se como previsto até o momento em que Anderton deve apertar o
gatilho; sabe-se agora que ele matará o suposto responsável pelo desaparecimento de seu
filho, do qual há várias fotos espalhadas no aposento. Mas Anderton retém seu impulso e dá
voz de prisão à sua indignada vítima, que revela então o fato de que havia sido na verdade
contratada para enganá-lo, provocando em seguida a própria morte. Embora a pré-visão tenha
portanto se realizado, Anderton não pode ser considerado o verdadeiro responsável pelo
"crime" na medida em que opôs ao real do acontecimento o limite da lei simbólica (a "voz de
prisão"). Além disso, a pré-visão do futuro real é reconvertida aqui na tradicional armadilha
imaginária construída para o logro do sujeito (no caso, o próprio Anderton): a "orgia de
101
evidências" de que nos fala logo depois o investigador do FBI que quer acabar com a divisão
de pré-crimes coloca sob suspeita de fraude o funcionamento do dispositivo panóptico e a
idoneidade de seu mentor, que é também o chefe e principal incentivador de Anderton.
Spielberg prefere portanto denunciar o panopticum como uma fraude ou armação,
como um esquema de dominação baseado no logro do imaginário e na manipulação do
dispositivo. Anderton estava sendo falsamente acusado para que outro crime (cometido por
seu chefe e conectado, evidentemente, ao período de implantação da divisão pré-crimes)
permanecesse oculto. O olhar-objeto já não é mais a ameaça radical ao domínio panóptico do
campo escópico que a primeira parte do filme sugere de maneira tão vívida. O problema agora
é bem mais prosaico, e Spielberg sente-se nitidamente mais à vontade: um crime verdadeiro
foi cometido, há portanto uma cena da origem a ser (des)velada!
As imagens deste crime vêm à tona em uma recepção em homenagem à divisão précrimes, que está para ser implantada nacionalmente. São imagens erroneamente consideradas
como "ecos" do dispositivo, imagens levemente atrasadas de crimes que acabaram de ser
previstos. A fraude, cometida pelo chefe de Anderton, consistiu na execução de um crime real
logo após a sua própria encenação, repetindo as mesmas condições imaginárias do evento de
forma a que o crime real parecesse um eco do encenado. O logro imaginário está portanto na
própria origem do dispositivo panóptico para Spielberg, que o condena apenas na medida em
que este ainda não é o "verdadeiro" panóptico, o dispositivo sem desvio.
Ao desviar-se do olhar-objeto, Spielberg perde a oportunidade de realizar a crítica ao
dispositivo panóptico enquanto tal e contenta-se com a resolução simbólica de um conflito
imaginário: no final do filme, o chefe de Anderton é destituído de sua posição benevolamente
paternal para assumir características obscenas (Enjoy yourselves! It's an order! é o brinde que
ele propõe no início da recepção em que será desmascarado). A confiança das pessoas no
dispositivo panóptico desaparece e a "nova lei" do controle real é derrotada pela "velha lei"
simbólica baseada na "voz", isto é, no engagamento subjetivo da palavra.
Há uma ironia latente nas relações deste filme com a psicanálise: em sua primeira
parte, quando Spielberg descreve a lógica puramente cinemática de um dispositivo panóptico
quase perfeito, o olhar-objeto é evocado de forma praticamente involuntária em todas as
cenas. Mas é precisamente quando Spielberg recorre à psicanálise (ou ao que ele pensa que
ela é), que o filme se afasta das questões que a teoria do olhar-objeto levanta para refugiar-se
na velha solução, bem conhecida pela teoria do aparato, das armadilhas imaginárias e de suas
resoluções simbólicas.
102
Referências Bibliográficas
BAUDRY, Jean Louis: ―Cinema: efeitos ideológicos produzidos pelo aparelho de base‖, in A
Experiência do Cinema (Ismail Xavier, org.), Ed. Graal, Rio de Janeiro, 1991.
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Ideologia (Slavoj Zizek, org.), Contraponto, Rio de Janeiro, 1996.
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ZUPANCIC, Alenka: ―Philosophers' Blind Man's Buff‖ in Gaze and Voice as Love Objects (Renata
Saleci & Slavoj Zizek, org.), Duke University Press, Durham and London, 1996.
103
Um método perigoso: o avesso da psicanálise
Janaina Namba37
Resumo
Trata-se de examinar o filme Um método perigoso, de David Cronenbergh, nos termos da psicanálise
freudiana, teoria (e prática) a que ele se refere, com destaque para a noção de transferência.
Palavras-Chave: Psicanálise, C. G. Jung, Sigmund Freud, Transferência, Sabina Spielrein.
A dangerous method: on the reverse of psychoanalysis.
Abstract
The aim of the article is to examine the movie A dangerous method, by David Cronenbergh, from the
point of view of the Freudian notion of transference.
Keywords. Psychoanalysis, C. G. Jung, Sigmund Freud, Transference, Sabina Spielrein.
O filme Um método perigoso, de David Cronenberg, começa com um clichê: Keira
Knightley, que no filme faz o papel de Sabina Spielrein, uma histérica, grita e se debate ao ser
levada para uma clínica psiquiátrica em Zurique no ano de 1904. Na cena seguinte entra na
sala Michael Fassbinder que se apresenta como Dr. Jung, quem a recebeu na internação. Ela
logo lhe diz que não é louca e ele a tranquiliza dizendo que o tratamento será baseado apenas
em conversas diárias, com ele sentado atrás dela, tendo como única condição ela não se virar
para trás para olhá-lo. O clichê da histeria continua, a paciente se contorce como numa
conversão histérica, mas ainda assim consegue falar, consegue, a partir de uma única
pergunta, numa primeira sessão desenvolver uma série de associações a respeito de uma
possível causa de seus sintomas.
Os primórdios da psicanálise e o conceito de transferência
Onze anos antes da internação mostrada no filme, em 1893, Freud, juntamente com
Breuer, já havia publicado alguns casos clínicos e estudos teóricos sobre os fenômenos
37
Doutora em filosofia pelo DFMC da UFSCar e pós-doutoranda pela mesma instituição.
104
histéricos. As investigações desses autores os levaram a crer que os sintomas histéricos eram
produzidos por vivências, as quais os enfermos não conseguiam se recordar: ―o histérico
padece principalmente de reminiscências‖38. Algumas recordações de vivências são
suprimidas da consciência, nessa época chamada de normal, em contraposição a uma outra
patológica em função de um trauma psíquico. Nesse período, os métodos de tratamento
utilizados baseavam-se na hipnose e na ab-reação, que consiste na catarse do paciente (o
segundo é denominado método catártico). A hipnose é logo abandonada por Freud, pois ele
nem sempre conseguia hipnotizar suas pacientes, já a ab-reação seria uma reação obtida pela
palavra, tão eficiente quanto uma reação adequada, obtida por uma ação, na qual há uma
descarga de afetos (catarse), e, que o leva à constatação de que os sintomas histéricos podiam
desaparecer por completo caso houvesse uma lembrança do processo e do afeto
desencadeantes dos sintomas.39
Tanto o método quanto a teoria da histeria e da neurose sofreram importantes
modificações com o desenvolvimento da psicanálise. O psiquismo, antes dividido e
classificado como normal ou como patológico, passa a ser pensado de maneira estratificada.
Ainda que contenha um núcleo patológico, inacessível à consciência, as camadas
correspondem a zonas de alteração da consciência. Ou seja, essas camadas corresponderiam a
zonas de transição caracterizadas por uma crescente resistência à lembrança à medida que se
aproxima do núcleo. Esse núcleo patológico abrigaria então representações que o enfermo não
pode se lembrar, seriam seus motivos escondidos, inconscientes e causadores de sua
enfermidade.
Essa mudança teórica implicaria numa mudança também de método, pois a terapia não
consistia mais em extirpar algo, senão ―dissolver a resistência e facilitar a circulação, o
caminho, por um âmbito antes bloqueado‖40. Freud utilizou junto com a livre associação, o
recurso da pressão sobre a testa que consistia na seguinte prática: o paciente deveria dizer a
ele livremente o que lhe ocorresse à mente, no entanto, na ausência de uma lembranças, ou de
pensamentos, a mão era colocada sobre sua testa e este deveria lhe dizer qualquer coisa que
viesse à mente, uma imagem, uma palavra, um sentimento, etc, assim que a mão fosse
38
BREUER, J. y FREUD, S. ―Sobre el mecanismo psíquico de fenômenos histéricos: comunicaión preliminar
(Breuer y Freud) (1893)‖ in Estudios sobre la histeria (1893-1895). Buenos Aires, Amorrortu Editores, 2003,
p. 33.
39
BREUER, J. y FREUD, S. ―Sobre el mecanismo psíquico de fenômenos histéricos: comunicaión preliminar
(Breuer y Freud) (1893)‖ in Estudios sobre la histeria (1893-1895). Buenos Aires, Amorrortu Editores, 2003,
p. 32.
40
FREUD, S. ―Sobre la psicoterapia de la histeria‖ in Estudios sobre la histeria (1893-1895). Buenos Aires,
Amorrortu Editores, 2003, p. 296.
105
retirada. A tarefa do psicanalista seria então a de seguir fios associativos das lembranças, bem
como dos esquecimentos, isto é daquilo que está escondido, inconsciente.
Diz Freud em Sobre a psicoterapia (1905): ―à raiz de minha participação na criação
desta terapia, me sinto pessoalmente obrigado a consagrá-la, a explorá-la e a edificar sua
técnica.‖41 Isso porque considerava a psicanálise, do ponto de vista da técnica, como uma
psicoterapia de efeitos penetrantes e altamente modificadores do enfermo. E do ponto de vista
teórico como a mais interessante por levar em consideração a gênese da trama dos fenômenos
patológicos.
Ainda nos primórdios da psicanálise, Freud aponta como um obstáculo importante à
análise, de origem externa, uma possível perturbação do vínculo entre o analista e o paciente.
O enfermo transfere à figura do médico, representações penosas que florescem do conteúdo
de sua análise, a transferência se daria assim por um enlace falso.42 É interessante notar que
Freud se refere à transferência como um enlace que não é verdadeiro, isto é, sentimentos de
amor, de ódio, de indiferença, etc. que não são verdadeiramente destinados ao analista. Muitas
vezes ele atua como um substituto do personagem principal da trama contada durante a
análise.
O tema da transferência é abordado principalmente ao descrever o caso Dora, com o
título de Fragmento de uma análise de um caso de histeria, em 1905 (ano de publicação).
Neste artigo Freud se pergunta ―o que seriam as transferências?‖ e responde que são
―reedições, recriações de moções e fantasias que, na medida em que a análise avança, não
podem senão serem despertadas e tornarem-se conscientes.‖43 Ou seja, o que é dito em
análise, não é lembrado como algo que se viveu no passado, mas como algo que é
reatualizado no vínculo com a figura do analista. Diz ele numa correspondência a Jung, em
1906:
A transferência fornece o estímulo necessário à compreensão e tradução da
linguagem do Inconsciente; na ausência dela o paciente deixa de fazer esforço ou
41
FREUD, S. ―Sobre psicoterapia (1905 [1904])‖ in Fragmento de análisis de um caso de histeria (Dora), Três
ensayos de teoria sexual y otras obras (1901-1905), Buenos Aires, Amorrortu Editores, 2003. p. 249.
42
FREUD, S. ―Sobre la psicoterapia de la histeria‖ in Estudios sobre la histeria ( 1893-1895). Buenos Aires,
Amorrortu Editores, 2003, p. 306.
43
FREUD, S. ―Fragmento de análisis de um caso de histeria (1905 [1901])‖ in Fragmento de análisis de um
caso de histeria (Dora), Três ensayos de teoria sexual y otras obras (1901-1905), Buenos Aires, Amorrortu
Editores, 2003. p. 101.
106
de ouvir quando o submetemos à nossa tradução. Poder-se-ia dizer que a cura é
essencialmente efetuada pelo amor44.
A transferência seria ela mesma uma prova de que as neuroses são determinadas pela
história de amor do indivíduo, ou seja, na figura do analista seriam depositadas e revividas as
tramas amorosas passadas. Por volta de 1912, Freud escreve uma série de textos relativos à
transferência, mas já havia constatado há bastante tempo, com o avanço da técnica
psicanalítica, que a transferência não era uma ―perturbação do vínculo‖, mas ao contrário,
algo absolutamente necessário, uma expressão psíquica de como são estabelecidos os vínculos
amorosos. Esclarece em Sobre a dinâmica da transferência (1912) que todo ser humano, de
maneira regular, adquire uma ―especificidade‖ para o exercício da vida amorosa. Tal
especificidade se deve tanto a uma disposição inata quanto às influências pelas quais passa na
infância. Isto diz respeito às pulsões, ou ainda, às representações afetivas que irá satisfazer.
Parte dessas representações torna-se inconsciente e é satisfeita pela via da fantasia, parte é
satisfeita pela realidade objetiva e a parte que não é conscientemente satisfeita tenta de algum
modo se satisfazer com outras ―representações-expectativa libidinosas‖ a cada nova pessoa
envolvida. A figura do analista seria justamente o alvo dos investimentos dessas
representações afetivas insatisfeitas, ou mesmo satisfeitas de modo fantasioso.45
Segundo Mezan, o que interessa saber é ―por que a transferência se presta tão bem às
finalidades da resistência? ‘‘ Sua resposta a essa pergunta é direta: ―os protótipos infantis
exercem uma atração sobre as vivências presentes; o tratamento vai liberar a libido
acorrentada a esses protótipos; quem opõe a resistência a ela são os protótipos mesmos, e a
transferência obedece às finalidades da resistência porque reproduz uma maneira infantil de
amar/odiar, ou seja, de investir em objetos‖46.
Desde o início, a psicanálise se depara com o fenômeno da resistência, seja esta de
aproximação ao núcleo patológico, seja, posteriormente, uma resistência à própria cura. A
transferência enquanto substituto, enquanto reedição dos vínculos amorosos, não passa
incólume. Como afirma Mezan, há uma reprodução do modo infantil de estabelecer uma
44
Mc GUIRE, W. ―As cartas de Freud/Jung‖ in A correspondência completa de Sigmund Freud e Carl G. Jung,
Trad. Leonardo Fróes e Eudoro M. de Souza. Rio de Janeiro, Imago, 1993, p. 51.
45
FREUD, S. ―Sobre la dinámica de la transferência (1912)‖ in Sobre um caso de paranoia descrito
autobiográficamente (Schreber) Trabajos sobre técnica psicoanalítica y otras obras (1911-1913). Buenos Aires,
Amorrortu Editores, 2003, p. 98.
46
MEZAN, R. ―A transferência em Freud: apontamentos para um debate‖ in Tempo de muda, São Paulo,
Companhia das Letras, 1998, p. 258
107
relação de amor/ódio no vínculo transferencial, que acaba por deixar livre a libido outrora
fixada.
A teorização sobre a libido será o alvo da maior disputa entre Freud e Jung. Em 1922,
Freud escreve dois artigos de enciclopédia: ―Psicanálise‖ e ―Teoria da libido‖. Neste último
condensa, recupera e parece finalizar sua antiga querela com Jung a respeito da natureza das
pulsões.
Libido é uma expressão tomada da doutrina da afetividade. Chamamos assim a
energia considerada como magnitude quantitativa de pulsões que tem a ver com
tudo o que pode ser sintetizado como amor47.
O amor a que Freud se refere é o amor cuja finalidade é a união sexual, ainda que
possa haver outros amores (filiais, de amizade), muito pouco é modificado de sua natureza
originária, o que leva a psicanálise a chamar as pulsões de amor como pulsões sexuais; e,
sobre pulsões elementares como estas, estariam edificados os eventos psíquicos. Ou ainda,
para Freud, esses últimos se edificam sobre um jogo de forças pulsionais. Daí um dos motivos
do conflito estabelecido com Jung.
A teoria junguiana da libido pressupõe uma libido primordial, única, tanto
―sexualizada [quanto] dessexualizada e, portanto, coincide essencialmente com a energia
anímica‖48 O monismo de Jung se contrapõe a um dualismo pulsional sustentado por Freud
ao longo da teoria. Para Freud haveria pulsões sexuais e pulsões relativas ao ego,
denominadas pulsões de autoconservação. Essa posição dual das pulsões e oposta à posição
de Jung é defendida numa carta a propósito da tradução francesa de suas conferências de
1910:
Eu havia declarado e repetido com a máxima clareza que estabeleço uma distinção
entre as pulsões egóicas e as pulsões sexuais, e, a libido designa apenas a energia
das primeiras, isto é, das pulsões sexuais. É Jung e não eu quem faz uma
47
FREUD, S. ―Psicologia de las masas e análisis del yo (1921)‖ in Más allá del principio del placer Psicología
de las massas y análisis del yo y otras obras (1920-1922), Buenos Aires, Amorrortu editores, 2003, p. 86.
48
FREUD, S. ―Teoria da libido‖ in Más allá del principio del placer Psicología de las massas y análisis del yo y
otras obras (1920-1922). Buenos Aires, Amorrortu editores, 2003, p. 250.
108
equivalência entre a libido como força pulsional de todas as operações psíquicas e
quem combate a natureza sexual da libido49.
Esse esclarecimento vem a propósito de uma confusão feita pela introdução da edição
francesa, que supunha uma unidade pulsional exclusivamente sexual. O que poderia dar vazão
―na imaginação dos críticos‖, à ideia de um pansexualismo que não existe em nenhuma das
concepções pulsionais50.
No entanto, a ameaça ao dualismo pulsional existe e, nas palavras de Monzani, tal
dualismo ―está evidentemente se esfumaçando‖, na medida em que ao formular o conceito de
narcisismo, o ―ego é também investido libidinalmente‖ [...] torna-se o ―grande reservatório da
libido‖51. Isso nos levaria a pensar ou ―imaginar‖, como nos disse Freud, em uma natureza
libidinal das pulsões de autoconservação e, portanto, a ter uma ideia pansexualista da
psicanálise como temia, mas a resolução desse impasse se deu ainda no âmbito da dualidade:
Nossa concepção foi desde o início dualista e o é de maneira ainda mais clara hoje,
quando deixamos de chamar os opostos pulsões egóicas e sexuais para dar-lhes o
nome de pulsão de vida e de morte52.
O contexto, melhor dizendo, o texto em que anuncia essa nova dualidade é justamente
o Para além do princípio do prazer (1920), onde irá mencionar uma insuficiência na oposição
entre pulsões do ego e pulsões sexuais. As pulsões de vida abarcariam então a primeira
oposição, isto é, seriam elas tanto as do ego quanto as sexuais, em contraposição à de morte.
A correspondência entre Freud e Jung
Em 1904, Jung não era alheio ao método psicanalítico, nem às teorias que Freud
desenvolvia. No início de 1906, quando começou a se corresponder com Freud, anuncia que
está tratando de um caso difícil, uma paciente histérica, proveniente da Rússia, de vinte anos,
com o método de seu interlocutor.
49
FREUD, S. ―La pertubación psicógena de la visión según el psicoanálisis (1910)‖ in Cinco conferenciassobre
psiconálisis, Un recuerdo infantil de Leonardo da Vinci y otras obras (1910). Buenos Aires, Amorrortu
editores, 2003, p. 212.
50
Idem.
51
MONZANI, L.R. Freud: o movimento de um pensamento. Campinas, Ed. da Unicamp, 1989, p. 146.
52
FREUD, S. ―Más allá del principio del placer (1920)‖ in Más allá del principio del placer Psicología de las
massas y análisis del yo y otras obras (1920-1922), Buenos Aires, Amorrortu editores, 2003 p. 51-52.
109
Em termos teóricos, já nessa época contesta uma causa exclusivamente sexual na
gênese da histeria, bem como supõe que o método analítico não se deva exclusivamente à abreação, mas também a relações (rapport) pessoais com o analista. Como vimos Freud já nos
falava da transferência desde 1893, mas é interessante notar que para Jung, a terapia dependa
de ―relações pessoais‖.53 A paciente acima referida é Sabina Spielrein que permaneceu
internada no hospital psiquiátrico até junho de 1905, mas seu tratamento com dr. Jung
provavelmente se estendeu até 1906.54
Numa carta à Freud datada de julho de 1907, Jung escreve sobre uma paciente
histérica que lhe conta um poema russo que não lhe sai da cabeça. Nesse poema a única
companhia do prisioneiro é um pássaro engaiolado, e, ―uma só vontade anima esse
prisioneiro: nalgum momento da vida, como feito mais nobre, conceder-lhe a liberdade a uma
criatura. Abre então a gaiola e deixa escapar o pássaro a que tanto se apega.‖ 55 Segundo a
paciente, sua maior vontade é libertar alguém por meio do método psicanalítico e que em seus
sonhos há uma condensação entre ela e Jung, terminando por admitir que sua maior vontade
seria ter um filho dele e que este pudesse realizar todos os seus desejos irrealizáveis. Trata-se
de Sabina Spielrein, sua paciente russa com quem, indica a Freud, em março de 1909, ter tido
um relacionamento amoroso, mas que agora lhe custava caro, uma vez que a sua antiga
paciente lhe armava um escândalo. Diz Jung: ―uma paciente que há anos tirei de uma neurose
incômoda, sem poupar esforços, traiu minha confiança e amizade da maneira mais
mortificante que se possa imaginar.‖56 Supõe que isso tenha acontecido porque lhe negara um
filho.
Ainda que numa carta em resposta, Freud mencione que haviam dito que ele tinha uma
amante, e, que desconfiara que isso fazia parte da neurose de quem havia se apresentado como tal,
Jung lhe responde que aquilo era ―chinês‖ para ele e que nunca teve, na verdade, uma amante e era o
mais inocente dos maridos. Além disso, também não supunha que tal boato tivesse sido espalhado pela
sua paciente.
53
MC GUIRE, W. ―As cartas de Freud/Jung‖ in A correspondência completa de Sigmund Freud e Carl G. Jung,
trad. Leonardo Fróes e Eudoro M. de Souza. Rio de Janeiro, Imago, 1993, p. 42.
54
CAROTENUTO, A. Diário de uma secreta simetria Sabina Spielrein entre Jung e Freud. Trad. Amélia R.
Coutinho, Rio de Janeiro, Paz e Terra, 1984, p. 26.
55
MC GUIRE, W. ―As cartas de Freud/Jung‖ in A correspondência completa de Sigmund Freud e Carl G. Jung,
Trad. Leonardo Fróes e Eudoro M. de Souza. Rio de Janeiro, Imago, 1993, p. 105.
56
MC GUIRE, W. ―As cartas de Freud/Jung‖ in A correspondência completa de Sigmund Freud e Carl G. Jung,
Trad. Leonardo Fróes e Eudoro M. de Souza. Rio de Janeiro, Imago, 1993, p. 233.
110
Por volta de junho de 1909, a trama entre Jung e Sabina parece se esclarecer quando Sabina
escreve a Freud, que por sua vez, acredita se tratar de uma ―faladeira e paranóica.‖
57
Mas, Jung
finalmente lhe conta quem é a autora da carta: uma paciente sua que já havia mencionado a Freud, e
com quem prolongara o relacionamento. Dedicou a Sabina uma grande amizade, porém pareceu-lhe
oportuno romper com ela no momento em que ―as coisas já haviam tomado o rumo desejado‖58. No
entanto, tal rompimento não era exatamente desejado pelos dois, e, somente após uma conversa
―muito decente‖ com ela, faz o pedido a Freud que este escrevesse à senhorita Spielrein dando notícias
que havia sido informado de todo o assunto. Diz na sua carta a Freud:
Embora sem me deixar levar a um remorso infundado, deploro os pecados que
cometi, pois em grande parte, posso ser incriminado pelas extravagantes esperanças
de minha ex-paciente. Com efeito, em obediência a meu princípio fundamental de
levar todas as pessoas a sério, até o limite extremo, discuti com ela o problema do
filho, imaginando que falava em termos teóricos quando na realidade Eros se
agitava sorrateiramente nos bastidores59.
O tom dessa carta era de confissão a um pai, revela que a situação havia ficado tão
tensa que chegara a estabelecer relações sexuais com a moça, e, que se defendia de um modo
que não encontrava justificativa moral. Ainda que estivesse se confessando, parecia estar
sendo pressionado por Sabina a contar esse romance a Freud, declaradamente sua ―imago
paterna‖.
Até essa data o relacionamento de Freud e Jung era de devoção e confiança. A
resposta de Freud a esse caso foi de inteira compreensão. Contudo, nesse mesmo ano, numa
carta a Freud, Jung se compara a Fliess e gratuitamente lhe diz que ―nada parecido [entre eles]
irá acontecer‖60. Subentendia-se assim que o fim do romance com Sabina já prenunciava o
final da amizade entre Jung e Freud, anunciada entre dezembro de 1912 e janeiro de 1913:
Caro prof. Freud, Posso dizer-lhe algumas palavras a sério? Admito a minha
ambivalência dos meus sentimentos com relação ao senhor [...] Eu, mostraria,
contudo, que sua técnica de tratar discípulos como pacientes é uma asneira. [...]
57
MC GUIRE, W. ―As cartas de Freud/Jung‖ in A correspondência completa de Sigmund Freud e Carl G. Jung,
Trad. Leonardo Fróes e Eudoro M. de Souza. Rio de Janeiro, Imago, 1993, p. 250.
58
MC GUIRE, W. ―As cartas de Freud/Jung‖ in A correspondência completa de Sigmund Freud e Carl G. Jung,
Trad. Leonardo Fróes e Eudoro M. de Souza. Rio de Janeiro, Imago, 1993, p 252.
59
MC GUIRE, W. ―As cartas de Freud/Jung‖ in A correspondência completa de Sigmund Freud e Carl G. Jung,
Trad. Leonardo Fróes e Eudoro M. de Souza. Rio de Janeiro, Imago, 1993, p. 259.
60
GAY, P. Freud: a life for our time. New York, The Anchor books, 1988, p. 206.
111
Não sou de nenhuma maneira neurótico! Se o senhor se livrasse dos seus
complexos e parasse de bancar o pai de seus filhos e, ao invés de visar
continuamente seus pontos fracos eu me corrigiria e erradicaria num só golpe o
vício de hesitar em relação ao senhor. [...] Continuarei apoiando o senhor
publicamente, enquanto mantenho minhas própria opiniões, mas, em caráter
privado vou começar a dizer o que realmente penso do senhor.
Caro Presidente61, Caro doutor, Só posso responder com detalhes a um ponto de
sua carta anterior. A sua alegação de que trato meus seguidores como pacientes é
falsa. Em Viena sou censurado pelo exato oposto [...] De outra forma sua carta não
pode ser respondida. Ela cria uma situação que será difícil tratar numa conversa
pessoal e totalmente impossível por correspondência. É uma convenção entre nós,
analistas, a de que nenhum de nós precisa sentir-se envergonhado por sua própria
dose de neurose. Mas alguém que, enquanto se comporta anormalmente, fica
gritando que é normal, dá ensejo à suspeita de que lhe falta compreensão de sua
doença. Portanto, proponho que abandonemos inteiramente nossas relações
pessoais.
Um método perigoso
O filme é ambientado entre 1904 e 1913, anos em que Freud e Jung se conheceram, se
admiraram e se odiaram até que finalmente a amizade foi rompida. A correspondência entre
os dois perdurou até 1923, ainda que em tom estritamente profissional.
Como dissemos no início, o filme começa com um clichê psicanalítico. Uma histérica,
Sabina Spielrein, (Keyra Knightley) é conduzida a uma clínica psiquiátrica na Suíça, e, como
muitas vezes é mostrado, essa histérica grita, tem acessos de riso, se contorce e tenta se
libertar. No entanto, aceita o tratamento proposto por Jung (Michael Fassbinder) e supõe que
seus sintomas teriam iniciado a partir de humilhações sofridas na infância, pois seu pai
obrigava-a a beijar sua mão depois de lhe bater.
O roteiro do filme, feito por Christopher Hamptom baseia-se num livro de Aldo
Carotenuto, um psicanalista junguiano que descobriu em Genebra, no ano de 1977, uma série
de cartas trocadas entre Jung e Sabina Spielrein e um diário bastante fragmentado que
pertenciam a Sabina. Ou seja, os fatos contados no filme são históricos, mas, como diz
61
Até 1914 Jung foi presidente da Associação internacional de psicanálise.
112
Michael Wood, ―não é um filme histórico. É uma fantasia sobre autoridade e desejo, com
nomes simbólicos forjados para papéis chaves‖62.
Ainda que não seja um filme biográfico, mas apenas um filme com dados históricos, é
mais uma vez a psicanálise que é posta em questão ora como tratamento, ora como teoria que
carece ainda de validação.
Jung inicia um relacionamento com Sabina, ao que parece por influência de um outro
paciente seu, Otto Gross (Vincent Cassel), um paciente psiquiatra, que se coloca muitas vezes
num lugar de conselheiro sexual. Gross escala os muros do hospital psiquiátrico e foge
deixando a Jung uma carta dizendo que estava curado e saudável graças a ele, pede, no
entanto, que ele diga ao pai que estava morto.
A figura de Jung enquanto analista nos é mostrada como bastante reticente. Envolvese pessoalmente com seus dois pacientes difíceis, cede aos apelos transferenciais e se coloca
de fato no lugar do pai de Sabina, ao satisfazer-lhe com injúrias corporais, bem como à
provocação de Gross, que o considerava sexualmente reprimido.
Com relação à Sabina, não só houve um problema contratransferencial, como Freud
chega a mencionar em 1915, em Observações sobre o amor de transferência63, a ser
ultrapassado, mas como uma inversão no uso de informações obtidas pelo processo analítico,
isto é, Jung não teve conhecimento das fantasias contadas por Sabina tomando o chá da tarde,
ao contrário, foi uma descoberta da própria paciente que ela ficava excitada quando apanhava
do pai em sua infância. Mesmo nos isentando do julgamento se Jung estava correto ou não em
suas relações amorosas, o filme acaba por nos mostrar que a cura e a liberdade proporcionada
por esta só são possíveis quando há um envolvimento pessoal com o analista.
Além disso, do ponto de vista teórico, o temor de Freud de acusação da psicanálise ser
tomada como uma teoria pansexualista parece mais uma vez se concretizar. Freud defende a
idéia da sexualidade como fator etiológico na gênese da histeria, diferentemente de Jung que
considera o fator sexual como não sendo o único. Pela sequência de filmagem, nas discussões
teóricas, Freud é muito mais razoável e cauteloso com a incipiente ciência, mas confirma-se o
fator sexual na apresentação dos casos (de Sabina, do próprio Jung, ou mesmo em seu sonho
do cavalo que é inibido por um cavalo menor, mas que só consegue parar na presença do
cavaleiro), o que não seria um problema se o romance entre Sabina e Jung não fosse a estrela
62
WOOD, M. ―At the movies‖ in London Review of books, v. 34, no 5, 2012.
Para o médico significa um esclarecimento valioso e uma boa prevenção para uma possível contratransferência
que se prepara nele in Sobre um caso de paranoia descrito autobiográficamente (Schreber) Trabajos sobre
técnica psicoanalítica y otras obras (1911-1913). Buenos Aires, Amorrortu Editores, 2003, p. 164.
63
113
do filme. Ou seja, sexualidade, fator sexual e relação sexual tornam-se a mesma coisa. Outra
possibilidade é de que a cura se deve mais ao envolvimento sexual, do que ao tratamento
analítico.
E, para a psicanálise, ―a sexualidade circulante no campo da representação é que estaria em
questão na produção dos sintomas das psiconeuroses‖.64 As enfermidades ocorrem em função da
repressão, ou dos ―diques anímicos‖, e, uma vez erigida a barreira da repressão, há uma
impossibilidade de satisfação plena da pulsão sexual, que por sua vez, mediante um rodeio,
busca uma satisfação substitutiva na formação do sintoma patológico.
Apesar de não ser um filme histórico, conta com dados históricos, alguns deles
equivocados, como, por exemplo, uma certa hesitação por parte de Freud com o fato de Jung
não ser judeu; ao contrário, essa era justamente uma de suas virtudes, pois era a esperança de
que a psicanálise fosse reconhecida como uma ciência e não como uma ―ciência judaica‖.
Outro seria o encontro que Freud teve com Sabina e confiar-lhe alguns pacientes seus durante
a estadia dela em Viena.
Desde o término do relacionamento entre Freud e Jung, Jung fica confinado, se retrai
em suas atividades e confessa a Sabina, no final do filme que tem tido um sonho catastrófico:
uma inundação que aparece como uma avalanche e vai arrastando casas e corpos que de
repente se torna sangue, ―o sangue da Europa‖. Ao ser questionado sobre o significado, não
tinha a menor ideia, a não ser o que estava para acontecer. Era esse um sonho premonitório
como a queimação gástrica no próprio Jung, que precede o estalo da calefação durante uma
conversa com Freud, ou estaria esse sonho dentro do contexto de uma Europa em conflito
prestes a entrar na primeira guerra Mundial?
Freud morreu de câncer, no exílio em Londres, em 1939. Sabina Spielrein tornou-se
analista, ―treinou‖ muitos analistas, voltou para sua terra natal para exercer a medicina e, em
1941, foi fuzilada juntamente com as filhas, pelos alemães. Otto Gross morreu de fome. E
Jung morreu tranquilamente, em 1961, depois de ter se tornado o psicólogo mais importante
do mundo. Ironia, sarcasmo, uma retratação com a figura de Jung proposta pelo filme, ou uma
crença no próprio modo de contar a história?
64
BIRMAN, J. A constituição da clínica psicanalítica in Freud e a interpretação Psicanalítica. Rio de Janeiro,
Relume-Dumará, 1991,p. 144-5.
114
Referências Bibliográficas
BREUER, J. y Freud, S. Estudios sobre la histeria (1893-1895). V.2. Buenos Aires: Amorrortu
Editores, 2003.
FREUD, S. Fragmento de análisis de um caso de histeria (Dora), Três ensayos de teoria sexual y
otras obras (1901-1905). v.7. Buenos Aires: Amorrortu Editores, 2003.
_______. Cinco conferencias sobre psicoanálisis, Un recuerdo infantil de Leonardo da Vinci y otras
obras (1910). v. 11. Buenos Aires: Amorrortu Editores, 2003.
_______. Sobre um caso de paranoia descrito autobiográficamente (Schreber) Trabajos sobre técnica
psicoanalítica y otras obras (1911-1913). v.12. Buenos Aires: Amorrortu Editores, 2003.
________. Más allá del principio de placer, Psicologia de las masas y análisis del yo y otras obras
(1920-1922). v.18. Buenos Aires: Amorrortu Editores, 2003.
BIRMAN, J. Freud e a interpretação Psicanalítica. v. 1. Rio de Janeiro: Relume-Dumará, 1991.
CAROTENUTO, A. Diário de uma secreta simetria Sabina Spielrein entre Jung e Freud. Trad.
Amélia R. Coutinho. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1984.
GAY, P. Freud: a life for our time. New York: The Anchor books, 1988.
MC GUIRE, W. A correspondência completa de Sigmund Freud e Carl G. Jung. Trad. Leonardo
Fróes e Eudoro M. de Souza. Rio de Janeiro: Imago, 1993.
MEZAN, R. Tempo de Muda: ensaios de psicanálise. São Paulo, Companhia das Letras, 1998.
MONZANI, L. R. Freud: o movimento de um pensamento. Campinas: Ed. UNICAMP, 1989.
WOOD, M. London Review of books. v. 34, no 5, 8 march 2012. London.
115
O monstro, o cinema e o medo ao estranho
Verônica Guimarães Brandão65
Resumo
Revelamos comportamentos, conhecimentos, criamos imagens em movimento para transmitirmos
medos,obsessões, fobias, costumes estranhos que, às vezes, revelam um mal-estar cultural imenso em
nós. Há gerações e gerações, aprendemos a temer os monstros que nós mesmos engendramos. Criado a
nossa barbárie e semelhança, o monstro é o que é a sociedade, quase como nós, por todos os lados, e
na tela o monstro age conforme a sociedade o molda.
Palavras-chave: Monstro. Medo. Cinema. Horror. Psicanálise.
The monster, the cinema and the fear of the stranger
Abstract
Reveal behaviors, knowledge, create moving images to convey fears, obsessions, phobias, strange
customs that sometimes reveal an immense cultural malaise in us. For generations and generations
have learned to fear the monsters that we ourselves engender. Created our barbarity and likeness, the
monster is what society is, almost like us, on all sides, and the monster on the screen acts as the
society shapes.
Keywords: Monster. Fear. Cinema. Horror. Psychoanalysis.
As representações das monstruosidades no campo cultural nos diversos setores do
conhecimento (ciências da religião, mitologia, filosofia, história, antropologia, psicologia,
arte, comunicação, entre outras) têm como pressuposto a ordenação de um conjunto de
estratégias utilizadas para suscitar um determinado conjunto de efeitos nos seus receptores.
Em obras religiosas, a representação da monstruosidade é utilizada para manter a ordem, a
moral, a organização interna através do horror; através do dualismo, separando aquilo que no
concreto vem junto (bondade, maldade). Já na mitologia, a dualidade coloca ―e‖, onde o
dualismo colocou ―ou‖: bem e mal, belo e feio, verdadeiro e falso, ordem e desordem,
realidade e ficção. O engendramento de monstros começou na dualidade, pois os monstros;
como descortina a filosofia, a psicologia, a antropologia, são reflexos do humano; são parte
65
Produtora Audiovisual pela Universidade Estadual de Goiás, Mestranda no Programa de Pós-Graduação pela
Faculdade de Comunicação da Universidade de Brasília, Linha de Imagem e Som. Pesquisadora da ―Estética da
Monstruosidade‖. Contato: [email protected]
116
do homo sapiens (racional, realista), são seus demens (produtor de mitos, magias, fantasmas).
O saber cultural se apoia na engenhosidade da unidualidade de um homem complexo, de um
homem que tece seus pensamentos em devaneios, de um ser metafísico e físico que deseja
construir monstros como remissão constante em um futuro inquietante e desconhecido.
Transmitimos
comportamentos,
conhecimentos,
que
tentamos
explicar
racionalmente. Esquecemos, porém, que transmitimos medos, obsessões, fobias, costumes
estranhos que, às vezes, revelam um mal-estar cultural imenso em nós. ―O mundo‖, escreveu
o poeta Rainer Maria Rilke (1875- 1956), ―é grande, mas em nós ele é profundo como o
mar‖66.
Há gerações e gerações, aprendemos a temer os monstros. ―O monstro, em sua
irrupção, era considerado como signo anunciador e precursor de acontecimentos destinados,
por decisão transcendente, a revolucionar a ordem do mundo e da História‖ (NAZÁRIO:
1998, página 43). Vivemos e sentimos a dimensão trágica do encontro com a alteridade. O
outro me é estranho, pois não é meu reflexo. O encontro deve ser inesperado, como o
encontro de um monstro com um humano. ―Se não esperas o inesperado, não o encontrarás‖
(HERÁCLITO apud MORIN: 2001, página 50). Para Freud (1856-1939), em O mal-estar na
cultura (2010), a maior fonte de nossos sofrimentos se encontra em nossos relacionamentos.
Mas sem este outro, um inferno corporificado, não haveria mundo humano. Todo desejo
nasce de uma falta, de um sofrimento. Se esperamos ansiosos por mais uma representação da
monstruosidade, é porque sentimos falta de olhar curiosamente a alteridade, fato ou estado de
ser outro; definição do sujeito em relação a outro.
O estranho é um não-eu, uma exterioridade absoluta; assim, ele "não hesitará em me
prejudicar, caso tenha oportunidade" (FREUD: 1976, página 131). Quando este estranho não
nos prejudica, começamos, assim, a amá-lo como a nós mesmos, amando o nosso próximo
como ele nos ama. A perseguição movida pelos monstros é uma perseguição interior.
Devemos amar o nosso próximo como a nós mesmo, pois é o outro que nos socorrerá no
desamparo estrutural de nosso ser. As prostitutas, os loucos, os pobres, os marginalizados, os
homossexuais, os ladrões, eram considerados (alguns ainda o são) monstros que deveriam ser
repudiados. O filósofo alemão Friedrich Nietzsche (1844-1900), em O crepúsculo dos ídolos,
afirma que ―os antropólogos entre os criminalistas dizem que o criminoso típico é feio:
monstrum in fronte, monstrum in animo [monstro na face, monstro na alma]‖ (2006, página
07). Fomos educados a repudiar o que é diferente, feio. Porém, quando nos entendemos por
66
Rilke apud Campbell: 2006, página191.
117
seres pensantes, tomamos noção que as belezas singulares nunca estão livres da noção de
escória e de impureza. O feio torna-se parte do belo, o feio existe ao lado do belo. ―O belo
tem apenas um tipo, o feio tem mil (...). Aquilo que chamamos de feio é o detalhe de um
grande todo que nos escapa e que se harmoniza, não com o homem apenas, mas com a criação
inteira‖ (HUGO: 1827 apud ECO: 2007, página 281).
A monstruosidade não nós é estranha. Alguns nem são feios por defeitos da natureza,
mas por desarmonia das feições. Sartre escreveu sobre sua infância em As Palavras (1964),
narrando que o espelho lhe prestava grande auxílio, pois o escritor existencialista se
encarregava de informar ao espelho que o pequeno Sartre era um monstro: ―O espelho me
ensinara o que eu sabia desde sempre: eu era horrivelmente natural. Nunca mais me refiz‖
(SARTRE: 1964 apud ECO: 2007, página 300). Por qual motivo o monstro é útil? Porque é
na sua fealdade que encontramos o prazer. ―Para certos espíritos mais curiosos e entediados, o
gozo da feiúra, provém de um sentimento ainda mais misterioso, que é a sede do
desconhecido e gosto do horrível‖ (BAUDELAIRE: 1846 apud ECO: 2007, página 352). E é
esta sede do desconhecido que faz a representação da monstruosidade persistir e existir por
séculos. Temos sede, mas também medo do desconhecido, medo do estranho67, do monstro,
do inquietante. Para H. P. Lovecraft, escritor norte-americano de fantasia e horror, ―a emoção
mais forte e mais antiga do homem é o medo, e a espécie mais forte e mais antiga de medo é o
medo do desconhecido‖. O que nos era exterior, que acontecia ao nosso redor, era assimilado
pelos povos em formas de representações monstruosas68. Se haviam guerras, depressões,
falências, conflitos, perseguições, lá estava o monstro representando nossos medos. Criado a
nossa barbárie e semelhança, o mostro era o que era a sociedade, quase como nós, por todos
os lados. Os monstros rememoram nossa animalidade, por isso nos fascinam. Nascem como
corporificação de certo momento cultural de uma época69, de um sentimento e de um lugar.
Por que sentimos medo dos monstros? Os seres humanos já foram ―superprimatas
num planeta minúsculo‖ (MENCKEN apud HOEBEL, 2006, página 79), foram presas, mas
67
Freud, em O mal estar na cultura, usa a palavra alemã Unheimlich (estranho, sinistro) como sendo algo
procedente da psique humana do individuo e que é, segundo definição do filosofo idealista Schelling e aprovada
por Freud, ―tudo aquilo que deveria ter permanecido em segredo e oculto veio à luz‖ (2010: página 25).
68
Tais representações, possivelmente, seriam criadas e transmitidas oralmente, ritualmente (incorporação em
seres inumanos), em forma de desenhos em cavernas, pinturas, esculturas, literaturas, fotografias, representações
imagéticas, entre outras.
69
Compartilho a definição de Jeffrey Jerome Cohen nas notas de seu artigo ―A cultura dos monstros: sete teses‖
(2000, página 55) sobre a palavra Zeitgeist usada como ‗fantasma do tempo‘, espírito incorpóreo que
estranhamente incorpora um ―lugar‖ (ou série de lugares, como a encruzilhada que é um ponto de movimento em
direção a um incerto outro lugar). Diferentes culturas têm diferentes Zeitgeist, como têm diferentes eras e
diferentes localizações geográficas.
118
com a curiosidade e o desenvolvimento cerebral70 tornaram-se homo sapiens, seres pensantes.
No período anterior à escrita71, a natureza dominava as ações dos hominídeos. Feras famintas
transformavam homens primitivos em carne72, alimento. Passamos de antropóides dominados
pelo instinto a seres humanos adaptáveis culturalmente. O desenvolvimento humano foi
―biológico e cultural‖ (HOEBEL: 2006, página 77). Tinham fome, caçavam. Tinham frio,
esfolavam. Produzir fogo, produzir armas, aprimorar artigos de caça, pintar em rochas; arte
rupestre, pintar o corpo e o rosto; celebrar, invocar ancestrais, amedrontar espíritos ruins,
monstros, nossos medos.
A cultura está apinhada de animais que não tem equivalentes exatos na natureza.
Uma fauna de monstros, prodígios e maravilhas imensa e de mentirinha
serpenteiam e enxameia e assalta todas as artes, como se o mundo natural fosse de
certa forma deficiente. É preciso perguntar: qual é o fim dessas criaturas
imaginárias? Elas são realmente substitutas para animais comuns ou tem seus
próprios propósitos? O que são elas, de onde vêm e o que fazem aqui? (...) Nosso
medo noturno de monstros, provavelmente tem suas origens nos princípios da
evolução de nossos ancestrais primatas, cujas tribos foram desbastadas por horrores
cujas sombras continuam a elicitar nossos gritos de macacos em teatros escuros.
(SHEPARD: 1997, página 275 apud QUAMMEN: 2007, página 238).
A repugnância e o encantamento que os monstros exercem atravessam séculos. Eles
são a própria representação dos medos e perigos presentes na experiência humana, em nosso
processo evolutivo. Todos nós expurgamos nossos medos e, ás vezes, eles ganham forma
iconográfica.
Somos, a todo o momento, bombardeados com imagens de monstros. Vampiros,
Lobisomens, Zumbis, Bruxas, Titãs, e toda uma sorte de demônios que saem das sombras
para dominar pessoas, casas e objetos. Desde a tenra infância, somos moralizados pela figura
do monstro: boi da cara-preta, bicho-papão, monstro do armário, fantasma que mora debaixo
da cama, homem do saco, saci. Todos estes foram citados em algum momento de nossas
vidas, apenas para nos fazer dormir na hora estipulada pelos pais; comer verduras; tomar
banho ou somente para nos amedrontar. Com o tempo, a figura do monstro foi perdendo lugar
para a violência urbana. Meninos de rua, assassinos, pedófilos, pais que jogam filhos da janela
70
O cientista britânico Robert Winston (1940) realizou pesquisa, em sua obra Instinto Humano, sobre a
curiosidade humana e o cérebro em desenvolvimento (2006: página 78-115).
71
Período Pré-Histórico, aproximadamente 4000 a. C.. Tomemos como ponto de partida a Era Terciária (50
milhões de anos) e o aparecimento dos hominídeos (Australopithecus).
72
Na contracapa de Monstro de Deus: feras predadoras: história, ciência e mito (2007), do cientista norteamericano David Quammen (1948), encontramos a seguinte afirmação: ―Uma coisa é estar morto, outra coisa é
ser transformado em carne. A idéia de sermos devorados evoca em nós terror profundo‖.
119
do apartamento, ladrões e os noticiários que a todo o momento, aterrorizam a sociedade. Em
contraparte, as artes souberam aproveitar contextos vários, em diferentes épocas para,
metaforicamente, criar monstros com singularidades humanas (e vice-versa).
Por medo do desconhecido construímos sociedades com muralhas e fronteiras,
nostálgicos, contamos histórias para não esquecer sua pálida presença. As trevas,
os seres monstruosos, os fantasmas, os cemitérios, a magia, os bosques
impenetráveis e (a partir do século XVIII) as ruínas e os mistérios da ciência são os
elementos principais das histórias de horror. Eles surgem assim que a noite cai: na
Mesopotâmia, no Egito, na Índia, no Japão, na China, na Grécia. Em Roma,
curiosamente, o horror se confunde com o que é proibido ou vulgar. Quando o pai
de Sêneca pede ao escritor Albúcio Silo que enumere alguns temas "horríveis"
(sordissima), este responde: "Rinocerontes, latrinas e esponjas, e prossegue:
"animais domésticos, pessoas adulteras, fontes de alimento, a morte e os jardins‖.
(MANGUEL: 2009, página 09).
Por qual razão a cultura contemporânea reproduz figuras monstruosas com novas
contextualizações e novas roupagens é nosso maior interesse; assim como entender: vampiros
vegetarianos, lobisomens sem a carga animalesca, zumbis ágeis que cozinham o cérebro antes
de saborear, medusas que entendem de moda, bruxas adolescentes que trabalham para se
sustentar, sereias deprimidas e a noiva cadáver que desiste do casamento. Hoje vamos aos
cinemas encarar o sofrimento dos monstros para saber que, em algum momento, também
estamos sós, sofrendo e, talvez, os monstros possam nos mostrar como agir em meio à
truculência desse mundo tão volúvel.
[O espectador] vai para ver, sentir e se identificar. Durante aquele breve intervalo
de tempo, é transportado para além das limitações de seu ambiente; passeia pelas
ruas de Paris; vê o dia nascer com o caubói do faroeste; mergulha nas profundezas
da terra com mineiros cobertos de cinzas, ou se lança ao mar com marinheiros e
pescadores. Sente, além disso, a emoção de solidarizar-se com os pobres e
necessitados... O artista cinematográfico é capaz de tocar cada uma das teclas do
grande órgão da humanidade (FITCH: 1910 apud STAM: 2006, página 40).
O cinema de horror funciona como ―catarse programada‖, purga nossos medos em
segurança. Para Luiz Nazário, em entrevista concedida a revista Superinteressante, ―o
monstro foi banalizado pela indústria cultural e deixou de (...) ser índice de transgressão, de
porta-voz da diferença. O monstro já foi uma metáfora do outsider; hoje é um objeto de
consumo‖ (NAZÁRIO, 2009).
No horror pós-moderno desintegram-se os valores, monstros e homens se
confundem. Mas por que vamos ao cinema olhar os monstros? Às vezes somos incautos e, por
120
isso, entramos na casa do diabo, assim como sentamos para ver um filme de horror e
aguardamos a sua revelação. A espera, porém, demora, eterniza-se. Porque ele apenas se
mostra quando (nos) olhamos no espelho, ou vemos um monstro humanizado na tela.
(...) também vamos ao cinema por outras razões: para confirmarmos (ou
questionarmos) nossos preconceitos, para nos identificarmos com as personagens,
para sentirmos emoções e ―efeitos subjetivos‖ intensos, para imaginarmos uma
outra vida, para experimentarmos prazeres cinestésicos, para sentirmos glamour,
erotismo, carinho e paixão (STAM, 2006, p.267).
Somos seres desviantes de qualquer norma convencionada. Segundo a teologia cristã,
começamos com o pecado e não paramos de pecar. Fomos e somos monstros. A simples
tentativa de eliminar um monstro não resolve qualquer problema.
A estranheza do que não é familiar é a chave para entender tudo aquilo que nos
assusta e também nos fascina. Stephenie Meyer, autora da saga Crepúsculo (2005), no qual
vampiros vegetarianos e lobisomens carentes passaram de monstros/vilões a queridinhos das
adolescentes, cita por qual motivo os monstros deixaram de ser perigosos sem perder o
charme sobrenatural: ―Eles são atraentes porque fazem aflorar aspectos ocultos do desejo e do
instinto. São fascinantes porque geram medo e desejo a um só tempo‖
73
. Para o repórter da
revista Época, Danilo Venticinque, a história de amor entre vampiros, lobisomens e humanos
parece não desagradar os pais. ―Para quem via as filhas se descabelar por astros pop
imprevisíveis e atores rebeldes, os monstros também viraram heróis‖ (2009).
Filmes de horror são aqueles que pretendem provocar a sensação de medo,
sentimento que proporciona um estado de alerta. As histórias de horror/terror sempre fizeram
parte do imaginário coletivo. Segundo o minidicionário da língua portuguesa, as definições de
monstro e monstruoso são:
Monstro (sm). 1. Corpo organizado que apresenta, parcial ou totalmente,
conformação anômala. 2. Ser, mitológico ou lendário, de conformação
extravagante. 3. Individuo que causa pasmo. 4. Pessoa cruel ou horrenda.
Monstruoso (ô) adj. 1. Que tem conformação de monstro. 2. Enorme,
extraordinário. 3. Que assombra pela grande perversidade. 4. Feio em demasia.
(FERREIRA: 2009, página 470).
O medo, a fonte nos filmes de terror e horror, pode provocar reações físicas, como:
descarga de adrenalina, aceleração cardíaca, tremor, atenção exagerada a tudo que ocorre ao
73
MEYER apud VENTICINQUE: 2009.
121
redor, depressão, pânico, entre outros sintomas. Mas o medo proporcionado por um filme de
terror é o mesmo proporcionado por um filme de horror?
Duas palavras que parecem sinônimas, mas não são, porque, linguisticamente, não
se justifica a existência de dois termos para um conceito idêntico [...]. Falamos em
"filme de terror", mas seria mais apropriado "filme de horror". A diferença entre
essas duas palavras está no sujeito que, ao assistir ao filme, se horroriza [...]. O
verbo horrorizar normalmente é reflexivo: horrorizar-se. Para funcionar, o verbo
horrorizar necessita da colaboração do horrorizado. No caso de horrorizar-se, eu
me horrorizo na medida em que estou suscetível a sentir o horror. O terror é outra
história. Dificilmente alguém diz "aterrorizei-me vendo aquelas imagens", pois o
terror é produzido por outro sobre mim, e quem aterroriza (e isso é horrível e
terrível!) não está aterrorizado nem horrorizado consigo mesmo. O terror vem de
fora. O horror vem de dentro. Horror é um sentimento de receio, de medo, de pavor
perante algo ameaçador, odioso e perverso. Em sua origem latina, horrere
significava ficar com os cabelos em pé. O horripilante, no horror, é essa sensação
de um frio no estômago, na espinha, o suor frio, o frio da morte (PERISSÉ: 2001).
Conforme Carroll (1999: página 13), ―o horror tornou-se um artigo básico em meio
às formas artísticas contemporâneas, populares ou não‖. O cinema de horror sempre abusou
do estado de alerta para fascinar suas vitimas, para avisá-las que alguém sabe o que foi feito
no verão passado, para visitá-las nos pesadelos ou em uma sexta-feira treze, para avisar por
telefone que alguém quer vingança, ou simplesmente, para que você (vitima/público) aperte o
braço da pessoa sentada ao lado.
O cinema de horror forma uma ligação entre nossa fantasia sobre o medo e nossos
verdadeiros medos. Os filmes de terror nos deixam desconfortáveis e quanto mais
desconfortáveis, mais fascinados. O cinema de horror tem necessário papel de purgar nossos
medos e atirá-los fora, de elevar a produção de adrenalina, dando a entender que seriamos
capazes de lutar pela vida. O cinema horror é sim, a favor da vida.
O gênero horror tem a capacidade de provocar certo afeto (affect) [...]. Os membros
do gênero horror serão identificados como narrativas e/ou imagens (no caso das
belas-artes, do cinema etc.) que têm como base provocar afeto de horror no
público. (CARROLLL: 1999, página.28).
O horror analisado nesta pesquisa é o ―horror artístico‖. Uma forma de ―gênero que
atravessa várias formas artísticas e vários tipos de mídia‖ (CARROLL: 1999, página 27). O
horror como elemento artístico remonta à Idade Média, quando proliferou a meditação sobre a
122
morte perante uma caveira, que despertava pensamentos moralizadores sobre a variedade da
curta existência terrestre (SOUSA: 1979).
O horror, a fantasia, o medo, não se contentaram em ficar apenas na literatura. No
campo audiovisual, tais expressões ganharam representação cinematográfica, ganharam olhos
e corações em salas escuras e, figuras como, vampiros, zumbis, marcianos, lobisomens,
bruxas, demônios, seres criados em laboratórios, feras gigantescas, pessoas deformadas e os
mais diversos monstros, passaram a habitar o imaginário social.
Utilizando um cinematógrafo (máquina de filmar e projetor de cinema), inventado
em 1892 por Lèon Bouly, os irmãos Louis e Auguste Lumière deram o primeiro susto no
público (em formação) da sétima arte. Em 28 de setembro de 1895, na comuna francesa de La
Ciotat, sudeste da França, surge à provável primeira sala de cinema do mundo. Mas foi em
Paris, no dia 28 de dezembro de 1895, que os irmãos Lumière, no subterrâneo do Grand Café,
realizaram a primeira exibição pública e paga de cinema, com uma série de dez filmes, com
duração de 40 a 50 segundos cada, dentre os quais estava o filme que daria o primeiro susto
no público - "A chegada do trem à Estação Ciotat". Nesta sessão estava presente aquele que é
considerado ―o pai dos efeitos especiais‖- Georges Méliès. Criador de mundos fantásticos,
Méliès foi um dos primeiros cineastas a dar vida aos primeiros monstros do cinema. Mas ao
contrário dos irmãos Lumiére, Méliès não assustou o grande público, pelo contrário, seus
monstros eram mais cômicos que horripilantes.
O cinema, maior expoente da arte que se estabeleceu e marcou o século XX,
começou com sustos, correria e cadeiras derrubadas na plateia. O homem da sétima arte viu
que aquilo era bom e resolveu explorar o reino desconfortável do medo, este sentimento que
causa fascínio por ser uma questão cultural que inspira apreensão, pois estamos
constantemente diante da morte ou perdidos em nossos pesadelos.
[...] O homem sempre abominou a morte e, provavelmente, sempre a repelirá. Do
ponto de vista psiquiátrico, isto é bastante compreensível e talvez se explique
melhor pela noção básica de que, em nosso inconsciente a morte nunca é possível
quando se trata de nós mesmos. É inconcebível para o inconsciente imaginar um
fim real para nossa vida na terra e, se a vida tiver um fim, este será atribuído a uma
intervenção maligna fora de nosso alcance... A morte em si está ligada a uma ação
má, a um acontecimento medonho, a algo que em si clama por recompensa ou
castigo (KUBLER-ROSS: 1994, página 13).
Parece estranho que quanto mais desconfortáveis pareçamos diante de um filme de
horror/terror, melhor será nossa opinião sobre aquele filme. Mas o coração acelerado não é
123
sinônimo de filme de terror/horror, pois com o passar do século XX e começo do século XXI,
observaremos uma mudança de comportamento, de recepção, de afeto do público, diante de
um filme de horror, com um monstro na tela. O que era criado para assustar, não assusta mais.
Os monstros, conforme veremos, não serão mais seres disformes, anormais, estrangeiros, mal
quistos e mal vistos, mas tornar-se-ão queridinhos do cinema.
O primeiro filme do gênero horror feito, segundo a Enciclopédia dos Monstros, foi
L´ Inferno (1911). Foi a primeira adaptação para o cinema da obra A Divina Comédia de
Dante Alighiere. Os cineastas Francesco Bertolini, Adolfo Padovan e Giuseppe De Liguoro
realizaram uma jornada pela obra de Dante e gravuras de Gustave Doré 74, que fez ilustrações
sobre A Divina Comédia de 1861 a 1868.
Depois do susto proporcionado pelos irmãos Lumière, dos monstros de Méliès e dos
71 minutos de pavor em movimento no filme L´Inferno, o expressionismo alemão surge em
filmes de Robert Wienne com sua obra Das Cabinet des Dr. Caligari (1919) e F.W. Murnau
com Nosferatu (1922). As obras de Wienne, Murnau, a gótica fotografia e atmosfera
sobrenatural influenciaram/influenciam o cinema de horror até hoje. O medo proporcionado
pelos monstros do expressionismo alemão era repleto de uma carga psicossocial. A Europa
está em período bélico. A Grande Guerra (1914-1918) apresenta a fome, a morte,
desconfiança, violência, solidão nas trincheiras (―terra de ninguém‖) e é neste contexto
horrendo que os filmes alemães ganham maior expressão, pois mostravam ―por meio de
imagens do real, conceitos abstratos da alma e do espírito‖, terreno fértil para o ―conceito de
expressionismo‖, ligado à ideia que Sigmund Freud e Friedrich Nietzsche desenvolveram
sobre ―o consciente e inconsciente humano‖ (GONÇALO, 2008, p.163-164). Os filmes de
horror revelam que o horror é visionário, pois capturam de maneira consistente nossos medos
e ansiedades coletivas. Muitos filmes de horror dão a entender que o inimigo vem de dentro,
que está entre nós, não do desconhecido, mas de nossa mente.
Aqui está a verdade final sobre os filmes de horror. Eles não amam a morte, como
alguns têm proposto, eles amam a vida. Eles não celebram a deformidade, mas,
habitando a deformidade, cantam a saúde e a energia. Eles são os purificadores da
mente, tirando não rancor, mas ansiedade. (KING: 2003, página 259).
Os monstros somos nós do outro lado da tela. Seres que amam como nós, mas têm
medo de não serem correspondidos, pois sabem de antemão que não serão aceitos e que a
74
Paul Gustave Doré (Estrasburgo, 6 de janeiro de 1832 — Paris, 23 de janeiro de 1883) foi um pintor,
desenhista e o mais produtivo e bem-sucedido ilustrador francês de livros de meados do século XIX, com forte
inclinação para a fantasia.
124
verdadeira felicidade é repentina e, portanto, rara. ―Nada é mais difícil de suportar que uma
sucessão de dias belos‖ (GOETHE: 1810 apud FREUD: 2010, página 95).
Enfrentar monstros é superar medos. É enfrentar a esfinge e deixá-la muda. Segundo
Lutz Müller as ―figuras amedrontadoras da fantasia humana‖ (demônios, diabos, bruxas,
divindades más, figuras horrorosas e monstros) causam medos e sensações de perigo à
personalidade humana. Os medos representados em todos os tempos e em todas as culturas
são arquetípicos, ―são experiências universais básicas que determinam a vivência e o
comportamento do indivíduo, tanto no presente como no futuro‖ (1997, p. 93).
Se no passado o outro era de fato diferente, distante e compunha uma realidade
diversa daquela de meu mundo, hoje, o longe é perto e o outro é também um
mesmo, uma imagem do eu invertida no espelho, capaz de confundir certezas, pois
não se trata mais de outros povos, outras línguas, outros costumes. O outro hoje é
próximo e familiar, mas não necessariamente é nosso conhecido (GUSMÃO: 1999,
página 44-45).
A monstruosidade (ou o monstro) é a metáfora que usamos para referir o mal
transposto para o reino estético, das sensibilidades e emoções. Os homens precisam de
monstros para se tornarem mais humanos, para pensar sua própria humanidade. Pedimos aos
monstros que nos inquietem, que nos provoquem vertigens, que abalem nossas certezas (GIL,
2006). Amamos os monstros não porque tenham se tornado bons, mas justamente por causa
da feiúra que nunca perderam. ―Da Perfeição da Vida. Por que prender a vida em conceitos e
normas? O Belo e o Feio... O Bom e o Mau... Dor e Prazer... Tudo, afinal, são formas. E não
degraus do Ser!‖
75
. Se o monstro se reconhece em toda sua horripilância existencial e
mesmo assim é extremamente bom, nós humanos temos que os admirar e tentar sermos
amigos de seres diferentes.
George Romero, diretor de A noite dos mortos vivos e outros filmes de terror, em
uma declaração de poética, enquanto se detém sobre a tocante ternura de
Frankenstein, King Kong ou Godzilla, recorda que seus zumbis têm a pele rugosa e
putrefaciante, dentes e unhas negras, mas são indivíduos com paixões e exigências
como as nossas. E acrescenta: ―Nos meus filmes sobre zumbis, os mortos que
voltam à vida representam uma espécie de revolução, uma reviravolta radical num
mundo que muitos dos personagens humanos não conseguem entender, preferindo
marcar os mortos vivos como o Inimigo, quando na realidade eles são nós. Utilizo
o sangue em toda sua horrenda magnificência para que o público entenda que meus
filmes são antes uma crônica sociopolítica dos tempos do que (...) aventuras com
molho de terror‖ (ECO: 2007, página 422).
75
QUINTANA, Mário. Pensador. INFO. Disponível em: < http://www.pensador.info/p/feio_e_belo/1/>. Acesso
em: 20 nov. 2009.
125
O cinema é destinado a contar histórias, por ser uma arte narrativa, usada para
―mostrar um objeto de forma que ele seja reconhecido, é um ato de ostentação que implica
que se quer dizer algo a respeito desse objeto‖ (AUMONT: 1995, página 90).
Como consequência da intimidade por aí constituída, os monstros são a sinestesia em
nós, simultaneamente a tranquilidade e a inquietude, a amizade e a angústia, a solidão, a
compaixão, o sofrimento. Afinal, nada mais assusta ao público, já anestesiado, após a
avalanche visual que fez com que os monstros deixassem de provocar medo.
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CAMPBELL, Joseph. Para viver os mitos. Tradução Anita Moraes. São Paulo: Cultrix, 2006.
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GUSMÃO, N. M. M. (1999). Linguagem, cultura e alteridade: imagens do outro. Cadernos de
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concedida a Juan Weik em 28 fev. 2009.
______________. Sobre Monstros. Revista Superinteressante. São Paulo, 2009. Entrevista concedida
a Juan Weik em 28 fev. 2009.
NIETZSCHE, Friedrich. Crepúsculo dos ídolos ou como se filosofa com o martelo. Trad. de Paulo
César de Souza. São Paulo: Companhia das Letras, 2006.
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http://kplus.cosmo.com.br/materia.asp?co=48&rv=Colunistas >. Acesso em: 01 nov. 2009.
QUAMMEN, David. Monstro de Deus: feras predadoras: história, ciência e mito. Tradução Maria
Guimarães. São Paulo: Companhia das letras, 2007.
STAM, Robert. Introdução à teoria do cinema. Tradução: Fernando Mascarello. Campinas, São
Paulo: Papirus, 2006.
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VENTICINQUE, Danilo. Por que elas amam tanto os monstros? Revista Época, São Paulo, n. 600, 16
nov. 2009.
126
Notas psicanalíticas sobre o Fantasma, de Murnau
Amadeu de Oliveira Weinmann76
Resumo
A partir do filme Fantasma, de F. W. Murnau, o artigo propõe uma reflexão sobre a pregnância do
tema do duplo na literatura romântica do século XIX, no cinema alemão do início do século XX e na
própria psicanálise freudiana. Operando com conceitos elaborados por Freud em O estranho, este
trabalho sugere que o duplo consiste no avesso do sujeito racional iluminista, isto é, em um sinistro
porta-voz de seu desamparo constitutivo.
Palavras-chave: psicanálise, cinema, duplo, expressionismo, racionalismo.
Psychoanalytic notes on Phantom, by Murnau
Abstract
From the film ―Phantom‖, by F.W. Murnau, the article proposes a reflection upon the pregnancy of the
theme of the Double in the romantic literature of the 19th century, in the German cinema of the early
20th century and in Freudian psychoanalysis. Operating with concepts elaborated by Freud in his essay
―The Uncanny‖, this paper suggests that the double consists on the reverse of the Enlightenment‘s
rational subject, i. e., on a sinister spokesperson of its constitutive helplessness.
Keywords: psychoanalysis, cinema, double, expressionism, rationalism.
Introdução
O filme Fantasma, lançado em 1922 por F. W. Murnau, e inspirado no romance
homônimo de Gerhart Hauptmann, também publicado em 1922, apresenta estranhas
ressonâncias com a teoria psicanalítica. Nele, o problema do duplo – trabalhado com maestria
por Freud em O estranho77, de 1919 – é explorado em todo seu potencial disruptivo. Isso não
consiste exatamente em uma novidade, pois tal tema tem raízes profundas na literatura
romântica do século XIX e encontra-se presente em outros filmes do expressionismo alemão.
De fato, é precisamente essa recorrência o que intriga. Não há de ser por casualidade que
76
Professor do Departamento de Psicanálise e Psicopatologia do Instituto de Psicologia/UFRGS. E-mail:
[email protected].
77
Embora utilize a versão da Amorrortu, que denomina Lo ominoso a esse trabalho de Freud, uso o título O
estranho, pois é o consagrado no Brasil pela Imago. Entretanto, ao longo do texto traduzo unheimlich / ominoso
por sinistro.
127
Freud toma um conto fantástico de E. T. A. Hoffmann – O homem de areia, de 1815 – como
ponto de partida para suas reflexões. O duplo está no zeitgeist – o espírito do tempo.
A partir dos conceitos elaborados por Freud em O estranho, este artigo procura
compreender a pregnância da temática do duplo no cenário cultural em que florescem o
romantismo, o cinema expressionista e a própria psicanálise. A hipótese assumida é de que ela
corresponde à cisão do sujeito delineado pelo racionalismo iluminista, decorrente da perda de
seu suporte ontológico transcendente: a morte de Deus. Dito de outra forma, o duplo consiste
no sinistro porta-voz do desamparo constitutivo do homem das Luzes.
O problema do duplo no Fantasma, de Murnau
Lorenz Lubota (Alfred Abel) é um modesto servidor público, que sonha em ser poeta.
Um dia, a caminho do trabalho e perdido em devaneios, é atropelado pela carruagem da bela e
rica Veronika Harlan (Lya de Putti). Lorenz transtorna-se. Esquece Marie Starke (Lil
Dagover), que o ama em silêncio, negligencia seu emprego e descuida de sua sofrida mãe
(Frieda Richard). Obcecado por Veronika e iludido com a ideia de que será um grande poeta,
Lorenz pede dinheiro emprestado à sua tia Schwabe (Grete Berger), que é agiota, a fim de
vestir-se melhor e, assim, impressionar sua amada. No entanto, seus esforços no sentido de
tornar a ver Veronika fracassam. Incitado por Wigottschinski (Anton Edthofer), o
inescrupuloso amante de Schwabe, a usufruir do dinheiro da tia, Lorenz encontra Melitta (Lya
de Putti), uma sósia perfeita de Veronika. A partir desse momento, o protagonista entrega-se
de corpo e alma a proporcionar ao duplo de sua amada todo o luxo que o dinheiro de sua tia
pode comprar. Descoberta sua fraude, necessitando de mais recursos e dominado pela paixão,
Lorenz alia-se a Wigottschinski em um roubo, que culmina no assassinato de Schwabe.
A exposição dos efeitos perturbadores – para não dizer sinistros – do encontro com o
duplo é um dos temas recorrentes no cinema alemão do início do século XX. Em 1913, O
outro, de Max Mack, trata da angústia de um homem que, após um acidente, desenvolve uma
dupla personalidade (CÁNEPA, 2008). Nesse mesmo ano, Stelian Rye dirige O estudante de
Praga, filme com roteiro do escritor de contos de horror Hanns Heinz Ewers, inspirado em
Fausto, de Goethe, A singular história de Peter Schlemihl, de Adelbert von Chamisso, A
imagem perdida, de E. T. A. Hoffmann, A noite de dezembro, de Alfred de Musset, William
Wilson, de Edgar Allan Poe, O duplo, de Dostoiévski, O Horla, de Guy de Maupassant, e O
retrato de Dorian Gray, de Oscar Wilde, dentre outras obras literárias que tematizam o
128
fenômeno do doppelgänger (MÜLLER, 2008)78. É curioso observar que Otto Rank, em seu
trabalho O duplo, de 1914 – importante fonte de O estranho, de Freud –, toma como ponto de
partida para suas reflexões essa história de Ewers e debruça-se sobre uma farta produção
literária (especialmente de cunho romântico), mitológica e folclórica, que tem na problemática
do duplo seu foco principal (MÜLLER, 2008; SANTOS, 2009).
Em O estudante de Praga79, Balduin (Conrad Veidt) – um jovem ambicioso, mas
pobre – em um momento de desalento encontra Scapinelli (Werner Krauss), um homem mais
velho, que promete ajudá-lo. Com seus poderes demoníacos, Scapinelli cria a oportunidade de
Balduin salvar a condessa Margaret (Agnes Esterhazy) e sussurra no seu ouvido: ―lá vai a sua
rica herdeira‖. Atormentado por não possuir recursos financeiros para cortejar Margaret, que
está comprometida com o Barão Waldis-Schwarzenberg (Ferdinand von Alten), o
protagonista recebe a visita de seu Mefistófeles, que lhe propõe um pacto: em troca de um
objeto qualquer de seu quarto, Scapinelli oferece seiscentas mil peças de ouro. Entusiasmado,
o jovem aceita a proposta, mas se surpreende com o objeto reivindicado: sua imagem no
espelho. Agora rico, o rapaz não mede esforços para conquistar a condessa. No entanto, seu
duplo está decidido a atrapalhar seus planos. Desafiado pelo barão, Balduin, considerado o
melhor espadachim de Praga, promete não matar o rival, mas seu outro eu antecipa-se e
assassina Waldis-Schwarzenberg. Enlouquecido, Balduin atira em sua imagem. Porém, é seu
peito que sangra.
No mais importante filme do expressionismo alemão – O gabinete do Dr. Caligari
(1920), de Robert Wiene –, o problema do duplo também se coloca, ainda que de um modo
mais sutil. O Dr. Caligari (Werner Krauss) solicita autorização para expor o seu espetáculo na
feira anual de uma pequena cidade alemã. Seu assistente Cesare (Conrad Veidt) é um
sonâmbulo que, sob hipnose, adivinha o futuro. Entretanto, suas previsões são funestas e logo
surge a suspeita de que o próprio Cesare encarrega-se de cumpri-las. Intrigado, Francis
(Friedrich Feher) descobre que o Dr. Caligari é diretor de um hospital psiquiátrico e que
pesquisa o sonambulismo. Assombrado diante do projeto macabro do doutor, Francis acusa-o
de usar Cesare como seu duplo, isto é, de valer-se de sua susceptibilidade para realizar seus
impulsos assassinos. No entanto, o final do filme é ainda mais surpreendente. Francis, que
78
De acordo com Santos (2009), o termo dopellgänger – que, literalmente, significa aquele que caminha do lado,
companheiro de estrada – é cunhado em 1796 por Jean-Paul Richter, no contexto de nascimento do romantismo
alemão.
79
Neste artigo, baseio-me na versão de 1926 desse filme, dirigida por Henrik Galeen, pois no Brasil não há cópia
em DVD da versão original. Para uma análise desta, ver Müller (2008).
129
encarna a crítica racional dos abusos do poder, também tem seu duplo: ele, que é o narrador
da história, é um louco internado no manicômio dirigido pelo Dr. Caligari.
Nesse sentido, Fantasma é um dentre outros filmes com temática fantástica, dotados
de uma atmosfera sombria e aos quais o fenômeno do duplo confere um aspecto sinistro, que
pululam no cinema alemão das décadas de 1910 e 1920 (CÁNEPA, 2008)80. No entanto,
impressiona o modo como o duplo opera nesse filme de Murnau. Se Lorenz é o homem mais
correto do mundo, o único em quem Schwabe confia, sua irmã Melanie (Aud Egede Nissen) é
a desgraça da família, pois se prostitui. Enquanto Lorenz é um filho sem pai, Marie é uma
filha sem mãe. A mãe de Lorenz trabalhou como uma mula a vida inteira, mas é pobre e
infeliz. Em contrapartida, tia Schwabe é rica e poderosa, graças à impiedosa exploração dos
que necessitam de seu dinheiro. Se, por um lado, Veronika só é vista por Lorenz – e pelos
espectadores – em uma única cena, pois tem um pai que a preserva, por outro, Melitta é
oferecida por sua mãe a Lorenz – e pelo diretor a nós.
Nessa trama, a atriz Lya de Putti encarna um dos mais típicos fantasmas da psicologia
masculina: o da cisão em a inacessível e a fácil, imagem simétrica e invertida uma da outra,
duas faces da mesma mulher. Dito de outra forma, Veronika consiste em uma personagem
recorrente no cinema: a da mulher que desaparece. De acordo com o filósofo Slavoj Zizec
(2010), tal temática alude à mulher total – A mulher –, aquela que seria capaz de suprir a falta
em um homem. Na perspectiva lacaniana, essa mulher não existe, ou seja, dela não há registro
simbólico. O encontro com ela só pode ser alucinatório – e Lorenz Lubota é o tempo todo
atormentado por imagens oníricas, nas quais persegue a carruagem que conduz sua amada. E
aqui temos aquela que talvez seja a mais importante manifestação do duplo no Fantasma, de
Murnau. Lorenz mostra-se cindido entre a imagem de si construída em conformidade com o
superego materno – a de um homem honesto – e o que acaba se tornando, a fim de conquistar
a mulher com quem supostamente a relação sexual seria possível: um canalha como
Wigottschinski.
Por fim, o fenômeno do duplo expressa-se nesse filme ainda de outro modo, não
vinculado a um personagem. Sua história trágica dobra-se em uma moldura melodramática.
Na abertura, o escritor e dramaturgo Gerhart Hauptmann, prêmio Nobel de literatura em 1912
– do qual o protagonista é um espectro ridiculamente esmaecido –, aparece segurando um
80
Como observa Müller (2008), não é adequado definir, retrospectivamente, os filmes do período imperial
alemão – como a versão original de O estudante de Praga – como precursores do expressionismo, pois eles
possuem uma lógica própria. Em seu contexto, são denominados filmes de arte (kunstfilm), pois consistem em
filmes de autor (autorenfime), isto é, escritos por autores famosos, como H. H. Ewers.
130
livro. Ato contínuo, vemos Lorenz e sua esposa Marie em uma casa de campo. Lorenz queixase de sua vida e Marie entrega-lhe um caderno, presente de seu pai, para que seu marido
escreva a história de seus sofrimentos. E este é o prólogo de Fantasma. No epílogo, Marie e
seu pai esperam Lorenz na saída da prisão e dirigem-se a uma casa de campo, em uma cena
que antecede imediatamente a do prólogo. Lorenz, personagem inteiramente dominado por
uma mater dolorosa, encontra em seu sogro um suporte para sua masculinidade precária, que
o amor de Marie não é suficiente para dissimular.
O duplo: um outro estranhamente familiar
Neste artigo, o texto O estranho, de Freud, exerce uma dupla função. Por um lado,
oferece conceitos para pensar a questão do duplo. Por outro, é uma das obras que têm no tema
do duplo um objeto primordial. Neste último sentido, ela tem de ser analisada como
pertencente ao mesmo solo cultural do Fantasma, de Murnau – o que será realizado na
próxima seção. Na presente seção, são os conceitos criados nesse fundamental trabalho
freudiano o que interessa descrever.
Em O estranho, Freud interroga-se acerca das condições em que algo é percebido
como sinistro. A partir de uma análise etimológica, o autor mostra que a palavra alemã
unheimlich tem como oposto heimlich: familiar, doméstico, íntimo. Nessa perspectiva,
sinistro seria o não familiar. Porém, nem todo o desconhecido é terrorífico. Ademais, heimlich
também possui outros sentidos: algo oculto, clandestino, secreto, isto é, escondido de olhares
estranhos, subtraído do conhecimento alheio. Por sua vez, unheimlich também significa
dissimulado, suspeito, tenebroso, espectral. Nas palavras de Schelling (apud FREUD, 1984, p.
224): ―denomina-se unheimlich a tudo o que, estando destinado a permanecer em segredo,
oculto, vem à luz‖. Assim, no largo espectro de sentidos da palavra heimlich há um que
coincide com unheimlich. O sinistro mantém estranhos vínculos com o familiar.
Em sua análise de O homem de areia, de Hoffmann, Freud procura elucidar esse
enigma. Desde o seu ponto de vista, o caráter sinistro desse conto fantástico decorre de algo
extremamente familiar: a angústia de castração do menino, simbolizada no temor de que lhe
sejam arrancados os olhos. Nesse sentido, o homem de areia não é outro senão o temido duplo
do pai benevolente da infância. No entanto, a análise etimológica mencionada acima requer
que essa questão seja posta em outros termos. Mais precisamente, o que há de unheimlich
131
nessa obra é o fato de, por meio dela, vir à luz, ainda que de um modo deformado, algo que
teria que permanecer oculto: o desejo incestuoso.
O duplo, de Otto Rank, é outra importante fonte para a reflexão freudiana. Freud
(1984, p. 235) sintetiza assim a tese de Rank: ―[...] o duplo foi, em sua origem, uma segurança
contra o sepultamento do eu, ‗uma enérgica denegação do poder da morte‘ [...], e é provável
que a alma ‗imortal‘ tenha sido o primeiro duplo do corpo‖. De acordo com o criador da
psicanálise, tal concepção vincula-se ao narcisismo primordial. Porém, ―[...] com a superação
[ontogenética e filogenética] dessa fase, muda o signo do duplo: de um assegurador da
sobrevivência do eu, passa a ser um sinistro anunciador da morte‖ (id., p. 235). Dito de outra
forma, o caráter sinistro do duplo reside em que, por meio dele, algo que estava destinado a
permanecer secreto – o temor do aniquilamento do eu, o qual consiste na contrapartida de sua
onipotência – devém consciente.
Freud refere-se a outros fenômenos frequentemente percebidos como sinistros: a
insistente repetição de determinados eventos, que não podem ser atribuídos à casualidade, a
imediata realização de desejos enunciados, o cumprimento de certos pressentimentos, a
ocorrência de um ataque epilético, a inesperada visão de um cadáver, dentre outros. E sugere
que tais episódios suscitam uma atitude supersticiosa, mesmo naqueles cujo juízo crítico as
repudia. Em outras palavras, o psicanalista propõe que algo do sistema animista de
pensamento habita o sujeito moderno e que sempre que uma representação dessa ordem
irrompe na consciência seu efeito é um estranhamento radical. A partir dessas distintas
análises, Freud extrai uma conclusão: ―[...] o sinistro é o outrora doméstico, o familiar de
antigamente. Nesse sentido, o prefixo ‗un‘, da palavra unheimlich, é a marca do
recalcamento‖ (id., p. 244).
O duplo: o avesso da racionalidade positivista do século XIX
Evidentemente, o tema do duplo não é objeto de interesse apenas da literatura
romântica, do cinema expressionista e da psicanálise. Ao longo da história da cultura
ocidental, tal problemática também aparece nos discursos religiosos e filosóficos, assim como
nos mitos, no folclore, na pintura e na música. Em Um périplo pelo território duplo, Adilson
Santos faz uma excelente revisão do assunto. Na literatura ocidental, esse tema remonta à
Antiguidade Clássica e consiste em um modo de assinalar a oposição de contrários. Porém,
até a Renascença o duplo está ligado a uma concepção unitária do sujeito. Os personagens –
132
gêmeos ou sósias – são idênticos, mas têm identidade própria. A partir do século XVII, iniciase um processo de progressivo abandono dessa concepção e de formação de uma tendência de
representação do heterogêneo: o alter ego, um outro eu. No entanto, é especialmente no
século XIX que o duplo passa a indicar, incisivamente, a cisão do sujeito e temas tradicionais
da psiquiatria – como o sonambulismo, a hipnose e a histeria – somam-se aos do sujeito que
vendeu sua alma, ou perdeu sua imagem no espelho (ou sombra, reflexo na água, etc.) ou,
ainda, se tornou prisioneiro de sua representação em um retrato.
É nesse solo que floresce a teoria psicanalítica. Em Viena e as origens da psicanálise,
Mezan procura delinear o laço existente entre as elaborações conceituais freudianas e a
cultura de seu tempo. De acordo com esse psicanalista, Freud teve uma sólida formação
clássica, isto é, conhecia muito bem a literatura germânica dos séculos XVIII e XIX, lia
voluptuosamente Shakespeare e outros autores ingleses e estudou por vários anos o grego e o
latim. Ademais, possuía um vasto conhecimento da Bíblia, decorrente do respeito à tradição
judaica vigente em sua casa. Ao ingressar na Universidade de Viena, também se interessou
pela filosofia e frequentou cursos com Franz Brentano. Todavia, Mezan (1996, p. 89)
assinala: ―[...] a influência intelectual mais decisiva sobre ele foi a exercida por seu professor
de fisiologia, Ernst Brücke‖. E, juntamente com Helmholtz e Du-Bois Reymond, Brücke
encarnava a mais poderosa tendência em filosofia das ciências do século XIX: o positivismo,
que pretendia impor às ciências humanas os métodos das ciências naturais.
A princípio, essa afirmação surpreende, pois, no que concerne ao nascimento da
psicanálise, é frequente atribuir-lhe raízes no romantismo alemão e laços de solidariedade
com as vanguardas artísticas e intelectuais da Belle Époque. Ainda de acordo com Mezan, os
movimentos culturais que irrompem no cenário europeu a partir de 1890 (época em que
aparecem os primeiros textos psicanalíticos) costumam ser designados irracionalistas ou antiintelectualistas. No entanto, o autor sugere que seu traço comum é uma atitude de revolta
contra o positivismo, entendido como uma visão de mundo (weltanschauung). Em filosofia
das ciências, isso implica retomar o problema do sujeito no que há para além da razão e da
medida. Nas artes, ―trata-se da dissolução paulatina dos códigos expressivos herdados da
tradição renascentista, barroca e clássica [grifos do autor]‖ (id., p. 93). Na pintura, a
fotografia torna prescindível a figuração realista e, a partir do impressionismo, a perspectiva
tende a ser abandonada em prol de uma deformação criativa. Na literatura, a ênfase desloca-se
da descrição naturalista dos personagens e da sociedade para as inovações estilísticas. Na
música, a escala tonal cede espaço para o dodecafonismo. É a representação objetiva da
133
realidade – noção que enlaça o positivismo, em filosofia das ciências, e o realismo, nas artes –
o que é posto em questão.
Nessa luta de titãs, Freud ocupa um lugar muito singular. Por um lado, ―[...] era
efetivamente um positivista, e seu projeto era o de introduzir as concepções e os métodos da
ciência no território da alma, até então reservado aos poetas, romancistas e filósofos‖ (id., p.
98). Isso fica evidente em conceitos como os de forças psíquicas, resistência, investimento
energético das representações, dentre outros que parecem terem sido tomados da física. Por
outro, foi reconhecido pelas vanguardas da Belle Époque – e será incensado pelas vanguardas
dos anos 192081 – como um dos seus, por ter lançado luz sobre esse duplo do sujeito da razão
positiva: o inconsciente. Mezan define Freud como um pesquisador racionalista e materialista,
cujo pensamento se curva diante das determinações de seu objeto. Mais precisamente, a
análise racional da não razão conduz o instaurador do discurso psicanalítico à literatura: da
Bíblia à tragédia grega, de Shakespeare ao romantismo alemão do século XIX.
Porém, o parentesco do trabalho de Freud com o das vanguardas de seu tempo não se
reduz às suas elaborações conceituais. É sobretudo por meio de sua técnica – a regra da livre
associação e sua contrapartida, a atenção flutuante do analista – que a psicanálise promove a
dissolução paulatina dos códigos expressivos vigentes. Nas palavras de Mezan: ―o convite
para associar implica a ruptura dos vínculos lógicos e o silenciamento da censura moral por
parte do paciente [...]‖ (id., p. 96). Dito de outro modo, é especialmente por meio de seu
dispositivo clínico que a invenção freudiana possibilita ao duplo do sujeito da razão
positivista expressar-se em sua linguagem estranhamente familiar.
A partir dessas formulações, é possível expor, ainda que preliminarmente, a hipótese
deste trabalho. Se o tema do duplo aparece com insistente recorrência na literatura romântica
do século XIX e no cinema alemão do início do século XX, e se consiste em um motivo para
a reflexão psicanalítica, é porque concerne ao que há de recalcado no contexto cultural em
que tal problemática se constitui, ou, mais precisamente, a algo que, estando destinado a
permanecer encoberto, subitamente vem à luz. Em outras palavras, a persistente tematização
do duplo alude ao avesso da racionalidade positivista e consiste no sinistro anúncio da morte
81
Sobre a relação de Freud com tais movimentos, Sousa e Endo (2009, p. 75) escrevem: ―em julho de 1939, Dalí
esteve na casa de Freud junto com Stefan Zweig. Freud já tinha sido uma espécie de guia espiritual do
movimento surrealista e era admirado por André Breton. Nunca deu a devida importância à interlocução com
Dalí. Alguns dias depois escreveu ao amigo Zweig suas impressões sobre o jovem artista espanhol: ‗até agora,
parece-me, vi-me tentado a considerar os surrealistas, que aparentemente me escolheram como seu santo
padroeiro, como loucos completos (digamos a 95%, como para o álcool absoluto). O jovem espanhol, com seus
cândidos olhos de fanático e seu inegável domínio técnico, incitou-me a reconsiderar essa opinião‘‖.
134
de tal weltanschauung. No entanto, ainda é preciso mostrar como isso opera no Fantasma, de
Murnau, em um registro que não o do roteiro, privilegiado nas análises até aqui realizadas por
este artigo. E isso implica tecer alguns comentários acerca da estética expressionista.
Expressionismo: o duplo da racionalidade técnica do II Reich
Em 1911, o crítico de arte Herwath Walden, editor da revista Der sturm (A
tempestade), cunha o termo expressionismo, a fim de assinalar o contraste entre a pintura
impressionista e as obras de dois grupos de pintores: Die brücke (A ponte), surgido em
Dresden, em 1905, e Der blaue reiter (O cavaleiro azul), formado em Munique, em 1911. Na
perspectiva de Walden, enquanto o impressionismo visa captar os efeitos da luz sobre objetos
visíveis, o expressionismo ocupa-se do que há de imperceptível e profundo na alma humana
(CÁNEPA, 2008). Em termos técnicos, as obras de pintores como Kandisnky e Paul Klee
caracterizam-se pela distorção das linhas, com ênfase na criação de formas alongadas, pelo
uso de cores não naturais – por vezes extáticas, por vezes lúgubres –, pela recuperação do
valor expressivo do preto e branco, pelo empastamento espesso, pelas pinceladas vigorosas,
pela utilização de técnicas de xilogravura e pelo repúdio à imitação da natureza. Mediante
esses procedimentos, os expressionistas pretendem reacender a força vital da arte, tornada
anêmica pela sociedade industrial (McGINITY, 2011).
No entanto, o expressionismo não se restringe à pintura. Na literatura, poetas e
romancistas operam uma desconstrução da sintaxe e procuram criar atmosferas emocionais
densas, quando não catastróficas. Na música, as composições atonais de Schöenberg ilustram
sua ruptura com os códigos estéticos. Na dança, Isadora Duncan e Rudolf von Laban libertam
os movimentos espontâneos do corpo. No teatro, dramaturgos, como Gerhart Hauptmann, e
diretores, como Max Reinhardt, procuram expressar os aspectos obscuros – por vezes
demoníacos – da psique dos personagens, através de cenários fantásticos, efeitos de
iluminação e maquiagem carregada. Na raiz de todas essas tendências, encontra-se o
princípio, avesso ao positivismo, de que a subjetividade é a realidade crucial. Formulado pelo
movimento Sturm und drang (Tempestade e ímpeto), no final do século XVIII, tal princípio
permeia o romantismo, atravessa a filosofia nietzschiana e desemboca no pensamento
freudiano, antes de florescer no expressionismo (CÁNEPA, 2008).
No cinema, o marco inaugural desse movimento é O gabinete do Dr. Caligari. Seu
aspecto sinistro decorre de vários fatores, além do roteiro. Os cenários, dotados de pouca
135
profundidade, mostram ruelas tortuosas e casas inclinadas, o que confere ao filme seu
característico aspecto claustrofóbico e sombrio, reforçado por uma iluminação titubeante, pela
maquiagem pesada e pela grande carga dramática da interpretação dos atores. Na primeira
metade dos anos 1920, muitos filmes assumem essa orientação estética. De acordo com
Cánepa (2008), é possível enlaçá-los, a posteriori, em torno de algumas estratégias comuns
no que concerne à composição, à temática e à estrutura narrativa.
No cinema expressionista – na medida em que tal pretensão totalizante é admissível –,
a composição do plano (cenário, decoração, iluminação, figurino, maquiagem, organização da
cena, fotografia, etc.) tende a ser mais importante do que a articulação entre os planos ou os
movimentos de câmera, o que faz com que seus filmes assemelhem-se a uma sucessão de
quadros expressionistas. Por outro lado, no que diz respeito à temática sua fonte é sobretudo a
literatura romântica, com suas histórias fantásticas de demônios, vampiros e monstros, que
aludem a tiranos insaciáveis. Por fim, no que tange à estrutura narrativa o fascínio desse
gênero decorre de seu caráter oblíquo, que não suprime ambiguidades. Nesse sentido, os
intertítulos – integrados à forma visual do filme – são utilizados com parcimônia e não são
explicativos. Ademais, a referência frequente ao espaço fora do campo visual do espectador,
por meio de olhares, sem que se faça o contracampo, contribui para conferir um efeito de
abertura para o imprevisível. E por conta da ênfase na composição do plano, a narrativa
procede de um modo descontínuo, isto é, mediante elipses espaço-temporais, o que também
coopera para a criação de seu tom enigmático.
Em Expressionismo cinematográfico, arquitetura e cidade, Benfati e Santos Jr.
assinalam o paradoxo de um grande país industrial – a Alemanha – ser tão voltado, em suas
distintas modalidades de criação artística, para seu passado medieval. De acordo com os
autores, tal tendência não pode ser atribuída, exclusivamente, à derrota na I Guerra Mundial,
pois lhe antecede. No entanto, Benfati e Santos Jr. (2006) observam que o florescimento do
cinema expressionista coincide com o caos social do início da República de Weimar e
sugerem que essa filmografia expressa uma recusa da vida urbana, identificada com a
barbárie, não com a civilização. Nas palavras dos autores:
O período de luzes é, em sua aparência, colocado entre parêntesis e o universo
ficcional retorna não apenas à natureza em contraposição à cidade, mas a uma
temática voltada para a reagrarização e a submissão a temores primitivos, a
dominação do instinto sobre a razão (id., p. 68).
136
Essa tendência regressiva tem na construção dos cenários dos filmes expressionistas
uma de suas mais importantes manifestações. É o retorno ao estilo gótico medieval o que
pretendem seus arquitetos. Nesse sentido, o espaço não é linear, mas deformado: as ruas são
pequenas e tortuosas; as casas são escuras e, frequentemente, inclinadas; e escadarias,
corredores e pátios internos conferem a essas películas uma sensação de ambiente confinado e
ameaçador. Ademais, o modo como esses cenários são fotografados, com fortes contrastes
entre áreas iluminadas e sombrias (chiaroscuros), tende a realçar o relevo e a exagerar ou
recortar os contornos, acentuando seu aspecto fantasmagórico. No limite, é a expressão não
racional dos estados de alma, mediante recursos visuais, o que almeja o cinema
expressionista. No Fantasma, de Murnau, a vertigem de Lorenz Lubota, enquanto dança com
Melitta em um café, exprime-se por meio de um cenário giratório. E, em um momento de
angústia, o protagonista vê-se perseguido por prédios de estilo gótico.
Retomando o paradoxo apontado por Benfati e Santos Jr. – o de uma nação altamente
industrializada, que se volta para seu passado medieval –, parece-me que ele não pode ser
atribuído à derrota na I Guerra Mundial ou à crise social dos primeiros anos da República de
Weimar, mas aos fatores que conduziram a essas catástrofes. Dito de outro modo, o
expressionismo consiste no avesso da racionalidade técnica, que permeia o processo de
modernização autoritária do II Reich. Nessa perspectiva, o Dr. Caligari é um duplo do
comandante da unificação germânica – Otto von Bismarck –, que mesmeriza as massas
alemãs e as incorpora em seu projeto imperialista. No entanto, o expressionismo não faz uma
crítica racional dos abusos do poder, de inspiração iluminista. Tanto no que tange a seus
aspectos formais, quanto no que concerne a suas temáticas ele não visa ao esclarecimento.
Sua proposta estética é a de expor, em uma linguagem estranhamente familiar ao povo alemão
– a do estilo gótico –, o que os líderes da Alemanha industrializada pretendem manter oculto:
seus sinistros poderes.
Especificamente no que concerne ao Fantasma, é preciso salientar suas diferenças em
relação a O gabinete do Dr. Caligari. Se neste trata-se de expressar os horrores decorrentes da
onipotência paterna, naquele trata-se de exprimir o pesadelo em que consiste a inoperância do
pai. Se o filme de Robert Wiene alude ao fundador do II Reich, é possível que o de F. W.
Murnau refira-se à vulnerabilidade da República de Weimar. Porém, tanto sobre um, quanto
sobre o outro paira o espectro da tirania. Nesse sentido, é altamente significativo que o
Fantasma, de Murnau, inicie com Gerhart Hauptmann, o autor da obra em que se baseia o
filme. Se novas catástrofes anunciam-se, é crucial que sejam enunciadas.
137
Considerações finais
No Fantasma, de Murnau, o tema do duplo prolifera em muitas direções. Por um lado,
há a dimensão mais evidente – e mais corriqueira – da sósia. Porém, há outras. Vários
personagens espelham-se uns aos outros: Lorenz e Melanie, Lorenz e Marie, Lorenz e
Wigottschinski, a mãe de Lorenz e a tia Schwabe, Veronika e Melitta, sob distintos pontos de
vista, consistem na imagem simétrica e invertida um do outro. Para além do universo
diegético, o duplo imiscui-se na própria narrativa: trata-se de uma história trágica – o amor de
Lorenz por Veronika, que o enlouquece –, enquadrada em uma moldura melodramática: o
amor de Marie por Lorenz, que o resgata. Ademais, a trama é invadida por um duplo – posto
que se trata de um personagem – do autor do livro adaptado pelo filme. A enigmática
presença desse personagem na abertura do Fantasma faz pensar que ele, por sua vez, tem seu
próprio duplo: o Sr. Starke (Karl Etlinger), pai de Marie e encadernador, que aposta na
carreira literária de Lorenz e, ao final, oferece-lhe um caderno para que ali registre suas dores.
Por fim, ao longo do filme assistimos ao desdobramento de Lorenz em um outro de si mesmo.
Esta miríade de duplos perturba, produz inquietações. E, se olhamos o cenário cultural
adjacente, não paramos de nos assombrar. Tal problemática dissemina-se pelo cinema alemão
da época, é tomada como objeto pela reflexão psicanalítica e lança raízes profundas no
romantismo do século XIX. Inevitavelmente, interrogamo-nos: a que corresponde essa
proliferação discursiva? Ao longo deste artigo, procuro esboçar algumas hipóteses. No
contexto cultural em que se circunscreve esse problema, ele alude à cisão do sujeito. Mais
precisamente, o duplo consiste no outro do sujeito que se constitui nas dobras do racionalismo
iluminista, em suas diversas vertentes: positivismo, em filosofia das ciências; realismo, nas
artes; razão técnica, nas indústrias; razão de Estado, em política. É a morte de Deus,
promovida pelo Iluminismo, que produz o desamparo do homem das Luzes e faz de seu duplo
– a não razão – um sinistro mensageiro da morte de tal sujeito.
Referências bibliográficas
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e cidade‖. In: Impulso, Piracicaba, v. 17, n. 44, p. 67-74, set./dez., 2006.
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FREUD, Sigmund. ―Lo ominoso‖. In: Sigmund Freud: obras completas. Buenos Aires: Amorrortu,
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138
GALEEN, Henrik. O estudante de Praga. São Paulo: Cult Classic, s/d. DVD. 91 min.
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movimentos e as obras mais importantes de todos os tempos. Rio de Janeiro: Sextante, 2011. p. 378381.
MEZAN, Renato. ―Viena e as origens da psicanálise‖. In: PERESTRELLO, Marialzira (Org.). A
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MÜLLER, Adalberto. ―O estudante de Praga: o duplo, o espelho, o autor‖. In: HAMBURGUER,
Esther; SOUZA, Gustavo; MENDONÇA, Leandro; AMANCIO, Tunico (Orgs.). Estudos de cinema –
SOCINE. São Paulo: Annablume; Fapesp; Socine, 2008. p. 15-23.
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literária, Recife, v. 22, n. 1, p. 51-101, jan., 2009.
SOUSA, Edson; ENDO, Paulo. Sigmund Freud: ciência, arte e política. Porto Alegre: L&PM, 2009.
WIENE, Robert. O gabinete do Dr. Caligari. São Paulo: Continental Home Vídeo, s/d. DVD, 52 min.
ZIZEK, Slavoj. ―La femme n‘existe pas‖. In: ZIZEK, Slavoj (Org.). Todo lo que usted siempre quiso
saber sobre Lacan y nunca se atrevió a preguntarle a Hitchcock. Buenos Aires: Manantial, 2010. p.
113-117.
139
A Partida, de Yojiro Takita, numa perspectiva psicanalítica do
corpo.
Bianca Scandelari82
Resumo
Propomos abordar pontos introdutórios sobre o corpo em psicanálise através da perspectiva
apresentada no filme A Partida, de Takita (2008). Neste sentido, a trama da história faz lembrar
nuances do que é possível chamar em psicanálise de lugar psíquico. Segundo a intersecção encontrada,
a vida que anima um corpo, que o constitui e o autoriza como vivente é ilustrada numa perspectiva
simbólica que une sentido e imagem.
Palavras-chave: vida; morte; corpo; psíquico; psicanálise.
Yojiro Takita’s Okuribito in a psychanalytic perspective of the body
Abstract
We propose to address introductory points on the body in psychoanalysis from the perspective
presented in the film Okuribito of Takita (2008). In this sense, the story line is reminiscent of the
nuances that you can call the psychic place in psychoanalysis. According to the intersection found, the
life that animates a body that is permitted and is shown as living in a symbolic perspective that unites
sense and image.
Keywords: life; death; body; psychic; psychoanalysis.
Longe de pressupor uma completa análise dos dois temas, e esgotar as possibilidades
de sua intersecção, a proposta deste artigo é antes abordar, de forma ilustrativa e introdutória,
algumas questões possíveis de serem comentadas sobre a significação de corpo na psicanálise
em virtude de alguns aspectos que o filme A Partida (2008), de Yojiro Takita, traz em sua
articulação interna de cenas.
O tema que primeiramente ―salta aos olhos‖ no decorrer inicial do filme é a relação
existente entre vida e morte. A morte, sem sombra de dúvida, apenas pode ser pensada a partir
da significação de vida, que é por si só um tema de difícil abordagem. É claramente absorvido
nos campos da Biologia e da Física, além de outras ciências que esperam extrair seu
significado através da análise minuciosa da matéria, seu funcionamento e dinâmica.
82
Psicanalista, doutoranda em Filosofia pela Unicamp.
140
Mediante a discussão permanente entre as neurociências e a psicanálise, em virtude do
funcionamento do corpo ou sobre o que o anima, a suposta relação entre o que é físico e o
lugar do que é psíquico, propomos alguns comentários sobre trechos da obra inicial de Freud
– que trazem justamente a articulação sobre como funcionaria o corpo na histeria -,
complementando com passagens de textos de Lacan sobre a assunção de uma imagem na
formação do eu. Desta forma, seria possível relacionar algumas passagens da história do
personagem, Daigo Kobayashi - mobilizadas de forma direta e, ao mesmo tempo, leve, pela
abordagem um tanto cômica, - à questão da relação com o corpo, considerado como o que
encarna os significados de vida e morte.
Para começar a trazer a história de Daigo, faremos desde o início, do filme, não o de
sua vida. Filho único de um casal proprietário de um pequeno café da cidade de Yamagata, no
Japão, o personagem aparece em cenas de sua lembrança com o violoncelo em mãos, tocando
em frente aos pais. Estas cenas de sua memória se tornam importantes para a trama, pois
demonstram as reminiscências que Daigo tem da sua relação com o pai, cujo rosto teria sido
―apagado‖ de sua memória. Outra lembrança relacionada seria aquela da ―pedra-carta‖. O
personagem, ainda menino, faz uma troca de pedras com o pai que teria o propósito
subjacente de significar algo quase inominável, posto que os sentimentos que as pedras
buscam simbolizar, assim como qualquer outro, não caberiam em palavras. Como as palavras
ditas ou escritas não o exprimem por completo, não poderiam as pedras ―encarná-los‖?
Assim, o garoto ganha uma pedra grande e áspera que ilustraria a doação do sentimento em
dificuldades, e o pai recebe uma pequena pedra branca e lisa que denotaria o coração sereno
do menino.
Da relação com o pai e da infância do personagem temos somente essas passagens e a
declaração em que, aparentemente, pouco importa para Daigo se o pai é vivo ou morto.
Quando passamos à sua vida em Tóquio, as passagens também são escassas. Assistimos ao
momento em que, já adulto, o violoncelista vê sua chance de trabalho se esvair com a
dissolução da orquestra onde tocava, obrigando-o a traçar um novo rumo em sua vida.
Também podemos ver a cena em que ele conta à sua mulher sobre o ocorrido, chegando a
assumir o violoncelo como um ―peso morto‖ em muitos aspectos. Ainda em relação à última
passagem, temos a curiosa aparição do polvo que sua mulher traz para casa como um presente
para o jantar, mas que num assalto de preservação de vida, aparentemente se lança ao chão
movendo seus tentáculos. O jantar estava vivo, havia se tornado digno de toda consideração, o
que causa desespero no casal que resolve restituí-lo ao mar. Ao chegar o momento de
141
salvamento, Daigo e a esposa percebem que o polvo já estava morto. Encerram-se aí as cenas
de Tóquio, dando a impressão da frustração perante aos projetos não realizados do emprego e
do salvamento, trazendo um aspecto da morte que parece antever o tema do andamento da
história de vida do personagem.
Ao retornar para Yamagata, o casal se instala na antiga casa em que Daigo viveu com
os pais, e, posteriormente, com sua solitária mãe, já falecida. Na busca de um emprego, ele
depara-se com a agência funerária NK, que desenvolve um ritual antigo e tradicional de
acondicionamento ou embelezamento de corpos, antes realizado pelas famílias das pessoas
falecidas. Possivelmente, em virtude da boa remuneração, ele aceita começar. A partir desse
momento experimenta uma passagem que transforma sua significação sobre os corpos com
que lida e sobre a morte, o que parece trazer algum sentido para sua história, uma expressão
para sua vida.
Uma perspectiva do corpo em Freud
A propósito desse contexto geral do filme, é possível introduzir alguns comentários
sobre o início do empreendimento de Freud, quando se debruçava sobre as significações que
produziam os sintomas na histeria. Para introduzir, notamos que esta neurose era definida a
partir de um desequilíbrio na dinâmica de excitações cerebrais e seu tratamento consistia
especialmente numa correção desses mecanismos anormais que tiveram lugar em determinado
momento de predisposição do paciente, tornando-se traumático e comprometendo sua saúde
física e psíquica desde então. A hipnose, com o uso da sugestão, também portava uma
definição semelhante a uma intervenção pedagógica que acabava por desconsiderar
importantes e possíveis conexões causais (sexualidade infantil, complexo de Édipo),
formuladas ao longo dos anos posteriores, em detrimento da gradual superação do acento no
método para a valorização da palavra do paciente.
De certa forma, quando a ―fala‖ da histérica foi tomando lugar no momento do
tratamento, percebemos uma relativização da concepção do corpo, que passa de objeto
tomado apenas em sua dinâmica fisiológica para outra que carrega, ―encarna‖ uma
significação. Ou seja, Freud percebia que o restabelecimento do equilíbrio e bem estar físico
dependia das palavras e sentimentos atrelados, e a via de escoamento ou alívio curativo
poderia portar um caráter de outra natureza.
142
É o que denota o curioso, mas não incomum relato de Freud sobre a conversão
histérica como a simbolização de vivências aflitivas no corpo, no texto Estudos sobre a
Histeria, 1895. Ele ilustra o que a dificuldade do ―não poder dizer‖ representou para as
pacientes, restando apenas se contentar com a saída possível no correspondente disfuncional
do corpo:
E não é de toda forma verossímil que a inversão ―engolir algo‖, aplicado a um
insulto ao qual não se apresenta réplica, se deva de fato às sensações de inervação
que sobrevêm à garganta quando se nega o dizer, se impede a reação frente ao
ultraje? Todas essas sensações e inervações pertencem à ―expressão das emoções‖,
que, como nos ensinou Darwin |1872|, consiste em operações em sua origem
providas de sentido e de acordo com um fim; por mais que se encontrem hoje
debilitadas na maioria dos casos, a tal ponto que sua expressão linguística nos
pareça uma transferência figural, é bem provável que tudo isso tenha sido
entendido literalmente, e a histeria acerta quando restabelece para suas inervações
mais intensas o sentido original das palavras. E até pode ser incorreto dizer se cria
essas sensações mediante simbolização; talvez não tenha tomado o uso linguístico
como modelo, mas se alimenta junto com ele de uma fonte comum. (FREUD e
BREUER, 1893, p.193)
Este é o momento em que Freud se vê obrigado a formular uma explicação para a
conexão das significações da vida através da linguagem e suas marcas no corpo. Apesar de
encontrar correlatos nas sensações inervatórias da faringe, é curioso como o sintoma se molda
de forma a comunicar algo, mesmo que a vontade forte e resoluta o queira impedir. Este é um
exemplo de que o que não é falado, não sai pela palavra, fica no corpo, não como um
desequilíbrio qualquer, mas como um que chama a atenção, que ―quer dizer algo‖. Dessa
forma, é possível que se atribua um significado a um sintoma, ao corpo em sua dinâmica e até
a uma pedra.
Seria demasiado ousado pensar que o que dota o corpo, algo vivo e pulsante, de um
significado, pode dotar algo inanimado de sentimentos? Bem, sem forçar uma conclusão
sabemos que uma pedra não sente, mas não é necessário escrever ou ler nela para que ela
represente um sentimento. Assim, também um violoncelo pode pesar muito mais do que
sugere o peso de sua real matéria, sob vários aspectos. Igualmente, quando usamos a
expressão ―coração sereno‖ não queremos dizer que o órgão correspondente tenha essa
qualidade, assim como a ―cabeça‖ não pensa. Mas então, o que pensa? O que sente? Alguém?
De que é constituído esse alguém? Não obstante, assim como uma faringe não engole um
insulto, uma pedra pode portar um sentimento tão significativo que é possível afirmar que ela
143
signifique apenas esse sentimento. Não cumpre mais sua função como pedra, é bem mais que
isso.
Assim um corpo é mais que um coração, uma faringe, um cérebro. Mesmo que sua
dinâmica fisiológica possa ser assumida por Freud naquele momento como objeto de
tratamento, o meio para que se interfira era o da palavra, mas não a qualquer. No texto de
1890, Tratamento Psíquico ou Anímico, o contexto em que a palavra é empregada e quem a
profere é analisado e sugerido como instrumento do tratamento. A fala não pode ser dita
apenas, mas tem que estar atrelada a uma significação não qualquer, também, como a que
sugere uma etimologia, por exemplo, mas uma que parte do paciente, que é imprevisível e
insuspeitada. Assim a cura dos pacientes fica subordinada à simpatia que o médico suscita.
O que mais interessava a Freud neste momento era a ―influência da vida anímica no
corporal‖, que correspondia à influência da sugestão fornecida pelo hipnotizador. Assim,
Freud nos diz que os efeitos da influência do ―médico que trata pela fala‖ causam: ―de um
lado, a obediência, mas de outro há um aumento da influência corporal de uma idéia. A
palavra, nesse caso, volta realmente a tornar-se magia‖. (FREUD, 1890, 126/127) Esta magia
corresponde ao poder do médico em desalojar os sintomas do corpo do paciente é comparado
ao poder de um curandeiro ou sacerdote. Apesar da já trabalhada desconexão da causalidade
da histeria com a localização anatômica, há um vínculo dos fenômenos histéricos com o
corpo, este que funcionaria a partir de então como um representante psíquico.
É certo que até esse momento da obra não estaria bem definido um conceito de
psíquico em Freud e sua relação com o corpo estava trabalhada pela via neurofisiológica, o
que não impede, porém, de levantar questões interessantes sobre como a histeria toma o corpo
e modifica seu modo de funcionamento.
Voltemos agora, à trama do filme. O acondicionamento de corpos parece ser definido
de forma direta e sucinta como uma limpeza e embelezamento para seu velório. Ainda, para
que seja escondida sua característica de morte, de putrefação. Lembramos o horror que causa
a Daigo o confrontamento com o corpo de uma senhora há duas semanas falecida e a reação
que o toma ao ver no jantar, tão carinhosamente preparado por sua mulher, o corpo de uma
galinha para ser comida crua. É interessante notar que esta seria encarada como uma iguaria
ao paladar se o acontecimento prévio não a tivesse dotado de um significado enojante.
Aparentemente, a cabeça da galinha parecia até possuir um semblante que encara nosso
personagem.
144
Mas devemos lembrar que não se trata, nesse ritual, somente do que poderia se
considerar como sua utilidade, mas de um significado. De acordo com as palavras do mestre
de Daigo nesta experiência, a limpeza serviria também para tirar a fadiga, a dor e os desejos
deste mundo e representa o primeiro banho de um novo nascimento, assim como o ritual de
vestir é para preservar a dignidade do morto.
É possível observar que, com a significação dada ao corpo, sua função muda
drasticamente de objeto a ser preservado e dignificado, para um objeto de consumo. No caso,
a metáfora de corpo como comida aparece em várias cenas do filme, começando com a do
polvo que restitui seu lugar de merecedor da vida, seguido pela galinha e seu semblante
perturbador. Há também os salmões que prendem a atenção de Daigo em seu esforço em
direção à morte, para voltarem ao lugar onde nasceram. Não obstante, os corpos são vistos
como seu único meio de vida, seja porque é preciso comer o de ―outros‖ para sobreviver, seja
porque ―os mortos são seu ganha pão‖.
De qualquer forma, um corpo fica restrito ao sentido que leva, e é disso que parece se
tratar o trabalho de Daigo que, em outras palavras, é definido no filme como ―fazer reviver
um corpo frio e dar a ele a beleza eterna‖. Notemos que aqui a aparência do corpo também
pode ser relacionada a um sentido próprio que faz com que a despedida dos familiares fique
mais humana e sentida como mais verdadeira. Assim, o pai de Tomeo só reconhece o filho
após a preparação, bem como a mãe de Miyuki não reconhece a filha nem após o ritual. Fica
claro, em outras passagens, que o ritual possibilita como que o último reencontro com a
pessoa querida que ―revive para se despedir‖.
Ainda em relação ao que sugere o embelezamento do corpo como forma de revivê-lo,
e da aparência que o constitui e o identifica em meio a outros, em seguida, traremos
comentários sobre nuances da sua concepção para Lacan que justificam e ilustram o devir de
sentido através de uma imagem constituinte.
Uma perspectiva do corpo em Lacan
A propósito da aparência, da imagem do corpo que ganha um sentido bem ilustrado no
filme, traremos alguns comentários sucintos sobre a constituição do corpo e sua relação com a
145
matriz do eu83 tal como foi abordado em algumas passagens do seminário I de Lacan.
Comecemos por abordar seu comentário da Traumdeutung, referente ao capítulo ―Psicologia
dos processos do sonho‖ (LACAN, 1953/1954, VII) em que Freud elabora o esquema no qual
insere o inconsciente, sua relação com as lembranças e a figuração do sonho como imagem.
Sendo todos esses aspectos possíveis de relacionar com nosso tema, mesmo assim devemos
escolher apenas aquele que oferece a ideia de um ―lugar psíquico‖, (LACAN, 1953/1954,
p.92) que figura como o campo da realidade psíquica, do que se passaria entre a percepção e a
consciência motora do eu.
No texto, Freud traz o exemplo de um microscópio ou de um aparelho fotográfico para
representar o instrumento que serve às produções psíquicas, para afastar-se logo da noção de
pertencer a uma localização anatômica. De acordo com sua comparação, este lugar psíquico
corresponderia a um ponto onde se forma a imagem que não corresponderia em si a nenhuma
parte material do aparelho. Justifica que essa aproximação, mesmo que imperfeita, serve para
fazer compreender o modo de funcionamento do psiquismo.
Lacan tomará a questão da óptica como fundadora de todo o conhecimento mais
fundamental relacionado à geometria e à mecânica. Neste sentido menciona sua base
matemática, pois para que haja uma óptica seria preciso corresponder um ponto do espaço
real, a um ponto do espaço imaginário sendo que os espaços se confundem, pois a dimensão
simbólica estaria permeando a manifestação de qualquer fenômeno. Ou seja, os fenômenos
mais reais que nos são apresentados pela experiência estão engajados pela subjetividade.
Assim:
Quando vocês vêem um arco-íris, vêem algo de inteiramente subjetivo. Vocês o
vêem a uma certa distância que se desenha na paisagem. Ele não está lá. É um
fenômeno subjetivo. E, entretanto, graças a um aparelho fotográfico, vocês o
registram de modo inteiramente objetivo. Então o que é isso? Não sabemos mais
muito bem, não é, onde está o subjetivo, onde está o objetivo. Ou não seria que
temos o hábito de colocar no nosso compreendedorzinho uma distinção muito
sumária entre o objetivo e o subjetivo? (LACAN, 1953-54, p. 93)
Mais à frente menciona sua construção intitulada como ―estádio do espelho‖ que se
refere ao processo de maturação fisiológica que permite ao sujeito, num momento de
prematuridade física, integrar suas funções motoras e ganhar um domínio do corpo. De
acordo com Lacan, em seu seminário, a imagem vista do total do corpo humano fornece um
83
Este eu é figurado no texto entre colchetes [eu] para distingui-lo como ―sujeito do inconsciente‖. Ver em
Escritos (1998) ―O estádio do espelho como formador da função do eu: tal como nos é revelada na experiência
psicanalítica‖ (1949).
146
domínio que se antecipa à formação motora. Essa condição dará o tom de sua relação com o
próprio corpo, com o outro e com tudo o que vivencia. Assim: ―É aí que a imagem do corpo
dá ao sujeito a primeira forma que lhe permite situar o que é e o que não é do eu.‖. (LACAN,
1953-54, p.96) E vai mais além:
Quer dizer que, na relação do imaginário e do real, e na constituição do mundo tal
como ela resulta disso, tudo depende da situação do sujeito. E a situação do sujeito
– vocês devem sabê-lo desde que lhes repito – é essencialmente caracterizada por
seu lugar no mundo simbólico, ou, em outros termos, no mundo da palavra.
(LACAN, 1953-54, p.97)
Se voltarmos agora ao filme, podemos começar a compreender como as
transformações na vida de Daigo se guiaram. Desde o polvo, que com o mesmo corpo muda
de lugar na subjetividade do casal e assim passa a ocupar instantaneamente uma dignidade,
até o corpo morto que passa a ser dignificado quase como vivo através do preparo de sua
imagem. Da mesma forma, o preconceito de Mikha se transforma de um sentimento de
vergonha para o de orgulho.
Assim como Lacan chega a mencionar que no campo de nossa relação com a imagem
não somos apenas um olho, entendendo todo o aparato anatômico necessário que forma a
visão, também poderíamos pensar as cenas da bela moça que tinha um pênis. Tomeo,
aparentemente, figura como uma delicada menina, que se vestia de forma feminina e era
tomada como tal a não ser pelo importante detalhe anatômico. Aí se coloca justamente a
questão da relação com o corpo, sugerindo que o ―ser‖ nem sempre se cola aos contornos
físicos. Para complementar este ponto de vista:
Há aí uma relação específica do homem com seu próprio corpo, que se manifesta
igualmente na generalidade de uma série de práticas sociais – desde os ritos da
tatuagem, da incisão e da circuncisão, nas sociedades primitivas, até aquilo que
poderíamos chamar de arbitrariedade procustiana da moda na medida em que ela
desmente, nas sociedades avançadas, o respeito às formas naturais do corpo
humano, cuja ideia é tardia na cultura. (LACAN, 1998, 107-108)
Esta seria a dimensão simbólica por trás da imagem e que parece animar a anatomia
em sua dinâmica de feixes de fibra cerebral, coração, faringe e músculos trazendo vida ao ser,
não importando, nesse caso, tratar-se de uma pedra, um animal ou um corpo morto. Sem
desconsiderar a diferença existente entre a dinâmica de vida que pulsa e a matéria inerte, o
filme traz a perspectiva de nos encontrarmos com outra instância da vida psíquica que por não
147
se prender somente a dinâmicas anatômicas confere novas formas de concepção de um corpo
e o modifica, assim como Freud percebeu em relação à histeria.
Para concluir, sem restringir o assunto a estes comentários introdutórios, é possível
perceber algo em comum nas ideias de Freud, Lacan e Takita sobre o que dá vida a um corpo,
ou seja, o que o constitui como um ser em sua dimensão simbólica de existência. Assim,
como na histeria as palavras ―ganham corpo‖ e fazem sofrer, também a relação com este
corpo o mortifica ou o revive através de sua imagem. A diferença entre vida e morte parece
residir então em algo mais sutil e inefável, numa forma de se ver, numa perspectiva da
imagem e a significação que doa sua importância.
Neste sentido, podemos compreender verdadeiramente a história de Daigo com o pai,
julgado como péssimo e esquecido, mas que teria permanecido constantemente presente em
sua vida através do violoncelo e da sua música predileta, tocada em vários momentos da
trama. Entendemos melhor agora qual o sentido que o violoncelo ―encarna‖, assim como a
pedra se transmuta em carta. De fato, o filho só distingue a imagem do pai a partir do
reconhecimento da pedra que cai de sua mão no momento em que prepara o corpo dele. O pai
só é restituído em sua imagem no momento de sua morte, mas de modo que ele possa existir
de forma mais clara e permanentemente na lembrança. De resto, já na altura da cena final, não
é preciso muito imaginação para saber o que a imagem do que seria apenas um homem
oferecendo uma pedra ao ventre de sua mulher, possa significar.
O lugar psíquico pode ser bem ilustrado então, sem inconveniente, num filme de
Yojiro Takita, em algum lugar entre a percepção e a consciência de quem o vê, num ponto
imaginário não correspondente a algum componente material e/ou corporal mesmo que se
apoie em seu aparato. Ou ainda, numa palavra que afeta o olhar, numa pedra que porta uma
significação tão sublime que pode marcar o tanto o fim como o começo de uma vida.
Referências bibliográficas
FREUD, Sigmund. (1886-1899) Publicaciones prepsicoanalíticas y manuscritos inéditos em vida de
Freud. Obras completas – 2ª ed. Amorrortu, 2010.
LACAN, Jacques. Escritos. Jorge Zahar. Rio de Janeiro, 1998.
LACAN, Jacques. Seminário I: Os escritos técnicos de Freud (1953-54). Jorge Zahar. Rio de Janeiro,
1986.
148
A Professora de Piano: Notas Perversas
Raya Angel Zonana
Resumo
O filme A Professora de Piano (Henecke, 2001), é tomado como um texto imagético, que a partir de
uma ―escuta psicanalítica‖, torna-se palco para uma visão da perversão.
Palavras-Chave: Perversão, psicanálise, cinema
The Piano Teacher: Perverse Notes
Abstract
The Piano Teacher (Hanecke, 2001) is taken as a text in images that, departing from a "psychoanalytic
listening", becomes the stage for a vision of perversion.
Keywords: Perversion, psychoanalysis, cinema.
Buscando alguma inspiração para pensar o filme A Professora de Piano (La Pianiste
de Michel Haneke, 2001), encontro em André Green (1971) um pensamento que me estimula.
Ao falar sobre a análise que o psicanalista pode fazer de um texto literário, de como a
psicanálise se encontra com a literatura, esse autor nos diz que o psicanalista não lê o texto,
ele o ―escuta‖ através de sua escuta psicanalítica. Para isso, fala de uma leitura flutuante que
perpassa as palavras e detém-se nos desvãos. Explica que esta não é uma leitura negligente,
pelo contrário, é uma leitura que provoca o aparecimento de idéias e afetos. Idéias que se
constituem enigmáticas, acompanhadas pelo fascínio da comoção que o texto provoca.
Levado então por este fascínio, o analista-leitor-intérprete reage ao texto através da associação
de idéias, pela qual naturalmente é tomado, como a uma produção inconsciente, como à sua
própria produção inconsciente. Transforma-se assim, segundo Green, no analisado do texto.

Versão modificada de trabalho apresentado em reunião científica na Sociedade Brasileira de Psicanálise de
São Paulo (SBPSP) em 31 de Maio de 2007

Psicanalista da Sociedade Brasileira de Psicanálise de São Paulo, medica psiquiatra Faculdade de Medicina
USP
149
Neste caso, o texto é imagético, e as imagens são poderosas, implicando o psicanalista
na história. As sensações escapam da tela e invadem o olhar. E no caso da Professora de
Piano, o universo da sexualidade e da perversão se impõe aos sentidos.
Encontrei nas idéias de Green algo que senti vendo e revendo o filme. De início,
assisti-o para retomá-lo e deixar vir à tona as lembranças que ele deixara em mim, quando o
vi pela primeira vez, há alguns anos atrás. E assim como da primeira vez, repetiu-se a
comoção, o choque e fascínio que as imagens me provocaram. Cabe aqui dizer algo sobre o
termo fascínio. Fascinar é atrair de maneira irresistível, encantar (enfeitiçar), alucinar,
deslumbrar (tirar o lume, a luz), dominar, hipnotizar, ofuscar, pasmar, subjugar, surpreender.
Estes são alguns dos sinônimos de fascinar, e lemos em Olgária Matos (1997)84 que há um
denominador comum nesses termos: a iminência de um perigo que se encontra na
ambiguidade do sentido da palavra. Todos esses termos levam à idéia de orientação e ao
mesmo tempo de descaminho. O fascínio provoca a perda de um rumo conhecido, a perda de
referências estáveis, e nos propõe uma instabilidade, um estranhamento. As imagens de um
filme facilmente são associadas às de um sonho. E assim como no sonho, tramado pelo
inconsciente, as imagens no cinema podem e fazem coincidir os contrários, expondo a
ambiguidade que transparece no humano, e aproximando sentimentos de intimidade e
estranhamento. Presa deste estranho encantamento, tomo este texto imagético, produção do
humano e que desencadeou em mim sensações que, pelo impacto, me movem a associar
alguns pensamentos que exponho agora ao leitor.
O filme
O filme tem seu cenário em Viena, Austria. A sociedade vienense transborda
musicalidade. Lembro aqui de Viena no final do século XIX, momento em que esta cidade era
um dos principais centros culturais da Europa, vivendo uma efervescência criativa em várias
áreas. O movimento que ocorre em Viena nesta época é de uma quebra dos padrões estéticos
que vêm na esteira de uma sociedade que se percebe em desintegração com o fim do Império
austro-húngaro. A Viena fin du siècle é também o berço da Psicanálise. Freud, ao descortinar
o inconsciente, descentraliza o Homem da racionalidade e o coloca à mercê do desejo, do
estranho que o habita e em torno do qual, esse homem irá constituir sua identidade, agora
plena de dúvidas e instabilidade. Mais tarde, Freud descreve como, a partir do Id - morada das
84
Revista Ide da SBPSP – n° 30 – 1977, p. 81.
150
pulsões, o ―espaço psíquico‖ mais primitivo do ser humano -, a criatividade, a possível
sublimação destas pulsões, se tornará ciência, arte, que são, para Freud, as mais elevadas
criações do humano. Das pulsões, do mais primitivo, da sexualidade, de Eros mesclado a
Thanatos é que surge a expressão mais sublime do Homem. Em uma cena do filme, a pianista
cita Adorno falando da angústia de Schummann, que, já próximo à loucura, tem a percepção
desta e continua criando, compondo, ainda que pressinta a perda da razão. ―Ainda sabe o que
significa a perda de si mesmo, antes de ser abandonado‖. Ela fala do crepúsculo da mente, da
loucura. É esta ligação entre a loucura e a arte, entre a dor e a arte que desponta como pano de
fundo do filme.
As mudanças políticas ocorridas no final do século XIX no chamado Velho Mundo,
desembocam na Primeira Grande Guerra e numa Europa onde a morte e a depressão levam a
um enfraquecimento do papel do Pai, fato que culmina com a subida ao poder de figuras
representativas do Grande Pai, perverso, despótico, como Hitler - nascido na Áustria -, que
toma o mundo como um joguete para seu próprio narcisismo, como vemos na bela e terrível
metáfora de Charlie Chaplin, no filme O Grande Ditador (1940). É nessa Europa, devastada
pelas guerras e reconstruída dos escombros restantes, que se instala, já em nossos dias, século
XXI, a modernidade dos Shoppings Centers ao lado de edifícios antigos e de prédios art
noveau, onde caminham pareados a liberdade sexual, o desejo de um consumo insaciável, da
busca do gozo e do puro prazer (marcas da pós-modernidade), e a repressão sexual da tradição
burguesa, onde o pop e rock convivem com recitais de música erudita promovidos por
famílias com restos aristocráticos. O filme ―La Pianiste‖ propõe um olhar para esse tema, pela
voz de Klemmer, jovem pianista que, num recital, pensava tocar Schöemberg85, ―pois os erros
passariam despercebidos‖, mas, após uma conversa com a professora, sobre doença e loucura,
decide tocar um ―scherzo‖ (brincadeira, em italiano) de Schubert.
Há a dualidade do
harmônico, da sonoridade de um compositor do romantismo, que convive junto ao
fragmentado, aos sons de uma música contemporânea, incômoda.
Temas incômodos, contrastantes, que expõem feridas vivas da sociedade
contemporânea, principalmente de uma Europa angustiada com o novo, com as diferenças que
85
Schöemberg foi o compositor que rompeu definitivamente com a estética musical vigente no final do século
XIX, acelerando um processo de erosão da antiga ordem na música. Chamou de emancipação da dissonância, a
rejeição do sistema harmônico diatônico, e ao longo do século XX, cria a música dodecafônica. ( Schorske,C.E.
– Viena Fin de Siècle – Companhia das Letras - 1988 SP)
151
insistem, são a matéria de Haneke86, cineasta premiado, mas de difícil aceitação por sua
estética agressiva.
A primeira cena do filme mostra uma mulher de cerca de 40 anos, com uma expressão
distante em um rosto de traços suaves, delicados, que, ao chegar em casa, é recebida pela mãe
idosa, rosto enrugado, severo, que censura a filha pelo atraso. Diz saber que o último aluno
saiu da aula há três horas. O que teria feito neste intervalo? Em seguida, arrancando a bolsa
das mãos da filha, abre-a e encontra um vestido e o talão de cheques que examina
ansiosamente. Segue-se uma discussão entre as duas. O vestido, novo, é rasgado e a mãe tem
os cabelos puxados e arrancados pela filha descontrolada. O corte de cena é feito através de
um close numa tela de televisão diante da qual a mãe queixosa choraminga e diz que uma
filha que bate na mãe deveria ter as mãos decepadas. O que seria para uma pianista ter as
mãos decepadas, senão a perda de seu instrumento de trabalho, de sua identidade? A filha
responde em tom áspero, agressivo, que aos poucos dá lugar à culpa, desculpas, e a uma
reconciliação em meio a lágrimas. A mãe, já mais calma diz ―somos assim mesmo, é o
temperamento da família. Comenta que a filha jamais poderia usar um vestido chamativo, ―da
moda‖, cuja fugacidade faria com que ficasse rapidamente ultrapassado. A filha responde
num tom calmo, que é uma roupa clássica, semelhante a um vestido que a mãe tinha tido na
juventude. A fugacidade do moderno, desta era líquida do objeto descartável em contrapartida
ao que seria o clássico e supostamente duradouro, entra em cena, não só como problemática
da pós-modernidade, mas também como ideia da relação entre mãe e filha que deve se manter
eternizada, com laços indissolúveis, sem cortes que venham do novo, do diferente.
À noite, após escovar os dentes numa cena trivial, mãe e filha deitam-se e dormem. Na
mesma cama. Não há privacidade ou espaço próprio. Tudo é comum às duas mulheres
fusionadas. Nestas primeiras cenas, já podemos perceber as nuances desta relação tão
delicada, tão intensa e tão impregnada de amor e ódio que ocorre entre mãe e filha.
A destruição do vestido novo, assim como os cabelos arrancados da mãe durante a
briga, fazem notar que o ódio talvez ultrapasse o sujeito filha ou o sujeito mãe, e se estenda
pelo feminino e seus emblemas: cabelos, vestidos, adornos, véus que velam (mal) o que se
teme ver: a falta.
86
Entre os filmes mais conhecidos deste diretor, estão Fita Branca, premiado em Cannes em 2009, e Caché
(2005). A professora de Piano recebeu em 2001, em Cannes, o prémio do Júri como melhor filme.
152
Uma cela
Na cena seguinte, mãe e filha entram no elevador de um edifício do qual fecham
rapidamente a porta, impedindo que um jovem homem também entre. O elevador, com uma
porta pantográfica vazada, permite que mãe e filha possam ver e ser vistas pelo homem que
sobe as escadas. A cena é paradigmática e sintetiza numa bela imagem a relação das duas
mulheres com o mundo exterior. Elas estão ―enjauladas‖, juntas e solitárias no elevador. O
homem sobe as escadas correndo, sozinho, ―por fora‖. A entrada do homem no mesmo
espaço, nesta ―cela‖ que elas ocupam, é impossível.
A professora de piano faz um recital na casa de uma família burguesa, em meio a um
jantar, assistida por uma pequena audiência. Próxima aos 40 anos, Erika não chegou a ser uma
concertista. É somente uma professora de piano. Assim que acaba o concerto, a mãe se
apressa a levar um abrigo para a filha.
De que uma mãe abriga seus filhos? Certamente dos perigos do mundo. Tanto de um
mundo externo, como de um perigoso e violento mundo pulsional interno. Neste mundo
pulsante, insistente, a mãe seria um refúgio sombreado, um espaço que procura amenizar a
falta de representações do infante, - este que ainda não tem fala. A criança gestada e sonhada
pela mãe, se constitui, ela própria, em uma sombra, uma sombra falada (AULAGNIER,
1979). Assim a mãe, ainda precedendo o nascimento da criança, supõe e fantasia seu filho
criando esta sombra imaginária que ela projeta sobre o corpo do infante no nascimento. Já
neste primeiro instante há uma imposição do olhar materno para que seu filho se molde a esta
sombra por ela expressa. É a mãe que sabe do corpo de sua criança. A voz da mãe se dirige a
este corpo, apaziguando-o, mas também, excitando-o. Constrói-o de maneira a que ele
confirme a identidade pré-estabelecida em fantasia. Aí se dão as primeiras grandes alegrias e
os primeiros desapontamentos. Escapam forças pulsionais que não conseguem ser
―entendidas‖ pela mãe, que falha em sua tarefa de eclipsar87 o calor do mundo interno, e sente
que o corpo de sua criança, embora dela dependente, é já autônomo e escapa ao modelo da
sombra falada. O sujeito se constitui, e constitui-se também o sujeito mãe, assim como se
constrói essa primeira e paradigmática relação, nas margens da qual, por caminhos ora
sombreados ora abrasadores, seguirão todas as outras relações da vida deste novo e precário
ser.
87
Armando Ferrari, psicanalista italiano, entende como uma função da mãe, a possibilidade de eclipsar para seu
bebê o facho de intensa luminosidade que as pulsões impõem à criança, nesse momento ainda sem condições de
mediá-las, representá-las.
153
A mãe, ao ―falar‖ o infante, toma o lugar de porta-voz. E, nas brincadeiras que faz ao
limpá-lo, nos arrulhos amorosos que com ele troca ao amamentá-lo, nas cantigas com as quais
o faz adormecer, ―ela comenta, prediz e acalenta‖ 88, podemos dizer, ela representa, todas as
suas manifestações, e o insere na cultura ao enunciar os ditames de uma ordem externa, à qual
ela também está submetida. Este é um passo necessário e fundante do psiquismo da criança.
Esse passo não se dá somente com leveza e graça, pois, tudo que a mãe oferece em sua fala,
com ternura ou severidade, como recompensa ou punição, se dirige àquela sombra sonhada,
falada e imposta àquele corpo que se supõe por ela coberto. É o ideário materno, os objetos
por ela libidinizados que vão ―formatar‖ o infante. Há aí uma interpretação materna que já
está matizada pelo princípio da realidade, pela cultura que envolve a dupla, e que colore o
espaço psíquico da criança que ainda vive no nível do princípio do prazer. Essa é uma
violência necessária imposta pela cultura. No entanto, pode haver um excesso. E é nesse
excesso, traumático, que se faz a loucura, ou, para usarmos os termos de Erika, a professora
de piano, é aí que se inicia, ainda na aurora da mente da criança, já, o crepúsculo dessa mente,
da qual se espera que pense, mas cujo pensamento se teme como fonte de mudanças, de perda
do controle.
O pensamento é o espaço do segredo, da individualidade, do que pode ser ocultado, e,
portanto, o espaço da diferenciação. Para uma mãe excessiva, intrusiva, o pensar da criança é
temido como aquilo que provoca trincas nesta relação tão firmemente articulada. É o motor da
mudança. Quando a mãe de Erika lhe fala de como deve cuidar de seu trabalho, de como deve
manter Schubert como seu, de como ninguém deve superá-la (ou superar a dupla, talvez, já
que o sucesso da filha é o sucesso da mãe), Erika lhe diz que não é ela, mãe, que terá ―como
julgar meu campo musical‖. Esse é o espaço no qual a mãe insiste em entrar e Erika, a duras
penas, insiste em impedi-la, pois percebe que a outra face seria o enlouquecimento.
Erika, em um diálogo com o jovem pianista que por ela se apaixona, Klemmer, conta
que Schubert morre com problemas mentais, assim como Schummann, outro de seus
compositores preferidos. A loucura é uma vivência que ela julga conhecer, já que, revela, seu
pai havia ficado por muitos anos num hospício onde havia falecido. Erika diz saber o que é o
crepúsculo de uma mente. Penso que é isto que o filme nos faz ver. Erika passa de um suposto
controle de seus sentimentos, de uma aparente frieza que a defende da dor, para um estado de
88
AULAGNIER, P. A violência da Interpretação: do pictograma ao enunciado. Rio de Janeiro: Imago, 1979,
(p.106).
154
descontrole, de sujeição a suas pulsões e, sem conseguir manter o domínio de seus desejos
destrutivos, acaba por destruir a si própria.
Um outro
A mãe de Erika perturba-se com o interesse que o jovem Walter Klemmer demonstra
por sua filha. O que poderá vir a mudar entre as duas, esse homem, esse outro tão diferente?
Só há espaço nesta ―célula‖, para um pai louco, morto, que não dita a lei. Mas o piano pode
ser este outro. Ao exercer seu ofício, Erika cria espaço para o segredo e individuação.
Schubert pode ser o homem que, pela insanidade, remete-a ao pai. Paradoxalmente, é na
loucura de Schubert que Erika encontra um pai que poderia operar uma ruptura com a mãe. E
na ambivalência entre o amor e o ódio, para estas duas mulheres, o ódio supera o amor. Como
lemos em Freud (1930), o outro e a necessidade que dele temos, só pode ser motivo de ódio.
A trágica professora de piano exercita esse sentimento de ódio, absorvido com o leite
materno da identificação, com todos os seus alunos. Observa e aponta insistentemente suas
falhas, destituindo de valor seus esforços. A pulsão de morte transborda num superego cruel,
impositivo. A perversão ou desvio, neste caso, aparece na criação de uma equivalência entre
ensinar e subjugar. Ataca invejosamente seus alunos pela liberdade que eles tem de buscar o
prazer e de viver sua sexualidade, como ocorre com um aluno adolescente. 89 Mas, é
especialmente má com Shober, menina feiosa que tem talento e, como ela própria, afinidade
com Schubert. Tenta prejudicá-la, destruí-la. Mas, se ao vê-la, vê a si mesma, a quem então
Erika destrói? E a destruição se faz na forma como instrumenta sua eroticidade. Eros e
Thanatos convivem, e em sua fusão e desfusão vão delineando a sexualidade perversa de
Erika. Ela não pode crescer. Esta é a ordem estabelecida para que nada mude na história que
se tece entre ela e sua mãe.
Vemos Erika entrando num moderno shopping, em uma loja de artigos pornográficos.
Só há homens. Ela aguarda para entrar numa cabine onde ao assistir um filme pornô, retira do
cesto de lixo lenços de papel usados, talvez ainda úmidos de esperma e os cheira. Goza ou
não? Se o faz, é com o cheiro90 do gozo masculino. Em outro momento, diz à mãe que irá
ensaiar na casa de colegas até tarde e pede a ela que não ligue para lá, pois não é mais criança.
89
Podemos pensar também no acesso à sexualidade que, em nossa cultura, ainda é mais permitido ao homem. O
filme alude a esta questão e Erika ―fareja‖ o gozo masculino.
90
Freud, em vários textos reafirma a ligação do olfato com a sexualidade. O Homem, ao passar para a posição
ereta, desvaloriza o olfato, priorizando a visão. O olfato, entretanto, permanece ligado à sexualidade primitiva.
Freud nos lembra que as crianças gostam do cheiro de suas secreções, assim como para os adultos elas são
155
Então, Erika vai a um drive-in e, em meio à escuridão, excita-se vendo e ouvindo casais que
fazem sexo dentro dos carros. Aí, dá vazão à sua excitação urinando ao lado dos carros, como
uma pequena menina que, de seu quarto, ao ouvir ruídos do sexo dos pais, diante da cena
primária, urina na cama.
Antes do jantar, no banheiro de sua casa, retira da bolsa uma gilete, e corta-se,
aparentemente no clitóris. Após limpar a gilete e guardá-la cuidadosamente na bolsa, penteiase e vai jantar com sua mãe. A dor marca e demarca o corpo. Se não há um outro cuja
presença exponha limites, a dor do corte pode fazê-lo.
Qual seria o gozo dessa mutilação, dessa dor? Lembro-me de Marie Bonaparte que se
submeteu à cirurgia de retirada do clitóris com o intuito de ter acesso ao gozo vaginal, que
seria, supostamente, o verdadeiro gozo feminino. O gozo do vazio, da falta. Lembro ainda da
existência de culturas, nas quais, logo após o nascimento, retira-se o clitóris das meninas, para
impedir o prazer sexual. No entanto, a cena não é tão explícita, e deixa que o espectador
imagine... Talvez o que Erika faça seja um corte no hímen. Tentar sair da sexualidade infantil
e tornar-se mulher, entrar no mundo da sexualidade adulta? Mas Freud (1917) nos mostra que
para que isso ocorra é necessário que o ritual do rompimento do hímen seja executado por um
outro91 que, ao romper este invólucro simbólico do corpo feminino, lhe traz a idéia de vazio,
falta e, consequentemente, da alteridade. Essa é a dificuldade de Erika, deixar-se penetrar,
permitir a intimidade.
No encontro com Walter, no banheiro, ordena-lhe que não a toque, ela é que irá tocálo, o que faz de forma mecânica e com certa agressividade, chegando a machucá-lo.
Masturba-o e o observa impassível, impõe e comanda o gozo dele. Não goza.
Intimidade e dor
O filme expõe contrastes, alternâncias entre cenas que propõem ao espectador certa
beleza, algum calor de sentimentos e cenas incomodas que retiram quem o assiste do conforto
da poltrona, tornando-o voyeur de uma sexualidade opressiva, subjugante. O espectador é
invadido, e é também colocado na posição de um invasor da cena. A banalidade com que
Erika se corta, assiste a filmes pornográficos, sem expressar prazer ou dor, sem sequer mudar
sua expressão, impacta. Assim é na perversão. O controle em relação ao objeto deve ser total.
91
Em Tabu da Virgindade, Freud mostra como em certas culturas, o rompimento do hímen é executado
ritualisticamente por uma outra mulher, ou por um homem mais velho, e não pelo marido. Porém, há sempre um
outro que ao romper o hímen, introduz a mulher no mundo da sexualidade, assim chamada, adulta, ou genital.
156
Não se pode sair do script. É como se a perversão, o fetiche, fossem sempre muito ―justos‖,
apertados demais para tamponar a angústia que surge caso a falta se faça notar. A fantasia
incestuosa é vivida diretamente, não simbolizada, como na cena em que Erika busca com a
mãe a relação sexual que não se permite com mais ninguém. Tudo deve ser medido com
cuidado para que não haja escapes. É assim o pedido que Erika faz a Walter numa minuciosa
carta onde descreve todos os movimentos que devem ser seguidos na ―atividade‖ sexual da
dupla. Assim procedendo, o que Erika evita é exatamente que haja uma dupla. A perversão
transforma o outro em ―algo‖, com o qual se goza. O objeto tem uma opacidade na medida
em que é uma extensão do próprio corpo. Não é possível o contato, se não há outro. No início
do filme, Erika caminha num movimentado Shopping Center e, em meio à multidão, um
desconhecido esbarra em seu ombro. Erika limpa insistentemente o ombro, o local do
―perigoso‖ contato.
Walter tenta seduzi-la, quer abraçá-la, tocá-la, conversar com ela. Conversar talvez
seja uma das maneiras mais claras de viver a alteridade. Num diálogo explicita-se a
diversidade do pensamento, a diferença do que se tem de mais íntimo. Erika não consente
nessa aproximação. É através dos instrumentos que guarda debaixo da cama (como uma
menininha que esconde seus tesouros da mãe) que se aproxima. As cordas para amarrá-la,
subjugando-a, são concretizações da prisão que vive com sua mãe, e com ela própria. Quando
Walter sai de sua casa, após satisfazer as fantasias sado-masoquistas de Erika, machucando-a,
é na cama com a mãe que Erika se consola. Na relação incestuosa a professora de piano não é
mais do que uma pequena menina curiosa com a sexualidade da mãe, – ―vi os pelos do seu
sexo‖ 92 lhe diz - cujo único desejo é ser para sempre a menina da mamãe.
Com a carta na qual ordena os atos que Walter deve realizar para ―amá-la‖, ela, busca
deter o poder da relação impedindo intimidade e conhecimento. Exerce sua ―função‖ de
professora perversa. No entanto, à medida que ele se nega a fazer esse jogo, é ele que passa a
ter o domínio. Erika se depara com alguém que não a obedece, que efetivamente a submete e
de quem necessita. A partir desse ponto vemos a degradação emocional de Erika. Seu
crepúsculo.
Percebemos também que Walter acaba preso nas tramas da perversão. Após tentar
desvencilhar-se, cede e deixa emergir seus aspectos perversos. Lê com horror a carta, mas
termina por atuá-los, até prazerosamente com Erika. Invade sua casa, possui-a à força, (como
92
Também os pêlos femininos tornam-se um fetiche, através do qual, a visão da mãe como não possuidora do
pênis é ―recusada‖.
157
Erika exigia na carta). Age assim, após perceber-se ―louco, masturbando-me embaixo de sua
janela, você é louca e quer me enlouquecer‖. Também ele perde, por alguns instantes, a sua
autonomia, recuperada logo a seguir. Em vários momentos do filme, Walter triunfa sobre
Erika, como ocorre nesta cena. Logo após a prova de admissão para o conservatório diz,
arrogante, que sua apresentação foi brilhante. Após um encontro sexual com Erika no
banheiro asséptico do conservatório, corre e pula pelo corredor atapetado de vermelho, em
claro contraste entre uma sexualidade contida e outra esfuziante, e na última cena, entra no
teatro rindo e desprezando Erika. Há no personagem um tom de arrogância e poder desde o
primeiro encontro com a professora. Walter se constitui num homem que não se dobra às
negativas da professora. Pelo contrário, invade seus espaços, a sala de aula, sua casa, a cabine
do banheiro. Faz o que a mãe dela sempre fez, e assim reedita uma dupla sado - masoquista93.
Esse cenário, onde se origina?
Freud (1919) vai seguindo passo a passo uma fantasia infantil e aporta na idéia de que
ao fantasiar que apanha de seu pai94 nas nádegas, a criança serve a dois senhores. Nesta
fantasia masturbatória, o desejo edípico da criança, ser tocada pelo pai, se realiza ao mesmo
tempo em que é punida por esse desejo. Os dois senhores? Eros e Thanatos imbricados e
satisfeitos na mesma fantasia. Assim também, em ―O Problema Econômico do Masoquismo‖,
texto de 1924, Freud entende que a culpa ―inconsciente‖ pelos desejos edípicos seria punida
com torturas infligidas ao sujeito que, no entanto, retiraria delas, um enorme prazer.
Sentir os odores do gozo masculino, provocá-lo, ou impedi-lo, no outro, e manter-se
observadora, colocar-se subjugada, maltratada pelo homem, determinando o gozo deste, e não
gozando, imputar-se dores e mutilações são as formas de sexualidade que Erika se permite.
Afasta-se da mãe e mantém-se unida a ela, no manter sob controle o gozar do outro. Não há
consideração pelo objeto, e sim despersonalização, desubjetivação, como maneira de evitar a
intimidade e dependência ameaçadoras.
Eliane R. de Moraes (in Sade, 1991), nos conta como os libertinos de Sade rejeitam
todo tipo de relações que impliquem dependência entre indivíduos: sentimentos de
compaixão, fidelidade, solidariedade, levam à escravização. As virtudes são para os fracos,
merecendo o amor, signo da falta, marca da carência, nada mais que desprezo. E, citando
93
O filme é baseado em uma novela da escritora austríaca Elfriede Jelinek, com aspectos autobiográficos. Na
versão escrita, o personagem de Walter tem alguns elementos que o ligam ao nazismo, o que nos remete a um
outro filme que trata dessa mesma questão: ―O Porteiro da Noite‖. (Liliana Cavanni)
94
O nome Walter, aproxima-se da palavra Vater, que em alemão significa pai.
158
Dolmancé, personagem sadeano: ―E cada um de nós não é para si mesmo o mundo inteiro, o
centro do Universo?‖.
Freud (1905) expõe a sexualidade humana como desviante, pois, fundada nas pulsões
de auto-conservação, na necessidade, dela se desvia em busca do prazer. É um texto
revolucionário num início do século XX: ―... sob a influência da sedução, as crianças podem
tornar-se perversas polimorfas e podem ser levadas a todas as espécies possíveis de
irregularidades sexuais. Isto mostra que uma aptidão para elas existe inata na disposição das
crianças.‖ Freud continua e conclui que ―... esta mesma disposição para as perversões de toda
a espécie é uma característica humana geral e fundamental‖. A maneira como esta
sexualidade é instrumentada na busca do prazer, e o investimento no objeto, a partir do
interjogo entre Eros e Thanatos, é determinante.
Cem anos depois de Freud, Michael Parsons (2002) descortina, através de alguns
autores, parte do panorama que pode nos ajudar na difícil aproximação à perversão e à Erika.
Mc.Dougall (1986), aponta que a idéia de perversão somente pode ser referida a
relacionamentos nos quais, como propõe Stoller (1985), há uma despersonalização do objeto,
uma tentativa de desumanizar o outro para evitar a intimidade. Khan (1974) fala da perversão
como o maior esforço em busca de uma intimidade, ao mesmo tempo que é uma defesa frente
a ela.95
Na perversão o objeto é uma extensão sem limites do próprio corpo, usada como
suporte para a descarga da pulsão. Erika goza no corpo de Walter. Olha para o pênis ereto
deste e o impede de se tocar. O pênis é dela.
Para Green, o objeto revela a pulsão exatamente como um revelador químico faz em
uma película de filme fotográfico. Objeto este que vai sendo impresso e para sempre marcado,
desde a ―fotografia‖ tirada no momento do emblemático primeiro encontro com o seio
materno, modulado com o som da voz da mãe e colorido pelo seu olhar. E assim, qual detalhe
desta cena será para sempre guardado e passará a ser o ―disparador‖ para o aparecimento, na
memória, daquele primeiro retrato, será sempre um mistério que se repetirá a cada novo
encontro na busca eterna deste primeiro objeto. Essa é também a maneira como se constitui o
fetiche, ―detalhe significativo‖ que ativará a sexualidade e que ficará para sempre colada
sobre o primitivo objeto de desejo, criando para o sujeito um cenário que o despiste da visão
da incompletude do objeto.
95
Os trabalhos de Mc Dougall, Stoller e Khan aqui referidos, estão citados no texto de Michael Parsons de 2002.
159
Nos jogos perversos, na verdade, não há jogo. Há um controle da situação, sem
entrega, sem espaço para a fantasia, que é o verdadeiro motor de um jogo sexual. Imagino se
para essa professora de piano existe essa possibilidade, se em algum momento a fantasia pode
acontecer. Vemos que o que é capaz de provocar uma mudança de expressão, alguma
comoção em Erika é a música, apesar de tentar conter-se, controlar-se para que seus
sentimentos não lhe escapem. Nos movimentos musicais ela pode ver nuances. Observa com
cuidado as variações e intensidades dos tons e ritmos das peças musicais. Ela diz para Walter
durante uma aula: ―Schubert vai do grito ao sussuro.‖ Será que Schummann e Schubert
fariam, em seu mundo pulsional a sombra que sua mãe não pode fazer? Poderiam, através da
música, nuançar um mundo de sentimentos onde a alteridade se fizesse presente? Seria
possível criar um outro cenário?
Na Realidade de um Cenário
Se o cenário criado é a morte, a dor, a submissão, onde e como esse cenário foi
apreendido como fonte de prazer?
A resposta a essa pergunta não está no filme. Talvez essa seja uma pergunta para a
qual não haja resposta e, como psicanalistas, possamos somente tecer hipóteses, pois a
verdadeira estória fica sempre submersa naquele espaço onde a palavra não habita. Para não
nos perdermos ao caminhar pelo labirinto de idéias, o fio de Ariadne que tomamos como guia
é sempre a clínica. A teoria para Freud surgiu de sua observação às pacientes que o
procuravam para curar suas dores.
Não cabe aqui, pelo cuidado e respeito ao segredo96 do paciente, expor uma situação
clínica. Um filme é um tema no qual o psicanalista pode apoiar sua escuta para evocar sua
experiência viva com as pessoas de cujo sofrimento se aproxima e busca compreender. Entre
o cinema e o divã há uma ferida viva que não termina quando as luzes da sala se acendem. No
entanto, na sensibilidade da cena de um filme, muitas vezes, encontra-se um tênue fio que
reflete a dor que deveras se sente97.
Num processo de análise, as cenas se repetem e as cenas mudam.
96
Segredo aqui, tomado não somente como sigilo medico, mas também com a ideia de intimidade, de
individualidade e identidade com o qual esta palavra é usada por Aulagnier, já citada anteriormente neste
trabalho.
97
Referência ao poema Autopsicografia de Fernando Pessoa, do qual transcrevo o trecho a seguir: O poeta é um
fingidor, finge tão completamente, que chega a fingir que é dor, a dor que deveras sente.
160
Erika submerge tomada como refém da mãe que também não suporta as diferenças, a
passagem do tempo, a própria feminilidade e uma ausência paterna que, ao não fazer o corte
entre mãe e filha, não permite que Erika se destaque.
O incesto, onde não há o corte e a individuação, cria a cena perversa. Um genitor
narcísico engloba o filho, não como um outro, mas sentindo-o como uma extensão de si
mesmo.
No artigo Incesto: o corpo roubado, (TESONE, 2005), lemos ―O desejo de um não é
compatível com o desejo do outro. Em sua ‗utopia totalizante‘, o pai (mãe) incestuoso (a)
vivencia-se como o dono do tempo e o dono da morte‖.
Lembramos também Ferenczi (1932), sobre a confusão de línguas entre adulto e
criança, situação na qual a criança entende como ternura e jogo lúdico, a sexualidade que o
adulto lhe impõe, e que assim se inscreve como traumática.
Mas o filme, em sua polissemia, como toda obra de arte, abre várias vertentes para o
imaginário. Deixa brechas para que, assim como nos diz Green, possamos ―dar ouvidos‖ à
nossa escuta particular. Este foi nosso exercício neste trabalho. A psicanálise abre o campo
para outras escutas, com outras teorias, para observarmos outros ângulos de cada história.
E por fim...
A cena, no caso de Erika, não muda. Walter poderia apontar para um outro caminho.
O final do filme, no entanto, nos mostra essa impossibilidade. Ela repete a cena traumática,
atuando-a, ora na posição passiva, ora como aquela que submete Walter obrigando-o a
obedecê-la.
Nessa repetição não se promove a simbolização. A cena incestuosa impede. A pulsão
de morte domina o palco, como no ―deslizamento‖ de Erika, que se lança com o olhar perdido
sobre a branca e vazia pista de gelo, após um frustrado encontro, que poderia ter sido
amoroso.
No dramático liede de Schubert tocado no filme, está sintetizado este pungente final.
Erika apunhala - se no peito98 e sangra pelas ruas de Viena, enquanto na sala de concertos, a
música prossegue. Na letra do liede, a indiferença diante da tragédia, mantém o contraste com
o qual Haneke pontua todo o filme:
98
Esta cena ocorre de forma muito semelhante, também em um filme mais recente ―Cisne Negro‖, dirigido por
Darren Aronofsky, de 2011, cuja temática é a mesma de ―A Professora de Piano‖.
161
Os cães latem, sacodem as correntes As pessoas dormem em suas camas.
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SBPSP.
162
Raquel e o Duplo ou — Programa Moderno de Produção das
Garotas de um Diário
Alessandro Zir99
PPGICH/UFSC
GIFHC-ILEA/UFRGS
Resumo
Ensaio sobre o filme Bruna Surfistinha (2011), cotejado com o livro que lhe teria servido de
inspiração. Parte-se da ideia do sexo como simulacro sedutor a serviço de um programa ascético de
escrita. Tal programa dá origem ao fenômeno Bruna Surfistinha, como duplo subjetivo, efetivado no
livro e até certo ponto desmascarado no filme. Conclui-se com um desvelamento da escrita pela
imagem, suja, opaca, que não se mostra (nem no filme) — fundo irredutível, negativo, de onde a
história se projeta.
Palavras-chave: escrita, tecnologia, imagem, simulacro, duplo
Raquel and the Double or — Modern Production Program of the Girls of a Diary
Abstract
Essay about the movie Bruna Surfistinha (2011), in view of the book that inspires it. We begin with
the idea of sex as a seductive simulacrum fostering an ascetic writing program. This program is what
generates the phenomenon Bruna Surfistinha as a subjective double, actualized in the book, and (to a
certain extent) unmasked by the movie. In the end writing is uncovered by a mucky, opaque image, a
negative which is not shown (even in the movie): the irreducible background from which the story is
projected.
Keywords: writing, technology, image, simulacrum, double
99
Alessandro Zir é doutor pelo Interdisciplinary PhD Program da Dalhousie University (Halifax, Canada). Tem
publicações no Brasil, Canadá, Chile, Portugal e Estados Unidos, incluindo um livro, capítulos de livros, artigos,
crítica literária e de cinema, traduções e ficção. Membro do GIFHC (Grupo Interdisciplinar em Filosofia e
História das Ciências), do ILEA (Instituto Latino-Americano de Estudos Avançados da UFRGS), tem
apresentado trabalhos em simpósios internacionais em instituições como o Max-Planck-Institut für
Wissenschaftsgeschichte (Berlim, Alemanha), a Norwegian University for Science and Tecnology (NTNU,
Trondheim, Noruega), e a Universidade Católica Portuguesa (Braga, Portugal). Está vinculado também ao
Programa de Pós-Granduação Interdisciplinar em Ciências Humanas da UFSC, onde realiza pesquisa de pósdoutorado. E-mail: [email protected] Curriculo Lattes: http://lattes.cnpq.br/7023315469948047
163
O sexo como o menos importante
Já na contracapa do livro, o caso é assim apresentado ao leitor: ―Em O doce veneno do
escorpião, você vai conhecer detalhes inéditos da menina de classe média alta que trocou os
finais de semana com a família na praia para se prostituir aos 17 anos. Ela revela, pela
primeira vez, histórias de amor, dor, vida e muito sexo‖ (SURFISTINHA, 2011).
Apesar de o sexo ser o elemento mais enfatizado, o que arremata a série, ele não é o
foco exclusivo. Trata-se antes de um imperativo, que pode ser tanto uma ideia fixa como uma
estratégia de marketing, e é também, antes de qualquer coisa, na própria banalidade
esclarecida com que se apresenta, um simulacro sedutor. Um fundo falso. Porque o sexo,
como o auge daquilo que é prometido, na verdade não apenas não é a característica essencial
do fenômeno Bruna Surfistinha, mas não é sequer um elemento importante da sua
constituição. Está muito longe de ser uma finalidade, aquilo a que se almeja. É um mero
instrumento, através do qual, outra coisa se constitui.
E de fato, enquanto fenômeno de venda (e não apenas no Brasil), é possível que o
livro funcione como recurso masturbatório. Basta passar os olhos por uma ou outra passagem,
de tamanho menor que um parágrafo, para se alcançar um efeito estimulante, que, no entanto,
uma leitura mais detida da obra como um todo, inevitavelmente satura. Com relação aos
leitores sôfregos, Bruna Surfistinha antes de ser faturada, fatura, tornando-se livre não para
fazer programas, mas para se dedicar ao programa de se escrever. Ela os instrumentaliza
tanto quanto o próprio sexo, e é isso mesmo que dá origem, no final das contas, aos livros, ao
filme, a Bruna ela mesma. Não se trata de exploração comercial, mas de sacrifício ascético em
nome do poder produtivo da escrita e outras tecnologias narrativas de inscrição. Uma escrita
que, para além de discursos moralizadores, ainda se vincula à raiz moderna do sexo enquanto
simulacro de uma potência geradora de discursos — do sexo como máscara daquilo que, no
século dezenove, se institui como volonté de savoir (FOUCAULT, 1976).
É assim que, já nas primeiras páginas de O doce veneno do escorpião, descreve-se
também o decorrer, num único dia, de cinco programas de Bruna. Aparentemente, o que fora
prometido é disponibilizado da forma mais generosa. Bruna e seus parceiros gozam duas, até
três vezes por programa, a cada parágrafo. O estilo é fluido, sem que falte espaço para
metáforas de um erotismo de tipo mais elaborado: ―sinto a barba [dele] por fazer, enquanto
com minhas mãos entre suas pernas sinto o mundo virar pedra‖ (SURFISTINHA, 2011: 6). E
nesse estilo, a narradora aparece inoculada de uma malícia contra si mesma que, apesar da
164
brutalidade, é sinal de inteligência: ―o que pode ser excitante para muitas garotas como eu, na
efervescência dos vinte anos, para mim é rotina‖ (SURFISTINHA, 2011: 10). Ou seja,
comprovando o que aqui sugeríamos, não é que o sexo não importe — ele importa, mas como
aquilo que possibilita, antes de qualquer coisa, um trabalho. Um trabalho esquizo que é o
programa de produção, de criação (literária, tecnológica) de si mesma e de um duplo: ―bem, é
uma longa história. A minha, pessoal, e a de Bruna. Sim, somos duas‖ (SURFISTINHA,
2011: 11). O je fêlé (DELEUZE, 1968: 118) aqui se esquiva na própria singeleza do dito,
resultado do seu trabalho.
Um trabalho que, numa formulação só aparentemente paradoxal, a narradora diz
―escolhi por não ter outra escolha‖ (SURFISTINHA, 2011: 11). Quer dizer, o duplo é aquilo
que se escolhe (uma identidade mais próxima de um ideal, Bruna), partindo de um contexto
que não se escolheu (aquilo que se sente que se é, por contingência, Raquel). Mas é
interessante reparar que a própria Raquel é também criada (individualizada) nesse percurso. E
o filme, naquilo que ele tem de mais fiel à essência da narrativa em que se inspira (pouco
importando discrepâncias de conteúdo), faz com que a garota se desdobre (individualize,
ganhe corpo) outra vez: na constituição de Raquel e Bruna por Deborah Secco, duplos da
atriz. Que idade ela tem? Bem mais do que a personagem. Empenho esquizo de interpretação,
que não pode senão implicar numa aproximação mínima do nódulo obscuro do je fêlé.
Raquel, Bruna e Débora, todas elas, quem sabe, simulacros de outra imagem mais recuada,
irredutível e opaca: uma velha puta da Augusta. Seja lá como for, o filme todo, independente
do roteiro bem amarrado, vale, principalmente, pelo processo simultâneo de ocultamento e
criação desses personagens, dessas máscaras irredutíveis e intercambiáveis: enquanto
tecnologia audiovisual de inscrição, sua especificidade é ser parasitário do trabalho do ator
(da atriz) — em última instância teatral, mas de um teatro essencialmente moderno, de tipo
filosófico, que visa à individuação (FOUCAULT, 2001).
Raquel
Nesse processo de elaboração, Raquel é ―a menina‖, a parte que não foi escolhida
(como deixa claro o título do segundo capítulo do livro). E isso não contradiz o fato de ter
sido adotada, porque o que importa como escolha, nesse processo de produção programática,
é só o que o próprio sujeito determina (para si mesmo). E Raquel, enquanto menina escolhida
por uma família que se sente, em todo o seu estranhamento, como um outro, é, antes de mais
165
nada, uma condição contingente da qual o sujeito (ela mesma), a mulher adulta e
autoconsciente, num imperativo moderno, tem de se emancipar. Quer dizer, Raquel vai ser
constituída ela também como algo que, através de uma escolha deliberada, abarca e, por fim,
até mesmo suplanta (ou ameaça suplantar) o seu contexto contingente — a ela vai ser dada
uma história, a história do que ela era e por quê. A história de como ela se transformou em
Bruna (aquela que, mais do que adota, escolhe a si mesma, numa transparência consciente).
Pior que o sexo, o natural aqui, o familiar (a família, os pais, a irmã) é o ponto
execrável de onde se parte, e não a meta que se quer atingir. É a matéria amorfa sobre a qual
se vai trabalhar, labutar, a fim de transformá-la em alguma outra coisa que o sujeito possa
dizer totalmente sua, porque ele mesmo elaborou. E isso, na medida em que Bruna Surfistinha
é um ícone para muitas garotas como ela, e nem tão como ela, independe completamente da
adoção. Repetindo o clichê sociológico e psicanalítico que não deixa de ser verdade, na
metrópole moderna, uma boa dose de estranhamento com relação à família é sentida por todos
os jovens. Quer dizer, o processo de subjetivação dessas pessoas, isto é, de sua
autoconstituição enquanto indivíduos, depende de fatores que são na sua maior parte externos
à esfera familiar, e que muitas vezes até mesmo a desautorizam: a ―turma‖, ―revistas de
menina‖, televisão, internet etc. O sujeito se produz através de uma desfamiliarização e até
mesmo de uma desnaturalização, as quais encontram apoio em diferentes tecnologias de
inscrição.
E a infância passa a ser não aquilo que se teve, mas o que possivelmente se vai ter.
Enquanto fenômeno de espontaneidade natural, ela precisa ser radicalmente negada, e a sua
essência lúdica é assumida apenas enquanto promessa futura, sob o preço de estar atrelada à
autoconsciência do sujeito que se determina. O olhar da narradora sobre o seu passado chega
ao mais absoluto distanciamento. A história de Raquel (antes do nascimento de Bruna) é
fixada no eixo inexorável de uma transformação da ―meiga filha mimada‖ para a ―adolescente
sem freio, mentirosa‖ (SURFISTINHA, 2011: 15). Não que, na narração dessa infância, não
haja passagens que escorreguem para espaços de afetividade genuína e sonho. Assim como há
momentos de dificuldade (o entendimento da questão da adoção, por exemplo), há outros de
extravasamento (quando se mudam para a chácara e o pai constrói uma tabela de basquete no
quintal). Mas o impulso mais premente dessa narrativa é o de uma apropriação paulatina de
todos esses ―deslizes‖. Cada lembrança do passado termina numa reflexão que o resgata e
projeta no futuro: ―não discordo do método [que meus pais] usaram, pois talvez não
conhecessem outro. Com meus filhos, no entanto, acho que farei diferente quando a hora
166
chegar‖ (SURFISTINHA, 2011: 30). Mesmo o espaço de indeterminação, que vem de uma
generosidade genuína de não querer prejulgar (a atitude dos pais), é um espaço que se limita à
não-interferência na capacidade de autodeterminação dos outros (e de si). É a folga necessária
para a realização da utopia intersubjetiva de que todos (sem contingência, sem família, sem
natureza) se autodeterminem, e aquele que melhor se autodeterminar nesse sentido será, no
passado, no presente, e no futuro, o mais bem realizado, sucedido. Na verdade, talvez, nada
mais que a transparência fugaz de um espelho (tela vazia em que algo se projeta), onde uma
dada possibilidade de controle, autocontrole, e poder se autorreflete ad infinitum como
sedução (BAUDRILLARD, 1977).
Bruna
Bruna nasce no intervalo de uma tarde, e ela já nasce adulta (nascer é o termo utilizado pela
narradora do livro). Nasce uma mulher totalmente emancipada, mais aos moldes de um réptil
do que de um mamífero. Qualquer hesitação que pudesse haver ainda no primeiro programa,
que se inicia ―meia hora‖ depois que Raquel troca a casa dos pais pela casa da cafetina
Larissa, vai ser inequivocamente suprimida ao longo dos próximos cinco que imediatamente
se seguem (SURFISTINHA, 2011: 14). Na medida em que os seis programas decorrem a
narradora adquire a segurança de que nunca mais voltará para casa e nunca mais vai rever os
pais. Ela torna-se o duplo de si mesma, ou Bruna, a esquizo (aquela capaz de nos contar tudo,
num diário, sobre ela própria, e sobre Raquel).
No momento em que essa certeza é escrita, passaram-se já três anos. Mais do que
nascer rapidamente, Bruna nasce quase que como uma abolição de qualquer noção ―natural‖
de passagem do tempo, ou duração. Os três anos são como que um instante quase imediato de
estiramento daquela tarde em que tudo começou (ou se rompeu). Já estavam contidos nela, e,
além disso, sem dúvida, pela transformação que nela se desencadeou, poderiam ser dito não
apenas três, mas tranquilamente trinta — a idade (dissimulada) da atriz? E não haverá volta ao
passado, à família, à chácara (natureza), senão através do crivo reflexivo da mulher que se
escreve, interpreta a si mesma e ao seu duplo. É Bruna quem, escrevendo, dá a Raquel uma
verdadeira existência, mas se afastando dela, num movimento de negação da sua
contingência, daquilo que ela poderia ter de meramente fortuito ou afoito. Processo que, no na
tela, é desmascarado, mas conduzido ao clímax, pelo virtuosismo interpretativo de Deborah
Secco. No que diz respeito ao livro, e mesmo ao filme, o programa de produção das garotas
167
de um diário é eminentemente moderno, e só tem algo de pós-moderno ou de arcaico
enquanto efeito de uma força que não é causa, quer dizer, que apenas se insinua, não pode ser
assumida como objeto por nenhum sujeito, e inevitavelmente escapa das suas próprias
intenções (KLOSSOWSKI, 1969: 35, 39-87, 316-18). É em sentido semelhante que
movimentos como a desconstrução não apenas não são programáticos, mas só podem se
―efetivar‖ no que há de mais precário.
Ao contrário, é extremamente efetiva (construtiva, moderna) a forma como Bruna age
com os meninos inexperientes do colégio Dante Alighieri, que vão em bando até a casa da
cafetina Larissa. O que nesses ―moleques de 12, 13 ou 14 anos‖ pode haver de idiossincrático,
estranho, aquilo que desafia o entendimento comum é, no espaço do prostíbulo, resgatado a
fim de ser preparado e colocado em discurso, efetivado. A inexperiência dos meninos é
trabalhada pela ―professora‖, que os faz sair dela, sair desse espaço opaco, inalcançável do
outro, sair do seu reduto, e alcançar um ―fim‖ comum, intersubjetivo (atestado pela
consciência de si mesmo e do outro): ―que estranho‖, diz Bruna, ―eu... inexperiente... na cama
com alguém ainda mais inexperiente! Mas acabava sendo natural. Nessa idade, os meninos
são meio afoitos. No começo, foi estranho, difícil até. Mas eu me acostumei. E descobri como
fazer eles relaxarem e irem até o fim‖ — alcançar a meta intencional (SURFISTINHA, 2011:
31-32).
Como Raquel, Bruna de certa forma também é escolhida, porque ela é a preferida pela
maioria dos clientes que vão à casa de Larissa. Mas há uma diferença colossal aqui, porque,
enquanto Bruna, ela é escolhida não numa situação de total contingência (como a adoção de
Raquel), ela é escolhida tendo já previamente se autodeterminado e escolhido a si mesma. É a
escolha de uma outra escolha, em que a autoconsciência de mim e do outro se encontram
numa confirmação identitária. Ela agora pode se identificar na escolha do outro e vice-versa.
Os elementos de surpresa, as opacidades, foram todos eles domesticados.
É pelos mesmos motivos que a experiência com as drogas se revela paradoxal. A
droga, até certo ponto, potencializa o processo moderno, atomístico, de autoprodução
subjetiva a partir do vácuo, longe da família. Mas, a partir daí, ela também se configura num
risco, por causa da possibilidade de dependência que, como retorno do reprimido, em última
instância, arrebataria o sujeito dele mesmo. Bruna tem disso uma consciência muito clara:
―sabia que se não desse uma virada na minha história, ia me perder total, sem objetivo, só
trepando o dia todo para cheirar e fumar tudo depois do expediente. Enfim: a imagem da puta
sem esperança, que vira bagaça e acaba sozinha fazendo ponto numa calçada ou pendurada
168
numa janela de um casarão velho‖ (SURFISTINHA, 2011: 47). E essa imagem que, junto
com a droga, precisa ser exorcizada é a da velha puta tradicional e arcaica (talvez não
exatamente pós-moderna, mas certamente amoderna), aquela da Rua Augusta, contemplada
de longe por Raquel na companhia dos pais (quando Raquel não sabia ainda quem era, e que
no filme, foi totalmente obliterada, o mais genuíno off-screen) (SURFISTINHA, 2011: 22).
A puta da Augusta
Não estaria aí, nessa imagem em off-screen a ser eternamente esconjurada, impossível
de mostrar, o motivo inconfessável de todo imperativo de escrita? É que Raquel, antes de ser
Raquel, e emergir criada, com seu duplo, por diferentes tecnologias de inscrição, talvez
tivesse experimentado, em algum momento, como poucos, a fascinação que existe na
possibilidade de se deixar simplesmente levar (por uma força, um impulso, em suma, uma
imagem). Aquilo que desfaz a escrita como programa (moderno), e que desconstrói o sujeito
em sua individualidade arraigada, em sua unidade corporal bem delimitada (organizada com
vistas à função reprodutora). O exemplo mais eloquente nesse sentido, que constitui a
passagem mais pungente tanto do filme quanto do livro é o encontro fatídico, literalmente
proibido e inimaginável, dela com um colega por quem ―morria de tesão‖ (SURFISTINHA,
2011: 49). Ainda sem consciência, Raquel era aqui conduzida por aquilo que é a essência
mesma da pulsão, ligada à possibilidade de perdição ―perversa‖ do sujeito que a ela se
entrega. Perdição que é de uma ordem intensiva, e extrapola a efetivação da meta subjetiva de
obtenção de prazer como resultado. Essa experiência, no filme, tem um preço, social, que não
é propriamente o da perdição efetiva: ao deixar se manipular pelo garoto, ela acaba rejeitada e
marginalizada. E depois do trauma, a escrita, a internet, o filme emergem como tecnologias
capazes de reprogramar o desejo (em termos de sexo). Mas quanto mais ela os atrela (o desejo
e as tecnologias, através do sexo, fundo falso, potência criadora de discursos) à
autoconsciência, mais ela os trai. O livro, um diário de produção de um duplo, vende
enquanto objeto de passar os olhos. Simulacro sedutor através do qual a narradora, a garota,
inteligente, se vinga do garoto e de todos nós. É aí que o filme talvez, e só o filme, ―resgate‖
sua imagem (mas naquilo tudo que nele apenas se entrevê e fica nele obliterado, enquanto offscreen).
169
Referências Bibliográficas
BAUDRILLARD, J. Oublier Foucault. Paris: Galilée, 1977
DELEUZE, G. Difference et Repetition. Paris: PUF, 1968, p. 118
FOUCAULT, M. ―Theatrum Philosophicum‖. In Dits et Écrits. Vol. 1. 1954-1975. Manchecourt:
Gallimard, 2001
FOUCAULT, M. La voloté de savoir. Paris : Gallimard, 1976
KLOSSOWSKI, P. Nietzsche et le cercle vicieux. Paris: Mercure de France, 1969
SURFISTINHA, B. O Doce Veneno do Escorpião. O diário de uma garota de programa. São Paulo:
Panda Books, 2011
Referências Filmográficas
BALDINI, Marcos. Bruna Surfistinha. Brasil: Damasco Filmes, 2011.
170
O T eremin e a Psicaná lise no Cinema No rte-a merica no
F a b r i z i o D i S a r n o 100
Resumo
O instrumento musical Teremin se popularizou na trilha sonora cinematográfica a partir dos filmes
Lady in the Dark e Quando Fala o Coração, lançados em meados da década de 1940. Com narrativas
baseadas nos efeitos da psicanálise, estes filmes iniciais associaram o som do instrumento ao
inconsciente humano, estabelecendo as bases para as principais convenções audiovisuais de associação
do timbre com elementos estranhos presentes nas narrativas cinematográficas.
Palavras-chave:
Teremin,
Psicanálise, Música.
Cinema
Norte -americano,
Trilha
Sonora,
The Theremin and the Psychoanalysis on American Cinema
Abstract
Teremin became popular after being one of the instruments that composed the soundtracks of the
movies Lady in the Dark and Spellbound, released in the 1940‘s. Having a story based on
psychoanalytic effects, the sound of this instrument was associated to the human unconsciousness,
establishing bases to the main audiovisuals conventions that associate its sound to strange elements
present in narratives of American cinema.
Keywords: Theremin, American Cinema , Soundtrack, Psychoanalysis, Music.
Dois filmes lançados na metade da década de 1940 foram responsáveis pela
popularização do som do Teremin no cinema norte-americano. Com narrativas que
exploravam os efeitos da psicanálise, os filmes Lady in the Dark (Mitchell Leisen, 1944) e
Quando Fala o Coração (Spellbound, Alfred Hitchcok, 1945) estabeleceram a associação do
som do instrumento com o inconsciente humano, ligação que se tornou uma convenção
explorada até os dias atuais. A abordagem escolhida por esta dupla de filmes iniciais foi
evidenciar o surpreendente controle melódico que o Teremin possuía, em uma época em que
100
Fabrizio Di Sarno: Vinculação institucional com o Centro Universitário Nossa Senhora do Patrocínio
(CEUNSP). Formado em Composição e Regência pela FAAM. Mestre em Comunicação Audiovisual pela
Universidade Anhembi Morumbi. Professor das disciplinas Comunicação Audiovisual, Som I, Som II, Som III,
Elementos da Linguagem Musical, Teorias do Contemporâneo I, Teorias do Contemporâneo II, Música I,
Música II, Produção Sonora Publicitária, Cultura Musical e Trilha Sonora do CEUNSP. Compositor de trilhas
sonoras para marcas como: Natura, Governo Federal, Guaraná Antártica, Laboratórios Fleury, Justiça Federal,
Caixa Econômica Federal, Banco Bradesco, Revista Playboy, Editora Abril etc. Como tecladista, já gravou e
tocou com bandas como: Angra, Paul di Anno, Shaman, Bittencourt Project, Karma, Edu Ardanuy etc.
171
os demais meios de produção de timbres eletrônicos podiam apenas gerar alturas sem controle
linear. O estranhamento gerado no público por esta característica foi utilizado em associação
com o inconsciente humano, um elemento que era visto como estranho apesar da sua
consolidação conceitual no imaginário popular.
Antes do desenvolvimento dos sintetizadores analógicos ocorrido durante os anos 60,
os compositores de trilha sonora contavam com poucas opções para inserir timbres eletrônicos
na banda sonora dos filmes.
Primeiramente, havia a opção de produzir modificações na própria película do filme,
como fazia, já na década de 1940, o canadense Norman McLaren, cineasta que utilizava uma
caneta para introduzir rabiscos de diferentes formatos na banda sonora de seus curtametragens101. O formato destes rabiscos definia o resultado sonoro. Por exemplo, uma série de
pequenos triângulos muito próximos entre si produzia um som agudo e estridente. Pontos
mais arredondados e distantes entre si produziam um som mais grave e assim por diante. Este
tipo de som se tornou característico do trabalho de Norman McLaren e pode ser ouvido em
filmes como Dots (1940), Neighbours (1952) etc.
No decorrer dos anos 50, outra opção de timbre eletrônico já tinha se tornado comum
na trilha sonora cinematográfica: os osciladores. Estes aparatos eletrônicos produziam ondas
sonoras senoidais que podiam variar em volume e freqüência. Contudo, não havia um
controle preciso de freqüências, o que impedia, na prática, a execução de seqüências lineares
de som, um requisito necessário para a execução de melodias. O filme O Planeta Proibido
(Forbidden Planet, Fred M. Wilcox, 1956), foi o primeiro com trilha musical exclusivamente
feita com timbres eletrônicos. O casal de especialistas em áudio Louis Barron (1920-1989) e
Bebe Barron (1926-2008), construíram uma série de novos osciladores exclusivamente para o
filme. O diretor Fred M. Wilcox (1907-1964) gostou tanto da novidade que decidiu utiliza-los
no filme inteiro excluindo todos os outros tipos de som da trilha musical do filme. O resultado
final agradou ao público da época, desacostumado com os sons eletrônicos no cinema.
Algumas cenas mais importantes, como a decolagem da nave espacial que leva os
protagonistas, receberam inclusive aplausos do público durante a exibição, evidenciando a
habilidade dos sonoplastas na utilização dos osciladores como produtores de efeitos sonoros.
Entretanto, a falta de controle melódico dos osciladores trouxe à tona a falta de uma espécie
de condução emotiva, cuja responsabilidade se deve a trilha musical extra-diegética, tornando
101
O método pode ser visto na página: http://www.youtube.com/watch?v=Q0vgZv_JWfM)-Consultada em
04/04/2012.
172
o sucesso parcial do filme como o resultado de uma experiência específica, destinada a
emergir apenas no contexto particular em que este tipo de efeito sonoro ainda tinha o caráter
de novidade.
É oportuno lembrar que, na década de 1950, a música erudita ocidental passava por
um turbulento período em que novos timbres e situações musicais eram buscados a todo custo
na tentativa de driblar o problema do esgotamento de possibilidades criativas. Com efeito, os
novos gravadores de fita magnética passaram a ser utilizados para a obtenção de novos
recursos estéticos.
Nenhum outro desenvolvimento do período posterior a 1950 atraiu tantas atenções
ou trouxe ao mundo um tão grande potencial de importantes mutações estruturais
como a utilização dos sons eletronicamente produzidos ou manipulados. Este
domínio começou a ser explorado com a Musique Concrète do início dos anos 50
(GROUT/PALISCA, 2001, p. 745).
De fato, antes dos anos 60, de todas as possibilidades de se obter timbres eletrônicos
na trilha sonora cinematográfica, apenas uma oferecia um razoável controle melódico: o
Teremin.
Este instrumento musical foi criado pelo russo Léon Theremin (1896-1993), por volta
de 1917, época em que ele estudava em um instituto de tecnologia. No documentário
Theremin: An Eletronic Odyssay (Steven M. Martin, 1994), Clara Rockmore (1911-1998),
uma ex-aluna de Léon Theremin, considerada uma das melhores tereministas de todos os
tempos, conta que em uma conversa perguntou o que levou o russo a criar o instrumento. O
inventor respondeu que ficou curioso ao escutar o barulho proveniente do rádio durante as
mudanças de estação. Léon Theremin percebeu, corretamente, que aquele som agudo
característico não era proveniente de nenhuma estação de rádio específica, mas sim, do
próprio aparelho. Trabalhando, então, com um processo chamado Heteródino, que trabalha
com dois osciladores eletrônicos, ele passou a ganhar controle sobre este som criando o
primeiro instrumento musical eletrônico da história.
Ansioso em promover a eletrificação do país, e a demonstrar a tecnologia soviética ao
mundo, o governo promoveu uma série de demonstrações do novo instrumento pela Europa.
Nestas demonstrações, Léon Theremin deixava o público desnorteado diante da característica
principal do instrumento: o fato de que o executante não encosta no instrumento durante a
173
prática musical. Esta idiossincrasia se deve ao fato de que a execução melódica no Teremin
trabalha com a aproximação de qualquer material condutor de eletricidade (como no caso da
mão humana). O instrumento possui duas antenas, uma vertical e uma horizontal. Quanto
mais próxima se encontra a mão do músico da antena vertical, mais agudo é o som (antena
que trabalha com variação de freqüências102). Quanto mais próxima está a outra mão da
antena horizontal, menos intenso é o som, chegando ao volume zero se a mão estiver próxima
o suficiente (antena que trabalha com variação de intensidade103).
Contudo, a característica que se tornou o seu maior trunfo, acabou também se
tornando o principal motivo pelo qual o instrumento continua amplamente desconhecido nos
dias atuais. Com efeito, a falta de referência física durante a execução musical torna a tarefa
de dominar a técnica de execução melódica do instrumento bastante árdua. A imprecisão no
campo elétrico do Teremin muda constantemente as notas de posição impedindo o executante
de trabalhar com a memória muscular, utilizada durante o processo de aprendizado dos
instrumentos convencionais. Este fato resultou no fracasso inicial de vendas e no conseqüente
número reduzido de executantes. Com poucos adeptos não houve interesse na produção de
métodos didáticos. Com poucos métodos didáticos e executantes não houve interesse na
produção de peças exclusivas para Teremin por parte dos grandes compositores do século
XX. O resultado desta bola de neve é o repertório limitado e o ostracismo atual do
instrumento.
Apesar da falta de sucesso no campo da música, a combinação da capacidade de
controle melódico com as características timbrísticas eletrônicas relegaram ao instrumento um
papel de destaque no cinema norte-americano. Este sucesso cinematográfico, contudo,
também foi abafado nos anos 60 devido ao surgimento de um instrumento mais versátil.
O sintetizador é um instrumento musical capaz de produzir timbres por meios
puramente eletrônicos, e os processos de síntese variam conforme a tecnologia
empregada em seus circuitos. A qualidade sonora e a capacidade de recursos
dependem do projeto de engenharia e dos componentes empregados (RATTON,
2005, p. 17).
O novo concorrente deixou o Teremin para trás devido ao fato de que não possuía a
102
103
Medida em hertz.
Medida em decibéis.
174
desvantagem da ―execução no vácuo‖. Contudo, o instrumento russo já havia triunfado, pelo
menos no cinema, por cerca de quinze anos.
A estréia do Teremin no cinema aconteceu no filme russo Odna (Grigori Kozintsev,
Leonid Trauberg, 1931), sob a responsabilidade do consagrado compositor Dmitri
Shostakovich (1906-1975). Entretanto, a ansiedade dos produtores russos em lançar
rapidamente um filme sonoro, mostrando que a sua tecnologia cinematográfica estava em pé
de igualdade com a da Europa ocidental, resultou em um retumbante desastre. A qualidade
péssima do áudio prejudicou bastante o trabalho de composição causando a ira de
Shostakovich. O músico afirmou logo após a estréia do filme que havia trabalhado à toa.
No inicio da década de 1930, Léon Theremin se mudou para os Estados Unidos, aonde
montou um laboratório com a ajuda de patrocinadores passando a trabalhar na divulgação do
Teremin e em novos inventos eletrônicos. Neste período, o inventor recebeu diversos colegas
inventores e alunos, assinando um contrato com a RCA em que licenciou o Teremin para a
produção em massa.
Com a divulgação do instrumento ocorrendo em solo nacional, o Teremin passou a ser
utilizado pelo cinema. Porém, nos dois filmes iniciais, King Kong (Ernest B. Schoedsack,
Merian C. Cooper, 1933) e A Noiva de Frankestein (Bride of Frankestein, James Whale,
1935), o som do instrumento ficou tão apagado que se tornou praticamente inaudível aos
ouvidos do público. Não causa surpresa, portanto, o fato de que os filmes da década seguinte
apareçam como os primeiros a conter o timbre na maioria dos sites especializados.
O inicio da participação do Teremin, da maneira como conhecemos hoje em dia no
cinema, se deu mesmo em dois filmes da década de 1940 que tratam do tema da psicanálise.
Os filmes Lady in the Dark104 (Mitchell Leisen), de 1944 e Quando Fala o Coração
(Spellbound, Alfred Hitchcok), de 1945, possuem narrativas com o mesmo tipo de conflito:
uma personagem principal que apresenta conflitos com o próprio inconsciente passando a
freqüentar sessões de psicanálise. Nos dois casos, a psicanálise foi abordada como a única
opção de cura para o conflito interno, esteja o paciente disposto ou não a realizar o
tratamento. Outra semelhança evidente é o papel narrativo do som do Teremin, sempre
associado às situações em que o inconsciente se rebelava contra o consciente da personagem.
Apesar das inegáveis semelhanças, o sucesso da inserção do som do Teremin na trilha
musical dos dois filmes foi muito diverso. O enorme sucesso da trilha sonora de Quando Fala
o Coração, realizada pelo compositor húngaro Micklós Rósza (1907-1995), recebeu o Óscar
104
Lançado em Portugal com o nome ―A Mulher que Não Sabia Amar‖.
175
de melhor trilha sonora e praticamente configurou as convenções pelas quais o Teremin
passou a ser conhecido no cinema. O filme se tornou um marco da estratégia mais usual de
inserção do instrumento na trilha musical, a configuração de um leitmotiv a ser executados
pelo Teremin em solo. Já em Lady in the Dark, uma adaptação para cinema de um musical da
Broadway, o Teremin foi utilizado de maneira discreta, normalmente dobrado com outros
instrumentos melódicos, acompanhado por uma orquestração numerosa ou reverberado
intensamente. O volume do instrumento no filme tem pouca intensidade, mas é reconhecível,
diferente do que acontece na dupla de filmes da década de 1930.
Nestes dois filmes, lançados na década de 1940, pode-se observar com clareza que o
conceito freudiano de inconsciente já estava consolidado no imaginário popular. Contudo, a
maioria das pessoas ainda não possuía uma idéia clara do que o termo representava, restando
apenas o consenso de que se tratava de um espaço incontrolável presente na mente humana.
As palavras de Sigmund Freud (1856-1939) na década de 1930 reforçam a visão que a própria
psicanálise possuía a respeito:
À parte do novo nome, não esperem que eu lhes diga muita coisa nova acerca do
Id. Ele é a parte obscura e inacessível de nossa personalidade; o pouco que dele
sabemos descobrimos no estudo do trabalho do sonho e da formação do sintoma
neurótico, e a maior parte disso é de caráter negativo, pode ser descrita apenas em
contraposição ao Eu. Aproximamo-nos do Id com analogias, chamamo-lo um caos,
um caldeirão cheio de excitações fervilhantes. Nós o representamos como sendo
aberto em direção ao somático na extremidade, ali acolhendo as necessidades dos
instintos, que nele acham expressão psíquica, mas não sabemos dizer em qual
substrato. A partir dos instintos ele se enche de energia, mas não tem organização,
não introduz uma vontade geral, apenas o esforço de satisfazer as necessidades do
instinto observando o princípio do prazer (FREUD, 2010, p. 215).
Muitas vezes, apesar do interesse geral no tema, os especialistas forneciam
explicações curtas que aumentavam ainda mais as dúvidas do público leigo sobre o Id:
―Investimentos instintuais que exigem descarga, isso é tudo que há no Id, acreditamos nós
(FREUD, 2010, p. 216)‖.
Muitas características expostas por Freud colocaram definitivamente o inconsciente
humano no rol dos elementos mais estranhos e incompreendidos da década de 1940, entre
elas, a atemporalidade.
176
(...) e também constatamos, surpresos, uma exceção à tese filosófica de que tempo
e espaço são formas necessárias de nossos atos psíquicos. Nada se acha que
corresponda à idéia de tempo, não há reconhecimento de um transcurso temporal e,
o que é muito notável e aguarda consideração no pensamento filosófico, não há
alteração do evento psíquico pelo transcurso do tempo. (FREUD, 2010, p. 216).
Não causa surpresa, portanto, que o início da adoção do som do Teremin tenha
acontecido, durante a década de 1940, em dois filmes quase contemporâneos sobre a
psicanálise. O pouco contato que o público da época tinha com os timbres eletrônicos no
cinema era fornecido por fontes sem controle melódico, como a trilha sonora de ―O Planeta
Proibido‖, causadora de grande impacto. A sensação auditiva fornecida por um timbre
eletrônico produzindo uma melodia produziu um impacto de estranheza tão grande que só
poderia estar associado com um elemento tão estranho como o Id. De um lado, algo
incontrolável (timbres eletrônicos) utilizado sob o surpreendente controle humano. De outro,
um elemento surpreendentemente incontrolável presente no reino do absoluto controle
individual, a mente humana.
A diferença crucial entre Lady in the Dark e Quando Fala o Coração é que, no
primeiro, Liza Elliott (Ginger Rogers, 1911-1995) esconde neste espaço estranho a mulher
que realmente deseja ser (feminina, glamourosa, desejável), mas que não tem coragem para
assumir, enquanto John Ballantyne (Gregory Peck, 1916-2003), personagem de ―Quando Fala
o Coração‖, esconde no inconsciente a sua verdadeira personalidade, já que um trauma
recente o fez assumir a personalidade de seu antigo analista assassinado.
Nos dois casos, o papel da psicanálise é resgatar do espaço inconsciente um
determinado momento crucial na geração deste conflito de personalidade. Um fato gerador
traumático que fez Liza Elliott mudar drasticamente de personalidade contrariando os seus
próprios desejos instintivos. Analogamente, um fato ainda mais aterrorizante provocou a
amnésia de John Ballantyne, desequilibrando totalmente o seu processo de construção do selfautobiográfico.
Nesta época, tornou-se claro que o papel da psicanálise era justamente este, ou seja,
sua popularidade, assim como a sua eficácia, dependia inteiramente da consolidação do
próprio conceito de inconsciente no imaginário popular. Do mesmo modo, era preciso que a
característica atemporal do Id fosse plenamente aceita, sendo que o papel fundamental da
177
psicanálise seria o de resgatar os elementos presentes neste espaço atemporal, trazendo-os
para o espaço-tempo comum na mente consciente.
Desejos que nunca foram além do Id, mas também impressões que pela repressão
afundaram no Id, são virtualmente imortais, comportam-se, após décadas, como se
tivessem acabado de surgir. Podem ser reconhecidos como passado, desvalorizados
e privados de seu investimento de energia somente quando se tornam conscientes
mediante o trabalho analítico, e é nisso que se baseia, em medida nada pequena, o
efeito terapêutico do tratamento analítico (FREUD, 2010, p. 216).
Evidentemente, este objetivo último da psicanálise só poderia ser alcançado no final
dos filmes, pois ao emergir o que estava latente, resolveria de vez o conflito principal das
personagens. Dessa forma, no decorrer das narrativas, era preciso encontrar algum elemento
estético que configurasse o conflito, mantendo vivo o mistério sobre o fato gerador até o
momento da resolução final. Este se tornou, portanto, o papel do som do Teremin.
Apesar de estabelecer as bases para os filmes seguintes, este papel não se torna tão
claro em Lady in the Dark. O leitmotiv melódico presente no filme diz respeito
especificamente ao fato gerador do conflito, mas este não é executado exclusivamente pelo
Teremin. Como se trata de um trecho de uma música que Liza Elliott cantaria para o seu pai
na noite do fato gerador, muitas vezes ele é cantado pela própria personagem à capela. A
melodia simplesmente aparece na sua mente consciente sem que ela saiba de onde vem e
porque se sente tão perturbada por ela.
Neste sentido, a principal inovação de Quando Fala o Coração é a criação e um
leitmotiv a ser executado exclusivamente pelo Teremin nos momentos de conflito ligados ao
fato gerador. Nestes momentos, a intensidade do conflito consiste em uma acoplagem entre
imagem e som, representado visualmente por uma série de listras pretas sobre um fundo
branco. Toda vez que John Ballantyne se depara com tal imagem, seu inconsciente dispara a
tensão provocada pelo fato gerador, provocando sintomas psicofísicos como tonturas, quedas
de pressão e desmaios. O estranhamento gerado por estes episódios é reforçado pelo aspecto
atonal do leitmotiv melódico, cujas frases cromáticas contrastam com a harmonia tonal em
estilo romântico presente na música sinfônica do restante do filme. Torna-se claro o objetivo
de Micklós Rósza em introduzir o timbre do Teremin de maneira marcante a um público
totalmente desacostumado a ouvir melodias executadas com timbres eletrônicos.
178
O elemento estranho associado ao som do Teremin, nestes dois filmes, não é a
psicanálise em si, mas o inconsciente humano. Pode-se abordar, através das escolhas
audiovisuais, o pensamento da época em relação a estes dois elementos. O inconsciente,
apesar de plenamente consolidado conceitualmente no ocidente, era visto com estranhamento,
justificando a sua associação com o som estranho do Teremin durante os filmes. Já a
psicanálise, apesar de abordada de forma esteriotipada, é vista de maneira positiva, cabendo a
ela o papel de herói, o elemento que desata os nós presentes nos conflitos narrativos.
A visão da técnica psicanalítica é praticamente a mesma nas duas produções. Entre os
elementos presentes nas sessões figura a interpretação dos sonhos como forma de reconhecer
as ideias presentes no Id. Neste processo, ocorre a ampla interpretação de elementos
simbólicos como olhos gigantes, assassinos sem rosto e um vestido de gala azul como o
principal elemento configurador do desejo oculto de Liza Elliott. Durante as cenas, elementos
visuais reforçam a atmosfera surrealista do ambiente onírico. Com este intuito, Hitchcock
contratou o mestre do surrealismo Salvador Dalí (1904-1989) para desenhar os cenários
durante a cena principal de sonho de John Ballantyne. Nas duas produções, torna-se evidente
o pensamento da psicanálise sobre a importância e a validade do sonho como forma de
comunicação.
Fizemos o pressuposto, adotamos o postulado – bem arbitrariamente, devemos
admitir – de que também esse sonho incompreensível teria de ser um ato psíquico
inteiramente válido, de sentido e valor plenos, que podemos usar como qualquer
outra comunicação na análise. Somente o resultado da tentativa pode mostrar se
estamos certos. Se conseguirmos transformar o sonho numa expressão valiosa
desse tipo, teremos a perspectiva de aprender algo novo, de obter comunicações de
um tipo que para nós, de outra forma, continuaria inacessível (FREUD, 2010, p.
129).
Neste sentido, o papel do analista é o de conhecer o sonho manifesto como uma
espécie de porta de entrada para algo maior, encontrando nele pistas sobre elementos perdidos
no oceano do Id.
Então podemos enunciar nossas duas tarefas da seguinte forma: temos que
transformar o sonho manifesto no sonho latente e indicar como, na psique do
sonhador, este último tornou-se aquele (FREUD, 2010, p. 130).
179
Freud descreve recorrentemente em sua obra a técnica pela qual o analista deve
proceder em relação à interpretação dos sonhos do paciente:
Então o paciente relatou um sonho e devemos interpretá-lo. Ouvimos calmamente,
sem ativar nossa reflexão. Que fazer em seguida? Resolver nos ocupar o mínimo
possível do que acabamos de ouvir, do sonho manifesto. Sem dúvida, este sonho
manifesto exibe todo tipo de característica que não é totalmente indiferente para
nós. (...) não pensem que desdenhamos essa infinita diversidade do sonho
manifesto, depois retornaremos a ela e encontraremos muita coisa útil para a
interpretação, mas agora vamos ignorá-la e tomar a via principal que leva à
interpretação (FREUD, 2010, p. 130/131).
Nos dois filmes, esta técnica é obedecida com precisão, tanto no que se refere ao papel
do analista como ao papel do paciente.
Ou seja, pedimos ao sonhador que também se liberte da impressão do sonho
manifesto, que tire a sua atenção do conjunto e a dirija para os elementos do
conteúdo do sonho, e nos comunique o que lhe ocorre a respeito de cada um desses
elementos, um após o outro, que associações lhe vêm quando os examina
separadamente (FREUD, 2010, p. 131).
A ligação latente entre a interpretação do sonho e o timbre do Teremin se dá, mais
uma vez, no campo do controle. Pode-se imaginar que a interpretação de um sonho é uma
tentativa árdua de controlar o incontrolável, de encontrar algum valor de ordem para algo que
aparenta ser um bizarro conjunto de elementos desconexos. A melhor maneira de se traduzir
esta perspectiva em uma linguagem musical era, sem dúvida, introduzir um timbre eletrônico
que possuía, surpreendentemente, controle melódico.
Não há dúvidas que conseguimos, mediante a nossa técnica, algo que é substituído
pelo valor do sonho, mas não exibe as estranhas peculiaridades do sonho, sua
bizarria, sua confusão (FREUD, 2010, p. 133).
Outro elemento importante nesta visão da psicanálise, presente nos dois filmes, é a
hipnose. O interesse do público pela técnica aumentou bastante em meados da década de
1940, em grande parte devido ao trabalho dos próprios psicanalistas.
180
Notadamente depois da II Guerra Mundial, vem se verificando um revigoramento
no interesse pela técnica, pelo estudo e pela aplicação hipnótica. Essa redescoberta,
ou volta triunfal da hipnose, assinalada entre outras coisas por diversas publicações
importantes, notadamente na Europa e nos Estados Unidos, é largamente devida à
psicanálise (WEISSMANN, 1958, p. 9).
A estranha e assustadora perspectiva de que o incontrolável Id poderia ser controlado
por um agente externo aumentava a nebulosidade sobre o tema. Dessa forma, aproveitando o
interesse crescente do público, as décadas de 1930 e 1940 assistiram ao surgimento de uma
série de publicações pseudocientíficas que abordaram o tema de maneira estereotipada,
encobrindo por vezes o trabalho sério dos psicanalistas e do próprio Freud, que havia
renegado a hipnose em um primeiro momento. Na época, apresentações de caráter duvidoso
expunham a técnica com charlatanismo, apresentando-a como um poder ilimitado do
hipnotizador sobre o hipnotizado. A gigantesca dúvida sobre o tema fomentada na primeira
metade do século XX gera confusões até os dias de hoje, geralmente devido ao
desconhecimento sobre um aspecto fundamental da técnica hipnótica:
Ao menos enquanto dura o transe, êle, ―sujet‖, é considerado escravo de uma
vontade mais forte do que a sua. Na realidade, o ―sujet‖ sucumbe à sua própria
vontade, que se confunde ou entra em choque com a idéia ou a imaginação do
hipnotista. Assim, a monotonia, que é um dos fatôres técnicos mais decisivos na
indução hipnótica, para produzir efeito, tem de basear-se na reciprocidade. (...) Não
percamos de mente que tôda (sic) sugestão é, em última análise, largamente autosugestão, toda hipnose, em última análise, largamente auto-hipnose, e todo mêdo,
no fundo, mêdo de si mesmo. Contràriamente ao que ensinam os livros populares, a
fé inabalável no hipnotismo e a vontade forte não constituem os atributos
fundamentais e diretos do hipnotizador, mas, sim, do ―sujet‖ (WEISSMANN,
1958, p. 27).
Apesar do tratamento sério que a hipnose recebeu nos dois filmes iniciais, não
demorou muito para surgir citações cômicas ou duvidosas sobre o tema. Em 1947, foi lançada
a comédia musical Road to Rio (Norman Z. McLeod), que contava com a atuação dos dois
atores-cantores Bob Hope (1903-2003) e Bing Crosby (1903-1977). A personagem brasileira
Lucia Maria de Andrade (Dorothy Lamour, 1914-1996), desejada pela dupla de cantores,
sofre com as investidas de sua tia, a vilã Catherine Veil (Gale Sodergaard, 1899-1985). O
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desejo dela é que Lucia Maria se case com o seu sobrinho favorito, facilitando o acesso da
vilã à herança da moça. Para garantir a concretização do casamento, ela hipnotiza Lucia Maria
todas as noites. Durante estas sessões estereotipadas, Catherine utiliza um objeto pendular
sendo balançado em frente aos olhos de Lucia Maria. Ela profere um discurso monótono
enquanto os olhos da moça se fixam no objeto pendular. A fala pausada e sem inflexões e o
objeto pendular se tornaram duas convenções recorrentes da hipnose estereotipada do cinema.
Contudo, neste filme, outro elemento foi acrescentado neste contexto: o timbre do Teremin.
As melodias tremulantes produzidas no decorrer das cenas se colocam na fronteira entre a
trilha musical e o Sound Design, configurando o ―som da hipnose‖ durante o filme, tornandose uma convenção sonora cinematográfica a partir deste filme inicial.
Não há qualquer técnica particular especial utilizada pelo hipnotizador, visto que, no
final do filme, os próprios heróis são capazes de hipnotizar os seus perseguidores utilizando
apenas o movimento pendular de um grande relógio e o ―discurso monótono do
hipnotizador‖. As primeiras sessões possuem uma atmosfera mais sinistra, mas a hipnose e
seus elementos vão se tornando mais cômicos no decorrer da narrativa. De maneira
surpreendente, o som do Teremin acompanha este movimento em direção à comicidade, no
que pode ser considerado como um dos primeiros momentos humorísticos com a participação
do instrumento no cinema.
Mais uma vez, o Teremin é visto da mesma maneira. Seu papel narrativo está ligado
ao controle, ou a falta dele. No filme, pela primeira vez, o som do instrumento está
diretamente ligado a uma forma de controle externo da mente humana, um elemento que,
antes do surgimento e consolidação do conceito de inconsciente, era considerado como
impossível de ser controlado externamente. O mais subjetivo de todos os elementos
constituintes do ser humano, agora podia ser controlado, se não no mundo real, pelo menos na
narrativa cinematográfica.
Da mesma forma, o Teremin podia ser considerado, pelo menos nesta época de seu
uso no cinema, como um rompimento da última fronteira. O controle melódico sobre o timbre
eletrônico. Uma maneira de se criar sequências lineares de diferentes frequências com
expressividade humana, diferente das gravações produzidas pelas manipulações de sons
gravados em fita ou dos antigos osciladores.
No cinema norte-americano do final da década de 1940 e no início da década de 1950,
o som do Teremin continuou a configurar sonoramente o inconsciente e a sua principal
característica intrínseca, a falta de controle humano sobre a própria mente. Alguns destes
182
filmes possuem sessões de psicanálise como Lets live a Little105 (Richard Wallace, 1948). A
hipnose também continuou a utilizar o som do Teremin como podemos observar no filme The
5.000 fingers of Dr. T (Roy Rowland, 1953), filme cuja narrativa se passa quase inteiramente
dentro de um sonho, outro elemento comumente associado ao som do Teremin devido à sua
capacidade de dar voz ao inconsciente humano.
Na década de 1950, sob o período Macartista, o cinema norte-americano utilizou uma
segunda linha de associação do Teremin, iniciada no filme The Spiral Staircase106 (Robert
Siodmak, 1945), produzido no mesmo ano de Quando Fala o Coração. Esta linha trabalha
associando o som do Teremin com o vilão externo, encarnado normalmente em um assassino,
um extraterrestre ou um monstro. Contudo, da mesma forma como ocorre na linha que
trabalha com o inconsciente, o som do instrumento busca ressaltar nestes elementos a
estranheza, a característica que marcou o timbre do Teremin até que este não se tornasse mais
estranho devido ao seu constante uso no cinema norte-americano.
Depois de uma década recheada de filmes com a inserção do instrumento, o timbre
desapareceu do cinema norte-americano nos anos 60. Contudo, neste período de grande
pausa, o som do Teremin se manteve vivo graças ao grande número de reprises dos filmes dos
anos 50 na televisão e dos novos desenhos animados que o utilizavam devido à sua associação
com o estranho, nesta época, já consolidada no imaginário popular.
Após o documentário Theremin: An Eletronic Odyssay, de 1994, o cinema norteamericano resgatou o som do Teremin, passando a utilizá-lo em diversas narrativas que
envolviam elementos estranhos como monstros, extraterrestres e disco-voadores. A
associação com a loucura e o misterioso Id, iniciada com os filmes da década de 1940 que
tratavam do tema da psicanálise continua viva, evidenciada em filmes como Bartleby
(Jonathan Parker, 2001) e O Operário (The Machnist, 2004).
Nos dias de hoje, o som do Teremin se tornou uma convenção sonora explorada ao
extremo em diversos tipos de produção audiovisual. Seu papel, nestas produções, está
diretamente ligado à sua associação com os elementos estranhos presentes nas narrativas.
Extraterrestres, monstros, disco-voadores, naves espaciais etc., são elementos muito comuns
neste contexto. Porém, o timbre também representa elementos intangíveis, com destaque
especial para o inconsciente humano e suas consequências narrativas. Loucura, hipnose,
sonhos, alucinações e experiências psicodélicas são alguns destes elementos. Esta linha de
105
106
Lançado em Portugal com o nome ―Vivamos um Pouco‖.
Lançado em Portugal com o nome ―A Escada de Caracol‖.
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associação se iniciou com os filmes da década de 1940 que tratavam sobre os efeitos da
psicanálise, responsáveis pela popularização do Teremin na época. Estas convenções estão
principalmente ligadas ao fato de que o Teremin é um som capaz de controlar as ondas
sonoras eletrônicas, em uma época que isso parecia ser impossível. Desta forma, a escolha do
timbre se tornou uma forma muito eficaz de representar o esforço, por parte da psicanálise, de
dar forma ao inconsciente humano (ou pelo menos traduzi-lo em uma linguagem
reconhecível), visto como um espaço incontrolável da mente humana.
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psicanálise e outros textos (1930-1936). São Paulo: Companhia das Letras, 2010, p. 129).
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psicanálise e outros textos (1930-1936). São Paulo: Companhia das Letras, 2010, p. 130).
(FREUD, Sigmund. Obras Completas: o mal-estar na civilização, novas conferências introdutórias à
psicanálise e outros textos (1930-1936). São Paulo: Companhia das Letras, 2010, p. 130/131).
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(FREUD, Sigmund. Obras Completas: o mal-estar na civilização, novas conferências introdutórias à
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RUA – ISSN: 1983-3725
Dossiê #12 – Cinema e Psicanálise
Maio de 2012
www.rua.ufscar.br
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A Revista Universitária do Audiovisual é um projeto de Extensão do Departamento de
Artes e Comunicação e é coordenada por alunos e professores do curso de Imagem e
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