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Jean Monlevade, do Castelo à Forja Romance Jairo Martins de Souza 2009 © Copyright by Jairo Martins de Souza, Vitória, 2009. Projeto gráfico e editoração: Douglas Barbosa de Magalhães Capa: Douglas Barbosa de Magalhães Ilustrações: Zota Coelho Digitação: Jairo Martins de Souza Agradecimentos: Carlos Carrion, Geraldo Eustáquio Ferreira (em especial pela sugestão do título adotado), Lúcia de Souza Barros e Regiane Castro Souza. Revisão Final: Olívia Alves Fagundes de Souza Catalogação: Ana Maria de Matos Mariani - CRB: 12/ES 425 Impressão e fotolito: Grafer Editora Ltda Dados Internacionais de Catalogação-na-Publicação (CIP) Souza, Jairo Martins de S729j Jean Monlevade, do Castelo à Forja: romance / Jairo Martins de Souza. – Vitória: Grafer, 2009. 362 p. ; 21 cm. ISBN 978-85-86986-25-3 1. Romance brasileiro. I. Título. CDD: B869.8 CDU: 821.134.3(81)-31 Todos os direitos reservados. A reprodução de qualquer parte desta obra, por qualquer meio, sem a autorização do autor, constitui violação da LDA 9.610/98. Ao meu netinho Dudu que ainda vê a luz do mundo pelos olhos dos pais. Aos meus familiares. Aos monlevadenses. Sumário Prefácio, 09 Introdução - O estrangeiro, 11 PARTE 1 Guéret I Léopold Bogenet, o vigário geral (il était une fois, era uma vez...), 17 X O armazém e as histórias do capitão Platini, 79 II XI O primo Jean Antoine era o preferido Angéline, 91 do vigário. A Revolução e o inconformado Philippe de Bogenet, 21 XII Algo mais sobre política e a família III do fidalgo, 99 O castelo de Monlevade, 25 XIII IV O nascimento de Léopold, o vigáO fidalgo Jean-François. O aciden- rio geral, 103 te em combate!, 29 XIV 1806. Martinho faz planos, 115 V O nascimento de Jean de Monlevade e o estranho local do primeiro XV sacramento, 37 O médico Colbert e o fidalgo prosseguem trocando ideias. Tisserand VI comenta rapidamente sobre falha O caso da bola do jogo de péla, 41 nas intenções de Jean, 119 XVI O fidalgo não antecipa mudança de Jean a Paris. Martinho é pratiVIII camente um Monlevade. A viagem A escola em Guéret e os cuidados do de estudos ao país da bota, 121 professor Duchamps. Jean é perseXVII guido pelo maldoso Materazzi, 51 O fidalgo busca informações. A IX carta para Paris. A Politécnica de O fidalgo socorre e livra a família de Monge e Carnot, 131 Martinho das garras de Thurram. O bondoso abade Ribérry, 65 VII A terrível guilhotina, 47 PARTE 2 Paris I Onde se explica o porquê de Jean e Martinho terem se instalado na casa de Septimus e Lucillia Pius, 135 IX João Gomes Abreu de Freitas, 193 X O Brasil de 1809, segundo a visão do capitão Freitas,201 II As razões dos temores de Colbert quanto a Jean e Angéline. XI O confessor Ribérry, 145 François. Martinho segue para Lisboa, 211 III Jean e Martinho vão ao Louvre. XII A casa de Lucillia e Septimus Jean passa por risco de cárcere Pius, 153 na Polytéchnique. O aviso por demais antecipado da chegada IV do filho do capitão Freitas, 215 O reencontro com Kostas Zavoudakis, 159 XIII A Génie Militar e as avançadas V técnicas de guerra do início dos Os três mosqueteiros. Kostas novecentos, 219 conhece o Quartier Latin como as palmas de suas mãos!, 167 XIV A graduação. Onde se diz tarVI diamente da morte do fidalgo, Bernadette e Monique du Lac, 169 225 VII A carta roubada, 177 XV Ildefonso Gomes de Freitas, 233 VIII XVI A Polytéchnique. Bonaparte dá A viagem para o Brésil, 237 demonstração de confiança em Monlevade!,183 PARTE 3 Brésil I O Rio de Janeiro e seus escravos. O engenheiro da école des Mines se impressiona, 245 IX Caeté e a usina de Luiz Gouveia. O futuro Barão de Catas convoca Monlevade para conversa reservada: assunto sério!, 321 II A casa carioca do capitão Freitas, X O solar Monlevade e o arquiteto 253 Montigny. A primeira fundição de Monlevade, 327 III Onde se diz da breve estada no XI Rio. A carta de Martinho, 265 A festa de casamento na Setecentista. A nova fábrica de ferro, 335 IV O início dos caminhos que levam a Minas Geraes. Monlevade encan- XII ta-se com natureza. A tropa fiscal e Amigo é para todas as horas. Mono parente de Agostinho Ferro, 271 levade faz pedido especial a Platini e Just Fontaine, 341 V A caravana finalmente chega a Vila XIII Rica. O inusitado jantar de gala com Não é fácil manter negócios entre as montanhas das Minas Geraes. O o governador da Província, 281 agora capitão Monlevade amplia a fábrica de ferro que leva o seu VI Monlevade faz turismo e reflete nome, 345 sobre o cotidiano da capital da Província das Geraes. Martinho XIV definitivamente entrega sua alma a Esse menino tem a cara do avô! Nasce o neto brasileiro do fidalgo Cristo, 299 de Guéret, 349 VII Rumo a Caeté. O capitão Freitas é for- Epílogo, 351 çado a abandonar a caravana, 307 Post Scriptum, 357 VIII São Miguel do Piracicaba. A receptiva acolhida dos Freitas. Jean de Monlevade encontra-se com Auguste Saint-Hilaire, 313 Não vos preocupeis, a imaginação humana é bem mais pobre do que a realidade! (Ne vous inquiétez pas, l’imagination humaine est plus pauvre que la réalité!) Jean Monlevade, do Castelo à Forja 9 PREFÁCIO As origens de João Monlevade, cidade siderúrgica de Minas Gerais, remontam ao ano de 1817 quando aportou no Brasil o cidadão francês Jean Antoine Félix Dissandes de Monlevade. Engenheiro formado pela duríssima école des Mines de Paris, viera aceitando comissão do governo de Luís XVIII para estudar os recursos minerais do Brasil. Seduzido pelas riquezas geológicas da região, acabou fixando-se em Rio Piracicaba e ali instalou uma forja catalã que se tornaria a gênese da indústria do aço de Minas Gerais. Nos últimos anos, malgrado a ausência de trabalhos acadêmicos e historiográficos, o povo monlevadense tem reconhecido cada vez mais a amplitude de sua obra e o fascínio exercido por sua brilhante personalidade. “Jean Monlevade, do Castelo à Forja” não se inscreve no rol das escassas produções científicas produzidas sobre a maior personalidade do município. No entanto, preenche com maestria aquela lacuna e agrega conhecimentos e informações que muito contribuirão para manter viva a sua memória. O autor, valendo-se do caráter ficcional de sua narrativa, percorre com criatividade os caminhos trilhados por Jean Monlevade desde a mais tenra idade na cidade de Guéret até os primeiros anos de sua permanência em Minas Gerais. É escrita repleta de fantasia, mas não lhe falta o rigor histórico. E transita no cenário revolucionário da França libertária do século XVIII com a mesma verossimilhança com que percorre as estradas de Minas Gerais dos primórdios do século XIX. O resultado é romance cujo enredo não se cristaliza no passado, pois por meio de um narrador contemporâneo – Monsieur Tisserand – faz-nos ler os acontecimentos sob a perspectiva dos tempos atuais. Destarte, nosso conterrâneo Jairo Martins de Souza, com sua nova obra, não sai de “trás das vitrines” do menino do Bazar Monlevade e, com as lentes do jovem que decifrou o Dossiê Monlevade, lança mais uma vez sua visão apaixonada sobre as origens de sua cidade. Acompanhemo-lo, caro leitor, nesse novo olhar sobre Jean de Monlevade, revivendo sua saga do Castelo, que a concebe e enobrece, até à Forja, que a tempera e eterniza. Geraldo Eustáquio Ferreira (Professor Dadinho) Graduado em Letras – Ativista Cultural Pesquisador da História da Cidade de João Monlevade 10 Jairo Martins de Souza “.... o senhor deverá se surpreender com este relato que lhe avisei ser longo. Pois mesmo que diga respeito a alguém de nome muito familiar ao senhor, e à sua cidade, trata-se de quelque chose d’extraordinnaire! (algo extraordinário)”. Jean Monlevade, do Castelo à Forja 11 Introdução O estrangeiro Estávamos em meados de outono e o correr do dia, inusitadamente inundado de claridade, antecipava que, quando o Sol fosse se deitar no horizonte de nossa cidade, a noite despontaria belíssima e bem arejada. Não tinha tido o prazer de conhecer aquele simpático senhor antes dessa ocasião, mas no momento de sua chegada à pequena praça em que eu estava, bastou que fizesse breve saudação com o chapéu para que me sentisse instantaneamente atraído por sua pessoa. Pareceu-me de educação refinada, pois foi extremamente afável ao me cumprimentar. Eu gostava de ir àquele local para descansar, ou para me dedicar a algumas reflexões e eventuais conversas com amigos. Desta feita tinha acabado de almoçar e, ainda palitando os dentes, deparei-me com a situação de estar lá sozinho por alguns minutos. O que não me trouxe qualquer tipo de angústia, pois, a despeito de muitas folhas já caídas, a sombra confortável de mangueiras ainda vastamente copadas e o sabor forte dos seus frutos maduros inundavam e tornavam as cercanias extraordinariamente aprazíveis. Não havia outras pessoas por perto e conversávamos assentados em velho banco de praça com reclame comercial já apagado pelo tempo. E não veio à tona qualquer indício de pressa neste contato entre pessoas que se viam pela primeira vez. Nem minha, nem dele. Bem, não sou versado em línguas estrangeiras, mas já em suas primeiras palavras havia suspeitado que ele tinha sotaque de gente que falava o idioma francês. Até aí nada de excepcional, isso nunca fora assim tão incomum em nossa região, e eu poderia facilmente dissipar minha dúvida perguntando-lhe mais tarde sobre sua origem. Portanto, não foi por isso que, nos primeiros 12 Jairo Martins de Souza instantes do nosso contato, não conseguia parar de olhá-lo, despistadamente, pelos cantos dos olhos, de tantos em tantos segundos. Havia algo em sua aparência que realmente tinha chamado a minha atenção! Talvez parecesse com alguém que tivesse visto em foto extremamente antiga, enfim, seu rosto era de certa forma familiar. Lembrei-me tê-lo visto caminhando distraidamente pelas ruas do bairro. Tinha chegado recentemente à região e comentara no hotel que se encontrava apenas de passagem. Em cidades pequenas nada passa ao largo! A recepcionista, que era inclusive minha parenta, disse-me ocasionalmente o nome do hóspede do quarto 101. Não lhe dei atenção devida: recordo-me apenas ter ouvido algo confuso! O fato é que (não obstante sua visível dificuldade com o manejo do português), estivemos matando o tempo com assuntos frugais sobre temperatura e clima da região. Depois sobre futebol, e eventos culturais e políticos que estavam por vir nos próximos meses: o estrangeiro era bem informado! E à medida que passavam os minutos, avançamos sobre as últimas ações econômicas do governo, sobretudo as que diziam respeito às exportações de minérios e placas de ferro as quais, com a crise dos mercados, vinham despencando de maneira assustadora. O assunto ocasionalmente caiu para o lado do papel dos grandes empresários e industriais do Brasil. Destes últimos, fomos retrocedendo no tempo e eu citei-lhe, de passagem, a importância histórica do Barão de Mauá que, por sinal, fora tema recente de série televisiva. Ele disse-me não ter assistido, mas comentou que muitos outros que aqui fincaram os pés têm também passagens excepcionalmente brilhantes pelo país. E perguntou-me: queres ouvir, em primeira mão, a história de um deles que, no mundo, é pouquíssimo conhecida? Não estou dizendo de uma narrativa curta! O senhor teria que ter bastante paciência! Sua conversa anterior fora do meu gosto, e não precisei pensar muito para responder-lhe polidamente que sim. Na realidade, encontrava-me também em estado de graça, pois, entre outras coisas, tinha obtido bons rendimentos no meu ramo de negócios ao longo da semana. Fosse o caso, dispunha de todo o fim do dia para ouvi-lo. Jean Monlevade, do Castelo à Forja 13 E foi com leve sorriso estampado no rosto que ele disse-me de forma animadora: “o senhor deverá se surpreender com este relato que lhe avisei ser longo. Pois mesmo que diga respeito a alguém de nome muito familiar ao senhor, e à sua cidade, trata-se de quelque chose d’extraordinnaire! (algo extraordinário)” Rearranjei-me no banco, mantendo-me calado, e adquirindo postura e pose corretas tais como a de quem exterioriza interesse. Mas foi somente após ter certeza do retorno de minha total atenção que ele declarou que o princípio de sua história havia ocorrido em terras muito longínquas. Na França… lá do outro lado do l’océan Atlantique! Foi por tudo isso que, ainda em silêncio, decidi que nem mesmo iria perguntar-lhe o nome. Não julguei necessário. Intimamente já havia decidido que, neste livro, iria chamá-lo Tisserand: monsieur Tisserand! 14 Jairo Martins de Souza Jean Monlevade, do Castelo à Forja PARTE 1 Guéret 15 16 Jairo Martins de Souza Jean Monlevade, do Castelo à Forja 17 I Léopold Bogenet, o vigário geral (il était une fois, era uma vez...) Poucos meses antes de encerrar definitivamente sua missão no mundo, o vigário geral Dissandes de Bogenet disse que tinha feito o sacrifício de doar sua vida a Deus para que toda sua extensa família, no futuro, fosse reunida no céu. Tinha firme convicção sobre o que dissera e, durante toda sua vida, havia procurado fazer jus a essa realidade espiritual. Foi com tais palavras de um religioso por mim completamente desconhecido que monsieur Tisserand iniciou sua história. Na ocasião, prosseguiu, o vigário geral suspeitava da proximidade de sua morte e estava abrindo o coração para um dos seus familiares mais chegados! O vigário era Bogenet. O seu interlocutor, e confidente, era um seu primo do ramo Lavillatte. Ambas eram famílias de gente nobre e pertenciam às muitas das notáveis que foram interligadas pelo dinheiro, pelo desejo dos pais, enfim, pelos casamentos programados que eram pródigos em ambientes da burguesia europeia. Bogenet, Lavillatte, Dissandes, Monlevade eram exemplos dessas linhagens ilustres que, se pesquisadas em profundidade, colocariam às claras ligações extremamente remotas. E, entre seus membros de procedência Bogenet, sem qualquer sombra de dúvida, assomaria destacadamente a amada e admirável figura do vigário geral que confessara suas intenções finais ao parente. Pois foi, de acordo com testemunho de vozes da época, incansável na divulgação dos evangelhos, e de ter passado grande parte do século dezenove espalhando bem-aventuranças no departamento de La Creuse, na região central da França. Tanto é daquele jeito que, em tempos difíceis, fortalecia-se com a simples menção da frase Opus Fac Evangeslistae (faze a obra de um evangelista!). 18 Jairo Martins de Souza O troco lhe foi dado ainda em vida, sendo personalidade bastante celebrada ao longo de sua caminhada eclesiástica. Ainda vivo, havia se tornado famoso pela bondade e pelo despojamento material que praticava. Não era incomum que trajasse disfarces e andasse pelas estradas e vilarejos distribuindo esmolas e ajudando a doentes e necessitados. Também recusou (fato raríssimo na vida eclesiástica), por diversas vezes, a mitra de bispo. E a partir da notícia do seu passamento, nos anos finais dos oitocentos, seu nome foi homenageado como o de personalidade única na região. Um parente querido fora levado para debaixo da terra... O que não impediu circulação de rumor que algo atípico havia acontecido poucas horas antes de dar o último suspiro. Uma mulher já de idade avançada fora conduzida discretamente ao aposento que tinha acesso restrito somente a religiosos. O quarto do próprio vigário. Lá foram mantidos isolados durante minutos a fio. Bem, Tisserand comentou, o povo tem como costume especular coisas fantasiosas nestas ocasiões. Nada ficou provado! O fato é que o negro das vestes, complementado por joias simples de azeviche, foi mantido durante dias indicando claramente o luto dos que o amavam. E, por período ainda mais longo, expressamente recomendado uso de roupas discretas, desprovidas de cores fortes, pelos fiéis da comunidade. Decerto não lhe atribuíram milagres. Não seria verdadeiro! E sabia-se ser situação incompatível com seu estilo. Mas os jornais da época, em seus editorais, consideraram-no como digno de inspiração e modelo de vida. Não somente para sua diocese, enfatizavam, como também para toda a Igreja de Roma espalhada pelo mundo. Prova disso é que, ciente de ser seu rebanho composto basicamente de analfabetos, desdobrava-se para contratar artistas de qualidade para ilustrar histórias da bíblia nas paredes e tetos das igrejas em que exercia influência. Interiores decorados como se fossem páginas de livros ilustrados de escola dominical. Aconselhava com prudência usando, como nas sagradíssimas escrituras, belas metáforas para melhor entendimento por parte dos seus paroquianos. Grandessíssimo evangelizador! Que inclusive pregava a tolerância com os seguidores das 95 teses de Martinho Lutero. Assunto explosivo! Sua atuação se estendia a muito mais que os deveres missionários do seu ofício. Jean Monlevade, do Castelo à Forja 19 Eram passados mais de duzentos e cinquenta anos desde o massacre da noite de São Bartolomeu, Tisserand explicou, mas ainda nos dias do vigário geral, a simples passagem de um daqueles protestantes por via pública poderia ser estopim certo para início de zombaria e altercação. Episódios sangrentos como aquele, graças a homens como o vigário, não têm mais chance de prosperar! As figuras e cenas do juízo universal, que vira magistralmente pintadas no teto da Sistina, bastavam-lhe para todas as circunstâncias. Ali se resume toda a história e os desígnios do homem, de acordo com a vontade do criador, dizia. Pois não era daqueles que assombravam os paroquianos, conclamando a besta do Apocalipse em seus sermões dominicais e visitas a fiéis. Para tanto, julgava bastantes as misérias descritas pela sua amada bíblia nas páginas que o próprio Senhor julgara de direito. Dava exemplo. Não se dispersava! E exercitava as virtudes abençoadas nos evangelhos, mas acima de tudo amava a família, e religiosamente escrevia sobre seus queridos em bloco de anotações. Talvez fosse sua intenção revisálas e colocá-las em volume de luxo. Mas não dizem os críticos de arte que é preciso ler meia biblioteca para lograr a escrita de um livro? Bem, nem seria preciso dizer que o vigário tinha grande amor pelo conhecimento! Lia tanto as inúmeras recomendações do Vaticano quanto as obras de escritores acreditados de todo o mundo laico. Não era essa a razão de nunca conversar pelos cotovelos. Era sua própria prática pastoral. E, portanto, não fizera diferente quando dissera dos seus amados. O seu estilo de escrita mantevese curto, telegráfico, normalmente versando sobre as andanças e conquistas dos seus familiares que, de acordo com seu estilo e formação, foram dados como concluídos, sem maiores explicações, com um singelo dominus vobiscum! (o senhor esteja convosco!). O abade morreu em 1897. Poucos em idade adulta o conheceram pelo nome, Léopold. Léopold Dissandes de Bogenet. Na ocasião não foi somente seu corpo físico que se fora para sempre, pois também levara consigo um dos ramos de sua genealogia. O celibato custara-lhe altíssimo preço. Custara-lhe a extinção do ramo Bogenet da família que tanto prezava. Mas seus rascunhos, já praticamente em formatação final, 20 Jairo Martins de Souza foram recuperados dezenas de anos mais tarde na igreja matriz da região. Um fiel os encontrou: ele substituía responsável pela limpeza que padecia de terrível enfermidade. O local foi gaveta chaveada que fazia parte de mobiliário da sacristia marcado com etiqueta de irrecuperável. A felicidade maior disso é que, após investigados pelo Vaticano, puderam ser devolvidos a quem de direito! Logicamente foram escritos em latim. O senhor, mon ami, sabe ser esta a língua corrente nos meios eclesiásticos naqueles dias e, daí, de difícil acesso a pessoas comuns como eu. Não fosse um pequeno detalhe. Junto a eles estavam costurados outros tantos, já vertidos para o francês, com a mesma caligrafia. Foi a minha salvação, o estrangeiro Tisserand disse, Champollion não teria ficado mais feliz com sua pedra de roseta! Jean Monlevade, do Castelo à Forja 21 II O primo Jean Antoine era o preferido do vigário. A Revolução e o inconformado Philippe de Bogenet Ainda vou prosseguir dizendo algo mais sobre a vida e morte do vigário, Tisserand disse. Ele não alcançou o tempo de Matusalém, mas chegou aos 82. Idade atípica para o século dezenove! Como também foi atípico o fato dos seus escritos terem sido bastante centrados na figura de um dos parentes que mal teve contato: ambos mantiveram-se geograficamente distantes e percorreram caminhos absolutamente diferentes ao longo de suas vidas. Pois seu protagonista foi um primo catorze anos mais velho que fora batizado com o mesmo nome do pai: Jean. O pai, por sua vez, tinha o mesmo nome do avô. É por aí que se estabelecia critério de colocação de nomes nos rapazes daquelas antigas famílias. Entretanto, e não deixando de dar importância a isso, Tisserand prosseguiu, o que mais desejo deixar fixado em sua mente, mon ami, é que o vigário citou muito pouco sobre outros familiares mais próximos de sangue. Talvez propositalmente. Por exemplo, considerando-se o teor do assunto em questão, o de não deixar registrado que um dos seus avós, em 1793, escapara da guilhotina durante andamento da Revolução. O pai do seu pai chamava-se Philippe de Bogenet, e fora acusado de supostos deslizes com a comunidade. Incluso em lista de proscritos, foi preso juntamente com sua amada mulher! Sentindo-se injustiçado, acabou por tentar se evadir em várias oportunidades. Sem sucesso! O lucro que teve foi o de conseguir livrar o pescoço da impiedosa guilhotina. O fato é que fora figura pública de destaque na região, e exercera cargos de importância para o governo de Luís XVI e para a província. Capitão de caça. Conselheiro real. Mestre particular de águas e florestas... 22 Jairo Martins de Souza Foi em vista disso que Tisserand assinalou que se alongaria um pouco mais sobre o episódio para não incorrer no mesmo erro de omissão que o vigário geral cometera. E, somente para fins de registro e de justiça, mencionou que o tal esquecimento não havia redundado em prejuízo para apontamento digno de crédito da história da família. A lacuna fora, em tempo certo, preenchida por cronista credenciado! Daí se soube que o avô do vigário fora alvo de outras graves acusações. Pois, de acordo com o que veio à tona, tinha feito pouco caso do sangue jorrado durante as ações revolucionárias e declarado publicamente seu desprezo pela atitude dos patriotas do Terceiro Estado. Não podia resultar em nada muito diferente. A ordem de prisão, emitida intempestivamente pelo Comitê de Saúde Pública, chegou rapidamente ao seu destino por meio de oficial de justiça apoiado por forte contingente de soldados. O desenlace foi o velho Philippe acabar vendo a luz dos seus dias se extinguir enclausurado no seu próprio castelo: o de Bogenet. A Revolução e a queda de Luís XVI arruinaram muitas famílias da nobreza do Ancien Régime, da Velha Monarquia, Tisserand comentou. Outras tiveram enfraquecidos, de forma significativa, vastos patrimônios construídos ao longo de muitas gerações. Não chegou a tanto nas famílias Monlevade e Bogenet. E é por isso que não houve qualquer impedimento para que o mesmo Philippe passasse o direito de posse dos domínios de Bogenet para o filho que, não por acaso, chamava-se Jean. Este Jean, mon ami, Tisserand disse-me, foi um monarquista convicto que seguiu, ao pé da letra, as mesmas ideias do pai. Mas não é esse o motivo que me fez mencioná-lo para o senhor! O fato singular da vida deste homem foi o de ter sido o pai do bondoso abade a quem não tenho poupado elogios. E foi quase sem pausa para respiração que Tisserand indagou-me (em tom de alerta, e voltando a assunto que eu já considerava entendido) se eu havia reparado que, nesta família, vários mancebos foram chamados com o nome Jean, João. Respondi-lhe que sim. E lembrei-lhe que ele próprio, por duas vezes, já havia informado o fato. Ele assentiu e, ao mesmo tempo, disse-me ser instante para fazer determinada avaliação. Não. Não estava sendo precipitado. Jean Monlevade, do Castelo à Forja 23 E perguntou-me se eu conseguiria atinar o porquê de seu interesse em mencionar aqui tão intensamente a vida pessoal deste religioso, e de sua fé, e que tem, a princípio, não tanta importância no contexto da história que iria relatar. Mas não me deu tempo para respondê-lo, pois num átimo, antecipou-se a qualquer eventual julgamento que viesse a surgir de minha parte. A resposta é simples, disse. E vem de afirmação que o senhor já sabe, e que é, por sinal, a mesma razão pelo qual o prelado escrevera seus rascunhos. A de realçar o amor que tinha pela família, e por seus amados! Desses, um em especial, e que viera ao Brésil para cumprir tarefa extraordinária. Não chegou a conviver com o primo Jean Antoine Felix Dissandes de Monlevade, mas orgulhava-se dos seus feitos. Quando ainda rapazinho, teve felicidade fortuita de comparecer à sua graduação na École des Mines de Paris. E foi a partir daí que passou a ter por ele especial interesse. Acompanhou-o, a distância, em todas as peripécias de sua existência. Pois é baseado também nisso – ainda é Tiserrand quem diz – que fiz minhas próprias anotações. Foi de onde criei bases para lhe dizer o que julgo verossímil nesta história. É por tudo isso que honestamente desejo que Deus tenha recebido o abade e aos seus, conforme seu desejo. E rogo encarecidamente que também com a mesma diligência, e da mesma forma, acompanhe minhas palavras! 24 Jairo Martins de Souza Jean Monlevade, do Castelo à Forja 25 III O castelo de Monlevade O fidalgo Jean-François Dissandes descortinou finalmente a vista magnífica de Monlevade. O belo edifício, construído com pedras desde o baldrame até o pico da torre de vigia, aguçou-lhe sentimento de incerteza e aflição. Em condições normais aquele esplêndido e amado cenário tinha o predicado de inspirar-lhe confiança e sensação de reduto inexpugnável. Extraordinariamente fizera o sinal da cruz ao divisar a vista menor da capela do seu castelo. E, independente de exercício de sua livre vontade, a descarga de adrenalina disparada para dentro de suas artérias fez-lhe o pulso acelerar descontrolamente. Não. Não podia perdê-lo! Não podia faltar com promessa ao pai, Jean Dissandes de Bogenet! O château, o castelo, lhe havia sido doado antecipadamente ao que era de se esperar na relação de transmissão de herança entre pais e filhos. O ano foi o de 1786. O pai, por sua vez, em 1740, o havia incorporado ao patrimônio dos Dissandes de Bogenet trazido como dote pela noiva: a simpática Marie Niveau de Lagrange de Monlevade. A partir do casamento é que se ajuntou, em termos definitivos, o nome Bogenet aos Monlevade. E Jean-François não teve como negar a escolha e o encargo de manter o valioso patrimônio sob os auspícios do brasão de sua casa, pois quase todos os irmãos, que chegavam à casa dos dezessete, encontravam-se fora da província servindo à sociedade em diversos segmentos. Igreja. Exército. Administração pública. Não os tinha mais por perto. E angustiava-se ao recordar que os anos felizes de sua infância faziam parte de passado distante. Não se sentia só. Estava só! A situação que assumira fora inicialmente planejada pelo pai 26 Jairo Martins de Souza para ser posto a público somente quando estivesse em leito de morte. O recuo no tempo teve a intenção de propiciar em termos objetivos um melhor zelo e manutenção da propriedade. Cabialhe cumprir a missão destinada. E foi ainda com a respiração fortemente perturbada que o fidalgo resmungou... Não! Não vou ceder facilmente a novos espasmos revolucionários de Paris! Sua via crucis começara há quase dois anos. Em 1789. A inusitada convocação da Assembléia dos Estados Gerais por Luís XVI jamais iria se apagar de sua memória. Foi, o estrangeiro Tisserand reforçou, o que, em termos finais, acendeu o estopim da Revolução. Três anos antes, julgara oportuno estabelecer moradia no castelo Monlevade junto com a mulher que escolhera para constituir família. Ela tinha o sugestivo nome de Felicité, Felicidade. O clã dos Dissandes de Bogenet, mesmo antes de sua ligação com os Monlevade, era já proprietário, entre outras riquezas, dos chatôs de Bogenet, Lavillatte, Balleyte e Villecorbet. Bogenet, cercado de árvores seculares e paisagens sombrias, era bem mais imponente que Monlevade. Assentado em uma colina, que dominava a paisagem de todos os campos adjacentes, sua imagem espelhada podia ser vista em lago próximo, exibindo duas asas perpendiculares articuladas em sua alta torre de proteção. Castelo de aparência macambúzia, e que perdia em qualidade de vida por ser bastante afastado da cidade. Havia ficado, conforme já lhe disse, sob posse de um dos seus primos. Essas foram razões para fixação da residência dos pais do fidalgo Jean-François nos domínios de Monlevade. Também haviam levado em conta que o acesso a ele se fazia com muito maior facilidade. Viveram lá por 46 longos anos. Foi somente após cedê-lo ao filho, que o já viúvo Jean Dissandes transferiu morada para a sede da província. É onde o encontramos como atual prefeito, sentindo-se infeliz e sem forças para defender o Ancien Régime. Era mais um dos cargos de destaque que exercia na antiga província de La Marche. Antes disso, fora conselheiro do rei no Presidial, e fiscal de consignações. Como se vê, Tisserand reforçou, toda a família usualmente ocupava cargos de destaque na sociedade regional. Jean Monlevade, do Castelo à Forja 27 No entanto, era naquela última função, a de alcaide, que combatia com toda sua alma as ideias revolucionárias. O fidalgo pressentia que o pai não resistiria às pressões e não tardaria em renunciar. Para desgosto de ambos, o governo havia eliminado todos os títulos conquistados pela espada e por séculos de tradição familiar. Um acinte à nobreza! Não fosse bastante, desligara o clero da Igreja. Roubara seus templos e propriedades. Os padres, os abades, e outras autoridades eclesiásticas foram alçados à categoria de funcionários públicos. Receberiam salário do povo. Nada de ordens monásticas. Nada de igrejas. Um desafio à casa de Deus! Tudo isso dá ideia extremamente condensada das condições em que, em seu convulsionado país, sucedia o ano de 1790. Quantas atribulações! Pelo uivar dos lobos, o sangue prosseguiria esguichando por todos os cantos do reinado. 28 Jairo Martins de Souza Jean Monlevade, do Castelo à Forja 29 IV O fidalgo Jean-François. O acidente em combate! A despeito da confusa situação que soubera existir em Paris, a viagem feita pelo fidalgo transcorrera livre de ameaça de salteadores que proliferavam pela outrora sossegada província. Viera a toda velocidade e a condução, como vimos faz pouco, alcançara seu destino: o castelo Monlevade. O bafo quente e o resfolegar das duas cavalgaduras que a puxavam, além dos montículos de barro cinza escuro ejetados na horizontal aos pulos do furo abaixo dos seus rabos eram, por sua vez, sinais de que os animais estavam prestes a ficar exaustos! O barulho seco do atrito dos freios, madeira contra madeira, e a lama atirada para os lados pelas rodas que antecederam a parada final foram os indicadores derradeiros que haviam anunciado, de antemão, a presença do fidalgo na sede dos seus domínios. Seu mau humor não se dissipara por completo e ele, com aparência resistindo à virada da meia-idade, chegara finalmente à porta principal do seu domicílio. Há minutos conseguira ter a alma suavemente refrigerada pela visão de uma família que se divertia em remanso situado próximo a pequena ponte que cobria trecho das águas puras do Creuse. Ao ultrapassá-la percebeu que o cesto parcialmente coberto com panos, e deixado na relva sob proteção de árvore copada, indicava que a chuva que passara não havia prejudicado o piquenique. Dois dos rapazes jogavam pedras rasantes em remanso próximo. Os círculos concêntricos que se formavam agradavam-lhes a vista. O pai, com uma das mãos apoiadas no ombro da filha, acariciava-lhe os cabelos, enquanto pacientemente ensinava-lhe a pescar. Um terceiro rapaz, que também estava no cenário, fingia tomar-lhes o caniço. Não parava de se movimentar e, sorrindo, cutucava-lhe os flancos e fazia folguedos com a ansiedade da pequena irmã. 30 Jairo Martins de Souza O fato é que, após tal visão de harmonia, vira um forcado e uma pá abandonados na estrada: obra de algum desleixado. Ora, o que mais fazer? Por mais que os instruísse, alguns de seus camponeses teimavam em não seguir pequenos detalhes de organização. Não fosse isso bastante, alguns dejetos deixados ao largo por cães sem dono haviam contaminado o ambiente de entrada de seu castelo. Felizmente, a eles se sobrepunha o aroma de terra lavada de chuva. Não era frequente que se aborrecesse com tais detalhes do cotidiano. Nem poderia. Era homem do campo! E, já apeando, dissera ao condutor que talvez tivesse que voltar à cidade: não tarda! O homem já havia guardado o chicote, quando simultaneamente ouviu o patrão dizer o mesmo a outro servo que se aproximava apressado para carregar-lhe desgastada maleta de couro de boi. Ambos imediatamente entenderam que seu senhor voltava de um dia extremamente atribulado. Um dia de cão. O que não notaram é que o fidalgo, com ponta remota de satisfação, vira que seu trecho preferido da entrada do castelo, situado a alguns metros após baixo muro de pedras cinzentas estava, de um dia para o outro, lateralmente todo preenchido por pequenas flores e cogumelos. Agradava-lhe o contorno sinuoso do caminho! Mas foi olhando orgulhosamente para a torre de proteção que marcava o ponto mais alto de sua morada que fez a retirada do chapéu, pendurando-o imediatamente em pau fixado após a porta principal de duas bandeiras. E com o canto dos olhos reparou que a ordem que dera antes de sair em direção ao vilarejo fora rigorosamente obedecida. Uma das bandeiras da portentosa porta central de madeira trabalhada estava definitivamente fechada com seus ferrolhos fortemente soldados e encravados no piso. Como sempre fazia, olhou-se no espelho, lembrando que a barba havia ficado por fazer. Foi momento também de confirmar que a peruca adquirida por alto preço, em Paris, fora intensamente manchada pela breve intempérie. Com isso mal se deu conta que as botas estavam sujando grosseiramente o piso cotidianamente zelado pelos olhos vigilantes da mulher. Rotineiramente não se movia com tal agilidade. Os que o conheciam bem sabiam que quando assim se comportava, fazia realçar sintoma deixado por golpe não muito recente de ponta de baioneta. Jean Monlevade, do Castelo à Forja 31 Na ocasião em que fora ferido, não fosse colocação imediata de caneca de açúcar, talvez nem mais pudesse ficar apoiado sobre um dos pés. Ainda que tenha sido efetiva, a providência tomada em tempo hábil não foi suficiente para impedir que a mesma dor profunda voltasse à tona com mais intensidade a cada inverno. Com o frio, acordava como se estivesse no dia da batalha em que fora atingido. Chás caseiros e unguentos não davam conta de aliviar seus sofrimentos. Recordação doída e digna de medalha, em forma de águia, a ser, merecidamente, recebida das mãos do próprio Bonaparte. Muitos anos haviam se passado... Pois o fidalgo Jean-François Dissandes de Bogenet era daqueles que nunca deixariam de entregar Mensagem a Garcia! Foi aí que Tiserrand disse, após breve pausa, que o acidente fora resultado de sua participação na ajuda francesa para libertação das Treze Colônias da América do Norte. Atualmente nossa grande discussão com os ingleses, mon ami, resume-se somente aos confrontos de futebol, questões menores da política, e recusa de abolição da libra em favor do euro. Em séculos passados não era assim. Bastava que um dos príncipes achasse que o outro se trajava com mais elegância para que o canal da Mancha ficasse manchado de sangue. Faltou-me dizer, Tisserand comentou, que o fidalgo fisicamente também havia ficado manco da perna esquerda. Um coxo! Em momentos críticos, como o descer de uma carruagem, era-lhe razão para indesejáveis incômodos. Bem, não fossem aquelas dores bastantes, as agruras do seu período americano não se reduziam a isto, Jean-François Bogenet havia adquirido outra enfermidade contra a qual não tinha recursos. Simplesmente padecia. A ciência evoluía rapidamente, mas desgostos psicológicos que dependessem de suporte médico somente viriam a partir dos finais do século dezenove. Nenhum combatente conseguiria abortar da memória as cenas inundadas de sangue dos companheiros mortos no cerco de Yorktown, na Virginia. Não sem razão, mon ami. O senhor pode perguntar, muitos ainda sobrevivem, a um ex-pracinha da FEB o que significa estar em batalha em que prevalece o embate corpo-a-corpo! Companheiros de farda relataram que o fidalgo comportouse com a bravura dos guerreiros espartanos encurralados no des- 32 Jairo Martins de Souza filadeiro das Termópilas. O filme Trezentos, Tisserand explicou, estrelado pelo Brésilien Rodrigo Santoro, pode ilustrar e sensibilizá-lo magnificamente quanto à dureza dessa comparação. Contudo, não sendo essa película exemplo bastante, resta-me lembrar que o fidalgo lutou sob o comando de Rochambeau. Família de militares famosos. O conde Rochambeau animava os seus com o conhecido lema de brasão familiar: viver e morrer como um bravo, vive em preux y mourir. Foi assim que as imagens e os odores de morte ficaram definitivamente retidos no inconsciente do fidalgo. No fundo, Tisserand disse-me, meu propósito era deixar bem claro que, Monlevade, além de oficial destemido, tinha olfato privilegiado. Isto, em muitas situações, nada contribuía para seu bem-estar. Já que, quando cheiros como aqueles voltavam à sua memória, faziam-no com força redobrada, triplicada, quadruplicada, quintuplicada, enfim, como o milagre da alavanca de Arquimedes que via agora um dos trabalhadores do castelo usar para retirada de roda de outra carroça que se projetara em buraco no mesmo caminho pelo qual havia chegado. Passaria aquela característica genética para os filhos. O derradeiro, com maior intensidade: terá três! Mas o que de fato lhe criava rugas dizia respeito ao futuro do país e à perpetuação do nobilíssimo nome Monlevade. Com tal estado de espírito, mal se apercebera da presença de outros trabalhadores e fornecedores que cumpriam seus afazeres de trabalho e rotina de estrutura dos diversos setores de sua propriedade: estábulos, plantações, gado e outros afins. Trabalhavam conversando como faz de hábito quem lida com tarefas mecânicas e repetitivas. Alguns deles divertiam-se fazendo troças uns com os outros. Nessa condição é que também trocavam ideias sobre a nova situação do clero e da nobreza locais. Um deles cochichara dizendo, companheiros, falem baixo, passa perto o cavalo de ferradura rachada, ra, ra, ra, ra... Era o próprio fidalgo que se dirigia no ritmo em que estava aos seus aposentos: já podemos vê-lo subindo a escada de acesso ao primeiro piso. Área íntima e dos dormitórios. Sabia estar lá a esposa que, em horário vespertino, costumava reservar tempo para bordar as roupas e trabalhar as rendas da casa. Jean Monlevade, do Castelo à Forja 33 Já passavam das quatro e a mulher desviou o olhar da peça de tricô. Levantou a cabeça e, com o canto dos olhos, notou que o marido chegara. Um frio percorreu-lhe o corpo e alma. Algo o incomodava... Jean Dissandes de Monlevade retirou a peruca e instantes depois desvestiu a sobrecasaca de cor azul. Ato contínuo, disse baixinho para si mesmo, enquanto olhava para a esposa que julgava distraída com seus afazeres: essa deverá ser a mãe dos meus outros filhos. Finalmente buscou os olhos da mulher, que já virara o rosto para vê-lo concluir aproximação. Felicité, já sabemos ser este o seu nome, segundos antes estava ligeiramente ansiosa. Agora mudara seu quadro de sentimentos: tinha ficado intimamente bastante perturbada. Ouvira e olhara por fresta da janela que a carruagem do marido havia chegado, e ele até o momento não se aproximara para beijá-la, e nem para agradá-la com qualquer outro tipo de afago. Não. Seu senhor nunca fora dado a esse tipo de comportamento. Foi quando, acomodando-se ao seu lado, o fidalgo lembrouse repentinamente dos recentes manuais de cortesia, os quais ele mesmo gostava de ler em voz alta e, juntos, discutir futura aplicabilidade para os filhos. Então mudou postura e, abaixando-se, acariciou-lhe ternamente o rosto e os cabelos. Olhou-a profundamente nos olhos, e disse, de novo, somente com a alma, como se dessa forma a outra pudesse ouvi-lo. Estamos pagando nosso preço, meu amor! A França passa por fortes abalos. Não há outro jeito. É assim em todo processo histórico de depuração! La Villate, Bogenet e Monlevade são castelos privilegiados, Félicité, foi o que finalmente verbalizou para a mulher. Ela instintivamente percebera que o marido tinha dado sequência a algumas frases que silenciosamente vagavam por sua cabeça. Essas propriedades acompanham a família há gerações. Pode ser que haja sistemas que funcionem melhor. Não os conheço. Se existem, talvez devessem ser testados: desde que se respeitem direitos estabelecidos! E não é que não tenha consciência da validade da matemática de Malthus. Não podemos negá-la. Basta olhar para dentro da nossa própria França e fazer algumas contas simples. Não se pode simplesmente ignorar as secas e a força dos invernos que temos tido! As famílias não têm 34 Jairo Martins de Souza tido crescimento geométrico? Não é dezoito o número de filhos dos meus pais? Daí a fome! As dificuldades têm sido muitas para todos, Felicité. A começar pela atual falta de clientes para os tisserands da nossa região... Ah, Tisserand, percebi!... tisserands. Tecelões. Ofício comum nas vizinhanças de Guéret. Eureka! Um deles pode estar ajudando-me a tecer os fios deste livro! O estrangeiro, homem perspicaz, percebeu que algo inesperado estava se passando comigo. Então, imaginando dar tempo ao tempo, levantou-se e, alegando estar com as vias sanguíneas congestionadas, fez calmamente uma pequena sessão de alongamentos. Foi a partir daí que, olhando-me o rosto, e sentindo-se novamente à vontade, prosseguiu divagando sobre os protestos do fidalgo Monlevade que conversava com a mulher. Nosso rei é amaldiçoado, Felicité! É fantoche calçado pela escória da Velha Monarquia. Até a Tomada da Bastilha, não tinha dado conta do que ocorria com o povo em Paris. Não reparava no vai-e-vem de ministros e colaboradores. O trânsito de cavalos e carruagens para Versailles era absolutamente extraordinário! A única palavra que consta em seu diário íntimo no fatídico catorze de julho foi a palavra Rien! Nada! Escreveu-a antes de se deitar. Ninguém em sua corte, Felicité, reflete sobre ideias novas e equilíbrio de contas. Nós, não. Aqui em Monlevade trabalha-se duro. Nobreza devassa. Pompadour, a marquesa, deixou herdeiros à altura! Mas custa-me, Felicité, aceitar as execuções sumárias da Revolução. E não é que seja contrário a tudo. Novos tempos. Novos conceitos. Não fomos ensinados que o corpo humano é composto de cabeça, tronco e membros? A sociedade boa de se lidar é também dividida, organizada. Nobreza. Clero. Plebe. Cada coisa em seu lugar. Fica mais fácil de manter a ordem. Mas aí alguns se aproveitam e fazem com que o sistema se sature de injustiça. O reinado tem que ser mantido, ma chérie. Mas sob luz de novos conceitos jurídicos. Talvez como os ingleses... Felicité manteve-se sossegada, enquanto decidia como interceder e relaxar a alma do seu amado. Próximo, o pequenino bebê François Monlevade, um ano e alguns meses, repousava placidamente enquanto amamentado por Francine, sua ama de leite. Jean Monlevade, do Castelo à Forja 35 Por temor de doenças, e de pestes, a mãe prometera, a si mesma, caso lhe faltasse leite do próprio peito, nunca alimentar os filhos com leite de vaca. O celebrado Davi não produziria quadro mais significativo e bonito do novo modo de viver da família cristã. A despeito de tantas comoções, tudo exalava cheiro e imagem de amor. Três. Três longos anos. Fora o tempo após bodas que Felicité demorara a ter o primeiro filho. Ele acaba finalmente por ceder ao sono. Ela se enternece. Volta os olhos novamente para o marido, o angustiado Jean Dissandes. Respeita-lhe o sofrimento, mas absolutamente venera o rapazinho que dorme tranquilo, alheio às truculências de um país que protesta contra seu rei e luta articuladamente pela derrubada do Velho Regime. Que outros filhos venham à luz em curto prazo para dar seguimento à vida e desbravar novos mundos. Um deles já está a caminho: seu senhor não percebera. Quem sabe para abril ou maio do ano que vem. Algumas horas mais tarde, e exercida sua magia de mulher, o fidalgo Jean-François repousava tranquilamente no seu colo. Nem mesmo o frio parecia acordar-lhe as dores costumeiras do seu ferimento. O barulho suavemente cadenciado da chuva que voltara, e caía no telhado, havia também ajudado o seu homem a espantar parte das preocupações. Melhores tempos. Melhores colheitas virão. O filho, enrolado em panos revestidos de pele de carneiro, acordara e olhava-a com olhinhos vivos de quem quer também novamente alimento. A luz de uma vela bruxuleante, que insistia em não apagar, fez Felicité perceber que Francine já tinha um dos mamilos expostos. Pronta para satisfazê-lo. Daí a minutos estaria arrotando, e voltaria a dormir sossegado. A mãe sorriu tranquila, prevendo que alguns meses mais e Deus lhe traria alegria diferente. Sua urina andava mudando de cor. Não tinha dúvidas: estava grávida novamente! Ah, a azia que venho sentindo ultimamente prenuncia ser tempo de Marie-Victoire! Depois dela, somente Jean. Pois iria chamar seu último filho pelo mesmo nome do pai. O mesmo do avô... Teria o prazer de vê-lo perpetuado por mais uma geração na futura imagem do filho. E acrescentaria o nome Antoine. Ah, não pode ser outro: o seu futuro menino deverá ser o não menos amado Jean Antoine! 36 Jairo Martins de Souza Jean Monlevade, do Castelo à Forja 37 V O nascimento de Jean de Monlevade e o estranho local do primeiro sacramento Poucos anos se passaram, Tisserand disse, e com eles o testemunho de que Felicité tinha razão. Os filhos nasceram-lhe conforme sua formidável intuição feminina. O senhor sabe, mon ami, que, dizendo isto, não estou caindo em pecado. A percepção desenvolvida pelas mães e mulheres quanto a tais fatos é infalível! Resulta de séculos e séculos de sofrimento e observação. É por isso que até mesmo a pequena Maria Vitória, o quarto membro da família do fidalgo Jean-François, já andava, curiosa, circulando pelos cantos de Monlevade. Felicité acertara na mosca quanto à causa das azias do início de sua segunda gravidez e a filha, que, na ocasião, crescia secretamente em seu útero, já balbuciava frases completas, ainda que um tanto carentes de articulação. E foi nesta condição que, certa tarde, perguntara o que estava causando o crescimento paulatino da barriga da mãe. Felicité penteava-lhe os cabelos e a menina assustou-se, tanto pela inesperada batida do cabo da escova em sua cabeça, quanto pela resposta agressiva de sua sempre carinhosa e prestativa mãe! Não é coisa de criança saber, advertira-lhe. O tom de voz fora inusitadamente severo. Maria Vitória não conseguia conter ansiedade pela vinda do que julgava ser uma irmã. E, por meio de sua graciosa linguagem infantil, pedia a Deus que lhe presenteasse com uma que gostasse também de brincar com suas bonecas. Ficou frustrada. Os céus decidiram não atender às suas preces... E então o senhor imagine uma madrugada em que o alvorecer é muito tímido e a temperatura ambiente nos convida a 38 Jairo Martins de Souza permanecer na cama. Pois é. Foi numa dessas que veio ao mundo Jean Antoine Felix Dissandes de Monlevade. Faltou-lhe o nome Bogenet. De última hora, e por terrível negligência do cartório de registros, aquele ramo da família não foi anotado no nome do filho mais novo do fidalgo. Em todas as partes do mundo alguns funcionários públicos primam pelo descaso com seu ofício e com suas obrigações. Sendo assim, meu amigo, não é de se estranhar que mais falhas dessa mesma natureza venham a interferir em instantes de menor relevo desta história. Garanto-lhe serem momentos até certo ponto divertidos, o senhor não perderá por esperá-los. O que posso adiantar é que Felicité Sallé du Sioudray Monlevade – este era o nome completo da esposa do fidalgo Jean-François – saiu-se magnificamente do parto do último filho. Não se pode esquecer que era situação em que muitas mães perdiam as vidas! A parteira da aldeia era mulher despachada. E o fidalgo, afastado da esposa por alguns passos, escutara com satisfação incontida o resultado da leve palmada que fora dada nas pequenas nádegas da criança. Choro forte que ecoou longe e silenciou, por alguns segundos, o coral de galos que despertavam as almas que habitavam o castelo. O médico, que fora convocado por serviçal, estava atendendo a outra emergência a algumas léguas de distância e não chegaria em tempo hábil. Então, Yvonne, a mulher que a socorrera, decidiu untar os dedos com uma espécie de gordura preta, e os enfiar com vontade no ventre da quase inconsciente Felicité que era, ao mesmo tempo, compassadamente convocada a expulsar o filho. Força. Força. O bebê veio logo em seguida. Nascera praticamente sentado e com cordão umbilical enrolado por duas vezes no pescoço! Mas sua angústia foi pequeníssima, pois teve-o livrado com habilidade e destreza. As pequenas e experientes mãos de Yvonne haviam entrado em alerta e posto a cabo a missão em questão de segundos! A mãe, apesar das dores, estava bem. Mas, por precaução, a eficiente socorrista fez-lhe torniquete e furou uma de suas veias para permitir saída de quantidade pequena, contudo suficiente de sangue. Foi para evitar problemas e limpar o organismo, explicou posteriormente: madame Felicité vai ficar bem. Jean Monlevade, do Castelo à Forja 39 E após enrolar o braço de sua paciente com pano limpo, disse que aprendera o procedimento com o barbeiro-cirurgião da cidade que, por sua vez, dissera ter aprendido com o médico Colbert que atendia clientela de toda a região. Toma, mãe, ele é todo seu! Felicité tocou-o, por inteiro, da cabeça aos dedos dos pés. Graças a Deus, não faltava nada ao seu novo filho! E pelos protestos que fizera ao respirar pela primeira vez os ares do mundo, por dentro também aparentava ter boa saúde. Penso não ter sido obra do acaso, Tisserand vaticinou, este jovem careceria de muita força de vontade para cumprir sua missão. E foi assim que deu por encerrados os trabalhos de parto do protagonista de sua história. Jean de Monlevade não foi um bebê bonito. Tinha os olhinhos azuizinhos e era, digamos assim, engraçadinho. E nunca em toda a sua vida teria a clássica beleza masculina de um Alain Delon. Nem mesmo em sonho! Compará-lo, mon ami, com o Gérard Depardieu quando fez Cyrano de Bergerac tornar-se-ia o outro extremo. O da feiúra. Quem sabe pudesse ser explicado como alguém do tipo do Jean Paul Belmondo?... Nem feio, nem bonito. Bem, o que posso lhe dizer de confiável é que sua constante elegância no trajar, muitos sabiamente usam este artifício, é que o fazia parecer bem melhor aparentado do que efetivamente era. É com esse recurso que se tornava facilmente reconhecido como un homme charmant, um homem charmoso. Fazia mais de hora que eu ouvia o estrangeiro a quem decidira chamar Tisserand. Enquanto o observava mais uma vez olhar para os lados com a cabeça alta, como se estivesse pesquisando que tipo de tempo teríamos pela frente, pensava até que ponto iríamos chegar com a história daquele moço. Foi quando mudou repentinamente de assunto. Na ocasião do nascimento de Jean, os moradores das redondezas de Monlevade, disse, mantinham-se relativamente a distância da cartilha expedida pelo Terror revolucionário. O que não impedia que alguns, a mando da administração central do Departamento de Haute-Vienne, acabassem sendo presos e levados para igrejas e castelos. Soldados circulavam fortemente armados e a igreja católica continuava sendo combatida em vários segmentos. Alguns dos seus prelados não concordavam com o estado de coisas e ficavam sujeitos a sanções. O que celebrou 40 Jairo Martins de Souza o rito de colocação da alma, em Cristo, do filho Jean do fidalgo talvez tenha sido um deles. Pode ter sido esse o porquê de ter sido batizado, poucos dias depois do nascimento, em condição absolutamente singular: o sacramento lhe foi dado em pleno estábulo dos próprios domínios de Monlevade. Anos mais tarde, Felicité simplesmente declarou que havia encarado o evento com benignidade. E justificou-se explicando que, além do comentado, na época, alguns camponeses continuavam lançando focos de revolta contra donos de feudos como os de sua família. Daí a precaução tomada. Já o vigário, em suas notas, simplesmente percebera o acontecido com fé e esperança de dias melhores. Não nascera naquele tipo de ambiente o Nosso Senhor? Jean Monlevade, do Castelo à Forja 41 VI O caso da bola do jogo de péla A história da família do fidalgo, mon ami, tem algumas peculiaridades excepcionais e absolutamente contraditórias. O senhor se lembra da angústia que demonstrara em conversa reservada que tivera com a esposa Felicité? Pois daí não demorou muito para tornar-se um Jacobino: um membro do famoso conselho dos 500. Tal decisão trouxe-lhe muitas situações de risco. Imagine um veterano de guerra, um homem coxo, fugindo pelas janelas de sala onde estivera reunido com correligionários! Pois foi por meio de cena bizarra como esta que acabou escapando das garras dos que extinguiam o período revolucionário da Convenção. Mas o senhor também deve estar recordado que o fidalgo era homem feliz dentro do seu seio familiar. Talvez Deus tenha feito dessa forma para compensá-lo pelas contingências que enfrentou. Bem, para reforçar esta afirmativa, reservei-lhe exemplo que ilustra bem a fortuna de que desfrutava como chefe de família. Ela começa em tarde de primavera quando o menino Jean Antoine foi com o pai visitar família amiga em Guéret: estamos no acender das luzes do século dezenove e ele já conta quase dez primaveras. E para que o senhor tenha melhor imagem do fato, adiantolhe descrição do que viram ao chegar à rua principal do vilarejo. Nada especial. Em sua essência era quadro comum a cidades do interior daqueles anos. Pois, ao lado do povo, cachorros latiam e se deslocavam em bandos de um para outro lado e, ao mesmo tempo, carroças e bancas de mascates eram animadas pelas vozes das pessoas que davam andamento a cenas de negociações. Barganhava-se sem descanso pedaços de carne de porco, gali- 42 Jairo Martins de Souza nhas, peixes, coelhos, perdizes... tudo improvisadamente pendurado em toscos ganchos de ferro. Em barracas mais afastadas o ritmo não se reduzia quanto a flores, frutos, legumes, enfim, todo o resto que era exposto para apreciação, consumo e compra dos viajantes e dos moradores. O senhor, mon ami, conhece como funcionam estas coisas e deve ter acertadamente concluído que a feira das tardes de sábado estava em pleno andamento. Senão, repare com mais cuidado e sinta que os feirantes recendiam a alho, cebola e mau hálito. Já alguns compradores, mesmo sendo dia claro, tomavam vinho livremente, enquanto, entre gargalhadas, empanturravam-se de tira-gostos. Outros circunstantes que lá estavam nem para comprar, nem para vender, simplesmente jogavam damas ou apreciavam disputas de braço de ferro. Próximo a eles, um policial observava todas as circunstâncias para evitar brigas ou quaisquer outros aborrecimentos: os desocupados e arruaceiros da região eram bem conhecidos. Vestido disfarçadamente, à paisana, um oficial do governo revolucionário de Paris também fazia sua ronda. Nessa condição é que o menino Jean Antoine de Monlevade e seu cavalo foram efusivamente saudados pelos que os viam chegar. Aí está, meu amigo, a bem-aventurança que havia lhe anunciado. Vou explicá-la, Tisserand disse. Vou esclarecer o porquê do rapazinho ser tão admirado tanto nas cercanias quanto na própria Guéret. O fato é que dias antes chegara até a cidade para estudos extraordinários com o mestre-escola da cidade: viajara acompanhado por serviçal do castelo. Pois o fidalgo dava ao filho cuidadosas lições caseiras, mas também o havia matriculado na escola local. Daí era de praxe que todos os dias da semana o menino fizesse o roteiro Monlevade – Guéret para chegar até ao educandário. E é a partir disso que vou economizar palavras, Tisserand informou, pois o cenário era aproximadamente o mesmo que disse há pouco. A diferença era que não se tratava de dia de feira, mas sim de festividades dedicadas à padroeira local. E, como parte das celebrações, jogava-se tradicional partida de jogo de péla. A população das redondezas praticamente parava para presenciar o evento. Jean Monlevade, do Castelo à Forja 43 Não sei se o senhor sabe o que significa a palavra péla, Tisserand prosseguiu, é raramente usada. É o nome de uma espécie de jogo de tênis que alguns dizem ser o predecessor do popular football inventado pelos ingleses. Nós franceses, dizemos abreviadamente foot: jeu de foot, jogo de futebol... bem, devo voltar ao episódio que descrevia para o senhor. O campo em que acontecia o tal cotejo era prioritariamente reservado para acomodação de tropas militares e, quando desocupado, servia para prática de animadas partidas. Era essa a situação! A bola de jogo, feita de pele de estômago de boi, caíra ocasionalmente em buraco que permitia justo que lhe coubesse. O que significa dizer que poucas eram as sobras laterais para tentativa de puxá-la para fora com varetas, ou qualquer instrumento improvisado que alguns, a última hora, desesperadamente tentavam fabricar. A partida fazia minutos que estava paralisada. Os protestos cresciam. Menos por parte dos próprios jogadores do que de alguns presentes que haviam apostado na vitória de um ou de outro esquadrão. Jean aproximou-se do local onde estava a roda de gente que se esgoelava na tentativa de recuperação da bola. E foi vendo todo aquele deus nos acuda que, de cima do lombo do seu cavalo, levantou os braços e pediu calma a todos, dizendo: esperem! Não demora trago essa bola para a superfície! Havia entendido a circunstância. Surpreendentemente os presentes deram-lhe ouvidos e perguntaram-lhe: o que queres dizer, rapaz? Tragam-me balde cheio de água que, em instantes, terão de volta a bola de jogo! Foi imediatamente atendido e com seus braços finos jogou lentamente o líquido no buraco. Com sua descida, a bola subiu. Os homens comemoraram! Equipes e assistentes ergueram canecos de bebidas homenageando o rapaz. Quando se calaram, Jean pediu-lhes que não o agradecessem, e sim a Arquimedes e à sua brilhantíssima explicação da lei do empuxo. Estudei-a em livros antigos do fidalgo, meu pai, ele tem admiração por este grego. Foi assim que aprendi que poderia ser usada em casos simples como este. Ou até mesmo em outros 44 Jairo Martins de Souza de grande complicação como os de cálculo de cascos de navios. Foi a força de Arquimedes que empurrou a bola para cima, complementou. Não vou acrescentar nada ao que Jean disse, Tisserand prosseguiu. O senhor, tenho certeza, conhece de cor o enunciado daquela poderosa lei da natureza, conforme ensinada nas escolas. Nenhum dos camponeses entendeu nada do que dissera, mas com olhares de gratidão voltaram rapidamente para o final da contenda. Palavras de elogio eram ouvidas em todos os cantos da praça. Próximo dali o pai, que pernoitara na cidade, sorrira, estava já de saída mas teve tempo para aplaudir o evento provocado por seu querido. Fizera eco com o que ouvia. Não posso dizer o contrário ao que o povo diz, insinuou, estou habituado às estranhezas desse garoto desde que veio ao mundo. Então, Tisserand, parece-me que encaixando oportunidade, disse-me que realmente o rapaz tinha gosto por coisas inusitadas. O pai tinha razão. Uma delas era a de cheirar pedras. Examinava-as também com as mãos para sentir-lhes a textura em mínimos detalhes. Metia-as cuidadosamente até mesmo entre os dentes. Com isso verificava se uma era mais fácil de lixar do que a outra, ou se essa riscava aquela. A de diamante é a que risca tudo, concluiu. Não é à toa que monsieur Sarkozy, o ourives, disse-me que não pode deixar de tê-lo em sua oficina, Jean havia comentado com o pai. Por tudo isso, o fidalgo escreveu para um parente que morava em Paris, contando, inclusive, que o filho tinha até mesmo um cachorro buscador de pedras. Basta que ele as aponte para que o animal as localize e as extraia mesmo que em locais de difícil acesso. Totalmente preto. Era razão de o buscador ter sido chamado de Breu. O que não se deve estranhar é que também gostava de fazer coisas comuns a crianças de sua idade. Como pescar no Creuse, agora é o próprio Tisserand quem diz. E, logo na primeira ocasião, tinha reparado que os peixes vistos no fundo de suas águas pareciam maiores lá em baixo do que quando os pescava. Trazidos para fora se tornavam menores! Ficou intrigado. Tinha apenas 8 anos e, ao voltar da pescaria, comentou Jean Monlevade, do Castelo à Forja 45 com Flamini, o cozinheiro do castelo. O homem riu, e disse ser história de pescador. Não pôde pedir explicações ao fidalgo. O pai estava em viagem de negócios. No entanto, certificou-se, em almanaque dos arquivos de Monlevade, que a ilusão de peixe grande é culpa de mudança de velocidade da luz na água do rio. A chamada refração. Não entendeu bem: a explicação dada era vaga. Mas, suficiente para concluir que devia ser razão de os pescadores serem ditos como mentirosos... Daí não ter sossegado até descobrir que René Descartes escrevera sobre o assunto no livro Le traité du monde et de la lumière (Tratado sobre o mundo e sobre a luz). Vou pedir a papai para encomendá-lo. Em Paris... E é para lá que também vamos, mon ami, passa da hora de conversarmos um pouco sobre a terrível guilhotina... 46 Jairo Martins de Souza Jean Monlevade, do Castelo à Forja 47 VII A terrível guilhotina A fresca da tarde se avizinhava, anunciando que o tempo esfriaria levemente, mas manter-se-ia confortável. Estava cansado e perdi alguns minutos da exposição de Tisserand, pois devaneara sobre pontos anteriores de sua história. Ele havia percebido e, de repente, disse algo que teve o poder de atrair de volta a minha atenção. Em 1801, o mesmo ano em que Jean de Monlevade fez 10 anos, disse, as lâminas insaciáveis da guilhotina francesa completaram igual período de existência. Deixou de ser aplicada somente em 1977! O último condenado foi o emigrante tunisiano Hamida Djandoubi que foi decepado por homicídio de uma jovem mulher. O possante e singular facão era tão temido pelos nobres franceses quanto o era, para algumas muçulmanas, o apedrejamento por deslize às leis do alcorão. É por isso que vou alongar-me um pouco sobre ele, Tisserand acrescentou. Em sua première, a cabeça condenada que rolara, até cair em recipiente próprio, fora a do pedreiro Pelletier, especialista em construção de estradas. Em 1793, foram também seus aterrorizados clientes, o pescoço real de Luís XVI e o de sua esposa: a então angustiada Habsburgo, Maria Antonieta. Desde então já se passara tempo suficiente para que fosse cumprida a lei nefasta de a criação virar-se contra a criatura. O filho virar-se contra o pai. Foi assim que Louis Guillotin, o médico que a inventou, tornou-se injustamente amaldiçoado. Pois a violenta lei da gravidade, e as polias e os contrapesos que usara no seu projeto foram, no fundo, somente para diminuir a miséria e a dor dos condenados. Foi aí que observei que Tisserand, após finalizar a última frase, estava mantendo um sorriso quase infantil, na face e nos lábios. 48 Jairo Martins de Souza Como pode? São incontáveis as injustiças que podem estar embutidas neste assunto! Amigos do próprio fidalgo Monlevade poderiam ter sido injustamente sacrificados! Causou-me certa indignação! E pensei em pedir-lhe que voltasse a dizer de Jean e os 10 anos que Tisserand dissera ter completado. Mas antes disso, concluí que reparara minha estranheza quanto à aparente incoerência de sua postura, pois imediatamente explicou-se, com certa tristeza: se não é para afastar a miséria humana, mon ami, para que nos serve o riso? E confessou-me ter se lembrado vagamente de alguns versos do Bocage: dizem que um médico foi/ inventor da guilhotina/ mostrou conhecer da morte/ mostrou conhecer medicina... Creia-me, caro leitor, ambos demos por encerrado o mal-entendido. O lucro que tive da situação foi também o de ter confirmada uma das minhas primeiras impressões, quando do início do nosso contato nesta praça. O terno de brim, o modo de se expressar, o olhar vago buscando o horizonte, o ambiente em que estávamos, enfim, tudo isso me fizera lembrar (ainda que o estrangeiro tivesse feições bem diferentes e mais envelhecidas) a figura do Tom Hanks, tal como no início do conhecido Forrest Gump. Bem, Tisserand poderia não ser artista de profissão, mas tinha realmente talento para tanto. Recitara o poema com maestria! E foi daquele ponto que continuou sua história dizendo que no mesmo 1801 o papa Pio VII voltou a ter controle dos sinos das igrejas do mundo católico francês. Havia-lhe sido retirado anteriormente pela Revolução. Paz provisória. Inclusive para as famílias que perambulavam pelas ruas com estômagos vazios. Prova dessa minha última afirmação, Tisserand confirmou, é que até mesmo alguns escritores relataram, a posteriori, inúmeros casos de jovens de boa intenção condenados à prisão e desprezo social por caso de simples furto de pão velho para alimentar irmãos e filhos menores. Em tais histórias, estes infelizes sempre contaram com o apoio da comunidade cristã! Repare o senhor que um operário, quando ativo, ganhava 20 sous por dia. Um quilo de pão custava 20 sous. A água era gratuita. Passava-se a pão e água, mesmo quando se era afortunado o bastante para ajeitar trabalho. Bem, esses não são dados baseados em censos governamentais, pois a maioria deles é recheada de Jean Monlevade, do Castelo à Forja 49 falsidades. E sim, levantados em fontes da arte literária francesa da época. Vendiam-se livros dos seus autores por todo o mundo! Eles fizeram muito pela França, e é por meio da literatura que o país conquistou muitos admiradores aqui na longínqua América do Sul. Tanto é assim que filhos selecionados da burguesia brasileira andaram visitando Paris para estudos em diversas áreas da cultura e da arte. Não é de se surpreender que um desses jovens tenha vindo a influenciar a vida da família do fidalgo de quem falo. O senhor que me ouve não perde por esperar a confirmação do que digo! Tisserand sorriu. Já havia notado que sorria sempre do mesmo jeito quando pensava dizer algo contraditório. Acertei em cheio!... pois ele, em questão de segundos, prosseguiu dizendo que, embora não tivesse o propósito de expor a público seu miserável conhecimento da história da Europa, a evolução da ciência, tocada pela Polytéchnique francesa, pelos alemães, pelos ingleses, e outros pesquisadores avulsos pelo mundo afora, seguia sem solução de continuidade no início do século dezenove. O cálculo diferencial avançava a passos de gigante. Não é à toa que sempre se disse que a matemática anda séculos à frente de outras disciplinas. Daí estava por se confirmar na prática o que nela já se sabia por mais de duzentos anos: a Terra não é fixada e nem imóvel em qualquer ponto definido do espaço infinito. Muito menos no seu centro. Ela gira em torno do seu próprio eixo, foi o que Leon Foucault finalmente provou com o pêndulo que veio a montar no edifício do Panteão! Tudo. Toda a fantástica evolução daqueles anos foi lenta. A conta-gotas. Dou-lhe, a mais, o singular exemplo do barco a vapor. Após milênios de espera, o viajante se libertava da habilidade pessoal dos capitães no manejo das velas e lemes de suas caravelas. Para crer como eram complicadas aquelas situações, mon ami, basta estudar por alto operações simples da matemática de vetores. Pouco a pouco o estrangeiro desvinculou-se do ar professoral que subitamente havia assumido. Contudo não deixou de continuar dando seu parecer dizendo que tais avanços propiciaram ao povo europeu estender asas para novos continentes. O Brésil, por exemplo, era visto como se estivesse no estado em que Deus o havia criado. O jardim do Éden. Um distante retrato recuperado da criação. 50 Jairo Martins de Souza Jean Monlevade, do Castelo à Forja 51 VIII A escola em Guéret e os cuidados do professor Duchamps. Jean é perseguido pelo maldoso Materazzi O professor Duchamps era homem sereno que levava a vida tendo como prazeres maiores a transmissão de conhecimento aos seus alunos e a dedicação à igreja de Cristo. Tentara ser cura d’almas exclusivo, mas a curiosidade científica, as propostas do suíço Rousseau, assim como outras atrações mundanas, chamaram-no, inapelavelmente, para o mundo secular. A igreja acabou por perder parcialmente um bom apascentador de ovelhas do seu vasto rebanho. A família se conformara, mesmo que houvesse planejado para ele somente a vida austera do claustro. Os argumentos do moço foram incontestáveis. O senhor, meu amigo, verá que Duchamps, no alvorecer de sua vida adulta, acabou sofrendo grandes decepções. Valeu-lhe, por final, a grande fé que, a despeito de tudo, sempre demonstrara ter. Considerava ser a grande herança que recebera dos pais! A bem da verdade, tudo começara com uma pequena tragédia familiar. Ainda jovem se apaixonara por uma prima: moça de cabelos dourados e olhos azuis com a qual convivia desde a primeira infância. Era daquele tipo de paixão, quem não as teve, construída pelas brincadeiras infantis e encontros de família regados com amor, inocência, poemas de rimas pobres e intimidade de vista de cotovelos descobertos. Não mais que isso. Não deu outra coisa. Feitos prematuramente os acordos de dote e compromissos, o casamento foi tão natural como nasce o sol da manhã, e outras estrelas escondidas pela claridade do dia: o que nada significa para duas almas apaixonadas, pois a chegada da noite dá chance a que apareçam, e tornem as madrugadas ainda mais belas para o casal. 52 Jairo Martins de Souza Mais ainda naqueles dias em que a escuridão das ruas dava vez a maravilhoso planetário natural coalhado de estrelas extraordinariamente brilhantes. A vida vislumbrava, para os dois amantes, augúrios de muitas felicidades muito antes de soarem os gritos e protestos da Revolução. A promessa era a de um mar banhado de rosas. Aí, exatos nove meses após as festas e folguedos nupciais, é que ocorrera a desdita. Ela morreu. A causa mortis foi complicação surgida durante o parto que, sabemos, levava para a sepultura boa parte das mães que davam à luz novos filhos. Mortificado pelo ocorrido, o jovem viúvo tentou conseguir colocar o corpo da amada para descanso eterno junto a padres e abades no piso da igreja da cidade. Era pedido feito pela mulher pouco antes de morrer. Pensava poder daquela forma, ouvi-los, e a seus sermões, como se estivessem em púlpitos celestiais. Repousaria mais próxima do céu... Não conseguiu. Duchamps sofreu, rebelou-se contra Deus, chegou até mesmo a pedir que não se pronunciasse tal nome em suas proximidades, xingou santos que julgava protetores de si e da família e, por fim, quase sucumbiu à dor da perda precoce. Desesperou-se mais ainda quando, dias depois, foi comunicado que o pequeno filhinho que trazia no rosto os olhos azuis da mãe também se fora. O bebê nascera fraco e débil e não resistira à ausência do amor e leite maternos. O sofrimento fora triplo para o pai e o viúvo. A infeliz criancinha ainda não tinha sido batizada e esperaria no limbo até sua chamada para o céu no final do segundo milênio. Após enterrá-lo ao lado da mãe sob pequena campa no cemitério local, o abatido Duchamps andou pela França sem destino nem moradia fixa. Com o desencadear de tamanhas desilusões, encerrara precocemente sonho de ter lar e ninhada de filhos. Tão miserável era o seu estado que tinha os olhos constantemente inchados por choro ininterrupto: lembravam os de alguém com desagradável sintoma de conjuntivite. Mas antes de fugir para longe de sua desgraça, tivera inspiração suficiente para gravar em pedra seus nomes, com as datas de nascimento e morte, assim como duas linhas de poema comentando sinteticamente, talvez como Machado fez com sua Carolina, o amor e a falta que definitivamente iria sentir. Jean Monlevade, do Castelo à Forja 53 Após alguns meses, a vida de andarilho assomou-lhe à consciência. Pesou prós e contras. A busca do nada significava o quê? Nenhuma estrada serve para quem não sabe aonde quer chegar. Era homem forjado no campo. Como um passarinho murcho, precisava se fixar em um galho. Não podia ficar dando voltas como um rio de planície. Faltava-lhe decisão imediata. Ela não demorou e foi extremada. Por não considerar haver abrigo melhor para reflexão, comprou velho mosteiro, abandonado no topo de monte e isolado por densa vegetação, onde se refugiou por cerca de dois anos. Perdeu a noção dos dias da semana. Revirava velhos conhecimentos que guardava dos tempos de escola. A gramática. A dialética. A retórica. A aritmética. Lia a bíblia. Não atinava qual dia deveria consagrar especialmente ao senhor. O mundo passou para ele a ter classificação especial. As horas eram três blocos compactos. Manhã. Tarde. Noite. Com a passagem do tempo, cansou-se da solidão e da vida de eremita. O pequeno período de felicidade vivido com a esposa que não mais estava neste mundo trouxe-lhe saudades e desejo de voltar a ter vida social. Não. Não é que o luto houvesse se acabado de todo. Faria parte do seu cotidiano até o final dos seus dias. Entretanto a carne ainda não havia enfraquecido a ponto de não sucumbir a contatos com o sexo oposto. Tinha lá suas sublimações. Pois não se pode ficar eternamente apaixonado por quem não mais lhe escreveria bilhetes de amor ou lhe faria carinhos. Sua atitude deixara de ser doentia e mórbida. Voltara a ler o Novo Testamento. Fizera as pazes com Deus e tinha, enfim, mirado os tristes eventos como parte de sua cruz terrena. Considerava-se no caminho da salvação; a dor forja melhor o caráter que a vida fácil e, por final, viu-se com a alma fortalecida com as longas noites de reflexão e leitura passadas sob a luz de vela de sebo e a observação, e anotação, dos movimentos dos astros noturnos. Para sua felicidade, achara como parte do espólio do mosteiro, abandonada em armário esculpido nas suas paredes, uma luneta empoeirada e suja, mas com lentes em bom estado de conservação. Não descobrira o grande Galileu maravilhas? Não calculara os quilômetros de altura das montanhas lunares com uma mais rudimentar do que a que encontrara? Não se diz ter sido ele, com esse mesmo primitivo instrumento, o primeiro 54 Jairo Martins de Souza a descobrir as assustadoras manchas que sujam a superfície solar? Não foi absurdamente perseguido por fazer tão grande e prodigiosa descoberta? Não são perfeitos nem a estrela que sustenta a vida na Terra, nem a luz da fé que por vezes campeia e obscurece a cabeça dos homens. O espírito de Duchamps se elevou. O jovem viúvo voltou a sorrir! Por tudo isso, retornara para Guéret. A família recebeu-o de braços abertos: não é que tivesse sido considerado como um filho pródigo, mas na prática foi assim. Todos, inclusive amigos e vizinhos, se alegraram. Os pais, já velhinhos, encheram-se de esperanças e pensaram para ele um novo direcionamento, um novo rumo a ser traçado junto a não esquecido desejo que, com a paixão pela esposa e filho mortos, não pudera ser cumprido. A dedicação integral do filho aos ofícios religiosos. Não foi possível, pois Duchamps nunca havia se considerado perfeito e nem flagelava o corpo quando sentia as tentações do demônio. Não se iludia quanto a isso. Mesmo que se lembrasse constantemente de Jesus e as circunstâncias terríveis a que fora solitariamente submetido no deserto. Temia ultrapassar limites. Sabia que seria tentado por algumas paroquianas que gostavam de testar a força das convicções dos homens que se dedicavam a Deus. Então não pôde atender às expectativas dos seus pais. Mas não ficou tão distante do que pretendiam. Na altura dos seus 27 anos, e passado breve período de readaptação, decidiu-se pela solução intermediária de dedicar-se ao magistério. Por meio de amigos e recomendações, obteve licença, junto a ministro do governo revolucionário, para trabalhar aplicando método que assinalava acordo a ser diariamente selado entre mestre e aluno. Pacto de responsabilidade e compromisso. É o que hoje se chamaria de escola experimental, Tisserand comparou, tentando com isso tornar seu relato mais claro. Nessas condições é que encontramos Duchamps ministrando aulas para o filho do fidalgo, o brilhante rapazinho Jean Antoine Monlevade. À parte disso, continuava prestando homenagens à mulher e ao filho, pois visitava-os semanalmente no local onde deveriam repousar para todo o sempre. A família não ficou totalmente frustrada com sua decisão, a felicidade pode ser obtida de várias fontes e que, nesse caso, mo- Jean Monlevade, do Castelo à Forja 55 rava muito próxima a eles. Um dos seus irmãos mais novos seguira carreira juntando-se precocemente aos quadros de Savona. Lá teria a honra de servir diretamente ao próprio santo padre! A vida voltava-lhe aos poucos, o sangue circulava normalmente em suas veias. Para futuro não muito distante, Duchamps poderia até mesmo voltar a casar e, finalmente, dar chance a si mesmo e perpetuar nome por meio de filho que viesse a não gorar como o do seu primeiro amor. Aprimorara definitivamente o caráter, deixando claro a toda a sociedade que era daqueles que não tinha a alma dividida entre a crença e a razão. A Deus o que é de Deus; a César o que é de César. Duchamps gostava de dizer essa desgastadíssima frase que, convenhamos, se bem aplicada, nunca cai em mesmice. Mas enquanto um futuro filho não lhe figurava senão em sonhos, satisfazia-se com ajuda aos seus prezados alunos. Em especial, agradava-lhe a presença do pequeno Monlevade nas suas turmas de ensino. O rapazinho, quando do seu gosto, escrevia pequenos textos satirizando o que via à sua volta tanto em Monlevade quanto em Guéret. Seu estilo, nestas ocasiões, lembrava o de Molière que, inusitadamente, graças às alfinetadas que dava nos costumes de sua época, também agradava ao mestre. Era uma das formas por que demonstrava imensa sede de saber sobre a cultura. Isso, definitivamente, não era usual aos de sua idade. As perguntas que o estudante Jean lhe fazia, Tisserand disse, faziam com que Duchamps ficasse incentivado a estudar mais e mais: e até mesmo enviar cartas solicitando esclarecimentos sobre um ou outro assunto a colegas que trabalhavam em Paris. Daí evoluía cada vez mais ciente dos novos conceitos da física da natureza que estavam sendo estudados de forma inovadora em todos os cantos do mundo. O professor aprendia por conta da intensa curiosidade do seu pequeno aluno! E assim cometeu acertos e erros. Inclusive declarando à sua classe, e ao jovem Monlevade, que Descartes acertara na mosca ao afirmar que a Terra tinha a forma de um pepino achatado na sua linha do Equador. Não perdeu por esperar. Na semana seguinte, o próprio garoto disse-lhe, reservadamente... Desculpeme, professor Duchamps, mas pesquisei, em livro que pertence ao fidalgo, meu pai, e concluí que a Terra é mesmo achatada... só que nos pólos. Não no equador, como o senhor disse-nos. Ne- 56 Jairo Martins de Souza nhum dos outros estudantes suscitara-lhe a primeira indagação, nem pesquisara para trazer-lhe informação posterior! Muitos, Tisserand complementou, julgavam que a Terra fosse quadrada (mesmo que os paus dos mastros das caravelas emergissem aos poucos na linha do horizonte, e não de uma só vez), tal como alegavam alguns antigos. Não na França. A cultura era bandeira admirável dos anos pós-revolução. E, particularmente, o interesse dos seus estudantes pela política era abissal. Por vários motivos. Um deles não muito estimulante: mais cedo ou mais tarde teriam forçosamente que empunhar mosquetes, e partir para Deus sabe onde! Os alunos das classes de Duchamps tinham de 8 a 16 anos. Boa parte deles constantemente encaminhada pelo orfanato da cidade que era dirigido por um bondoso homem... o senhor ouvirá bastante sobre ele no decorrer desta história, o estrangeiro advertiu-me. Uma das razões é o fato de ter sido grandessíssimo o número de pais sem recursos que levavam seus filhos para ficar zelados por aquele senhor. Ribérry. Seu nome era Ribérry. Após alguns dias de preparos preliminares, eram matriculados e passavam parte do dia na escola da cidade bancada pelo governo central. A escola do professor Duchamps. E foi nela, por algumas razões que já expliquei ao senhor, que o então menino Jean de Monlevade destacou-se aos olhos oficiais da comunidade. O petit-garçon, o rapazinho, tem inteligência primorosa e muita agudez de espírito, foi o que Duchamps disse certa ocasião ao fidalgo durante missa dominical. Ainda não tinha plena consciência de que o pai detinha essa imagem do filho. Tenho planos especiais para ele e desejo aconselhá-lo a seguir... A conversa fora reservada e acontecera enquanto caminhavam lado a lado no adro da igreja. Foi lá que Duchamps confessou que, mesmo não achando ser o pior dos males do mundo, achava no mínimo estranha a atitude do rapaz em suas tentativas de sentir os cheiros e as reações da natureza mineral. O fidalgo ouviu-o com ar de tranquilidade. Estou ciente do fato, professor Duchamps. O meu Jean é caso exceção entre os jovens de sua idade. Poderia ser filho de qualquer outro fidalgo, desculpou-se, mas é meu: tenho tido sorte com meus filhos... Jean Monlevade, do Castelo à Forja 57 Jean François Bogenet não pretendia fechar rapidamente assunto, Tisserand interveio, tanto ele quanto Duchamps sabiam que a conversa prometia ser longa. E parte dela foi o fato de Duchamps, em dado momento, ter dito que o menino acreditava mais na força da leitura do que na dos seus músculos. E relatou para o fidalgo exemplo sugestivo. Faz poucos dias, dois dos colegas mais velhos colocaram um pequeno sapo no pedaço de pão que ele trouxera como merenda. Mais tarde os maus elementos disseram-me tê-lo encontrado morto quando se encaminhavam para a escola. Viram o batráquio ser atropelado por roda de carro de bois. Então substituíram o recheio de queijo de cabra do sanduíche de Jean pelo corpo amassado do animalzinho. Aproveitaram instantes em que ele saiu por minutos da sala para fazer obrigação fisiológica no quintal da escola. Não foi difícil descobri-los. Uma pequena investigação feita pelo próprio Jean foi suficiente. Teve ajuda de um aluno novato: chama-se Martinho. Esse moço é mais um dos que nunca se ausentaria do grupo de Monlevade, Tisserand relatou: estou ansioso para apresentá-lo ao senhor. Não o faço de imediato porque devo continuar informando-lhe o teor do diálogo entre Duchamps e o fidalgo. Seu filho, caro Monlevade, atrai pessoas como a sedução das abelhas pelo mel. É muito prestativo. Colabora sem descanso com seus pares, ensinando-lhes como resolver exercícios escolares mais penosos. Mas não me disse nada a respeito da brincadeira de mau gosto que os perversos colegas lhe fizeram. O assunto do sanduíche de sapo chegou aos meus ouvidos unicamente por meio de terceiros. Aí fiz ouvidos de mercador: decidi me omitir quanto ao ocorrido. Por quê? O fidalgo indagou. Jean deu conta do recado por si mesmo. Contaram-me que reagiu com firmeza, usando a milenar sabedoria bíblica que conhece bem. Alguns julgaram ter agido com certa ingenuidade, mas foi assim que desqualificou exemplarmente os detratores. Reconheci, Duchamps prosseguiu, por comentários que circularam na escola, que citou os escritos de Tiago, cobiçais e nada tendes; logo matais. Invejais, e não podeis alcançar; logo combateis e fazeis guerras. 58 Jairo Martins de Souza A princípio funcionou parcialmente, pois um dos rapazes reagiu enfurecido, dizendo-se amaldiçoado. Sacou canivete velho e ameaçou espetar o pequeno Jean. Foi contido pelos demais da classe. Jean queixou-se dele com o soldado Cousteau. Cousteau? O novo chefe do destacamento, senhor fidalgo. Chegou à cidade no dia de ontem. Ainda não fui comunicado, meu filho é ainda uma criança. Mas autossuficiente. Repara bem, foi até a autoridade nem mesmo incomodando o pai. Cousteau deu-lhe alguns cascudos – estou dizendo do agressor denunciado por seu filho – e disse-lhe para não insistir em atitudes como aquela. De minha parte, na escola, acabei por passar-lhe, como dever extra, a feitura de cinquenta cópias do hino nacional. A Marselhesa. Dê-me o nome, Duchamps. De quem? Do agressor. É meu dever dizer-lhe, caro fidalgo, que lhe darei esta informação somente se tiver como resposta promessa de nada ser feito contra meu aluno. O jovem é esquentado, mas já teve punição bastante. Promessa feita! Materazzi. O nome é Materazzi: descende de italianos. A família veio de Sicília e é mais ou menos nova na região. No dia seguinte, Duchamps prosseguiu, aproveitei a passagem bíblica que Jean dissera e planejei aula ligando-a a alguns tópicos da ética e aos jardins de Epicuro. A filosofia de Epicuro. O silêncio da classe pareceu-me sinal de bom efeito, e interesse por alguns princípios de Cristo quando ensinados fora do claustro. Aí cometi infração. A polícia de Bonaparte pode pegar-me pelos pés. Ao final da entrevista o fidalgo retirou-se para o confessionário para dar conta oficial dos pecados da semana. Não eram muitos, e dentro de minutos, acompanhado pela mulher e os três filhos, encaminhou-se com a alma mais leve para Monlevade. O castelo Monlevade. Então o encontro do fidalgo com Duchamps terminou muito bem, Tisserand disse. Embora durante seu andamento não tenha ficado livre, além das que já lhe disse, de outra desconfortável inquietação. O motivo foi assunto que ainda não informei ao senhor, mon ami. Deixei-o para o final por julgá-lo o mais relevante. O fato é que Duchamps havia dito algo ao fidalgo que, se por um lado causou-lhe preocupação, por outro foi motivo de orgulho! Vamos ver do que se trata nas palavras do próprio, como também as impressões do fidalgo. Jean Monlevade, do Castelo à Forja 59 Seu filho anda escrevendo cartas a Paris, monsieur Monlevade. Cartas? Sim, cartas. O senhor conferiu a grafia? A do meu Jean é bem diferenciada. É a do seu filho e, a princípio, deve trazer-lhe satisfação misturada com tristeza leve. Qual o senhor quer ouvir primeiro? A notícia boa. Se bem entendi suas palavras, devo considerá-la razão mais forte que a triste. É como entendo ser, monsieur. Vou dizê-la. Jean é mais inteligente e atirado que eu pensava que fosse. Perdoe-me, Duchamps, isso não é novidade. Peço seguir direto para o que é de interesse, a tal notícia boa. Que é no mínimo extravagante, senhor fidalgo. No entanto peço aguardar um minuto mais, tenho mais a acrescentar além do que o senhor já sabe. O rapaz tem conhecimento incipiente sobre a matéria metalurgia. Disso realmente não sei. Faz perguntas inusitadas e escreve como se fosse um adulto que estudasse engenharia de minas. Por enquanto parabéns, monsieur. Agradeço em nome de toda a família! Mas e a ruim, qual é? Escreveu para um homem bastante extraordinário, monsieur ***, usando o seu nome, senhor fidalgo. Diz ser um estudioso da região de Guéret que tem como interesse a pesquisa de pedras, metais e suas propriedades intrínsecas. Na carta não foi fundo no assunto, mas sugeriu procedimento para diferenciação da essência de minerais. Simples, mas interessante. A chave seria aquecê-los para ver que cores a luz de queima de cada um assume sem ser influenciada pela cor do fogo do material que está fazendo com que se aqueçam. Não entendi bem, e nem mesmo percebi se o menino soube se explicar. Monsieur ***, que é o cavalheiro a quem ele escreveu, trabalha para o governo e dedica-se apaixonadamente ao tema. É cientista renomado, e está participando de estudos de aprimoramento do currículo da escola Polytéchnique, a Politécnica de Paris. Seu filho assegurou-lhe continuar refletindo sobre o que fazer, qual o rumo a tomar. O cientista retornou-lhe dizendo-se agradavelmente surpreendido com tão elegante missiva. Por ora é o que sei! Entretanto presumo, Duchamps prosseguiu, ser melhor antecipar pergunta que o senhor, como pai, deve estar ansioso para saber resposta. Vou dizer-lhe como descobri as tais cartas. Bem, Jean certo dia estava olhando absortamente para baixo de sua cadeira na escola. Fui verificar motivo de tal distração. 60 Jairo Martins de Souza Ele não é de se dispersar em classe. A razão foi a que acabei de contar-lhe. Relia uma daquelas missivas. Passei-lhe reprimenda e alguns deveres e cópias especiais, inclusive algumas a mais do hino nacional. Faço sempre desta forma. Ele disse que iria cumprir tudo à risca e pediu-me para não comunicar ao senhor fidalgo. Não quero levar preocupações e mais problemas para mon père, meu pai, bastam-lhe os que já tem. Quer seguir encaminhando correspondência conforme tem feito. Disse-lhe ser impossível e adiantei-lhe algumas lições sobre direito e crime. Esclareci-lhe estar praticando falsidade ideológica, matéria não inclusa no programa escolar. Interessou-se pelo tema e pareceu-me compreensivo, mas disse-me que pesquisaria melhor quando fosse adulto, e fosse por conta própria para Paris. Ah, entendo! Então não tocarei no assunto com ele, senhor Duchamps. Que fique o dito como não dito! Ora, ora, que petit garçon curieux, que menino curioso, agora quem diz é o fidalgo Monlevade para a esposa. Repare daqui da janela onde estou. Parece explicar algo para Maria Vitória. Jean muitas vezes carece de uma cobaia para ouvi-lo com atenção. Em Paris terá chance de ouvir e ser escutado. Por ora, Maria Vitória é adequada para tanto. É suave e delicada. Mas não explica a dialética que o contraditório é indispensável para que o homem cresça? Maria Vitória só ouve. Não se manifesta em termos práticos. Nem poderia, Tisserand comentou com sombras de tristeza. Naqueles anos a leitura destinada às mulheres era bastante restrita. Para elas, os permitidos, e apropriados, seriam livros como o Um Coração Singelo que Flaubert escreveria dentro de mais alguns anos. Não. Não Madame Bovary que, inclusive, custou-lhe execrável processo moral! O senhor, mon ami, me perdoe pela intempestividade da lembrança destas obras e do autor. Já volto imediatamente a dizer-lhe os termos do diálogo entre o fidalgo e sua mulher. Lembro que diziam sobre o comportamento diferenciado do menino Jean. E a amizade do menino com o chien noir, o cachorro preto, o Breu? Não achas que passa das medidas? Breu é seu companheiro de pesquisas, Felicité. Não vejo nada demais, é somente escudeiro buscador de pedras. Ultimamente acompanha Jean até mesmo à escola, e fica nas cercanias até que se encerrem as classes. Não há com que se preocupar. Cachorro é cachorro, ma chérie! Está bem, mas e o burro a quem chama de Géo? Dei-lhe de presente há dias, mulher. Pertencia a monsieur***, o dono do armazém. Jean Monlevade, do Castelo à Forja 61 Quando digo monsieur, com três asteriscos, Tisserand explicou, estou obedecendo fielmente às anotações do abade. Foi assim que escreveu. Talvez tenha omitido alguns nomes por esquecimento. E com isso esclarecido, Tisserand disse-me que devíamos voltar ao diálogo entre o fidalgo e a esposa Felicité. Quando os deixamos, falavam sobre o burro colocado à disposição do filho Jean. O burro, Felicité, gosta também de caminhar sobre pedras e fuçar rochas. Agora tem acompanhado a ele e ao Breu. Aliás, o nome Géo é forma reduzida do nome géologue. Um burro geólogo? Esse Jean... ah, marido, sinto-me mal em fazer troça com as coisas do meu filho... Não se incomode, Felicité. Não é só você que acha graça nisto. Até mesmo os amigos de Jean caçoam a respeito daquele burro. Dizem, acompanhando-o, ra, ra, ra, vejam o diploma na viseira. Ra, ra, ra, deve ter sido emitido pelo responsável real da l`école de Mines (escola de minas) de Paris. Na realidade, o fidalgo respondera descuidadamente à mulher. O que lhe interessava era voltar ao assunto Maria Vitória. Ela preocupava-lhe mais. Não. Não é que precisasse estudar. Mulheres não nasceram para isso. Era assim que funcionava naqueles anos, Tisserand disse (a impressão que tive é de que estava refletindo em voz alta sobre o que o fidalgo dizia), Maria Sklodowska, prosseguiu, a Marie Curie, foi exceção nascida naquele século. O senhor sabe, ela foi premiada duas vezes com o Nobel. Um de física e um de química... O fidalgo Jean-François Monlevade nem mesmo sonharia com tais circunstâncias. Bem, retornemos às suas preocupações. É. O estudo coloca-lhes besteiras na cabeça e as torna devassas. Algumas sonham até mesmo em tornar-se atrizes! Deus que nos livre de prostitutas nessa família! Espero fazer, para essa menina, um bom contrato de casamento. O primogênito, François não o colocava intranquilo. O rapazinho já sonhava ter seu destino na direção da capital. No entanto, é Jean quem deverá perpetuar o nome Monlevade. Seu brasão nunca iria ficar no esquecimento. Era o que o fidalgo sentia ao observar a conduta, as brincadeiras e tudo o mais que fazia o rapaz. As preocupações e as ansiedades quanto ao futuro da nobre família aos poucos se perderiam no tempo. 62 Jairo Martins de Souza A privilegiada percepção do mundo que tinha fazia com que captasse tudo que acontecia ao seu lado. Chamava-lhe especial atenção a chaminé da fundição da família Rochechouart. Não se cansava de observá-la com olhar interessado. Ficava durante horas tomando notas e apreciando a fumaça que subia de seus tijolos de barro. Rochechouart: para alguns, o contorno da casa e da fábrica eram sombrios e funestos, pois tinham as paredes escuras e cheias de fuligem. Algo fantasmagórico situado numa curva de estrada. Os trabalhadores que eventualmente se deslocavam dos seus domínios para um ou outro afazer pareciam monstros pintados de negro: fantasmas que saíam dos negrumes com a cor do fundo dos infernos! Não para Jean. Tanto é assim que os desenhava com alma leve de quem aprecia visões do paraíso. As imperfeições existem na busca da perfeição: o ferro deixado para trás pela fuligem é o futuro do mundo. Os anéis escuros subiam ao céu e invadiam espaços anteriormente limpos e o pequeno fidalgo divertia-se, comparando-as, as nuvens e a fumaça e, duvido que alguém nunca disso tenha feito, com carneiros, bois, forjas ou quaisquer outras figuras exóticas que possuíssem formas brancas, ou negras. Vultos que, naquelas cercanias cinzentas, mudavam de identidade como se fossem camaleões. Bem, é tempo de voltar a lembrar algo mais do fidalgo. Para tanto voltemos ao professor Duchamps e ao seu magistério em Guéret. Jean Monlevade, do Castelo à Forja 63 “Rochechouart: para alguns, o contorno da casa e da fábrica eram sombrios e funestos, pois tinham as paredes escuras e cheias de fuligem. Algo fantasmagórico situado numa curva de estrada. Os trabalhadores ....” 64 Jairo Martins de Souza Jean Monlevade, do Castelo à Forja 65 IX O fidalgo socorre e livra a família de Martinho das garras de Thurram. O bondoso abade Ribérry O nome do garoto era simplesmente Martinho. Na ocasião não se sabia exatamente quem eram seus pais nem de onde, finalmente, viera. Aparentava cerca de dez anos, mas na realidade nascera há apenas sete. Nos oitocentos a Igreja ainda não fazia os registros dos filhos dos seus fiéis que habitavam em rincões distantes. Os documentos civis somente viriam, e seriam obrigatórios, com o passar das décadas. A dureza da vida, Tiserrand continuou, teria feito curtos os anos do tal rapazinho. Não o fez por breve contingência que veio a lhe suceder: foi fato que significou muito. Passadas tantas décadas afirmo sem qualquer sombra de hesitação que foi o que deu sentido à sua vida... O estrangeiro havia abaixado abruptamente a altura de sua voz. Ela tornou-se sumida. Isso foi informação bastante para que eu imaginasse que ele estivesse buscando melhor imagem para relatar algum insólito episódio que eventualmente tivesse acontecido com o menino. Pus-me a esperar. Aguardava, ansiosamente, que desse continuidade ao assunto. Foi quando comentou que o vigário geral escrevera que expor a público alguns atos do fidalgo Monlevade proporcionavam-lhe especial prazer. O senhor sabe, prosseguiu, que a França em nenhum momento deixou de estar agitada nos finais e no início do século dezenove. E o mesmo havia se passado com seu amado parente. Já na casa dos cinquenta, os cabelos do tio Jean-François estavam totalmente brancos. Extraíra alguns dentes apodrecidos. Envelhecera. Mas não piorara do seu andar manco e nem deixara de lutar por seus ideais. Nunca lograria em se habituar ao que não considerava justo. 66 Jairo Martins de Souza É o caso, Tisserand acrescentou, da circunstância inusitada que o fez conhecer a família do sofrido garoto Martinho. Então contou que a família do rapazinho viajava procedente de vilarejo situado próximo à fronteira que a França fazia com o oeste alemão. Não tinha planos concretos, simplesmente fugia da fome e da pobreza. Foi em data próxima ao dia do Natal de 1801, e provavelmente a intenção final fosse chegar até as favelas medievais de Paris, onde buscariam moradia e trabalho. Meses antes o pai não se deixara convencer pelos argumentos que lhe diziam os vizinhos: é melhor, mon bon ami, passar miséria em terras conhecidas do que na solidão das ruas estreitas e vielas da capital. Não sabes que Paris já conta com mais de cem mil habitantes? Bem, Tisserand disse, mesmo que enunciada em anos recentes, a lei de certo senhor Murphy valia desde o tempo em que a família do menino viajava pelo gélido dezembro europeu. Não lhe tomo tempo precioso em dizer, por alto, a terrível circunstância em que os pobres andarilhos prosseguiam jornada. Às vezes, caro amigo, alguns ditados, ainda que caídos em desuso, podem nos servir. Ainda que aparentemente empobrecendo o texto, por exemplo, o que diz reclamarmos não ter meias enquanto a outros faltam os pés. Não é propriamente o caso daqueles infelizes. Não como os pés dessas pessoas que estamos tratando, assim tão pouco protegidos, afundados na neve, e anestesiados pelo frio de ventos cortantes. Continuassem assim por muito mais tempo, sujeitos a essas hipotermias, poderia ser necessário extirpá-los! Posso imaginar, mesmo sem ter vivido tal situação, o desespero do chefe da família, pai extremoso, ao ver os seus pequenos e a mulher em tal estado de penúria. Nada pode ser pior. Ah, aí é que entra a lei de Murphy na vida de Martinho. Pobres coitados, mal sabem que maior desgraça os espera. Por ora, pelo menos estavam todos juntos, e assim comprovavam mais uma vez o conhecido fato que a dona miséria adora estar acompanhada. Mais ainda quando estamos tratando de assunto que diz respeito a pai, mãe e irmãos: assunto de família. Nessa situação é que se alegraram os pobres corações à vista de luzes distantes de pequenas e pálidas iluminações a sebo. Essa gente desgraçada torna-se feliz por pouca coisa. A noite avançara Jean Monlevade, do Castelo à Forja 67 há cerca de quarto de hora e não fosse a fraca Lua que, com sua divina providência se encarregara de paralisar a queda de pequeninos flocos de neve, provavelmente pela manhã todos teriam sucumbido pelo frio intenso. As casas que haviam visto, por meio das tais anêmicas e bruxuleantes luzinhas amarelas, anunciavam presença, a poucas centenas de metros, de pequeno vilarejo. Uma dádiva, um céu para os pobres coitados. Ânimo. Ânimo, crianças, disse o pai, se Deus nos ajuda!... Ele vai nos ajudar! Um dos filhos respondeu com fé. Aqui encontraremos comida e algum pequeno espaço coberto para passarmos a noite. As pequenas almas, num último esforço, rapidamente avançaram no caminho indicado pelos pais e, em poucos minutos, já os aguardavam próximo às primeiras casas do local. O pai, que carregava nos braços grande quantidade de tralhas, procurava se movimentar o mais rápido que podia e, ao mesmo tempo, segurava com força a pequena bolsa de pano onde guardava alguns tostões que lhe restavam. Neles se resumia toda a fortuna monetária da família. O que tinham a mais era um maltratado burro que fora, até então, o principal ganha-pão da família. O mirrado dinheiro que estava na bolsinha era fruto do seu trabalho, pois, sempre que alguém aceitava proposta, era alugado para prestar biscates. O coitado, também fraco e esgotado, havia ficado momentaneamente para trás. Mas ao ver distanciar os patrões e as crianças, fincou fundo os cascos na neve fofa e, ufa, ufa, finalmente alcançoulhes. Daí em diante apertou menos a cadência e seguiu também esperançoso ao lado dos donos. Esses que repetiam, um para o outro, pode ser que aqui seja possível comprar algum pedaço de pão preto e copo de água quente, enfim, para dormir qualquer estábulo nos serve, não estando molhado o capim. Das frestas das janelas das casas alguns moradores indagavam: quem serão estes estranhos? O que fazem aqui a estas horas? Não tão longe, mas escondido pela escuridão de um beco, o endiabrado Thurram também os observava. Esse homem era ainda jovem de idade, mas veterano em malfeitos e iniquidades. Não é tempo de dizer o porquê de ser assim, tão gasto pelas andanças e pequenos delitos. Tinha seu nome como prioridade de busca nas fichas de todos os policiais e soldados da região. Nessa condição é que arquitetava bote a ser aplicado em qualquer opor- 68 Jairo Martins de Souza tunidade que, naquela noite fria, se lhe avizinhasse. O elemento, como diria o linguajar da caserna da atualidade, morava refugiado em colinas próximas e viera buscar algo para celebrar suas orgias de fim de ano. Bandido. Celerado. Malfeitor. Decerto que responderia “presente” se chamado de qualquer destes nomes. Na agenda do mal era manequim para muitos outros modelos. É por tudo isso que fugira recentemente das galés onde estivera preso por alguns meses e... creio já o leitor ter tido de sobra na mente seu perfil ignóbil. E, por enquanto, falta somente acrescentar que era da região e ajuntara bando antigo com poucos dias de procura. Era essa a principal razão de os moradores locais se encontrarem em constante estado de vigília. O antigo menino, que agora soubemos tratar-se de um celerado, esquecera qualquer sentimento cristão desde tempos de tenra infância. Foi tempo em que aniquilava pássaros e enforcava gatos por simples prazer de assistir às suas dores e sofrimentos. Estou dizendo de suas primeiras experiências no mundo do crime. E o resultado aí está naquele canto de rua esburacada e cheia de neve que, sabemos, há minutos cessou de cair. Viera à vila sozinho para não despertar suspeitas, e, por fim, pois não há mais o que esclarecer sobre a situação, foi-lhe fácil abocanhar as moedas da família que chegava. O pai havia colocado as cargas que carregava no chão e as contava cuidadosamente sob poste isolado de luz oscilante de óleo animal. Não é difícil entender o sentimento de fragilidade que se apossa de um ser humano após ser assaltado. Mas não é fácil explicá-lo por meio de palavras. Mais ainda em condição indefesa como aquela. O susto fora tão grande quanto o desespero de segundos depois. Pobre homem que, sentindo-se desesperançado, sem mais ter nada, sussurrava baixinho para que os outros não o ouvissem, ó Senhor, por que me abandonastes? A neve voltou a cair e Thurram retornou para a escuridão da noite para fazer rápida avaliação do auferido. A mulher e as filhas, abraçadas, iniciaram choro conjunto. Martinho, o pai e os outros irmãos resistiam ao desejo de também se exasperar. Não o fizeram. Tinham que dar exemplo. A vida havia lhes ensinado, e disso compreendiam bem, que o choro deve ser o último refúgio do homem. No outro extremo da rua, dentro de uma taverna, o fidalgo Monlevade iniciava ingestão de sopa de batatas e carne e, ao Jean Monlevade, do Castelo à Forja 69 mesmo tempo, elogiava o bom vinho da casa que lhe fora servido pelo proprietário. As panelas fumegavam, e o cheiro de comida nova aquecia não somente o ambiente como também as almas dos carroceiros, viajantes, soldados e outros frequentadores que, induzidos pelo clima festivo, passaram a conversar animadamente. Alguns poucos bebiam de pé, enquanto aguardavam vez, pois todos os tamboretes e bancos feitos com pranchas de madeira estavam ocupados por clientes. Enquanto isso o bandido, após certificar-se da mísera quantidade de dinheiro que roubara, voltava rapidamente para o local do crime. Não no sentido psicológico que dizem os detetives de filmes e livros policiais, mas porque, descontente com o resultado de sua investida, Thurram viera buscar algo que vira e lembrara ser também de seu interesse: o pequeno burro. A família atordoada mal percebera que a pequena corda amarrada no pescoço do seu animal era contida a custo pelo próprio que não queria separar-se dos donos. Tudo isso acontecia nos instantes em que o fidalgo Monlevade tomava rumo para certificar-se das condições de pernoite dos seus animais. A Lua escondida atrás de algumas nuvens dificultava-lhe a visão, mas independente disso caminhava satisfeito, em termos de estômago, com o repasto que fizera. A perna aleijada não incomodava, mas, aí que residia o problema, o espírito mantinha-se acabrunhado com coisas do dia a dia. Havia trocado ideias com alguns carroceiros e mascates... bem, já na parte de fora da taverna teve a atenção chamada pelo movimento atípico, e que de longe parecia confuso. Os ruídos provinham de local imediatamente após os estábulos que pretendia verificar e o fidalgo, em poucas frações de segundo, sentiu-se totalmente tomado pelo sagrado instinto de preservação que, em situações como esta e piores, domina a vida de todos os seres nascidos na terra. Alto lá!, arrête!, o que acontece aqui?, foi o que gritou perguntando, e já sacando a pistola. Não podia correr – havia precipitadamente alçado a bengala para cima – mas estava ciente de que algo errado acontecera ou estava por acontecer. Atirou para o alto. Thurram em fração de segundos desapareceu na escuridão da noite e dos caminhos que o conduziriam à fuga e à busca de novas pilhagens. O burro, instantaneamente deixado de lado, rebelara-se com o estampido e dera um violento coice para trás, passando a 70 Jairo Martins de Souza milímetros das costas do meliante que fugia do local. Segundos após, era consolado pelo patrão e pelas crianças, especialmente por Martinho, o seu preferido. Era tudo que lhes restava.... Feitas as apresentações, o fidalgo Monlevade que, como dissemos, tratava a todos como iguais, acolheu aos pobres-diabos. Pagou-lhes comida na taverna em que comera há pouco, e conseguiu peças de roupas limpas junto a dois mascates que conhecera no mesmo ambiente. Por ter sido cordial, gastou por tudo o troco de alguns poucos francos. Dos carroceiros, e de outros homens que lá ainda estavam, conseguiu casacos rotos, mas pesados, para os pais de Martinho, pois fora considerado um fidalgo de caráter e de ideias de respeito social. Anteriormente prometera cargas de retorno e serviços aos tais homens, caso estivessem de passagem pelas cercanias de Guéret. Por outro lado, para que todos dormissem em paz, o chefe da família dos desesperançados havia lhe dito: bastam-nos o calor dos animais e as paredes dos estábulos em que estava também a pequena tropa de Monlevade. Não foi assim. O fidalgo providenciou-lhes hospedagem digna em casa de família à paga de outra pequena quantia. Um dos filhos do casal jamais esqueceria o nome daquele nobre senhor que, além de tudo, doara-lhes alguns francos e uma breve carta de apresentação. Era o próprio Martinho. Mesmo assim adianto que, de certa forma, foi abandonado pelos pais em contingência absolutamente inusitada. É terrível para alguém de tão pouca idade. Ainda que se tenha em mente estivesse vivendo infância em anos, que o senhor já ouviu por repetidas vezes, serem chamados também terríveis. Geadas fortíssimas, guerras, mau governo, aumento de impostos para o povo, inundações... No entanto, o jovem desmentia alguns ditados pessimistas que rezam que a miséria gera a violência e a falta de fé. Por exemplo, o que diz que as razões do estômago são as que prevalecem. Nem sempre. Esse era o motivo do sorriso enigmático que Tisserand fizera surgir nos lábios há muitas linhas, talvez folhas, atrás. O garoto Martinho foi nascido e criado em tempos de aflição. E aprendera desde cedo a qualidade que identifica o valor de um verdadeiro economista: a de administrar a vida em período de escassez. E mais ainda – alguém me explique como isso acontece – o de fazer, em situação de penúria, que se tornassem mais cân- Jean Monlevade, do Castelo à Forja 71 didos os seus pensamentos. Nos dias de hoje seria dos que nunca careceriam de sessões de psicoterapia. Uma de suas desditas foi a de que os pais de sangue, poucos meses depois do evento em que foram roubados por Thurram, decidiram dar a ele o que supunham ser um futuro melhor. Conscientes de que nada trariam de bom para o filho, possuíam muitos outros para dar conta, decidiram basicamente entregá-lo ao destino. Não. Não é que tenha sido ele arbitrariamente escolhido para descarte. A tomada de decisão foi feita após muito choro e muita indecisão sobre o processo. Na realidade, fora em constrangedor sorteio. A mãe havia escrito as iniciais dos nomes dos meninos homens em pequenos pedaços de papel velho cuidadosamente dobrados em quadradinhos. Anteriormente haviam combinado que para as meninas não seria deixada qualquer possibilidade de entrega a terceiros. Foram excluídas da triste loteria. Em última instância, morreriam, fosse o caso, todos juntos, os pais e as três filhas. O destino da mais velha já estava, como de prática daqueles tempos, definitivamente traçado: cuidaria dos pais até o fim. Às duas menores seria facultada oportunidade de casamento. Poderiam pelo menos aprender a assinar nome e, com sorte, dominar a escrita e fazer contas. Mulheres com esses pequenos predicados eram mais procuradas. Mas o dote principal seria a lisura de vida e o caráter herdado dos pais. Quem se candidataria? Uma delas, Beatrice, era assaz bonita. Não fosse a indumentária, composta de trapos, e os cabelos desgrenhados, enfim, havia alguma esperança de paixão de algum aprendiz de ofício que gerasse dinheiro, e bom futuro para criar família. Foi com essas intenções paternas que o sorteio fora encaminhado e estava, conforme dizia-lhe faz pouco, em pleno andamento. Bem, Tisserand prosseguiu, tenho certeza que o senhor sabe que o tempo é entidade que não tem via de contramão e, como sempre avança, quebra toda a simetria de universo. Inclusive a ordem da vida de uma família que deveria ser construída de forma correta, linear. Filhos pequenos devem ser protegidos, não abandonados pelos pais! Com isso, continuou, devo voltar ao miserável mundo daqueles coitados. É uma das vantagens que a arte e a literatura nos proporcionam. Pois feitas as combinações familiares, algumas 72 Jairo Martins de Souza somente a título de confirmação de acordos passados, com as mãos trêmulas, o pai acabara de retirar um dos pequenos papéis. Entregou-lhe às vistas da mãe. O garoto Martinho estremeceu ao verificar que ela dirigiu-lhe os olhos molhados de lágrimas. Mas mostrou-se pronto para seguir sua sina. Hoje é você! Amanhã talvez sejamos nós: os irmãos miraramlhe silenciosamente. Alguns imediatamente começaram a soluçar, as três meninas choravam desconsoladamente. Somente o mais velho manteve-se firme. Foi bom que tenha sido assim. Martinho é garoto fraco, eu posso ajudar mais a família. No futuro poderei alcançar meus sonhos, trabalhar como cocheiro e conduzir carruagens e carroças pelo país afora. Ou se Deus, e meu corpo não tão franzino assim o permitirem, ser até mesmo mosqueteiro da infantaria de Bonaparte. Minutos mais tarde Martinho foi deixado próximo da entrada da cidade de Guéret. O pai, abraçando-o por derradeiro, indicoulhe de braço estendido a frente da casa onde supunha funcionar o orfanato da região. De certa forma estava tranquilo, o menino Jesus acompanharia o filho. Nunca havia estudado o latim, mas decorara desde criança a duras penas a ave-maria, o credo e o pai nosso. Ensinara a todos os filhos. Vai. Vai, filho. Leva o nosso burro. Cuida dele e segue para vida nova que te aguarda! Vai com Deus, meu filho. Não, pai, vocês é que devem ficar com ele. Nunca os esquecerei. Ainda volto a encontrá-los. Que Deus os acompanhe! Dentro de tímida embalagem de pano constava um pequeno pedaço de pão preto e uma velha blusinha de lã. O garoto já era bastante arranhado pela vida e fingiu estar firme e, passados alguns segundos, iniciou caminhada a princípio vagarosa, mas que logo transformou-se em desabalada carreira. Com os poucos pertences amarrados na ponta de pedaço de pau fino que trazia às costas, ele não mais voltou o rosto para trás. As lágrimas embaçavam-lhe os olhos, corria às cegas. Uma carroça que passava acelerada jogou-lhe neve misturada com barro e água na boca, nos olhos, enfim, em todo o rosto. Ele cuspiu a mistura. O condutor e a charrete pareciam ser os mesmos que haviam conduzido o fidalgo de volta para seu castelo faz anos. O mesmo havia acontecido com o restante da família que, ca- Jean Monlevade, do Castelo à Forja 73 minhando em sentido contrário, se distanciava cada vez mais. Pai e mãe seguiam calados. Não mais veriam o filho! Um dia haviam sonhado para ele a profissão de carpinteiro construtor de casas. Quem sabe dessa forma, deixando-o assim, à sua própria sorte, consiga ser mais feliz! Mas enquanto isso não chega ao seu desfecho derradeiro, Tisserand disse-me, peço-lhe licença, por instantes, para voltar ao caso do sapo no sanduíche de Jean. O caso Materazzi. Lembrase? Lá havia relatado que Jean tinha alguns aliados e que, inclusive, o pobre Martinho era um deles. E foi a partir daquele acontecimento que posso identificar para o senhor alguns desdobramentos. A casa que o pai indicara era realmente a do orfanato da região. E que, por meio de seu responsável, havia acolhido Martinho com o mesmo empenho e responsabilidade que recebia a todos os desventurados que batiam à sua porta. Já disse-lhe ser homem de grande benignidade no coração. Eram frequentes cenas como aquela da batida de porta de um menino franzino, sujo e mal vestido. Mesmo não o vendo, o abade assentado no paupérrimo banco de madeira anotaria mais uma cruz no seu caderno. Mais uma alma rogava por socorro. Não lhe faltaria amor cristão. O que era dividido por x, seria dividido por x + 1. Água quente é também o que não faltaria para acrescentar à já rala sopa de batatas, repolho, e pedaços de carne de caça, ou qualquer proteína que fosse colocada à disposição. Há tempo mantinham-se iguais os recursos enviados por Paris, e escasseavam as contribuições da população local. A despeito da pobreza das instalações, o dormitório era dividido por mais de cinquenta crianças. À noite os flatos que emitiam felizes, resultado do excessivo consumo de repolho, davam ideia de que lá dormiam quinhentos. O cobertor individual velho e maltrapilho não dava conta totalmente do frio. No entanto, desconsiderando-se todas essas adversidades, o ambiente era repleto de calor humano. As intrigas existiam, onde não existem, mas o abade Ribérry acreditava que a vida era composta de fases que, ao passar, vão fazendo acumular experiências. Como se fosse uma grande escada composta de milhares de pequenos degraus. Ao subi-los, encontram-se os céus bíblicos prometidos na palavra dos evangelistas. Cada indivíduo tem seus percalços, seus 74 Jairo Martins de Souza degraus, construídos de forma específica. A dele era a de integrar crianças à fé cristã. O que faltava materialmente às espartanas instalações do edifício do seu orfanato, glória ao Senhor, podia ser grosseiramente compensado com as sobras de amor, fé e orações. Alimentar as almas às vezes logra vencer a fome espúria do corpo. Sim, o homem precisa de pouco pão e pouco vinho para viver. Ribérry acreditava também no conhecimento e na ciência para incentivar o aumento de fé do homem em Deus e na sua criação. O estudo, pregava, ajuda a criatura a conhecer a natureza física do criador. Em particular apreciava a astronomia cada vez mais próxima graças à chegada da notável, e não tão velha assim, fabricação do telescópio. Caros aprendizes (era assim que se dirigia aos seus órfãos), as maravilhas e os segredos da natureza espelham grandiosamente, mas não de forma suficiente, os mistérios e a imagem apagada do criador! Para tanto encaminhava seus acolhidos para a escola de Guéret. Tinha fé na instituição conduzida por Duchamps, com quem mantinha sinceros laços de amizade. É nessa condição que lá vamos encontrar o menino Martinho: já eram passados três meses de sua chegada. Antecipo que foram os anos mais felizes de sua vida. As aulas de carpintaria que lhe eram dadas por velho profissional que colaborava com as obras sociais de Ribérry teriam feito seus pais extremamente felizes. Era a profissão que sonhavam para ele. Aprendeu a arte e o manejo dos instrumentos com facilidade. Mas não foi daquela forma que veio a ganhar a vida. Encurtando o assunto, Tisserand prosseguiu, Martinho tornou-se companhia constante do filho do fidalgo. E foi em fim de tarde em que o horizonte tomava aspecto tenebroso (salpicado de vermelho escuro como o sudário de Jesus), que Jean disse-lhe. Não entendo exatamente a expressão daquele homem com casaco marrom, Martinho, parece-me não tirar os olhos de minha sacola de livros. Não é ela como um todo, Jean. Veja, julgo que a razão de tanto olhá-la é a edição que tens exposta das Lettres Philosophiques (Cartas Filosóficas) de Voltaire. Pode ser por isso, Martinho. Voltaire foi um dos que deu as primeiras estocadas nas excrescências da vida monárquica. A capa do meu livro é quase um insulto para partidários do L`Ancien Jean Monlevade, do Castelo à Forja 75 Régime que desconhecem a podridão em que vivia a nobreza de Versailles. Deve ser um deles. Ainda sobrevivem muitos desses inconformados no seio do próprio povo. Pois é, Tisserand prosseguiu, o suposto monarquista era o pai de Materazzi. O acontecido se passou logo nos primeiros dias de aulas e Jean havia desenvolvido amizade imediata com Martinho. O menino o havia procurado, mas não dissera que a princípio fora atraído pelo sobrenome Monlevade do colega. Não se esquecera do fidalgo que o ajudara e à sua família meses atrás. O fato é que, a julgar pelo olhar fulminante de Materazzi, pouco faltou para que Jean fosse agredido. Primeiro fora o filho. Agora o pai. Mas não foi somente por causa do tal livro, sobre o qual o leitor já foi dado a conhecer. Não. Havia algo mais. O homem era antigo empregado nas propriedades do fidalgo. Não era dos dedicados ao trabalho e, com a pequena produção agrícola daqueles anos, e o baixo rendimento da gleba de terra que lhe havia sido destinada, vivia enfurecido com a situação. Certo dia perdeu as estribeiras e ao ser gentilmente perguntado sobre o que pretendia fazer para melhorar a produtividade de seus encargos, enfureceu-se e, desabotoando a camisa, desafiara o fidalgo, ofendendo-lhe todas as gerações. O pai de Jean, entendendo a situação, a princípio retrucoulhe com elegância, explicando-lhe genericamente a situação deplorável em que se encontrava o país. Pouco depois, dada a insolência do empregado, colocou-o, com palavras enérgicas, em situação desconfortável perante os demais camponeses. Aí, um dos pares de Materazzi, homem ainda jovem, cismou de ficar nervoso. Defendeu o fidalgo, seu senhorio. Dizia-se que esse antigo servo tinha os parafusos um tanto quanto soltos, mas, aos trancos e barrancos, dava conta de suas obrigações, inclusive de sua roça, mulher e filhos. E, naquele pequeno conflito em que tomava partido do seu senhor, disse a Materazzi em francês atravessado e recheado de palavras de baixo calão, merde, que não somente no seu país como também em qualquer parte do mundo não se pode suportar tal ofensa a fidalgo de respeito como Monlevade. Sabemos ser ele coxo e, sendo assim, impedido de lutar duelos e defender sua honra perante imbecis como Materazzi. Antes de concluir, prometeu emboscá-lo em noite fechada. E referindo- 76 Jairo Martins de Souza se aos espíritos malignos expulsos de porcos por Jesus, acrescentou que até mesmo os suínos da região, se informados, protestariam diante do ridículo que o fidalgo ficara exposto. Esbravejava alto, quando de repente sacou de canivete de lâmina fina e curta, mas afiada. Por pouco não chegava a ser um punhal. A sorte é que, como num passe de mágica, abruptamente ajoelhou-se, colocou-se de costas e começou a rezar. Segundos antes, dissera um oh e, estranhamente, acalmara-se: pareceu-lhe ter visto um risco de luz gigantesco que cortara violentamente o céu acima de sua cabeça. A seguir um estrondo avassalador, que se repetiu em intervalos regulares tal como se fosse emitido por baterias de grandessíssimos canhões. Tudo foi muito rápido. O raio e trovão que anunciaram tempestade próxima não voltaram a acontecer. O homem interpretou os sinais como aviso de que seu tempo chegara. Instantaneamente fez de novo o sinal da cruz. É daí que foi dada chance a Materazzi para escapar. Dias depois o defensor do fidalgo passou a usar camisas somente de cor negra, e dispôsse a viver de biscates como pedreiro, carregador, transportador de caixas de fezes, enfim, prestador de serviços menos nobres para terceiros. Anos mais tarde andava circulando pelas ruas de Guéret com um pedaço de pau nas costas, tornando-se um dos mentecaptos mais famosos da região. Era querido pela população do vilarejo. O povo gostava e fazia troça de suas traquinagens e estripulias. Antes disso tinha sido mandado para tratamento no hospital do conhecido Dr. Esquirol, em Paris. O doutor Esquirol escrevera um consistente tratado sobre o mal que acometia o rapaz. Lá foi submetido a banhos de água fria e sangrias. Não funcionou. E não era tempo ainda dos antigos e decadentes tratamentos à base de choques elétricos, Tisserand explicou. Com isto não teve alta médica, mas foi levado de volta para Guéret pelo próprio fidalgo. Dilsé era o seu nome. Bom, mas os desafetos do violento Materazzi, o pai, não eram em pequena quantidade. Havia muitos outros além de Dilsé. O homem que tentara ofender o fidalgo tornara-se o Judas do vilarejo. Com o agravante de que todo dia, para ele, era Sábado de Aleluia. Alguns o ridicularizavam, entre outras coisas, por ter piolhos amestrados na cabeça, por nunca lavar suas cuecas e por Jean Monlevade, do Castelo à Forja 77 eterno furúnculo nas nádegas que não o deixava em paz. Diziam também nunca ter tomado banho a conselho e exemplo do próprio pai, já velho e abandonado. Não fica a saúde do tronco de uma árvore por conta da não retirada de sua casca? De todas as formas, a polícia local mantinha sobre ele vigilância moderada. Aí em sentido contrário é que atua o homem puro de Deus, eles existem! Pois o abade Ribérry, imune aos medos e terrores que almas abandonadas como a de Materazzi impõem a terceiros, acolhera-o em pequeno casebre situado no quintal do orfanato. Condoera-se da família. Lá o instalara com a função de manutenção de trato das áreas externas da instituição e outros pequenos serviços. Antes do episódio que terminamos de descrever, o abade havia anotado que Materazzi estivera observando – sua atitude era, notoriamente, suspeita – o filho de Monlevade. Felizmente não ocasionou nada de grave. Para tanto a razão foi simples e partiu de atitude de Martinho que mantinha hábito, ao lado dos policiais da cidade, de manter olhos bem abertos sobre o elemento. Ele fora prevenido e havia solicitado entrevista com o abade Ribérry. Foi quando, mesmo que cheirasse como se ainda usasse cueiros, o garoto calmamente expôs a situação que poderia tornar-se perigosa para o amigo filho do fidalgo Monlevade. Foi o suficiente para que Ribérry chamasse Materazzi até a sacristia e, usando todo o seu poder de persuasão, dissuadiu-o de qualquer intenção pecaminosa. O irritadiço homem a princípio recusou-se a aceitar conselhos, mas por final pediu perdão e disse que procuraria esquecer qualquer pretensão quanto a vingar-se do fidalgo. Julgava-o culpado de sua sorte, mas queria sobretudo manter o emprego, a casa e a garantia de comida para os seus. Perceba-se, Tisserand disse com voz mais suave, que Martinho tentava, de todas as formas, manter pagamento do débito que julgava ter com os Monlevade. Mal sabia ter sido sua primeira ação como colaborador do filho do homem que, um dia, dera-lhe as mãos. 78 Jairo Martins de Souza Jean Monlevade, do Castelo à Forja 79 X O armazém e as histórias do capitão Platini No futuro Jean se lembraria que, na realidade, todas as grandes mudanças de sua vida se iniciaram em cima de um saco de batatas. Na maior parte dessas ocasiões, estava acompanhado por Martinho que, normalmente, tomava proveito e ganhava alguns sous ao fazer pequenos biscates para o comerciante proprietário do estabelecimento. Era lá, naquele saco de juta, que costumeiramente o filho do fidalgo se assentava enquanto ouvia as histórias de monsieur Platini e de seu empregado Fontaine. Foi a partir de momentos como esses que tornaram-se grandes amigos. O menino Monlevade gostava de estudar os livros da família, mas também era apaixonado por coisas e pessoas que haviam viajado pelo mundo afora. Aprendizado pela prática de terceiros. Fosse ele nascido nos dias de hoje, Tisserand comentou, exploraria seletivamente bibliotecas virtuais: não perderia tempo precioso com o lamaçal de imundices que passeiam pela rede. A internet ser-lhe-ia indispensável: tal como foram, após sua infância, as histórias e a experiência de Platini. Também tenho certeza de que pediria ao fidalgo, seu pai, condições para explorar o mundo em toda a sua diversidade. Viajaria muito em suas férias escolares. E, na adolescência, faria tudo para merecer o privilégio de um intercâmbio com famílias de outros países. Não se limitaria ao pequeno quadrado da telinha de computadores e aparelhos de tevê. Com razão. Não se tem a verdadeira dimensão do mundo e das pessoas ainda que vistas nas belas imagens do Discovery channel. É preciso esclarecer, Tisserand disse, que nem Platini, muito menos Fontaine, paralisavam atividades de rotina para contar casos e histórias para o garoto. O armazém era movimentado e não dispunham de tempo para tanto. Trabalhavam conversando. Just 80 Jairo Martins de Souza Fontaine, esse era o nome completo do ajudante, fazia entregas domiciliares e zelava pela limpeza e integridade do estoque. Também se incumbia de viagens a Paris em busca de mercadorias para o patrão. Era muito popular nas redondezas pela habilidade com que atuava nos jogos de péla locais: o artilheiro das redondezas! Conheciam-se, ele e Platini, havia anos, pois ambos haviam seguido ofício de camponeses no Vale do Loire. A crise chegou. Tornaram-se marinheiros a serviço do governo pouco antes dos eventos que conduziram à Tomada da Bastilha, em 1789. Isso não durou mais que doze meses, mas anteriormente também haviam participado de navegação comercial e viajado por alguns mares do mundo. Começaram pelo Mediterrâneo, andaram pelo Tirreno, o Adriático, o Jônico, o de Andaman, até chegar, singrando as águas do Atlântico, ao antigo caminho de Calicute. Foi quando, a meio caminho, depararam-se com o Brasil. O que não fora totalmente por acaso: há séculos havia acontecido o mesmo com o português Pedro Álvares Cabral. Este fato seria explicado posteriormente pelos dois marinheiros, e em situação especial, tanto a Jean quanto a Martinho. Quando se desligaram da vida da caserna, e de suas guerras, fizeram-no por razões distintas. Afortunadamente – o senhor entenderá o que lhe digo em instantes – as Moiras de suas vidas fizeram cruzar novamente seus caminhos. Ajuntaram-se novamente na vida civil. Explico-lhe como isto aconteceu. Cada um recebera a parte que lhe cabia como indenização por serviços prestados à nação. É com esse numerário que, pressupunha-se, deveriam ir adiante constituindo família, e por aí as coisas deveriam ir seguindo. O tenente Platini, por privilégios da patente e medalhas de bravura, recebera quantia considerável. O governo lhe oferecera propriedades, ele declinou. Fontaine fora premiado em sua maior parte pelos valores simbólicos das condecorações por valentia. Mas tanto ele quanto Platini, cada um em seu patamar e, em parte fazendo jus à fama da classe dos homens do mar, gastaram muito do que ganharam. A bem da verdade, quase tudo. Durante alguns meses fizeram a alegria de mulheres da noite nos bordéis dos bairros pervertidos de Paris. Mulheres e diversões. Diversões e mulheres. Caíram praticamente em bancarrota. Acabando-se o dinheiro, voltou-lhes a consciência. Jean Monlevade, do Castelo à Forja 81 Foi ato de Deus. Certa madrugada, coincidentemente, foram expulsos ao mesmo tempo de uma taverna por dizerem insultos ao proprietário, e por mau comportamento diante dos presentes. Daí é que, passada a bebedeira, viram-se sendo acordados, juntos, por meio de cachorro vira-latas que lhes lambia o rosto próximo à porta dos fundos de outro mal afamado bordel. Reencontraramse. Fontaine queixou-se respeitosamente ao oficial, dizendo que tinha ido a zero. Conversaram como nos velhos tempos de marinha. No findar da tarde, já recuperados e após banho de água quente tomado em estalagem barata, trocaram mais ideias observando os barcos que transitavam vagarosamente pelas águas volumosas do Sena. Platini estivera refletindo ao longo de todo o dia e, intempestivamente, dissera a Fontaine que decidira abrir fundo de comércio com o pouco que lhe restara. Convidou o antigo companheiro para participar de sua empreitada. Talvez isso nos faça recuperar, e seja nossa tábua de salvação, reforçou. Aceito o convite, decidiram que iriam para o interior do país. Começaram percorrendo algumas feiras e propriedades como mascates. Platini era homem sagaz e logo começou a se dar bem. Fontaine ajudava-o não somente com o serviço bruto de carregar baús de mercadorias, como também na comercialização de artigos mais rudes. Eram flexíveis e bons de negócio. Algumas vezes praticavam escambo e anotavam as entradas e saídas e débitos de clientes habituais em caderneta protegida com capa reforçada com couro de boi. Nenhum deles tinha hora para deitar ou acordar, mas isso para eles, como vimos, tratava-se praticamente de diversão. Duras mesmo, diziam entre si, eram as horas passadas lutando contra os ventos e borrascas tropicais. Platini comprara um burro; daí a pouco possuía duas parelhas que conduziam pesadas carroças cheiras de quinquilharias. Não foi preciso longo tempo de amadurecimento na profissão de ambulante para que percebesse que poderia contar com a certeza de um ponto fixo. Escolheu local na praça de armas do pequeno vilarejo de Guéret que crescia a olhos vistos. Produzia pouco vinho, mas de qualidade. E a tapeçaria, arte em que a região tinha sucesso milenar, ainda não fora totalmente atingida pelos infortúnios da Europa. A negociação com o proprietário do imóvel, um burguês que se mudara recentemente para Paris, foi árdua. Pedira garantias 82 Jairo Martins de Souza que estavam fora do alcance de Platini. Aí o fidalgo Monlevade surgiu em boa hora na vida do antigo militar. Na realidade, o pai de Jean conhecia Platini por meio de constantes passagens do mascate pelas redondezas e no seu próprio castelo. Intercedera junto ao proprietário do imóvel, um seu velho conhecido, e o negócio pôde ser concretizado com sua fiança. Próximo dele via-se antiga farmácia de monsieur Paracelsus, a taverna do sempre exaltado senhor Montalban, a padaria de Boulanger, a casa de ferragens de monsieur Ferrand, a cervejaria e casa de monsieur Duval (onde rapidamente se reparavam ferraduras), e algumas pequenas estalagens. A parte majestosa daquela praça era o prédio do fórum e o da direção do município e, por fim, a igreja e o seu campanário. O povo de Guéret orgulhava-se dessas edificações de belíssima arquitetura onde o estilo clássico e os inovadores apresentavamse em harmoniosa miscigenação. No extremo de um dos seus cantos estendia-se uma viela estreita que conduzia a algumas casas pintadas de vermelho, exatamente no ponto contrário àquele em que se localizava a igreja matriz. O diabo, em todas as partes do mundo, tem sempre que ser colocado em local diametralmente oposto onde se localiza a casa de Deus na Terra. Certa ocasião, Jean se aproximara daquele bloco de casas que algumas beatas diziam amaldiçoadas. Chamavam-no morada do demônio. Ao lembrar-se disso, e ao ouvir de longe o eco de xingos, maldições e palavras de baixo calão que de lá procediam, o rapaz afastara-se imediatamente. Ainda deu tempo para perceber que, na ocasião, o tema do falatório era dinheiro e obrigação não cumprida. De fato sentira medo, mas confessou algumas horas depois que, mais crescido, teria coragem suficiente para ver de perto o que significava o pecado que diziam lá grassar. Chamaria Martinho para que fossem juntos. Na confissão do domingo seguinte, o capelão admoestou-o e, de imediato, recomendou-lhe a reza de vários terços e, por final, disse-lhe para que, quando passasse por aquelas proximidades, fizesse o sinal da cruz e gritasse alto, vade retro, satanás! Jean se deu por satisfeito. Ficara sabendo, por meio do próprio Platini que, no distante Peru, dominado pelos espanhóis, os padres batiam com varas nas crianças que cometiam pecados Jean Monlevade, do Castelo à Forja 83 dessa natureza. Castigo público. Feito ao vivo nas praças das cidades. A punição valia quer o ato impuro fosse feito efetivamente na prática ou somente na intenção. Então, para os prostíbulos que não visitara, o criativo Jean imaginou que seria interessante colocar em suas janelas pinturas de uma caveira com duas tíbias cruzadas. Sinal de navio pirata que aprendera a desenhar ao ver, de longe, os cadernos do endiabrado colega Materazzi. Bem, mas é no próspero armazém de Platini que, conforme dissemos, vamos encontrar o rapaz frequentemente assentado ouvindo e anotando suas histórias. Como de praxe, acompanhava-o Martinho. Nessa situação é que esse último demonstrara uma aptidão até então desconhecida tanto para ele quanto para os que cercavam. Desenhava com facilidade extrema as cenas do cotidiano. Portanto, à medida que ouvia os acontecidos, rascunhava figuras, mares, sereias, aventuras e ondas bravias que cercavam as tripulações. Não. Não é que fossem prenúncios de autênticas obras de arte. O que saltava aos olhos era a simplicidade e os efeitos de claro-escuro que naturalmente emanavam das mãos do garoto. Jean ficara feliz com a descoberta. Um talento convivia ao seu lado. É lógico, o filho do fidalgo Monlevade tinha muitos que excediam de longe ao do companheiro. Não neste caso da arte do desenho e muito menos do da música. E o pai sinceramente acreditava que seu Jean nunca seria um Mozart que, em 752, com apenas 6 anos, já tinha feito sua primeira turnê pela Europa. Mas decidira introduzi-lo precocemente nas primeiras letras da música. O ouvido apurado fizera a alegria dos pais, mas não foi suficiente para torná-lo um artista. Assim desenvolveu somente o bastante para tocar em família. Não mais que isso. Bem, Tisserand prosseguiu, já disse muito sobre as excelências e a aplicação do menino Jean. E não é que eu esteja excedendo nas circunstâncias. Por assim dizer, colocando achas de lenha em miniatura de lareira! Não no seu caso. É por isso que lembro mais uma. O contato com monsieur Platini fez com que o rapaz Monlevade criasse também intenso interesse pela arte da navegação, e os segredos dos mares e sítios distantes. No comércio do antigo oficial, a hierarquia fora mantida. Fontaine sempre fora subalterno e nunca se mostrara insatisfeito com a situação. Em sua família a pobreza jamais fora contestada e recusada por meio de atos de indignação. Somente por puro 84 Jairo Martins de Souza sentimento psicológico de manada de bois é que andara dando alguns poucos gritos a favor da Revolução. Juntara-se acidentalmente à turba, mas não se comportara simplesmente como um destruidor de patrimônio alheio ou do estado. Diante de tudo isso, Platini era o patrão de quem gostava e tinha prazer em servir. O mercador, insisto, fora capitão de fragata, e Fontaine, um dos seus ajudantes. Homem grato a Platini. Seu antigo superior ensinara-lhe como trabalhar com as velas e dominar o timão para fazer frente, e usar a própria força dos ventos que teimosamente se opunham à sua missão. O segredo é usar bem as intensidades, as direções e o sentido para onde sopram os ventos. Resumindo, uso o vigor do próprio adversário para derrotá-lo, dissera-lhe satisfeito Platini no decorrer de uma de suas lições. Como se faz na milenar ciência do Judô. Ensinara-lhe também a lidar com números e a assinar o nome. Ensinara-lhe praticamente tudo que sabia. Podia até mesmo dar troco e fazer o caixa e a contabilidade dos negócios do patrão. Tinham confiança mútua. Um modelo de companheirismo para Jean e Martinho. Sim. Ambos tinham família. Tinham um ao outro. E a música. Platini era gaiteiro. Tocava o instrumento como quem abraça a amada. E bastava um copo de vinho para que Fontaine buscasse o acordeon. Filhos, se os tiveram, haviam sido perdidos em suas viagens. Já as mulheres, essas não poderiam esperar por tempo indeterminado enquanto os dois homens vagavam por portos longínquos do mundo conhecido. De agora em diante tudo isso poderia mudar. Há moças interessantes e de boa família que poderiam redundar em casamento próspero para dois veteranos que ainda não haviam alcançado a casa dos trinta. Vamos ver o que nos reserva o futuro! Foi quando aconteceu algo que motivou as primeiras linhas desse capítulo. Com alguma imprecisão, tudo começou quando, certo dia, o dedicado professor Duchamps encontrou-se fortemente adoentado. O boticário Paracelsus havia verificado sua garganta e constatado que estava vermelha e cheia de ameaçador pus branco. Pus. Pus era nome proibido. Deveria ser dito em voz baixa. Então foi assim que lhe receitou frasco com líquido escuro que lembrava leite queimado no açúcar, e disse-lhe que até o momento não era nada grave. Mas que Duchamps deveria suspender aulas até segunda ordem. Normalmente, Duchamps Jean Monlevade, do Castelo à Forja 85 recorreria a alguns alunos mais velhos, e adiantados, para que ajudassem aos que não estivessem em dia com seus estudos. Jean Monlevade, embora fosse dos mais jovens, também se via frequentemente convocado para a função. Nada disso foi possível, Tisserand comentou, e os motivos não são dignos de nota. O que interessa dizer é que o imprevisto proporcionou a Jean e Martinho passagem de toda uma tarde escutando peripécias de viagens feitas por Platini e Fontaine. O Breu, com cara de sono, lá estava deitado fitando placidamente o dono. O céu escuro e a chuva fria que batia forte no telhado de todas as casas do vilarejo e redondezas haviam espantado os fregueses da casa. Então os dois velhos amigos de tantas andanças tinham se dado direito ao tempo livre colocado a dispor. Isso raramente acontecia. Sempre arranjavam ocupação extra. O vinho, que tomavam usualmente na taverna de Montalban, ficava sempre para quando não sobrasse nenhuma fração de trabalho a ser feita. Lá era o local onde realmente relaxavam, relembrando aventuras passadas às vezes não muito recomendáveis para se relatar em casa de família. Depois a gaita e o acordeon faziam a alegria do ambiente. Cantavam e dançavam. Mas confesso que, dadas as condições atípicas daquele dia, e mesmo que nas instalações do próprio negócio, os dois homens viram-se tocados diante dos ouvidos curiosos e interessados das duas crianças. Então, entre outras coisas, contaram-lhes que haviam visitado novamente o Brésil. Haviam estado por lá acidentalmente e com rapidez, conforme já havia-lhes dito. Gostaram e pretenderam voltar. Ficava nos trópicos, parte do globo pouco visitada pelos europeus dos anos oitocentos. Platini, em especial, tinha seus segredos. Em dado momento, retomando suas raízes marítimas, fora até baú que guardava com extremo carinho no sótão do estabelecimento. Lá também ficava a cama e o parco mobiliário de que dispunha. Fontaine, por sua vez, dormia em catre colocado atrás de uma das prateleiras da área de vendas. Ao voltar, Platini trouxera, em mãos, cópia da extensa e detalhadíssima carta que o escrivão da esquadra portuguesa – o que primeiro chegara ao Brésil – escrevera para o imperador português na ocasião do descobrimento. O texto é legítimo e integral, disse. Havia sido traduzida para o francês por capitão 86 Jairo Martins de Souza lusitano que tinha família de origens francesas. Na realidade, um poliglota egresso de Coimbra e que, chamado à luta, estivera até mesmo navegando e aportara nos mares da China. Foi dele que Platini obtivera o documento, resgatado como butim de combate. Jean e Martinho, escutem o que está escrito nesse documento como se fossem minhas palavras! Descreve melhor do que nós mesmos o que andamos encontrando pelo Brasil. Não é mais segredo de Estado. Já foi! Nele também consta anexo que diz que o império português permitiu que fosse aberto ao mundo há pouco tempo. Em 1773. Prestem bastante atenção, vou lê-la para vocês. Mais que isso, vou comentá-la, foi o que por final disse antes de passar a cumprir o prometido. Daí lembrou-se que não havia tido o cuidado de mencionar a importância do real endereçado: o próprio Dom Manuel, o Venturoso. Mas logo a seguir riu, concordando com o missivista que, de início, e humildemente, declarouse incompetente para comentar os detalhes técnicos da viagem. Nem poderia. O senhor Pero Vaz de Caminha – esse era o seu nome – não era especialista em assuntos de mar. Platini manifestou-se bem impressionado com a sinceridade do português. O mais importante desse documento, prosseguiu, é a confirmação posterior de todos os fatos que relatou. Pois faz mais de trezentos anos que foi escrito: é datado de 1500! E já diz da possibilidade de existência de muitos metais preciosos, e que sua natureza verdejante esconde debaixo de suas árvores uma gigantesca província mineral. Muitos rios e águas, muitas florestas, muitos animais, muitos peixes... O vermelho do pau-brasil é exuberante, a inocência dos índios é de se espantar, a chance de salvação daquelas almas é... Jean absorvia cada palavra que Platini dizia. Martinho parecia ligeiramente enfadado com a leitura e explicações. Assim a tarde passava rapidamente para um, enquanto para o outro parecia não ter fim. Ao longo de seu relato, o marinheiro disse ter ido ao porto de São Sebastião do Rio de Janeiro e enalteceu sua vida e sua beleza natural. A pobreza lá é grande, mas tudo é compensado pela vista das montanhas e da belíssima baía. É espontaneamente protegida. Um doce refúgio para navios e tripulação cansados de sofrer os atropelos e as tormentas de alto mar. Enquanto isso o Breu já dormia a sono solto. Jean Monlevade, do Castelo à Forja 87 O contorno de algumas formalidades legais impostas pelo império português – não se permitia negociação direta com os negociantes da sede da colônia lusitana – forçou a nau em que trabalhavam a ficar parada por tempo indeterminado no porto brasileiro. Isso foi agravado pela falta de carga e falha em cálculo de tempo de chegada de frete já contratado e a ser embarcado: mais ainda por inusitado e extenso período de calmarias. A falta de ventos sempre foi o maior pesadelo dos navegantes. Platini sonhava em poder comandar navio a vapor que um oficial conhecido, de passagem pelo Rio, havia comentado estar em estágio avançado de projeto para, finalmente, singrar oficialmente pelos oceanos e mares. Mas todos aqueles atrasos de naturezas técnicas e comerciais é que lhe propiciaram investir durante três semanas terra adentro. Ele avançara pelo interior de um estado chamado Minas Geraes. Esmeraldas. Muito ouro. Muitos minerais. O rapaz Monlevade viajava com o amigo, à medida que ouvia suas histórias. Mas nesse dia isso não foi tudo. Platini voltara ao sótão e trouxera outro bem guardado documento. Uma grande tira de papel. Esse aqui não trouxe como prêmio de combate. Antes de viajar para as terras do Brésil, estive nas docas do Tâmisa e ganhei essas informações de um celerado inglês que se encontrava refugiado de condenação que lhe fora imposta pela justiça do seu país. Essas chamaramme mais ainda a atenção e o interesse em visitar os trópicos... Jean e Martinho não tiravam os olhos do marinheiro quando esse lia que o Brésil é grande país marítimo da América do Sul, etc. A leitura foi longa, é por isso que a resumi e vou continuar resumindo-a, agora é o próprio estrangeiro Tisserand quem diz, ao mesmo tempo em que lentamente observava as condições do horizonte que anunciava timidamente algumas nuvens negras. Parecia querer acrescentar, e trazer para dentro de si, outras condições indesejáveis para incursões oceânicas. Absorto por sua tarefa, mal reparara que o vento suave fizera cair duas mangas maduras ao seu lado. Sorriu meio sem jeito. E voltando ao seu relato, comentou que Platini verificara que um dos seus dois ouvintes, Martinho, havia novamente sucumbido ao sono durante a leitura anterior da carta do talentoso e detalhista Caminha. Nada disso havia tirado o seu entusiasmo. Mas, em determinado momento, temeu pela sorte do rapazinho. 88 Jairo Martins de Souza Ele quase se precipitara de cima de pilha de caixotes de maçãs! Seu companheiro Jean permanecia atento. Parecia magnetizado. Não perdia sequer uma palavra! Principalmente quando Platini disse ser o Brésil um país cercado pelo oceano Atlântico e pelo rio-mar Amazonas, esse ao Norte. Já no Oeste fazia fronteira com o Paraguai e, ao Sul, com o rio da Prata. Produzia açúcar e tabaco e tinha minas riquíssimas de ouro e diamantes. É de lá que os portugueses tiram grandes lucros. Minerais em profusão: era aí que sempre reparava crescer o interesse do jovem! No final, Platini disse que o malfeitor inglês lhe dissera com orgulho que os dados que lhe fornecera foram levantados por cópia de seu próprio punho da primeira edição da Encyclopaedia Britannica editada na cidade de Edinburgo. O fato fora recente e, portanto, confiável. Acontecera em 1771! A tarde estava por terminar na tranquila Guéret. O trote cadenciado do animal que conduziria Jean e Martinho de volta ao castelo foi escutado aos poucos pelos homens e pelos dois rapazinhos que conversavam no interior da mercearia. Jean desceu do saco de batatas. Martinho, dos caixotes de maçãs. Fontaine se preparava para se dirigir ao fundo para verificação de goteira que percebera ter aparecido no telhado de madeira. Poderia molhar alguma mercadoria. Platini, apressado, preparava-se para atender cliente prestes a entrar no estabelecimento. Recolhidos os passageiros, o carroceiro rapidamente tomou direção do castelo. Tinha pressa. Recebera salário e desejava ainda voltar à cidade para rápida passagem na casa de cores vermelhas que o padre andara insultando no sermão da missa de domingo. Passaria ao largo de praticamente todo o vilarejo. Jean mergulhou em pensamentos. Bússolas. Astrolábios. Água. Floresta. Pássaros. Minérios. Índios. Navios. Riqueza. O rapazinho não conseguia tirar da cabeça a palavra Brésil! Martinho, mesmo com o veículo em movimento, acabara de assinar desenho que fizera, e que ficaria para a posteridade na vida dos dois amigos. No ambiente do pequeno armazém ambos estavam lá assentados nas caixas de mantimentos, enquanto observavam Platini, que discursava e exibia um pequeno globo terrestre. Não se esquecera do Breu. Próximo a esse e também assentado, Just Fontaine levantava o indicador como se estivesse pedindo vez para expor alguma constatação. Uma galinha passa- Jean Monlevade, do Castelo à Forja 89 va apressadamente por um dos cantos do recinto... O rapazinho tinha rara sensibilidade de artista e havia captado, resumindo em alguns poucos rabiscos, todo o significado e a profundidade da situação. Foi quando tive minha atenção chamada pela atitude, e pela lenta dobrada de corpo que Tisserand assumira sem que eu tivesse percebido o início. Olhei-o de lado. Ele havia espirrado com suavidade: desejei-lhe saúde, À tes souhaits! Ele agradeceu. Ofereci-me para pressionar suas costas para aliviar o incômodo, parecia que estava em vias de voltar a espirrar. Alarme falso... Passados alguns segundos, justificou-se, e pediu-me desculpas alegando ter ficado levemente ansioso. O senhor vai entender-me melhor daqui a minutos: estou por iniciar momento especial da história que lhe relato. 90 Jairo Martins de Souza “... que fizera com o fito de caçoar dos amigos. Mal sabia que ficaria para a posteridade. Na gravura, ambos estavam assentados nas caixas de mantimentos do pequeno armazém enquanto Platini e Fontaine trocavam ideias sobre novas rotas de viagem para o Brésil...”. Jean Monlevade, do Castelo à Forja 91 XI Angéline As prateleiras envidraçadas do estabelecimento estavam cheias de pequenas garrafas e vidros que lembravam o que usamos nos dias de hoje para armazenamento de picles, temperos e outras iguarias. Foi quando a viu pela primeira vez, e o pai cuidadosamente parecia dar-lhe por via oral uma pequena quantidade de remédio. Parte do líquido grosso e escuro, graças à incansável gravidade terrestre, escorreu lentamente por um dos lados da pequena colher de ferro batido. Ambos estavam de pé no interior da própria farmácia de monsieur Paracelsus e mesmo alguém deficiente na percepção de cheiros notaria que o emanado pelo remédio ingerido pela garota, e que vazara para o ambiente, era fortíssimo e lembrava óleo de fígado de bacalhau. Ato contínuo, o homem limpou a vestimenta da menina cuidadosamente com pano limpo e, ao mesmo tempo, fez-lhe carícia sinalizando que estava quase por finalizar. Jean Monlevade estremeceu... Angéline, era esse o seu nome, tinha entre dez e onze anos e estava totalmente relaxada sob o singular cuidado paterno. Mantinha os olhos fechados e dava impressão de não ter sentido o ardume que costuma provocar a ingestão de tais misturas de plantas e óleos medicamentosos. Essa tranquilidade demonstrava que o procedimento era uma constante em sua vida. Bastante magra para os padrões estéticos da época, fora compensada pela natureza com outros predicados, por exemplo, a beleza que saltava aos olhos de quem a visse. E não que fosse somente isso. Ainda que não a conhecesse, não demorou muito para que Jean soubesse que sua simpatia era cativante, razão suficiente para que, aí de forma integral, se tornasse absolutamente encantadora. De fato a moça, ainda menina, lembrava uma daquelas criaturas geradas pela mistura de muitas raças (como as que temos de 92 Jairo Martins de Souza sobra nos desfiles de misses nos dias atuais), pois a peculiaridade de sua presença era também marcada pelo diferenciado contorno dos olhos. Os poucos familiares com os quais tivera contato diziam tratar-se de lembrança atávica de avós distantes. O formato amendoado dos olhos da moça, assim como o de alguns povos do oriente, tinha o detalhe de ser esculpido com fundo azul intenso, e muito brilhante. Tudo emoldurado por mechas de cabelos escuros e pele muito branca. Associe tudo isso, o leitor, a um corpo esguio com cintura bem definida. As ancas eram largas com protuberância traseira agradável aos olhos dos rapazes. Por fim, um perfil corporal inocentemente erótico, que se projetava para a adolescência. Inusitadamente para aqueles dias já tinha altura bastante destacada. O pai, médico, doutor Colbert, havia chegado recentemente à região, e demonstrava habilidade no trato com a filha. Parecia provido de mais de duas mãos. Toma tudo, chérie, só mais uma colher desse outro extrato e ficarás bem por essa e muitas outras noites. Jean havia retornado da escola e, enquanto aguardava a carroça que o conduziria de volta ao castelo de Guéret, fora até a farmácia resgatar encomenda que lhe fizera a mãe, Felicité. François raramente se encarregava deste tipo de serviço. E Maria Vitória ficava sempre ao lado da mãe. Era rapazinho, por assim dizer, bem mandado. Mas em particular agradava-lhe essa missão, pois gostava dos cheiros das essências, dos óleos, dos unguentos, dos emplastros, assim como das raízes que via colocadas em potes e pequenos vidros nas prateleiras do comércio. Não repudiava nem mesmo o do forte remédio à base de peixe que a bonita menina ingerira. Em outros, provocaria vômito! O jovem Fourier, o farmacêutico que trabalhava com Paracelsus, com a aquiescência do patrão (ambos eram sabedores do espírito investigativo do rapazinho), permitia que Jean, às vezes, fizesse abertura de alguns dos vidros do estoque para ensinar-lhe conhecimento de aromas e de procedência das raízes. Jean tem talento suficiente para ser um perfumista, diziam. Interessa-se por tudo que vem da terra. Suas pedras, rochas, raízes, cheiros e química. Mas, como já sabemos, não se limitava a tanto. Entusiasmava-se pela biologia e pela nova ciência da eletricidade. A ciência abria novos caminhos para o mundo. Não havia Luigi Galvani demonstrado que nervo ciático de rã morta tocado Jean Monlevade, do Castelo à Forja 93 por peça metálica próxima de faíscas fazia a perna do bichinho repuxar? Não foi daí que Volta partiu para inventar a pilha elétrica, usando cobre e zinco separados por discos de couro impregnados por restos de água salgada? Já disse, com outras palavras, que o rapaz tinha índole de pesquisador. Vou insistir. Pois certa ocasião, na presença de alguns amedrontados trabalhadores do castelo, decidira repetir a famosa experiência que o atual embaixador dos Estados Unidos na França, monsieur Benjamin Franklin, havia feito anos atrás (estou dizendo do mesmo homem que foi um dos Founding Fathers, um dos pais fundadores dos Estados Unidos). Ele havia lançado pipa ao sabor dos ventos em dia de nuvens carregadas. A linha que usava não foi somente enrolada em tronco de árvore como também ligada à terra por meio de fio, contudo interrompido por meio de pequena chave de metal aberta. Uma ponta da chave era ligada no barbante. A outra, a que estava aberta, ficou enterrada no solo junto à árvore. O campo tinha poucas árvores. Era praticamente aberto. Jean fez o mesmo. Com o início das trovoadas e raios, num dado momento, aconteceu passagem de fagulha entre as extremidades da tal chave. Um galho da árvore ficara estilhaçado e iniciara queima. A terra úmida esfumaçou-se imediatamente. A carga elétrica acumulada nas nuvens havia escoado violentamente para a terra. Um boi mugiu assustado. Ovelhas e carneiros precipitaram-se para todos os lados. Um bando de cachorros saiu latindo em disparada. Algumas galinhas que estavam nas imediações correram espavoridas: voltaram para pequeno cercado coberto. O fogo que se iniciara no galho apagou-se em segundos. Os serviçais fugiram amedrontados. Voltaram aos poucos. Desconfiados. O soldado Cousteau, que ocasionalmente passava próximo ao local, chamou rigorosamente a atenção do rapaz. Sentiu-se ofendido porque se assustara e por instinto de sobrevivência, correra como um covarde. Um militar não deve ceder ao medo e fugir de circunstâncias estranhas como faz um civil. Jean justificou-se, dizendo do cunho educacional do evento. As razões foram aceitas, mas a autoridade policial alegou ter que comunicar ocorrência ao seu superior. O fidalgo também seria informado dos perigos que aconteceram ao longo do ocorrido. 94 Jairo Martins de Souza Isso contornado, Jean passou a explicar-lhes que a descarga de energia na chave, o fogo na árvore, a fumaça no chão foram resultados dos efeitos de eletricidade em movimento. A carga da nuvem é positiva e a da terra negativa. Foi o que Franklin havia decidido. Por convenção. Podia ter chamado de forma contrária. Bem, Tisserand disse sorrindo, desculpe-me ter alongado em paixões fora de hora do rapaz, devo voltar à cena da farmácia de monsieur Paracelsus. Algo se inicia! Com a presença do médico e filha, a atenção de Jean se concentrara totalmente no perfil suave da mocinha. O pai, enquanto trabalhava mantendo a cabeça de sua querida paciente ligeiramente inclinada para trás, prosseguia dirigindo-lhe afagos: talvez daí, desse simples ato de amor, viesse a aparente ausência de dor e a tendência relaxada de sua criança. Ninguém se acostuma com remédios amargos. Jean continuou observando-os discretamente e, instantaneamente, imaginou que o pai havia concluído suas carícias, e que passara a tarefa para que ele prosseguisse. Com isso, viu-se roçando as costas de suas mãos no rostinho da mocinha por instantes… Colbert era sobrinho de ex-ministro de Napoleão e tivera outros dois filhos. No entanto nunca pudera tirar partido daquele parentesco privilegiado. Graves problemas de divisão de herança, quando da morte dos avós, forjaram a separação do pai com o tio. Havia também muitos outros irmãos, doze no total, caro leitor, mas todos mortos em uma ou outra empreitada de guerra levada a efeito pelos reis da França ao longo dos anos. Angéline era a joia da coroa que guardava com o maior dos cuidados. Os outros dois filhos também lhe tinham sido muito caros sob todos os aspectos. Haviam lhe custado muitas horas de rotina extra. Nasceram com algumas lacunas formativas, quase que totalmente recuperadas pela paixão e esforço do pai. A mãe era uma burguesa que vivera os exageros da corte de Versailles. Morrera precocemente deixando os rebentos aos cuidados exclusivos do jovem marido. Também precocemente morreram-lhe os filhos homens e, com tudo isso, os esforços financeiros tinham sido gigantescos e ele, praticamente, chegou à bancarrota. Então decidiu reiniciar vida nova e trabalhar no interior do país. Nada especial. Produziria o suficiente para manter o básico permitido para um profissional liberal naqueles anos difíceis. Com isso pen- Jean Monlevade, do Castelo à Forja 95 sara viver com simplicidade, fora da vida cara e dos luxos da capital, Paris. Para tanto, levara consigo a filha que lhe restou. Pretendia criá-la no saudável ar do campo, casá-la, ter netos e, bem... Foi somente após deixá-la confortável em cadeira para rápido descanso, que constatou a presença do rapazinho Monlevade. Cumprimentou-o de forma educada com a cabeça. Lembrou tê-lo visto com o pai quando fizera visita ao castelo. Um dos seus serviçais ferira a perna em queda de cavalo. Desde então, Colbert soubera do entusiasmo que os moradores da cidade tinham pelo rapazinho. Aproximaram-se. Diga ao fidalgo, seu pai, que, estando na cidade, estique as pernas até minha casa, foi o que, por fim, falou a Jean. Entregue a ele este pequeno bilhete. Ambos haviam percorrido distância igual e Jean recebeu o papel dobrado em formato de ave, um origami feito com a rapidez de quem tem mãos de cirurgião. Tudo isso aconteceu a meia distância de Angéline. Com a demonstração de sua arte, na realidade Colbert quis dizer que se sentia bem em conhecer o menino. És bem-vindo! A garota abrira os olhos e, ao perceber a presença de um terceiro, teve imperceptivelmente modificada a cor das maçãs do rosto. Avermelhou-se. O pai, que bem a conhecia, sorriu, percebendo que a presença de Jean trouxera vida ao aspecto, naquele dia, combalido da filha. Venha você também, complementou. Já tenho conhecimento do seu interesse pela ciência e pelas artes em geral. Alguns poucos meses e vários encontros depois, a amizade entre o fidalgo Monlevade e o médico Colbert se consolidara. Reuniam-se frequentemente. Pois é, senhor fidalgo, antes de vir para Guéret, estive estudando propostas até mesmo para experimentar vida nova em outros continentes pouco conhecidos. Não fui por temor de causar prejuízos à saúde de minha filha: o senhor sabe que sou gato escaldado. O mais tentador foi o feito pelo embaixador de Portugal. Anda às turras com Napoleão, mas os lusitanos estão, por ideia do príncipe-regente, arregimentando pessoal para melhorar nível de vida em sua imensa colônia de ultramar, o Brésil. A cidade do Rio de Janeiro, segundo dizem, é de beleza estonteante, mas a saúde pública lá não é de se fazer fé. É por isso que o convite incluía pessoal médico. Os salários e vantagens eram astronômicos. Mesmo que Jean estivesse conversando com Angéline a poucos metros de onde se encontravam assentados o pai e o doutor 96 Jairo Martins de Souza Colbert, não perdia palavra do que diziam. Estava habituado a fazer três ou quatro coisas ao mesmo tempo. Dizem, Tisserand divagou, que é como Bill Gates se comporta. Bem, desde então isso já era considerado uma das faculdades de pessoas superdotadas. Imediatamente desculpou-se pelo deslize e voltou ao diálogo do médico com o fidalgo. Esse é um dos motivos por que aceitei o seu convite para hoje estar aqui tomando esse vinho de boa qualidade, doutor Colbert. Tenho contatos influentes na corte de Paris, e que são simpáticos à melhoria de relações com o governo português. Essas pessoas receberam informação que o senhor estava aqui em Guéret e pediram-me para renovar-lhe chamada para passar período no estrangeiro. Ah, monsieur Monlevade, fosse na minha juventude diria sim sem pestanejar. Quando criança pensava até mesmo em tornar-me o que, no futuro, deverão chamar médico sem fronteiras. Com a graduação, o casamento com mademoiselle Mathieu, sua morte, e a vinda dos meus três rebentos, a saúde frágil de Angéline, não mais pensei sobre o assunto. O senhor já sabe que, de certa forma, recusei convite anterior e coloquei meu antigo desejo definitivamente de molho. É a razão pela qual, repito, procurei-o hoje, agora é o fidalgo quem diz. Lembro-me de tê-lo ouvido falar por mais de uma vez sobre este assunto. A necessidade deles não é imediata, Colbert. Pense bem. Não tens mais esposa, nem os dois filhos que lhe eram tão caros. A menina Angéline está muito bem e a administração de saúde em Paris pode dar-lhe tempo suficiente para encaminhar suas coisas aqui. Fechar seus assuntos. Depois você segue para o Brasil. A intenção inicial do imperador é mandálo para uma cidade chamada Vila Rica. É região de montanhas. Clima ameno. Se for do seu gosto, mando-lhe minuta de contrato que me enviaram os portugueses. Não há compromisso algum, leia os termos com cuidado, e depois conversamos. Postas as cartas na mesa do jeito que descrevi, Tisserand esclareceu, Colbert calou-se. Pôs-se a estudar mentalmente o assunto. O quadro que desenhava não era nada animador. Caso aceitasse a proposta dos portugueses, sua vida mudaria de maneira radical. Passaram-se alguns minutos. Ambos ainda permaneciam calados. Eventualmente tomavam pequenos goles das taças que Jean Monlevade, do Castelo à Forja 97 agora quase se esvaziavam e Colbert entendera, na prática, o porquê da verdade do aforismo que dizia ser a paz o principal fruto da árvore do silêncio. Não deixara de pensar nem mesmo um segundo no fidalgo Monlevade, e na proposta que lhe fizera em favor do imperador português. E finalmente vislumbrara por trás das nuvens que o fantasma da dúvida, o demônio de Descartes, não mais o incomodaria. Se tivesse que ir ao estrangeiro iria para o Brésil. Ele e a filha. Construiria patrimônio. Usaria recursos da medicina avançada de países do primeiro mundo, enfim, quebraria lanças e venceria batalhas contra doenças tropicais. É, Tisserand exclamou introspectivamente pensando sobre a cena que estava relatando: o médico perdera uma esposa, dois filhos, mas nunca fora um perdedor, um fracassado, um loser, como escrevem os roteiristas dos filmes de Hollywood. Mesmo na adversidade se pode ser feliz. Não temos, lá bem fundo dentro de nós, nossos jardins internos que, se bem regados e cuidados, podem nos trazer paz e tranquilidade? Voltemos ao dilema do médico, Tisserand verbalizou vagarosamente. Ele estava por decidir o desfecho da proposta recolocada na mesa pelo amigo fidalgo. Pois foi por isso que os escritos do vigário geral registraram que Colbert respirou fundo, e agradeceu polidamente ao fidalgo pela atenção do momento. E, sem perda de tempo, pediu licença e encaminhou-se para o banheiro. Por mais forte e dono de si que fosse, não escaparia a algumas copiosas lágrimas. Não fez vômito, como fazem os norte-americanos, simplesmente chorou lembrando-se dos filhos e da esposa que morrera faz tanto tempo. O choro faz parte da miséria humana. Água benta. Digo isso no sentido positivo, Tisserand argumentou, pois é gerada a partir dos nossos mais íntimos sofrimentos. Lava a alma de quem as verte. Lâminas puras de água que são os verdadeiros espelhos do amor. Não chorou, insisto, até mesmo Jesus? A tempestade durou alguns breves minutos. De imediato não faria sol claro, então Colbert partiria para a análise detalhada da situação, para o quotidiano. Se feita, a saída da França não precisaria ser imediata. 98 Jairo Martins de Souza Jean Monlevade, do Castelo à Forja 99 XII Algo mais sobre política e a família do fidalgo A saúde da família de Felicité Monlevade era sustentada por pilares firmes de dieta baseada em leite de cabra, carne de aves, caças, animais domésticos, pescados do Creuse e frutas de estação. O resto ficava por conta do contato com a natureza, o ar puro, e a relativa tranquilidade das vizinhanças. A região em que moravam não era extremamente convulsiva. No entanto, a paz definitiva para a Europa se arrastaria por mais de dezena de anos: Waterloo não aconteceria de imediato. Dos habitantes de destaque que se mantinham ativos nos acontecimentos, Philippe de Bogenet, e alguns poucos companheiros, inclusive o fidalgo JeanFrançois de Monlevade, eram exceções bem localizadas. Deste último ressalte-se a heroica, e comentada, fuga pela janela quando da dissolvência da Convenção. O fato nunca fora esquecido pelos moradores de sua cidade. Jean tinha orgulho do pai. No entanto o grupo ligado a Monlevade praticava sua rebeldia em focos bem centrados das questões polêmicas do país. Discutiam, sobretudo, a forma de governo e o Estado. O ponto chave, perguntavam-se, é se o Estado tinha valor igual ao resultado da soma obtida pelos valores isolados do cônsul, magistrados e políticos, etc. e que criam os impostos, enfim, fazem as leis e modelam os regulamentos. Fosse assim, estaríamos perdidos! Para avaliar. Somente para avaliar possível modificação de rumos, nos seus encontros feitos às escondidas, seguia-se sempre rápido plebiscito. A forma era colocação de votos em urna fechada. Um singelo sim ou não, para avaliar desempenho do cônsul Bonaparte. Com isso, tinha-se noção do grau de coesão dos fidalgos e convidados participantes. Em segundo lugar, a educação dos jovens que nasciam aos montes por todos os cantos da antiga 100 Jairo Martins de Souza província. A despeito das inúmeras guerras, a população não parava de crescer. Pois antes de partir para os conflitos, ou em viagem de folga de volta à terra, os jovens maridos deixavam suas sementinhas plantadas no bucho das mulheres. Nove meses depois... Alguns exaltados vaticinavam que a chegada das máquinas a vapor destruiria fonte de trabalho das famílias que viviam de rendimentos da tecelagem e da tapeçaria. O desemprego cresce, comentavam, temos necessariamente que nos ajuntar às reformas de Napoleão. E não é que o grupo caminhasse sempre no mesmo sentido. Havia divergências que traziam consigo acaloradas discussões recheadas de tinturas ideológicas e fundo religioso. Aí segue um exemplo. Certa ocasião resolveu-se fechar questão quanto a alguns credos que deveriam professar. Algo como itens de uma cartilha. Um deles seria o de fazer como o apóstolo Paulo havia ensinado em sua carta aos Romanos: trate bem seu inimigo para, quem sabe, mais tarde, botar brasas em sua cabeça. Tal fato havia causado alguma insatisfação a dois ou três dissidentes ateus. Julgavam-no incompatível com a ideologia professada pelo grupo. Tudo ficou resolvido com inclusão de uma frase de Montaigne na mesma ata de reunião. Foi mais ou menos redigido como segue. Parte do grupo que se reúne nessa oportunidade reconhece que, para alguns de nós, cristãos, o encontro de algo materialmente inconcebível é uma excelente oportunidade para acreditar! Tais questões às vezes eram colocadas na mesa simplesmente para gerar discussões. O grupo apreciava assuntos controversos. Todos gostavam de discutir! O caso em pauta fora equacionado da forma que todos apreciavam: democraticamente. A democracia era o alvo que todos ambicionavam para o país. Aí que está o ponto. Jean, quando permitido, participava dos encontros timidamente situado, mas assentado em local de onde poderia ouvir claramente os pontos de vista dos participantes. Alguns tinham bastante leitura e o rapaz escutava-os atentamente, tentando extrair, de cada palavra, alimento para sua formação moral. Às vezes se excedia na avidez pela busca de conhecimento e pedia explicações. Tal como fazia constantemente nas classes de Duchamps, levantava as mãos e perguntava o porquê disso ou daquilo. É bem verdade que, por acanhamento, tivera algumas dificuldades Jean Monlevade, do Castelo à Forja 101 iniciais de quem sai do seio familiar e entra na sociedade dos homens. A começar pela escola, pois, certa ocasião, confundira-se ao tentar chamar a atenção do professor, e chamara Duchamps de pai. Os colegas, durante alguns dias, fizeram chacota com seu deslize. Jean silenciou por curto período. Depois voltou à carga. O mesmo ocorrera em uma das tais reuniões dos insatisfeitos com o regime. Levantara o braço para perguntar sobre um dos últimos regulamentos estabelecidos por Napoleão e, ao se dirigir para um dos mais exaltados, o homem chamava-se Delaittre, incorrrera na mesma falha inconsciente que cometera em diversas ocasiões na escola. Dissera, novamente, a palavra pai. Daí pode-se retirar com sabedoria a importância que a imagem paterna teria na infância e na vida futura do rapaz. Mais uma vez aí se confirma a força de espelho. A poderosa influência que o filho usualmente encontra na figura do pai. Não. Não é que a da mãe possa ser considerada como secundária. Não no caso. Felicité, privilegiadamente cônscia das habilidades excepcionais de Jean, participara também da alfabetização do filho: passou-lhe tudo que sabia. A partir dos 5 anos o menino Jean estava pronto para ler, contar e fazer problemas aritméticos. Tudo ensinado em casa. Antes de ir para a escola de Duchamps, aos 8, já dominava tais operações com facilidade superior a qualquer outro das redondezas. Na única vitrine envidraçada da cidade, entendia as palavras escritas do lado contrário ao que estava com facilidade fora do comum. E já ajudava os pais na contabilidade da produção agrícola das áreas férteis do castelo. A partir de determinado momento, tornou-se indispensável para cálculo da quantidade de novelos de lã que a mãe necessitaria para confeccionar esse ou aquele agasalho, essa ou aquela tapeçaria. Mas, Deus que nos livre, ela jamais sobrecarregaria o filho. O menino absorvia com naturalidade aquelas incumbências. Inclusive as de caráter rotineiro. Aliás, mesmo sendo filhos de fidalgo, todos os seus filhos eram acostumados a cumprir com presteza algumas obrigações caseiras. Limpe pelo menos o que você sujar, era bordão que impunha a todos. Antes de entrar nos ambientes internos do castelo, os filhos automaticamente raspavam cuidadosamente os sapatos de barro, ou poeira, ou restos de esterco, ou seja lá que sujeira fosse. 102 Jairo Martins de Souza Felicité ouvira de Jean – que por sua vez ouvira do viajado monsieur Platini – que, na distante Cingapura, entrava-se em casa somente com pés descalços. Achara isso um exagero. Não obstante, sentia-se feliz e convencida de que os filhos estavam passando aparentemente incólumes por uma trovoada de anos problemáticos. Agradecia constantemente a Deus por tão grandiosa bênção! Jean Monlevade, do Castelo à Forja 103 XIII O nascimento de Léopold, o vigário geral Tisserand disse que uma semana após completar 14 anos Jean acompanhou a mãe para visitar parentes no castelo de Bogenet. A data era a de 21 de Abril de 1805 e, como de costume, o enorme fogão a lenha do castelo Monlevade fora reaquecido ainda pela madrugada. Naquele ano o inverno europeu havia se esticado e o senhor, mon ami, pode imaginar o frio que fazia à hora em que Felicité havia se levantado. A névoa era intensa, o sol fraco demoraria ainda algumas horas para nascer, e todos estavam preparados para sair após rápido desjejum de pão, queijo de cabra e leite quente adocicado com açúcar de beterraba. Além de Jean, também foram com a mãe François e Maria Vitória. A ocasião era festiva! No cair da noite anterior a notícia havia chegado a Monlevade: a nora do fidalgo Philippe de Bogenet havia dado à luz a um robusto garoto. Era quem viria a ser, mais tarde, o próprio vigário geral! Portanto Léopold Dissandes de Bogenet nasceu no ano da luxuosa coroação de Bonaparte como rei da Itália. A partir daí, e após vitória sobre os franceses em Trafalgar, os ingleses iniciaram cem anos de domínio naval no mundo. Ainda que, naquela ocasião, o corpo do seu vitorioso comandante Nelson tenha retornado à Inglaterra dentro de tonel de cachaça de vinho. O almirante foi um dos 1500 ingleses que pagaram o triunfo com a morte. O senhor deve estar lembrado, Tisserand explicou, que em diversos momentos bati na tecla que quase tudo que lhe digo é a partir das notas do recém-nascido Léopold. Insisto neste ponto! Com isso procuro eximir-me de culpa quanto à ordem em que são apresentadas. Daí não ser verdadeiro dizer que Jean jamais tivesse voltado a ver Angéline desde a primeira vez em que sentiu ficar corado na 104 Jairo Martins de Souza farmácia de monsieur Paracelsus. Lembram-se? Ele contava apenas cerca de 10 anos! Nessa fase da vida muitas coisas passam tão rapidamente quanto chegam. Por exemplo, mal se lembrava de que dois anos antes de conhecê-la, aos 8, havia contemplado a maior exibição de fogos de artifício que veria em toda a sua vida. Foi grandiosa a celebração do 18 de Brumário, protagonizada em Paris pelo cônsul Napoleão. Na velhice passaria a se lembrar desses eventos com grande clareza de imagens. Mais ainda de sua querida Angéline. Amou-a, por toda a adolescência, desde o primeiro momento em que a viu receber a medicação dada pelo pai. E prosseguiu amando-a silenciosamente durante a juventude. Isso quebrara algumas de suas convicções, por exemplo, a de que não amaria outra mulher com o mesmo carinho que dedicava à mãe e à irmã. No entanto, as ocasiões para vê-la não eram frequentes ao longo da semana. Por isso não perdia em aproveitar as raríssimas visitas que o fidalgo fazia ao médico Colbert. Não perdia uma quermesse em que a moça tivesse a mínima possibilidade de comparecer. Não perdia uma missa aos domingos. Ele, ao lado da família, a mãe, o fidalgo e os irmãos. Ela, de braços dados com o pai. Apreciava vê-la no confessionário, e cometia frequentemente o grave pecado de ambicionar momentaneamente tomar, como seus, os ouvidos do sacerdote. Observava-a de longe. Devaneava acreditando piamente ser correspondido. Implorava a Maria Vitória para que procurasse sempre citar o seu nome a ela quando estivessem juntas. A irmã devia-lhe muito em termos de carinho e afeto (eram tempos em que os rapazes mantinham zelo especial pelas irmãs). Ela gostava da companhia de Angéline. Então respondia sim ao irmão, mas sempre alegava não saber exatamente como! Angéline! Angéline crescia a olhos vistos. A cidade comentava que não demora estaria se transformando em belíssima mulher: do tipo que jamais careceria do uso de espartilhos. O pai era orgulhoso de seu produto e, enquanto observava-a crescer, zelava criteriosamente por sua preparação. Bancava três vezes por semana a vinda de mademoiselle Beauvoir para ministrar aulas caseiras para sua criança. O preço cobrado por aquela senhora era muito alto para os ganhos do médico. Colbert era homem caridoso. Atendia gratuitamente a muitos dos que o procuravam, e levava ao pé da letra o juramento que fizera solenemente; enfim, Jean Monlevade, do Castelo à Forja 105 repetia, na prática, as palavras copiadas de Hipócrates há gerações e gerações. Com tudo isso a divina providência nada mais poderia fazer do que premiá-lo com generosa contrapartida. A iniciativa que tivera, como pai, era-lhe devolvida de forma dobrada. Logo após primeiros contatos com a futura tutora de Angéline percebera que ela era de conhecimento e eficiência muito acima dos professores particulares que conhecera em Paris. A mulher tinha bagagem suficiente até mesmo para trabalhar com pequenos príncipes e infantas. Mal sabia que fora por força do seu caráter que Beauvoir deixara anos atrás de trabalhar com a nobreza de Versailles. Estava encantada com sua nova pupila! Tinha razões de sobra. Angéline era aplicada e aprendia com facilidade tudo que lhe era ensinado. Literatura, música e línguas estrangeiras eram as suas principais predileções. Tais talentos faziam com que seu aprendizado fosse muitos graus acima do que dela pretendia o pai. Ele que, por sua vez, tinha plano simples para o futuro da filha: o de prepará-la para casar, assumir um castelo (por mais simples que fosse), e constituir família da forma mais breve possível. Nesse fulcro é que fundamentalmente apoiara seu castelo de sonhos. Foi o que expressara confidencialmente ao fidalgo Monlevade em reunião acompanhada por fumaças aneladas de cachimbos que ambos pitavam ocasionalmente. Ao lado do pai, Jean ouvira tais palavras do médico como decretação de sua sentença de morte. Viu-se como doente terminal. Foram palavras duras, mas instrutivas o suficiente para que ele percebesse e tomasse posição. Não fosse assim, seu sonho poderia se dissolver sem possibilidade de voltar atrás. Tinha que entrar em ação! E a chance de dar início oficial ao seu namoro com Angéline poderia acontecer na visita de parentes que estava por acontecer. O jovem Monlevade havia suspeitado que o doutor Colbert e a filha lá se encontravam quando Felicité, radiante, anunciou à Maria Vitória que estavam chegando ao destino. A pista que induzira Jean àquela suposição fora significativa, e dentro de minutos, teria confirmado o acerto de sua previsão. A principal edificação da propriedade Bogenet fora feita há cerca de duzentos a duzentos e vinte anos. Crescera ao longo desse tempo. Novos anexos foram-lhe acrescentados, tal como a 106 Jairo Martins de Souza sua torre de proteção que, mesmo à distância, projetava-se para o alto e emergia majestosamente das entranhas de suas dependências. As pedras escurecidas pelo tempo tornavam-no vista um tanto macabra se olhado de relance, mas dentro dele a vida dos moradores corria livre e espontânea. Nada de almas penadas e assombrações! Felicité Sallé du Sioudray Monlevade estava excitadíssima com a chegada do novo sobrinho. Por falta de tempo, acumulada que estava com afazeres domésticos, andara se comunicando com a amiga (consideravam-se verdadeiras irmãs) somente por cartas trocadas ao longo dos últimos dias. O cavalo que atendia ao criado que fazia o percurso sabia o caminho praticamente de cor. Bastava que alguém com bolsa de couro cruzada nas costas subisse no seu lombo para que o animal tomasse rumo certo. Faziam planos escritos para o futuro da criança. O que gostaria, ou que os pais gostariam que fosse, quando crescesse? Um diplomata, um oficial do exército... Não! Ele seria um padre! Sim, um padre. E para tanto deveria nascer um menino. A mãe contava com a ajuda de Deus e a experiência que Felicité acumulara no assunto. A cunhada era confiável bola de cristal! As técnicas de ultrassom demorariam quase duzentos anos para adiantar sexo das crianças para as mães, mas como sabemos, a esposa do fidalgo tinha olhos privilegiados para certificar-se do que reservava a cor de urina de mulheres recolhida em recipiente de vidro. Verificara a da cunhada. Sim, querida, estás grávida, e digo-lhe, com segurança, que é homem! Então, sob o olhar benigno e a proteção da heroína Jeanne d’Arc, a futura padroeira da França, o menino nasceria com saúde e poderia vir a ser um servo totalmente a serviço do senhor nessa terra tão carente de fé. Rogavam também à virgem Maria por esse milagre, que, como sabemos, foram totalmente atendidas. Horas antes da chegada de Felicité a Bogenet, o vigário geral já havia completado com sucesso um primeiro movimento naquele sentido. Estava acabando de nascer. Ao lado da cama da mãe, que suava em bicas e dava praticamente por encerrado o ciclo de dores do parto, uma de suas domésticas rezava em voz baixa. Parecia cansada, via-se claramente que estava quase por completar o terço do seu rosário: suas ave-marias e seus padresnossos. Ouçâmo-la por breves instantes. Je vous salue Marie, plei- Jean Monlevade, do Castelo à Forja 107 ne de grâces, le Seigneur est avec vous.... Saint Marie, Mère de Dieu.... Priez pour nous.... Maintenant et à l`heure de nôtre mort, Ainsi soit-il.... Amem! Foi somente após recitar completamente a homilia dita pela piedosa criada que Tisserand deu a entender que passava da hora de retornarmos aos Monlevade. Estavam por chegar horas mais tarde a Bogenet. Já estavam chegando! Mas um pouco antes disso, foi observando a satisfação exposta nos olhos da mãe que Jean de longe pensou ter notado, com o canto dos olhos, que um dos criados do castelo dos seus tios conduzia carroça onde julgou ver escrita a letra M, de Médecin. Segundos depois tinha certeza que o transporte oficial do médico da cidade acabara de desaparecer escondido pela fachada lateral da edificação principal. O pai não andaria desacompanhado pela filha em ocasiões de nascimentos. O coração quase saiu-lhe pela garganta, tamanha foi sua excitação. Olhou para Maria Vitória, necessitaria novamente de sua colaboração. A dileta amiga de Angéline aparentemente dormia em um dos bancos apoiada nos ombros dos dois irmãos. Nas curvas, seu corpo ora se aproximava, ora se distanciava dos mesmos, dependia do lado para o qual o cocheiro desviava o rumo dos cavalos. Alguém que os observasse do lado de fora da carruagem diria que desde sempre a fraternidade e as brincadeiras de família e, especialmente entre irmãos, deveriam permanecer constantes e imutáveis. Não era o caso! Pois após rápidos testes, ao constatar que Maria Vitória realmente dormia e não estava forçando tal movimento para fazer chacota com os irmãos, Jean lembrou-se dos efeitos da força centrífuga da qual o professor Duchamps lhe falara recentemente. Estava realmente caído por Angéline, mas era, sobretudo, prático. Esquecera-se momentaneamente de plano de conquista amorosa a ser posto em ação. Voltou a olhar para a irmã. O seu interesse manteve-se alterado em direção à ciência conforme pensamento anterior. Do amor para os estudos. Continuou a mirá-la com os olhos agudos de quem faz experiência em aula de ciências: a matéria havia sido recentemente incluída no currículo das escolas francesas. A recomendação de Duchamps é a de que não se pode deixar que o ambiente venha a trair-nos quando de nossas deduções. No caso, a das forças que aparecem na feitura de curvas. A da sensação que qualquer coisa indefinida nos empurra, e não 108 Jairo Martins de Souza vemos. Um soldado de artilharia que se recuperava de ferimento, em Guéret, havia lhe dito que algo similar parece acontecer com balas de canhão disparadas a distâncias longas. Forças fictícias. Fantasmas! O moço sorriu feliz, entendera-as bem. Com a conclusão da curva, a estrada novamente se tornara reta e a irmã voltara a dormir sem empurrão que a incomodasse. Os que não se acabavam eram os eventuais solavancos que sofria quando as rodas da carroça passavam pelos buracos do caminho. Newton. Ação e reação. A aproximação do castelo fez voltar pensamentos para a filha de Colbert. O mirante da curva lentamente percorrida pelo coche abria próxima a visão de Bogenet. A manhã que agora já nascia estava deslumbrante e o sol, ainda que parcialmente escondido, não ofuscava o brilho que a natureza impunha a mais esse dia de visitas e recreação. Foi festa de família! Mas que não deixou de ser oportunidade para celebração de acordos. Na ocasião, Guy de La Vilatte, um tio relativamente distante, e a esposa Sophie, que também se encontravam presentes em Bogenet, encantaram-se com a educação e a vivacidade de François, o filho mais velho do fidalgo. Conversaram muito e ficou combinado que, antes de voltarem para Paris, tentariam acertar detalhes de possível transferência com o fidalgo. Não é que estivessem tão velhos assim, mas fora também a eventual cooperação do jovem nos seus negócios, isso a discutir, como também que ele lhes fizesse companhia arejando o ambiente sombrio da casa de estilo melancólico em que moravam. Felicité tinha sentimentos ambíguos a respeito. Sim, ficaria feliz pelo filho mais velho, mas sentiria sua ausência. Não. Não colocaria obstáculos à situação, era o futuro do primogênito que estava em jogo, e a questão de estudar fora era pura questão de tempo. O jovem poderia, nas horas vagas, aprender a lidar com o ramo de importação e exportação que era o interesse comercial do tio. Uns dias mais e tudo estaria ajustado. Jean, ao ouvir parte da conversa, pressentiu que sua sorte também poderia estar ali presente: em carne e osso. E foi apenas após se encantar com o pequeno futuro vigário geral, que passou a circular pelos jardins aguardando que a irmã trouxesse consigo, a tiracolo, a encantadora Angéline. A chegada dos familiares do ramo Monlevade foi muito fes- Jean Monlevade, do Castelo à Forja 109 tejada pelos moradores de Bogenet. A mãe já demonstrava sinais físicos de excelente recuperação dos esforços feitos durante o nascimento. É uma das muitas vantagens do atualmente pouco usado parto natural. Tanto foi assim que pôde receber Felicité fora do recinto onde o bebê repousava tranquilo após primeiras sessões de amamentação. O corte do cordão fora perfeito: o umbigo tinha ficado com aspecto animador, e mãe tinha a pele lisa e aparentava estar verdadeiramente descansada. No extremo direito da parte alta de sua cama, deixara suspenso pequeno cordão com bonita medalha da Virgem Maria trabalhada em prata de qualidade. O fidalgo Monlevade aparecera cerca de três horas da tarde, após resolver alguns assuntos de urgência. Ficaria para o jantar, juntamente com todos os demais visitantes. Durante a espera, o assunto não fora o que dizia respeito à condição do país, tema recorrente em qualquer situação em que estivessem envolvidos mais de dois franceses. Filhos. Conversou-se sobre filhos. François Monlevade, Tisserand confirmou, neste mesmo dia, seria convidado por Guy de La Vilatte para residir na capital, Paris. E em dado momento chegou a vez de Jean que, nessa altura, sabemos estar no jardim. O pai falou de sua inteligência; a mãe disse do seu amor pela família e o carinho que dedicava aos irmãos. Não exagerara. O médico Colbert ouvira atentamente. Há tempos viera observando olhares aparentemente dispersos que o jovem lançava para os lados da filha. É claro, sabia de seus dotes privilegiados, isso não era nenhuma novidade para os moradores das redondezas de Guéret. Mas ouvir da própria boca dos pais sobre o comportamento dentro do seu lar era de grande valia, e fato a ser levado fortemente em consideração. O médico sorriu. O rapaz era filho de fidalgo: nunca se sabe... Nascer, crescer e morrer dentro de pequenas comunidades tem lá suas compensações, Colbert comentou, aparentemente atravessando a conversação anterior que prosseguia, e dirigindose especialmente ao fidalgo. Não nasci, mas vivo em uma delas. Quanto à morte... Referia-se a toque de sinos da igreja da cidade que, ao longo da semana, anunciara a morte de antigo cidadão de Guéret. O falecido não pertencia à família de Léopold, o vigário geral, e nem mesmo foi pessoa que pesasse, em especial, nos rumos da vida particular da família do fidalgo Monlevade. 110 Jairo Martins de Souza Mas foi desejo claramente expresso por Léopold que o resumo da vida do morto constasse generosamente em sua história, como exemplo de final de existência de quem sai do nada, cria família com sucesso, e projeta-se na vida social. Bem, Tisserand acrescentou, além deste pedido especial, não vou negar que há outro motivo para que aquele cidadão seja citado aqui. E o senhor mesmo, mon ami, verá que na realidade três ou quatro linhas seriam mais que suficientes para expô-lo. O excesso pode ser creditado à minha prolixidade. Pois, na ocasião do seu passamento, era homem de vasta família, mesmo não os tendo por perto. Os filhos, de um modo geral, bem sucedidos, encontravam-se, o que não era de se espantar, espalhados pelo país e pelo mundo afora. Durante os anos de casamento, tentara várias vezes que a mulher lhe desse à luz uma filha, mas somente lhes apareciam varões que, mal passados dos quinze, como se dizia, botavam pé na estrada. Família de ciganos! Ele próprio fora ressalva incomum ao longo de sua geração. Apaixonara-se e havia se casado com moça de sentimentos arraigados à terra. Esse era o motivo principal de sua permanência em Guéret. A mulher sempre se recusara em acompanhá-lo, caso tomasse outros destinos. Mas abandonou-o por razão especial, já que os sinos da mesma igreja haviam dobrado para ela há meses. O casal tinha muitos amigos e o caixão ficara exposto por horas em sua casa. Por final, foi enterrada com reverências especiais pela comunidade. O marido sentira intensamente a sua falta, e a de seus bolinhos de trigo. Os filhos e netos, assim como outros parentes dispersos pelo mundo, cumpriram por ela longo e respeitoso período luto de corpo e de alma. Em especial, ele, o mais próximo do coração da falecida, decidiu optar pelo estilo totalmente fechado que lhe exigia, inclusive, uso de roupas de baixo totalmente negras. Foi homem que sofreu muito quando do passamento da mulher. E que, quando do seu próprio, teve testemunhado seu papel de realce na sociedade de Guéret. A crônica local destacou que foi cidadão muito considerado pelos seus conterrâneos. Era marceneiro de grande habilidade: um verdadeiro escultor. Um artista. Com poucos anos de exercício da profissão, chegara a ganhar muito dinheiro e sua prosperidade aumentava a olhos vistos. Aí ficou mais uma vez provado que a miséria é a única condição que Jean Monlevade, do Castelo à Forja 111 fica a salvo da inveja: ele não ficara imune a alguns comentários maliciosos. Dizia-se que pagava propinas a funcionários para facilitar caras e volumosas encomendas governamentais, os sinais de riqueza tornaram-se dia após dia mais facilmente detectáveis. A começar pelo belo casarão em que passara a morar, e que ficava próximo à praça da cidade. Foi lá que morrera pouco após avisar a um dos criados que chamasse Colbert, pois sentia fortes dores no peito. Por via de dúvidas, chamem também o abade, foi o que solicitou ao mensageiro antes que saísse, e com voz já muito fraca. Um apressado Ribérry chegou a tempo de apanhar sua última confissão. A alma foi resgatada a tempo certo! O corpo, não. O médico viera também rapidamente, mas ao chegar encontrou-o morto. Colbert gastara somente minutos bastantes para selar o cavalo e alcançar as poucas quadras que separavam suas residências. Foi como se tivesse tomado um tiro no peito à curta distância, comentou algumas horas mais tarde com monsieur Gris. Gris era o dono da funerária que se encarregaria de todas as providências para as exéquias. O velho marceneiro prestara vários serviços à família Monlevade. Trabalhava com precisão, pontualidade e arte e nunca deixava de atender ao cliente nas ações de pós-venda e manutenção dos seus produtos. Utilizava somente madeiras de qualidade e o fidalgo pagava-lhe em dia e, às vezes, encantado com a excelência dos produtos, premiava-o com pagamento a mais. A relação, a princípio puramente comercial, com o passar do tempo havia se transformado em sincera amizade. O especialista no trato com madeiras era bem mais velho que o fidalgo, e é por isso que lhe pedira, quando do seu passamento, cuidar da convocação dos filhos. Pela ordem natural das coisas, devo morrer antes de você, dissera-lhe. Não chegaram a fazer pacto de sangue, mas deixara escrito que o amigo deveria zelar pelo cumprimento dos seus desejos, e aplicação dos haveres em dinheiro que guardava em sacos escondidos em fundo falso de armário que ele mesmo fabricara para o objetivo. O grande volume de capital que acumulara nos últimos anos era mais ainda justificado pelos muitos trabalhos que fizera para decoração e para as festas da diocese. Esculpira várias imagens de Cristo, de santos da Igreja e, em especial, da virgem Maria. Da mesma forma muitas portas 112 Jairo Martins de Souza das igrejas da região levavam a sua assinatura. Faziam-lhe muitas encomendas. Inclusive contratos de fornecimento de estruturas de várias toneladas de peso que sustentavam pesadas estátuas de padroeiras conduzidas por centenas de fiéis em procissões festivas. Fora por essas e outras razões que destinava largas dotações para a escola de Duchamps, e para a instituição dirigida por Ribérry. Pensara nos filhos, mas não se esquecera de alguns desafortunados que chegavam aos montes. Um exemplo de sucesso que seguia, e que todos da comunidade citavam, era o caso do menino Martinho apoiado pelo amigo Monlevade. Era com tais atitudes que pensava retribuir à comunidade que lhe proporcionou parte do sucesso que havia obtido em vida. Deus te dê em dobro tudo que me desejares. Ademais não queria que nada dos seus esforços fosse disperso em vão. Não é a caridade o único tesouro que cresce ao ser dividido? Tinha muitas posses que, como explicado, ficaram sob responsabilidade momentânea do fidalgo. Foi o que tinha ocasionado o atraso de sua chegada à casa dos pais do sobrinho, quando do nascimento do futuro vigário geral. Em cidades do interior, as horas passam mais devagar. Tudo isso, Tisserand prosseguiu, fez parte daquela conversa de visita familiar ao recém-nascido vigário geral. E, indiretamente, pode ser aproveitado para dar-nos exata figura dos sentimentos de Felicité quanto ao envio dos filhos a Paris para aprendizado e estudos. Ela tinha medo intenso da solidão. Os meninos devem ir em busca do conhecimento e felicidade. Parece-me certo. Mas... e se minha filha se casa e segue com o marido para algum país longínquo da América do Sul? Era, como sempre foi, o lado feminino da questão. Já o fidalgo, desconsiderando-se suas próprias ideias a respeito, fora constantemente aconselhado pelo falecido marceneiro a que, como ele, incentivasse os filhos a buscar a vida pelo mundo. O homem que não viaja, caro Monlevade, é homem de um só livro. De uma só vida. De um só lugar. Perde a visão geral da criação. É fato conhecido que não pode sonhar por meio de imagens contadas por terceiros. O viajante verifica por si mesmo com olhos de ver, in loco! Se particularmente não procedi dessa forma é porque fiz opção de vida pelo amor da minha querida mulher. Ganhei a vida Jean Monlevade, do Castelo à Forja 113 com dignidade, mas tornei-me limitado. Se não pude, meus filhos o fizeram. Temos que criá-los para o mundo! O fidalgo concordara. Ele próprio, é bem verdade que por pouco tempo, estivera por outro continente e sabia da importância de conhecer outras terras e pessoas. Ouvira dizer que no Brésil... Bem, a sorte dos filhos homens estava decretada. E Maria Vitória? A menina é muito jovem ainda. Vamos ver. Vamos ver! Enquanto isso, entenda-se, enquanto o pai e o doutor Colbert conversavam, Jean ansiosamente circulava pelas laterais, pelas imediações e pelo jardim de Bogenet. Tinha ido até antiga ponte de pedras que passava sobre riacho próximo. Voltara acelerando o passo, temeroso de perder a chegada da moça. Ia e voltava. Verificara se havia marcas de sapatos no ponto de encontro. Pés de gazela. Nada. Não havia nada. Respirou com sentimento antagônico de alegria e tristeza. A partir daí resolveu não sair do local e aguardar pacientemente: fosse o tempo que fosse. No entanto, de cinco em cinco minutos consultava o relógio de bolso que pedira emprestado ao pai. Para matar o tempo, dias passados, havia desmontado parcialmente a engenhosa máquina do tempo para ver como trabalhava o seu mecanismo. Pensou sobre o assunto. Nada nele identificava as mãos hábeis do mago John Harrison, o relojoeiro da longitude, mas funciona perfeitamente, constatou satisfeito. E com isso o tempo passava. Passava. Ele consultava novamente o instrumento, mas Angéline não aparecia, conforme havia combinado com a irmã, Maria Vitória. Maria Vitória era bastante espirituosa e informara-lhe há pouco, buscando reduzir a ansiedade do irmão, que Deus tinha feito a mulher a partir das costelas de Adão... mas quem prepara verdadeiramente as meninas para a vida é o móvel chamado toucador. Jean sorriu contrafeito, não lhe agradava ver a irmã usar o nome de Deus em vão. Mas retrucou a brincadeira dizendo que não era bem assim. Na verdade, disse-lhe, o homem é que fora feito de partes da mulher. Não sabes, Vitorinha, que a primeira mulher tinha três seios e que deste terceiro é que o homem veio a ter origem? Gostava de ensinar à irmã, e pensou tomar proveito da oportunidade para lembrá-la que, bem antes de Cristo, Aristóteles ju- 114 Jairo Martins de Souza rava ser deus o motor imóvel do universo. Mas decidiu falar sobre o assunto em outro momento mais adequado. Estou muito agitado, atropelaria as palavras. A moça não surgia. Imaginou ficar na frente de Colbert e de joelhos pedir a mão da filha em casamento. Isso seria um desatino, mas consolou-se imediatamente lembrando-se que São Jerônimo dissera que o amor não conhece regras, amor ordinem nescit. Maria Vitória sabia da importância do encontro que engendrara com Angéline. Ouvira certa ocasião o pai comentar com Felicité que amor e negócios nunca devem ser misturados. Escutara a maior parte da conversa entre o pai e os tios Lavillate. Ficou constrangida, julgou que estivessem falando sobre os irmãos como se fossem algo frio, imaterial: um negócio a ser encaminhado com sucesso. Fora rigorosa! No entanto não é esse juízo especialmente próprio dos jovens? Jean também mal poderia imaginar que Angéline principalmente se atrasava por estar ouvindo conversa de adultos em que fora discutida inicialmente a sorte de François. E que a sua própria estava em pleno andamento, e prestes a ser concluída! Finalmente ouviu passos suaves sobre as folhas secas que, de certa forma, lembravam tapete de cor amarelo-verde que enfeitava naturalmente o caminho. Era outono. Os olhos azuis de Angéline iluminaram a face do rapaz que a saudou, desajeitadamente, com um singelo olá. Olá, Angéline! A moça sorriu. O que ouvira sobre os rumos futuros do rapaz, fez que viessem à tona sentimentos que sinceramente gostaria de expressar. Pensava gostar dele, tê-lo sempre por perto, e subitamente vira clara a possibilidade de isso não acontecer. Por outro lado... Bem, de Jean, já tomamos ciência de suas inquietações. Foi por isso tudo que, após alguns minutos de suave encantamento, começaram a conversar animadamente. Parecia que há anos se comportavam daquela forma. No alto da torre de Bogenet, o médico Colbert coçava vagarosamente os pelos do seu cavanhaque. Observava-os. Reflexivamente... Jean Monlevade, do Castelo à Forja 115 XIV 1806. Martinho faz planos Não é que fosse novidade para os franceses, mon ami! Desde 1789, cada ano que chegava apresentava-se recheado de surpresas sujas de sangue. O de 1806 não foi exceção! A começar pela invasão de Nápoles, a conquista de Varsóvia e a decretação do faladíssimo Bloqueio Continental para os países europeus e que, para os Brésiliens, desculpe, brasileiros, teve como consequência derradeira... o senhor sabe ter sido o motivo para que o príncipe João transferisse a capital do decadente reinado dos portugueses para o Brésil. Mas aquele ano, em particular, teve alguns belos atenuantes... Até meados do mês de maio fazia dois anos que Napoleão tivera seu código civil aprovado. O império mantinha-se abençoado por Pio VII. O casamento com Josefina seguia até o momento sem maiores atropelos... Vamos ver como fica tudo isso até os dias finais de dezembro. Também fazia um ano que o fidalgo Monlevade e a família estiveram em visita especial em Bogenet no dia em que, o senhor está lembrado, nascera o bebê Léopold. Na ocasião ficou também mais ou menos definido que François seguiria quase que imediatamente para Paris onde passaria a residir com a família do tio Guy de La Vilatte. Foi o que efetivamente sucedeu-lhe e, pelos relatos expostos nas cartas saudosas que o rapaz enviava para seus queridos, ele estava se saindo muito bem, inclusive sendo de grande valia para o andamento dos negócios do parente que, conforme propusera, o recebera de braços abertos. Felicité estivera algumas vezes de visita ao filho em Paris, mas não em número de viagens superior às que fazia normalmente ao longo do ano. Não era de vaidades extremas, mas gostava de ad- 116 Jairo Martins de Souza quirir vestidos e lingeries de acordo com as últimas tendências e padronagens da, mesmo que decadente, moda da corte. Coco Chanel demoraria mais de um século para exibir suas excitantes criações. Às vezes a mãe permitia que Maria Vitória a acompanhasse. Nessa altura a menina já se encantava com toda a movimentação da então mais importante capital dos europeus. Foi período em que Jean, ocupado com os estudos e trabalhos de apoio ao dia a dia do castelo, mal tinha tempo para atividades extraordinárias de pesquisas. Nem se diga dos encontros furtivos e juvenis engendrados em conjunto com Angéline e Maria Vitória. A irmã divertia-se colaborando com os dois namorados. Não obstante todas essas ressalvas e atribuições, o adolescente Monlevade fazia o possível para não se afastar dos amigos. E, por exemplo, mesmo não frequentando tanto o armazém de monsieur Platini e Fontaine, acompanhava-os a distância. Jurava para si mesmo não esquecer as lições que lá aprendera. Foi por mencionar o nome de Fontaine que Tisserand lembrou-se de atualizar-me sobre a situação do antigo marinheiro. E disse-me que, naqueles dias, o agora já experiente mercador exultava de felicidade. Pouco conhecia a respeito das origens de ditados e frases feitas, mas mais uma vez ficara confirmado que a união faz a força. Ambos haviam progredido e ele, especialmente, por deferência e gentileza de Platini, fora guindado à posição de sócio minoritário. Nessa nova condição é que lograram, após acordo firmado com o fidalgo proprietário do imóvel, ampliar bastante as pequenas instalações. Não precisaram dispender muitos esforços para levantar dois acanhados galpões de estocagem que possibilitariam melhores condições de atendimento aos seus clientes. Guardariam estoque bastante somente para três ou quatro dias de operação dos negócios do armazém. O restante, que fosse eventualmente necessário, seria provido por meio de acordo firmado com alguns fornecedores que também colaboraram para combinação de formas melhores e mais rápidas para atendimento aos seus pedidos. As mercadorias, Tisserand divagou, chegariam a eles por meio de sistema que nos dias de hoje chamaríamos de um primitivo e precário just in time. E o fidalgo Monlevade, o estrangeiro disse retomando sua história, novamente intercedera em favor dos amigos do filho, e Jean Monlevade, do Castelo à Forja 117 iniciara, inclusive, negociações para compra do imóvel. Como de outras oportunidades, mostrou-se pronto para fiar o negócio. Era essa a razão da alegria incomum de que dissemos Fontaine estar acometido. Martinho também acompanhava passo a passo o sucesso dos amigos já adultos e, mesmo que um tanto esquecido nessas anotações, procurava não arredar pé do lado de Jean. O rapazinho era fiel ao juramento que fizera em ser sempre grato, e fazer tudo ao seu alcance pela família Monlevade. Jamais se esquecera do episódio em que o fidalgo, que sabemos coxo, salvara a ele e a sua pobre família das garras do então jovem celerado, Thurram. E mantinha a mesma atitude em relação à própria família. Jamais se esqueceria dela! Muitas de suas noites eram dedicadas à lembrança dos pais e dos irmãos. Sonhava voltar a vê-los felizes e bem alimentados. Para tanto iria, jurava a si mesmo, percorrer terras e céus. A ida iminente de Jean para Paris talvez fosse a sua chance. Quando foi alijado da companhia dos seus, por meio daquele famigerado sorteio, sabia ser ideia do pai buscar trabalho em fábricas de acessórios da indústria de roupas parisiense. Havia muitos alfaiates na capital. Quem sabe o fidalgo também o encaminhasse para casa de algum outro seu parente? Tinha a seu favor a amizade de Jean. Não fosse suficiente, também poderia contar com a intercessão do abade Tibérry, de monsieur Platini, e do professor Duchamps. O propósito de Martinho não era estranho para Jean. Por efeitos de uma ou outra situação, ele já o havia percebido. No entanto ficara feliz ao saber das intenções diretamente do amigo. Não sei exatamente se seguirei o mesmo caminho que está sendo percorrido por meu irmão François, respondeu-lhe. Mas farei tudo que estiver ao meu alcance. Informarei à mamãe, e negociarei para que papai consiga também algo para você. No final disse que apenas aguardaria ocasião adequada para abordar o assunto com o fidalgo, seu pai. Teria que pegá-lo em bom momento. Martinho sentiu-se seguro e feliz, antecipando momentos de grande felicidade que, adianto, realmente vieram a acontecer. 118 Jairo Martins de Souza Jean Monlevade, do Castelo à Forja 119 XV O médico Colbert e o fidalgo prosseguem trocando ideias. Tisserand comenta rapidamente sobre falha nas intenções de Jean Muito do que acontece na vida de um homem desde seu nascimento até ser enterrado em uma sepultura pode ser justificado pelo modo como a sorte o tratou, Colbert disse. O fidalgo Monlevade não se atrapalhou com a afirmação que ouvira do amigo. Não fazia coro com os que julgavam ser o homem construído por uma ou outra ocorrência dramática em sua vida. Acreditava na superação, e que a existência, ou não, deste esforço é que realmente poderia traçar os destinos deste ou daquele indivíduo. Mas calou-se diante do rumo da conversa. Pensou em mudar assunto, deixando em aberto o seu seguimento. Interessava-lhe conversar com o amigo sobre Jean e Angéline. Não sabia como! Ambos pouco a pouco tomavam consciência de que o interesse que os filhos tomavam um pelo outro prosperava a olhos vistos. Não haviam chegado ainda ao compromisso do namoro... Jean era jovem e sabia buscar as coisas que desejava. Não demoraria muito para, após solicitar licença ao fidalgo, conversar a quatro paredes com o sogro Colbert. Depois pai e sogro se entenderiam! Então Tisserand disse-me que na realidade essas suas últimas frases tinham sido somente uma consideração para lembrar-me a formatação e o procedimento que se seguia para iniciar qualquer tipo de compromisso entre jovens de boa educação no princípio do século dezenove. O acordo final ficava por conta dos pais. Que, no caso, conversavam descompromissadamente (ainda que, em termos íntimos, digerindo possibilidades de compromisso entre os filhos), sobre questões polêmicas da sorte e do destino dos seres humanos. O fidalgo dizia ao amigo que de fato a sorte ajuda mesmo aos que trabalham certo. Antes de Lutero, comen- 120 Jairo Martins de Souza tou, camponeses podiam ser convertidos em bispos. Bastava que se tornassem ricos. Não concordo com Diógenes que, em passagem que citava Pítaco, relatou que nem mesmo os Deuses ousam lutar contra o destino. Ou contra a sorte. Esta última parte fica por minha conta e responsabilidade: não sou determinista. Tenha ou não o fidalgo ganho a discussão, era essa a filosofia que tentava transmitir aos filhos. Principalmente a Jean que, de todos, era o que mais se interessava por ideias que pudessem ser úteis na prática. Mas, em alguns aspectos, e devido à pouca idade, as que naqueles dias queria aplicar em sua vida eram absolutamente inconsistentes com os sonhos de Angéline. Estudar. Formar. Casar. Trabalhar. Até aí, tudo bem. E depois? Como o filho cumpriria desejo antigo de viajar para países distantes de que aprendera a gostar com as histórias de Platini e de Fontaine? Pouco lhe relatara sobre a luta que tivera nas Treze Colônias, mas os livros de sua biblioteca sobravam em informações, e propiciavam sonhos de aventuras, descobertas, pesquisas, viagens e fatos improváveis. Não se curvou Göethe diante da beleza dos altares esculpidos nas minas polonesas de Wieliczka? Daí, Tisserand concluiu, ter faltado a Jean análise cuidadosa de variável importantíssima. Ninguém é perfeito. Com a cabeça ocupada com tantos outros sonhos, esqueceu-se de levar em conta o fato de Angéline ser mulher. Uma jovem mulher. Portanto, não seria imprevisível que pudesse vir a surpreendêlo... Bem, é mais saudável não me adiantar novamente aos fatos. Jean Monlevade, do Castelo à Forja 121 XVI O fidalgo não antecipa mudança de Jean a Paris. Martinho é praticamente um Monlevade. A viagem de estudos ao país da bota Alguns poucos meses depois da mudança de François para Paris, o fidalgo recebera de Guy de Lavillatte uma longa carta em que este colocava-o a par dos estudos e comportamento do seu filho mais velho. Um perfeito relatório com até mesmo o preciosismo de inclusão de partes copiadas de boletim escolar. O tio Guy era zeloso, elogiava-o, e dizia do acerto de toda a combinação. Já lhe disse por várias vezes pessoalmente algo a respeito, caro JeanFrançois, mas minha sensação é que devo eternizar no papel essa feliz ocorrência, foi uma das coisas que comentou. O moço tem sido uma bênção para nossa casa! Mas não se resumia a tanto. Ele e a esposa Sophia declararam-se tão satisfeitos com primogênito dos Monlevade que estavam colocando as portas de sua casa também abertas para o jovem Jean. Tinham ciência, o fidalgo já lhes havia verbalizado intenção, bem, em breves dias, o rapazinho também necessitaria ampliar estudos em Paris. Aceitariam de bom grado o garoto Martinho como contrapeso: neste caso, o que poderiam discutir posteriormente seriam os custos de sua manutenção. A certeza é a de que teriam troco dobrado com a presença dos irmãos Monlevade. No mínimo, com essa atitude, compensariam parcialmente a grande dádiva que Deus lhes proporcionara ao ter François debaixo de seu teto. O moço relatara que se dava muito bem com o irmão, eram amigos, e também se dava bem com o apadrinhado do pai e, por fim, pelo andar da carruagem, todos contribuiriam para aumentar mais ainda a felicidade da casa dos Lavilatte! 122 Jairo Martins de Souza Estudariam o que fazer com Martinho, mas tudo, todas essas circunstâncias, estava ainda prematuro para tomada de posição. Foi o que o fidalgo e Felicité decidiram, após conversa com o professor Duchamps: o ideal seria que Jean terminasse o curso secundário em Guéret. Na sua cidade, dados os seus predicados, continuaria recebendo atenção privilegiada do mestre-escola. Aos 18, sairia para Paris. O próprio Jean argumentou que isso não significaria retardo em sua formação. Só não ressaltou para o pai que lhe agradava também manter durante mais esse período os rápidos encontros que tinha com Angéline. Estava certo em ambos os motivos. A começar que iniciara estudos sobre a língua grega e, para tanto, estava contando com ajuda de rapaz que, recentemente, havia chegado à Guéret. Conhecera-o ao vê-lo em animada conversa no Armazém da casa Platini-Fontaine. O grego era viajado e, em particular, aprendera o ofício de tapeceiro artístico na região do Marrocos. E estava em Guéret em situação aparentemente paradoxal. Pois as pequenas caravanas de carroças abarrotadas de móveis, que se deslocavam para outras partes do país, comprovavam que o desemprego no ramo da tapeçaria, setor forte da economia local, era crescente na região do Creuse. Muitos iam. Pouquíssimos chegavam! Entre esses, os membros da família Zavoudakis à qual pertencia o jovem grego que se tornara interlocutor e amigo de estudos de Jean. Pais, filhos e irmãos tinham habilidade fora do comum para ofícios artesanais. Para esse tipo de gente nunca falta trabalho, e logo se arranjaram em oficinas que produziam encomendas da burguesia de Paris. Kostas Kostas Zavoudakis era o seu nome. Jean perguntoulhe educadamente o porquê do nome dito em dobro, adiantandolhe ser admirador da cultura e da arte gregas. E mais ainda, para não ser confundido com gente curiosa, no mau sentido, antes que fosse respondido, contextualizou outras ideias e afirmou que um dos seus sonhos era conhecê-las in loco: tanto a cultura quanto a arte. Não fosse possível nas próprias ilhas gregas, talvez na Sicília que era mais próxima, e fora ocupada pelos descendentes de Pitágoras e Aristóteles durante largo período de tempo. O moço também sabia ser político. Bem, Tisserand prosseguiu, antecipo que Platini e Just Fontaine não conseguiram conter risada quando ao final, e juntamen- Jean Monlevade, do Castelo à Forja 123 te com Jean, ouviram explicação de que o nome do jovem grego originalmente não era bem assim. O erro fora do oficial da imigração! O funcionário distraiu-se quando da minha entrada no país e escreveu duas vezes meu nome, Kostas, complementando corretamente com o Zavoudakis. Quando chamei-lhe atenção, ficou nervoso, e disse impropérios. Depois se resumiu a tentar me convencer, exibindo regras e folhas de instruções, como seria difícil e trabalhoso acertar a situação. Daí tornei-me Kostas ao quadrado. Kostas au carré. Aliás, não tive somente prejuízos, quando assino por meio de rubrica, faço assim: Kostas2. O senhor pode imaginar, Tisserand comentou fazendo crítica social, se o mesmo poderia acontecer duzentos anos depois com o seu conterrâneo Onassis? Nunca. Isso só acontece com gente pobre. O bilionário marido de Jackie Kennedy jamais teria qualquer tipo de visa, de visto, com nome distraidamente duplicado! Kostas era um batalhador – Tisserand prosseguiu, retornando de mais uma de suas divagações – e o pago de Jean por suas aulas de grego ficava por conta de troco de igual teor. Ensinava-lhe tudo sobre a cultura francesa e, especialmente, a gramática da língua. Zavoudakis aprendia rápido. Dizia ser parente remoto de Domenikos Theotokópoulos, o El Greco, famoso artista que fora radicado em Toledo no século dezesseis. Jean suspirou. Tinha grande vontade de ver ao vivo o quadro da Adoração do Nome de Jesus do artista parente de Zavoudakis. Enquanto isso, não se descuidava também do latim. Começara inicialmente com o professor Duchamps. Depois, devido ao seu rápido avanço, chegara ao estágio da quarta declinação em poucas semanas, a tarefa ficara por conta de aulas particulares dadas pelo abade Ribérry. Afora uma ou outra lauta refeição incidentalmente tomada no castelo, o abade nada cobrava do fidalgo. Cuidava de retribuir sinceramente às generosas contribuições em dinheiro que recebia de Monlevade para cuidar dignamente das crianças do orfanato. Dinheiro. Ter e criar filhos custa dinheiro. Manter o orfanato zelado pelo Abade Ribérry também custa dinheiro. Os filhos miseráveis nos dias de hoje são como os peixes que a palavra de Deus disse terem sido multiplicados. Há alguns fiéis que, iniciando a vida de casal em condições adversas, gastam seus trocados 124 Jairo Martins de Souza com parcimônia inerente à situação. Isso é justo. No entanto, de acordo com a prática cristã, não se esquecem de usar parcela conveniente para educação dos filhos. Às vezes, à custa de muitos esforços, tornam-se remediados e, em alguns poucos episódios, até mesmo ricos. Casos raros. E é a partir daí que pode nascer o avaro. O avaro esquece-se dos filhos. Esquece-se também de filhos de outros menos aquinhoados que padecem pelas ruas das cidades e campos da França. Esquece-se da Igreja da mãe de Cristo. Esquece-se do dízimo sagrado. Esquece-se de compromissos assumidos. Tal espécie de gente, não os temos em pequena quantidade entre nossos ricos, vivem seus dias como mendigos, mas morrem com os colchões atulhados de moedas. Tratam o dinheiro como se fosse uma obra de arte que somente em casos especialíssimos pode ser tocada. Um bezerro de ouro. Quem ama o dinheiro tem dificuldade em amar seus filhos em toda a sua plenitude. Diz a bíblia, em Colossenses 3:5, Exterminai.... a avareza que é idolatria... Queridos irmãos em Cristo, em especial, dirijo-me aos pais que andam praticando esse pecado com seus filhos e com a comunidade, as estatísticas secretas do nosso confessionário... O senhor sabe, Tisserand disse, que no início do século dezenove as relações entre pais e filhos não eram nenhuma obra de Deus. Já fora pior. Dar-lhes um casaco significava quase o mesmo valor em francos do que dar-lhes um automóvel nos dias de hoje. O que o padre Mitterrand, auxiliar da diocese em trânsito pela cidade, disse em um domingo de julho de 1806 tinha como foco a importância de os pais investirem na educação dos filhos. Foi o que lhe relatei ao pé da letra faz pouco. Ele estava em vias de completar o sermão, e a missa se encaminhava para a liturgia final. E o objetivo de ter lançado aqui tais advertências, mon ami, é o de ter sensibilizado o coração do fidalgo Monlevade em relação ao amigo do filho, o jovem Martinho. Mitterand conseguira atingir sua meta dominical. A de tocar corações! Decerto houve tempo em que os filhos homens eram tratados como verdadeiros estorvos, e descartados pelas famílias sem maiores contestações e sofrimentos. Iam de uma casa a outra, aprendendo profissões enquanto atendiam como ajudantes. Por sua vez, os filhos das casas para as quais iam possivelmente estivessem em casas de terceiros e por aí vai. As meninas seguiam Jean Monlevade, do Castelo à Forja 125 roteiro diferente. Com algumas exceções: lembra-se do exemplo literário, daquele mesmo século, ocorrido com Cosette, a filha de Fantine, quando foi entregue para as garras da diabólica família Thenardier? Mas foi somente após concluída a fala de Mitterrand que o fidalgo Monlevade dissera em voz baixa, quase imperceptível, diretamente no pé do ouvido da mulher, Felicité. Não é que o abade visitante lembrou-me que preciso decidir sobre os custos da estada, estudos e moradia de Martinho em Paris? Decidi-me. Vou enviar carta a Guy de Lavillatte. Dir-lhe-ei que tudo correrá por minha conta. Martinho não precisará trabalhar, essa é a condição que deixarei clara. Para tanto dar-lhe-ei o mesmo valor de mesada que estipular para Jean. Não posso adiantar se ganhará bolsa do governo. Ah, Felicité, tirei um peso que não sabia existir nas minhas costas! Algo me dizia que devia auxiliá-lo mais radicalmente. Não me esqueço da triste noite em aquela família foi assaltada pelo então endiabrado Thurram... bem, água passada não move moinho de trigo, o fato a ser celebrado é que vamos tentar abrir as portas do mundo, e de algum liceu importante para aquele rapazinho. Daqui a três anos definitivamente irá também estudar em Paris! Desde então, este tempo passou com a velocidade impressionante com que vibram as asas de um beija-flor. E antagonicamente muitas coisas aconteceram: talvez seja o que o tenha feito passar despercebido. O fidalgo não era dado a perder oportunidades. Nem para si mesmo nem para os filhos. Portanto tinha olhos e ouvidos atentos para o que acontecia no mundo e, mesmo a contragosto, observava com visão analítica os movimentos do corso Napoleão por toda a Europa. Tinha algumas economias, joias e valores guardados de tempos passados e, a despeito de sua paixão pela terra em que nascera, surgiram-lhe ganas de empreendedor, não abriria mão de investir em outros países. Mais ainda na grande inteligência do seu caçula. O rapaz, conforme sabemos, estivera diligentemente estudando línguas estrangeiras, o estado da arte da ciência, assim como disciplinas ligadas à filosofia, à arte em si, à gramática, à dialética e à estética. Moço completo. Torna-se repetitivo dizer, a tudo aprendia com facilidade impressionante. E, entre tantas vontades, a que mais lhe chamava a atenção 126 Jairo Martins de Souza em termos práticos era o estudo de pedras e o desejo inesgotável de conhecer os segredos da natureza. Tinha os pés no chão, queria saber o que lhe fosse possível sobre onde pisava. A matéria estava debaixo e acima dele e pronta para ser compreendida, às vezes inalcançável. A luneta de Duchamps aguçava-lhe a curiosidade quando mirada para a Lua cheia: que tipo de pedra branca lá existe? Qual a do teto da caverna do dragão que luta com São Jorge? Fazia conjecturas. Articulava hipóteses. Não sabia que poderiam ter sido as mesmas rochas que haviam enterrado os dinossauros aqui na Terra. Nem poderia. Esses demorariam alguns poucos anos para serem achados em primeira mão, em 1858. Teriam sido deixados de fora da Arca construída por Noé à custa do gigantesco tamanho? Enquanto isso, o cachorro Breu resistia bem ao longo dos anos e o acompanhava a incursões semanais pelas redondezas para busca de pequenas pedras que o patrão gostava de ver sob vários ângulos de entrada de luz. Às vezes, sob licença expressa do pai, saía bem cedo nas manhãs de sábado e chegava até as fundições de Mondon. Mondon ficava próxima a Guéret. A França, mon ami, é pequena se comparada com o Brasil. Cerca de dezesseis vezes menor! Apreciava ver os fornos rudimentares e o fogo vermelho dos minérios que corriam para o estado final de transformação em ferro. Não ia sozinho. Martinho sempre o acompanhava. De lá só regressava quando a família já se preparava para dormir. Fazia isso, reforço, aos sábados. Somente aos sábados. Pois o domingo era prioritariamente reservado para passeios e ritos de religião com a família, e encontros furtivos com Angéline. Não obstante, enquanto esperava chegada de um destes momentos felizes de final de semana, mantinha os olhos firmes sobre leituras técnicas e fazia reflexões sobre a química de minérios e pedras. Não descansava. Tinha vários guias de materiais que o pai adquirira para ele em Paris. O pai também lhe dera parelha de cavalos fortes para que não tivesse problema com atrasos nos retornos de suas empreitadas. Como não poderia deixar de ser, havia um terceiro indispensável ao grupo, o Breu. Como também o Géo, o já velho burro de carga, que, às vezes, complicava-lhes a vida por sua lentidão. Mas era de inestimável ajuda para transporte de cargas mais pesadas. Jean Monlevade, do Castelo à Forja 127 Eram muitos os interesses do rapazinho. Como o pai, não perdia uma boa oportunidade!... A Itália era uma delas. No mês de agosto de 1806, o fidalgo havia observado, conforme já disse-lhe, certa movimentação de aplicação de recursos da burguesia francesa em compra de grandes propriedades no país vizinho que se encontrava em situação de penúria. Alguns dos seus contatos em Paris diziam-lhe, Monlevade, não deixes de tomar proveito da situação. Se demoras, os abutres já lá terão consumido tudo. A milenar região de Nápoles havia sido, há cerca de um ano, acometida por terremoto que liquidara quase 27.000 pessoas! A exuberante Itália, desde aqueles anos se sabia, primava pelo seu imenso acervo cultural acumulado ao longo de anos das mais variadas ocupações. Antes dos tempos de Cristo, os gregos lá haviam se estabelecido. É por isso que Kostas Kostas Zavoudakis havia dito a Jean que ele conheceria melhor o seu país se, ao invés de ir à própria Grécia, fosse ver os vestígios da cultura grega que existiam no Sul da Itália. Confirmara o que o rapaz já tinha estudado com afinco. Zavoudakis conhecia em detalhes o país dos romanos. Havia se encantado com suas estradas seculares. Todos os caminhos, todas as estradas da Itália levam a Roma, confirmava sorrindo. De uma só tacada, fica-se conhecendo as culturas romanas, são várias, e as gregas reunidas! Monsieur Platini havia concordado efusivamente, enquanto cortava algumas réstias de alho, e complementara com outras informações. A conversa se desenrolava no interior do armazém. Entretanto há muito Jean não mais somente ouvia. Frequentemente era convocado para dar opiniões sobre isso, sobre aquilo. O fato é que filhos de famílias nobres da Europa se dirigiam a Roma, Florença, Veneza, etc. para estudar, em pleno sítio, as civilizações que andaram dominando o mundo antigo. Diziam-se encantados, e a preço muito baixo. Ademais, como sabemos, Napoleão havia sido coroado rei da Itália em maio do ano anterior e o antigo advogado José Bonaparte, seu irmão mais velho, era o novo rei de Nápoles. A viagem fora longa. Muitas carruagens, cavalos e embarcações de pequeno e médio porte. Nestes, o Breu não abria mão de viajar na proa. Parecia desejar sentir antecipadamente o cheiro dos novos minerais que o dono esperava conhecer. Em Florença, o jovem 128 Jairo Martins de Souza Monlevade ficou horas esquecidas se encantando com as obras de arte expostas no palácio Uffizi. Enviou carta para Angéline a respeito. Foi por meio dela, Tisserand acrescentou saindo rapidamente do curso de sua história, que tomei conhecimento de algumas peculiaridades desta viagem do fidalgo com os dois jovens. Consta anexada aos escritos de Léopold, vigário geral. Não me dei ao trabalho de pesquisar como lá chegou. O senhor deve ter reparado, Tisserand comentou, que eu disse dois jovens. Não. Não errei. Realmente François não podia viajar na ocasião com o fidalgo: tinha obrigações em Paris com os Lavillatte e com a escola. Martinho. Martinho era o outro participante. O fiel amigo da família Monlevade fora convidado a participar da empreitada cultural cuidadosamente articulada por Jean e pelo fidalgo, seu pai. Vê-se que este vinha cumprindo, à risca, promessa feita durante andamento da missa do Abade Mitterrand! E foi tendo a companhia do rapazinho, que amargurara precocemente a perda da família, que Jean de Monlevade quisera saber tudo sobre as grandes pedras que construíram o Coliseu. Ficara perplexo com a beleza dos mármores que de lá foram retirados para construção de partes do Vaticano. Quando o texto das instruções era somente em latim, fazia cuidadosamente a tradução para Martinho. Queria compartilhar a satisfação do conhecimento de todos os detalhes. Assustou-se com a violência do Vesúvio, admirando-se com a preservação espetacular da cidade de Pompeia. Catava e colecionava pequenas pedras por todos os locais que passava. Às vezes comentava com o pai, ressentindo-se da ausência do seu burro carregador. Também cheirava-as mais a fundo quando, em determinados ambientes, era-lhe proibido entrar acompanhado do Breu. Em Taormina, na Sicília, deslumbrou-se com a vista magnífica das ruínas antigas de teatro romano, tendo como pano de fundo as águas então tranquilas do mar Jônico. Ao longe, o Etna, visto à noite, vomitava fogo lentamente. Jean espantou-se com a escuridão de suas lavas, e acabou também por coletar algumas amostras para estudos em casa. No final das contas, o fidalgo que entrara em contato com investidores e corretores locais, optou por deixar para outra oportunidade a eventual compra de propriedades italianas. Fora aler- Jean Monlevade, do Castelo à Forja 129 tado que o futuro político da grande península itálica prenunciava-se tortuoso. Então me pareceu que Tisserand carecia de um bom copo de água, pois, praticamente sem respirar, havia falado durante longo período de tempo. Adivinhei! Ele sugeriu a busca de uma garrafa, mas antes disso, pretendia esticar somente mais um pouco para concluir o que chamou de a primeira parte de sua história. Assim fez. E disse que, às vezes, não é importante conhecer tudo o que aconteceu em período de tempo de um ou mais anos. Vale mais saber os resultados em breves momentos que vivemos, ou escrevemos. Circunstâncias como essas justificam o fato de, nesse ponto, nos depararmos com a carta de solicitação da entrada de Jean na Politécnica de Paris! 130 Jairo Martins de Souza Jean Monlevade, do Castelo à Forja 131 XVII O fidalgo busca informações. A carta para Paris. A Politécnica de Monge e Carnot Guéret, 16 de Janeiro de 1809. Exmo. Senhor Professor Monge, Permita-me apresentar-me por mim mesmo. Meu nome é Jean-François Dissendes de Bogenet e sou irmão de Philippe de Bogenet e François de La Villate. Eles o têm em alta conta e é, indiretamente, por meio deles que venho até vossa ilustre presença para uma solicitação. Tenho dois filhos, François, 19 e Jean Antoine, 17. O primeiro já está encaminhado, e busca elevação de espírito e mente aí em Paris. É sobre o segundo que pretendo falar-lhe. Meus irmãos estiveram com o senhor na celebração alusiva à posse do bispo Dubourg como representante da Igreja de Pedro na região de Limoges. Nela excepcionalmente esteve inclusive nosso imperador Bonaparte. Bem, o fato é que conversaram sobre possível entrada do meu Jean no quadro de alunos da Politécnica. Elogiaram-no. É deste tipo de jovem que estamos carentes, foi resposta dada por Napoleão, acompanhada por sorriso amigável e bilhete para busca de melhores informações. A orientação foi a de procurar o senhor conde Laplace no Ministério da Educação. Foi o que fizeram. Mas não deu certo! O referido estava em reunião de trabalho com certo funcionário do governo português enviado pelo princípe-regente João. Felizmente, lá um alto assessor do estado disse-lhes para dirigir-me diretamente ao senhor. É o que faço. Ele reparara que a parte superior do envelope pardo, que um dos meus irmãos carregava, estava marcada com selo imperial. Caro professor, não sou afeito a pedido sem sustentação, assim como tenho conhecimento do rigor com que Vossa Senhoria conduz atos públicos... O que necessito é previsão da data dos testes orais e escritos. Há uma agenda nacional para tanto? O tempo urge para que meu filho Jean faça os estudos pre- 132 Jairo Martins de Souza paratórios... Em anexo, além de histórico escolar, que demonstra a excelência do rapaz nos seus estudos secundários, segue depoimento do professor Duchamps da escola pública de Guéret. Ele é testemunha da excepcionalidade do meu rapaz desde tenra idade. Antecipadamente agradeço por vossa preciosa intercessão e rápido envio do que lhe solicito. Amistosamente, Jean-François Dissandes de Bogenet. Jean Monlevade, do Castelo à Forja PARTE 2 Paris 133 134 Jairo Martins de Souza Jean Monlevade, do Castelo à Forja 135 I Onde se explica o porquê de Jean e Martinho terem se instalado na casa de Septimus e Lucillia Pius Não. Não estou ficando fora do meu perfeito juízo, Tisserand alertou. Nem batendo martelo na cabeça de prego já perfeitamente alojado na madeira. Já disse, mas insisto que, dependendo da situação, não é impositivo saber em detalhes o que aconteceu antes da ocorrência de determinado fato. Vale mais o resultado e o momento presente. A notícia do jornal disse que o carroceiro esfaqueou um torcedor de outro clube à custa de simples troca de ofensas. O homem morreu. O agressor foi linchado por populares. Nada mais interessa! Não é razão suficiente para convencê-lo? Então troco mais ainda em miúdos, lembrando que o próprio Brésil discute até os dias de hoje se Capitu traiu ou não o marido Bentinho. Discute-se o possível resultado. Mas não diz das razões que a poderiam ter levado aos braços do, por final, afogado Escobar! Reconheço, Tisserand contemporizou, há casos em que não pode ser desta forma. Uma primeira consulta médica é um exemplo. Por conveniência da instrução do próprio ato clínico, o profissional teria que ouvir toda a história do paciente até o aparecimento do sintoma e doença. No entanto isso não acontece. O relato do doente é usualmente interrompido num tempo médio de dezoito segundos! Então é de forma bastante breve que, a despeito da importância do assunto, abordarei o porquê de encontrarmos Jean Antoine, Martinho e Kostas em vasta casa de dois pisos na Rua Saint Jacques em pleno Quartier Latin de Paris. Pode ocorrer mal-entendido, mas com economia de palavras, certamente evito maiores constrangimentos. Os proprietários eram Septimus e Lucillia Pius. A data é algum dia de julho de 1809. Algo acontecera, pois 136 Jairo Martins de Souza a proposta inicial é a de que pelo menos Jean e Martinho fossem morar com Guy e Sophia de Lavillatte juntamente com François que, sabemos, já morava na capital. Diante disso, mon ami, faz-se necessário tomar conhecimento de que Sophia adoecera, de um momento para outro, de mal nos pulmões que havia se tornado crônico. Não curava. Não era questão de vida ou morte, mas acabara por levá-la a estado de tosse constante e fáceis crises de irritabilidade. É por tal sensação contínua de desconforto que ela, por toda a vida, pessoa de modos dóceis e receptivos, começou a implicar com tudo e com todos. Até com casal de rouxinóis que costumava ficar em árvore próxima à janela do seu quarto. Temeroso de que, com a chegada dos novos moradores, a saúde da mulher fosse se complicar, e até colocar em risco a vida harmoniosa do casal, Guy de Lavillatte se antecipou. E de fato colocou os joelhos no chão. E orou. Orou muito. Após poucos dias veio-lhe a resposta em sonhos, reforçada por conselho do pároco da diocese à qual pertencia. Caminhassem as nuvens para a direção traçada, não teria condições de prever dias de céu claro para o seu lar. Portanto, entre outras iniciativas, adiantou carta ao fidalgo Monlevade relatando-lhe o real risco que poderia se colocar caso fosse concretizado o combinado. O fidalgo compreendeu. Não poderia, nem por sonho, ser agente e provocar quaisquer possíveis desentendimentos ao casal a quem tanto queria bem. Coloquei-me na sua posição, e a partir daí posso garantir-lhe que não fico nem um pouco chateado, caro Guy. Tenho consciência das dificuldades de se ter debaixo do mesmo teto amigos ou parentes que, a despeito de todo desejo de adaptação, trazem consigo hábito e modo de vida diferentes. Isso sem considerar a perda de privacidade. Há tempo hábil para outras soluções. Não tão boas, admito, mas saudáveis o suficiente. O que não pode ser feito, não pode ser feito! Já lhe devo em quantidade suficiente pela recepção amorosa que teve o nosso querido François. Foi o que resumidamente respondeu ao primo. E mandou a carta. Eram parentes, sempre foram amigos, e não restou mágoa quanto ao assunto. O fidalgo não mentira. Sabia ter alternativa ainda a explorar e, para aplicá-la, aguardaria um pouco mais. Mesmo porque não havia recebido retorno da carta enviada à direção da Politécnica e do seu diretor Monge. Jean Monlevade, do Castelo à Forja 137 Asseguro-lhe, Tisserand disse, enquanto olhava-me diretamente nos olhos, que o vigário geral não rasgou folhas de suas anotações. Não havia motivo para tanto. Mas o tal processo durou meses, e é uma pena que aqui tenha que ser reduzido a algumas miseráveis linhas. A Escola de Trabalhos Públicos nasceu a partir de esforços de figuras de peso saídas dos quadros da inteligentsia francesa dos finais dos setecentos. Foi tudo muito rápido. Em dezembro de 1794, abriu as portas para seus quatrocentos primeiros alunos de níveis totalmente diferentes. A grade de ensino e o fardamento os equalizaria. Um ano depois passou a ser chamada de Polytéchnique, Politécnica. Já disse, Tisserand prosseguiu com ar de quem pede desculpas, que alguns iluminados engendraram a sua fundação. Volto a repetir porque, entre eles, estava o famosíssimo Monge, autor da bíblica Arte de Fabricação dos Canhões. E avisou. Vou me estender um pouco sobre esse homem, pois Gaspard Monge foi um ídolo não somente para Jean, como também para todos os demais politécnicos. Há anos passados, ensinava a chamada Teoria das Fortificações em outra escola militar. A Fortificações consistia em projetar métodos de defesa para que nada ficasse exposto ao fogo direto do inimigo. Isso gerava esforços aritméticos intermináveis. Até antes de Monge... este homem veio ao mundo com o dom da simplificação. Eliminou os tais cálculos, daí criando bases para elaboração da então intrigante geometria descritiva. O tridimensional podia ser visto em um só plano. Com um só desenho o trajeto de um projétil de canhão agora podia ser representado, com todas as informações, em uma simples folha de papel. Soldados inimigos não conseguiriam entender de pronto os projetos de armas francesas desenhadas com a nova técnica. É por isso que foi mantida a sete chaves durante quinze anos. Somente veio a público em 1794 que, como lhe disse, foi o próprio de inauguração da Polytéchnique. A chamada geometria descritiva tornou-se disciplina da grade curricular e foi uma das paixões de Jean durante o período em que esteve envolvido com engenharia e seus desdobramentos civis e militares. Monge morreu, em 1818, desprezado pelo renascido regime dos Bourbon. Reforço que, além dele, outros grandes nomes da ciência, como Fourcroy, o médico que ajudou a criar os nomes da química tal como conhecidos ainda hoje, foram fortes colaboradores da Polytéchnique. 138 Jairo Martins de Souza E também não posso omitir algo da verdade da época, Tisserand prosseguiu, pois de acordo com documentos das chancelarias estrangeiras, datados de janeiro do mesmo ano em que a geometria descritiva foi explicada ao mundo, ficava bem claro que a recém-declarada república francesa tinha inimigos fortíssimos dentro e fora de suas terras. Os reis europeus não viam com bons olhos o novo Estado francês, que tinha um rei fraco e submisso aos excessos do Terror. O clima era de desespero. O país precisava se defender e faltava-lhe corpo de engenheiros militares para construção de fortes ao longo de suas fronteiras. E fabricação de armas. Então, em março daquele ano, o Comitê de Saúde fez criar comissão para arquitetar as bases do funcionamento de uma nova escola. E que acabou sendo, em termos finais, a Politécnica da qual já disse. Escola de altíssimo nível que tinha não somente caráter militar, como também método de ensino conformado para gerar funcionários dedicados ao Estado em todos os seus segmentos. Das armas e da burocracia. Escola eclética. Na parte básica estudarse-ia o Direito, as Ciências Naturais, a Arquitetura, a Ciência, a economia Política, a economia Florestal, a Mineralogia, o Paisagismo, enfim, tudo que fosse de proveito para formação integral do engenheiro militar. A princípio o local das aulas foi determinado como o Palácio Bourbon, Palais-Bourbon. Os professores não deveriam ter outras credenciais senão a de estar entre os maiores nomes da ciência da época. Grandes cérebros ministrariam aulas na instituição. Outros seriam formados na própria. Fábrica de gênios que, por princípio, não seria exclusiva para a nobreza. Deveria ser obrigatoriamente democrática, de acordo com os caminhos da equalité, uma das cláusulas pétreas da Revolução. A seleção seria por meio de concurso aplicado em todas as regiões da França. Dificílima! A Polytéchnique era o sonho de Jean. Ela era algo, Tisserand disse, guardadas as devidas proporções, como o respeitadíssimo ITA que vocês têm aqui no Brasil. Uma escola militar de referência na engenharia e na disciplina. E é por ser assim, e à parte a decisiva troca de correspondências entre o pai e o tio Lavillatte, que Jean prosseguia vida de estudos, trabalho e pesquisas. Preparava-se. Não deixaria de seguir para a Politécnica. O fato de ser dirigida por militares e Jean Monlevade, do Castelo à Forja 139 seus alunos fazerem parte de corpo de reserva das forças armadas não lhe trazia qualquer constrangimento. Preparava-se com afinco para os exames de admissão que selecionaria a elite dos alunos do país. A perspectiva de envergar o uniforme de gala com todos os paramentos militares fazia-o sorrir discretamente. E enquanto contava os meses para iniciar arrumação de baú de mudança para Paris, os domínios de Monlevade funcionavam como seu laboratório avançado de campo. Procurava ligar o útil ao agradável. Adiantava soluções para dores de cabeça simples do quotidiano e, para tanto, procurando bases em matérias futuras que, em breves dias, estaria desenvolvendo na Politécnica. Quando alguns serviçais se queixaram da quantidade de ratos que ameaçavam as colheitas, ele acalmou-os dizendo que rapidamente amenizaria o transtorno. Felicité não aplaudira a função que lhe fora delegada pelo fidalgo. Não lhe agradava ver o filho ligado a tarefas menores em tempo que poderia estar sendo usado para estudos. Ledo engano. Bem, não é que para dar cabo da missão o rapaz não usasse métodos arcaicos. Entretanto procurava desenvolver outros que lhe proporcionassem maior eficácia. Pedradas. Pedradas não lhe agradavam. Não obstante ter destreza e pontaria de atirador de elite é morte doída até mesmo para um roedor. Foi aí que aplicou métodos estatísticos, e os resultados deram a ele o número correto da população de gatos. Não foi suficiente. Mas foi nova oportunidade para vazar seu notável intelecto. Talvez até perdendo-se em excessos ao que hoje, em termos de engenharia, chamamos qualidade necessária. Ah, o serviço de um tatu não pode ser substituído por perfuratriz automática. Assim o jovem talento carecia de refino a ser futuramente encontrado na Politécnica. O fato é que desenvolveu algumas ratoeiras com molas mais fortes, procurando adaptar princípios bem sucedidos e utilizados no projeto da letal guilhotina. Não pensem ter sido tal tarefa fácil! Já se envolveram com desenhos de peças e cálculos de forças armazenadas em molas, vantagens mecânicas, contrapesos, inércias, etc.? Com elas, num piscar de olhos, aniquilava ratazanas de porte. Mas a custo altíssimo por morte! 140 Jairo Martins de Souza Na adolescência do Jean de Monlevade ainda não existia a fotografia. A silhueta era um tipo de representação em que apenas o perfil das pessoas era desenhado em papel preto. Depois se recortava. Na mostrada acima, baseado nas descrições de Tisserand, imaginei a figura do rapazinho Jean conversando com o fidalgo, seu pai, sobre intenção de projeto de ratoeira que planejava colocar nos celeiros do castelo da família. Observar a postura do pai com a perna direita avançada. Com isso reduzia dor causada por antigo ferimento de guerra. Jean Monlevade, do Castelo à Forja 141 Não tenho dúvidas, Tisserand comentou, de que não seriam bem sucedidas comercialmente pelo excesso de polias, mecanismos e mão de obra para fabricação. Tanto é assim que, mesmo com todos os seus esforços, as armadilhas não eram suficientes para suprir a demanda, assim como a quantidade de queijo a ser usado como isca. Até chegar ao Quartier Latin e a Septimus e Lucillia Pius, Jean ainda criou várias outras melhorias na vida do castelo. A começar pelas articulações das carroças e as peças de madeira para prender animais aos arados, assim como ferramentas que atendiam ao pessoal. Imaginou também irrigação à base de rodas hidráulicas. Mas foi quando estava em vias de remediar uso dos dejetos das pocilgas que, finalmente, vieram as provas escritas de admissão nacional para a Politécnica. A comissão de selecionadores esteve em todo o país, inclusive em Guéret. Para os testes orais e a entrevista final, Jean foi convidado a comparecer a Paris. Martinho o acompanharia e, para tanto, não era mais somente Martinho. Era Martin Eugène de Monlevade! O fidalgo, após meses de sonhos e lembranças da oportunidade em que conhecera o jovem abandonado, decidiu emprestar-lhe o nome. Era sua cota de participação que julgava ter com a sociedade que lhe proporcionara tantos benefícios e concessões. Conversou com o juiz de paz da região, daí surgiu documento em que assumia atrasadamente a paternidade do menino, mas sem direitos de herança e outros compromissos formais. Martinho se alegrou. Não porque iria se esquecer dos pais de sangue. Não. Desses nunca se esqueceria. Mas o nome Monlevade abrir-lhe-ia outras oportunidades para o mundo. Foi já nessa condição que juntos dormiram a primeira noite em Paris no quarto de François. A adoentada tia Lavillatte estava fora por alguns dias e a visita temporária dos dois não traria transtornos para o marido. Os irmãos mataram saudades, por meio de horas de conversação madrugada adentro. A luz de lamparina contemplava-os quando finalmente cediam às pescoçadas e ao sono pesado. O Conde de Péluse era, em suas origens já distantes, filho de um mascate amolador de facas. Tratava-se nada mais nada menos que o professor Gaspard Monge. A carta que o fidalgo Monlevade lhe enviara meses atrás não havia rendido nada de prático. Afora a cortesia da resposta do homem que parece ter sido o único pelo 142 Jairo Martins de Souza qual Napoleão teve genuína amizade, o conteúdo afirmava que todos os franceses teriam chances iguais de acesso à Politécnica. Asseguro-lhe, caro Monlevade, que seu estimado Jean não será tratado como exceção. Basta aguardar edital público previsto... Amistosamente, Gaspard Monge. Não podia ter sido melhor. Por várias razões. A primeira foi a de Jean ter sido aprovado nacionalmente no quinquagésimosegundo lugar. Já a impossibilidade de alojamento definitivo com os parentes Lavillatte fez com que os Monlevade recorressem à própria Politécnica. Considerando-se os altos interesses nacionais, comitês do governo percorriam as casas próximas ao Palais Bourbon, convocando os moradores a receber os jovens estudantes como se parentes fossem. Uma doméstica não pode se dedicar totalmente ao trabalho na casa de madame quando, em casa, os filhos padecem por falta de leite e pão. Assim o governo definiu, Tisserand esclareceu – obviamente, mudando o que deve ser mudado – que, na Politécnica, os estudantes não poderiam sentir aflições por falta de dinheiro. A diretoria estabeleceu que os noviços recebessem ajuda de custo de 15 sous por dia. Era a remuneração de um atirador de canhão de primeira classe. No fim de 12 meses o salário total deveria chegar a um mínimo de 900 francos. Além disso, deveriam ter hospedagem gratuita de boa qualidade às vezes ofertada pela própria comunidade. Foi por isso que o importante diretor de estudos da Politécnica, Gardeur-Lebrun, esteve na casa de Septimus e Lucillia. Acompanhou-o monsieur Chaussier, o médico inspetor de residências de candidatos a alunos. A visita de inspeção foi facilitada pelo fato do dono da casa ter sido um veterano professor de matemática no College de France. Em 1794, os Pius, certamente um casal de patriotas que, infelizmente, tinha perdido três filhos na campanha da invasão da cidade holandesa de Maastricht, haviam se colocado novamente à disposição do Estado. Como consolo e incentivo bastante para prosseguir vivendo, restaram-lhes outros três que não mais ali moravam. A habitação e os proprietários foram aprovados com louvor. O conforto disponível superava as demandas espartanas listadas na papelada da instituição. Como vimos, foi para onde Jean e Martinho foram encaminhados. Jean Monlevade, do Castelo à Forja 143 E quanto aos estudos de Martinho? Indaguei, abruptamente, a Tisserand. Foi para o Lycée Napoléon, Tisserand respondeume. É escola também famosíssima pela qualidade de ensino. Sua edificação principal é magnífica! Aliás, e muito a propósito, não se pode compreender a arquitetura de hoje daquele liceu sem conhecer as bases de sua história. Ela permanece escondida nas celas da milenar abadia de Santa Genoveva, e que há séculos foi estabelecida no Quartier Latin. O prédio do Lycée Napoléon fora propriedade da Igreja: mais uma das que estiveram sequestradas pelos comandantes da revolução. Pois suas instalações foram usadas como sede da Escola Central do Panteão. Ela deveria fazer, e fez, parte de plano para rede de ensino secundário que, na ocasião, deveria ser implantado em todo o país. Inaugurada em 1796, foi a primeira delas, e tinha o perfil que se encaixava sob medida para jovens franceses como Martinho. Aí está a resposta completa à pergunta que eu lhe fizera. A comissão do governo concordou em admiti-lo naquela escola Central, e o jovem, relativamente receoso (secretamente temia não dar conta do recado), aceitou o desafio proposto pelo fidalgo Monlevade. Foi por isso que também teve a felicidade de ficar com Jean na casa dos Pius. Localização privilegiada. De lá divisavam bem próximas a Praça do Panthéon, a austera universidade Sorbonne, o Collège de France... E tudo a poucas quadras de algumas pontes do Sena. Por tais circunstâncias é que dois meses antes do início das aulas Jean e Martinho – um aos 18, o outro aos 15 anos – podiam ser vistos caminhando incansavelmente pelas ruas do Quartier Latin. De Kostas, que era, estão lembrados, em termos oficiais, Kostas Kostas Zavoudakis, falo depois. É história longa... Os primeiros dias foram de total encantamento. Estavam em agosto de 1809 e Paris continuava efervescendo não somente com o andamento das guerras Napoleônicas, como também com outros acontecimentos que vinham mudando precipitadamente a vida social do país. Ainda em Monlevade, Jean havia percebido, e sentira as mensagens dos sinais da fumaça. Agora me encontro exatamente onde o fogo queima. Nas praças e ruas do quarteirão latino o povo discutia acaloradamente. Estudantes e professores conversavam excitados em latim. Soldados, burocratas, ministros e oficiais cruzavam aquelas ruas quase sempre apressados. O jovem de Guéret estava absolutamente fascinado com sua vizinhança. 144 Jairo Martins de Souza No antigo platô da Praça do Panteão, não se cansava de ver a igreja que fora construída para homenagear Santa Genoveva, Sainte-Geneviève, a padroeira de Paris. Lembrava-se das chaminés das fundições de Mondon, a algumas dezenas de quilômetros de Guéret. Imaginava se Santa Genoveva poderia ter a alma de suas paredes totalmente construída de ferro. Ele é eterno quando colocado dentro de algo que o protege do ar atmosférico. E é mais leve que pedras... É bem verdade que a Revolução transformara a catedral, por decreto, em ambiente para enterrar heróis nacionais de seu interesse. Mas não destruíra nada de sua grandeza arquitetônica. Não importando sua destinação, o edifício foi o primeiro grande monumento em estilo neoclássico. De seu alto vislumbra-se toda Paris. Foi daí que Tisserand lembrou-me que, por várias vezes, já tinha dito sobre a execrável atitude de confisco de bens da Igreja Católica. E que era por isso que as ossadas de Voltaire e Rousseau já estavam enterradas nos domínios de Sainte-Geneviève nos dias em que Jean transferiu-se para Paris. E que pelo mesmo motivo era usada para outros fins. Bem, antes de fechar o assunto, não podia deixar de registrar novamente o que algumas pessoas talvez não saibam. Pois, de certa forma, já mencionara que foi no extremo superior da cúpula da mesma Sainte-Geneviève, digo, do Panteão, que, anos mais tarde, em 1851, o habilidoso leigo Léon Foucault fixou seu pêndulo e, finalmente, deu por encerrada a eterna discussão se a Terra movia ou não... Sim. Ela se move. Foi com pouquíssima ajuda que montou um verdadeiro espetáculo científico. Digno de figurar em quaisquer dos shows do Cirque de Soleil! Tisserand acrescentou. Tenho orgulho desse patrício! O já morto Galileu ser-lhe-ia profundamente grato. Não era um herege, um bruxo, o seu E Pur Si Muove,... Bem, não havia como a Igreja prosseguir dando murros em ponta de faca: o pior cego é o que não quer ver. Então, como vê, Tisserand prosseguiu, desde séculos passados podia-se gastar muito tempo, e de diversas formas, apreciando o Panteão francês e seus segredos. Portanto não é novidade que Jean, às vezes acompanhado por Martinho, passasse horas observando seus mistérios e refletindo sobre a grandeza das vidas dos homens que repousavam em suas catacumbas. A lembrança de Angéline ia se esvaziando lentamente dos seus pensamentos. Jean Monlevade, do Castelo à Forja 145 II As razões dos temores de Colbert quanto a Jean e Angéline. O confessor Ribérry Desde a ocasião festiva em que estivera no castelo Bogenet, em abril de 1805, o médico Colbert não chegava a um acordo consigo mesmo sobre um possível futuro casamento entre sua Angéline e o filho do fidalgo Monlevade. Na ocasião, disfarçadamente, observou-os com cuidado. Inclusive, estão recordados, a distância do alto da torre de Bogenet. O moço fazia a filha sorrir. Era um bom sinal, mas achava que... Colbert, por tudo que ouvira sobre o jovem Monlevade, acreditava que em breve ele escaparia pelas estrelas. Com inteligência privilegiada, era decididamente um homem do mundo. Achava difícil, com todas as perspectivas e apostas que os habitantes da cidade faziam dele, que pudesse vir a sentar praça e simplesmente ser um pai de família que viesse para casa após expediente, cuidasse dos filhos e desse atenção à mulher. Angéline era delicada. As mulheres de sua família eram educadas para serem paparicadas. Algumas até mesmo tinham grave tendência à depressão. Choraria baixinho noite adentro até ceder abatida pelo cansaço. Não suportaria aguardar o marido em casa e, quando esse chegasse, fosse se dedicar a estudos e experiências queimando lamparinas ainda que os galos estivessem cantando o alvorecer. Conhecia a filha. Sofreria dor física tal como estivesse sendo picada nos cotovelos por enxame de abelhas. Era partidário das famílias modernas em que o pai ajudava a mulher a trocar panos molhados dos filhos, a jogar farinha de trigo em suas assaduras, a socorrê-los quando chorassem nas madrugadas. Em sã consciência não deveria ter qualquer tipo de restrição ao rapaz. Era moço limpo. Asseado. Instruído e filho de fidalgo. Sujeito de futuro. Tinha tudo para dar certo e ganhar com sobras para alimentar bem mulher e filhos. 146 Jairo Martins de Souza Tais circunstâncias seriam suficientes para Angéline? Seria a paixão de menino amadurecida em amor de homem e pai de família. Hoje é fácil amá-la. Minha filha é linda e desejável. Mas, e quando estiver desgastada pelos anos e carregada de filhos que a família Dissandes de Bogenet era pródiga em gerar? Teria tempo disponível para relaxadamente tomar taças de vinho de qualidade com o sogro? A vontade de Colbert era acompanhar a filha e os, se Deus assim o desejasse, possíveis netos. Não fosse assim, provavelmente tornar-se-ia um velho solitário: o que lhe seria custoso, pois não tinha queda para vida de ermitão. Com todo esse peso no seu imaginário, quando muito angustiado, buscava consolo nas palavras de Mateus no seu dito evangelho da Igreja, não vos preocupeis com o amanhã, basta a cada dia o seu próprio mal. Conversara superficialmente com o abade Ribérry sobre o assunto. Não o fizera a título de segredo de confessionário. O abade tentou tranquilizá-lo, mas não deixou de dar-lhe razão quanto à índole expedicionária do rapaz. O desejo de pesquisar novas terras e seus minerais. Ambos lembraram-se do seu retorno de viagem ao país da bota, à Itália, que fizera com o pai. Platini e Fontaine diziam a todos os clientes do entusiasmo que havia gerado em Jean para conhecimento de outros novos mundos. Que pai seria esse para seus netos? Apesar das ponderações do abade Ribérry, o médico, à medida que a conversa avançava ia criando quimeras e barreiras absolutamente intransponíveis para os dois jovens. Fora pai que zelara tal como se uma mãe fosse, não apenas quando esteve sem o devido anteparo da mulher, mas porque realmente pensava que casamento e família deviam agregar todos aqueles valores e comportamento. É por isso que sua alma ficava intranquila quando pensava no assunto. A conversa com o abade não lhe trouxera consolo. Seguiria, por tempo que só Deus sabe quanto, com suas ansiedades. Pois outras havia. A que mais lhe incomodava, isso ele não citou a Ribérry, é que ainda não havia descartado a ideia de sair pelo mundo afora. O próprio pai de Jean, o fidalgo Monlevade, fora portador de proposta do governo português. Precisaria pensar mais sobre o assunto. Quanto aos jovens, com a partida de Jean para Paris, Colbert acreditou que a situação realmente se aclarara. Bem, ainda que o rapaz se mantivesse em Guéret, eles não namoravam de forma Jean Monlevade, do Castelo à Forja 147 oficial e, agora, com a distância... o rapaz formalmente não solicitara seu consentimento. Isso eventualmente o chateava. Para ele o fato era mais que um deslize, qualificava-o como uma verdadeira ousadia. Como se atrevia a tanto? A vida às vezes nos apresenta algumas vicissitudes que mal conhecemos, mas que podem se tornar algo fundamental para a felicidade de determinados períodos de nossa existência,Tisserand comentou. Pequenos mal-entendidos podem desaparecer com a simples menção, por um terceiro, de outra circunstância totalmente alheia aos fatos. Veja só o caso de Colbert e o jovem Monlevade que, agora, contava 18 anos completos. O médico era homem de caráter exemplar. O moço também. Por ausência da mera formalidade, da qual já dissemos, tinham relação totalmente envenenada pelos ciúmes e pela formação do mais velho. Bastava que se lembrasse do tal fato para Colbert tornar-se totalmente envolvido e angustiado com seu estado. No fundo sentia estar injustiçando o rapaz e sofria com a ingestão do seu próprio fel. O jovem tinha o futuro sogro em alta conta. Respeitava-o. Não sabia ser causador do desatino. A situação pedia a presença de um mediador: foi o que incidentalmente aconteceu! Pois dias antes de partir para Paris, Jean foi à igreja, fora dos horários de presença maciça de público, e pediu ao abade Ribérry tempo especial para atendê-lo no confessionário. Ribérry titubeou. Pensou pedir que o jovem voltasse outro dia, mas acabou cedendo ao olhar suplicante do amigo do seu protegido Martinho. O padre Chirac, titular da igreja, estava em viagem especial a Roma e Ribérry cobria-lhe temporariamente as funções eclesiásticas. Andava exausto, dormia pouco, mas encarava o fato como mais uma missão de rotina. Eram muitos os órfãos e famílias necessitadas espalhados pela região, enfim, enquanto descansava, carregava pedras! Então o abade pediu-lhe para aguardar alguns minutos, pois tinha recebido aviso de visita urgente na Sacristia. Poderia ser caso de vida ou morte. Ia atendê-lo logo após. Enquanto aguardava, Jean sentou-se em banco da igreja, próximo ao altar e logo caiu absorto em pensamentos. Não. Não meditava sobre o assunto que o trouxera até Ribérry e do qual ficaremos cientes em segundos. Cada coisa a tempo certo. 148 Jairo Martins de Souza Pois foi mirando o lado interno do domo da igreja que deu asas à imaginação quanto às dificuldades que provavelmente os construtores tiveram para fechar com sucesso o seu arredondado. Os andaimes devem ter sido compostos de intrincada floresta de paus. No acabamento final do fechamento da calota esférica da abóbada os pedreiros devem ter trabalhado absolutamente deitados. Quantos não devem ter se despencado daqueles 60 metros de altura? Quase a da pirâmide de Teotihuacán, que vira furtivamente explicada em livro de heresias do acervo de Ribérry! Novamente desenhos de estruturas de ferros para os andaimes vieram-lhe à cabeça. Ferros com perfis diferentes. Finos, mas com encaixes e montagens físicas que lhes dessem resistência equivalente a peças mais grossas. Monlevade respirava o desconhecido. Respostas brotavam em sua cabeça como manada de bois tocada por disparo de mosquete graúdo! Mas não estava absorto o suficiente para deixar de perceber que o pai de Angéline havia rapidamente saído por porta lateral da sacristia em direção ao adro. Vestia capote largo e foi seu ato de ajuste de colocação do chapéu que propiciou visão privilegiada do perfil do seu rosto. Parecia preocupado. A luz que entrava inclinada por um dos belos vitrais de alabastro instalado na parede lateral da igreja ajudou Jean a distinguir tal pormenor. Estranho... Ele é o motivo de minha conversa com o abade... Foram para o confessionário. Afora uma ou outra interjeição que visava encorajar o andamento do relato, o abade ouviu silenciosamente toda a exposição do rapaz. Jean disse-lhe de todos os seus sonhos, a maior parte deles o abade já sabia ou deduzira, mas o ponto chave se relacionava com seus projetos pessoais com Angéline. Não pedira licença nem ao seu pai, o fidalgo Monlevade; nem a Colbert, o pai da moça. Admitia que, para qualquer pretensão que tivesse quanto a namoro, ser-lhe-ia vital a aceitação de ambos. A razão de sua angústia era simples. Não se sentia ainda preparado para tal diálogo. O que tinha a ofertar além de sonhos? É claro que seria herdeiro de várias propriedades, o pai era um rico fidalgo... mas isso para ele não era relevante. Construir o futuro com suas próprias mãos e méritos era algo capital em seus propósitos de vida. Quantas vezes hesitara em conversar com o fidalgo a respeito! Quantas outras estivera nas redondezas da casa de Colbert, Jean Monlevade, do Castelo à Forja 149 vacilando se batia à sua porta para conversa frente a frente... Que promessas iria fazer? E se o médico lhe perguntasse tal como acontecera com filho de outro fidalgo? O que você faria, meu jovem, caso estivesse com minha filha, e ambos fossem abordados por um homicida que portasse um punhal? Daria a vida por ela ou gritaria por socorro a um policial que estivesse nas proximidades? O rapaz respondera que chamaria a polícia, pois julgava mais competente para intervir na situação. O pai da moça calmamente solicitou-lhe sair de sua casa. Jamais permitiria que um covarde se casasse com a filha. Melhor ficasse para sempre sob guarda dos irmãos e da família e que, por ela, seguramente, dariam a vida. Jean de Monlevade fora ensinado a cumprir sempre sua palavra. Não poderia assumir compromisso de data firme. Inadiável. A agenda que lhe era possível dizer, com prazo fixo de encerramento, era a da Politécnica. Depois disso tudo seria imprevisível. E o desejo de aplicar o que iria aprender em terras distantes? Isso fazia parte dos seus planos desde a infância enquanto ouvia as histórias de Platini, ou viajava nas gravuras dos livros do fidalgo. A Politécnica é de caráter às vezes assustadoramente militar e talvez não fosse a ideal para quem quer sossego e carinho da família. Nunca se sabe que campanhas e ideias mais passam pela cabeça de Napoleão. Ah, e a lembrança das insistentes recomendações de Platini. Viajar é a ruína da felicidade, Jean. Não é que não fizesse tudo de novo desde o começo, mas foi causa principal de ter perdido mulher e família. E, confesso, algumas tardes custame ficar aqui vendendo linguiças e pesos de mercadorias. O quadro era diferente, mas Jean percebia que, caso não se cuidasse, poderia viver de forma inarredável a mesma sensação. Era inquieto. Como Platini. Mas julgava amar a moça! E é com ela que teria gosto em constituir futura família. É por todo esse conjunto de dúvidas, afirmações e divagações que podemos voltar ao confessionário da igreja do padre Ribérry. Ele havia atendido ao fiel que, em especial, o convocara na sacristia, e Jean já estava terminando exposição de suas angústias. Padre, estou confuso! O que me dizes para fazer, enfim, para aclarar minhas ideias e achar caminho seguro para solução dos meus conflitos? Meu filho, Ribérry apressadamente disse-lhe, enquanto se levantava. Por favor, aguarde um minuto. Vou refletir o que dizer- 150 Jairo Martins de Souza lhe, enquanto alivio a bexiga e o ventre na privada da sacristia. Não demoro... E não demorou. A simples sensação de desafogo progressivo magicamente fizera-lhe ter tempo suficiente para retrucar o que lhe confidenciara o rapaz. Como também divagar sobre outras coisas que o atormentavam ultimamente. Repreendera-se porque, a princípio, estivera um tanto quanto impaciente e quisera despachar logo o rapazinho Monlevade. Também ultimamente andava sobrecarregado com múltiplas funções. Descobrira por meio de algumas fiéis que o padre a quem estava substituindo, e a quem muito apreciava, andara saindo dos trilhos. Cedera aos apelos de instâncias da carne com uma das paroquianas cujo marido era um lavrador dado ao álcool e a brigas. E a Revolução que prossegue? Preferia que as coisas reinassem tranquilas... como antes. A fome e as carências emocionais e de dinheiro sempre existiram e continuarão existindo. Cabe aos religiosos a tarefa de amenizá-las e levar consolo às almas que delas padecem. Nem que seja para ser apedrejado depois. Não é isto que a prática mostra? Ah, caro amigo, se quer arranjar um inimigo, ajuda alguém! Bem, decerto há casos que nem é preciso que o socorro tenha ocorrido. Ele próprio tinha experiência disso dentro do seu próprio rebanho. E a relatara a Colbert em entrevista que encerrara faz pouco. O senhor, mon ami, não estará perdendo tempo em ouvi-la... Não me disse o caseiro Materazzi que um dos seus sobrinhos me odeia e que, inclusive, tem divulgado que tenho até mesmo partes com o demônio? Na ocasião fiquei surpreendido! E retruquei-lhe veementemente dizendo não entender tal sentimento de animosidade. Aí foi ele que se mostrou surpreso, e perguntou-me o porquê da força da minha reação. Lembrou-me ser a ingratidão sentimento comum entre os seus. Foi daí que, já mais calmo, caro Colbert, expliquei-lhe não ter sido isso que havia motivado a virulência de minha resposta. Minha indignação, disse-lhe, podia ser estranhamente creditada ao fato de nunca ter prestado qualquer tipo de amparo ao seu tal sobrinho. Nunca o rapaz havia repousado sob o calor das minhas cobertas. Nem secado seu corpo com minhas toalhas, ou se deliciado com os sabores do meu fogão, ou da minha adega, enfim, nem ele, nem quaisquer dos seus familiares (exceto o próprio Materazzi) e amigos sequer passaram próximos ou desfrutaram do amor do orfanato que dirijo! Jean Monlevade, do Castelo à Forja 151 Materazzi, a princípio, ouviu-me intrigado. E, passada fração de segundos, riu gostosamente! E disse-me que, de sua parte, eu nunca ouviria palavras tão irresponsáveis como as do parente. Ser-me-ia sempre grato por ter ajudado a si e a seus dependentes. Jamais sujaria o prato em que estava comendo! Bem, confesso, doutor Colbert, além deste raro ato de dignidade do aborrecido Materazzi, há outras belas exceções! Há casos em que a gratidão genuína prevalece com muito mais intensidade. Estrelas que brilham solitariamente em noites escuras. Veja só o que acontece com o garoto Martinho. Mesmo que na realidade tenha feito muito pouco por ele, o rapazinho não se cansa de espalhar sua gratidão aos quatro ventos. Muito mais ainda quando diz do fidalgo Jean-François, bem, ele faz por merecer e está praticamente pronto para rumar com destino a Paris. Lá a injustiça tem andado a solta. Mas não nos ensinou Göethe que os erros do Estado são menos prejudiciais aos homens que a desordem nas ruas? E foi aí que se lembrou que, faz pouco, o médico Colbert fê-lo ficar angustiado a troco de problemas diretamente envolvidos com o moço que o aguardava. Ninharias. O moço não bebe. Não fuma. É católico... a mágica estaria no encaminhamento adequado da solução. O rapaz disse-lhe repetidamente, padre, tenho dúvidas... Neste ponto, Tisserand disse, o abade lembrou-se que até mesmo Judas fora condescendente nesses casos, e dissera em sua palavra ‘apiedai-vos dos que têm dúvidas’. Deveria ser duro com Monlevade, chamando-o energicamente à responsabilidade quanto aos danos futuros que poderia causar à filha de Colbert? Sim, Jean disse em voz baixa, aprofundando ligeiramente os lábios entremeio à janelinha feita com treliças de madeira que separavam o seu rosto da presença do abade. O abade havia lhe perguntado se estava preparado para prosseguir. Um tanto quanto intrigado, Jean de Monlevade observou que o confessor não mais o via de frente, pois havia se posicionado de tal forma que seu ouvido direito captasse diretamente a sua fala. Foi nessa posição que Ribérry reiniciou o sacramento de forma um tanto inusitada para o rapaz. Disse-lhe que Deus era único. É tão único que para reinar não precisa existir. É a única certeza que o cristão deve ter: o resto é o resto. Você, Jean, como cristão, e com sua juventude, tem não somente o dever como 152 Jairo Martins de Souza também o direito de sentir tudo e todas as dúvidas que relatou neste confessionário. Todas elas são pertinentes, mas não devem dar bases a sofrimento. O ponto é que se não tem certeza em priorizar a vida caseira, domiciliar, com apoio vinte e quatro horas por dia à sua futura esposa, não vá conversar com Colbert. Ele gosta de você. Admira-o. Mas arrisco-me a dizer que não seria pior que você arreasse um bom cavalo e fugisse levando a moça na garupa. Colbert sabe de todos os seus predicados, mas é radical naquele ponto. Foi o que me disse há pouco. Não me sinto mal em confidenciar-lhe isso, pois me foi dito fora do confessionário. Ele me procurou pelas mesmas razões que você veio até minha presença. Está temendo que algo se precipite, tendo em conta sua mudança próxima para Paris. Resumindo, disse-me que mesmo ciente de que a filha firmasse compromisso, e conhecendo suas possíveis características futuras como marido, ele não abençoaria a união. Pense nisto! O casamento não abençoado pelos pais é fadado ao insucesso. Reflita devagar e faça sua opção. Depois de fazê-la, qualquer que seja ela, tudo ficará mais tranquilo. Foi quando Ribérry cometeu falha grave de avaliação. O abade nem mais se lembrava da primeira vez em que ingerira água seca, o salitre, misturado em sua dieta. Anos depois ele mesmo andara injetando nitrato de potássio em salame servido aos noviços. Esquecera-se da força da juventude, mesmo que refreada, em jovens polidos e de boa saúde como Jean. Monlevade tinha dezoito anos e, esquecidos tantos outros interesses, transpirava hormônios e fluidos que, conduzidos por sonhos, eram expulsos clandestinamente nas madrugadas do castelo! Não há razão para duvidar que tenha sido esse o grande dilema que tomou conta do seu íntimo. O abade, mesmo que sem pressioná-lo, pedira-lhe decidir... Foi difícil, mas... Decidira não decidir. Iria dar tempo ao tempo. Ainda que não tivesse qualquer tipo de contato físico com Angéline, não suportaria a impossibilidade de não vir a acontecer. Ou vê-la casar-se com outro. A princípio ficara um pouco contrariado. Com tal atitude estava indo contra velho ditado que lhe ensinara o fidalgo JeanFrançois, se não vais ocupar a moita, deixa que por lá outro tome assento! Perturbou-se por poucos dias. Não é a juventude época de embriaguez sem necessidade de beber goles de vinho? Foi nessas condições amorosas que vamos encontrá-lo nas redondezas da casa da família Pius. Jean Monlevade, do Castelo à Forja 153 III Jean e Martinho vão ao Louvre. A casa de Lucillia e Septimus Pius Por insistência do próprio Jean, a viagem para Paris fora feita desacompanhada. Era forma que encontrou para se acostumar com ideia que brotava em seu interior, pois, instintivamente, sabia que jamais voltaria a morar em Monlevade. Lágrimas furtivas brotaramlhe dos olhos quando se despedira da mãe na porta de saída. Maria Vitória, após abraçá-lo, manteve-se a distância. Parecia chorosa. Já o fidalgo não se preocupou, o filho tinha mesmo que iniciar nova vida, ele estava extremamente assoberbado de incumbências e, afinal de contas, era viagem direta sem troca de cavalos ou parada para pouso em estalagem. Breu, excitado, latia ininterruptamente, parecia saber que também iria conhecer novas paisagens. O Casal Pius gostava de animais e deixara que o cão fosse incluído no pacote de hospedagem. A casa tinha terreiro central e, bem, o transporte fora contratado ida e volta. Os pais não precisariam aguardar carta de boa chegada dos rapazes. Homem de préstimos, o próprio carroceiro combinara informá-los sobre andamento da viagem em seu retorno. Ficaria em Paris o suficiente para carregar mercadorias encomendadas por Platini a seus fornecedores parisienses. Não voltaria vazio de carga! Fazia algumas horas que estavam em Paris. Paris. De longe Jean Monlevade admirou os quatro imponentes cavalos de bronze que soubera faltantes na Basílica de São Marcos. Finalmente estava no Museu Napoleão. O Louvre! Não vivemos de comparações? Por minutos, e ao mesmo tempo em que admiravam a famosa obra de arte, ele e Martinho conversaram sobre o quanto haviam crescido na agitada turnê italiana que haviam feito com o fidalgo. Para este, fora longa viagem de negócios. Para eles, lazer e cultura. O tempo voa. Quase três anos eram passados! 154 Jairo Martins de Souza E lembraram-se que, no retorno, Platini dissera-lhes que, afora altura diferente do Sol com relação à linha do horizonte e uma ou outra estrela que lhe confere identidade especial, o céu parece ser igual em todos os mares que navegara. Mas não sair de casa é ler um só livro, disse, e a vista de cenários e sons de outras línguas e terras desperta sensações absolutamente desconhecidas. Um tanto à custa disso que, naquele mesmo dia, Jean havia falado, talvez excessivamente, sobre a sensacional experiência italiana, comentando o quanto havia ficado encantado com a construção e com os mosaicos dourados da famosa catedral de Veneza. Quarenta mil pedacinhos por metro quadrado. Não é por nada que ficara conhecida como a igreja de ouro! O Palácio dos Doges, situado ao lado, fica humilde perante tanta riqueza. Mas nunca ninguém fica totalmente satisfeito e, após viagens, é comum as pessoas lembrarem-se mais das coisas que deixaram de ver do que as que viram, bem, e é frequente que amigos lhe digam de forma risonha: você tem que voltar àquela atração, pois deixou de ver o melhor. É por isso que Jean disse que não precisou anotar em seu diário de viagem que tinha ficado um pouco frustrado na ocasião, e contava os dias para ver os famosos cavalos turcos de Constantino. Como vimos faz pouco, Tisserand disse, ele havia finalmente saciado seu desejo. E finalizara também explicação a Martinho tentando justificar o motivo de Napoleão os ter confiscado durante a campanha de ocupação da Itália. Foi a razão, Tisserand concluiu, de ambos não os terem visto em São Marcos! E ainda comentando sobre a beleza das tais esculturas é que acabaram de cruzar o Parque das Tulherias: já estavam junto ao Arco do Carrossel. De frente, o belíssimo pátio do Palácio. Ao lado, o Sena viajava tranquilo para o Canal da Mancha e, em poucos minutos, conheceriam a celebrada Mona Lisa. Pena que estivessem pouco expostas as relíquias que o exército havia trazido durante a invasão aos monumentos egípcios. Temos somente duas horas para visitar tudo e todos os setores do museu, foi o que Jean disse para Martinho. É muito pouco tempo e ele abre justo aos sábados e domingos. O imperador andou restringindo os horários de entrada de visitantes. Interessame, em primeiro lugar, ver o Escravo Morrendo, de Michelangelo. Foi feita em pedra de mármore especial trazida de... Jean Monlevade, do Castelo à Forja 155 Foi neste ponto que Tisserrand interrompeu a visita ao museu, esclarecendo que os primeiros dias dos rapazes, em Paris, não podiam ter sido de outra forma. Visitas. Visitas. Fica cansativo falar em detalhes sobre elas. E achava melhor prosseguir sua conversa, lembrando a si mesmo que estava em falta com sua história. Não dissera nada sobre os primeiros momentos de Jean de Monlevade em Paris. E pouquíssimo sobre a chegada à casa dos Pius. A razão era simples: não tinha praticamente nada a reportar. Pois mal a carroça chegara, o Breu não havia esperado convocação e pulou rapidamente para o quintal em busca de pedras e reconhecimento do terreno. Os donos da casa riram de sua atitude, e reforçaram que seu lugar definitivamente deveria ser o terreiro. Não temos gatos e nunca adotamos qualquer bicho de estimação, portanto, nada do Breu circular pelos aposentos da casa. Há uma neurose geral da saúde pública quanto a cachorros que babam, qualquer um desses é suspeito de raiva, assim como a outras doenças espalhadas por animais. E não demorou minutos para que se sentissem à vontade na nova casa. Os Pius eram firmes, porém solícitos e disponíveis. Os dois pisos da casa deveriam ser mantidos limpos e asseados com a contribuição de todos os moradores. Parte do piso inferior que dava para a rua tinha três grandes portas duplas e era alugado para monsieur Bènèdict Dubois. Monsieur Dubois é livreiro de renome que gosta de negociar com obras antigas. Seu estabelecimento, Septimus Pius informou, fica fechado nos finais de semana. Jean mal poderia esperar até a chegada da segunda-feira! O casal Pius, sabemos, morava sozinho. Os dois filhos homens que lhes restavam vivos acompanhavam as andanças das forças de Napoleão. Um era médico. O outro era intendente de materiais a serviço permanente no estrangeiro. A filha casara-se com oficial da marinha e seguira com o marido para Lyon. Ambos eram professores sob contrato com órgão ligado a setor revolucionário da educação. A cozinha da casa é ampla e as achas de lenha do fogão devem ser mantidas secas para uso imediato, foi o que Lucillia recomendou para Martinho. Bem, a mulher de Septimus era ligeira, pois, praticamente ao mesmo tempo, voltou-se para Jean e disse-lhe que a varrição aqui é diária. E, num átimo, dirigiu-se 156 Jairo Martins de Souza a ambos, e explicou que em sua casa não se permitia comer à capitão, ou seja, com as mãos. Usamos somente colheres e facas, avisou. A secagem de panelas e pratos deve ser feita aproveitando o sol que, na parte da tarde, projeta seus raios pelas janelas desse ambiente em que estamos. Depois tais utensílios devem ser pendurados nestes ganchos que estou lhes indicando. No inverno são secos aproveitando o próprio calor do fogão enquanto a fumaça defuma as carnes e linguiças. A lareira pode ser acesa sempre quando necessário. Cada um deve lavar suas próprias ceroulas e calções... o sabão para os dentes e banho fica ao lado de bacia no próprio quarto. Quando não aquecida por tubos que passam dentro do fogão, a água deve ser esquentada somente naquele tacho de cobre maior, foi o que disse elevando abruptamente a altura de sua voz e apontando para enorme panela encostada em canto de parede. Com o menor faço doces. De repente abaixou a voz como se estivesse envergonhada e fosse pedir algo muito íntimo (o que foi confirmado logo a seguir), pois prosseguiu dizendo que só se pode defecar nos penicos. Somente nos penicos. Cada um deve usar o seu próprio, e a sujeira não podia ser jogada na rua. Bem, dona Lucillia concluiu sorrindo, não creio que essas incumbências possam vir a atrapalhar estudos. Ao seu lado, Septimus acrescentou que caso faltasse óleo de baleia para as lamparinas, poderia ser comprado na mercearia de monsieur Lumière que ficava três casas à direita. O uso deveria ser feito com parcimônia, alertou. Toda a conversa aconteceu após recebimento das chaves da casa pelos novos moradores, e, como não poderia deixar de ser, depois de breve apresentação formal. Ao término das orientações, os rapazes colocaram os baús nos quartos e seguiram entusiasmados para conhecer as famosas redondezas do Quartier Latin. Septimus e Lucillia não se importaram. Os estudantes foram muito bem recomendados e eles estavam de saída para a feira. Entenderam bem a ansiedade dos recém-chegados. Poucos minutos mais tarde os moços estavam, além de felizes, absolutamente aliviados. Na Itália haviam-lhes dito que não se justificava olhar nenhum edifício por aqui, após ter visto a beleza das obras dos arquitetos italianos. Não era bem assim. Os franceses podiam se orgulhar de suas construções! Vive la France! Jean Monlevade, do Castelo à Forja 157 Ao voltar mais tarde, verificaram que mais recomendações haviam sido deixadas em papel fixado em painel de madeira colocado na parede de um dos corredores. Jean sorriu quando as leu. Mencionava também algo mais sobre comportamento a ser exigido do Breu. E, após alguns minutos, foi com sentimento contraditório que se lembrou que não mais tocaria tambor na banda da cidade em datas festivas. Nem mais expulsaria lobos que rondavam galinhas espalhadas pelo terreiro. O trombone de Martinho também deixaria de ser ouvido. No entanto, de modo geral, a rotina entre quatro paredes não seria tão diferente da que ambos estavam habituados a seguir no castelo. De certa forma, madame Lucillia lembrou-lhe a mãe, Felicité. À noite, antes de dormir, pediu especialmente por ela em suas orações. 158 Jairo Martins de Souza Jean Monlevade, do Castelo à Forja 159 IV O reencontro com Kostas Zavoudakis Tisserand era incansável! Dado momento disse ser a tartaruga de Zenão que se movimenta lentamente, mas está sempre adiantada ao veloz Aquiles. Eu confirmei a ele que estava tudo ótimo. Que o ritmo estava adequado, o assunto continuava me interessando, e absolutamente não me sentia sobrecarregado. Fosse o caso de, por qualquer motivo, me sentir incomodado, dir-lhe-ia! Muito bem, retrucou. Parecia aliviado. Mas prosseguiu com sua história estranhamente dizendo que nos dias de hoje não é surpreendente que um brasileiro se encontre acidentalmente com parente próximo no Arco do Triunfo. Entre amigos é muito frequente. Entre pessoas de mesma cidade mais ainda. Vai-se em poucas horas do Rio a Paris. Nos início dos 800, pouco se viajava. Afora um ou outro cidadão que, sabe-se lá o porquê, crescia sedento por aventuras, as pessoas nasciam e criavam família sem nunca por os pés fora do seu vilarejo. Não incluo aqui recrutamentos para guerras em países estrangeiros, ou fuga por escassez de comida. Eram muitos os que morriam sem conhecer o palácio do seu rei ou a capital do seu país. A bem da verdade, as condições de miséria e saneamento eram praticamente iguais entre os pequenos vilarejos e os centros de riqueza. O que fazia a diferença era a cultura, as obras arquitetônicas e a arte. Em Paris, com mais intensidade ainda. A cidade de Paris é, sempre foi, por excelência, uma capital cosmopolita, polo de atração de pensadores, artistas, inovações e grandes mudanças. Para boa fortuna de Jean, esse predicado contribuiu para consolidar a fortaleza do seu caráter, pois fez com que muitos dos avanços sociais que ocorreram naqueles dias acontecessem muito próximos a ele. 160 Jairo Martins de Souza Para tanto, entre outros privilégios, bastava-lhe alguns poucos passos de caminhada para chegar ao agradável ambiente da livraria de monsieur Dubois. E, do lado de fora, a história do período napoleônico era feita nas ruas, monastérios, repartições públicas e escolas do Quartier Latin. Nas suas esquinas e praças discutia-se de tudo. Naqueles dias os jovens discutiam a arte, a ciência e filosofia com ardor. Dava-se a vida por essa ou aquela ideia. Viver é sofrer? A contemplação da arte anestesia os efeitos da dor de existir, conduzindo ao domínio da vontade pelas pessoas? Perguntas eternas. Os jovens vazavam noites e madrugadas esgotados menos pelo vinho do que pela força de suas convicções. São questões antigas, Tisserand comentou e, após breve meditação, disse-me não ser atitude adequada assumir sem cuidadosa análise crítica as ideias daqueles tempos. Mas concordava que a novela de tevê atual tem a resposta para a última pergunta que havia colocado na mesa. A da admiração pelas Artes. Mas concordava com a ideia de Schopenhauer de a música ser a primeira delas. Além de não ter referência material e libertar por instantes o homem, obviamente a dança, a pintura, a escultura, a literatura, etc. são refinamentos que vieram depois. Bem, mas não foi exatamente por isso que Jean não se espantou ao escutar alguém conversar animadamente em grego enquanto caminhava pela Saint Jacques. Era fato comum nas imediações. A quantidade de professores e estudantes que falavam línguas estrangeiras na Sorbonne, no Colégio da França e outras instituições era total. Ouvia-se latim e grego por todos os seus cantos. Portanto não era de surpreender que fosse razão única da área se chamar Quartier Latin, quarteirão latino. O detalhe é que a voz lhe soava familiar. Estava próximo de casa e havia saído a pedido de Lucillia para buscar barras de sal e açúcar preto no armazém de monsieur Lumière. Tanto ele quanto Martinho haviam sido apresentados ao comerciante e bastavalhe assinar o lançamento de retirada da mercadoria em pequena caderneta destinada ao casal Pius. O homem versado em grego estava de costas e seu interlocutor era monsieur Dubois, o dono da livraria. Dubois era poliglota e o assunto era o de negociações diplomáticas sobre pedido de retorno, feito por outros governos, considerando-se obras de arte que Napoleão trouxera em seus avanços pelo mundo afora. O Jean Monlevade, do Castelo à Forja 161 diálogo aparentava ser mais entre dois amigos do que cliente e vendedor. Monlevade aproximou-se. Kostas Zavoudakis era baixo e atarracado. Tinha braços e pernas curtas e tratava todos os assuntos como se fosse o dono do mundo. Mas quando dizia algo ofensivo ou que julgasse de mau gosto, no final da sentença, talvez por cautela ou respeito, abaixava paulatinamente o tom de voz. Fazia parte do seu modo de ser. Não podia ser outro. Fazia alguns meses que não o via. O grego saíra de Guéret às pressas e não se despedira dos amigos. Jean aguardou-o, enquanto se recordava das aulas de latim que tivera com aquele rapaz que ali conversava animado, e quão úteis seriam para o futuro quando estivesse estudando matérias de filosofia antiga na Politécnica. A despeito da boa base dada por Duchamps, o grego ia bem mais fundo nas matérias. O que de fato mais uma vez estava sendo comprovado, pois a conversa da dupla que Jean observava rendeu tempo, só terminando alguns minutos depois quando ambos, já no interior do comércio de Dubois, passaram a folhear alguns livros a respeito de direito internacional. Jean entrou na livraria. Dubois saudou-o efusivamente. Explico dentro de segundos tal entusiasmo, Tisserand justificou, e, com isso, peço-lhe também aguardar por outros tantos o reencontro que anunciei, faz pouco, entre Jean Monlevade e Kostas Zavoudakis. Pois ainda que houvesse muitos estudantes pela região que careciam de trabalho para reforçar mesada, Tisserand prosseguiu, a carência de bons caixeiros no Quartier Latin era patente. Os clientes eram tratados como se fossem velhos inimigos. Não acontecia diferente no estabelecimento de Bènèdict Dubois. Tinha para ajudá-lo somente um aprendiz que pouco se interessava pelo serviço. Gostava de ler algumas partes do acervo, mas o serviço de balcão definitivamente não fazia parte do seu métier. É nesse vácuo que Jean havia entrado e facilmente sido aceito no fechado círculo de amizades de Dubois. Com poucos dias de conhecimento o rapaz inclusive o ajudara a realizar vendas a fregueses indecisos. A educação refinada dava-lhe condições tanto de vender cereais e tecidos no armazém de Platini, quanto livros épicos de prosa, poesia, e os recém-lançados romances do estoque do amigo livreiro. Numa delas, o jovem curiosamente pesquisava algumas obras quando uma senhora e a filha educa- 162 Jairo Martins de Souza damente bateram com os dedos na porta interna de vidro. Não as conhecia. Jean acenou-lhes, entrem, a loja está aberta, empurrem a porta... Ato contínuo, reparou que Kostas fora deixado de lado por Dubois, e que este pedia-lhe que o aguardasse enquanto iria buscar outra obra para subsidiar ponto de vista que estava defendendo. A moça que acabara de entrar no ambiente tinha algo familiar a Jean. Custou-lhe apenas poucos segundos para descobrir o que havia lhe causado tal sensação... ela tinha o jeito de caminhar de Maria Vitória! E, já dentro da loja, punha-se a pesquisar por conta própria as prateleiras atulhadas de livros. Dubois era organizado e a identificação dos assuntos em seu estoque facilitava sobremaneira a busca dos seus clientes. Gostava de acentuar que sua prática era a de fazer com que se sentissem em casa. E para que não fossem incomodados com perda de tempo, quanto aos preços, costumava até mesmo deixá-los marcados em suas capas. Percebendo a demora do livreiro que ainda dedicava atenção ao primeiro cliente, Jean acercou-se das freguesas e perguntoulhes se poderia ajudar na seleção de alguma obra. Notara que estavam hesitantes. Elas disseram que sim. Estavam habituadas a comprar lãs, tecidos, vestidos e aviamentos. Não livros. Bènèdict Dubois compreendeu sua atitude e assentiu, baixando educadamente a cabeça, enquanto dirigia olhar por cima dos ombros do cavalheiro a quem atendia. Jean indagou-lhes e soube que as freguesas buscavam livro que deveria ser adequado para leitura de moça de família. Então pediu-lhes licença e dentro de poucos minutos voltou com exemplar de Orgueil et Préjugés de autoria da inglesa Jane Austen. É leitura feita sob medida para mulheres de todo o mundo, foi o que lhes disse com firmeza. Não era livro novo. E exemplar único nesta loja, explicou, pois Austen não encontrara editora que o aceitasse quando fizera seu lançamento há dez anos, enfim, livro de qualidade que custava barato. Casamento, propriedade e intrigas constituíam a sua trama... Convenceu-as. Bem, passa da hora de voltar a Kostas Zavoudakis que, não se dando por vencido, buscava também mais recursos para retomar o polêmico assunto que iniciara com o ocupado Bènèdict. O grego tinha dois ou três livros abertos à sua frente e não reparara a aproximação de Monlevade que, com sorriso nos lábios, cutucou-lhe as costas com os dedos para que o amigo virasse o corpo Jean Monlevade, do Castelo à Forja 163 e o rosto. Kostas, absorto em sua leitura, reagiu como se estivesse sendo assaltado, mas logo em seguida abriu largo sorriso. Foi grande e absolutamente sincera a satisfação do reencontro. Disseram saudações em grego e latim, há meses não nos vemos, e depois se retiraram para a calçada da rua para não perturbar o silêncio que deve predominar em ambiente de leitura. Antes disso, rapidamente, disseram a Bènèdict Dubois, conhecemo-nos faz tempo, o porquê de tamanha manifestação de amizade. O livreiro mostrou-se surpreso e satisfeito: gostava de ambos! Kostas explicou a Jean o motivo de sua saída repentina de Guéret. Oportunidade, disse. Oportunidade imperdível. Recebi correspondência de fidalgo parisiense que havia gostado de uma de minhas produções de tapeçaria. Adquiriu-a aqui mesmo em Paris, e recomendou-me a terceiros de suas relações. Disse-me ambicionar por mais peças e, por fim, indicou-me à oficina de tapeceiro de monsieur Tapis aqui na capital. O salário era tentador. Decidi vir e trouxe toda a minha família. Eles estão bem e a maioria foi empregada com o mesmo empresário. As indústrias recém-implantadas não competem com nossa produção pessoal e personalizada. Você sabe, Monlevade, e modéstia à parte, somos artesãos de qualidade em um ou outro segmento e, graças aos deuses do Olimpo, trabalho nunca nos faltou. Então Jean perguntou-lhe sobre o fato de ter sumido, de não ter se despedido dos amigos. Não sou dado a despedidas, Kostas disse-lhe. Magoam-me. É costume familiar. Mas sentia falta de todos vocês. Como está o fidalgo Monlevade? E Martinho, e o abade Ribérry? O grego contou-lhe que estava morando nas redondezas de Paris. Dividia apartamento com senhor de origem portuguesa e que praticamente vivia confinado em casa. Chamava-se João de Barro Barro. Acontecera com ele mais ou menos o que sucedera com Kostas. A autorização de laisser-passer, salvo-conduto, de sua documentação francesa fora preenchida de forma errônea. Na realidade pertencia à família Barros. Kostas riu. Barro ao quadrado! Deve ter sido o mesmo oficial que me atendeu, e contou ao português sua desdita com a duplicação do seu prenome, Kostas. O fato de terem vivido a mesma experiência permitiu de imediato maior aproximação entre ambos. A alma humana tem essa característica! Para todos os efeitos, concluiu o lusitano, agora sou, de forma completa, João Joaquim Barro Barro. 164 Jairo Martins de Souza A companhia constante de Barro, Tisserand explicou, valeu a Kostas rapidamente absorver rudimentos da língua portuguesa. Isso evoluiu. Com poucos meses não somente entendia e trocava ideias com o companheiro, como também optara por algumas mudanças nos rumos de sua vida. O aluguel na parte central da cidade era alto para seu bolso e ele, entre outras coisas, abandonara o ofício de tapeceiro. A jornada de trabalho era longuíssima e não lhe propiciava tempo livre para fazer o que realmente gostava. Estudar, conhecer outras línguas além das que sabia, e explorar novos mundos por meio de livros. Buscara novos caminhos e, por enquanto, sustentava-se mascateando publicações. Foi o porquê de conhecer Bènèdict Dubois. A conversa perdurou por mais de hora. Entraram na casa dos Pius e alongou-se por mais outro tanto. Os Pius gostaram dos modos polidos da conversa de Kostas. Sentiram, sobretudo, ser moço firme em suas convicções. Martinho, que havia saído para ajustar documentação no liceu onde iria estudar, chegou e daí deu início à nova rodada de indagações entre os amigos. O grego falou-lhe do seu atual trabalho e de como lhe propiciava ler informações sobre outros países. Foi quando se lembraram com mais saudade das tardes passadas no armazém de Platini. Falaram sobre tudo. Sobre a política europeia e a nova força do mundo, os Estados Unidos da América. Sobre dragões, demônios, bichos-preguiça e peixes voadores que assolam a América do Sul. Certos animais que vivem no Brésil nunca tinham sido vistos comendo. Dizia-se que se alimentam de vento, e da energia dos raios do Sol. É por isso, Martinho concluiu, que lagartos estranhos, que tem mãos de homem e chifres de boi, ficam na pedra durante horas. Esses seres nunca se molham mesmo que expostos à chuva constante durante semanas. Muitos navegantes ouviram estas histórias da boca de índios de diferentes tribos e desenharam gravuras horrendas a partir de suas descrições. Isso só me faz ficar mais curioso, e instiga-me a ver com meus próprios olhos o que existe por aqueles mundos, Jean disse. E sobretudo sobre seus minerais preciosos, esmeraldas e turmalinas. Duvido, acrescentou, que os demônios e os dragões realmente existam: esses bichos foram criados desde Adão e Eva no coração e nas profundezas do cérebro humano. Fazem parte do imaginário primitivo: são meras construções de mentes criativas. Jean Monlevade, do Castelo à Forja 165 Mas foi conversando com os Pius e com Bènèdict Dubois que Jean cercou-se de ideias quanto à possibilidade de convívio diário com Kostas. Além da amizade praticariam o latim e grego, é claro, enquanto não estivesse entre as salas e os muros da Politécnica. Para tanto, escreveu carta para o fidalgo expondo o que tinha em mente. Foi aprovado. Resumidamente o plano que propusera fora o seguinte: os Pius tinham quarto vago; os filhos ausentes não mais voltariam para casa dos pais; Bènèdict Dubois precisava de assistente em sua livraria. Passados alguns dias lá estava Kostas chegando com seu pequeno baú de mudança. Moraria com os Pius a troco de aluguel de preço razoável e que incluía pensão à base de sopa de batatas, ensopados e pão. O leite, a manteiga e o queijo ficavam de fora por causa da escassez. Bom negócio para todos. Nestes tempos difíceis seria fonte de renda segura para o casal, pois o fidalgo Monlevade novamente havia intercedido, garantindo – acontecesse o que acontecesse – a segurança e a pontualidade do pagamento mensal. O grego passaria a trabalhar imediatamente como vendedor na livraria de Dubois. As mercadorias estão aí, dissera a Kostas. Que se una o útil ao agradável: acredito piamente que, para você, não deverá ser tarefa desagradável tomar contato com todo o meu estoque. Pelo menos com os escritos de capa e contracapa. Kostas sorriu e respondeu-lhe dizendo que era o mesmo que atribuir ao Breu missão de zelar por ossos de cordeiro. Teria tempo de sobra! O fato é que o jovem grego não conseguira acertar documentação para acesso à escola pública francesa. Os burocratas não se entendiam no Ministério de Negócios Estrangeiros. Havia tentado insistentemente. Talvez houvesse algum problema de foco diplomático entre os países, pois o francês normalmente não era xenófobo, e ele obtivera grau máximo no teste de conhecimento da língua. Não. Sua pele era bronzeada, mas decididamente as negativas não eram consequência de repulsa ao povo grego, ou às culturas de povos de menor importância na ocasião. Na própria livraria de Dubois constavam dois exemplares de As Mil e Uma Noites traduzidas para o francês, e ele via a todo tempo vários estrangeiros circularem livremente pelas ruas do Quartier Latin. Inclusive árabes com suas roupas típicas. O lugar era uma Babel! 166 Jairo Martins de Souza Mas acima de tudo Zavoudakis tinha trânsito livre pelo país e ambicionara ingressar no Lycée Napoléon. Foi por conta disso que foi tomado por extrema irritação quando teve pedido de admissão recusado. Criticou deslavadamente o país. E ironicamente disse para Jean que, na solicitação para estudos, assinara o prenome que lhe fora outorgado na imigração, Kostas Kostas. Teria causado certo mal-entendido? Não. Não podia ser por tanto. No frigir dos ovos, concluiu, o princípio revolucionário da igualdade não estava sendo totalmente aplicado. Conversa fiada de políticos! Ficara frustrado. Mas estudaria por conta própria! Material obviamente não lhe faltava! Jean Monlevade, do Castelo à Forja 167 V Os três mosqueteiros. Kostas conhece o Quartier Latin como as palmas de suas mãos! Alexandre Dumas ainda era um bebê e publicaria o seu famoso Os Três Mosqueteiros somente em março de 1844. Tivesse conhecido posteriormente Jean de Monlevade, Martinho, e Kostas Zavoudakis, não tenho dúvidas de que teria matéria de qualidade para estereotipar mais ainda seus protagonistas Atos, Portos e Aramis. Pelo menos em termos de amizade. Não fez dessa forma Vitor Hugo quando estudou e percorreu os esgotos subterrâneos de Paris? Pois é. Foi com ajuda de mapas emprestados por dileto amigo, um veterano funcionário municipal, que o famoso escritor planejou uma das mais ousadas fugas do injustiçado Valjean. Nada se faz sozinho, mon ami! Tanto a riqueza quanto a cultura são produtos das atividades de homens e mulheres de todas as camadas sociais. Com muito esforço, cooperação e estudo... O ruído provocado pela queda de mais uma manga chamou a nossa atenção, fazendo com que Tisserand interrompesse por instantes o que estava dizendo enquanto, com uma das mãos, apanhava a fruta que restara ilesa mesmo com o impacto no solo. Tão logo colocou-a de lado, retomou a palavra dizendo que, ao longo dos séculos, muitas iniciativas de mudanças de paradigmas do pensamento mundial foram concentradas em alguns moradores de Paris. Descartes. Montesquieu. Poincaré. Rousseau. Sartre... Todos esses são grandes exemplos. E é também na mesma eterna capital dos franceses, mon ami, que vamos encontrar novamente nossos três jovens amigos. Eles se preparavam para praticar o que mais gostavam de fazer: conversar e trocar ideias. Era domingo e Septimus havia saído com a mulher para a missa matutina da igreja de Saint-Séverin. Quartier Latin! Já conheço os detalhes de suas calçadas e prédios históricos como se fossem as unhas dos dedos das minhas mãos. Talvez suficientes para publicar um guia turístico para estran- 168 Jairo Martins de Souza geiros. Bem, para os amigos faço o trabalho de graça. Foi o que Kostas exclamou com ar sorridente para Jean e Martinho enquanto terminavam de descer os degraus da casa dos Pius e se dirigiam para a Rua Saint Jacques. Paris já foi romana, Kostas Zavoudakis disse, e portanto tem algumas partes enterradas que são como a velha Roma. Pudéssemos escavar, possivelmente encontraríamos calçadas de pedra escondidas há séculos nessas vizinhanças. Os romanos deixaram sua marca inapagável pelo mundo antigo desde os tempos de Cristo. Formigas batedoras. A linha de frente carimbava para sempre a terra invadida. Estão lembrados da cidade de Pompeia e a preservação causada pelos estragos do Vesúvio? O traçado das ruas e das edificações das partes desenterradas havia sido seguido por toda a Europa: templos, teatros, fóruns e belos edifícios. Já estavam na pequena calçada, e o grego afirmou, com ar despreocupado, ter plena consciência de que os amigos sabiam, mas não custava repetir que, caso fossem caminhando pela direita, alcançariam justo a Rue des Ecoles, a Rua das Escolas. Lá estão a Sorbonne, fundada em 1253; e o College de France, mais recente, de 1530. Muitas casas de suas redondezas abrigam repúblicas de estudantes que vêm de todo o país e do exterior. Daqui mesmo, vocês podem ver que há cobertores e roupas de baixo estendidas nas janelas, há pouco sol e muita umidade. O edifício com aspecto de prisão, que fica à esquerda do College, é um antigo convento que possuiu um belíssimo claustro... hoje tornou-se a escola em que eu gostaria de estudar e é a mesma em que, você, Martinho, está matriculado: o Lycée Napoléon! O grupo rapidamente decidiu seguir para a direita. Kostas esclareceu que, tivessem ido para a esquerda, dariam de frente com a Rua Petit Pont. Rua curta! Mas vive lotada de gente. E, inevitavelmente, acabariam por passar pela ponte, de mesmo nome, que vai dar na outra margem do Sena. O hospital militar fica nas proximidades, assim como muitos edifícios públicos. Antes disso, caso dobrássemos à esquerda chegaríamos ao Boulevard Saint Michel. Lá proliferam estalagens, tavernas e livrarias nossas concorrentes. É para onde iremos. Se há algum desses aberto, é hora de celebrar! Os dois recém-chegados sorriram. E instintivamente contaram as moedas que tinham no bolso. Kostas era espirituoso e animado. Jean sentiu-se em casa como se estivesse comodamente indo trocar ideias no armazém de Platini. Definitivamente nunca voltaria a se assentar sobre saco de batatas! Jean Monlevade, do Castelo à Forja 169 VI Bernadette e Monique du Lac Todo jovem solteiro que tem atrás de si uma boa fortuna está sempre em busca de esposa, foi o que Lucillia Septimus disse. Jean, por exemplo, nem mesmo precisa ganhar dinheiro com sua própria carreira para tanto... O marido sorriu sem que ela notasse. É, pensou em responder-lhe, isso é verdade incontestável, a vida e as noitadas de vida solteira cansam... Mas calou-se. Havia acabado de colocar roupa de dormir e sua intenção era apagar a lamparina, bem, fazer sexo e, como todo bom marido, cair em sono profundo. No entanto, melhor que a mulher tivesse voltado para assunto de terceiros, ao invés de buscar algum que envolvesse diretamente o casal. Não estou com ânimo para discutir problemas de relação. Sorriu novamente, agora relembrando o lado feminino da frase com que a mulher se prontificara a iniciar o diálogo. Desde que a conheço, Lucillia tem esse lado casamenteiro, mudou em muitas coisas, não quanto a este quesito! Mas não lhe disse nada de volta. A mulher irritou-se. Você não me ouve. O rapaz tem tudo para ser um bom partido para Monique! Prefiro Bernadette, Septimus finalmente retrucou sem rodeios. Não é tão formosa, mas é mais inteligente. O que, a princípio, nada significa, pois Jean disse-me, logo no primeiro dia que chegou aqui, que é praticamente noivo em Guéret. O nome da moça é Angéline. Mas mesmo não conhecendo ainda a fundo as preferências do filho do fidalgo Monlevade, tudo leva a crer que, caso houvesse escolha de sua parte com relação às moças que estamos falando, sua opção seria a letra B. De Bernadette. Você diz isso para me contrariar. A sua preferência dentre as nossas sobrinhas sempre foi por Bernadette. Ela tem o estilo do corpo e o gênio da falecida mãe. É bonita, é agradável: hoje! Pois a sensação que tenho é que vai virar uma baleia irascível quando 170 Jairo Martins de Souza mais velha. Monique não. Seu biótipo é o do Pai. O de Secundus. Seu irmão mesmo depois de velho ainda não perdeu a elegância, mon chér. Quanto ao noivado com a moça de Guéret, não acredito que vá durar. Homem é como passarinho. Caso não tenha filhotes, esquece-se rapidamente de árvore em que pousou. Não é por acaso que não tenho ouvido nem uma palavra da boca dele sobre a tal moça. Septimus decidiu voltar a manter-se calado e simplesmente não mais discordar de Lucillia. Ele queria noite tranquila e, como de praxe, caso continuassem o diálogo, a coisa ia esquentar. A chegada dos três rapazes havia trazido paz à sua casa. Lucillia estava dispersando preocupações e energias que anteriormente costumava esgotar somente em suas costas, adotara novos filhos, enfim, a vida estava melhorando. Quanto a Monique, a brasa fora acesa, Tisserand continuou, não sei se apagaria tão facilmente por parte da mulher e da sobrinha. Creio que um sopro fosse suficiente para... Falavam de Monlevade, e Monique du Lac estava excitada. Então ele vai estudar na Politécnica, tia Lucillia? Sim. E disse-me estar absolutamente ansioso em conhecê-la, Lucillia Pius complementou mentindo. A senhoria de Jean de Monlevade não era má pessoa, Tisserand observou. Simplesmente acreditava que o destino dos dois jovens estava em suas mãos. E, como num jogo de baralho, distribuiria as cartas do modo que julgava adequado. Nem que fosse necessário fazer pequenas trapaças como a mentira que vimos dizer para a sobrinha. Os jovens precisam ser direcionados para bons casamentos e famílias. Ela, como tantos outros, não ligaria essa atitude a qualquer tipo de perversão. Então quando posso conhecê-lo? Minha intenção é noivar rapidamente. A moça fora sincera, homens solteiros tornam-se, sem que o saibam, imediatamente reféns de suas pretendentes e sogras – exclua-se aqui o desavisado Jean, pois a moça era órfã de mãe. Vou providenciar, querida. Vou providenciar. Primeiro conversarei com Secundus para que, ocasionalmente, venha nos visitar no próximo domingo à tarde. Ele não se oporá. Dir-lhe-ei das qualidades do rapaz Monlevade. Faço muito gosto, tia. Vou até conversar com papai para que me encomende vestido novo. Vou querê-lo branco com cinto vermelho e com enfeites de tule Jean Monlevade, do Castelo à Forja 171 de mesma cor no decote. Mas confesso, titia, mesmo não sendo rapaz, vou ter que colocar as barbas de molho. O estudante parisiense, tia Lucillia, costuma namorar durante séculos e, depois de formado, abruptamente casar-se com outra mulher... conheço vários casos de amigas que, no fim dos tais anos, acabaram virando titias. Não se preocupe, querida, ele estará sob minha guarda e olhos. Confie em mim! O almoço havia transcorrido festivamente e Jean conversava de forma descompromissada com a sobrinha de Septimus Pius. Estavam em sala de refeições improvisada no segundo piso, o que era de se estranhar, pois normalmente a casa comia no andar térreo em mesa colocada na própria cozinha. Este cômodo era de tamanho apreciável e ficava no nível da Rua Saint Jacques. Mas estava com parte em obras, bem, mesmo com os pratos cheios de ossos de galinha, e canecas vazias ao lado, ninguém se dispunha a se levantar dos dois bancos que se estendiam paralelamente ao maior comprimento do balcão improvisado. Os convidados em especial aguardavam convite dos anfitriões. Os irmãos Septimus e Secundus fumavam charutos enquanto ouviam Kostas que lhes explicava como conhecera Monlevade, como havia chegado até Guéret e, por final, a Paris. Septimus não se incomodava de escutar de novo a mesma história. Lucillia fingia prestar atenção ao que dizia o grego, mas na realidade observava de soslaio a Jean Monlevade e a Monique du Lac. Avaliava reações. Conferia cuidadosamente se sua fórmula daria resultado. Dissimulava atenção para os demais presentes. A cada movimento que considerava significativo, uma risada, um olhar de admiração, um movimento de toque entre as mãos, a moça vestia luvas após o almoço, enfim, qualquer ato que considerasse suspeito, fazia-lhe trocar olhares significativos com o marido. Eram craques na aplicação de tal código de sinais: haviam começado como brincadeira, durante período de namoro e noivado, para driblar a dura marcação dos pais da então mocinha. Décadas de convivência fizeram-lhes aprimorar o método. Contudo, naquele final de refeição, Lucillia, totalmente centrada em seu objetivo, não percebia os olhares que Jean, por cima dos ombros de Monique, dirigia para a irmã Bernadette que, por sua vez, mantinha diálogo não menos animado com Martinho. A 172 Jairo Martins de Souza moça timidamente devolvia-lhe os olhares. Já Septimus sorrira internamente, pois notara discretamente o que ocorria. Desta feita não comunicou o fato à Lucillia com os olhos, resultado de anos da tal prática que lhes disse. Aguardaria instante propício... O ruído de carruagem que freava nas proximidades da frente da casa dos Pius não passou despercebido a nenhum dos circunstantes convidados pelo casal. A seguir, o de vozes que falam em dinheiro, finalizadas com um fique com o troco. Depois o barulho de alguns toc, toc, na porta de entrada. Parecia acontecer em uma das que davam acesso à livraria de Bènèdict Dubois. O livreiro pode estar aguardando um cliente de fora em horário extraordinário, disse Lucillia a Septimus. Para hoje não fomos avisados de presença desse tipo de comprador, Kostas esclareceu, adiantando-se à resposta do senhorio. Pode ser que seja... Vou verificar, Jean disse. E já na extremidade do patamar superior, mais uma vez criticou o projeto da escada da casa dos Pius. Mais alguns dias de residência e conversaria polidamente a respeito. Era extensa, e de degraus curtos e estreitos. Construída entre paredes era de se esperar que fosse relativamente escura mesmo ao longo de dia de sol firme. A iluminação natural vinha de dentro da casa. Fraca. Do lado de fora a luz do dia mal penetrava no diminuto espaço entre a parte inferior da porta e o piso. Assim, antes de descer a escada, não somente para melhorar a iluminação dos degraus, como também por educação, e para reconhecimento do eventual visitante, Jean acionou extenso pedaço de corda estendido em paralelo com os degraus, e que servia como acionamento remoto da porta de entrada. Todos que estavam na casa ouviram atentos o destravamento do trinco e o puxão posterior que rapaz dera para permitir ingresso de quem batia. Mas foi com espanto que o ouviram dizer em voz alta, Papai! Ora, que surpresa mais agradável! Foi viagem feita às pressas, o fidalgo disse, após ter saudado a todos, e rapidamente se incorporado aos assuntos e ao espírito festivo que, de pronto, sentiu existir no grupo. Monique aguardou momentos até ser apresentada por Septimus. Lucillia estava envaidecida pela beleza da sobrinha: realmente era uma moça bonita! Ela estava graciosamente vestida de branco com enfeites vermelhos. Exatamente como planejara! De início o fidalgo, concentrado nas atenções a Septimus e Lucillia, não a observa- Jean Monlevade, do Castelo à Forja 173 ra. Mas era observado. A moça acompanhava-o com os olhos, buscando avaliar o modo como o possível sogro se comportava. Agradava-lhe o jeito do futuro avô dos seus rebentos. O fidalgo lembrava o filho, desde que acrescentadas algumas imperfeições, a exemplo do andar claudicante, e, obviamente, os vincos e rugas da idade. Ele trouxera apenas uma caixa de madeira que disse conter documentos a serem entregues em determinado ministério do governo. Procurava com esse procedimento, explicou, esclarecer sobre impostos cobrados em excesso de suas propriedades. Quanto será o valor de sua fortuna?, tia Lucillia se perguntava. Bem, tinha três filhos, François, Maria Vitória... Tivesse condição de ver a papelada saberia quanto o pai de seu seleto hóspede, aí deixando-se de considerar o altíssimo valor de suas propriedades, faturava em um ano. Trinta, quarenta mil francos? O fidalgo indagou a Septimus sobre como andavam as coisas na capital e em particular sobre os rapazes. Vai tudo muito bem, monsieur Jean-François, mas o fato é que aconteceu erro anterior de minha parte... um erro de cálculo. O senhor fidalgo sabe fazer contas e seguramente vai entender. Na realidade não avaliei adequadamente, há tempos que Lucillia e eu estamos sós, o quanto interfere a chegada de mais dois, corrijo, três moradores de fora. Ele não previra necessidade de melhoria na casa, daí o desarranjo causado para ampliação da área da mesa de refeição na cozinha como também, isso já fora feito, a substituição da palha do forro dos quartos. Tudo, todos estes detalhes, representa custo para nosso orçamento, Septimus disse. A vantagem é que não tinha despesas de aluguel, a casa fora herança deixada pelo pai, etc. e tal. O senhor fidalgo não é responsável por rateio dessas despesas, no entanto... Assunto delicado... O bolso é, em muitos acontecimentos, a parte mais sensível do corpo humano, Tisserand opinou, bem, ficou suspenso por alguns minutos. Enquanto isso, o dono da casa disse ao visitante para servir-se de comida que ainda restava em duas panelas já colocadas de volta sobre as trempes do fogão. Ainda estão quentes, Lucillia complementara. Mas quanto à sua pergunta anterior sobre Jean e Martinho, Septimus retomou, a encomenda tem sido melhor que prevíamos. Ambos são ordeiros e cumpridores de horários. Nenhum deles faz restrições à comida que lhes servimos. 174 Jairo Martins de Souza Também não negam a qualquer pedido feito, Septimus prosseguiu. E quanto a Kostas... Kostas, entre outras coisas, tem enriquecido a casa com seu conhecimento de cultura clássica. Bènèdict Dubois diz tratar-se de belo exemplo de autodidatismo. É. Este jovem grego tem realmente muitas qualidades, o fidalgo assentiu. O motivo foi lembrança das aulas que ministrara a Jean. Nada mais justo que tenha a bela recepção que tem tido nesta casa, pensou. No entanto, com toda aquela conversa anterior, o fidalgo deduziu que o homem habilmente solicitava ajuda de custo para fazer frente aos investimentos que julgou necessários em data posterior à combinação que haviam feito. E entendeu que sim, eram justificáveis, afinal de contas, estavam sendo realizados para que Jean e Martinho tivessem uma melhor qualidade de vida. Se os lucros respingam em terceiros, tanto melhor. Além de justo, disso sabemos por meio de diversos outros episódios, o fidalgo era homem generoso, e imediatamente sacou embrulho de papel em que havia colocado maior quantidade de dinheiro. Deu-lhe maço de notas. Septimus contou-as e, demonstrando honestidade de propósitos, buscou planilha de custos, e devolveu-lhe alguns francos por julgar excessiva a quantia que lhe fora entregue. Mais ainda o sogro crescia aos olhos de Monique que a tudo observava a distância de alguns passos. Se o filho for desprendido como o pai, jamais me faltará dinheiro para compra de vestidos, perucas e espartilhos. O que não esperava foi atitude que o fidalgo tomou reservadamente a seguir. Ele chamara o filho no canto da sala e colocou-lhe nas mãos um pequeno envelope. Decorridos poucos dias que a carroça aportara à casa dos Pius, trazendo Jean e Martinho, e ela já se ressentia da falta de notícias de Jean. Sentia-se negligenciada, já que o considerava um grande amigo! Era em essencial o que Angéline dizia em carta entregue ao pai, Colbert, para que repassasse a qualquer mensageiro de confiança que estivesse de saída para Paris. Pedira encarecidamente que isso fosse feito da forma mais breve possível e, para tanto, que o pai fizesse solicitação ao primeiro emissário que preenchesse os requisitos. Calhou-lhe que, acidentalmente, algumas horas antes de seguir para a capital, o fidalgo não estivera se sentindo bem. Isso Jean Monlevade, do Castelo à Forja 175 não é nada, disse-lhe Colbert, após auscutá-lo, convocado que fora por serviçal de Monlevade. Fora a galope e instruído por Felicité a dizer somente que trata-se de emergência, doutor Colbert. Essa respiração curta tem um nome, amigo fidalgo, chama-se ansiedade. É a que normalmente se tem quando se vai a velório de alguma pessoa conhecida. Vou receitar-lhe alguns chás de ervas calmantes de boa qualidade. O senhor as encontrará com facilidade nas prateleiras de monsieur Paracelsus. O fidalgo perguntou-lhe pelo preço da consulta, obviamente, devido às circunstâncias, feita nas dependências do próprio castelo, enquanto Felicité do lado de fora da porta do quarto ansiosamente aguardava o diagnóstico sobre o mal-estar súbito do marido. Estava realmente assustada: ele chegara a desfalecer. Não é nada em dinheiro, disse-lhe Colbert. Entretanto, como sei, e para tanto não tenho quaisquer restrições médicas, que estás de partida para Paris, o pago que lhe peço é entregar carta de minha Angéline para seu filho Jean. Não creio constar nenhum segredo de Estado. Aliás, como pai, essa é minha esperança. Ela pediu-me confidencialidade, urgência e discrição. Sei poder contar com o senhor em todos esses atributos. O fidalgo riu, enquanto, fazendo uso do seu aguçado olfato, desfrutava da suave fragrância que exalava do elegante envelope que lhe era entregue. Assim fico imediatamente bom o suficiente para subir correndo, sem minha bengala, até o pico do monte Kilimanjaro. É incumbência prazerosa. Assim foi. Mas antes de sair teve tempo de contar o episódio para a esposa. Ela disse-lhe inadvertidamente, não vais lê-la? O fidalgo estremeceu e ficou rubro com o pergunta da mulher. Felicité nunca procedera assim. A princípio, qualquer correspondência a terceiros, mesmo que não selada, como era o caso, deve ser vista somente pelo destinatário. A moça, Angéline, não lambera as bordas do envelope com cola. Mas conteve-se. Lembrou-se das recomendações que há pouco recebera de Colbert. A vida é breve e todos nós temos teto de vidro. Não leve as coisas a ferro e fogo, caro fidalgo. E saiu para fazer suas obrigações na latrina externa que o filho fizera-lhe construir nas proximidades do quintal do castelo. Não lhe agradava ir para a estrada sem tomar líquido e fazer suas necessidades pessoais. No entanto, ao dobrar a curva da parede lateral do edifício, 176 Jairo Martins de Souza fez o que não costumava fazer. Fez vista grossa ao perceber que Felicité rapidamente ia com as mãos de encontro ao embornal de couro onde se achava a missiva. Não gritou, alto lá, nem disse nada. Maria Vitória estava próxima e não vira que a mãe colocava a carta no punho do vestido e, por final, já se retirava, solicitando à menina que a deixasse sozinha por alguns momentos. O fidalgo vacilou, mas decidiu manter-se calado. Ele absolutamente não queria que a filha tomasse conhecimento do ato a princípio insensato da mãe. Quando voltou, a carta estava cuidadosamente colocada no mesmo lugar. Felicité estava de pé, reflexiva, ao lado do cavalo selecionado para transportar o marido. Na caixa colocada na parte de trás viam-se algumas outras menores repletas de pequenas pedras que o marido levaria para o filho Jean. Faziam parte de sua coleção e tinham ficado, por excesso de carga, para serem acrescentadas futuramente à sua mudança. A filha não mais estava por perto. Não obstante, o fidalgo decidiu calar-se quanto ao acontecido: fervia por dentro e estava envergonhado. Falhara no zelo solicitado quanto à confidencialidade da encomenda. Absurdamente lembrou-se dos tempos de farda quando de sua participação em campos estadunidenses. Por sua grande determinação em cumprir corretamente o que lhe era destinado, várias vezes vazara flancos inimigos para entregar, intactas, correspondências secretas do alto comando do exército francês. A mulher simplesmente disse-lhe ao vê-lo com olhar de censura: sei o que pensas. Mas sou mãe. Tenho ética de mãe. Não é que pense que Jean em algum momento da vida tenha fumado haxixe junto com a namorada. Entretanto me agrada saber o que pensam, o que pretendem para o futuro, se têm planos, se é que os têm. Meu filho não é claro em suas intenções e a moça é decidida. Queres saber o que li? O fidalgo calou-se. Percebeu não ser capaz de absorver totalmente o que lhe dissera a mulher. Mas perdoou-a. Ela tinha razões de mãe. Parecia preocupada. Que mais poderia dizer? Absurdamente manteria sigilo quanto ao ato nefasto da mulher. E para não complicar seu estado de nervos, tentaria desesperadamente esquecê-lo. Não. Não quero saber do que se trata! Não quero saber o que diz a moça Angéline! Jean Monlevade, do Castelo à Forja 177 VII A carta roubada A carta não estava recheada de enigmas como os costumeiramente desvendados pelo pai dos detetives literários, o famoso Auguste Dupin. O senhor, por acaso, leu o extraordinário conto O Mistério da Carta Roubada?... Foi o que Tisserand disse, enquanto refletia sobre o impacto que a quebra de sigilo daquela correspondência poderia ter causado na consciência inatacável do fidalgo Jean-François. Um tanto retardadamente, respondi-lhe que sim. Eu havia lido e gostado não somente daquele como também de outros grandes escritos do mestre Edgar Allan Poe. Então ele comentou, antecipadamente, que não somente o pai sofrera quanto ao episódio da carta entregue em Paris. Os efeitos no filho foram obviamente amplificados. Tinha personalidade de ferro, forjada na cultura e na família, mas não ficou imune aos devastadores efeitos do documento enviado pela namorada... Bem, vejamos o acontecido com as palavras originais do destinatário da missiva. O próprio Jean de Monlevade. Esta carta, Martinho, foi como uma pancada no meu estomago. Golpe curto e seco. Não o desejaria para o pior dos meus inimigos. Vou torná-lo mais breve ainda para você. Estas foram as frases que, após recolher-se ao seu quarto, dissera para o meio-irmão. A delicada folha de papel que mantinha nas mãos ainda exalava resquícios dolorosos de doce e conhecido perfume de mulher. Tal como acontecia com o pai, a extraordinária capacidade de cheiros trazia-lhe eventualmente momentos de grande dor. De costas para o irmão, tinha o semblante triste e fitava o lerdo movimento noturno de duas carroças que passavam carregadas de mercadorias pela Saint-Jacques. Com isso, prosseguiu, evito dor maior. Ainda que nem mes- 178 Jairo Martins de Souza mo saiba o sentimento que se passa por dentro de mim. Orgulho ferido? Talvez... Sempre tive perfeita consciência de amá-la, mas esqueço-me dela com facilidade. O fato é que nem bem saí de Guéret, e ela chega à conclusão que não me ama! Não que em algum momento tivesse dito ou escrito isso. Ela nunca sussurrou nem de longe nem de perto, eu te amo! Mas deixou claro que gosta de mim de maneira muito especial. Aprecia minha inteligência, meu modo de ser, meu espírito aventureiro... mas não o suficiente para compromisso de casamento. Resumindo, por dentro estou arrasado e até mesmo pensando em ir até lá para, de minha parte, fazer ajuste definitivo dessa situação. Poderia voltar com papai ainda hoje... Fosse você, não iria, o pai disse-lhe com a voz embargada. Não vertera lágrimas como Jean, que parecia ter chorado, mas tinha os olhos ligeiramente avermelhados pelo empoeirado da estrada que fazia efeito tardio. Havia subido as escadas para o segundo piso, dormiria no quarto do filho, e escutara acidentalmente parte da conversa. Não era homem de encostar ouvido em madeira de portas! Tenho mais experiência com mulheres que você, meu filho. Deixe-me contar uma pequena história de minha juventude. Jean estremeceu. Martinho fez menção de se retirar. Um pai nunca se dirigia aos filhos quanto a assuntos de foro íntimo. O pai postiço deteve-o com um gesto: pode ficar. O resultado de sua ação foi explosivo e Jean, subitamente atento, por instantes desvinculou-se de sua própria angústia. A impressão que lhe passava é que uma testemunha inesperada chegava para depor em sofrido tribunal de júri. Poderia virar o jogo. O fidalgo finalizou entrada no aposento e prosseguiu. Antes de conhecer sua mãe andei enrabichado com uma moça que viera da cidade de Bordeaux. Apaixonei-me. Tinha os olhos embaçados pela paixão e não reparava que ela era reticente quanto aos meus propósitos de casamento. Conclusão, dispensou-me com os mesmos argumentos que ouvi você dizer a Martinho. Amaldiçoei minha aparência e minha falta de jeito com as mulheres. Mas encantei-me pouco tempo depois por outra jovem de distinta família de Guéret. Não deu outra! Tão logo ficou sabendo do fato, a primeira, a que havia me dispensado, assediou-me dizendo que fora um engano, que realmente gostava de mim e por aí vai. Cedi. Pouco tempo depois voltou a colocar-me na mesma situação. Resumindo, não Jean Monlevade, do Castelo à Forja 179 exagero ao dizer-lhe que sofri como um condenado às galés, mas não perdi a fé no amor. O verdadeiro vem na hora certa. E para mim veio. O coração do jovem é como madeira de lei e não se dobra a assédio de cupins. Desculpe a metáfora, pois sei que na prática passas por difícil situação... e é por tudo isso que lhe disse não ser adequado você insistir em procurá-la. Somente lhe trará mais sofrimento. Agradeço-lhe pelo conselho, papai. Mas não é bem a mesma situação. Parece-me ter também que passar por isso. Aprender com minha própria experiência. Fazer como Tomé, e ver com meus próprios olhos. Cada caso é um caso. Não ficarei tranquilo pelo resto dos meus dias se não esclarecer vis a vis, frente a frente, minha situação com Angéline. Se não se importa, irei com você de volta para Guéret. O pai assentiu sem mais comentários. Ficou-lhe claro que seu rapazinho encontraria saída honrosa para a família. Não. O filho não seria encontrado bêbado em tavernas parisienses por causa daquele espartilho! No dia seguinte almoçavam juntos no castelo Monlevade. Felicité e Maria Vitória ficaram radiantes com o imprevisto! Jean disse-lhes estar lá simplesmente porque aproveitara a companhia do pai, bem, matava saudades dos seus amados. Mais tarde seguiu sozinho para Guéret, pedira ao pai para não acompanhá-lo. Chegando lá, amarrou o cavalo em pau de madeira que ficava próximo ao armazém de Platini e, instantaneamente, decidiu procurar os amigos somente após conversar com Angéline. Faltavam-lhe condições psicológicas e não poderia arriscar-se a perder o foco de sua viagem. Os sinos da igreja bateram dezesseis horas. A tarde findava em termos práticos, pois o dia já se tornava escuro e não demora as lamparinas seriam acesas e, na maior parte das casas, todos teriam jantado. Tomou a direção da casa de Angéline. Para sua sorte, as ruas estavam vazias e não perderia tempo para conversa com conhecidos com os quais não poderia deixar de trocar algumas palavras. Ser-lhe-ia penoso mentir quanto à razão do seu abrupto retorno. A casa do médico Colbert ficava na rua principal e mais próxima da farmácia de Paracelsus do que da igreja. Daí, Jean lembrou-se de que o médico caçoava dizendo que, em se tratando de enfermidades, acreditava mais na ciência do que em providências divinas. Deus não pode se ocupar com assuntos terrenos de um ou outro indivíduo, dizia. Tem missões mais importantes em sua 180 Jairo Martins de Souza agenda. À vista do seu destino final, fê-lo recuperar que as janelas e a porta de entrada, assim como as demais que lhe eram vizinhas, ficavam contíguas à calçada da rua. Estava ansioso. Sorriu nervosamente ao pensar que se tivesse um charuto ao alcance, seria capaz de fumá-lo. Mil ideias passavam por sua cabeça. Inclusive suspeição de estar sendo observado através de frestas de janelas e portas. Notou que todas estas últimas estavam fechadas. Isso fez com que hesitasse mais ainda em bater na que se avizinhava e que tinha duas bandeiras estreitas. O coração saltou-lhe no peito ao rever a pequena plaqueta onde se viam claramente escritas as palavras, Colbert Boyer, Médecin. Jean analisou-as. Estava ainda indeciso. Não bateu. Voltou a caminhar pela rua e passou pelo local observando-o despistadamente. Uma. Duas. Três vezes. Pensou em desistir e voltar para Monlevade, e depois para Paris o mais rápido possível. Finalmente, toc, toc, toc... A velha senhora que o atendeu disse Colbert ter saído para atender parto complicado em castelo localizado em área rural. Não. Não sabia onde. Somente podia informar que era atendimento demorado, pois a filha o acompanhara e, provavelmente, passariam a noite fora. Jean agradeceu-lhe um tanto quanto confusamente. Por fim, voltou-lhe as costas e retornou ao ponto onde amarrara seu cavalo. Melhor assim, suspirou. Sua intenção agora era a de que Angéline jamais soubesse de sua estada em Guéret. Veria rapidamente os amigos, dormiria com os pais e a irmã em Monlevade, e partiria na manhã seguinte de volta para Paris. Assim fez. Mas tão logo manifestou intenções de retorno imediato com os amigos Platini e Fontaine, o segundo disse-lhe ter que buscar mercadorias na capital. Não. Não é que fossem de urgente necessidade, mas poderia antecipar viagem e levá-lo consigo. Aguardaria Jean na porta do armazém no dia seguinte pela manhã. Poucos quilômetros antes de chegar à capital, Jean já havia afastado sua decepção amorosa para algum canto que não mais o incomodasse. A sensação de recusa nunca é agradável, mas era homem feito. A barba no seu rosto crescia como mato raso em campo aberto. E não é que não tivesse consciência que o incidente ficara mal resolvido, e que seu epílogo, ainda que decidido, mantinha-se sem a frase final. Já em certo trecho da viagem che- Jean Monlevade, do Castelo à Forja 181 gara à conclusão que ouvira várias vezes da boca do pai, o que não tem remédio, filho, já está remediado. Por outro lado havia também a eficiente regra da substituição, enfim, não se esquecera do que havia acontecido na casa dos Pius em dia anterior. As irmãs du Lac eram bastante atraentes. E Monique confessara ter gostado do modo atencioso e prestativo de Martinho. Não descartaria a possibilidade de que juntos pudessem frequentar a casa das duas irmãs, caso o meio-irmão estivesse de acordo. O pai delas, monsieur Secundus, conversara amplamente com ambos. Bom sinal. E melhor ainda foi que, à medida que os minutos passavam, sua juventude permitia que o bonito rosto de Bernadette fosse, aos poucos, substituindo a face não menos bela de Angéline. E assim a curta viagem seguia também acompanhada pelo bom humor de Just Fontaine que, como sempre, descrevia mais viagens que fizera com o sócio. As paisagens do Maciço Central enchiam de luz os pensamentos dos dois viajantes. 182 Jairo Martins de Souza Jean Monlevade, do Castelo à Forja 183 VIII A Polytéchnique. Bonaparte dá demonstração de confiança em Monlevade! As du Lac eram sobretudo receptivas e acolheram Jean e Martinho de braços abertos. O pai, Secundus, ainda que discretamente desconfiado, recebeu-os também de forma mais que amistosa. Imaginou ficar no lucro se pelo menos um deles viesse a se tornar seu genro. Assim, parte dos dias que antecederam ao início das aulas na Politécnica e no Lycée Napoléon foram de agradáveis conversas, e carícias furtivas, na aprazível propriedade que a família do viúvo habitava nos arredores de Paris. As moças eram bem formadas e estudavam música e línguas estrangeiras por meio de professores particulares. Tia Lucillia Pius, por livre e espontânea vontade, encarregava-se de espionar as atividades parisienses dos rapazes, e as mantinha informadas do dia a dia dos seus hóspedes. Jean e Martinho não se sentiam ameaçados em maior escala pelos olhares sedutores de Bernadette e Monique. Nada de noivados precipitados. A ideia era de simples desfrute, coisas da juventude, suas prioridades eram outras. Na verdade não se descuidavam da preparação para enfrentar o início do período escolar. Jean esgotava quase todo o seu tempo livre passando os olhos nos livros do estoque de Bènèdict Dubois. Virava e revirava as páginas da primeira edição dos 35 volumes da fabulosa L’ Encyclopedie organizada em 1751 pelo eminente Diderot. Tentava controlar desejo de conhecer todas as coisas de uma só vez, pois identificava um novo mundo em cada obra que tocava as mãos. Aí aparecia a bem-aventurança de ter amigo com propósitos semelhantes. Continha-se trocando ideias com Kostas sobre prioridades de o que ler em primeira instância. 184 Jairo Martins de Souza Dubois apreciava a ansiedade do moço. Antes fossem assim todos os estudantes do Quartier Latin, dizia consigo mesmo. Já o Breu, em vista das necessidades do dono, estava um tanto obeso pela falta de atividade no campo. Jean raramente saía com o animal pelas ruas e redondezas, e as únicas pedras que seu cão andava abocanhando eram as que, brincando, jogava para que as buscasse no quintal dos Pius. 31 de outubro de 1809. Finalmente o primeiro dia de aulas. Nas horas iniciais de apresentação do ano letivo, a Politécnica efervesceu com a chegada dos novos estudantes. A maior parte já se conhecia diante de presença antecipada nas ruas de Paris enquanto buscavam moradia e faziam reconhecimento da cidade, dos bares, parques e demais amenidades. Outros apresentavamse entre si e faziam troças introdutórias. Pouco durou. Como sabido, a escola era lastreada em moldes militares e os iniciantes foram rapidamente colocados em forma e seguidos os procedimentos protocolares de homenagens à pátria. Os alunos veteranos estavam também presentes trajando reluzentes uniformes de gala e chapéus crista de galo. Jean estava exultante! Sabia que este ano servir-lhe-ia para aprofundar conhecimentos sociais. Não. Não é que a ciência fosse deixada de lado. Mas, de início, o propósito essencial da Politécnica era o de elevar a consciência do aluno transformando-a na de cidadão. Era sua filosofia de ensino permanente, ainda que andasse criando algumas situações desagradáveis. Alguns cadetes às vezes se mostravam contrários ao regime e repeliam ostensivamente certas orientações do governo. Daí para frente sempre foi assim! O senhor se lembra dos protestos de 1968? Tisserand justificou. Paris foi incendiada! E o foco da revolta e da insatisfação partiu exatamente das universidades de Nanterre, da Sorbonne... e da Politécnica em que Jean começava a ser integrado. Não somente os estudantes pediam reformas como também o país estava desgastado com a guerra da Argélia. É o que gerou o famoso “é proibido proibir”, e provocou a queda do prestigiadíssimo herói da Segunda Grande Guerra, o Marechal De Gaulle. Isso teve efeito dominó em todo o mundo, pois alcançou rapidamente a Universidade de Berkeley, na Califórnia, e fermentou o descontentamento que lá já era grande. E enquanto os universitários ianques pediam o fim da guerra no Jean Monlevade, do Castelo à Forja 185 Vietnã, os hippies arregaçavam as mangas e praticavam a contracultura. Nada de cabelo escovinha. Nada de terno e gravata. Nada de cigarros finos e uísque. Tudo de maconha e drogas pesadas. Foi por meio dessas que os Beatles escreveram parte de sua história musical. Não é por outra razão que Lennon e McCartney criaram Lucy in the sky with diamonds... A garota com olhos de caleidoscópio. Aconteceu daquele jeito, Tisserrand prosseguiu, e culminou com a promiscuidade do festival de Woodstock em 69. Tudo isso (ajunte-se aqui o I had a dream, que foi como ficou conhecido o sonho do pastor Luther King) fez detonar o prestígio do então presidente Lyndon Johnson. Um fato notável estava por acontecer. Os negros nunca mais seriam proibidos de frequentar banheiros de brancos ou assentar-se nos bancos da frente de conduções! No Brèsil os protestos da distante Polytéchnique ecoaram por meio dos estudantes que levantaram bandeiras contra o regime militar. A geração de 64. O resto o senhor já sabe. E desculpe-me por tais divagações, Tisserand disse-me com olhar suplicante. No fundo partiram de exemplo tomado da longínqua revolução francesa dos tempos de infância, e adolescência, do filho do fidalgo Monlevade. Respondi-lhe calmamente, entendo! E confirmei com sorriso tímido. Ele agradeceu-me dizendo, merci, e então esclareceu que, a bem da verdade, fica aqui estabelecido que desde o findar do século dezoito os colegas de Jean de Monlevade sempre tiveram atitude de recusa quando julgavam estar a nação prejudicada. E não era incompreensível o gosto que o imperador devotava à Polytéchnique. Nela repousavam as ideias dos enciclopedistas e o Iluminismo. E foi a excelência do seu ensino que a fez tornar-se a menina dos seus olhos. Tanto é assim que, em 1798, na campanha do Egito, levou consigo quarenta e dois dos seus alunos. No final recheou o estoque de arte egípcia do Louvre. Pour la Patrie, les Sciences et la Gloire (pela pátria, pela ciência e pela glória). Essas palavras tornavam patente o propósito que a nação esperava da Politécnica. Mais ainda, resumiam o pressuposto ideal de Bonaparte. A pátria em primeiro lugar! O comandante da instituição passou em revista a tropa de estudantes já uniformizados, mas ainda desprovidos de espírito de caserna. Recebeu-os com palavras de incentivo e confiança 186 Jairo Martins de Souza no futuro técnico da nação. Estamos defasados em relação aos ingleses e alemães. A França precisa investir em projetos industriais de porte e de infraestrutura. E de modernizar sua máquina bélica. A grande Enciclopédia de Diderot e D’Alembert diz da importância das especializações na engenharia de guerra. A de ataque e defesa. A de construção naval. E a de pontes, inclua-se aí as flutuantes, que façam nossas divisões atravessarem rios de águas caudalosas de um dia para o outro. E estradas. E grandes canais de águas e, finalmente, o apoio simultâneo à estrutura de construção civil. Enquanto observava atentamente o rosto de cada novo aluno, o oficial acrescentou que a matemática teria prioridade máxima. E que, por exemplo, o domínio das teorias de probabilidades dá mais precisão à logística de deslocamentos de homens, cavalos, canhões, carroças de carga, intendência e comunicação entre divisões de combate. Faça-se aqui justiça a Fermat e a Pascal: foram-nos de grande valia neste campo... A Politécnica, senhores, foi criada para fornecer cérebros capazes de prover inteligência a tais intenções. Foi mais ou menos assim, Tisserand prosseguiu, que o militar disse estar encerrando participação na cerimônia, e informando com sorriso alvissareiro que o melhor estava ainda por vir, e que estava feliz por estar ali presente, enfim, como a aplicação de todos seria importante para o progresso tecnológico do povo francês. Terminado o ritual de boas vindas, foram ouvidas outras autoridades governamentais e convidados ilustres. Perfilado e, ao mesmo tempo, atento aos discursos que ditariam seus próximos anos, Jean lembrava-se dos esforços que fizera para estar ali perante tantas autoridades. Por exemplo, nas madrugadas escuras de Monlevade, estudara antecipadamente os seis volumes do curso completo de Matemática de Etienne Bézout. Deu certo. Era a bíblia da matéria fosse o propósito de alguém conseguir acesso à Politécnica. Nela a geometria era priorizada em relação às enigmáticas soluções algébricas. O manual do aluno lhes foi passado com extenso leque de recomendações, ressalvas e normas de comportamento social. Destacava essencialmente que mesmo o militar não credenciado tem papel social distinto e é, por excelência, o braço armado da Nação. Logo após o encerramento da cerimônia, todos se enca- Jean Monlevade, do Castelo à Forja 187 minhariam para aula inaugural celebrada em alto estilo e grande pompa. Monlevade sorriu. A cerimônia dizia-lhe ser homem formado, e obtendo certificado de aceitação na duríssima sociedade francesa. Breve vestiria casaca, calção justo, meia-calça, boné francês, laçarote e sapato de campanha. Botões e galões dourados sobressairiam nas mangas do casaco e no quepe do boné. O mesmo uniforme do soldado de infantaria do exército francês, Tisserand esclareceu. A partir de 1804, por ordem expressa do imperador, era a vestimenta oficial dos alunos da Politécnica. A Polytéchnique. Nas celebrações festivas ostentavam um pesado fuzil: na ponta do seu cano reluzia afiada baioneta. Maior ainda foi seu estado de encantamento ao lembrar-se que Monge, o grande geômetra, pudesse vir a ser seu professor! Seu rosto espalhava sentimento de felicidade. Lembrou-se de algo que lera sobre a escola que Pitágoras (que não deixava de ser um conterrâneo de Kostas), fundara bem antes do nascimento de Cristo. No seu portal de entrada, diziam estar escrito: Não entre aqui quem não for um geômetra. Conteve a custo o riso. Temia ser mal interpretado pelos colegas e oficiais que compunham a tropa de iniciantes. Não entre na Politécnica quem não for... um Monge! Foi quando a autoridade que falava passou a palavra final que estava reservada para o imperador. A grande atração do evento. Próximo a ele, Eblé. Em carne e osso. Jean o conhecia muitíssimo de nome. Era o respeitado general chefe de engenharia do exército nacional. O jovem levantou mais o peito e afundou a barriga. Uma fração de segundo depois elevou o solado traseiro do grosseiro sapato militar. Sentiu-se mais alto. À medida que Bonaparte falava, percebeu a energia que emanava do corpo do comandante supremo em posição assumida de quem se prepara para o combate. Diante de quem causava calafrios em reis e generais de todo o mundo, calha bem o silêncio e, no pátio da escola, não se ouvia nenhum outro som. Jean mal respirava! Fosse o caso, Tisserand ilustrou, ouvir-se-ia o bater de asas de minúscula mosca. Da pesada cabeça, afundada em um curto pescoço que parecia unido aos ombros arqueados, destacava-se o poderosíssimo rosto com seus insinuantes olhos cinza claros. Aos 39 anos, as palavras saíam-lhe da boca com facilidade criando, em alguns, sentimentos de temor; em outros, adoração. Fascinantes. Persuasivas. 188 Jairo Martins de Souza Monlevade experimentava no ar uma inusitada sensação de força e poder! O sacrifício do pai, feito coxo por ferida de batalha, assomou-lhe à cabeça. A imagem de breves relatos de outros militares sacrificados em combate complementava o cenário. Naquele momento, para ele, a morte digna seria a de um soldado em batalha. As palavras faltam-me quando relato tais imagens, Tisserand desculpou-se. Então, para que tenhas noção precisa do idealismo de que Jean estava possuído, é bastante excluir do mundo a arte de Goya. Francisco Goya. Ainda que reconheça, confessou, ser solução excessivamente dramática, pois a obra do espanhol expressa obsessivamente a verdade. Mas também é verdade que a figura exponencial do imperador que discursava abortaria quaisquer imagens dos 80 quadros da famosa série Désastres de La Guerra. O cadete Monlevade rasgaria tais telas com a baioneta do seu fuzil. Napoleão, Tisserand prosseguiu, a despeito de algumas qualidades, enganava o povo assim como fazem todos os déspotas! E as pinturas do artista espanhol retratam a crueldade da invasão à sua terra que o imperador iniciara um ano antes de Jean entrar para a Politécnica. Pisara a península ibérica como pneu de bicicleta que atropela formiga miúda. Após a fracassada experiência russa, a situação se reverteria. Nem Jean, nem qualquer dos outros aspirantes, tinha consciência da insanidade das pretensões de conquistas do grande orador. E o fidalgo Monlevade parecia estar ali cochichando palavras de incentivo nos seus ouvidos. Não mais ouvia a voz do imperador que prosseguia discursando. O pano de fundo era o bater distante de tambores. De forma inusitada um intenso sentimento de orgulho e destemor caminhou por suas veias e artérias. Arrepiou-se. Por instantes, novamente sentiu-se audacioso soldado. Estivesse em campo de batalha, avançaria em linha reta até onde encontraria em trincheiras o acovardado exército inimigo! Na sua passagem pela tropa escolar, o imperador pareceu ter assentido com a cabeça ao fitar o filho do fidalgo Monlevade. Explicara anteriormente que sairia mais cedo devido a compromissos inadiáveis. Olhar penetrante. Poucos no mundo podiam sustentá-lo. Tomado por intenso rubor, o jovem abaixou timidamente o rosto. Jean Monlevade, do Castelo à Forja 189 No entanto teve tempo para captar sensação de ter lido algo nos lábios do Marechal. Do alto do seu trono, Bonaparte nunca deixaria de ser um militar. Pareceu-lhe terem sido frases vagarosas, conto com você, Monlevade. Você é do meu corpo de inteligentsia. Vai ajudar a expansão dos ideais franceses para outras terras e continentes. Ecoou pelos ares sequência planejada de tiros de mosquete. O imperador voltou-se para a saída acompanhado por sua guarda pessoal. Não era qualquer pedido pessoal de Bonaparte certamente irrecusável? O jovem respirou fundo. Passaram-se alguns poucos minutos até que voltasse à posição mais relaxada de descansar. A cerimônia se alongava. Um dos noviços, levado pelo cansaço e pela madrugada gasta em taverna do Quartier, assustou os demais colegas ao desmaiar. Estava extenuado. Quase desmanchou a formação, como se tivesse tido ideia de provocar um incontrolável efeito dominó. Foi sustentado pelos colegas, mas vergonhosamente teve que ser conduzido até a enfermaria. Felizmente Napoleão já havia se acomodado na poltrona de veludo vermelho de sua confortável carruagem. Não abriria a cortina de sua janela, no entanto viajaria ovacionado pelas ruas de Paris! Demorara mais que o previsto para chegar à porta de saída. A caminhada fora interrompida, em vários momentos, para atender a demonstrações de apreço de alguns oficiais que haviam participado de campanhas passadas. Daí a minutos, seguiria célere acompanhado por pesada estrutura de segurança e apoio. Alguns cavaleiros vestidos com uniforme de gala preparavam-se para subir em seus cavalos. Mas o grosso da movimentação girava em torno do séquito de carruagens e carroças de apoio que ultimava detalhes para a partida. Desde os tempos dos faraós funciona assim, Tisserand comentou com ar de tristeza. Os custos de deslocamentos de imperadores e presidentes sempre foram elevadíssimos. Pense na penúria do povo francês na ocasião. Reflita sobre nossos dias atuais. Inclusive os do Brésil. Poucos fazem ideia de quanto se gasta quando um rei ou presidente vai de uma cidade A para outra B. Há ocasiões que nem fazem discurso. Rasgam fitas simbólicas. Participam de festas e jantares. Três horas depois fazem o mesmo em outra cidade ou Estado. A cada uma delas o gasto poderia le- 190 Jairo Martins de Souza vantar hospital de porte médio. Ou grande escola. A cada passeio tudo começa do zero. Assentos de aeronaves. Carros. Cerimoniais. Convidados. Helicópteros. Horas extras. Hotelaria. Jatos privados. Logística. Milhares de pessoas. Pessoal de segurança. Políticos. Políticos... A maior parte deles não deve ser levada a sério! Mesmo movido por impulso inicial, não retruquei nada sobre a última frase do estrangeiro. É verdade que circula pelo mundo! E ele, dando continuidade à descrição que desviara curso, informou terem sido os novos politécnicos encaminhados para aula inaugural e, posteriormente, para suas classes. Lá Jean soube ser o aluno de número 52. Tanto nos quartéis quanto nos colégios militares, para alguns propósitos, deve prevalecer o princípio da impessoalidade. O recruta é um deles. O indivíduo é simplesmente associado a um número. Monlevade fica então ligado ao 52. Não sei se essa era o posição com a qual fora classificado entre os jovens nacionalmente ingressados naquele ano, Tisserand admitiu. O número foi o de quatrocentos. Pode ser. O fato é que as aulas introdutórias e as atividades físicas foram intensas nos primeiros dias. O período de adestramento perdurou por poucas semanas. Monlevade, assim como os outros noviços, sofreu na própria pele as consequências da dureza da ideologia de formação militar. Leva-se o homem a zero para forjar a condição de inferioridade inerente à disciplina hierárquica. Para tanto o sinal de continência ao superior é pormenor indispensável. O que, por sinal, foi circunstância única de constrangimento para Jean durante sua fase inicial de adaptação. Estava absorvido circulando pelo pátio da escola e, inadvertidamente, passou por oficial de alta patente sem prestar-lhe a devida reverência. O coronel chamou-lhe rigorosamente a atenção e Jean sentiu-se extremamente humilhado. Não foi somente isso. Teve que fazer diversas flexões comandadas por sargento que, para tanto, fora convocado pelo irado oficial. O pior é que fora obrigado a ficar retido no quartel em dia em que haviam, ele e Martinho, programado visita às irmãs du Lac. Não se aborreça. Foi o que Martinho disse-lhe dias mais tarde. Isso vai passar. Além do que as escolas militares funcionam da mesma maneira que os quartéis, agora foi Kostas Zavoudakis quem acrescentou. É lei geral. Por todo mundo é assim. Parece-me que os soldados de todos os cantos leem os mesmos livros. Não têm ou- Jean Monlevade, do Castelo à Forja 191 tro recurso. A Arte da Guerra de Sun Tzu é apreciado há mais de 2000 anos. Recentemente é que Napoleão fez restrições às manobras intelectuais de O Príncipe, do florentino Maquiavel. Para o militar em combate, o casaco roto é arma única para combater o frio do inverno. A ideia é reducionista. É a de transformar o cidadão em elemento. Na Grécia não é diferente. Faz-se com que o recruta beije o chão para lembrá-lo de sua condição de obediência irrestrita. Na guerra o canto do cisne é o hino nacional, Allons enfants de la patrie, le jour de gloire... Então eu disse a Tisserand que o mesmo fazem os brasileiros antes dos jogos da sua seleção de futebol, Ouviram do Ipiranga às margens plácidas... Ele sorriu. E, um átimo depois, disse também gostar de outras áreas esportivas, inclusive competições de ciclismo. Na França, explicou, o ciclismo tem adeptos desde o porto de Calais até os Montes Pirineus. Desde o Norte até o Sul. Quem, no mundo, nunca ouviu falar do Tour de France? No entanto, disse-me que preferia não se alongar no tema, pois o tempo estava se escoando. Eu lucraria mais, finalizou, se imediatamente prosseguisse ouvindo o que Kostas Zavoudakis dizia a Monlevade. O grego procurava contemporizar, o assunto prosseguia sendo a detenção transitória que este havia sofrido... Muitos, no mundo, gostariam de estar no seu lugar, Jean. O fechamento da Academia de Ciências fez com que outros grandes mestres tenham ido para a Politécnica. Não se surpreenda, se, com a ausência de Lagrange, seu professor de Cálculo venha a ser o próprio Fourier! Você é da Polytéchnique e, portanto, terá, aí é que deverá ficar atento, nos seus calcanhares, mulheres interessantíssimas à caça de marido. As du Lac são exemplos disso. Não é soldado raso. Seu fuzil não é extensão do seu corpo... como do soldado raso. Um braço. Uma perna a mais... bem, nada o impedirá de ter contato direto com o próprio imperador! Foi aí que, intempestivamente, o grego teve que interromper seu raciocínio e pediu licença para atender chamado de Bènèdict Dubois. O livreiro estava tendo dificuldades para entender o que lhe solicitava cliente com sotaque especial! 192 Jairo Martins de Souza Jean Monlevade, do Castelo à Forja 193 IX João Gomes Abreu de Freitas O capitão João Abreu de Freitas estava na França há apenas dois dias. Figura de realce na Província de Minas Geraes, deixara esposa e filhos há prolongadas semanas para realizar velho sonho de conhecer a Europa. Não lhe agradava viajar desprovido de mulher, mas sua senhora alegou não suportar viagem de tão longo curso. Tinha tendência a enjoos de tal monta que suaves solavancos de charrete provocados pelas ondulações das estradas próximas já lhe criavam desconfortável ânsia de vômito. Imagine o que aconteceria no convés de um navio! O senhor, a esposa dissera-lhe, teria que gastar todo o seu tempo derramando baldes de água doce na minha cabeça! Freitas curvou-se diante da alegação. Viajaria só. Consolouse mais ainda ao se lembrar que a mulher não suportava ausência de casa. O zelo e o amor que tinha pelos filhos, os pais em idade avançada, suas coisas, seus escravos, ajuntar-se-iam a outros incontáveis motivos. Tanto era assim que a viagem mais distante que fizera fora até Vila Rica, a capital da Província. Ah, viagens marítimas... Ela não conhecia, não tinha saúde, e nem mesmo interesse em participar de uma delas! Já na casa dos cinquenta, há anos o capitão vinha postergando a empreitada europeia que, de fato, se resumia a intenso desejo de pisar os solos da França e de Portugal. Lisboa e Paris. A primeira por ser terra dos avós e Paris, bem, Paris era o centro da cultura mundial da época. Era daqueles homens que apreciavam a leitura, mas sua intensa participação na vida da província, e na de suas propriedades, dificultava acesso a obras literárias e a viagens que almejava fazer. Com algumas restrições, em termos formais, fora bem educado de berço. Aprendera a gramática, o latim e o francês: língua 194 Jairo Martins de Souza que chegou a dominar razoavelmente, mas, pela falta de uso, caíra no esquecimento. Homem prático, visitaria museus e as Tulherias, mas tentaria entender melhor, in loco, o que acontecia na Europa e suas ligações com Portugal. A expectativa era união do útil ao agradável. O fato é que, enquanto a temporada de inverno dava sinais de chegada em Paris, a floração do café prometia safra alvissareira em suas áreas agrícolas do Vale do Piracicaba. Aproveitaria estada para estudar possibilidade de negociação direta com importadores europeus. A ideia de redução de interferência de atravessadores cariocas – e de funcionários de firmas inglesas – estava há tempos germinando em sua cabeça. Visitaria fábricas de equipamentos agrícolas. No Brasil não existia fundição de ferro suficiente para fornecimento de ferramentas nem em quantidade, nem em qualidade. E, pior ainda, Lisboa havia cerceado a criação dessas indústrias e ordenado destruição das existentes. Encurtando as palavras, o ferro importado não era bastante para ampliação dos seus negócios e suas terras. Os esforços e os recursos das fundições coloniais, diziam os portugueses, devem ser prioritariamente destinados para o fabrico de ferramentas de extração de ouro e diamantes. A colônia nos é de grande utilidade para comercializar esses produtos. É o que nos dá dinheiro para cobrir despesas de além-mar. Situação constrangedora! Por incrível falta de matéria prima, os ferreiros das redondezas não davam conta de atender a forte demanda dos domínios agrícolas de Freitas. Ele ouvira rumores de que em breve isso iria mudar, mas por enquanto... por enquanto tentaria importação direta. A oportunidade daquele ano de 1809 não podia ser perdida. O gado engordava e o charque era produzido em grande quantidade e, apesar das estradas ruins e falta de pontes, chegava a bom preço no mercado carioca que fora grandemente reforçado pela chegada da corte do futuro João VI. Estava faturando bem e a perspectiva era a de que os negócios seguissem a todo vapor. Cerca de doze mil novos consumidores de elite. A maioria alimentada pelo erário imperial. O problema é que este, o que não se trata de novidade, costumava não honrar compromissos. O capitão ouvia queixas inesgotáveis de parceiros que compunham o grosso do comércio da cidade. O pessoal do Ministério de Ne- Jean Monlevade, do Castelo à Forja 195 gócios do Reino fornecia bilhetes de crédito às vezes de difícil resgate. Então parte do que lhes seria destinado, assim como o excedente de produção, poderia ser absorvido por empresas de shipping supply de frotas de navios transoceânicos. Era o que também pretendia negociar com investidores franceses que se dedicavam ao ramo. A falta de alimentos de qualidade durante sua própria viagem é que lhe abrira os olhos para a oportunidade de novo negócio. Gastara quarenta e oito dias para chegar até Lisboa, o corpo enfraquecera, sentira na própria pele a carência de suprimentos básicos na embarcação. E foi após passar por tais desconfortos é que prosseguira por terra, e em melhores condições de abastecimento, até Paris, seu destino final. A empreitada não foi fácil de ser levada a cabo. Portugal estava em estado de guerra declarada contra o governo de Napoleão e Freitas havia conseguido entrar no país sob auspícios de amigos influentes no comércio internacional. O fato de ser brasileiro ajudou bastante, pois os portos da colônia haviam sido abertos para nações estrangeiras pelo império português. A França era uma das exceções, mas era comum fazer negócios com países em estado de conflito por meio de intermediários. Os governos lutam entre si. As pessoas e empresas, não! Por exemplo, a partir do Rio havia possibilidade de se levar café, açúcar e madeira para portos do Mediterrâneo ou o de Rotterdam, nos Países Baixos. E, de lá, por terra, seguiriam para os compradores finais. Bastava que se ajustassem bem as cargas de navios e interesses dos armadores. Transações triangulares. O frete ficava mais caro, mas funcionava. Também Freitas acreditava que a situação de litígio entre Portugal e França não perduraria. E aí as madeiras de lei das suas terras poderiam ser incluídas em pauta de exportação sem os atropelos de costume. Os europeus e a revolução industrial consumiam-nas com incrível voracidade. Barcos. Navios. Móveis. Casas. Nem se mencione os promissores acionamentos a vapor! A Mata Atlântica de suas montanhas era pródiga naqueles e em outros tipos menos nobres de árvores. Com isso também abriria caminho para novas áreas de pasto para o seu plantel de bovinos. Nem mesmo tinha conhecimento do número total de animais que possuía! Por fim, visitaria a faculdade de medicina de Paris. Um dos filhos, que recentemente iniciaria estudos médicos no Rio, havia 196 Jairo Martins de Souza lhe pedido permissão futura para completar sua formação acadêmica no estrangeiro. Freitas analisaria as condições. Quando a situação diplomática melhorasse, poria em prática o que fosse possível quanto ao assunto. Mas para conseguir tais coisas, havia grande problema já citado por mim nas entrelinhas, Tisserand lembrou. O capitão João Abreu de Freitas não se lembrava bem do francês falado. O ponto positivo é que lia com certa facilidade, mas, reforço, carecia de bons ouvidos e segurança suficientes para discutir questões delicadas que normalmente envolvem assuntos comerciais. A solução foi intérprete arregimentado no Rio a troco de bom pago contratual. Não passou de Lisboa. Resultado das agruras da travessia do Atlântico, fase inicial da viagem, o jovem profissional sucumbiu à má forma física de quem se dedica integralmente às letras. Mal desceu do navio, foi levado às pressas e deixado sob tratamento em hospital civil de uso exclusivo dos ingleses que, na ocasião, detinham as rédeas de comando da capital dos lusitanos. Não se recuperou a tempo. Freitas seguiu em frente. Não era homem de desistir facilmente de suas empreitadas. Conseguiu sua meta e, em tempo hábil, chegou a Paris. Comunicava-se por meio de sinais, e das poucas palavras que exercitara pronúncia com o frustrado intérprete. Era inteligente e acreditava poder melhorar com o passar dos dias. É para tanto que entrara na livraria de Dubois. Um dicionário de melhor procedência ser-lhe-ia de grande utilidade. Por hora, contratara, com sucesso, serviços de hotelaria e alimentação no hotel Saint-Séverin, localizado perto da catedral de mesmo nome. E foi caminhando pelas ruas adjacentes que chegara à Saint-Jacques. Fora atraído pela exposição de livros colocados à vista por Dubois e pegara um deles que, em especial, havia lhe chamado atenção. Os autores estiveram em alguns limites de terras brasileiras! Folheou-o. Fazia parte de outros quatro volumes... O título era Le voyage aux régions equinoxiales du Nouveau Continent, fait en 1799-1804, par Alexandre de Humboldt et Aimé Bonpland. Ainda no Brasil, Freitas lera sobre tal viagem em jornais que lhe chegavam com semanas de atraso procedentes do Rio de Janeiro. Na ocasião, fora notícia de primeira página e tinha tido tanto destaque quanto o acompanhamento que os brasileiros faziam dos fatos inusitados que se passavam em solo francês. Jean Monlevade, do Castelo à Forja 197 Com isso não quero dizer que o habitante do Brasil de 1809, e em particular a corte portuguesa, fizesse pouco caso da Revolução Francesa. Estaria cometendo pecado fatal, Tisserand disse. As guerras e conflitos diplomáticos europeus eram acompanhados por meio de informes e boletins reservados emitidos, tanto pelos próprios portugueses, como também por espiões. Provavelmente iam e vinham a cada navio aportado no porto do Rio de Janeiro: Dom João mantinha-se vigilante em seu refúgio carioca. E também não posso deixar de dizer, prosseguiu, que a obra de Humboldt que o Capitão Freitas tinha em mãos havia mudado o conceito que os europeus tinham da América do Sul. Nem tanto do Brasil, pois dele a coisa se deduzia por extensão: ninguém pode esquecer que os portugueses, a não ser por especial licença, não permitiam que estrangeiros colocassem os pés no solo de sua colônia. Haviam negado prerrogativa até mesmo ao próprio Humboldt! Mas não há como esconder território de quase oito milhões e quinhentos mil metros quadrados! E a riqueza dos dados e textos contidos nas páginas dos livros do alemão fez com que o mundo compreendesse toda a riqueza e diversidade dos solos americanos. Humboldt era um gênio! Abriu o diálogo entre os hemisférios do globo, pois escreveu que os povos não são melhores ou piores: são apenas diferentes. Antropólogo. Botânico. Diplomata. Etnógrafo. Físico. Geógrafo. Geólogo. Humanista. Mineralogista. Vulcanólogo. Não fosse bastante, foi quem lançou as bases para estruturar os estudos de Geografia, Geologia, Climatologia e Oceanografia. Falava-se muito dele nas rodas intelectuais cariocas, tendo sido grande o destaque dado pela imprensa à ordem de prisão emitida contra ele pelo governo de Lisboa. Nas anotações do abade a situação estava ressaltada em caixa alta! Aí Tisserand explicou que essas são as razões pelas quais João Abreu de Freitas passou a olhar algumas páginas da obra que tinha em mãos com mais atenção. Foi quando ouviu algo que lhe soou estranho. Qu’est-ce que vous demandez?, o dono da livraria disse-lhe. O brasileiro virou-se, atrapalhado. Estava tão absorvido por pensamentos que não observara a chegada de Dubois. E não entendera a pergunta. Ato contínuo disse sem pensar ao balconista, Je suis Brèsilien, eu sou brasileiro. Dubois sorriu. A despeito da obs- 198 Jairo Martins de Souza tinada ofensiva de Napoleão contra o povo lusitano, recebia muitas obras de Coimbra e vendia bastante os poemas de Camões. O cliente falava português. Vou convocar Kostas Zavoudakis! Não preciso lhe dizer, mon ami, Tisserand disse-me, que aí foi o momento em que o grego havia interrompido sua conversação com Jean nas linhas finais do capítulo próximo passado. Atenderia, convocado pelo patrão, a cliente que falava português com sotaque diferente! O longo período passado por Zavoudakis em companhia do português João de Barro mostrou, pela primeira vez, grande utilidade prática. O cliente brasileiro rapidamente sentiu-se à vontade, mesmo que ambos tivessem perdido alguns minutos se adaptando. Ele, ao lusitano estrangeirado de Kostas. Esse, ao sotaque brasileiro de um habitante das Minas Geraes. E que, esquecido momentaneamente do propósito inicial de aquisição de dicionário, permitiu que o centro da conversa fosse o belo livro que tinha em mãos. Os quatro volumes de Humboldt vendem muito bem, Kostas assegurou-lhe. Não os li em detalhes, mas se precisar de esclarecimentos, posso solicitar a um amigo que lhe explique o que for do seu interesse. O homem respondeu que sim. Gostaria de ter melhores informações. Kostas pediu-lhe licença e encaminhou-se para o segundo piso da edificação. Quando voltou o jovem Monlevade estava ao seu lado. Tenho praticamente de cabeça os segmentos do Le Voyage que se relacionam a materiais vulcânicos e mineralogia, Jean disse-lhe. Kostas traduziu e imediatamente Freitas indagou-lhe o porquê de tamanho interesse. O moço poderia ser um dos seus filhos! Eles também morriam de amores pelos minérios de sua terra! Jean foi seco. Trata-se de amor antigo. No entanto, percebendo sua aparente indelicadeza, complementou que lhe agradava a ideia de desvendar os mistérios da natureza. Em particular os dos minérios e terras. Então você devia conhecer as minhas, Freitas disse-lhe. Lá os minérios de ferro e alumínio afloram à superfície... Bem, Tisserand disse parecendo estar com ar cansado, daí se pode concluir que a conversa passaria a ser interminável. Que fique o miolo dela a cargo da imaginação do senhor, mon ami. Digo-lhe somente que, no seu término, o brasileiro preparava-se para sair carregando em sacola de couro os volumes do Le voyage... como contrapartida deixara cento e quarenta e oito francos Jean Monlevade, do Castelo à Forja 199 pagos diretamente ao próprio Dubois. O livreiro ficara feliz e disse para si mesmo recompensar especialmente a Jean por mais essa venda. A Kostas caberia, conforme combinação anterior, pequeno percentual sobre o valor de capa. No entanto não ficaria somente nisso, pois antes que se precipitasse para a Saint-Jacques, o grego trouxera-lhe dicionário que sabia existir em prateleira pouco usada da loja. Tamanho fora seu gosto pela conversação que o brasileiro não se dera conta de que lhe faltara suprir o principal motivo de entrada no estabelecimento! O Nouveau dictionnaire Français-Portugais era de autoria original do capitão Manuel de Sousa e fora atualizado, e editado, sob a responsabilidade de Joaquim José da Costa e Sá. Custarlhe-ia mais 64 francos. O capitão brasileiro barganhou. Em minha terra, Minas Geraes, se faz assim, disse justificando-se. Dubois, após rápida avaliação mental, propôs-lhe total de duzentos francos. Negócio fechado. Economizara 12. O comprador cumprimentou a todos pela gentileza do atendimento e, finalmente, tomou direção do hotel Saint-Séverin. Dissera que iria voltar. Dois dias depois cumpriu a promessa. A ideia era aguardar pelo sábado seguinte, pois tivera conhecimento que o jovem Monlevade estaria ocupado ao longo da semana. O rapaz se interessara fortemente pelas coisas e pela descrição que fizera de sua fazenda de São Miguel do Piracicaba. E o capitão Freitas, não obstante a dificuldade de comunicação, contaria as horas para ter com ele mais alguns dedos de prosa. Kostas havia colaborado impecavelmente para que se fizessem entendidos. Mas uma semana é muito tempo para quem está só em país estrangeiro! Frustrado por não estar logrando êxito para iniciar suas gestões comerciais, o brasileiro resolvera procurar ajuda a quem achou ter competência para tanto. Não conseguia se comunicar. O aforismo de que qualquer ideologia sempre deve ser associada a um orçamento, fê-lo decidir deixar as tão desejadas visitas culturais para após a conclusão de sua agenda de possíveis negócios. Ficaria por duas semanas. Decidira que fosse ou não bem sucedido, uma delas seria dedicada à exploração da cultura e dos museus. No entanto, por ora sua intenção era reencontrar o grego chamado Kostas. Kostas Zavoudakis. Tinha pressa! 200 Jairo Martins de Souza Jean Monlevade, do Castelo à Forja 201 X O Brasil de 1809, segundo a visão do capitão Freitas É período pequeno, Bènèdict Dubois disse a Kostas Zavoudakis. E perante as circunstâncias não posso impedi-lo de aceitar a proposta do capitão Freitas. Sentir-me-ia constrangido. Vinte mil francos é muito dinheiro! Em duas semanas receberá o que posso lhe em pagar em dois anos. Reconheço, Kostas, que o movimento cresceu com sua participação na loja. Você é bom de trato com o público. Alguns clientes, a maioria estudantes, têm denunciado veladamente preferência de serem atendidos especificamente por você. Explica bem o conteúdo das obras. É honesto. Não esconde se são boas ou não para essa ou aquela disciplina... bom, sei não ter sido assim, mas você dá ideia de ter nascido com a barriga por trás de balcões. E, portanto, sabe que mesmo precariamente posso dar conta do recado sozinho. Diante dessas palavras de Dubois, Tisserand prosseguiu, não creio ser preciso reforçar que Freitas havia proposto ao grego o serviço temporário de intérprete. Por quinze dias contados a partir do momento de fechamento do negócio. Cinquenta por cento do valor a ser pago de imediato. Os restantes 10.000,00 francos, no final do período ajustado. Kostas estava absolutamente exultante. As negociações só não ficaram acertadas em segundos porque ambos concluíram que, para tanto, careciam da aquiescência de Bènèdict Dubois. Foi o que vimos acontecer algumas palavras atrás. Kostas mudar-se-ia temporariamente para o hotel Saint-Séverin à custa do brasileiro. Mas manteria valor a ser pago ao casal Pius: o combinado incluía acompanhar o capitão vinte e quatro horas por dia. Quando estavam de saída, Monlevade surgiu do nada vestindo o celebrado uniforme da Polytéchnique. Parecia orgulhoso 202 Jairo Martins de Souza do fardamento. Um dos professores adoecera, e ele pedira licença especial para tratar de problemas particulares. Precisava urgentemente buscar encomenda de algumas pedras que solicitara a colega que estudava na école des Mines. Iria buscá-la na própria. O rapaz era cliente da livraria de Dubois. Sim. Posso conseguir algo desses minérios brasileiros no laboratório de metalurgia. Foi o que dissera a Jean, observando as folhas do livro de mineralogia que o outro lhe indicava. Desde que seja pequena amostragem e em forma de pó. Daí combinara que, quando disponíveis, avisar-lheia por meio de Dubois ou Kostas que, teoricamente, poderiam ser encontrados a qualquer momento no horário comercial de funcionamento da livraria. Pois nesta altura dos acontecimentos a cada dia Jean pernoitava menos na casa dos Pius. Dormia na própria Politécnica e levava vida de soldado submetido a intenso regime de estudo e pesquisa. Desde o início das classes, professores e alunos eram duramente exigidos pelas normas do novo tipo de ensino criado pela Revolução. E que, diga-se de passagem, passou a ser modelo para o mundo. Mas voltemos à situação que chegara a bom termo entre Kostas e o capitão Freitas. Dizíamos, lembram-se, que esse último estava por sair. E foi exatamente a chegada de Monlevade que fez com que repensasse a intenção. Pois, com isso, viu poder tomar proveito e ficar mais um pouco, deixando patente seu desejo de conversar com o rapaz e, enfim, nunca se sabe o hábito de gente que mora em terra estrangeira, caso se retirasse da casa dos Pius, poderia parecer que saíra em função da chegada do outro! Não era de sua formação familiar dar chance a esse julgamento. Foi por isso que, após assentados nos bancos da mesa da cozinha, a conversa iniciou-se com pergunta vulgar feita a Jean pelo capitão Freitas. E que lhe saiu da cabeça naquele instante simplesmente como recurso para fazer-se mais simpático quanto às perspectivas do reencontro que tanto desejava. Le noble, votre père, a-t-il déjà au Brésil? (o fidalgo seu pai já esteve no Brasil?). O brasileiro já sabia a resposta, pois fizera a mesma pergunta sobre o pai de Jean quando do primeiro encontro com o jovem. Para que o senhor entenda melhor da superficialidade da tal indagação, Tisserand explicou, vou dar-lhe exemplo esclarecedor. Jean Monlevade, do Castelo à Forja 203 Imagine que, em dia de nuvens fechadas e negras, uma pessoa encontra um conhecido e, após parar para cumprimentá-lo, diz: parece que vai chover, não é? É puro ato de cortesia. O mesmo foi feito por Freitas a Monlevade. O jovem entendeu a situação, e retribuiu-lhe com agradável movimento de incentivo. Mas o que também havia animado a Freitas é que tinha tido condições de fazer a tal pergunta por contra própria. Fora frase pronta: ele a tinha decorada na ponta da língua. E para tanto dispensara a ajuda do seu intérprete ainda sob contrato, pois o próprio Kostas Zavoudakis havia lhe recomendado soltar a voz quaisquer que fossem as circunstâncias. Não se envergonhe caso venha a cometer erros, capitão. É assim que se aprende, ou se volta a falar, qualquer idioma estrangeiro! E Jean de Monlevade respondeu-lhe o que já sabemos. Não, meu pai nunca esteve em terras da América do Sul. Foi somente a alguns países da Europa e, ocasionalmente, aos Estados Unidos em missão de guerra. Kostas traduziu. E, ao mesmo tempo, passou a explicar ao capitão Freitas as peculiaridades da construção das frases que Monlevade dissera. Era mais que um intérprete. O contratante não sabia, mas havia levado de quebra um excelente professor. Por conta disso, Freitas retirou o dicionário de Joaquim Sá da sacola de couro. Não gostaria de interromper o curso da conversa para consultá-lo, mas em último caso... E em dado momento disse a Jean que a França era país muito noticiado no Brasil. No entanto não sentira até então que acontecia o fato contrário. É verdade, Jean respondeu-lhe. E é oportunidade rara essa que me aparece. Não vou perdê-la. Fale-me das coisas do seu Brésil. Tenho informações de que tem extensas províncias de minérios. Centenas de minas de ouro e diamantes sendo exploradas. Muitos dos nossos têm escrito livros fantasiosos sobre excepcionais riquezas de águas, florestas, monstros tropicais e quantidade imensa de pássaros. Alguns deles nem mesmo chegaram a viajar até lá. Escreveram por relato de terceiros. Por sinal, aqui na nossa própria livraria, temos alguns poucos exemplares do livro de autoria de certo monsieur Jacques Barraband. Ele é pintor nascido não muito distante de Guéret, e é um dos que teve como tema as coisas do seu país. Não me recordo o nome da obra, mas as gravuras internas são belíssimas. Uma delas mostra o espetacular le petit toucain... 204 Jairo Martins de Souza Temos muitos outros pássaros, Monlevade. Milhares de espécies. E até mesmo mais belas que a do tucano. Nosso plantel é incalculável. No entanto isso é complemento quase insignificante. É detalhe de um quadro de milhões de quilômetros quadrados. O meu Brasil tem território gigantesco! Kostas traduziu assentindo com a cabeça. Já havia visto todas as gravuras do excelente livro de Barraband. Daí Freitas lembrou que o assunto que iria dizer é história conhecida em todo o mundo, mas iria repassá-la concisamente para Jean. Vou simplesmente repetir ao pé da letra as mesmas palavras que ele usou, Tisserand disse-me. A ameaça e posterior invasão que Bonaparte impôs a Portugal no ano passado, Monlevade, colocou o Brasil no mapa do mundo. 1808 é nosso ano notabilis. O motivo? Portugal é dono do Brasil. E um dos muitos países da Europa emparedados pelas brigas entre França e Inglaterra. País pequeno. Seu rei era e continua sendo tinhoso e fingia não saber a qual senhor se curvar. Fazia jogo de empurra-empurra: para “inglês ver”! Não se diz que na luta entre as ondas do mar e as pedras da praia quem leva prejuízo é o indefeso ouriço? Pois é. Portugal foi o ouriço! É por isso que seu príncipe-regente e sua corte tiveram que fugir de sua terra e sua Lisboa. É aí que entra o Brasil. Fugiram levando consigo toda a documentação e gente para, de lá, tocar os negócios do império! O povo português assistiu a tudo de camarote às margens do Tejo. Um rei ou general nunca deve correr em qualquer situação. Fica ridículo! Mais ainda quando dá ideia de fuga de inimigo: não deve o capitão ser o último a abandonar navio? Não podia ter sido daquela forma! Mas foi. E sendo assim pelo menos a tempo certo: poucos dias depois o esfarrapado exército do general Junot invadia totalmente a capital dos portugueses. O fato é que, antes da escapada, o país havia deixado às claras estar a favor da Inglaterra. Não diz também o evangelista que só se pode servir a um de dois prováveis senhores? Neste ponto, Tisserand reiterou que, de fato, os franceses tinham diferenças com o rei português. Não com o povo brasileiro. Este tinha como realidade única e exclusiva a de ser oprimido e Jean Monlevade, do Castelo à Forja 205 espoliado pelos lusitanos: cuja riqueza era quase que total e exclusivamente retirada do solo de sua riquíssima colônia. Os franceses, em 1808, andaram invadindo terras portuguesas na Europa, não as brasileiras. E poucos anos depois sua intelingentsia tornou-se grande fornecedora de cultura para o Brésil. Por meio de acordo com os próprios portugueses! Pois os franceses não acabaram por aqui, no Brasil, fazendo papel de cronistas pictóricos da vida da corte? Não estiveram por aqui Lebreton e seu grupo de famosos? Por mim, Tisserand disse satisfeito, bastaria a riqueza da pintura dos Taunay. Pai e filho. O pai com seus quadros de simplicidade absolutamente encantadora. Parecem-nos sempre familiares, mesmo que, em alguns detalhes sutilmente acrescentados pelo artista, retratem a distante realidade europeia. A tranquilidade e bucolismo que transmitem impressionam a alma de quem os vê até os dias de hoje. Mas, e Debret? Pintor de história e do cotidiano do imperador... e Montigny!? Foi aí que Tisserand pediu-me alguns minutos de reflexão para reviver os relaxantes sentimentos que lhe traziam as obras de arte daqueles seus conterrâneos. Pouco depois, absolutamente renovado, retornou sua fala ao ponto em que havia inesperadamente interrompido o discurso de Freitas. Pois Kostas havia concluído a tradução e o brasileiro havia se disposto a expor algumas consequências da vinda da corte portuguesa. Após aceita de bom grado, ele adiantou que ela não nos trouxe somente coisas boas. Há atropelos de monta, Monlevade. A começar pela parte imobiliária. Imagine o esforço feito pela cidade do Rio de Janeiro para abrigar milhares de novos moradores de luxo! Clérigos, ministros, militares, diplomatas, funcionários do alto escalão, etc. E, além deles, suas famílias, criados... É como, Tisserand comentou, se Juscelino tivesse feito em questão de dias, a mudança de capital do Brasil para pequena cidade do interior de Alagoas. Palmeira dos Índios, por exemplo. Não para a planejada Brasília com transferência feita a contagotas. O fato é que, em questão de horas, a nata de Lisboa passou a habitar as ruas da pequena cidade do Rio de Janeiro. Bem, não é que fosse um problema para os novos moradores: aquele povo não era de maiores leituras... mas achar uma livraria no Rio daqueles dias era como procurar agulha em palheiro. 206 Jairo Martins de Souza E foi após citar esse conhecido fato que, Tisserand, ilusoriamente, devolveu a palavra ao capitão João Gomes Abreu de Freitas. Vou traçar, caro Monlevade, um pequeno painel final da colônia vista de mais perto do que da proa dos navios que trouxeram o príncipe-regente e acompanhantes. Informações fresquinhas, saídas há pouco do forno. As que vocês, franceses, têm, são baseadas em dados de compêndios do século dezoito montados com base em outros dos séculos dezesseis e dezessete. É coisa recente a permissão de estrangeiros no Brasil. Então, vamos lá! Kostas interveio para traduzir a Jean o que Freitas dissera. E terminou com um rápido Alons-y, um vamos lá. Daí o brasileiro percebeu ser momento de prosseguir: a senha fora visão de rápido movimento de cabeça do grego. A realidade da colônia brasileira, disse, não é das mais agradáveis: vou listar-lhe a situação. Quebra na indústria da cana de açúcar. Na do algodão. Na do tabaco. Minas Gerais produz quase todo o laticínio do país. O Rio Grande, a carne salgada. O ouro quase esgotado. O Brasil é colônia de gente supersticiosa, Monlevade. Acomodada. Na maior parte colorida de preto à custa de sol forte. Tanto de lá quanto dos campos africanos. Os negros são nossos pés, mãos, martelo e prego. Nossos burros e mulas. É mercadoria boa para encher os bolsos de dinheiro de empresários: a escravatura é forte ramo de negócio. Lá se diz que não se pode misturar manga com leite. Um raio não cai duas vezes no mesmo lugar. Palavra de rei não volta atrás. Olhar para gato preto dá azar. Colocar vassoura atrás da porta faz visita indesejável ir embora mais depressa. E não é que esteja fazendo pouco caso, ou deixando vazar sentimento de inferioridade. Mas na minha terra dança-se muito. Brinca-se muito. Pouco se conhece de música clássica. Não se lê. Até mesmo porque Portugal policia com punhos de aço a venda de livros sobre ideias modernas. Principalmente os que dizem algo sobre a cultura daqui, da França revolucionária. Na fuga, Dom João não se esqueceu das joias, das porcelanas e do dinheiro. Raspou o cofre. Mas deixou para trás as 60.000 obras da Biblioteca Nacional de Lisboa! Portugal, caro Monlevade, é povo de gente carola. Reis atrasados. País atrasado. Não tem indústrias, é quase medieval. E não posso dizer que o caso dos livros esquecidos tenha sido fato surpreendente, pois diz-se que até mesmo o infante Miguel, gente da nova geração, não aprecia a leitura. Jean Monlevade, do Castelo à Forja 207 Freitas a essa altura, Tisserand ponderou, entusiasmava-se com seu próprio resumo! Creia-me, Monlevade, nem a prática da arte da pintura é estimulada na velha Lisboa. Tampouco nas suas colônias que é de onde tira maior fonte de sustento. Artistas e artesãos são gente de segunda classe. É trabalho manual. Trabalho manual é para escravo. Na França não é assim: mesmo que seja voz corrente que, no passado, o próprio Voltaire andou auferindo lucros com tráfico de escravos. Já de nossa parte importamos cerca de dois milhões de negros. Bem, não é que todos os ricos queiram que a corte retorne a Lisboa, Monlevade, mas alguns deles têm colocado a vassoura de piaçava atrás das suas portas. O desrespeito aos particulares tem sido grande. O governo imperial tomou-lhes casas por meio de decreto simples para abrigar os recém-chegados. Basta colocar placa na moradia desejada com as iniciais de Príncipe Real. Um p e um r maiúsculos. Pronto. O morador já pode ser desalojado para uso de inquilino da corte. Também os custos para sustentar esse pessoal e seus luxos fizeram com que o governo gastasse mais e mais dinheiro. Um poço sem fundo. Já se fala que há negociações para novos empréstimos gigantescos a serem obtidos com os ingleses. Não tenho bola de cristal, mas creio que, a médio prazo, o barril de pólvora deve estourar no colo dos brasileiros. Mais impostos! No entanto, Freitas esclareceu aliviado, o saldo é extremamente positivo. Éramos colônia. Agora somos sede de governo de país europeu. Não foi por generosidade real que D. João abriu nossos portos para todas as nações amigas do mundo. Espero ansiosamente, e não abro mão, da França ser incluída nesse rol o mais breve possível. Tudo isso, Freitas concluiu, foi por força de o centro decisório dos negócios portugueses ter sido transferido para o Rio de Janeiro. No dia em que pisou em solo carioca, o Rio se iluminou! É claro, agora é o próprio Tisserand quem diz, não como na entrada de ano novo, os reveillons dos anos 2000. Lamparinas e velas não dão luz alta, e fogos de pólvora fazem mais fumaça que claridade. Mas os badalos dos sinos das igrejas da cidade não paravam de ser puxados. Buzinaços dos anos 800. O Rio tinha então cerca de 60.000 habitantes e estava feliz! Foi surpreendente! As princesas e a rainha Carlota desceram com as cabeças ras- 208 Jairo Martins de Souza padas: culpa de piolhos que infestavam o miserável estado em que viajaram por mais de três meses. Imediatamente carequice virou moda entre as mulheres chiques da sociedade carioca. Em qualquer tempo, ídolos e princesas têm influência assustadora nos hábitos do povo. Basta lembrar que, em década recente, Björk e a top Naomi Campbell também rasparam as cabeças e tiveram uma verdadeira legião de seguidoras. Falta de gosto... Aí Tisserand pareceu-me enfadado e voltou a falar do capitão Freitas. Devolveu-lhe a palavra a partir do momento em que o próprio confidenciava ao filho do fidalgo que, a partir do que lhe explicara, algumas mudanças estavam acontecendo muito rápido na colônia. Outras, não! Convenhamos, Monlevade, a situação é inusitada. O império português nunca nos permitiu instalar fábricas de quaisquer tipos de produtos, à exceção de sacos de juta e, acredite, o ferro. A produção deste último foi iniciada precocemente, em 1585, com o ousado Afonso Sardinha, mas sempre a passo lentíssimo. E, para piorar, há dez anos paramos totalmente por ordem direta da coroa. No entanto hoje falta-nos pouco para entrar definitivamente em outra era de sua manufatura, Monlevade. Mais moderna. O governo da Província de São Paulo contratou o famoso Varnhagen para projetar usina siderúrgica às margens do rio Ipanema. O rei aprovou! O alemão tem experiência no ramo! Há também rumores de chegada ao país do geólogo e metalurgista Eschwege para construção de siderúrgica em uma cidade chamada Congonhas do Campo. É da mesma província em que moro. A ideia é fazer lá a primeira corrida de ferro coado no Brasil. Projeto ambicioso! No comando está homem influente no meu país, o conde de Palma. O conde de Palma é atual governador da Província de Minas Geraes e a usina tem nome que vem muito a calhar. Chama-se Patriótica, Patriotique. O império deseja ter material de primeira para fabricação de espingardas e canhões. Interessa-lhe seguir o assunto? Freitas indagou a Monlevade. Tenho falado por meio de frases curtas para facilitar o trabalho do nosso amigo grego. O moço, após ouvir a tradução feita por Kostas, respondeu-lhe diretamente, oui! Ça c’est bon. Freitas havia suspeitado, Tisserand explicou, mas ainda não percebera totalmente o entusiasmo que Monlevade tinha por tudo que se relacionava à matéria prima e à fabricação do ferro, e suas aplicações. Jean Monlevade, do Castelo à Forja 209 No entanto continuou mais animado pelo modo e a energia com que o jovem dissera as palavras sim! Isso é bom. Pela primeira vez os portugueses estão preocupados com a falta de barras de ferro em sua colônia. A influência e mando dos britânicos nos negócios de Portugal ainda dura décadas, Monlevade. O baixo preço praticado por eles prejudica a viabilidade da nossa siderurgia. O incrível é que o próprio rei português concede a eles baixas tarifas de importação. Ferro barato! E, afora as cargas de contrabando, Lisboa é apenas trampolim de passagem para os metais e madeiras do Brasil seguirem para Londres. Mais de sessenta por cento. Não foram eles que escoltaram D. João e seus súditos quando da sua fuga para o Brasil? O débito continua sendo grandessíssimo! Mas voltando aos trabalhos com os minérios de ferro, Monlevade, é fácil avaliar que desde Pedro Cabral o foco dos portugueses era somente o de extrair e enviar para a sede o ouro e as pedras preciosas fartamente encontradas no nosso subsolo. Lucro a qualquer custo. Já o ferro precisa ser processado. Daí é que é negligenciado. Felizmente a coisa mudou um pouco. Vieram muitos sanguessugas anexados à caravana real, mas também alguns poucos competentes para discutir políticas de melhoria. De nossa parte, a ajuda vem de brasileiros capazes como certo Visconde de Cairu, que ainda não tive o prazer de conhecer, e os irmãos Andrada. Esses últimos estudaram em Coimbra. Alguns estrangeiros também nos ajudam ou visitando-nos, ou morando definitivamente no Brasil. A maioria deles é pródiga em relatar suas experiências. Há franceses neste bolo. Bem, afora isso, vamos ter aumento da demanda de açúcar e algodão, o consumo do café cresce, enfim, tudo leva a crer que, a despeito dos interesses do império, e dos políticos nacionais e estrangeiros, vamos entrar nos eixos! Também, Monlevade, até então, só podíamos negociar com Portugal. Não é mais assim. Mesmo que, o que é não nenhum fato novo, a França ainda caminhe por fora, essa é uma das razões de eu estar aqui em Paris. Para se ter uma ideia do que se passa em Lisboa, basta imaginar o caldeirão de ideias, juízos e julgamentos que campeiam a cabeça do seu povo. Lisboa é capital de periferia da Europa, mas não deixa de ser europeia e, portanto, seu povo é europeu. 210 Jairo Martins de Souza E não se mudou para as praias do Rio: ficou em casa que pega fogo. Então sua corte é expulsa de casa e passa a habitar colônia repleta de negros e mulatos ignorantes dos pés à cabeça. A sede de certa forma passa a ser colônia. Talvez tenha sido pior para Lisboa do que o devastador terremoto de 1755: milhares de fiéis mortos e dezenas de igrejas destruídas. Em contrapartida, a colônia também, de certa forma, passa a ser sede. É como se um senhor de muitos escravos fosse para a senzala morar com os escravos: para tanto tem que melhorá-la. Bem, parece-me que Dom João tem levado a situação a contento. A saída do castelo de Mafra, e a ausência constante da companhia de religiosos fizeram-lhe bem. Saiu da toca. De medroso e indeciso em Portugal, passou a ser bom negociador aqui no Brasil. Tem sido cortês e paciente com seus súditos coloniais. Que continue assim, fazendo acertadamente seus deveres. Na calada da noite, à luz de lamparina de óleo que se esgotava, Jean de Monlevade concluía resumo pessoal das informações que ouvira do capitão brasileiro. Sua privilegiada intuição dizialhe que lhe seriam úteis em futuro não muito distante! Silenciosamente fez coro com Freitas para que as relações entre França e Portugal voltassem à normalidade. Jean Monlevade, do Castelo à Forja 211 XI François. Martinho segue para Lisboa Os dias voam,Tisserand disse, estamos em 1810 e, repare o senhor, mon ami, já se passaram seis meses após início das aulas da Polytéchnique. O sonho de Jean de Monlevade estava em pleno andamento. E foi nessa tão esperada condição que fora a Guéret aproveitando os três dias de folga dos feriados de final de ano. Em casa, limitou-se a matar saudades e ouvir os pais conversando longamente na confortável sala de estar. E, após o almoço, deitou-se no seu quarto, deixando que a infância voltasse enquanto observava as nuvens que passavam ao largo de sua janela. Com seu afastamento de casa, repara, que a irmã crescera e já pensava em rapazes e namoro. Esteve rapidamente com o professor Duchamps e passou alguns poucos minutos com os amigos Platini e Fontaine. Achou tempo também para visitar rapidamente o sempre ocupado padre Ribérry: ele prosseguia em plena atividade no seu ainda movimentado orfanato. Todos entenderam a situação do jovem amigo. Respeitavam-no. Ninguém desconhecia o aperto e o rigor de ensino na cobiçada escola Politécnica. Tinha deveres e matérias a estudar. Não me manifestei nem fiz qualquer tipo de comentário a tais palavras de Tisserand. Preferi o silêncio, pois não sou pessoa que gosta de interromper o outro quando este tem a palavra. Até mesmo defendo a prática de acenos para manter andamento das conversas dois a dois em que me envolvo: prefiro usá-los ao invés dos tradicionais, sim, entendo, também acho... é por isso que, habitualmente, o máximo que me permito é, mantendo os lábios cerrados, emitir breve som nasal de uhum, uhm... minha senhora não aprova, mas minhas ferramentas para tanto são a cabeça, os olhos, as mãos, o polegar, os ombros e por aí vai. E, é claro, não tenho certeza de estar sempre com a razão, 212 Jairo Martins de Souza mas acredito piamente que, agindo desta forma, o canal de interlocução fica em níveis diferentes. Um fala com a boca. O outro com o corpo. Não há possibilidade de interferência entre as ondas de voz de pessoas que dialogam usando esse processo semiótico. Uma não anula a outra. No entanto, sou do tipo radical flexível. Não levo nada a ferro e fogo e, então, levantei discretamente a mão direita e, ao mesmo tempo, falando baixo, perguntei a Tisserand. E Martinho? Por que tem passado longe dos escritos do vigário geral? O estrangeiro assustou-se levemente. Não é bem assim, respondeu. Na realidade, Leopold Bogenet andou citando o rapaz brevemente nessa altura das páginas do seu caderno de anotações. A responsabilidade da omissão é minha. Foi proposital: algo como faz o tradutor de obra literária. O senhor, por acaso, conhece a expressão traduttore tradittore? A de quem traduz um livro, acaba escrevendo outro! Com um aceno de cabeça, respondi-lhe sim. Pois é, Tisserand confessou. Tenho traído o texto original... O mesmo fiz acontecer com François. Ele também se tornou figura ausente nesse meu relato. Recorda-se que lhe disse estar morando com os tios Lavillatte? Respondi-lhe novamente que sim. Ele não se mudou nem de cidade, nem de casa. Continua lá, Tisserand confirmou. No entanto, nunca era encontrado. Jean esteve procurando por ele em diversas ocasiões e os tios diziam-lhe estar na casa de namorada. Diziam-lhe também, ironicamente, que a moça sugava-lhe todos os momentos disponíveis do dia e da noite. Chamava-se coincidentemente Maria Vitória. O mesmo nome da irmã dos dois rapazes Monlevade. Na realidade, os tios Guy e Sophia Lavillatte não a conheciam pessoalmente e julgavam, a partir das informações do sobrinho, ser de alta estirpe e circular pelas rodas de luxo dos salões de Paris e até mesmo de Versailles. Não lhe dava gosto que o rapaz a apresentasse à família. Dizia que, quando se casasse, casaria com o seu escolhido, não com seu núcleo familiar. Bastava-lhe o dos pais. E, ressaltava que, em especial, o do lado materno. Não abria mão da companhia da mãe nem por minutos e dizia que, fosse possível, levaria os pais para que morassem todos juntos. François, Sofia Lavillate dizia ao marido, está cego pela paixão, e não tem tido argumentos e força para sentir que tais ati- Jean Monlevade, do Castelo à Forja 213 tudes poderão significar grande pedra no caminho de sua futura família. Parecia-lhes, Tisserand prosseguiu falando como se fosse porta-voz dos Lavillatte, que François andava evitando a companhia do irmão. Com isso pensava preservar a tranquilidade do seu relacionamento com a mulher que o escolhera. Jean absolutamente não conseguia entender o porquê da posição da futura cunhada em relação à família Monlevade ser de absoluto desprezo! Mais ainda porque os Lavillatte disseram-lhe que François havia falado das qualidades de sua gente à bizarra mulher. Especialmente do próprio Jean que era parente mais próximo tanto de sangue quanto geograficamente. Nada significou. A indiferença permaneceu incompreensivelmente inalterada. O fidalgo, meu pai, sentir-se-ia absolutamente ressentido com a postura da nora, e com a cegueira do filho, Jean prognosticou. Mas não seria ele que exporia a situação. Apenas se limitou a dizer como as pessoas fazem quando diante de realidades absurdas. C’est la vie. Qu’est-ce qu’on peut faire? (É a vida. Que posso fazer?). O senhor entendeu por que François anda desaparecido? Então vamos a Martinho. Martinho havia – se já lhe disse, repito – por concessão especial do fidalgo, passado a assinar Martinho Eugène de Monlevade. E, segundo o abade informou (ele o fez de forma bastante concisa), havia decidido após dois meses de estada em Paris que tomaria rumo diferente do que havia sido planejado para ele. A despeito de ter já trajado o uniforme de gala do Lycée Napoléon, não se adaptara às fortes exigências que a escola lhe impunha em termos de estudos. Mas não era razão única: ele tinha mais motivos! Mesmo com ajuda de Jean não dava cabo de suas tarefas, e ficara frustrado por não poder atender expectativa que o fidalgo Jean-François nele depositara. Passou a acreditar, piamente, que não fora forjado para tais coisas. Ademais, Monique du Lac havia terminado namoro de forma sumária. Dissera-lhe por meio de bilhete deixado para lhe ser entregue em mãos pela tia torta, Lucillia Pius. Sempre os recebera guarnecidos com suave fragrância. Este continha apenas palavras rápidas, secas e diretas. Caro amigo, foi bom: enquanto durou! O amargurado Martinho pensou em se jogar de uma das pontes do Sena e se deixar levar até as águas frias do Pacífico. Não o fez. Imaginou o corpo cheio de 214 Jairo Martins de Souza pus. Dias depois a ferida já estava secando, embora tivesse consciência de que a cicatriz iria permanecer para sempre. Ninguém se esquece do primeiro amor. Foi período de muita preocupação para Jean: o amigo meio-irmão lhe era muito caro. E sensível. Ambos haviam lido, recentemente, exemplar de As Desventuras do Jovem Werther, de Goethe, que figurava discretamente nas estantes de monsieur Dubois. Livro proibido pela Igreja, pois causara comoção à juventude alemã em décadas passadas. Muitos suicídios foram cometidos em série. Foi mais um motivo para que Monlevade, durante alguns dias, observasse cuidadosamente o amigo. Não queria que acontecesse com ele o que acontecera com o criado de Werther que o encontrara morto a tiro de pistola. Suicidara-se. Não suportara a decepção amorosa causada pela perda do amor de sua Charlotte. Graças às preces dos Pius e do acompanhamento assíduo do amigo Jean, no caso de Martinho, a vida não havia copiado a arte. O rapaz não se sacrificaria e não haveria produção de livros póstumos de textos pecaminosos. Como vimos, aos poucos, estava se acostumando com a ideia de que a moça du Lac não o amava. Já tivera perdas mais importantes, pais e irmãos, sua alma era habituada a conviver com o sofrimento. Aí que está. Também não obtivera êxito no desejo inesgotável de encontrar a família, mesmo procurando por todas as vielas dos bairros secundários de Paris. A saída que logrou foi desejar servir ao seu país de peito aberto. Não se diz que o patriotismo é o último refúgio do soldado? Sentia-se como um deles. Pedira licença ao fidalgo para honrar o nome Monlevade, vestindo a farda do esquadrão dos caçadores a pé. Começaria por baixo, mas ambicionava chegar a fazer parte do corpo de guarda do próprio Napoleão. Ou mesmo do seu serviço secreto. Bem, inicialmente iria trabalhar no hospital para feridos de guerra de Lisboa. Com isso honraria em especial também a própria família, os pais e os irmãos. O fidalgo assentiu. Tinha consciência da força de trabalho do rapaz que adotara. Foi assim que Jean perdeu a sombra que o acompanhava desde os tempos de criança. Árvore amiga. Faltarlhe-ia muito o querido companheiro que, abruptamente, decidira compor campanha de ajuda aos soldados que restaram machucados dos esquadrões de Junot. Que Deus o proteja! Sei que o senhor da mesma forma anda sentindo falta do moço, Tisserand concluiu. Não me culpe. É por aquelas razões que anda desaparecido dos eventos que ando relatando... Jean Monlevade, do Castelo à Forja 215 XII Jean passa por risco de cárcere na Polytéchnique. O aviso por demais antecipado da chegada do filho do capitão Freitas. Com a notícia da partida de Martinho para as terras portuguesas da península ibérica, Tisserand manteve-se calado por alguns minutos. Eu também refletia sobre o assunto, como também sobre os desdobramentos que poderia ter causado no andamento da vida de Jean de Monlevade. É como se ambos estivéssemos repassando todos os anos em que os dois amigos viveram praticamente juntos. Nesse clima de reflexão, absorvíamos a brisa que soprava suave sobre nossos rostos. Algumas mangas quase passadas da hora precipitaram-se no chão. Um moleque coletou algumas e meteu em embornal. Levantei-me e apanhei duas que sobraram ilesas. Ofereci a Tisserand. Ele agradeceu afirmativamente, mas disse que chuparia depois. Retruquei-lhe que essa era também minha intenção. Ambos não queríamos sujar nossas roupas com o intenso caldo amarelo da fruta. Então ele retomou sua história dizendo, estranhamente, que o casamento é caso especial a ser constantemente vigiado. Olhava despretensiosamente a fruta para verificar traços de podridão ou bicada de passarinho. E continuou. Foi apenas um exemplo, pois, não se tomando as precauções adequadas, a rotina, qualquer rotina, queima todo e qualquer tipo de atividade humana. A não ser que esteja ligada a elas qualquer tipo de obssessão. Como a de verificar insistentemente se fechou ou não a porta de entrada, ou a de não tocar a mão em maçaneta de fechadura, ou a de pedir repetidamente a cada cinco minutos a bênção paterna antes de se deitar. É claro que aqui não digo, e não incluo, hábitos individuais de saúde tais como o escovar os dentes após as refeições, ou o de colocar as mãos à frente da boca durante o bocejo, ou a limpeza das partes após cumprimento de necessidades, ou, 216 Jairo Martins de Souza por final, o desejo de banhar-se sempre que se está sujo. Esse tipo de coisa é feita de forma praticamente automática e sobre ela não cabe qualquer tipo de especulação filosófica. Portanto não é de nosso interesse, Tisserand comentou, dizer sobre os primeiros doze meses em que Jean esteve dentro dos muros da Polytéchnique. Seria repetir coisas, pois toda instituição militar tem rotina aborrecida. A Polytéchnique, a Politécnica, não é exceção. É baseada nesta premissa que procedo daquela forma, mesmo sabendo que, lá dentro, Monlevade conviveu com alguns gênios da matemática do mundo, enfim, vou relatar-lhe o mínimo necessário. Com isso tento evitar risco de mesmice. O senhor sabe que manter os sapatos limpos, a farda sempre alinhada, fazer exercícios físicos, praticar a ordem unida, prestar continência a quem de direito, perfilar-se quando convocado são deveres inseparáveis de todo indivíduo que segue academia militar. Com o agravante (em períodos atribulados esses valores têm efeito multiplicado: fuzilam-se indisciplinados a troco de nada) de os fatos que agora relato pertencerem ao período do Primeiro Império francês: o ano corrente é o de 1810. Isto, por si só, explica a que Jean esteve submetido em termos de disciplina. No entanto, nada o impedia de estudar muito. Era imbatível em química e física e, para tanto, aprofundou-se exemplarmente nos árduos caminhos da matemática avançada. Na Politécnica primava-se, segundo orientação dos seus fundadores, pelo nivelamento dos alunos em primeira instância e, ao mesmo tempo, por sólido conhecimento matemático. Lá realmente se contava com quantos paus se faz uma canoa! Continua ainda desta forma nos dias de hoje. Tanto é assim que é chamada de Xis. Escola Xis. O x das equações matemáticas. Jean de Monlevade é X1809: qualquer francês sabe o que significa. Significa ter sido estudante da Polytéchnique admitido no ano de 1809. Entretanto, a despeito dessa matematicidade levada a extremos, e conforme ostensivamente já lhe disse, o interesse por problemas sociais também era lá tido em grande conta. O aluno da Polytéchnique tinha não somente obrigação de debruçar-se sobre temas filosóficos como também desenvolvê-los em classe. Sua missão é servir à nação, não a si mesmo. Assim, desde seus verdes anos, tornava-se capacitado para seguir com eficiência qualquer carreira de engenharia, matemática, física, as- Jean Monlevade, do Castelo à Forja 217 tronomia e por aí segue. Muitas provas orais e discussões com professores e alunos mais antigos faziam, ao lado de trabalho no campo, com que a teoria fosse incorporada à prática. Estas ferramentas permitiriam a Jean percorrer com mais propriedade a carreira que escolhera desde tenra infância. O leque de opções colocado à disposição pela escola era generoso. Engenharia militar (Génie Militaire), de Minas (des Mines) e de Pontes (des Ponts). A carta chegara até a casa dos Pius e aguardou três dias para ser entregue a Jean Monlevade. Junto a ela, viera pequena caixa de madeira cuidadosamente enrolada por saco de pano de algodão amarrado com cordão grosso. Novamente o filho do fidalgo Jean-François fora retido dentro dos muros da Polytéchnique por motivo, digamos, fútil. Explico. Um dos colegas fora detido por protestar em voz alta contra disposição emitida pela direção da escola. Moço de alma combativa, sua família era da própria Paris e ele era também excepcional aluno em matemática. Do mesmo nível de Monlevade. Foi por isso que Jean estivera procurando-o para trocar ideias sobre estudos avançados, e novas investigações, da natureza das curvaturas de superfícies. A ferramenta que estava pesquisando era proposta por Monge, e basicamente constava de aplicação insistente do cálculo. Isso, no futuro, Tisserand informou, prepararia o caminho a ser percorrido pelo fenômeno chamado Gauss. Um outro grande craque no assunto! Mas voltemos a Jean e à sua procura pelo companheiro de estudos que, obviamente, não foi encontrado em sala de aulas. Disseram-no estar em cela cumprindo prisão temporária por desrespeito. Incomunicável. Posto, como se dizia, em regimes aquartelados, no gelo. Jean estava ansioso. Não suportou ideia de esperá-lo sair do xadrez, e quebrou as regras ao tentar falar com o rapaz entremeio às grades que o isolavam do mundo da Polytéchnique. Foi pego. O sargento chefe da guarda indagoulhe se gostaria de prosseguir estudos do lado de dentro da cela. Jean respondeu-lhe, não. Então suma daqui! Mas não deixou de anotar o mau comportamento do aluno. Daí o filho do fidalgo Monlevade ter sido punido com três dias de pernoite forçado nos alojamentos. Não é que tenha sido ruim. Por falta de vaga, fora encaminhado para alojamento de alunos mais avançados no curso. O dormitório ficava em piso afastado da rua e comportava em tor- 218 Jairo Martins de Souza no de cem alunos. Jean aproveitou para tomar contato com um e outro, de habilidades reconhecidamente superiores em matemática e química, e com os quais tinha interesses comuns. Fez escambos de selos raros por obras literárias que sabia não constar na livraria de Dubois. E, bem, como sempre fazia, tomou partido da inusitada situação. Depois das oito da noite o silêncio deveria ser total. Por isso que, a princípio, não lhe desagradou ficar as mesmas 72 horas para saber da mensagem que lhe enviara o capitão João Abreu de Freitas. Fazia meses que o amigo voltara para o Brasil. Foi uma longa carta em que o brasileiro confirmava muito do que dissera anteriormente em seus contatos pessoais com Jean. Escrita em duas versões. Uma em português. A outra em francês. Mostreas a Kostas Zavoudakis, pediu-lhe gentilmente, nas entrelinhas do texto, para que fique orgulhoso do meu desenvolvimento e minha aplicação. Como prova de consideração, avisou ter enviado, em anexo, exemplar de dicionário francês-português. Era do mesmo autor que o brasileiro adquirira na livraria de Dubois. E era o que estava guardado dentro da caixa que cruzara o oceano. No lado interno da capa, escrevera: ao jovem Monlevade com agradecimentos pela boa acolhida em Paris. Oferece, João Gomes Abreu de Freitas. Abaixo, colocou assinatura e data. Jean ficou bastante agradecido com a carta e o presente. O latim que aprendera na escola de Duchamps em Guéret facilitaria muito seu uso. O português e o francês são baseados naquele idioma, e praticaria mais o primeiro com Kostas. Não há sombra de dúvida que tal atitude seria de grande valia para seus estudos dos minérios da América do Sul. Afinal de contas, o Brèsil ocupa quase metade de suas terras. Mas o destaque foi que, num rápido post scriptum, informou que seu filho Ildefonso deveria chegar à França num prazo máximo de três anos. Já se informara, junto a entidades dos impérios português e brasileiro, de todas as formalidades legais para fazer aperfeiçoamento médico em Paris. Estava cursando com sucesso a Escola Anatômica, Cirúrgica e Médica do Rio de janeiro. E disse mais. Disse que sabia estar avisando com bastante antecedência, coisas de pai amoroso, mas gostaria que Monlevade, estando em Paris na ocasião, desse algumas orientações ao rapaz. Sei que posso contar com sua ajuda... Do amigo João... Jean Monlevade, do Castelo à Forja 219 XIII A Génie Militar e as avançadas técnicas de guerra do início dos novecentos Ao final do seu primeiro ano em Paris, Jean de Monlevade alcançou a chamada primeira divisão na Polytéchnique. Tinha 19 anos e ocupara a privilegiada posição de terceiro colocado. Foi hora de Tisserand ponderar que foram confirmadas todas as previsões feitas para a vida do rapaz. O filho do fidalgo Monlevade tinha realmente inteligência privilegiada. Ribérry, Duchamps, Platini, Fontaine e muitos outros que eram chegados a ele exultaram com o sucesso do jovem amigo. Jean os informara por carta individual enviada a cada um deles. Aliás, faltou-me enfatizar com mais veemência, Tisserand exclamou com ar de quem pede desculpas, que o jovem adorava escrever cartas. Escrevia para a família e os amigos, mesmo que não ocorresse nenhum fato novo. Ainda que longe dos números de Humboldt, cientista de quem já lhe disse (e que deixou mais de 35000 cartas em seu espólio!), as suas eram suficientes para descansar os pais, e evitar-lhes viagens constantes a Paris. Preocupava-se com eles, em termos práticos, já idosos e cansados pela vida, e procurava antecipadamente tranquilizá-los com mensagens de otimismo e comentários sobre o seu cotidiano. Escrevia como se estivesse em casa conversando sobre generalidades na sala de estar de Monlevade! A família e a cidade de Guéret ainda iriam se orgulhar mais ainda do jovem cadete! Não concluíra com honras e sem maiores atropelos a difícil fase preparatória da Xis? Paris, e o ambiente em que ele estava diretamente envolvido, eram extremamente propícios. Esqueça-se propositalmente aqui o constante estado de guerra que o imperador mantinha em terras estrangeiras. Pois na capital francesa de 1810, as novidades de maior re- 220 Jairo Martins de Souza alce foram a anulação do casamento de Napoleão com a imperatriz Josefina. Circularam boatos que a ex-viúva o traía. Foi esse o estopim da separação? Ou foi o fato de ela ter se tornado estéril? Qualquer que tenha sido o motivo, Josefina foi a paixão da vida do homem mais poderoso que a França conheceu. E que dizia ser ela, a própria França, sua única amante. Frase somente de efeito, pois não totalmente verdadeira: não escolhera a austríaca Maria Luiza para deitar-se em novo matrimônio no mesmo ano de 1810? É certo que fuxicos dessa natureza deixam de ser frugais à medida que dizem respeito a homens poderosos como Bonaparte. Tanto é assim que também faziam parte do cotidiano que Jean descrevia para a família. Mas intrigas conjugais, mesmo que palacianas não conseguem mover, em termos finais, a máquina do mundo. Essa é tarefa para poucos. Jean de Monlevade inexoravelmente seria um desses privilegiados: tinha mente brilhante, era um aluno xis, e contava com a completíssima biblioteca da école e, na casa dos Pius, a livraria de Dubois. Era lá que Kostas Zavoudakis o ajudava a localizar material para pesquisa em pontos de interesse. Enquanto isso, o Breu ficava aguardando-o com ansiedade. Já era idoso, mas se mantinha forte como nos tempos de juventude. Quando o seu dono chegava, prosseguia trazendo-lhe uma ou outra pedra do quintal dando sinal de boas vindas. Brincadeira eterna! Jean retribuía-lhe com afagos. O cão costumava até deitar-se de costas no chão com as patas viradas para o alto, tamanha era sua satisfação. Às vezes extrapolava e vertia água amarelada para o alto, molhando inadequadamente o terreno. E o dono, caso não se cuidasse! Jean ria das reações do seu antigo companheiro de pesquisas de campo. O Breu parecia compreender que o patrão não lhe dava a atenção costumeira por falta de tempo. Também pouco depois da ida de Martinho para Portugal, Jean fora noticiado não mais precisar comparecer à casa de Bernadette du Lac. Ela havia adotado posição similar à que a irmã Monique tivera com relação ao próprio Martinho. O bilhete lhe fora entregue mais ou menos em condições semelhantes, e parecia ter sido escrito pela mesma pessoa. Não poderia ser mera coincidência que o papel tivesse o mesmo perfume e a mesma letra redonda e elegante. Ambos devem ter sido escritos a quatro mãos: Bernadette e Monique! Jean Monlevade, do Castelo à Forja 221 Foi o que Jean deduziu, recordando-se instantaneamente do texto que Martinho havia lhe mostrado quando do seu rompimento com a outra du Lac. Bem, disporia de tempo precioso a mais para dedicação aos seus propósitos. Lucillia Pius ficou arrasada por alguns dias. Se o cavalo arreado, nos dado de presente, para na porta de nossa casa, não há outro caminho: tem que ser montado! Não entendia a atitude das sobrinhas. Por fim conformou-se com o fato, mas prometera comentar com o pai da moça para considerar mudança de sua atitude. Até então fizera sua parte, e iria até o final. Após ter dado a conhecer sobre a situação amorosa do filho do fidalgo, Tisserand informou que sua entrada direta, em 1810, na Engenharia Militar, a Génie Militaire, não foi surpresa para o próprio. Os admitidos na primeira divisão da Polytécnique desfrutavam de direito exclusivo para pedir ingresso nos quadros da Génie. Neste ponto não faz mal informar, Tisserand disse, que quatro anos mais tarde um jovem chamado Augusto Comte seria admitido na mesma Polytéchnique. Tinha 16 anos de idade e influenciaria muito a Jean, pelo fato de ter sido responsável pela criação da pragmática filosofia Positivista. Monlevade tornou-se adepto das ideias do colega de escola. É inclusive por causa delas que, na bandeira do Brésil republicano, consta a conhecida frase, Ordem e Progresso. Por sua vez, tal como Monlevade, na Polytéchnique, Comte foi fortemente afetado pelo físico Sadi Carnot, pela inovadora matemática de Cauchy, e pela mecânica analítica de Lagrange. O astrônomo Laplace foi também objeto de admiração comum. Imagine o senhor o altíssimo nível em que direta, ou indiretamente, aconteceu a formação do filho do fidalgo! Aí foi momento em que Tisserand exclamou com ar vitorioso que, na Génie Militaire, figuravam também as melhores cabeças do Império francês. Exibira sorriso cada vez mais largo à medida que completava a frase. Fiquei agradavelmente impressionado com a satisfação demonstrada pelo estrangeiro em razão do sucesso do protagonista de sua história. E, em termos psicológicos, percebi existir algo mais por trás de sua expressão de alegria. Não demorei menos que um minuto para que verificar que estava certo. 222 Jairo Martins de Souza Pois Tisserand relatou logo a seguir que, doze meses depois, Jean de Monlevade saíra da Escola Especial de Engenharia Militar com a excepcional classificação de quarto colocado. Estudara topografia, relevos de terrenos, fortificações, construção de pontes, montagem de bússolas, sextantes... Ao contrário do que Rousseau dissera, Jean comprovou na Génie que as guerras não são ganhas pela coragem e os rompantes heróicos dos soldados. Tais iniciativas louváveis jamais substituem a técnica e a disciplina ordenadas. O jovem não se sentia como um Napoleão que se tornara tenente de artilharia aos 19, mas aperfeiçoara-se na geometria descritiva aplicada às técnicas de construção de canhões e máquinas. Compreendera o dinamismo das táticas modernas de infantaria, de cavalaria, de artilharia, de análises de relevos de terrenos, balística e potência das armas de fogo. Tudo isso era material que havia estudado preliminarmente na Polytéchnique. E que foi motivo de guardar por toda sua vida o Manual da Arte da Guerra e da Fortificação de autoria de Gay de Vernon. Vernon foi diretor de estudos da Polytéchnique, e a obra lhe fora presenteada por Dubois. A partir daí é que finalmente iniciou agenda para dar cabo de sonho posterior. A escola de Minas, a école des Mines. Para tanto a secretaria da escola registrou a data de sua entrada em 14 de setembro de 1811. Ao saber da noticia, Jean agradeceu silenciosamente a todos que o ajudaram. A Deus, à mãe, aos irmãos, aos amigos, aos professores, ao casal Pius, enfim, a todos, tal como se faz em convite final de formatura. Para o pai fez homenagem em capítulo especial de forma feliz, mas denunciando certa angústia nas entrelinhas. Parecia uma premonição (a qual já explico). Faltou somente um pensamento, um aforismo ou passagem da bíblia. Já o Breu não foi esquecido. Era parte da família! Outro que viria a se tornar praticamente parte da família seria o filho do capitão Freitas. Mas estava demorando bem mais que o previsto para acertar ida para Paris, Tisserand disse. E justificou. Portugal retardou por demais a reatar relações diplomáticas com os franceses. O pai de Ildefonso, lembro que este era o nome do rapaz, a cada três ou quatro meses, trocava correspondências com Monlevade. E evoluía cada vez na língua francesa: era o que se percebia pela crescente fluidez do texto que sua bela caligrafia Jean Monlevade, do Castelo à Forja 223 mostrava a cada carta que chegava. Andava treinando também a fala, foi o que informara em uma de suas últimas missivas. O francês Guido Tomás Marlière, homem de altíssimas relações pessoais, estivera pelas Geraes e havia passado alguns dias com o fazendeiro. Era homem que havia conquistado a confiança do imperador, enfim, foi com ele que Freitas praticara bastante a língua. Marliére foi um dos que veio a colaborar com Monlevade no Brésil, Tisserand acrescentou. Mas, por ora, o que me interessa assinalar, e que restou escondido nas entrelinhas do que lhe disse, finalizou, é que, enquanto o filho Ildefonso não chegava a Paris, Freitas mantinha estreita correspondência com Monlevade. Não se declaravam cansados de trocar ideias sobre o Brésil de D. João e a França de Bonaparte. 224 Jairo Martins de Souza Jean Monlevade, do Castelo à Forja 225 XIV A graduação. Onde se diz tardiamente da morte do fidalgo O senhor sabe, mon ami, que um pressuposto contador de histórias não pode ficar continuamente dando saltos no tempo. Não pode ficar pulando para frente e para trás. No entanto mais uma vez não tenho alternativa: é imposição dada pelos escritos do próprio abade, Tisserand comentou. Depois volto à cronologia regular! Rogo-lhe paciência! Vou recordar-lhe somente alguns números e datas que... bem, não são tantos assim e a meta é ajudá-lo a não se perder no emaranhado de informações que tenho desovado sobre Jean de Monlevade. A começar voltando ao ano de 1810, quando de sua promoção a aluno de primeira divisão da Polytéchnique. Lembro que, na mesma ocasião, foi atendido em sua demanda para servir na ambicionada Engenharia Militar (Génie Militaire). Um ano depois, em 1811, e após quatro promoções, foi admitido na école des Mines. O fato novo é que quatro anos mais, em janeiro de 1815, veio a ser nomeado aluno de primeira classe. E vinte e três meses foram suficientes para acontecer uma das grandes efemérides de sua vida. Monlevade tornou-se engenheiro de minas em primeiro de abril de 1817. Formar-se engenheiro pela école des Mines não era pouca coisa! Foram muitas e muitas horas de estudos e discussões orais com colegas e professores. Outras tantas foram gastas à luz de lamparina ajudada pelo calor e luz da lareira acolhedora da casa dos Pius. A vida em escolas especiais francesas, como a école des Mines, era duríssima! O piedoso casal se condoía com as horas de sono perdidas pelo moço. Desde sua primeira entrada pelas portas da casa, era como se um dos filhos que andavam espalhados pelo mundo tivesse retornado ao lar. Ressentiam-se com a 226 Jairo Martins de Souza ausência de Martinho, mas, ao longo dos anos, tornavam-se cada vez mais felizes não somente com a presença de Jean como também com a de Kostas. Cada um tinha estilo próprio de agregar valores: melhoravam o ambiente. Os Pius amavam a lareira de ferro fundido que o próprio Jean projetara com detalhes estéticos e técnicos absolutamente inovadores. A antiga era de pedras e às vezes espalhava fuligem pela casa. Lucillia frequentemente acompanhava Jean noite adentro. Religiosamente, como era de seu feitio, de hora em hora levantava-se de sua cadeira e amorosamente servia-lhe café para que não ficasse sonolento. O ruído suave da agulha do seu tricô acompanhava a escrita silenciosa do rapaz. Parecia incansável ao molhar a pena no pequeno vaso de tinta. Ao fundo um ou outro estalido de acha de lenha queimando na lareira fazia-lhes lembrar que o tempo existe. A vista cansada da boa mulher é que, por final, empurrava-a para a cama. Mas antes disso sempre havia alguns botões mais para pregar. Não. Não eram as roupas da casa assim em tamanha quantidade! É que a combativa esposa de Septimus Pius nunca se cansava de trabalhar em causas sociais patrocinadas pelos comitês de ajuda aos pobres do seu bairro. Não sabia! Mas foi mais um modelo para Jean ao longo de sua vida no cone sul do mundo. Então Tisserand paralisou discurso por instantes. Eram momentos únicos em que eu percebia que há horas o estrangeiro conversava comigo. Às vezes parecia cansado. Parecia. Pois a energia voltava-lhe instantaneamente e ele prosseguia com a mesma disposição e estado de espírito. É pensando sobre isso que intentei pedir-lhe para adiarmos o resto para a manhã do dia seguinte. Estávamos em um sábado. Eu não trabalhava aos domingos e poderíamos estar nessa praça à hora em que ele julgasse adequado. Foi quando ele atropelou meus pensamentos, e disse algo que dava outra direção à conversa. Estava um tanto distraído, mas entendi que o estrangeiro iria contextualizar rapidamente os anos de 1810 a 17 no mundo. O senhor pode considerar como se fosse um algo mais aos esclarecimentos que o capitão Freitas dera a Jean durante passagem por Paris. O interesse em retomar esse rumo, Tisserand ressaltou, era relembrar que muito havia acontecido desde que o então cadete Jean entrara na Polytéchnique. Além disso, não custa insistir que Jean Monlevade, do Castelo à Forja 227 muito do que sobrevive em nossa memória é fixado por repetição de tempos em tempos. Diz-se sobre um assunto. Diz-se sobre ele novamente usando palavras diferentes. É assim que se retém o conhecimento. Sigamos! Pois o Congresso de Viena, em 1815 havia redesenhado os mapas políticos e geográficos da Europa. A França expulsara Bonaparte. Luís XVIII assumira o poder. Brevemente navios a vapor cruzariam os oceanos... Na América do Sul, o Brésil fora elevado à categoria de Reino Unido. Os artistas Nicolas-Antoine Taunay e seu irmão Auguste, Joachim Lebreton, Jean-Baptiste Debret, e o arquiteto Grandjean de Montigny já haviam chegado a terras cariocas. A famosa Missão francesa: missionários da cultura. O Real Gabinete de Mineralogia – fundado por Dom João, em 1810, no Rio de Janeiro – estava sob nova direção. O barão de Eschwege, prestigiadíssimo engenheiro alemão, fora confirmado como diretor da nascente siderurgia brasileira. Já disse-lhe, mon ami, que Freitas, pouco dias após sua chegada a Paris, havia mencionado este homem a Jean. Em Congonhas do Campo, a fábrica Patriótica produzia ferro em escala industrial. Em Morro do Pilar, o Intendente Câmara fazia o mesmo com o ferro líquido: o gusa de alto forno. Ambas as indústrias eram localizadas na província em que morava o capitão João Gomes Abreu de Freitas. Estas informações chegavam aos poucos ao conhecimento de Jean de Monlevade, por meio das já referidas correspondências que trocava com o brasileiro. A amizade mantinha-se firme, a despeito da imensa distância que os separava. E havia algo mais. O filho do capitão, o jovem Idelfonso, já estava em Paris. Mostrei-me surpreso, há muito desejava saber a quantas andava a situação do jovem médico brasileiro! Mas para meu desencanto, Tisserand imediatamente manifestou desejo de voltar ao que dizia sobre a formatura e o estado de espírito de Monlevade Não pedi. Mas explicou-me a razão de assim proceder. Havia alguns detalhes da vida familiar do próprio Jean, disse-me, que passam da hora de serem postos nesse relato. Alguns são tristes, não lhe apetecia dizê-los, mas não há mais como postergar! E por tudo que Léopold, o vigário geral, relatou até aqui, vê-se que o filho do fidalgo Monlevade absolutamente fez por merecer o tão ambicionado título de engenheiro des Mines! Pena 228 Jairo Martins de Souza que o pai não tenha podido assistir em gozo de vida a coroação deste êxito do filho. Aos 52 anos, o fidalgo Monlevade havia morrido, o ano foi o de 1812. Felicité disse para amigas que, para seu consolo, concluíra que ele se fora em estado de total confiança em ter salvamento por Cristo Jesus. Iria para sua eterna morada no céu e lá ficaria esperando pela mulher. O local do seu passamento foi como teria sido de seu desejo: em sua própria casa. Morrera dormindo nas dependências do seu próprio castelo Monlevade. A esposa nunca deixaria de comentar como foi duríssimo o despertar daquela manhã. Conversara com o marido à noite. Ele usou-a com gentileza e amor. Poucas horas depois, o grande golpe. Seu querido Jean-François, pai dos seus três filhos, nunca mais retornaria do seu sono final. Aí está justificada a sensação estranha que Jean tivera quando do seu ingresso na école des Mines. As exéquias foram feitas da forma mais simples possível, conforme orientação que o fidalgo deixara em seu testamento. Nada de luxo ou ostentação. A França perde alma altamente cidadã, foi o comentário geral. Lá estavam, além de autoridades locais e do governo central, os amigos do fidalgo e os da família. Não vou listá-los para você, mon ami, o rol seria por demais extenso. Mas em funerais e festas de casamento as pessoas que são sempre lembradas são as que não estiveram presentes. Foi o que aconteceu a Martinho. Nunca poderia chegar a tempo de Lisboa, onde sabemos estar cumprindo missão de soldado. Jean havia lhe enviado carta imediatamente. A notícia deveria levar no mínimo dez dias para alcançar o velho companheiro a quem o pai autorizara uso de nome. O filho chorou tardiamente o morte do fidalgo, seu pai postiço. François permaneceu alguns dias mais em Guéret com a mãe, ajudando-a a organizar os objetos e documentos do pai morto. Maria Vitória estava assustada com o que acontecera, não há como negar, isso faz parte da miséria humana... Os filhos abdicaram seus direitos em favor da mãe. Quando ela subir ao céu para encontrar-se com papai, veremos como estas questões de propriedade ficam por final, foi o que disseram quase ao mesmo tempo. E Maria Vitória? Alguém perguntou. Com Maria Vitória ninguém deve ser preocupar, foi o que os filhos homens responderam. No momento certo daremos a ela dote adequado, que Jean Monlevade, do Castelo à Forja 229 ninguém se preocupasse, não abandonariam essa responsabilidade deixada pelo pai, enfim, iriam deixá-la em situação absolutamente tranquila. Jean e François temiam pela saúde da mãe. Estavam conscientes de que a paixão que ela sentia pelo marido era formidável. Não fosse esse sentimento bem cuidado, poderia matá-la em breve tempo. Manteriam observação constante nos primeiros meses de luto. Pediriam especial atenção do abade Ribérry que, embora envelhecido, continuava bastante ativo e cada vez mais abraçado ao sacerdócio. Crescia em bondade e amizade aos seus paroquianos que, em troco, diziam-lhe não estar ficando mais velho, e sim tornando-se melhor. A esperança é que, a médio prazo, a dor da mãe fosse superada pela fé. Ela não poderia ceder à tristeza da perda, bem, tinha uma filha que ainda deveria ser preparada para o casamento, por fim, os rapazes não tinham dúvidas de que, além de tudo, teria que amparar, e ser amparada, diretamente por Maria Vitória. Assim foi! Um ano depois, François casou-se com a noiva que dissemos não se dar conta da família Monlevade. Daí praticamente desapareceu da vida de Jean. Se bem que seja verdade que, quando se encontravam, o eterno laço de sangue fazia-os comportarem-se como velhos camaradas. Mas era fato raro. Dois anos depois do matrimônio, ou seja, em 1815, Jean foi informado por terceiros que era tio de um bonito bebê chamado Elisabeth-Clémence. Tio de primeira viagem. Foi visitá-la, mas pouco demorou. Após alguns minutos de contato, a esposa de François, acompanhada da mãe e algumas amigas, retirou-se em direção aos seus aposentos para amamentação. Saíram falando alegremente sobre o aspecto saudável do bebê. Ficou por lá. E mamãe? Jean perguntou a François. Já esteve com o primeiro neto? Ainda não, François respondeu. Minha esposa decidiu comunicar-lhe somente daqui a alguns dias quando terminar o tempo do seu resguardo. Então Jean fumou um charuto a mais em companhia do irmão e, mal apagadas as cinzas, montou cavalo que havia alugado para chegar até a casa do próprio. Não mais voltou. Nem foi convocado para tanto. Como dissemos, a solução adotada foi a de encontrar-se esporadicamente com François em restaurantes da cidade. Rápidos momentos em que propiciava 230 Jairo Martins de Souza ao irmão saber dos amigos comuns de tempo passado, e de sua amada família. E é por falar em família, Tisserand disse, que devo convidálo a voltar à cerimônia de formatura na école des Mines. Eram instantes em que se falava dos pais ausentes e, Jean, emocionado, rememorava o estilo carinhoso e preocupado do fidalgo, seu pai. Nunca mais teria chance de apreciar sua bela escrita dizendo do dia a dia do castelo que tanto amava. Letras floreadas. Um perfeito calígrafo! Quando criança tentava imitá-lo em suas anotações escolares. Enfim, não foi somente por isso que, naquele mesmo dia das celebrações de sua formatura em engenharia, homenageou-o, in memoriam, em cartas endereçadas à mãe e aos amigos. Caprichou de forma especial na caligrafia. Sentiu-se como no dia em que recebera a triste notícia. Chorou intensamente. E, mais ainda, lembrou-se do que já pressupostamente sabemos: no momento do enterro havia feito emocionada elegia. O sentimento e a dor imediata da falta fizeram com que sentisse responsabilidade crescente quanto a eternização do nome Monlevade. Aumentaria esforços. Uma coisa puxa a outra, diminuiria tempo livre. Multiplicaria o número de cartas a serem enviadas para a mãe. Foi por ter tudo isso em conta que, na ocasião, havia retornado o mais breve possível para Paris. E aqui estamos novamente diante do resultado. Na primeira fila de pais de formandos, a mãe e a irmã acenavam sorridentes. Estavam ansiosas por abraçá-lo. François compareceu somente no encerramento da cerimônia. Justificou atraso, dizendo ter tido necessidade de levar a filha ao médico. Praticamente teve que carregá-la no colo: é por isso que estava com a roupa um pouco amassada. Vocês sabem o que acontece normalmente com as crianças e os velhos nessa troca de estação! Havia compensado parcialmente a frustração de Jean, por não vê-lo de imediato na cerimônia, trazendo a tiracolo o jovem primo Léopold que passava uns poucos dias em Paris. Jean, ao vê-lo, divagou por instantes sobre a rapidez da passagem do homem pela terra. Há poucos anos vira o nascimento daquele rapazinho que o cumprimentava e dizia-lhe – com olhar de admiração – estar entrando como noviço em escola religiosa. Meu sonho é chegar a ser um vigário geral! À direita, em banco reservado para convidados, o casal Pius, de braços dados, observava e se enternecia com a felicidade do Jean Monlevade, do Castelo à Forja 231 formando que consideravam quase como filho. Nas últimas noites, já deitados e antes de dormir, sofriam por antecipação diante da perspectiva de novos caminhos a serem trilhados pelo rapaz. As sobrinhas, as irmãs du Lac, compareceram, vestidas a caráter: haviam sido convidadas não somente por Jean, como também por famílias de outros formandos. Em breves momentos Bernadette disse-lhe estar noiva de jovem marquês que viera recentemente da Baviera. Paixão à primeira vista. Que não a impedia de olhar com admiração o reluzente anel que o antigo namorado havia posto no dedo anular direito. Presente da mãe. Enquanto isso, Monique mostrava aliança de casamento a Felicité. Havia se casado com filho de conhecido importador de produtos brasileiros. Anteriormente havia pedido a Jean que transmitisse recomendações a Martinho. Ambas desejaram-lhe felicidades e partiram em carruagem deixada à disposição pelo marido de Monique. Jean reparou que, ao retirar-se, Bernadette virou ligeiramente a cabeça e dedicou-lhe rápido e imperceptível olhar de despedida final. À exceção de Lucillia Pius, ninguém mais notou a circunstância: o reboliço era grande e a festa seguiu animada! Não se dispunha de fotografia, nem mesmo a partir das primitivas câmeras à base de caixa escura, Tisserand comentou. Muito menos das modernas digitais. E, pior ainda, mesmo que grandes pintores da corte costumassem comparecer para registrar festividades de graduação como a des Mines, como já disse-lhe, mon ami, Taunay, Debret e outros grandes já se encontravam em terras brasileiras. Mas não seria surpresa se fosse descoberto, nos dias de hoje, algum quadro perdido no sótão de velha casa parisiense e que retratasse algo daquela cerimônia e... bem, ainda que não se tendo em mãos nenhum registro daquela natureza, não é difícil imaginar a felicidade dos formandos. A de Jean de Monlevade, mais uma vez, atingiu seu clímax quando Ildefonso Gomes de Freitas aproximou-se e cumprimentou-o efusivamente. O filho do capitão Freitas havia se tornado um dos seus amigos prediletos! 232 Jairo Martins de Souza Jean Monlevade, do Castelo à Forja 233 XV Ildefonso Gomes de Freitas As relações entre Portugal e a França voltaram a ser amigáveis exatamente no dia 18 de junho de 1814. Aproximadamente um ano depois, em junho de 1815, o capitão Freitas dava por encerradas, com sucesso, as negociações com o cônsul francês no Brasil, o coronel Jean-Baptiste Maler. O assunto foi longo período de estudos médicos que o filho pretendia usufruir em Paris. Maler havia chegado ao Rio em abril daquele ano. Foi por tudo isso que, em agosto do mesmo ano, o jovem médico Ildefonso Gomes de Freitas já estava a caminho da Europa a bordo do Minas Geraes. Vimo-lo faz pouco na cerimônia de graduação de Jean na école des Mines. E o senhor corretamente deve ter concluído, Tisserand prosseguiu, que não era de hoje que chegara a Paris. Então é mister voltar alguns meses na linha do tempo para vê-lo chegar à casa de Septimus e Lucillia Pius. Pois por meio de convincente intermediação de Jean, o casal havia ganhado um novo inquilino. A princípio, uma simples substituição: ocuparia os aposentos originalmente pertencentes a Martinho. Já lhe disse, Tisserand lembrou, que Jean de Monlevade mantinha correspondência regular com o capitão Freitas. Pois é. O hábito estendera-se ao filho. O rapaz tinha, tal como o fidalgo Monlevade, uma bela caligrafia, que era sempre acompanhada de textos de fácil leitura e bom humor. Isso dava sabor especial para Jean. O jovem fazia-lhe lembrar o pai. Escrevia em um francês quase perfeito e, tão logo concluíra o bater de palmas na porta da casa dos Pius, Jean comprovou que sua fala era também de qualidade. Praticamente sem sotaque! O doutor Ildefonso nem bem havia entrado e já dizia de sua satisfação por estar na cidade de que o pai falava com tanto ca- 234 Jairo Martins de Souza rinho. E, poucos segundos depois, comentava sobre a admiração que nutria pela cultura francesa. Eram sentimentos e elogios absolutamente sinceros, pois, passados alguns minutos mais de conversação, ficou patente que não era pessoa de planejar agrados convencionais. Deus, os Pius imediatamente perceberam, havia lhe dado de presente algo que é privilégio de poucos: a espontaneidade. E não foi somente por essa característica que encantou a todos. Tinha modos totalmente diferentes de Jean, Martinho e Kostas. Mais expansivo. O humor criativo e cheio de bons sentimentos aflorava a cada nova situação. Lucillia sentiu que havia conquistado mais uma pérola para seu lar. Septimus sorria pelos cantos da casa. Não fosse bastante, o rapaz era extremamente musical. Saía do interior da residência cantando e voltava com o mesmo estado de espírito e atitude. Alma boa. Com o passar dos dias, ao expor a arte que se praticava na província de Minas Geraes a Jean, a Kostas, e ao casal Pius, já cantava em francês algumas modinhas regionais. Trouxera consigo uma belíssima viola de dez cordas. Dizia ser companheira inseparável! A simpatia com que tratava as pessoas fazia-o ainda mais agradável aos olhos. Até o Breu logo se deu conta do caráter vivaz do jovem médico brasileiro. Logo no primeiro contato, foi-lhe atirando um pequeno pedaço de calhau para que o cão o trouxesse de volta. A brincadeira que tanto agradava ao animal também passou a fazer parte do cotidiano de ambos. Qui est-il? Quem é o rapaz? Lucillia Pius aprendera a conviver diariamente com a pergunta que lhe era feita pelas moças das casas próximas. Procurava ser reticente. Instantaneamente passou a alimentar ciúmes das que tentavam se aproximar do novo inquilino. O caso das irmãs du Lac não lhe saía da cabeça. Não se dera a contento naquela oportunidade. Não cometeria os mesmos erros. Escolheria a dedo! O capitão Freitas, sabemos, havia dado várias aulas de Brésil a Jean. Mas o filho dizia-lhe as mesmas coisas trazendo a tiracolo algo novo. Discutia apaixonadamente. Com mais intensidade ainda, após ingestão de um ou dois canecos de vinho: desde sua chegada declarou-se apreciador dos tintos franceses. Foi nessa condição festiva que analisou conjuntamente com Jean a veracidade das anotações do britânico John Mawe, On a Gold Mine in South Jean Monlevade, do Castelo à Forja 235 America, de 1812. A farra do ouro já havia sido feita pelo portugueses, agora não era assim tão fácil encontrar o precioso metal. Independente do tema, conflituoso ou não, as palavras que Ildefonso proferia eram temperadas com levíssimas pitadas de amor. O pai era homem prático. O filho fazia tudo ficar mais bonito e sedutor. A região de São Miguel do Piracicaba tornava-se a mais bela do mundo. A propriedade do pai era extensíssima e um cavaleiro podia gastar dias para conhecer seus limites. Não há meios de conhecê-la por inteiro, pois tinha longos trechos de mata fechada. Inexpugnável. Proliferavam onças, gatos do mato, tatus, antas... e as nunca vistas mulas sem cabeça. Mostrava gravuras dos animais procurando-as nas páginas de obras da livraria de Dubois. Nas águas dos rios brasileiros, peixes como piaus, dourados, cascudos e bagres eram pegos praticamente à mão. É muita fartura. A terra é fértil e ao mesmo tempo riquíssima em minérios e metais. O ouro ainda existia por lá. Bastava ser procurado. Um paraíso perdido e praticamente intocado. A parte prática da coisa é que Ildefonso, em avanço, dera início a procedimentos para obtenção de salvo-conduto para que o engenheiro francês pudesse viajar por áreas de mineração de Minas Geraes. Lembrar que, a princípio, para as autoridades do reinado lusitano, todo cidadão da França era considerado, em potencial, um espião a serviço do império do seu país. Com isso anunciava veladamente segundas intenções para que Jean fosse ter até terras brasileiras. O pai era antigo conhecido do ministro dom Manoel de Portugal e Castro e fora a fonte da qual partiria o sauf-conduit para o amigo francês. Isso seria colocado em ação caso houvesse interesse do próprio. Jean ficou agradecido e cada vez mais admirava a capacidade do médico brasileiro de se antecipar às necessidades de terceiros. Definitivamente o sulamericano não era egoísta: pensava sempre no outro! Permaneceriam amigos para sempre, foi o que Tisserand disse sorrindo. Mais ainda até quando Jean concluía seu curso superior na école des Mines. O contato era constante, bem, quando Monlevade se formou a França estava sob comando mais equilibrado de Luís XVIII. No entanto, o exemplo do terror branco demonstrava que o país ainda mantinha restos das convulsões sociais dos anos anteriores. Os monarquistas estavam dando o troco... Mas não era somente por isso que Jean sentia-se fortemente 236 Jairo Martins de Souza inclinado a deixar temporariamente seu país e, preferencialmente, viajar ao Brésil. Pesava mais na balança as paixões despertadas pelas descrições dos membros da própria família Freitas, como também o desafio de conhecimento de novas províncias minerais. Convenceria seus amigos. Levaria o Breu. Todos poderiam acompanhá-lo! Martinho ainda trabalhava em Lisboa. Platini e Fontaine em Guéret. Ultimamente escreviam dizendo que andavam inquietos com a monotonia da vida do interior. Já Kostas Zavoudakis... Kostas era homem do mundo. Não tinha dúvidas de que atenderia chamado do amigo engenheiro. Foi por isso que imediatamente o jovem engenheiro de Minas iniciou planejamento da viagem. Partiria inicialmente sozinho. Analisaria o terreno. Depois, fosse o caso, convocaria os amigos. Iriam para o novo mundo! Jean Monlevade, do Castelo à Forja 237 XVI A viagem para o Brésil A rota de viagem que Jean de Monlevade havia traçado terminava na fazenda do capitão Freitas às margens do Piracicaba. Rio de águas mansas, foi o que o amigo dissera-lhe. A conselho de Ildefonso também incluíra passagem por alguns dias na propriedade de um dos seus irmãos. Era próxima à do pai, e o subtenente José Joaquim Gomes de Freitas o receberia com muito prazer. O senhor, caro doutor Monlevade, mesmo sem ter contato pessoal com a maioria dos nossos, é um velho amigo da família. Com essas e outras orientações, o recém-formado engenheiro de minas planejara todas as circunstâncias dos eventos de viagem com precisão de laboratorista. Portanto, para não aborrecê-lo, caro amigo, vou dizer de suas intenções somente por alto. Foi como parcialmente Tisserand deu como encerrado o assunto. Sairia de Paris a tais horas do dia 2 de abril de 1817, um dia após sua graduação. Chegaria ao porto do Havre. Embarcaria para Lisboa, local onde seguramente mais passageiros e mercadorias seriam acrescentados ao número de viajantes e volume de carga. Conheceria a capital do império português. Lá também programara, por carta, encontrar-se com Martinho. Conversaria com o amigo sobre possibilidades futuras. E seguiria diretamente para o porto do Rio: Saint-Bernard era o nome do barco. Confiava não haver problemas de aguardo de chegada dessa embarcação. O mesmo estava no Havre há meses sofrendo reparos no casco, e essa era sua primeira viagem após volta às águas. Gastaria de 45 a 90 dias, totais. Antes da viagem de Monlevade, mon ami, muitas, ao longo dos séculos, haviam sido feitas seguindo o mesmo percurso. Antes mesmo, dizem, do descobrimento das terras brasileiras. Em 238 Jairo Martins de Souza particular, o senhor encontrará, no Brésil, dezenas de livros de história que informam muito bem sobre as agruras das travessias transoceânicas do início do século dezenove. O tema virou moda nos últimos anos. Talvez porque os passageiros tenham sofrido os mais variados tipos de males! Basta lembrar a que foi feita pela família real quando fugia do assédio francês em 1808. Foi por isso que, quanto à fase marítima da viagem, Jean havia esboçado seus planos de forma ainda mais meticulosa. Era um politécnico. O tempo de estada no mar era variável, mas seguramente longo. Informou-se sobre todas as condições de viagem e da tripulação do Saint-Bernard. Inteirou-se da quantidade de barris de água embarcados e dos aprovisionamentos de carnes e cereais. Fez papel de engenheiro de suprimentos com facilidade. Não é que fosse algo inusitado. Aprendera muito de tudo no período tanto da Polytéchnique quanto da Génie Militaire. Para um graduado de sua qualidade, o exercício fora de facilidade extrema se comparado com os que fizera em simulações dentro do programa de estudos das ditas escolas. E a école des Mines seria de proveito insubstituível quando estivesse no Brésil. Preparou planilhas e estabeleceu alvos de sítios a serem visitados, e fez uso de conhecimentos técnicos misturados com estratégias de alta precisão militar. No Rio de Janeiro, ajustaria, em termos finais, papelada com o cônsul francês e representantes do governo local. Alimentava esperança de que o capitão Freitas o aguardasse para acompanhá-lo até Minas Geraes. Pronto o salvo-conduto para a ambicionada região de minérios, bastavam-lhe algumas poucas assinaturas adicionais relacionadas pela burocracia imperial. Isso concluído, viajaria para Vila Rica. A cavalo. Estudara relatos de viajantes europeus e informações que estes recebiam de tropeiros que por lá transitavam: a Estrada Real que partia do Rio e passava pela região não era nada confiável. Caso contratasse carruagem, a viagem poderia perdurar por semanas! Depois partiria para Caeté, Sabará... e, finalmente, São Miguel do Piracicaba, seu destino derradeiro. E assim foi amparado em sua intensa formação que chegou com sucesso ao Rio de Janeiro em meados de maio de 1817. Tempo recorde! Os ventos foram favoráveis em todo o percurso da viagem. Jean Monlevade, do Castelo à Forja 239 E a despeito de todos os possíveis acidentes que já disse, tanto agora, quanto em outros momentos, Tisserand prosseguiu, não aconteceram somente situações de desconforto. Nem considero aqui seu reencontro com Martinho em Lisboa, que foi de satisfação a toda prova. O meio-irmão ficaria aguardando a chamada que Jean ficara de enviar diretamente do Brésil. Já no trecho Lisboa-Rio, fizera amizade com outros novos passageiros. Entre eles, alguns poucos brasileiros que retornavam à colônia por um ou por outro motivo. Incluam-se neste grupo, três jovens advogados, filhos de famílias de negociantes abastados do Rio, que haviam concluído viagem de complementação de estudos feitos na universidade portuguesa de Coimbra. Jean imediatamente lembrouse do amigo Ildefonso. O grupo de moços quebrou a monotonia da travessia do Atlântico, e fez com que o tempo passasse mais rápido e irreverente. Não paravam de discutir animadamente sobre teorias jurídicas. Não chegavam a um acordo. O que mais vale? O Direito da palavra escrita ou o explicitado pelos costumes? Uma trilha usada pelos viajantes desde tempos imemoriais deve ser compulsoriamente eleita como traçado original de caminho a ser rasgado pelo Estado? E a revolução que havia sido sufocada recentemente por Dom João em Pernambuco? Riam dos excessos. Os revolucionários haviam decidido usar cachaça, ao invés do vinho, durante as missas. A matéria-prima das hóstias passara a ser a farinha de mandioca ao invés do trigo importado. Ninharias. Pelo menos nisso, os jovens e impulsivos rapazes chegaram a um acordo. Mas nessas alturas já estavam encharcados de vinho. Não todos. Um deles não perdia tempo ocioso. Tal como Monlevade, não era de desperdiçar oportunidades. Então, Tisserand argumentou, posso tranquilamente assumir, como dizem os nascidos nas terras das Geraes, que ambos não dormiam no ponto. Havia outros fatores a considerar, complementou. Eram praticamente da mesma idade e tornaram-se amigos principalmente por terem muitos pontos de vista em comum. Mesmo que legalista, o advogado era descendente de antigo donatário, Martinho Afonso de Souza, de capitania hereditária recebida no Brasil de séculos passados. Monlevade não entendeu a circunstância de imediato, bem, o fato é que o descendente Raimundo Horácio de Souza julgava que a república traria melho- 240 Jairo Martins de Souza res efeitos que a monarquia no seu Brasil. É afirmação perigosa, Monlevade disse-lhe. Haja vista o castigo severo imposto pelos portugueses aos revolucionários pernambucanos que andaram, inclusive, buscando a ajuda do afamado Thomas Jefferson nos Estados Unidos... Ainda assim, passavam horas conversando. Sim. Voltariam a se encontrar. É o que ficou estabelecido entre os dois. O ex-politécnico Monlevade, agora engenheiro de Minas, gostava também de discutir assuntos sociais. Herança da Polytéchnique. Era, volto a dizer, uma das razões de gostar de aprender muito, de tudo. Tanto é assim que também tentava absorver constantes lições de navegação com o capitão e o imediato responsáveis pela embarcação. Lembravam-lhe os amigos Platini e Fontaine. Com o olhar aparentemente perdido no horizonte, observava horas seguidas a natureza do mar e suas ondas. Ficava devaneando sobre tsunamis, as famosas ondas gigantes que assombram os mares, e grandes icebergs que viajam desde os polos gelados do mundo. Mas, de concreto, o que viu foram baleias e golfinhos que seguiam rota para algum lugar. Um dos marinheiros disse-lhe tê-los visto em muito maior quantidade na distante ilha de Fernando de Noronha. Talvez águas mais propícias para reprodução... Ocasionalmente, próximo à Ilha da Madeira, reparou, no longe das águas, um pequeno tonel perdido na imensidão do oceano. Estudou-o. Detidamente. Com o mar sem ventos, o tal barril somente subia e descia. As ondas simplesmente passavam. Não se quebravam. O barril permanecia no mesmo lugar. A mesma energia que tirava das ondas, para subir, era devolvida quando voltava. Onda é energia pura. Imaterial. Monlevade sorriu ao confirmar, na prática, as teorias que aprendera na Polytéchnique. Na água funciona assim. No ar é a mesma coisa, concluiu. Ondas são ondas. Tanto as dos mares quanto as do som... daí pensou em tiros de pistola que podem ser ouvidos quando a vítima foge, e se esconde protegido por esquina. Bateu palmas para o criador. Assim, com olhar perdido para o horizonte margeado pelas águas do Atlântico, Jean de Monlevade novamente deixou-se levar pelos mistérios engendrados pelo criador. Refração. Difração. Interferência. Reflexão. Quanta engenhosidade! E, para sua maior fortuna, a Génie Militaire fornecera-lhe meios teóricos para passar algo de novo para todo o pessoal de Jean Monlevade, do Castelo à Forja 241 bordo. Fazia o complicado parecer extremante fácil. Foi assim que fazia anotações e levantava dados. Na imensidão do oceano aprimorou-se na leitura dos astros e, com isso, aprofundou-se na astronomia: para tanto, usava cuidadosamente a velha luneta de Duchamps. Gastou também muito do seu tempo revisando estudos. O foco principal era a língua portuguesa. Já a dominava relativamente bem, mas dedicou-se, em especial, à expansão do seu vocabulário. E quando o grumete, pendurado na gaiola do mastro da embarcação, finalmente gritou, terra a vista!, estava pronto. Pronto para entender definitivamente o Brésil. Nem vou dizer do encantamento que assombrou Monlevade à medida que o navio entrava na baía da Guanabara. Seria lugarcomum! Foi o que Tisserand disse, animadamente, enquanto alertava estar finalizando a segunda parte de sua história. Mas a embarcação teve que aguardar dois dias para liberação de embarque. Graças a esse retardo, o jovem engenheiro teve tempo para ver, de camarote, o entardecer e o amanhecer mais extraordinários que vira em sua existência. No segundo dia tinha avistado, de longe, os acenos de alguém de aspecto conhecido. Estava de braços dados com uma bela e bem vestida mulher. O nível de tensão que o viajante sentia foi reduzido praticamente a zero ao reconhecer, por final, o amigo e futuro anfitrião. Com cabelos mais esbranquiçados pelo tempo, João Gomes de Abreu de Freitas aguardava-o com feição sorridente. Parecia ansioso! 242 Jairo Martins de Souza Jean Monlevade, do Castelo à Forja PARTE 3 Brésil 243 244 Jairo Martins de Souza Jean Monlevade, do Castelo à Forja 245 I O Rio de Janeiro e seus escravos. O engenheiro da école des Mines se impressiona Passados alguns dias navegando próximo às águas do litoral brasileiro, Jean ainda não havia se acostumado ao clima úmido dos trópicos e ao sol do Brésil. Mesmo que, em terra, os brasileiros não estivessem ainda enfrentando as altas temperaturas do seu verão, o engenheiro francês da Polytéchnique queimou e descascou a pele. Estava prestes a iniciar sua missão extraordinária e o corpo reagiu, conforme sua ótima saúde. Em poucos dias já procurava jeito de se safar neste novo ambiente, e o artifício foi o mesmo que os africanos haviam aprendido com a natureza ao longo de milênios. Passou a produzir, imperceptivelmente, altas quantidades de melanina. A proteína da cor. O resultado é que não demorou muito e já apresentava sinais de forte bronzeamento. E não é que tenha sido pego de surpresa: como sabemos, planejara criteriosamente a viagem. E protegera o rosto com certa pasta de cor branca que era normalmente usada para proteger os dentes durante escovação. A receita lhe fora fornecida por Paracelsus, o farmacêutico de Guéret, como resposta a uma sua carta em que pedia orientação. Se não funcionar totalmente, caro Jean, pelo menos lhe trará benefício parcial: nós, franceses, usualmente temos a pele excessivamente clara... O pote não era grande, mas suficiente para os muitos dias de viagem. Na realidade, também disso já sabemos, Jean pesquisara, e soubera que mesmo os viajantes bem sucedidos a caminho do novo mundo sempre padeciam de uma ou outra dificuldade. Aguardavam-no dezenas de dias de muita ansiedade, temor por falta de ventos, correntes marítimas, tubarões, baleias e muito medo das tormentas que sempre estavam por vir. E foi em função disso que levara em conta pormenores como pequeno estoque 246 Jairo Martins de Souza particular de água potável e carne salgada. Enfim, na engenharia militar aprendera a lidar com emergências e situações de guerra. Foi como tratou desde o início a travessia do Atlântico: inclusive não se esquecendo de acrescentar um belo mosquete de mais de um metro e meio. Tinha coronha trabalhada com detalhes dourados. Arma mais para exibição em parada militar do que para uso em situações comuns. Fora presente do pai que a adquirira de famoso armeiro de Amsterdam. De luxo! Os holandeses eram famosos pela sofisticação e qualidades das armas que fabricavam... Não pretendia usá-la, mas... quem poderia garantir que não fossem bater de frente com navios piratas? Ou ser abatido, durante tempestades, por ondas que vazavam pelos conveses. Outra situação de gravíssimo risco! Monlevade sempre tivera conhecimento da ocorrência destes e de outros maiores infortúnios. O afundamento total da embarcação era um dos que acontecia com bastante frequência. Até mesmo em anos não afastados dos próprios dias em que vivemos, Tisserand comentou. O acidente com o Titanic foi um deles. O senhor também se lembra? Perguntou-me. Talvez tenha sido o que causou o maior número de mortes. Cerca de 1500 pessoas afogadas de uma só vez nas águas geladas do Atlântico Norte. Mas, nos anos de Monlevade, morriam centenas e centenas por ano nos mares do mundo. Robôs como o das cenas iniciais da película que romanceou aquele conhecido acidente ainda desvendarão muitos heróis anônimos, amores e segredos. Incontáveis apaixonados como Leonardo di Caprio perderam suas vidas! Certamente Monlevade não morreria congelado como o rapaz do Titanic, pois seria pouquíssimo provável que se deparasse com icebergs desgovernados. Mas, antes de viajar, pesquisou todas as condições do navio. E inclusive trouxe consigo, Tisserand prosseguiu, desde rações de bicarbonato de sódio até pequeno livro de rudimentos de medicina prática. O homem prevenido vale por dois é ditado conhecido também na França. Talvez tenha nascido lá (L’homme averti en vaut deux). Junto com frutas ressecadas, no seu baú de viagem figuravam as roupas mais leves que possuía em seu guarda-roupa. Não mais era um militar, mas pertencia à reserva dos próprios. Foi por isso que optou por deixar algumas fardas para trás. Podiam ser encontrados em seus pertences uma de Jean Monlevade, do Castelo à Forja 247 campanha e a especial, de gala. Com a prática dos que tiveram cotidiano vivido na caserna, poucos segundos tendo às mãos um ferro a brasa ser-lhe-iam bastantes para torná-la em condições de uso. O fardamento de luxo pode lhe ser útil em momento de exceção, Ildefonso avisara-lhe, com ar jocoso. Faz mais presença. Dá aura de autoridade e, com isso, costuma afastar maus elementos e condições. Já lhe disse, meu amigo, Tisserand continuou, que o SaintBernard teve que aguardar dois dias para que fosse liberado o desembarque de passageiros e cargas. Poderia lhe dizer vários motivos para tanto, há muitos, mas garanto que o principal era por ser o navio de bandeira francesa. Os ingleses pareciam ter prioridade em todos os assuntos de Portugal. Além disso, o porto do Rio, a olhos vistos, primava pela desorganização e fervilhava de gente e mercadorias que chegavam em quantidade da Inglaterra. Foi exatamente a sensação que Monlevade tivera em seus primeiros momentos em terra. Anos mais tarde ainda se lembraria dos paus de carga que eram puxados por negros e burros e que lançavam sacas de café em convés de navio inglês. Na época era uma das poucas contrapartidas às importações da colônia, afora a cana-de-açúcar e as cargas de madeira. Demorou a mudar... Próximo a eles, em situação de risco, um capataz exagerava nos xingos e simultaneamente dava ordens para melhoria das cordas de amarração. Comandava a chegada de toras de madeira até a área de estocagem. Rápido suas mulas, o navio que vai levá-las chega depois de amanhã! Não pode ficar esperando no porto. Se o patrão tiver que pagar demurrage, multa por espera, acabo com o lombo de vocês! Outros africanos, já dentro do navio, eram praticamente açoitados enquanto rearranjavam o material embarcado para dentro dos porões. De fato, na ocasião, Jean pôs-se a olhar detidamente a rotina da praça aproveitando momento em que aguardava orientações da polícia imperial carioca. Pois afora as orientações de Ildefonso, é daquele jeito que julgara rapidamente melhor absorver a cultura local. Visitar feiras livres, pesquisar o que faziam os ambulantes, o mercado de frutas, de carne, verduras... Havia carroças. Muitas carroças. Em sua maioria puxada por burros. Algumas ficavam estacionadas em fila indiana e coletavam clientes que chegavam esporadicamente. Outras passavam a 248 Jairo Martins de Souza passo lerdo em movimento constante e ocupado. Um casal de cor vendia cocadas. O marido também carregava um pau comprido que tinha quatro galinhas amarradas para negociação. Um freguês, com aspecto de estivador, interrompeu-lhe os passos para verificar qualidade e aspecto do produto. Retirou alguns trocados do embornal enquanto o vendedor punha-se a retirar a ave escolhida. Um minuto atrás enxotara bando de cachorros que ameaçavam sua mercadoria. Uma mulher passou com cesto de roupas assentado em cima de sua cabeça. Entre o próprio cesto e a cabeça da negra, Monlevade viu pedaço de pano enrolado em espiral amassada. Riu da situação que nunca vira. Alguns homens apressados faziam cálculos de lastro, os de manejo e equilíbrio das cargas. Eram os que realmente comandavam os trabalhos portuários. Outros faziam conferência de quantidades enquanto verificavam planilha de impostos. Mude este monte de sacos para bombordo. Aqueles outros não podem embarcar. Falta-lhes o selo de liberação real! Dois práticos conversavam entre si. Jean percebeu que falavam sobre negociações com armadores. O número de navios que chegava ao porto do Rio aumentava a cada ano... É país adequado para se usar farda, Jean concluiu. Tinha razão. Um soldado havia circulado pelas imediações e fora efusivamente saudado pelos passantes. Ainda que não fosse por unanimidade, pois nem todos pareciam apreciá-lo. Alguns negros olharam-no de soslaio: pareciam temê-lo. Apesar da cena que observava, Monlevade confirmou que o momento do desembarque não teria sido ocasião para uso de fardamento de gala. E foi com roupas claras, e chapéu de abas largas, que abandonou o convés do navio em direção à escada de saída. Molhou os pés, consequência da maré que batia... Nem mesmo se deu conta. O coração batia acelerado. Mon Dieu, meu Deus, estou no Brésil! Não é que fossem muitos degraus, mas as pernas pareceramlhe pesadas quando assomou ao nível da praça que dava acesso às instalações de chegada de estrangeiros. O Largo do Paço. Praça grandiosa! O engenheiro francês espantou-se com a beleza do conjunto arquitetônico emoldurado pela magnífica paisagem da capital da colônia. Do lado aberto do retângulo formado pela praça podia ver ao fundo as edificações da Ordem das Carmelitas. Trocou mentalmente de posição. De lá imaginou a belíssima vista direta que os religiosos desfrutavam da chegada dos navios e o Jean Monlevade, do Castelo à Forja 249 azul celestial das águas cariocas. Povo abençoado! No entanto, a falta de exercícios arruinara-lhe temporariamente os músculos. Com o pensamento desviado para o súbito incômodo e, enquanto batia os pés para retirada do excesso de água, foi abruptamente chamado até pequeno aposento construído de pedras nas margens do porto. O homem que o convocara era de estatura bastante baixa. Mas não chegava a ser um pigmeu, Tisserand comentou. O inusitado de sua ereta e agitada figura era o contorno do abdômen que exibia majestosamente. Dava ideia de ter engolido uma monumental azeitona: parecia um reizinho! Jean sorriu ao se lembrar de pinturas que vira de João VI. E foi comparando mentalmente que concluiu que o oficial de plantão, provavelmente português, tinha a pança aumentada do seu próprio recém-aclamado imperador. E o mais importante, trajava uniforme do exército imperial. Problemas. Monlevade mal tinha respirado os primeiros ares de terra! Em poucos minutos tomou conhecimento do assunto do contratempo. Estava mais ou menos avisado, portanto o fato não lhe causou surpresa: o próprio Ildefonso havia lhe alertado sobre a falta de critérios de alguns oficiais portugueses. Em condições rotineiras estavam sempre à busca de alguma gorjeta, enfim, vamos ao fato, foi como Tisserand encerrou frase delicada que desistira de mencionar. Livros. Monlevade trouxera livros em grande quantidade. Romances, grandes obras da literatura universal, dicionários, obras sobre viagens ao Brésil feitos por conterrâneos franceses e europeus e, sobretudo, livros técnicos. De mineração, de cálculo, tratados de botânica, química, siderurgia, militares... O oficial que anotou chegada dos passageiros do navio cismou de vasculhar, avisado que fora pelo pessoal de bordo, o baú de Monlevade, para certificar-se de que não havia nenhum material contrário aos interesses de Portugal. Viajantes franceses são sempre suspeitos, comentou com um colega de turno. Normalmente trazem textos subversivos! Não temos qualquer litígio pendente com o seu país, Jean argumentou em português claro. O homem surpreendeu-se. O elemento praticamente não tinha sotaque. A paz entre a França e Portugal foi assinada em 1814, o engenheiro francês complementou. Inclusive temos grandes artistas que para cá vieram o ano 250 Jairo Martins de Souza passado para dar partida a certa academia de artes do Rio de Janeiro. De minha parte sou encarregado de levar a termo missão extraordinária para o governo do meu país. Vim para o Brésil em condições especiais. Para comprovar o que dizia retirou da maleta de mão documento emitido pelo governo francês. O soldado lusitano verificouo com desdém e, não se dando por vencido, retrucou mal humorado: isto não é de minha competência. Não fui comunicado oficialmente do fato. Sei como as coisas funcionam, senhor visitante. Participei da invasão que fizemos à Guiana francesa no tempo de Napoleão. Não creio que a França tenha mudado com Luís XVIII. É só o que tenho a lhe responder. Daí afirmou ter que abrir também os caixotes discriminados como de instrumentos, assim como todas as demais bagagens de Monlevade. Não é comum chegada de estrangeiro com tal quantidade de baús e caixotes... Paciência. Paciência. É o que Jean rogava para si mesmo. Temia pela luneta que ganhara de Duchamps, pelos produtos químicos cuidadosamente embalados... temia por tudo. Cada item era fundamental para determinar o sucesso de sua viagem. Talvez, Monlevade pensou, o oficial português fosse do tipo de soldado que, quando envolvido em batalha, por mais tímida que seja, nunca mais a esquecesse. Fica em estado de guerra até o fim de seus dias. Um daqueles que fica esquecido em ilhotas pessoais e não percebe o tempo passar. Desafia o tempo. Desconhece que com ele, o tempo, tudo passa. Lembrou-se que, desde criança, Platini dissera-lhe da existência de tais militares. Foi com esses olhos que viu o homem abrir e folhear seus livros. Fingia ler. Logo os devolveu. Não entendia nada em francês. Mas disse que iria reter bagagem por quatro dias. Dois desses por conta exclusiva de pesquisa sobre as origens do mosquete dourado encontrado na bagagem. Esse item, o oficial avisou, tinha grande chance de ser confiscado. Quanto ao resto, que o estrangeiro não se preocupasse, era caso simples de averiguação totalmente conforme procedimentos de rotina. No prazo estipulado poderia, fosse o caso, proceder retirada no Armazém de Ver o Peso. O proprietário era certo senhor Sá. Não há como errar, é o único aqui do Cais. Basta pagamento de taxa de armazenagem ainda a ser estipulada. Foi quando Jean intimamente revoltou-se e decidiu mostrar um de seus trunfos. O aceite de emissão de salvo-conduto emitido Jean Monlevade, do Castelo à Forja 251 pelo governo português lhe fora entregue ainda em Paris. Tinha assinatura do próprio ministro! Bastava-lhe passar pelo departamento imperial competente para validação. Isso era para ser feito aqui no Rio quando do desembarque. Demorou um pouco, mas foi desta forma que foi liberado para seguir para busca de hotel apenas com pequena mala de mão. As peças de roupa nela contidas ser-lhe-iam suficientes para cobrir o período. O oficial sutilmente deu a entender que poderia dar mais rapidez ao processo... Não comentei, mas poderia ter dito a Tisserand que tais procedimentos ainda são comuns no Brasil. Senti-me momentaneamente envergonhado! O Largo do Paço era poeirento, mas, como sabemos, extremamente majestoso. Jean ficou por lá durante momentos que lhe pareceram eternos. O morro do Corcovado. A arquitetura e a engenharia dos aquedutos dos Arcos da Lapa. Tão bonitos quanto os que vira na própria Roma. O Pão de Açúcar. Freitas e o filho não haviam exagerado. É paisagem ímpar! Trocou de novo, mentalmente, de posição. Era prática constante em sua vida. O fidalgo, seu falecido pai, ensinara-lhe a fazer assim em todas as circunstâncias. Com o colocar-se no lugar do outro, fica-se mais humano, o pai argumentava. Jean imaginou-se no alto daqueles morros. Se a vista daqui é extraordinária, a do pico promete ser duas vezes melhor. Fosse terra colonizada por italianos, foi o que pensou, teriam edificado um mosteiro ou uma cidade medieval no ponto mais elevado daquelas maravilhas. Mais próximos do altar sagrado. O próprio céu. Lembrou-se de que assim vira em Assis e Taormina que visitara junto com seu querido pai. Ouviu batida lenta de sinos de igreja. Pareciam vir da igreja do outeiro da Glória. Com os olhos umedecidos por lágrimas furtivas, confirmou que cá em baixo, bem próximo a ele, a quantidade de escravos negros impressionava. Tinha visto pouquíssimos durante sua existência. Na maior parte faziam o trabalho que, na França, era destinado somente aos animais. Circulavam descalços. De cada dez homens que passavam, suando em bicas, seis eram pretos. Não paravam de trabalhar: ora carregavam fidalgos em liteiras, ora conduziam charretes... Alguns caminhavam envergados pelo peso de baldes de água coletada em chafariz próximo. Alguém disse-lhe, anos mais tarde, ser o mais famoso da cidade, era chamado de o da pirâmide. Um dos pretos passou bem por per- 252 Jairo Martins de Souza to. Os pés encardidos e cheios de rachaduras pareciam feitos de couro velho e descolorido. As unhas dos seus dedos, totalmente encravadas, estavam cheias de sujeira até a carne. Envolveu-se em novos pensamentos, com isso o tempo foi passando, e a tarde caía. Resolveu se movimentar. Tinha muito ainda a fazer nesse fim de dia. Um negro aproximou-se e timidamente ofereceu-lhe transporte. Jean entendeu sua mensagem mais pelo gestual do que pelas palavras do próprio. O sotaque era absurdamente cheio de chiados. Sotaque de angolano. Que faz esse preto aqui? A algumas dezenas de metros de distância podia ver dois outros que mantinham liteira em posição de pronta saída. O engenheiro de minas agradeceu! Ainda em Paris, pedira a Ildefonso para desenhar pequeno mapa das ruas centrais do Rio. Já o estudara detidamente, mas decidiu abri-lo para recordar-se de detalhe fortuito. Foi quando ouviu a voz um pouco rouca de Freitas. Jean! Jean de Monlevade! Virou-se para a direção de onde lhe gritara o amigo. Ele já estava a poucos metros de distância. Abraçaram-se. É um grande prazer recebê-lo aqui do outro lado do mundo... Nunca fui, e não pretendo ser diplomata, foi o que brasileiro passou a lhe dizer. Mas tenho boa ficha na área de negócios exteriores do governo. E amigos. Principalmente amigos. Estive providenciando liberação mais rápida do Saint-Bernard, o navio em que você veio. É por isso que não pude estar aqui no momento exato do seu desembarque. Deixe que aquele meu negro carregue a sua mala de madeira. Bené, venha cá! Rápido, crioulo! Carregue isso aqui para o doutor Monlevade! E não se preocupe com hospedagem, Jean, você vai ficar em casa que tenho mantido aqui no Rio para abrigar-me em viagens de Minas. Seu mosquete já está liberado, e o resto da parte pesada da bagagem mando pegar depois por meio de carroça. Ainda hoje! Já mexi com meus pauzinhos para liberá-la imediatamente... Jean Monlevade, do Castelo à Forja 253 II A casa carioca do capitão Freitas Temos que aguardar mais alguns poucos minutos! Foi o que o capitão Freitas disse a Jean enquanto colocava os pés sobre os estribos. O pequeno cabriolet vergou imediatamente e o cavalo irritou-se pelo esforço que o brasileiro fizera para chegar até o banco de passageiros. Era homem um tanto alto, estava acima do peso, e o veículo... bem, a estabilidade do sistema fora perturbada mais do que a Física permite e havia tirado sossego do animal que estivera comendo capim enquanto aguardava comando de marcha. Quase imediatamente Jean havia penetrado no veículo pela outra extremidade do banco, e foi com alguma dificuldade que tanto ele quanto a carroça foram mantidos a postos pela destreza do cocheiro. Quando ainda do lado de fora, a capota abaixada havia-lhe permitido observar que o estofado fora feito com couro resistente e grosso. O forte tom marrom agradou-lhe, assim como a habilidade do artesão testemunhada em seus detalhes de acabamento. Carruagem de primeiríssima qualidade! Poderia tê-la, mas não é de minhas posses, Freitas respondeu-lhe sem ser ter sido perguntado, enquanto reforçava a fixação da capota para que se mantivesse aberta. Aluguei-a por toda a semana. É pequena e ágil. Estes predicados nos serão de valia nesta sua estadia pelo Rio e arredores. Por hoje nos atende bem e, se necessário, tenho opção de troca por veículo de mais passageiros e cavalos. Com a chegada da corte faz dez anos, o Rio passou a ter boas centrais de aluguel de transporte. Não nos faltam semoventes... e é tendo isso em conta que planejei facilidades de acordo com o roteiro que você, caro Monlevade, avisou-me querer cumprir no Brasil. Se é que não tenha mudado de ideia... Não. Não é de meu 254 Jairo Martins de Souza desejo. Continuo mantendo intenção, conforme lhe escrevi, de passar somente dois ou três dias nesta cidade. Muito bem. É tempo bastante para conhecer por alto o que temos por aqui. Não para desfrutar as maravilhas das praias. Para tanto, é preciso tempo de verdade. E não para fazer como o imperador João que entra no mar de Copacabana carregado por escravos. O povo carioca gosta de fazer chacotas com a circunstância! Mais ainda porque Sua Majestade é protegido contra mordidas de peixes por paredes vazadas de um barril. Nem pensar, Monlevade respondeu sorrindo. Por mim cairia como vim ao mundo nessas águas azuis. Em alguns pontos parecem espelhos: chamam-me como a Narciso. Freitas sorriu satisfeito ao olhar de lado a face feliz do amigo que lhe tornara os dias bem mais agradáveis durante sua estada em Paris. Que não se diga do apoio dado ao seu querido Ildefonso. Tinha intenção de retribuir-lhe em dobro. Daqui a pouco saímos, foi o que repetiu a seguir, justificando-se pela imobilidade da situação. Repentinamente pensara que seria atitude receptiva manter o amigo bem informado do que acontecia diariamente na cidade. Há razões extras, caro Monlevade, para termos que aguardar tempo maior que o requerido, e é por isso que deixei condições para que haja passagem de brisa aqui dentro da condução. E, é claro, para que sintas o calor da tarde já amenizado pelas horas. Sei que na Polytéchnique, na Génie Militaire, e na école des Mines, estudaste praticamente de tudo, mas há detalhes locais que... bem, o motivo do retardo de nossa saída é evento da coroa real que acontece praticamente todos os dias da semana. Os sinos que ouviste faz pouco, prezado Monlevade, anunciaram encerramento da estada diária de João VI na igreja da Glória. É onde regularmente faz suas orações e assiste a missas vespertinas e... fato é que nos últimos meses, e dias, não tem faltado a essas celebrações por motivo algum. Por duas razões. A primeira é que ainda prossegue com ritual de luto pela morte da sua mãe e rainha. Pobre mulher! Ainda em Portugal, perdeu o primogênito acometido pelo vírus da varíola. Foi quando começou seu infortúnio! Ela própria, alegando razões de fé, não permitiu que o vacinassem. Após a fatídica perda do filho assomaram suas intempestivas crises de insanidade mental. De Maria, a piedosa, passou a ser Ma- Jean Monlevade, do Castelo à Forja 255 ria, a louca. Já a segunda razão da assiduidade do imperador à Glória é que a conspiração republicana aqui no Brasil, e levada a efeito na Província de Pernambuco, foi recentemente sufocada. Vinha se arrastando desde março deste ano! Desde então, Sua Alteza atende a essa cerimônia da tarde. Depois segue para o palácio de São Cristóvão para atendimento a ministros e cerimônia de beija-mão; é exatamente o que está iniciando a fazer agora. Lá em São Cristovão é onde parte da corte o aguarda. A agenda real não varia muito, Monlevade. O homem é recatado. Não gosta de viajar... Foi aí que Tisserand voltou à realidade e, lembrando-se dos dias atuais, alfinetou. É das poucas coisas que o governo de João VI era diferente do Brésil de hoje: o das tournées, dos giros, pelo mundo afora à custa do erário. Seu neto Pedro II foi um dos precursores do modelo atual. Certa ocasião ficou cerca de um ano passeando por países europeus. É por essas e outras tantas que nós, estrangeiros, ficamos cientes que, no Brasil, os presidentes não ficam um instante em seu trono de Brasília. Parecem ter nojo da palavra trabalho. Mas não gosta o nosso, o francês, de expor a mulher para todos os continentes? Não é Carla Bruni o atual colírio para os olhos do mundo? Por que alguns têm tanto e outros tão pouco? Ah, desculpe-me, mon ami, mas a beleza desta incomparável modelo, fez-me esquecer, por instantes, que o engenheiro Monlevade há pouco botara os pés no porto de São Sebastião do Rio de Janeiro. Estava estacionado no largo do Paço enquanto aguardava passagem de séquito da realeza, lembra-se? A situação continuava a mesma! E, para distraí-lo, Freitas prosseguia dizendo que é também em São Cristóvão que João VI gosta de distribuir moedas e receber pedidos de empregos para seus súditos. A máquina pública está inchadíssima. A corrupção grassa, e é imensa a quantidade de cavaleiros que trajam uniforme do esquadrão imperial! Você vai notar que a princípio virão somente os batedores. Depois o pessoal de segurança. Um outro tanto exagerado de gente. Aqui nessa colônia, Monlevade, gastar dinheiro do povo, fazer favores com mãos alheias, não é considerado pecado. Desde que seja a partir do rei ou um dos seus inúmeros prepostos. Embora tenha que confessar que nesse último ponto tenhamos ganhado a sorte grande, pois o nosso, em especial, tem hábitos simples e é de boa índole. A despeito de suas esquisitices, gosta mesmo é de 256 Jairo Martins de Souza rituais religiosos, e de ficar próximo da população. Exceto em situações reconhecidamente excepcionais, não gosta de festas e grandes demonstrações de luxo. Não são muitos os eventos em que sua segurança interdita ruas, durante longo período, para permitir passagem livre de comitiva. Estamos diante de uma exceção! A rainha participa desse cortejo diário? Foi o que Jean perguntou-lhe, enquanto incansavelmente admirava o verde intenso das florestas que se destacavam distantes e compunham, por fim, o cenário. Nunca vira nada igual! Freitas iniciou sua resposta dizendo-lhe que nem mesmo um nobre da linhagem dos Bragança escapa das agruras do casamento, mas deixou-a a meio caminho. O motivo foi ter sentido no ar enorme fruição que emanava da face do amigo francês. O engenheiro da école des Mines parisiense movia a cabeça lentamente, enquanto exibia sinais de acentuado deslumbramento. Freitas vira iguais expressões de êxtase estampadas nos rostos de vários outros recém-chegados ao país. Então foi somente com a passagem de alguns segundos que, finalmente, prosseguiu intenção que entrecortara. Nossa rainha mal fala com o marido, amigo Monlevade! Ainda em Portugal residiam em castelos diferentes: ele, no de Mafra, com suas duzentas janelas; e ela, no de Queluz. O mais bizarro casal de todos os reinos do mundo. Esses dois têm em comum somente a feiura e os tijolos e luxos dos castelos que disse. No Brasil, Monlevade, acontece o mesmo que acontecia em alémmar. Ela, em sua bela chácara de Botafogo; ele, no Palácio de São Cristóvão. Aí que está. A riqueza dos reis portugueses foi construída em grande parte sobre os ombros dos habitantes da minha província. Minas Geraes praticamente carregou, e continua carregando, Portugal nas costas. Bem, é casamento sem amor, tal como o de João e Carlota. No caso desses, a aliança foi colocada nos mãos dos impérios em que nasceram. O português e o espanhol. Não na do casal. Você é europeu, Monlevade, e sabe por experiência própria que a realeza casa-se por interesses. Pode ser até que os envolvidos se encaixem, e acabe dando certo. Não é o caso. Dom João é sabidamente desleixado e enfadonho. Carlota é ambiciosa e maledicente. É o que a imprensa diz por meio de caricaturas, e com razão. E que também me faz imaginar se você sabe que Jean Monlevade, do Castelo à Forja 257 jornal é coisa recente para nós. O único que tínhamos até dez anos atrás era publicado em Londres e entrava... bem, tratavase de impresso clandestino e não é por meio dele que você vai saber melhor dessas intrigas palacianas. Como também não irás se surpreender em ouvir que certos camareiros reais dizem que a rainha anda colocando chifres na cabeça do marido. Não se diz na própria França que Josefina andou traindo Napoleão com fidalgo que tinha cargo de quase ministro? Os batedores finalmente assomaram à esquina de rua próxima, trazendo pó e o ruído das patas dos cavalos que pisavam forte no chão de terra mal batida. Fossem rinocerontes, Tisserand ponderou sorrindo, poderia jurar que procuravam conflitos com seus semelhantes. A seguir surgiram a comitiva real, e o grupo de soldados que resguardava a traseira do cortejo. O povo aplaudiu, e alguns moradores acenavam com lenços das portas das lojas e das janelas das casas. O movimento cessou. Freitas e Monlevade puseram-se a caminho de Botafogo. Chegaremos em 15 minutos, o brasileiro avisou. E, ao longo da pequena jornada, transitaram por ruas de pouco movimento onde eventualmente ouviam-se gritos de vendedores de vassouras, cestas, balaios, espanadores e garrafas. O comércio ambulante aqui é intenso, Monlevade comentou, fazendo uso do lugar privilegiado que lhe fora concedido dentro da condução. Freitas, cordialmente, respondeu-lhe, é verdade... Encontra-se quase de tudo nas ruas do Rio. Inclusive prostitutas, você vai vê-las ao cair da noite! Monlevade acenou com a cabeça. Intimamente não se surpreendera com a informação do amigo. Em Paris isso também faz parte do visual da cidade, e voltou sua atenção novamente para o que se passava nas ruas... Daí ter reparado, entre outros detalhes menores, que as construções ao nível das ruas sem calçamento, em sua maior parte, constituíamse de dois pisos. O primeiro usualmente reservado para fundos de comércio. E à medida que iam se afastando do centro, as casas escasseavam, tornando-se mais pobres e com construções mais afastadas da entrada dos terrenos. Em sua maioria, ficava fácil perceber pelas paredes sem reboco, feitas de barro seco entrelaçado por cintas vegetais e madeirame barato. Nos terreiros, às vezes cercados por estacas de bambu mal travadas, viam-se roupas de má quali- 258 Jairo Martins de Souza dade que secavam penduradas em fios de corda de juta esticados. Galinhas passeavam bicando o chão de um lado para o outro. A cerca de duzentos metros da chegada, Freitas indicou-lhe bonito sobrado totalmente avarandado. A caiação era recente. O branco de suas paredes contrastava agradavelmente com o azul da pintura de suas portas e janelas que, além deste pormenor, tinham contorno superior em arco envidraçado. Construção sóbria, contudo marcante. Transpirava agradável limpeza. E parecia casa de fazenda, pois não havia outras residências de igual porte por perto. A proximidade de árvores altas e copadas aumentava mais ainda a sensação de frescor que predominava no local. É onde moro no Rio, o mineiro complementou. Aluguei este imóvel por ser parecido com a casa grande da minha fazenda no vale do Piracicaba. O antigo morador, e proprietário, era diplomata inglês que se aposentou e tinha decidido encerrar seus dias aqui mesmo no Brasil. Para tanto comprou castelo nas vizinhanças de Petrópolis. Muitos estrangeiros têm feito isso, Monlevade. Este, em particular, disse-me crer que o clima da região de montanhas cariocas é o melhor do mundo. É realmente uma bela casa, Monlevade concordou, já quando adentravam o interior da moradia. Foi ótimo ter passado pelo pomar de entrada e sentido o aroma de tamanha diversidade de frutos. É passeio que relaxa a alma de qualquer viajante... É uma pena que minha mulher, por causa dos seus enjoos, não consiga viajar para cá, agora foi Freitas quem disse e prosseguiu. Então mantenho aqui somente o necessário para estada confortável e recepção de pessoas que, frequentemente, convido para almoços e jantares. Em sua maioria, clientes dos produtos das minhas terras. Donos de restaurantes, mercadores, exportadores... para dar conta disso, tenho cozinheira e três escravas de limpeza de casa, e mais dois negros para manutenção do quintal. Você se sentirá bem aqui!... Isso é um paraíso, Monlevade disse a Freitas, enquanto descia as escadas dirigindo-se ao primeiro piso. O amigo aguardava-o para o café da manhã, tinha ao seu lado algumas folhas de jornal já lidas. Dormi muito bem, prosseguiu. O ruído da mata embaloume, também o coaxar dos sapos e o despertar com os galos foi algo que não estou habituado em Paris. Lembra-se que tenho um cachorro? O Noir. No castelo Monlevade, em Guéret, acordava com seus latidos. Era o meu relógio despertador desde criança. Jean Monlevade, do Castelo à Forja 259 Na casa dos Pius, continuei acordando com eles. Tinha intenção e gostaria de tê-lo trazido. Desisti poucos dias antes de embarcar, ele está velho, bem, temi que não suportasse a viagem e tivesse o infortúnio de ter que jogar sua carcaça ao mar... ah, mon bon Dieu! Foi noite maravilhosa, tenho o corpo absolutamente relaxado e descansado. Fico feliz, Freitas respondeu-lhe enquanto acenava para que as escravas trouxessem café e suco frescos. Haviam conversado até altas horas na noite anterior. Indagado por Freitas sobre sua jornada, Jean começara do início. Contara-lhe sobre os preparativos da longa viagem e a não menos duradoura peregrinação pelo Atlântico: ainda que, felizmente, tenha chegado ao fim em tempo surpreendentemente menor... O capitão ouvira tudo com atenção, e ficara interessadíssimo no episódio da chegada e a falta de educação do oficial português. Ficou chateado, mas tentou reduzir sua importância. Não queria que o visitante tivesse má impressão de sua terra. Conheço a fama do capitão Agostinho Ferro, foi, o que, inicialmente, comentou. Não é sujeito baixinho, com pança exagerada e cheio de prepotência? É. Então é o próprio. É conhecido pela alcunha de azeitona por razão fácil de se saber: gosta de vestir-se com capote verde-oliva sobre o uniforme até mesmo quando está de folga. O que é coisa rara. Este sujeitinho é famoso por aplicar sermões e ameaçar aos estrangeiros que chegam aqui. É ocasião em que aproveita para defecar regulamentos que não existem, e que saem de seu próprio juízo. Julga estar acima do bem e do mal. Mas tem caminhado sobre corda bamba, pois, ao longo dos últimos meses, está sob investigação do intendente de polícia quanto a atividades de contrabando de madeiras de lei. Provavelmente não deverá dar em nada, pois alguns nomes de políticos foram ajuntados como elementos de interesse ao inquérito policial... esse homem não representa o significado da palavra brasileiro, amigo Monlevade. Não absorveu nossa cultura cordial, e não é sujeito antigo na cidade. Veio da região do Porto dois anos depois da chegada da comitiva real. Também não gosta de franceses. Nem de nós, brasileiros. Mas o maior problema dele é com o cidadão francês. Em suas bebedeiras, recita incontavelmente as tentativas de tomada do Brasil a Portugal. Binot Gonneville, 1504, Santa Catarina. Nicolas Villegaignon, 1555, Rio de Janeiro. Charles des Vaux e 260 Jairo Martins de Souza outros, 1594, Maranhão. O corsário René Duguay-Trouin, 1711... ah, por este último alimenta ódio especial. O desgraçado, diz, invadiu e tomou conta do Rio por eternos 50 dias. Devolveu-a somente depois de receber altíssimo resgate da nossa coroa. E, à medida que vai listando o nome dos tais franceses, vai contando-os nos dedos para não esquecer nenhum. Com isso, Agostinho Ferro deixa sempre para o final o caso de Charles-Marie de la Condamine que invadiu a Amazônia em 1743. Pelo menos, diz, esse fez algo útil para o mundo: descobriu a borracha. Mas o ápice da mágoa de Ferro fica por conta da invasão das ideias da revolução francesa. Aí fica nervoso, se exalta, e diz que deve ser feita declaração de guerra em circunstâncias tais e tais, e assim segue o raciocínio de sua mente sinistra. Monlevade conhecia os fatos que Freitas dissera, contudo não se manifestara. Poderia lembrar mais naquela conversa. Poderia lembrar que seus conterrâneos de anos, e séculos passados, foram os únicos estrangeiros que conquistaram o coração dos índios nativos. A gema do Brésil. Não se diz que, para seduzir uma nação, não se pode matar os costumes do seu povo? Não fizeram dessa forma os romanos que dominaram o mundo com seus impérios? Pois foi mesmo assim que aqui funcionou. Desde 1504, nós, franceses, fincamos raízes culturais neste novo mundo. Tanto é assim que foi ano em que o índio carijó Essomericq foi levado para a Europa. Lá estabeleceu família, tornou-se Binot de Paulmier, envelheceu, e lá mesmo foi enterrado. O selvagens brèsiliens tornaram-se mais que amigos dos franceses. Tornaram-se aliados. Alguns dos nossos chegaram aos extremos de conversão e adoção do antropofagismo. Quem diria!?... Ainda assim nossa relação com o Brésil não era completa. Portugal não mantinha, mesmo que a trancos e barrancos, sua rica colônia até aquele ano de 1817? A prudência, Tisserand prosseguiu, ensinara a Monlevade quando, e por que, calar-se. E sua França, disso não tinha dúvidas era, a partir da revolução, a mola condutora do mundo! É por isso que continuou apenas ouvindo quando Freitas cortou o silêncio e disse existir algo de irracional na postura de Agostinho Ferro. Não entendia gente daquele tipo... Bem, Tisserand dispôs-se a esclarecer, talvez a do tipo formada nos velhos moldes que adormecem, por exemplo, debaixo da Jean Monlevade, do Castelo à Forja 261 eterna rixa entre os nascidos na região da cidade do Porto e os de Lisboa. Desde tempos imemoriais, inclusive nos anos em que Ferro viveu, portuenses e lisboetas brigam como condenados. Tinham rusgas milenares. Hoje, Tisserand explicou, seus resquícios, inconscientes, estão centrados apenas no foot, no futebol. Os torcedores do Benfica de Lisboa comemoram efusivamente as derrotas do Porto em copas europeias... mas a soberania nacional os une. O elo da corrente é fechado quando ouvem o hino português em copas do mundo. Às armas, às armas!... sobre o mar! O esplendor de Portugal! Isso acontece, o estrangeiro concluiu, a qualquer tempo, ou de alguma outra forma qualquer, com os cidadãos de qualquer país! ... Não agia daquela forma o camarada Agostinho Ferro? Ah, mon ami, mesmo que tenha nascido no Porto, ele é, acima de tudo, um português. E não suportava os franceses pela invasão de Lisboa naqueles anos. Quanto a nós, brasileiros, o alferes simplesmente nos acha raça inferior. Mas ultimamente tem estado mais furioso que o normal. Quer saber o motivo?... Teve pedido de emprego recusado para sobrinho no Banco do Brasil. O diretor é brasileiro de nascença. Não se conformou com a resposta de que não poderia ser atendido porque o banco estava quebrado. O funcionário alegou a boca pequena que D. João não para de mandar emitir dinheiro sem lastro. Impostos. Mais impostos. É solução que tem adotado para compensar despesas da corte. Falsa. Artificial. O emissário que me relatou a conversa, Freitas prosseguiu, disse-me que Ferro ria quando o funcionário lhe passava justificativa. Que se dane! Meu interesse é o emprego do filho da minha irmã. É método que não funciona e nunca funcionará, o capitão brasileiro prosseguiu dizendo com ar inconformado. Atitude deficiente. Dom João não consegue repor o que o império já havia retirado daqui mesmo, da sua própria colônia. Nem mesmo com a venda de concessões de interminável lista de títulos de nobreza para particulares, enfim, não dá conta de encher aquele poço sem fundo. Nosso soberano desconhece, ou não se lembra, dos motivos da reforma protestante, a venda de indulgências fez causar perda ao poder de fogo dos papas e do catolicismo. Pode acontecer o mesmo com o sangue azul da monarquia portuguesa. A colônia é católica. Mas 262 Jairo Martins de Souza a gastança generalizada, e os abusos, não somente podem como também já estão gerando outros tipos de protestos. Outro tipo de protestantismo. Já tivemos no ano passado o movimento republicano de Pernambuco. Há dinheiro para atender a tudo que a corte demanda aqui na capital, mas nunca se tem para aplicar nas sofridas províncias do nordeste. Daí o movimento alastrou-se e quase vingou. Continuando assim, até mesmo pode cair a monarquia. É assunto perigoso! É por isso – é ainda Freitas que continuava suas explicações – que devo voltar ao tenente Agostinho Ferro que é tema menor. Meu informante aqui na alfândega disse-me também que o cargo que o oficial pretendia para o sobrinho não podia, em hipótese alguma, ser preenchido por analfabeto. Em tese! Pois na realidade não precisaria comparecer ao escritório. Bastava ter habilidade para andar sobre suas duas pernas para buscar pagamento mensal. Ferro sabia disto, e enfureceu-se. Parece que está descontando com altos juros nos passageiros e donos de carga que chegam. Faz o que chama de operação tartaruga. Não. Reforço que não tenho contato direto com o tipo, Freitas esclareceu. Estou ciente destes fatos porque tenho feito exportações de café e meus agentes usualmente pagam dezessete por cento do valor de minhas vendas, à guisa de contribuição, ao sindicato daquele senhor. A intendência da polícia, na pessoa do delegado Pedro Botelho Guerra, tem batalhado pela eliminação de corruptos como ele. Policial por demais rigoroso. Deve ser exonerado, é questão de dias, pelos burocratas do império! O Rio é belíssimo, Monlevade, mas eventualmente não é flor que se cheire! Isso obviamente não acontecerá, eu não permitiria tal condição, mas lembro-lhe que aqui é preciso cuidado especial para circular em suas vielas. De dia ou à noite! Bem, o senhor que me lê já sabe que, dependendo do tema da conversação, não é de meu feitio interromper quando alguém se dirige a mim. Procedo assim, pois quando tal situação ocorre comigo, costumo perder a linha de pensamento, bem, de certa forma, temo que o outro também perca o foco. Mas a gravidade dos assuntos que Tisserand me dissera por último fez-me reconsiderar atitude. Não suportaria meu próprio silêncio. Então, como de meu hábito, simplesmente levantei a mão direita até a altura do peito e, ao mesmo tempo, mantive Jean Monlevade, do Castelo à Forja 263 dedo indicador quase na vertical. Pedi tempo a Tisserand. Ele percebeu e passou-me a palavra. Fico triste que no meu país tenha sido sempre assim, monsieur. Pelo que relatastes o que mudamos em termos de corrupção foi o índice. Nos dias de hoje, caiu. Caiu oficialmente de dezessete para dez por cento... 264 Jairo Martins de Souza Jean Monlevade, do Castelo à Forja 265 III Onde se diz da breve estada no Rio. A carta de Martinho O capitão João Gomes Abreu de Freitas sorriu gostosamente. Estava sozinho e observava o amigo que caminhava entre as árvores do seu quintal. O engenheiro francês não conhecia mulher! Com isto não quero que o senhor tenha um conceito errado sobre o comportamento do amigo brasileiro de Monlevade, Tisserand exclamou! E não é meu propósito insinuar que fosse sujeito depravado. Então para que me entendas melhor, modifico minha linguagem dizendo que o fazendeiro não era pessoa de duas caras! Pelo contrário, já sabemos ser homem de família e fortemente preso a valores tradicionais. Era o que passava aos filhos. Católico por excelência, fizesse chuva, fizesse sol, comparecia invariavelmente às missas dominicais. Fazia tanta questão de manter família, empregados e escravos unidos naqueles momentos semanais de manifestação de fé que as celebrações eram feitas em sua própria fazenda. Também obedecia religiosamente ao calendário cristão de festas, procissões e dias santos... Por sinal, o senhor se lembra que, quando da chegada de Monlevade, ele compareceu ao Largo do Paço acompanhado por uma vistosa mulher? Não me causa surpresa, Tisserand comentou, que tenha deduzido, equivocadamente, que o capitão Freitas estivesse dando sinais de estar saltando os trilhos... é tempo de colocar em pratos limpos o acontecido... O acaso viera a tomar conta da situação. Jean, sem que soubesse, fora testemunha de presença de uma das raras companhias femininas de Freitas quando, ainda no navio, visualizara o amigo que o saudava. Bem, tratava-se de antiga namorada que, embora não tão mais jovem que ele, era daquelas com quem os anos foram be- 266 Jairo Martins de Souza nevolentes. O resultado é que a cada temporada que passava, ela mesma confessara ao antigo namorado, tinha sua beleza aumentada pelo amadurecimento da face e a paz que dela fazia emanar. Uma quarentona encantadora! Haviam se encontrado nas proximidades do Paço Imperial. Há anos não se viam, e a elegante senhora não foi perguntada e nem dissera dos seus propósitos. Ele relatara que estava aguardando chegada de amigo francês. Vamos saudá-lo juntos? Fora sua indagação derradeira, como também motivo para vê-los de braços dados no ancoradouro do porto carioca. Ficou somente doce lembrança. Não mais se viram! Jean não lhe havia pedido explicações nem indagara quem era a mulher que acompanhara o amigo antes do seu desembarque. A justificativa havia partido do próprio. Não queria que o francês tivesse impressão errônea de seu antigo amor ou do seu comportamento como pai de família. Foi daí que a conversa, regada a taças de vinho, fez com que Freitas soubesse de detalhes íntimos da vida do convidado. Não é que, em termos de companhias femininas, Monlevade fosse qualquer tipo de santo declarado. Ele mesmo havia confessado a Freitas. Nos tempos inaugurais da Polytéchnique andou frequentando com alguma assiduidade, embalado pela companhia de alguns companheiros, diversos bordéis da grande Paris. Farra de estudante. O vinho, ainda que bebido com moderação, fazia-o agradavelmente perder a cabeça. Brincava. Improvisava piadas. A juventude fazia com que seu juízo fosse comandado por outras partes sensíveis do corpo. Mas não tinha tido até o momento a tão esperada conjunção carnal. Era virgem! Não sei a razão, Tisserand comentou, de Léopold de Bogenet ter omitido tais fatos nas páginas em que relatou sobre as peripécias do jovem em Paris. Talvez, a princípio, desejasse esconder dados de natureza moral da família na França. Pode ser. Mas pode ter sido também por mero esquecimento. Este tipo de assunto possivelmente não o interessasse, daí terem sido despertados apenas quando indispensáveis no encadeamento de suas anotações. Qualquer dessas suposições poderia ser causa bastante para o vigário geral ter trazido à tona, tão tardiamente, a condição de pureza do rapaz, e em madrugada a que esteve presente o fazendeiro das Geraes. Jean Monlevade, do Castelo à Forja 267 Certo é que o capitão condoeu-se com a situação e, tal como faria com qualquer um dos seus filhos (de certa forma era como considerava Jean de Monlevade), na noite do dia seguinte já tinha agendado encontro com conhecida mariposa da noite carioca. Séverine Sorel era o seu nome. Tudo deveria ocorrer, de maneira fortuita, após almoço que promoveria para apresentar o engenheiro francês a algumas pessoas da corte e da sociedade locais. E não foi previsto para tanto. Pois Monlevade e a inesperada conterrânea tiveram refeição prolongada até o fim da tarde, e agradavelmente estendida com aperitivos que, por sua vez, alcançaram noite fechada. A francesa, Séverine, era natural da cidade de Bordeaux e, pródiga em encantos pessoais, fez com que Jean se deixasse levar a extremos que jamais havia se permitido. Na situação, imaginou-a com os rostos de Angéline e de Bernadette du Lac, decerto, e é bem verdade, o teor de álcool das inofensivas bebidas de frutas brasileiras contribuiu enormemente para o fato. Como acontece com muitos outros europeus, foi traído pela doçura de suas essências. No dia seguinte, soube acidentalmente que certa tentativa de pagamento de serviços amorosos havia sido feito diretamente à bela senhorita por intermédio de rico senhor que, coincidentemente, morava sob este mesmo teto. Não se concretizou! Não houve aceite por parte da delicada profissional. Foi quando Jean tomou conhecimento de que tudo fora armado pelo amigo Freitas. Ele desabou por instantes. Poucas horas depois concluiu que sua vez chegara não da forma que imaginara em sonhos. Mas aconteceu. Libertas quae sera tamen. Intimamente agradeceu ao amigo. O incidente serviu, além de tudo, para apimentar sua programação carioca. Caso alcançasse idade para ter netos adultos, contar-lhes-ia no fim dos seus dias. E visitou o que tinha de ser visitado à guisa de turismo, e ainda teve tempo de sobra para ir ao ministério de negócios regularizar de vez a situação de seu salvo-conduto. Quando não acompanhado por Freitas, foi-lhe fácil reconhecer todas as paragens simplesmente lembrando-se das descrições entusiasmadas que Ildefonso lhe fizera ainda em Paris. E, também confirmar, conforme o jovem médico lhe adiantara, que o próprio ministro Manoel de Portugal e Castro faria a liberação final. 268 Jairo Martins de Souza Não foi por ato de Deus. Na realidade, Freitas a tudo fazia acontecer mais rápido. Era homem querido e de boas relações. Monlevade repetidamente viu-lhe distribuir gorjetas e cortesias para os setores monárquicos envolvidos na operação. Como também promover revezamentos de cavalo e cocheiro do cabriolé que os conduzia às diferentes partes da cidade. Norte e Sul. O Rio tinha poucas ruas. Em torno de quarenta e três, Tisserand prosseguiu, onde a insegurança marcava ponto a cada esquina. A maior parte do povo andava com faca enrolada em pano e amoitada debaixo do capote. Isso quando não o fazia com garrucha de pequeno calibre! Em termos de violência, e guardadas as devidas proporções, mon ami, o Rio de hoje não era diferente da pequena cidade do princípio dos 800. Com agravante do maior fedor e da pestilência, resultados de abandono pela administração real. Fezes humanas eram encontradas a torto e a direito: escravos defecavam onde lhes sobrevinham as necessidades. E chegavam acorrentados aos montes, roubados de sua distante terra natal. O número aumentava ano a ano. Essas miseráveis criaturas, que traziam consigo mão de obra barata, eram filhas da natureza esquecida na África, e não tinham o mínimo pudor em safar-se do que a própria lhes exigia. Nas esquinas e lotes vagos, a concentração de urina acumulada e velha era absolutamente insuportável! Daí o senhor pode calcular a fedentina reinante no cotidiano dos cariocas que habitavam fora do núcleo central da cidade. Provocaria vômitos em estômago de urubu. Então fica claro que Freitas não mostrou ao amigo francês somente o Brasil dos sonhos europeus – notei que Tisserand parecia ainda ligado ao assunto anterior. O paraíso perdido! Mostrou-lhe também a principal podridão da sociedade colonial portuguesa. Levou-o inclusive à popular Loja na Rua do Valongo. Lá, explicou a Monlevade, funciona ponto de venda da mercadoria que mais chega ao porto do Rio. Valorizadíssima! É onde o escravo africano passa por avaliação e negociações de compra e venda por particulares, fazendeiros e empresários. Não é coisa bonita de se assistir, Freitas alertou. Mas faz parte de espetáculo da nossa história que deprime a mais seca das almas. Imagine situação em que a própria mercadoria vê selar o seu destino em terra estranha. Irmãos, pai, mãe e amigos são separados propositalmente!... O porquê de tamanha desumanidade? Evitar rebeliões! Jean Monlevade, do Castelo à Forja 269 Foi aí que Tisserand trouxe algo à tona que me surpreendeu. Ele disse-me que a visita feita por Monlevade ao Valongo não é nada diferente das que milhares de pessoas fazem anualmente aos restos do famoso campo de concentração e extermínio de Auschwitz, na Polônia. Concordei. Nenhuma delas é feita com satisfação. Isso é coisa somente para certos políticos que visitam e gostam de ser fotografados junto a áreas abatidas por acidentes naturais, ou até mesmo o caso de expectadores de cinema que veem fatos equivalentes. Na arte admira-se, com algum constrangimento, fatos que, na vida real, seriam insuportáveis! Misérias humanas à parte, deu tudo certo, Tisserand disse, fechando o assunto. Três dias após chegar ao Brésil, Jean de Monlevade estava pronto para viajar para a província de Minas Geraes e, em especial, para a ansiada fazenda às margens do Rio Piracicaba que, como sabemos, seria seu destino final. Mas alterou a cronologia que havia projetado, pois lhe surgiu nova situação. Inesperada. Freitas recebera carta urgente de Lisboa que chegara às suas mãos após vários tropeços. O emitente, Martinho Monlevade, anunciava, nas suas entrelinhas, que iria fazer surpresa a Jean. A remessa havia sido feita bem antes da chegada do irmão e amigo a Lisboa. Antecipar-se-ia à convocação que seria combinada com o próprio e seguiria para a capital da colônia. Mas nada deveria ser dito a respeito de sua iminente viagem. A idéia era sair de Lisboa no próximo barco após a passagem de Jean pela capital dos lusitanos. Martinho escreveu ir para onde o amigo estivesse. Foi um tanto constrangedor, mas para evitar desencontros e perdas de tempo desnecessárias, Freitas foi obrigado a quebrar contrato e alertou a Jean. O francês emocionou-se! Retardaria partida para Minas Geraes quantos dias fossem necessários! 270 Jairo Martins de Souza Jean Monlevade, do Castelo à Forja 271 IV O início dos caminhos que levam a Minas Geraes. Monlevade encanta-se com natureza. A tropa fiscal e o parente de Agostinho Ferro Uma semana depois, Freitas e Jean de Monlevade já trotavam pelos caminhos que os levariam a Minas. O capitão, conforme desejo anteriormente manifestado, procurava exercer papel de cicerone para o amigo francês. Para tanto, a cada cenário que julgava de interesse, parava a montaria e, pacientemente, explicava sobre as peculiaridades da belíssima natureza da colônia. Martinho seguia-os a distância suficiente para eventualmente participar do diálogo que parecia nunca esgotar assunto. A carta que enviara a Freitas indicava que o Cristina, esse era o nome da embarcação em que deveria viajar, tinha previsão de sair a tempo certo das proximidades do convento dos Jerônimos e da Torre de Belém. Aconteceu como previsto. E ele havia, disso já sabemos, partido de Lisboa poucos dias depois de Monlevade e resolvera, com a decisão de nova vida, mudar também de visual. Quando de sua chegada ao Rio, o velho amigo de infância quase não o reconheceu: estava com barba espessa e bigode bem esculpido. Não queria que chegasse a tanto, mas chegou a assustar a Jean de Monlevade. Ansioso, o engenheiro da Polytéchnique já ajuizava que algo grave poderia ter acontecido com a antiga criança amparada por Ribérry no fatídico dia do sorteio. Ainda que não fosse de espírito pessimista, e nem de se preocupar desnecessariamente com o dia de amanhã, Monlevade não podia menosprezar os perigos do Atlântico. Há anos ambos não haviam concordado, em sensível discussão, que as forças da natureza haviam sido feitas pelo criador somente para lembrar aos homens a vulnerabilidade de sua existência? 272 Jairo Martins de Souza No final deu tudo certo! Foi com essas rápidas palavras que Tisserand resumiu, e deu por encerrado o curto, mas sofrido episódio. E prosseguiu imediatamente relatando que os dois meiosirmãos abraçaram-se, e não esconderam publicamente a alegria pelo novo reencontro. Foi daí, e após rápido turismo pelo Rio, (Jean já estava familiarizado com os locais de interesse), que procederam aos preparativos para a peregrinação até Minas Geraes, suas igrejas e minas a céu aberto. Novamente aí ficou demonstrada a capacidade de organização que Monlevade tinha para quaisquer tipos de empreitadas. Freitas ficou admirado com a capacidade de adaptação do aspirante francês! Proponho seguirmos pelo caminho novo, foi o que disseralhe. É mais seguro que o iniciado tradicionalmente no vilarejo de Paraty. E é mais rápido. Sei, mon ami, que gostarias de mostrarme todo o vale do Paraíba do Sul e a vila de Paraty, e não duvido de que sejam absolutamente encantadores, mas tenho certa pressa em chegar até Minas Geraes. Posso conhecer esses sítios em outra oportunidade. Assim foi feito. No chamado caminho novo, o estado das estradas e trilhas não era dos melhores e os três escravos que os acompanhavam não relaxavam. Não tinham descanso. Andavam a pé e, afora os próprios, ainda seguia na comitiva um mulato liberto, a cavalo, e que já viajara com Freitas em outras ocasiões. Teria também a função de batedor e guia, pois conhecia bem as dificuldades e vicissitudes do trecho Rio-Geraes. Tinha desvantagem de ser um tanto atrevido, mas tal fato era compensado por ser bom de cozinha. Jean os ocupava, a todos, com função especial, que era busca dessa ou aquela amostra de terreno. Ah, como faz falta aqui o meu velho amigo Breu! Com isto a bagagem da tropa crescia rapidamente e não demora, em alguma parada, teriam que adquirir mais semoventes e balaios. Enquanto isso não ocorria, o mulato procurava redistribuir a carga entre as mulas, e cestos de taquara, e sacos, para equilibrar pesos entre os animais de tração. Martinho Monlevade, por delegação de Freitas e de Jean, observava detidamente todos os movimentos que aconteciam no pequeno comboio. Com algumas horas de tropa, já dominava todas as variáveis e cuidados que deveriam ser tomados para que tudo ocorresse de Jean Monlevade, do Castelo à Forja 273 acordo com as melhores expectativas. Inclusive que mulas não se reproduzem e são nascidas do cruzamento de jumentos com éguas. Animal híbrido: como o burro, seu irmão de batalha. Já o jumento, Freitas explicou-lhe, é aquele bicho que tem tromba do tamanho da de um elefante. É também bastante resistente! O trecho a ser percorrido não era de Norte a Sul do Brasil como fazem tropas regulares, mas mesmo nestas pequenas há grande ciência na sua condução, Freitas disse-lhe. Normalmente há envolvimento de profissionais altamente especializados: o que cuida dos cestos e suas amarrações é um deles. O arranjador de cargas é outro. Para segurança das mesmas acaba criando nós de todos os tipos: é um artista! Há também o que cuida dos próprios animais, dos seus couros, ferraduras e alimentação. É o indispensável homem dos suprimentos, pois as jornadas são muito longas em termos do seu dia a dia. O que eles têm em comum, digamos assim, a companhia de todos, é instrumento de cordas chamado viola. É o que dá o lado musical desses corajosos homens que saem regularmente do extremo sul da colônia e chegam até Natal, já nas longínquas paragens do Rio Grande do Norte. Bem, apesar de todas essas variáveis, a partir do segundo dia Martinho passaria a comandar as atividades dos escravos e do mulato. Este que, curiosamente, passara a ser chamado menino da tarde, fora destronado com poucas horas a mais no cargo. O tolerante francês, novato em comandar esse tipo de gente em expedição, cansou-se das arengas que seu pupilo provocava entre os pretos. Por que menino da tarde?, Jean indagou-lhe. É filho de homem do meio-dia com mulher da meia-noite. Português com africana. Daí a cor morena de sua pele! Bom, ao assumir funções do menino da tarde, o mesmo Martinho percebeu que em algumas situações a tarefa a mais não lhe seria tão pesada. As próprias mulas, em caso de dificuldades de passagem, automaticamente buscavam solução entre os meandros do caminho! Jean de Monlevade estava absolutamente extasiado com o canto dos pássaros... Pareciam não se cansar! A cada minuto aparecia um tipo diferente e com canto singular e, antes que perguntasse ao amigo, ouvia: esse é um canário do campo... Aquele é um curió... O reino animal se manifestava fulgurante sob todas as formas. Na terra, besouros, cobras, insetos, lesmas... nas árvores, 274 Jairo Martins de Souza pássaros, cores exuberantes, e bandos de pequenos macacos que olhavam desconfiados para a caravana que passava lentamente. No ar, papagaios e araras passavam em bandos barulhentos. Platini tinha razão. As cidades, as serras, os matos... tudo dava pistas de estar na exuberante terra dos papagaios. O afamado e pouco conhecido pays des perroquets! O antigo aluno da Polytéchnique mal se dava conta dos ressaltos e valas do caminho, como também que, naquela viagem, estava sendo germinada a causa das terríveis dores lombares que o acometeriam nos últimos anos de sua vida. A coluna vertebral, ainda jovem, trabalhava desatinadamente como a de um amortecedor de veículos que sofre em estrada cheia de costeletas. Como lhe disse, mon ami, iria dar-lhe resposta retardada. Nos raros momentos em que ambos – refiro-me a Freitas e a Monlevade –, estavam calados, o francês abria livros. Tinha alguns poucos selecionados e colocados em bolsa de couro que ficava amarrada ao alcance das mãos. O que mais consultava fora emprestado pelo próprio capitão das Geraes e versava sobre o relevo, pequenas pousadas e povoados da região. Não é que o simples ato de ler naquelas condições fosse tarefa fácil. Pois quanto aos estudos e anotações, tudo conspirava contra o dedicado Monlevade. O movimento irregular das patas de sua montaria, a atenção eventualmente capturada por outras atrações, o reflexo dos raios solares nas páginas que, avidamente, passava para frente e para trás, a sombra de árvores copadas que escureciam abruptamente a estrada, enfim, todas essas situações complicavam mais ainda suas pesquisas iniciais. E para fazer frente a tais empecilhos, o jovem engenheiro forçava exageradamente as vistas e não posso dizer que não tenha alcançado seu objetivo. Para tanto, em dado momento, chegou a pedir a um dos escravos que se encarregasse de puxar sua montaria. Já o tempo, após dois dias de viagem, mantivera-se firme. Isso facilitara sobremaneira o progresso dos estágios iniciais da empreitada. Por ordem expressa e soberana de D. João, havia sido fundado, em 1810, o Real Gabinete de Mineralogia do Rio de Janeiro, foi o que, em dado momento, Freitas recordou-lhe. Tal fato chamou especialmente a atenção de Jean Monlevade, pois o amigo disse inclusive ter chegado a deslocar alguns dos ganhames de sua fazenda para o setor de mineração. O Brasil tem grande futu- Jean Monlevade, do Castelo à Forja 275 ro nesse setor de sangria do seio de sua terra, acrescentou. Não nos esqueçamos que este é um dos principais motivos para estar aqui o barão de Eschwege. A usina chamada de Patriótica, Monlevade, encontra-se em pleno andamento. Não a conheço, mas fica em Congonhas do Campo. Foi a primeira no Brasil a produzir ferro por meio de malho hidráulico. O próprio Eschwege foi o consultor para o intento. Aliás, não veio ao Brasil somente para dirigir a empresa: também foi contratado para o mister de professor. Andou ensinando tanto técnicas mais modernas de manuseio aos trabalhadores de mineração, quanto engenharia a oficiais do exército. Foi um dos que deu as cartas de como seria o ensino da matemática e da física na Academia Militar do Rio de Janeiro. Esta escola foi criada há seis anos, em 1811. Foi a primeira no ensino de engenharia do Brasil, Tisserand complementou. Umas das que vieram a originar a tradicional Agulhas Negras. Essa academia, o senhor, com certeza sabe, é, hodiernamente, a dos oficiais da aviação militar brasileira. Mas foi por outras duas razões que os olhos de Monlevade cresceram, e ele notoriamente expandiu mais ainda a concha das orelhas quando ouviu Freitas repetir que a missão de Eschwege, em Itabira, foi na área do ouro. E no ano passado, Freitas continuou, D. João aprovou os estatutos das sociedades de mineração. Finalmente, tudo estava pronto, burocraticamente, para se instalar uma companhia de mineração no Brasil! Bem, voltemos à viagem, Tisserand disse, pois, pouco após aquelas informações de Freitas, o mesmo comentou que as mulas que comprara para cumprir o percurso de sua casa de Botafogo até a fazenda Nossa Senhora da Justiça eram excepcionalmente fortes e ordeiras. A tropa andava a passo forçado, mas parava insistentemente para eventual troca de ideias do capitão com seu convidado. Os balaios estavam lotados de víveres e instrumentos de trabalho do engenheiro de minas: não obstante o grosso de sua bagagem ter ficado na cidade do Rio de Janeiro. Após roteiro a ser cumprido é que Jean Monlevade determinaria local para onde deveriam ser encaminhados. Foi o que combinara com Freitas e seus empregados. Sim, por enquanto ficariam aguardando ordem de envio a partir de Minas Geraes. A comitiva crescia. Em Petrópolis, um negro e três mulas aparelhadas foram acrescentadas a preço de ocasião. Arreios e 276 Jairo Martins de Souza cordas de qualidade vieram ajuntados ao lote de mercadorias. O africano tinha bons dentes e era, segundo o vendedor, muito bom de braço e bem mandado. Não. Não, “coronel” Freitas. Não é do tipo fujão... Martinho Monlevade foi testemunha da negociação. Absolutamente consternado. Ainda não havia se acostumado com homens escravos, tratava-os como iguais, bem, a vida nos trópicos portugueses era muito diferente do esquema europeu. Havia de se acostumar! Petrópolis, a cidade por que passamos – agora é Tisserand quem diz – tem clima agradabilíssimo de montanhas. Foi o motivo do futuro imperador Pedro II ter lá possuído o seu palácio de verão: o atual e famoso Museu Nacional da cidade. Muitas cascatas, fios de água e Mata Atlântica. Próximo a isso tudo, habitou também o Barão e Visconde de Mauá. O maior patrocinador privado do progresso do Brésil império... Resumindo, Tisserand explicou, tivesse este homem nascido algumas décadas antes, e é por isso que aqui aparece, Monlevade e sua pequena comitiva poderiam ter feito o trecho até agora viajado por meio de trem a vapor. Irineu Evangelista de Souza também chefiou e financiou outras grandes empreitadas nacionais. Iluminação a gás do Rio. Companhia de navegação do Amazonas. O próprio Banco do Brasil. Seu erro foi ter provocado soberba em Pedro II... Não o deixei completar a frase. Pela primeira vez, desde que o estrangeiro iniciara sua história, resolvi interrompê-lo drasticamente. Queria acrescentar algo que julguei, naquele momento, imprescindível. Petrópolis também, disse-lhe, foi onde Alberto Santos Dumont, o homem que tornou possível a prática da aviação, fez erigir sua pequena casa. É conhecida por A Encantada! Ele sorriu. Entendi que queria argumentar que os americanos não pensam daquela forma. Mas não o fez. Deve saber que isso mexe com os nervos dos brasileiros... os irmãos Wright... No entanto respondeu-me sim. E, creio, para mostrar que tinha bom conhecimento das coisas recentes do meu país, falou do palácio Quitandinha do mineiro Joaquim Rolla. Rolla foi um caipira que dominou a jogatina nos anos do Estado Novo de Getúlio. E o seu Quitandinha era um hotel cassino de realce mundial. O Brésil republicano assinou a declaração de guerra contra as nações do eixo nos seus requintadíssimos salões. Errol Flynn, Henry Fonda, Bing Crosby foram alguns de seus hóspedes... Jean Monlevade, do Castelo à Forja 277 Aí Tisserand deu ideia de ter se enjoado do tema e, com certa preocupação, complementou. Não devemos nos esquecer, mon ami, que, no contexto do meu relato, estávamos nos referindo a anos anteriores ao fim do primeiro quartil do século dezenove. Mil oitocentos e dezessete foi tempo de escravos... E é por isso que devemos voltar ao trecho em que estávamos, disse-me. Voltemos a Freitas e a João de Monlevade! João de Monlevade! Sei que o senhor, mon ami, deve ter estranhado o aportuguesamento do nome. De Jean para João. Bem, mas somente quando cabível é que vou chamá-lo dessa forma, esclareceu. Pesa o fato de já estarmos há alguns dias no Brésil...e, adianto-lhe, jamais o engenheiro francês deverá colocar os pés fora dessa colônia. Não é ela, segundo o Benjor, terra abençoada por Deus? Na velhice, Monlevade chegou a ter algum tipo de sonho em que voltava à casa e à família. Contudo nem posso levar a sério esse tipo de intenção. Acontece com todos os velhos! Não se diz também que é idade em que as pessoas voltam com muito mais força à vida que viveram quando crianças? Os viajantes, sabemos, não venciam as distâncias a passo contínuo. A caravana parava com o fito de atender às mais variadas necessidades, entre elas as que, polidamente, chamaremos de hidráulicas. Para carga e descarga. Eram incontáveis os sítios em que a natureza entregava-lhes, a custo zero, água limpíssima e da melhor qualidade. Os arroios e regatos cruzavam prodigamente a estrada. Em um desses, um dos negros, por distração, fez com as mulas saciassem a sede a montante do ponto em que Monlevade e Freitas recolhiam água em cantil. O mulato, mesmo destituído do cargo de encarregado, enfureceu-se e o maltratou. Os humanos são assim, Freitas comentou com Monlevade. Veja você, este homem há meses era escravo! Agora é liberto. E trata um seu semelhante como detestava ser tratado. É verdade, Monlevade assentiu, a natureza do homem geralmente torna-se louca quando chega ao poder... Daí a conversa voltou ao fato que havia gerado a violência no seio da caravana. Lembra-me La Fontaine, Monlevade disse. Pensei o mesmo, Freitas retrucou. Você está se referindo à fábula do Lobo e do Cordeiro, não é? Sim. Este mulato é como o lobo: ignora a fraqueza do negro para massacrá-lo. Sujeito ladino! 278 Jairo Martins de Souza Mas, como era de se esperar, as paradas eram também para alimentar o corpo e o espírito de cada viajante. E é por essa última razão que os negros levavam velas e aguardente e, às vezes, deixavam pequenas quantidades em pontos de encruzilhada. Era momento único em que eram acompanhados pelo mulato, cruz credo! Martinho não os impedia, mas se persignava a cada novo procedimento. Os africanos de segunda geração sentiam também muita fome, daí solicitarem chorosamente paradas extras para comer frutas silvestres ou apanhar farinha nos cestos das mulas que levavam suprimentos. Quando surgia algum casebre à beira da estrada que anunciava venda de comida, eriçavam os beiços. Quem sabe o francês pagaria para eles pão com linguiça de porco no meio? O engenheiro era mão aberta e os tratava bem. Alguns pontos da viagem mereciam ser chamados de mirantes. As placas indicativas praticamente inexistiam e a bússola de Monlevade era frequentemente alçada para verificar posição do ponteiro na rosa dos ventos. O cenário continuava a deslumbrar o francês. Mon Dieu, quel pays merveilleux! (Meu deus, que terra maravilhosa!). Madeira. Dos pássaros já dissemos. Muita madeira. Nas Geraes é material que também sobra: era o que Freitas repetia e repetia. Os pouquíssimos mata-burros evitavam maiores cuidados com a guia das mulas. Nesta situação tranquila, haviam passado pelos povoados de Itaipava e Pedra do Rio. Com um detalhe, no mínimo, curioso. Após curva de estrada, haviam topado com comboio de ciganos. Como esse povo que não tem casa chegou da Europa até este novo mundo? Foi o que Monlevade perguntou a Freitas. A resposta veio com o silêncio. Não. Não sei, o fazendeiro do Piracicaba finalmente arrematou, enquanto algumas pegajosas e maltrapilhas mulheres se acercavam, oferecendo préstimos de leitura de mãos. Antes disso, Martinho já tinha se colocado em posição de defesa, cuidando de ter facilidade de alcance da espingarda que mantinha junto de si. Não. Não pensara originalmente em gente ruim. A arma era para espantar onças e matar cobras, caso fosse necessário ao longo da viagem. Esse povo tem fama de ladrão. As ciganas convenceram os negros e o mulato, e esses viram o que lhes reservava o futuro, sob o ponto de vista daquela gente suja que perambula por países e países, e como vimos, não ficam de fora suas colônias, enfim, gente sem eira nem beira, desde que o Jean Monlevade, do Castelo à Forja 279 mundo é mundo. Uma delas tanto pediu a Monlevade que conseguiu, por fim, que lhe fosse permitida a leitura das linhas de suas mãos. Jamais sairás deste lado do mundo, ela disse. Casarás com uma nativa e serás muito feliz com sua mulher e filhos. E também ficarás rico, complementou. Monlevade riu com vontade! Elas dizem o mesmo na França, e deu-lhe uma pequena moeda. Pode ser que tenhas razão, foi o que comentou em francês. A mulher não entendeu o que aquele senhor havia dito, mas sorriu, escandalosamente, a custo da moeda que rapidamente embolsara. Foi mera coincidência, o fato dos ciganos estarem arranjando as tralhas para sair do local. Levantavam acampamento. Um dos seus cachorros correu latindo com algo marrom-escuro na boca, e fez com que João de Monlevade se lembrasse do seu estimado Noir. O engenheiro francês sorriu. Daí a pouco as duas caravanas seguiriam viagem. Uma para o Rio. A outra para Minas Geraes. Passada a primeira curva, e já não podendo ser avistada pelas mulheres, a comandada pelo capitão Freitas aproveitou para fazer, conforme combinamos, breve parada hidráulica. Feito isso, foi embora. Um dos negros, o último da fila, disse que os ciganos ainda não haviam saído. Não soube explicar o porquê. Não consigo, nem nunca vou entender esta gente, comentou. Lá, na região de Secretário, Freitas foi saudado efusivamente pelo dono de pequena quitanda e restaurante situada próximo a cruzamento de córrego. Tratava-se de senhor nascido nas terras da província da Bahia e que viera, pleno de esperanças, há tempos, da região de Salvador. A centenária cidade baiana com a perda do título de capital perdera também grandemente sua força econômica. Tinha sotaque cantado e Monlevade entendeu pouquíssimo do que dizia. O homem da Bahia ama seu torrão natal e não gosta de deixar suas terras, confessou, mas tenho mulher e filhos para alimentar, enfim, vou servir-lhes o mesmo que a eles sirvo, arroz, feijão tropeiro, couve rasgada, ovo de galinha e carne de porco assada. Depois teremos também burundanga. Monlevade não entendeu e imediatamente sacou seu dicionário francês-português. Não achou a palavra que o hospedeiro pronunciara. Freitas sorriu e disse, adivinhando-lhe pensamentos, não vai achar aí, neste pai-dos-burros, o significado do termo que o homem disse, caro Monlevade. É regionalismo. No Brasil isso é comum! Na Bahia, burundanga é o mesmo que, dessert, sobremesa! 280 Jairo Martins de Souza Jean Monlevade, do Castelo à Forja 281 V A caravana finalmente chega a Vila Rica. O inusitado jantar de gala com o governador da Província Muito se pode dizer de uma viagem, mon ami, qualquer viagem. Elas são completamente diferentes do sentimento que se tem ao ver, pela tevê, roteiros espetaculares cumpridos por repórteres especializados. Recordo-me já lhe ter dado opinião sobre este assunto, Tisserand observou, mas não custa repetir que mesmo em casos em que são mostradas paisagens cinematográficas, sabe-se que a tela pequena reduz inexoravelmente a imensidão e a grandeza dos cenários vistos ao vivo. Melhor é gastar solado de sapatos pelos caminhos do mundo. Ainda que em passeio bem curto e feito por meio de metrô e que tenha, simplesmente, levado o viajante de um bairro a outro de uma grande cidade. É situação em que os cinco sentidos são atiçados, inclusive o olfato, que fica ausente nos livros e no cinema. Vou complicar mais um pouco, Tisserand alertou. Vou colocar pitada de paixão. Digamos que o passeio de metrô seja feito em dia de jogo de decisão de campeonato europeu de futebol, Manchester United versus Barcelona. Pode haver briga de torcedores. Pode ocorrer pequeno furto. Uma pessoa que nada tem a ver com o futebol pode ter a carteira subtraída, e perder dinheiro, e carteira de habilitação, e cartão de crédito, e documentos pessoais. Caso a sorte mude seu rumo, ela mesma, esta mesma pessoa, pode ser socorrida, caso seja mulher, por moço de boa família, atualmente sem compromisso, ou que venha de relação desgastada, e que tenha profissão de respeito, aí sem dúvida o grande transtorno pode virar um belo encontro de amor! Não fosse assim, poderia ser pior ainda. Poderia, após o dito furto, ocorrer um blecaute de energia e os passageiros ficam lá, angustiados, uns atrasados para o trabalho, outros pendentes de 282 Jairo Martins de Souza encontro com seus amados em estações a meio-caminho, outros, a maioria já bêbada, e a caminho do estádio mal se preocupa, e ouve em pequenos rádios a pilha as preliminares do grande prélio de daqui a pouco... Tudo isso que acontecer em tão pequeno percurso é sensação real. Não é de livros. Não é imaginária... e, se é assim, imagine o senhor, Tisserand prosseguiu, uma viagem ao interior do Brésil dos 800 como a que estava descrevendo anteriormente. Lembro que era feita por 5 negros, um liberto que xingava, e dava ordens não autorizadas aos seus irmãos de cor, um número que não mais me lembro de mulas, um engenheiro de minas francês, um fazendeiro do século dezenove de Minas Geraes, e um outro também homem estrangeiro que, quando menino, fora na prática, adotado por fidalgo. Pode ocorrer chuva forte (a que chamamos de facas e canivetes), e a rústica estrada ficar intransitável mesmo para os cascos duros de semoventes habituados a caminhar por pisos que arrebentam quaisquer tornozelos. Podem aparecer assustadores animais selvagens, e insetos que forçariam os viajantes a cavalgar vestidos como criadores de abelhas... pode acontecer mais em viagem daquelas condições. Um dos viajantes pode adoecer. Pode pegar febre amarela ou esquistossomose. Pode ficar gripado e com febre: não pode ser deixado para trás, pois a caravana já é pequena, não deve ser fracionada, então o ritmo de todos se reduz. Uma mula pode machucar o tornozelo, a ferradura pode soltar-se e fazer com que fique a três pés e, pior ainda, quebrar a perna e não poder deixar de ser sacrificada! Como dividir a carga entre os outros animais já com peso suficiente em seus lombos? Felizmente no nosso caso nada disso aconteceu, e que levasse a problemas de realce. Um dos negros foi picado por marimbondo nas proximidades de um dos olhos e simplesmente ficou por longas horas com o rosto absurdamente inchado. Não deixou de cumprir suas obrigações. Outro machucou o dedão ao dar topada em pedra pontiaguda escondida no piso. Não chegou a mancar mais que um par de horas, ele tinha, todos tinham, os pés como uma carapaça de tartaruga, enfim, nada grave! O capitão Freitas era quem mais solicitava paradas hidráulicas, é claro, não sabia, mas a idade fizera-lhe crescer a próstata e, com isso, não lhe preocupou o fato de estar urinando fino e com jato curto. Nem tinha como. Pois mesmo que acostumado ao torresmo e ao excesso de Jean Monlevade, do Castelo à Forja 283 café, assim como a outros fatores de irritação que impõem maus tratos à sofrida glândula prostática, não tinha recursos de saber sobre certo mal, de nome antigamente impronunciável e que, ao fim de tudo, afeta e é temida por todos os homens, bem, a terrível enfermidade podia estar em pleno andamento. Naturalmente, por ser ainda jovem, Monlevade viajava alheio à inconveniência que afetava o amigo. O esforço empregado para chegar até Petrópolis fora compensado pelo clima ameno e as deliciosas paisagens da Serra dos Órgãos. Que foram seguidas pelas não menos belas da Serra do Mar. Após essa última, a da Mantiqueira. Um pouco antes dessa, por meio de uso de pequena balsa alugada a um barqueiro ribeirinho, a pequena caravana lograra ir de margem à outra do Paraíba do Sul. Bom momento para pescaria e descanso, pois Monlevade tinha as nádegas absolutamente prejudicadas e doídas pelos passos irregulares do seu cavalo. E que lhe serviu para rapidamente recuperar integralmente as forças e ficar novamente entusiasmado: sua grande viagem de pesquisa mal havia começado! Conversava animado, recapitulando com o capitão Freitas sobre todo o potencial que tinha o “eldorado” geológico existente na província mineira que o aguardava quase virgem! Nessas circunstâncias, e passadas aproximadamente três semanas após saída do Rio, chegaram todos vivos e saudáveis às proximidades da chamada Vila Rica. O sinal indicador foi a visão longínqua do pico do Itacolomi que antecipava, e continua antecipando, aos viajantes que a capital da província estava por ser alcançada. Aquela imponente elevação rochosa se destacava, altaneira, no panorama da região. Foi em suas vizinhanças, Tisserand prosseguiu, que, pelos idos de 1693, bandeirantes paulistas descobriram cascalhos de cor preta que escondiam metal amarelo de qualidade requintada. Procuravam escravos. Acharam riqueza. Estou dizendo aqui sobre fato marcante que deu início ao Ciclo do Ouro na economia colonial do Brésil. Vila Rica também, Tisserand disse, foi onde o revoltoso português Felipe dos Santos, por conta de seus protestos contra a proibição do comércio do próprio ouro em pó nas Geraes, teve o corpo despedaçado pelas forças do exército português. E por falar no assunto, prosseguiu, a comitiva de Monlevade já divisava claramente o Itacolomi quando foi abordada por patrulha imperial composta por três soldados e um alferes. 284 Jairo Martins de Souza No momento do acontecido, Freitas havia ficado fora de vista, pois pedira tempo para defecar e, como de hábito, se encaminhara para a traseira de arbusto ao longo da estrada e de altura suficiente para mantê-lo oculto enquanto fazia suas necessidades. Vai ser rápido, disse. Podem seguir em frente que dentro de minutos os alcanço. Não. Não se preocupem, estamos praticamente em Vila Rica! O pequeno pelotão de militares disse alto lá!, e se identificou como responsável pela fiscalização de produtos minerais que circulavam entre a província de Minas e a do Rio de Janeiro. A produção de ouro está muito baixa, cabe-nos a missão de evitar contrabando em geral. A coroa carece de impostos... O comentário não foi bem recebido por Monlevade que os ouvia calado. Como de hábito a pronúncia do português ouvido da boca de um dos próprios trazia-lhe certa complicação. Pediu que repetisse. A sorte é que o alferes permitiu que um dos soldados, esse um brasileiro, refizesse a mensagem exatamente com as mesmas palavras. Monlevade entendeu. Inclusive que havia necessidade de inspeção da carga colocada nas cangas das mulas. Um deles, um dos militares, cutucou uma delas com a ponta da carabina e se excitou. Fazia papel de cão farejador. Aí tem! Dê-me a garrucha que tens atrelada ao cinto, o oficial solicitou a Monlevade. Podes apanhá-la com suas próprias mãos, foi o que Jean instintivamente disse-lhe de volta, temendo que qualquer movimento seu gerasse má interpretação e desse ideia de reação excessiva ou desacato ao que lhe ordenara a autoridade militar. Martinho colocou a mão na coronha de sua arma, o comandante do pelotão hesitou, Monlevade preparou-se para negociar. O alferes fez sinal de alerta para seus dois subalternos. O clima ficara tenso. Que trazes nos cestos?, perguntou mudando de assunto. Amostras. Amostras de minérios, senhor oficial. Mostreas, o alferes respondeu. Monlevade imediatamente lembrou-se de Agostinho Ferro, o militar da aduana carioca, algo na fisionomia do seu interlocutor... Mas, finalmente, retrucou. Fique à vontade, o senhor pode inspecionar as amostras. E terá facilidade de entendê-las, elas estão quimicamente identificadas. Por exemplo, a que tem já nas mãos é o trióxido diférrico, a hematita... Jean Monlevade, do Castelo à Forja 285 Não é minério de ouro, ou de prata? Temos ordens para sequestrar qualquer carregamento que... Não. Não é. Assim como não são todas as minhas demais: sou engenheiro de minas e absolutamente interessado em processos da siderurgia aplicados aqui no Brésil. Não há nem mesmo necessidade de dizer que foi Monlevade quem fez tal afirmação, Tisserand complementou. E foi o mesmo Monlevade quem perguntou: por favor, diga-me qual é a sua graça? Estava curioso. Meu nome é Ferro, o alferes respondeu. Antônio Ferro. Sou de nobre família de militares que veio para o Brasil recentemente. Ocupamos altos cargos no exército de sua Alteza Real. Conheço um dos seus irmãos, Monlevade contemporizou, interrompendo-o, e aqui apresento-lhe o mesmo documento que a ele mostrei recentemente. O meu salvo-conduto. Tome... Não precisa mostrar-lhe, Monlevade, agora quem participa da conversa é Freitas que surgira da curva do caminho e não fora percebido pelos demais. Deixe estar que darei solução a este impasse. Vai nos dar muito trabalho desfazer e refazer a carga. O alferes Ferro é homem que tem bom senso. Em segundos entenderá toda a situação. Venha cá, senhor alferes, vamos ter uma conversa de homem para homem. Para tornar o assunto mais curto, Tisserand disse que é assim que as coisas sempre funcionaram no Brésil. Bastou que Freitas dissesse que era velho conhecido do ordenança da cidade, e lhe citasse o nome, e sua amizade com Dom Manoel de Portugal e Castro, para que fosse dada passagem a Minas Geraes, com reverências: não somente para ele, como também para seus convidados. Cerca de hora e meia depois, entraram na bela praça localizada no então chamado Morro de Santa Quitéria onde se situava o Palácio do Governador de Minas Geraes, o próprio Dom Manoel. A bandeira da província estava içada ao alto ao lado da imperial. O homem estava atendendo hoje nos seus ofícios. Bela construção. À sua frente, a poucas centenas de metros, podia se ver o mais belo ainda, Paço Municipal, que abrigava, em sua parte térrea, os condenados da província. Celas com paredes inexpugnáveis. Monlevade imediatamente reparou que esse imponente edifício lembrava, de passagem, o monumental Capitólio de Roma, que visitara em sua viagem à Itália com o fidalgo, seu pai. 286 Jairo Martins de Souza O Palácio dos Governadores da Província de Minas Geraes, Tisserand explicou, transformou-se posteriormente na Escola de Minas e, além disso, abriga um excepcional Museu de Mineralogia que possui mais de 20 mil amostras de pedras de todas as partes do Globo. Merece ser visitado! Monlevade passaria dias e dias refletindo e admirando tais riquezas... Já o Paço Municipal, prosseguiu, nos dias de hoje, é reservado para as atrações do Museu da Inconfidência. O zelo e o cuidado com que é administrado lembram os melhores padrões europeus. Bem, voltemos aos nossos visitantes que dele estão se aproximando... Vamos procurá-lo tão logo estejamos alojados, Freitas disse entusiasmado, enquanto lembrava a Monlevade que ele e o titular da província eram amigos do peito. A praça estava cheia de mercadores e tropeiros. Ocasionalmente os sinos das igrejas de Vila Rica tocavam insistentemente... Vila Rica não é mais rica de ouro, Freitas comentou. Passou a ser conhecida como Vila Pobre. Já sabes, amigo Monlevade, que faz tempo o império português impediu o crescimento da indústria, principalmente a da siderurgia... Hoje o comércio está centrado na cultura do café, e no gado de corte e leiteiro. E devo lhes dizer que não sei se há razão especial para que estes sinos estejam tocando desesperadamente. É o que fazem a todo tempo por estas bandas, foi o que Freitas esclareceu aos amigos franceses. Percebera que Martinho e Monlevade haviam se entreolhado, perguntando-se, mutuamente, qual seria a razão de tamanha algazarra. A província de Minas, em geral, – é o capitão Freitas que ainda tem a palavra – é isolada do resto do Brasil pelas montanhas. E até pouco tempo, conforme já disse-lhe, por aqui não havia jornais: era proibido por vontade do imperador. Tudo é dado a conhecer por meio do toque dos badalos de suas igrejas. Não conheço o código das batidas de cor, mas creio serem, as que acabam de tocar, as típicas de informação de horário de missa... Aguarde, mon ami, por instantes, que vou consultar meu relógio de bolso para certificar-me se é hora completa. Bem, Tisserand disse, pequenos detalhes como estes à parte, foi somente após recolherem os animais, e serem acolhidos em pousada, que se encaminharam para o palácio do governador. Se bem que, acrescentou, a bem da verdade, a sequência de fatos não foi tão linear assim. Pois não é que fosse lei imutável, entretanto praticamente a toda chegada da caravana a alguma cida- Jean Monlevade, do Castelo à Forja 287 de, sempre acontecia acidente de pequena monta. Não os tenho relatado, contudo vou dizer-lhe sobre o que ocorreu com uma das mulas na descida de pequena ladeira que desemboca quase defronte à matriz de São Francisco de Assis. É caso singular! A caravana, que seguia em avanço aos passos entrecortados de Monlevade, já estava na rua do hotel que Martinho havia contratado. Ao seu lado, refiro-me a Monlevade, com o cavalo caminhando parelho, Freitas mantinha-se em ritmo igual. O que não podia ser diferente, Tisserand comentou, pois o fazendeiro explicava ao engenheiro francês tudo que conhecia sobre a vista e o interessante casario colonial que havia se descortinado em Vila Rica. Terra árida. Os minerais afloram ao solo... A hospedagem, Martinho perguntara anteriormente a oficial português que passava pelo local, ficava à direita da igreja de São Francisco em pequeno trecho de morro inclinado, e rua estreita, enfim, situada quase na vertical. Martinho reparou que o homem, ao dizer o nome do santo, respeitosamente persignou-se. Daí concluiu ser homem de confiança. Então perguntou mais. Perguntou se o tratamento, a comida e a bebida eram de qualidade bastante para receber o filho de um fidalgo francês e um capitão do exército imperial. O lusitano disse que sim. Com um detalhe. É preferida por hóspedes mais jovens, pois o dono é sujeito falante e dado a goles de cachaça e animação. O senhor vai gostar. Estou com mais cinco negros e dois amigos. Um jovem e um senhor de idade, não lhe disse, mas esse último não é somente capitão, como também é extremamente poderoso nessas terras de Minas Geraes. Não há problemas, o elemento respondeu a Martinho. Eu mesmo já estive hospedado por lá alguns dias antes de trazer mulher e filhos de Portugal. O hotel pertencia, e foi aberto, por família de um árabe festivo que viera para o Brasil em busca de ouro e diamantes. Com a crise da mineração, acabou por se dedicar ao comércio de hospedaria. Vendeu para um patrício de mesma índole. Este repassou a outro igual, e assim, pitorescamente, ocorre com aquela instituição. Normalmente os donos repassam a propriedade de cinco em cinco anos. Mas a filosofia se mantém a mesma e, todos os antigos proprietários, esse é o detalhe, mantêm consigo as chaves da portaria, e dos quartos, por toda a vida. Incontáveis donos. 288 Jairo Martins de Souza Não se surpreenda. Há mais. Todos têm apelidos que falam com precisão apaixonada de suas personalidades. Eles podem ser vistos em pinturas colocadas no saguão do tal hotel. Dizem ser mal assombrado! Deus nos proteja e nos guarde, Tisserand comentou, emendando que foi exatamente na rua empinada deste hotel que um dos negros, seu nome era Tião, ao cutucar as ancas de uma das mulas com vara curta, errou, talvez propositalmente, o alvo e acabou por aprofundá-la no ânus do animal. Foi uma correria só! A mula estava quase em frente do hotel. Aí que se podia ler que o nome era Jardim de Alá: estava escrito em placa pequena e um tanto nababesca. Bem, enquanto isso a mula já alcançava velocidade extrema e, ao cair estrepitosamente em buraco, veio a permitir que parte de sua carga se precipitasse no solo irregular da ladeira. Uma comprida caixa de madeira acompanhou-a, abrindo-se, e algo cilíndrico veio a se espatifar em pedra de quartzito de bom tamanho que se encontrava encravado no solo da rua que, já disse, era quase uma ribanceira. Somente a parte pontiaguda aflorava no terreno e, para complicar, o desesperado animal caiu por cima dos destroços que exibiam, inclusive, pequenos e brilhantes estilhaços de cristal. A alma de Martinho se assustou pelo amigo Monlevade. Imediatamente veio-lhe à memória o carinho que o filho do fidalgo tinha por sua velha luneta. O instrumento de lazer e estudos do seu meio-irmão não mais existe! Monlevade não sabia o que estava ocorrendo. Naquele exato momento, seu mister era a escuta atenciosa ao entusiasmado Freitas, ambos ainda não haviam dobrado a esquina da praça que dava à ladeira em que estava o restante da acidentada caravana. Repentinamente algo estranho, um certo corre-corre de alguns populares perturbou a ambos, e não demorou para que tomassem conhecimento do acontecido. O crioulo feriu-se? Monlevade perguntou. Não. O Tião está bem. A mula é que acabou por quebrar a perna. Precisa ser sacrificada, Martinho finalizou aborrecido. Assim se faça, mon ami, Monlevade respondeu-lhe. Quanto à minha luneta, não se amofine, posso substituí-la. Já o carinho do professor Duchamps, tendo ou não mais a posse do instrumento, é insubstituível. Tanto é assim que está guardado no mais fundo do meu coração. Na realidade a perda desta Jean Monlevade, do Castelo à Forja 289 luneta, que me acompanha desde menino, sugere-me, ou é mais um sinal de que não voltarei a Guéret. É quase uma premonição. Talvez a negligência do moleque Tião tenha servido para algo. Sendo assim, vou interpretá-la como para mostrar-me que há, em andamento, certa quebra de contato entre mim e a minha infância. Não com meu estimado professor Duchamps! No piso de pedras da rua, próximos dos cilindros da luneta, muitos passantes se acercavam do animal caído, e dos materiais que Tião e os outros negros estavam terminando de catar. E enquanto faziam isso, Freitas continuava olhando a bandeira eriçada nas janelas do palácio do governador. O vento agitavaa suavemente. Acreditava que, mesmo sem audiência marcada com antecipação, seria recebido pelo amigo. Estava certo! Como o senhor, mon ami, estará absolutamente certo se imagina que mais cedo ou mais tarde seletos amigos franceses de Monlevade irão ter com ele aqui na fascinante terra dos papagaios. É o que haviam prometido! Não era tempo em que satélites geoestacionários bisbilhotavam a vida dos cidadãos, Tisserand comentou. Fosse o caso, e se João Monlevade, em plena Ouro Preto do início do primeiro quartil do século dezenove, tivesse aparelho celular de GPS, e se demais condições técnicas fossem preenchidas, veria que, em determinado navio de bandeira francesa que cruzava o Atlântico próximo à ilha da Madeira, estavam já em plena viagem Fontaine, Zavoudakis e Platini. Reparasse melhor, notaria também a satisfação e a alegria que reinava entre eles. Com mar tranquilo e bons ventos, jogavam carteado, e vislumbravam grandes momentos com o amigo engenheiro da Polytéchnique. O destino da embarcação era obviamente o Brésil! Deixemo-los seguir viagem, e que Deus os guie, essa foi forma respeitosa que Tisserand encontrou para finalizar, por ora, o assunto. É tempo de voltar à visita de Monlevade e Freitas ao excelentíssimo senhor governador da Província de Minas Geraes. O advogado Raimundo Horácio de Souza levantou-se e cordialmente cumprimentou o recém-chegado. O governador, que há segundos estava sentado à cabeceira da longa mesa de reuniões, abriu um largo sorriso e, ato contínuo, encaminhou-se para saudar o velho amigo capitão Freitas. Enquanto caminhava em sua direção, pensou imediatamente em providência para alçá-lo 290 Jairo Martins de Souza à condição de major. Essas coisas são de fácil feitura, desde que para pessoas pelas quais o imperador tenha simpatia declarada. Era o caso. Já se abraçavam quando Jean, que se atrasara ao atender pedido tardio de vistas de documentação, entrou no ambiente conduzido pelo chefe do cerimonial do Palácio. Aí foi que, e de forma estranha ao clima normalmente circunspecto do ambiente, ouviu-se alegre e ruidosa saudação que partiu do advogado R. Horácio. Monlevade, meu amigo, que boas novas o trazem à Vila Rica? Os demais presentes entreolharam-se surpreendidos. O advogado explicou sucintamente a situação à sua excelência, o governador da província e, após apresentação formal do engenheiro francês aos demais, retiraram-se momentaneamente para rápida conversa em particular. Daí automaticamente foram formados dois grupos de conversação. Após alguns poucos minutos, ajuntaram-se todos. Monlevade, mesmo que absorvido pelo reencontro com o jovem brasileiro que conhecera durante a travessia do Atlântico, percebeu que, ao lado, Freitas insistia em determinado tema com a autoridade máxima da província. Suspeitou, mas não tinha condições de verdadeiramente atinar sobre o que discutiam. Na realidade estava em jogo assunto de seu mais alto interesse. Manoel de Portugal e Castro não era homem de meias palavras, Tisserand informou. Ia direto ao assunto. E foi desta forma que se dirigiu a Monlevade quando todos se encontravam assentados, e à vontade, em confortáveis cadeiras em torno de mesa de trabalho. A sua era de espaldar avantajado, dando a entender sua posição superior em relação aos demais. Com que então, Jean de Monlevade, estás preparado para dar passo à frente com a mineração aqui na nossa Geraes? Asseguro-lhe, o império está necessitado de empreendedores que tenham o seu perfil. Estou informado de que o senhor é técnico de formação excepcional... Foi quando Jean Antoine Dissandes de Monlevade deduziu o porquê das argumentações veladas do amigo Freitas ao dialogar com o governador. E prontamente respondeu, sim. Vejo com bons olhos. É razão de estar aqui e foi o motivo de ter solicitado salvo-conduto para viajar pela região... Tenho lido muito a respeito do seu potencial e... Peço-lhe escusas para dizer-lhe duas coisas, caro Monlevade, Jean Monlevade, do Castelo à Forja 291 o governador da província interrompeu-o polidamente. A primeira é lembrar que não estás liberado para circular no distrito diamantino. Nosso governo tem severas restrições para circulação de estrangeiros na região. A outra é que deves analisar com cuidado o que, às vezes, se escreve sobre nossas terras. Veja, por exemplo, o que seu compatriota Montaigne escreveu no século dezesseis, expondo nossas vísceras ao divulgar sobre o hediondo costume da antropofagia. Nem mesmo esteve por aqui! Este tempo já não mais existe em nosso império. É coisa superada, Monlevade... Alguns franceses são mal informados sobre nossa terra... Posso garantir, agora é Monlevade quem diz, e também seguramente contar com o testemunho do nosso amigo comum, o capitão Freitas, que em tempo algum poderia concordar com tal perspectiva. Definitivamente não é aquela a ideia atual dos franceses a respeito do Brésil. É a terra do futuro! Alimentará o mundo! E foi nesse tom que a conversa prosseguiu, estendendo-se por período superior ao inicialmente previsto. Manoel Portugal ouvia com atenção e a cada instante se tornava mais receptivo ao engenheiro francês: ainda que tudo não tenha corrido às mil maravilhas. Mas as diferenças de pontos de vista acabaram por gerar frutos. Mal-entendidos foram velozmente postos em pratos limpos. Acordos verbais foram firmados. Sim, Monlevade viajaria pelas Geraes, de acordo com as regras estabelecidas pelo império português com relação a atitudes de estrangeiros. O advogado Raimundo Horácio de Souza – agrada-me saber que ele e o senhor já se conhecem – seria o intermediador com a corte a respeito de qualquer eventual mudança de rota e objetivos. Fora contratado recentemente, a mando do próprio imperador, para apoio legal a Eschwege, o curador do Gabinete de Mineralogia do império. Ao tomar conhecimento da notícia, R. Horácio não lhe tinha dito tal novidade, Monlevade sorriu internamente. Sentiu-se em casa. Entretanto o rosto permaneceu impassível. Aí foi que eu mesmo reparei que, ele, Tisserand, é que tinha sorriso explicitamente estampado no rosto. Eu poderia jurar que se comportava assim porque, naquela altura de sua história, a presença do advogado era garantia de sucesso burocrático das intenções do engenheiro francês. Pelo menos em termos legais e de desembaraço judicial em quaisquer eventuais instâncias do império. Até mesmo com João VI, que era o ápice de todos os poderes. 292 Jairo Martins de Souza Bem, à medida que o sorriso de Tisserand se desmanchava, pus-me a postos para continuar a ouvi-lo. Não demorou. Ele disse que, por fim, o governador convidou Freitas e Monlevade para jantar de gala que promoveria naquela mesma noite. É o motivo do agitado toque de sinos que vocês escutaram hoje pela manhã, esclareceu. Trata-se praticamente de mesa redonda sobre a situação da mineração, da indústria e do comércio do ferro e aço nacionais. Os diamantes escasseiam. O ouro não mais reluz por aqui. E não é de agora. Isso acontece desde o aumento de tributação imposto por Pombal, foi época em que já estávamos decadentes. Mas sua atitude, ao fim e ao cabo, gerou a inconfidência mineira de 1788. Aliás, muito bem contida pelo governador e doutor em filosofia, o conde de Barbacena. É lógico, caro Monlevade, a situação mudou. Entretanto não posso omitir que muitos livros de autores franceses foram encontrados com os inconfidentes. Eles andaram influenciando psicologicamente não somente os mineiros, como também outras províncias para tentativas de derrubada do governo imperial. Bem, mas antes disso, repito, já estávamos decadentes. Sim. Morro Velho ainda produz relativamente bem. E o ouro continuará a ser procurado por aqui, mas não como antes. Com os diamantes é o mesmo. Por causa disso, os mineiros tem tido vistas somente para o café e a criação de gado. Enfim, falaremos sobre indústria. Falaremos sobre o ferro. Falaremos sobre sua fundição. Estarão presentes o bispo de Mariana e empresários do porte de Romualdo Barros, proprietário de rica lavra de ouro em Congonhas. Esse homem, o governador acrescentou, tem porte para ser um dos meus sucessores! Tem ideias de implantar fundição de ferro. Muitos outros empresários do império, de igual calibre, e assessores estrangeiros, estão hoje aqui em Vila Rica: discutiremos políticas de revitalizaçao da província. Aprendi a produzir grandes eventos com o marquês de Marialva, Monlevade. Para essa, digamos assim, festa, contratei o mesmo cerimonialista que ele usou para promover o casamento, acontecido o ano que passou, entre a princesa austríaca Leopoldina e o nosso Dom Pedro. No entanto não estou sendo irresponsável. A província não sofrerá sangria de dinheiro com tais custos, há empresário que se prontificou a arcar com tudo. As taças de cristal serão as dos Jean Monlevade, do Castelo à Forja 293 tchecos da Boêmia. Os candelabros e jarras dos venezianos de Murano. Os pratos e xícaras dos alemães de Meissen. Os talheres de ouro serão daqui mesmo de Vila Rica, contudo trabalhados na Itália. Bem, não distribuirei peças selecionadas de diamantes como Marialva fez em Viena, mas alguns pequenos brindes confeccionados em ouro serão entregues ao presentes. Não posso deixar sem memória física esse encontro que pode mudar definitivamente a política industrial do império. Sem sorteio. Tudo isso regado a bom vinho, e garanto, bom papo. Essas são as condições em que serão servidas comidas dignas das mais ricas cortes europeias, Manoel Portugal orgulhosamente complementou. Mas faltou a ele citar, não me vem à memória o motivo, Tisserand lembrou, que lá deverá estar também o futuro Barão de Catas Altas, o senhor João Baptista Ferreira Chichôrro de Souza Coutinho. É o xis da questão. O homem do dinheiro. Foi ele quem pagou as despesas de toda a solenidade. Já naquele ano, Souza Coutinho andava fazendo cortesias à corte para obtenção de título de nobreza junto a Sua Alteza Imperial. Não demoraria a tornar-se barão e, adianto, Tisserand acrescentou, tio torto de João de Monlevade, tendo sido peça essencial para o sucesso da vida do engenheiro francês no Brasil. E foi naquele mesmo evento que capitão Freitas comentou com Martinho Monlevade sobre algumas excentricidades da vida do dito João Batista. Há algumas absolutamente inusitadas. Ele fora sacristão da igreja do vilarejo de Catas Altas e perdeu, por morte, a mulher do seu primeiro casamento, e cujo pai era o capitão-mor da região. Homem de posses! Casou-se outra vez. Agora com uma das irmãs da falecida: isso não era incomum naqueles dias. Mas por infortúnio do destino, o sogro em dose dupla de João Batista ficou também repentinamente viúvo. Daí foi que aconteceu o inusitado, mon ami! O velho viúvo veio a casar-se com uma das irmãs do próprio João Batista. Isto fê-lo então tornar-se cunhado do próprio sogro que, entre outras coisas, era proprietário das minas de ouro de Gongo Soco. Quando de sua morte – refiro-me à do sogro – não produziam absolutamente nada! À custa de tal confusa situação de parentesco, o antigo zelador da igreja de Catas Alta tornou-se o único herdeiro do cunhado. Ou do sogro. O senhor, mon ami, pode escolher a opção que quiser. 294 Jairo Martins de Souza Daí ficou rico! A sorte havia se tornado sua companheira. Gongo Soco, já sob sua posse, começou a produzir toneladas de ouro, tendo sua fama se espalhado por todo o mundo cristão. De um momento para o outro, João Baptista Ferreira tornou-se um dos homens mais ricos da província e, quiçá, do Brasil! Nada resta do seu espólio, Tisserand prosseguiu em tom de lamentação. Os Pedros I e II estiveram em Gongo Soco somente quando a mina já era possuída pelos ingleses da Imperial Brazilian Mining Association. Lá foi construído até mesmo um Arco do Triunfo para que tais fatos ficassem para a história. O pequeno monumento era porta de entrada da antiga Estrada Real que ligava Sabará a Vila Rica. Hoje são ruínas cobertas por frondosa gameleira! Bem, obviamente não é por essa minha última consideração que Freitas e Monlevade haviam aceitado de bom grado o convite feito pelo governador, Tisserand finalizou. No entanto solicitaram se a cortesia poderia ser estendida a Martinho Monlevade. O governador dissera que sim, e educadamente perguntou o motivo da ausência de Martinho ao compromisso que estavam tendo. Monlevade respondeu-lhe que havia ocorrido imprevisto. Tinham providências a tomar devido a pequeno acidente: Martinho era o encarregado, não o explicou, mas o governador compreendeu e, por final, ambos se retiraram. Outros cidadãos aguardavam audiências de há muito programadas. Descansariam até o momento aprazado para a festividade. A despeito de ser fato conhecido os grandes privilégios dados aos ingleses naqueles anos do império, Jean de Monlevade foi, de certa forma, o centro das atenções. Não deu aos que o procuraram qualquer forma de tratamento indevido. Jamais faria, Tisserand prosseguiu, tal como um mal humorado escritor francês que dissera: os brasileiros nos dão borboletas, mas nos pedem ideias! Monlevade era sujeito polido. Não era dos que, pelo mau humor constante, parecem ter feito pacto com o rabudo. Como engenheiro da école des Mines, e com passagem pela afamada Polytéchnique, era convocado aqui e ali pelos participantes do encontro. Enquanto isso, a todo o tempo, os convivas dissertavam entusiasticamente sobre os efeitos de criação de fábricas nacionais de ferro, e a própria entrada de capital estrangeiro vindo dos cofres da nobreza de ultramar. A presença na província, e entre nós, do Jean Monlevade, do Castelo à Forja 295 mundialmente conceituado cientista August de Saint-Hilaire pode abrir novos mercados para todos os presentes. Está por ir ou já foi, Monlevade não entendeu bem, em visita oficial às forjas de Itabira, Girau, Penha, Bonfim e Ribeirão. Saint-Hilaire era uma celebridade festejada. E que disse, entre uma e outra garfada, ter ficado surpreendido com a qualidade dos machados, ferraduras e outros implementos agrícolas feitos em Minas. Nosso mercado é pequeno, foi o que um dos proprietários que lá se encontrava afirmou a ele em contrapartida. É apenas regional. Podia ser maior. Não temos maior saída por falta de estradas e comunicações. Sou proprietário de forja em Itabira. Fabrico até mesmo espingardas, complementou. Temos mais de cem de outras forjarias operando no Maranhão, assinalou um homem baixinho e de cabeça chata. Era brasileiro de terras distantes. Viera a conselho do próprio dom João, e que lhe fora dado durante audiência a que comparecera no Palácio de São Cristovão, no Rio. Explicou a todos que fizera tentativa frustrada de busca de apoio para fabricação de armas de fogo em sua manufatura. O nortista havia informado à sua alteza real que o problema não era técnico e sim de matéria prima. Faltava ferro no Brasil. O rei retrucou-lhe, dizendo também da preocupação do seu império quanto ao assunto. Tanto é assim que havia facilitado, há cerca de cinco a sete anos, a criação de duas fábricas. Agora, em 1817, não se lembrava bem dos nomes. Um dos seus camareiros informou-lhe tratar-se da Real Fábrica de Ferro do São João do lpanema, próximo a Sorocaba. E a Real Fábrica de Ferro de Morro do Pilar, em Minas Gerais, um outro auxiliar acrescentou. O erário havia gasto muito dinheiro para produção de ferros fundido, maleável e de aço para, inclusive, ter o benefício de exportação. Foi o próprio Eschwege quem justificou o fracasso dessas duas empreitadas. Era uma das outras eminências presentes, e atribuiu o insucesso principalmente ao ainda baixo consumo de ferro e de aço na colônia. Ao terminar acrescentou os custos de transportes, os altos impostos do governo português e carência de mão-de-obra adequada. Sim, as ordens do imperador foram adequadas, mas... Varnhagen, diretor da Fábrica de Ipanema, também disse dos percalços de sua empresa em Sorocaba. O camareiro real disse a 296 Jairo Martins de Souza verdade ao nosso amigo que veio do Norte, referia-se ao empresário nordestino que há pouco havia falado nesta cerimônia. Sim, também tive apoio do imperador e continuamos tendo bastante hematita. Nossas reservas são enormes. E lá, herren und damen, senhores e senhoras, estamos usando o que há de mais recente para injeção de ar no forno. Não usamos, senhores, nem escravos, nem cavalos para acionar os foles. Nossas rodas d’água são tocadas confiavelmente pelo rio Ipanema. O minério se reduz a metal de forma constante: isso quer dizer que temos lá ferro de boa qualidade. Nem é preciso dizer que há florestas e lenha, digo carvão, de sobra para os fornos. A empresa é frutuosa, produzimos 1500 quilos por semana, mas... Há muitos estrangeiros falando neste encontro, peço por instantes a palavra. Serei breve! Prometo. Quem disse assim foi o intendente dos diamantes da província, Manuel Ferreira da Câmara, lembrando ter sido companheiro de José Bonifácio nos estudos de minas e metalurgia na Europa. Fui o primeiro a fabricar ferro fundido no Brasil, afirmou. Portanto sou daqueles que acreditam na força do império português e, contando com o apoio do mestre alemão Schonewolf, minha ideia é ter, em breve, produção de trinta e sete toneladas em um só ano. Disse isso, e se calou. Sobreveio-lhe enxurrada de aplausos! Faltou-me dizer, Tisserand falou quase desculpando-se. Faltou-me dizer que, no início do jantar, todos os presentes foram se identificando, à medida que indicados pelo Governador, no sentido dos ponteiros de um relógio. A nata da inteligentsia e do empreendedorismo do ferro no Brésil. E é o que me fez lembrar, Tisserand assinalou, dos nomes de Theodoro de Freire, dono de próspera fundição no Rio de Janeiro, e de Daniel Muller, de fábrica de espingardas no porto militar de São Paulo. Naquele fausto jantar de chegada a Vila Rica, Tisserand voltou a esclarecer, Jean de Monlevade comportou-se, além de tudo, como um japonês. Notava e anotava tudo, e usando de sua habilidade incomum de traçar linhas fugidias e rápidas, rascunhava rapidamente os rostos, ao lado dos nomes dos presentes que lhe eram apresentados. Inclusive, esta com o perfil e o corpo elegante desenhados com maior capricho, a presença de uma jovem e simpática mocinha que permaneceu sempre afastada do grupo de homens que discutiam o futuro siderúrgico do império. Deus fez a Jean Monlevade, do Castelo à Forja 297 fêmea, as costureiras fazem a mulher. Foi o que pensou, sorrindo, ao observar a singela elegância da jovem mineira. Nas poucas vezes em que a viu aproximando-se de cavalheiros, fê-lo conduzida, e segurando delicadamente os braços do tio, o próprio João Baptista Ferreira de Souza Coutinho. O futuro barão de Catas Altas, de quem já dissemos. O nome da menina era Clara. Clarinha. Aquela moça tranquila e sossegada tinha jeito de quem poderia fazer o liame definitivo do engenheiro francês com as terras de Minas Geraes. Não havia funcionado, Tisserand recordou, com Angéline, a filha do médico Colbert. Nem com uma das irmãs du Lac, a despeito, estão lembrados, do empenho de Lucillia Pius. Vamos ver o que o futuro reserva para o filho caçula do fidalgo Jean-François! Não exatamente agora, Tisserand disse. Pois no jantar de Vila Rica que dizia, o resultado da troca de ideias que proliferaram iria ser resumido, a quatro mãos, pelo intendente dos diamantes da província e por Eschwege, o estrangeiro curador do Gabinete de Mineralogia. O primeiro, espelhando o ponto de vista do império português sobre estratégias de extração e pesquisa do solo de sua colônia; o segundo, naquele instante, também representando a comunidade científica europeia quanto a técnicas modernas para tanto. Um documento com aquelas prerrogativas, Tisserand comentou, hoje provavelmente seria chamada com o sugestivo nome de A Carta Mineral de Vila Rica. Posteriormente seria entregue, em mãos, ao próprio imperador. Mas o fato é que a cerimônia havia se encerrado e os dois franceses e o fazendeiro de São Miguel do Piracicaba saíam das dependências do Paço. Monlevade estava feliz. Via oportunidade de ouro para exercitar seus conhecimentos e emprestar sua cultura para ajudar ao desenvolvimento da região do seu dileto amigo Ildefonso. E a do pai, que, por deferência especial, o acompanhava. Em pouco tempo essa terra caminharia com os próprios pés. Fora informado por Freitas que as lojas maçônicas cariocas sofriam fortemente influência das francesas, e eferveciam em discussões sobre pensamentos republicanos. Além do que, a própria república pernambucana que fora abafada pelo império português em Recife havia tentado, repito, buscar apoio até mesmo no distante Estados Unidos. Os efeitos psicológicos do feito haviam perturbado enormemente aos anseios de João VI. 298 Jairo Martins de Souza Não podia negligenciar tais pensamentos, pois tinha assistido, com os próprios olhos, fatos parecidos na então atribulada vida do seu país. Foi tudo muito rápido, tempus fugit, o tempo voa. A avalanche de pensamentos revolucionários do ex-cadete da Polytéchnique foi embora tão rapidamente quanto viera e, ao concluir a descida da escada de acesso à porta principal do Paço, Jean de Monlevade já estava recapitulando que, em sua caderneta de anotações, tinha os nomes e endereços postais de todos os envolvidos no encontro. Daí sorriu reflexivamente. Desde que cheguei ao Rio, tenho tido belas perspectivas. Aqui nas Geraes o clima é de montanhas. Agradável no inverno. No verão provavelmente os insetos devem incomodar, mas nada que mosquiteiro de tela fina ou o fechar de portas e janelas ao fim da tarde não possam bloquear. O que não se pode é permitir que pocilgas como as que vejo aqui em Vila Rica, ou porcos fuçando pelas ruas, como esses que passam agora nas nossas proximidades, seja comportamento de rotina em minha futura morada. O Brésil é lugar onde construirei meu lar e minha fortuna! Ao seu lado, Freitas parava para cumprimentar conhecido que tomava rápido trago de cachaça. O homem, por sinal muito bem trajado, já estava de saída de um armazém. Conversaram rapidamente, mas de forma objetiva. Monlevade tirou o chapéu para também saudar o amigo de Freitas. Virou-se de lado e voltou a sorrir, enquanto acabava de fechar a caderneta para colocá-la em embornal. Ah, a mocinha não ficara, e nem poderia ter ficado, de fora dos seus lembretes. Foi sob o olhar cuidadoso do tio é que lhe dissera o nome e a cidade em que morava. Não. Não precisa mais nada, monsieur Monlevade, com estes dados o senhor me encontra, é claro, se isso não importunar ao meu querido tio, foi o que disse sorrindo. De forma alguma, foi como se expressou o futuro barão de Catas Altas. Disse com firmeza, mas paradoxalmente, de forma receptiva. No Brésil, o já passado menino de Guéret não poderia perder velho hábito de escrever cartas! Jean Monlevade, do Castelo à Forja 299 VI Monlevade faz turismo e reflete sobre o cotidiano da capital da Província das Geraes. Martinho definitivamente entrega sua alma a Cristo Na manhã seguinte, Freitas acompanhou Martinho e Monlevade em passeio pelas principais ruas e igrejas de Vila Rica. A ideia era ficar até o outro dia pela manhã. Na parte da tarde, ele aproveitaria estada na capital da província para acertar alguns pormenores de compra e venda de café e gado junto à receita e a cartório imperial. A capital da província centraliza tudo, informou. Aqui não se trata pomba rolinha como se fosse trocal, o empresário tem que pedir a bênção frequentemente a funcionários e agentes públicos. E ainda azeitar com propinas andamento de grande parte de nossos processos comerciais. A corrupção neste reinado, amigo Monlevade, vem se alastrando e toma corpo não somente no Paço Imperial de São Cristovão! É assunto que me causa náuseas. Então vou, se assim me for permitido, mudar o tema desta conversa. Mudemos para mulheres, Freitas acrescentou e, com isso, numa fração de segundo trocou a sisudez momentânea de sua face por um largo sorriso. As que nascem nesta cidade são chamadas de nativas. Nativas... como se fossem todas índias! A maior parte delas tem pernas batatudas, foi o que disse agora dirigindo olhar tanto para Monlevade quanto para Martinho. Atinou que os amigos não entenderam, então explicou: as subidas e descidas destas ladeiras é que forjam essa situação, complementou. Teve que explicar novamente. Todos riram. Foi quando Tisserand disse que há tempo não se referia a certo fato. Havia se remexido no banco como se algo repentinamente o tivesse incomodado. As horas passavam, e eu continuava ouvindo-o com o mesmo interesse de quando iniciara a relatar a tal quelque chose d’ extraordinnaire que prometera. 300 Jairo Martins de Souza Aí escutei-o dizer que havia algo da infância de Jean de Monlevade que merecia ser novamente recordada. O seu aguçado sentido de audição e olfato. Principalmente deste último. Já lhe disse que conseguia diferenciar minérios pelo próprio cheiro. E mais ainda: sentia o mesmo que os caçadores de depósitos subterrâneos de água no nordeste brasileiro. O senhor sabe que esses últimos, portando varas compridas na vertical, sentem estranhas vibrações quando passam por cima de veios de água? As varas ressonam em suas mãos. Não era incomum, ao passar por áreas plenas de metais, o engenheiro sentir o corpo eriçar por inteiro. Tentava explicar tal sensação por meio das equações de ressonâncias entre corpos, essencialmente as de capacitores e indutores, que aprendera na Polytéchnique, mas não se consolava. Pelo menos em termos teóricos. O detalhe é que, ao cruzar veios mais ricos, chegava, até mesmo, a ser incomodado com constantes movimentações no baixo ventre. Para tanto encontrou explicação não muito satisfatória, e se acomodou por falta de razão mais convincente. A culpa era o de desejo intenso de possuir e explorar as entranhas daquelas riquezas. Bem, era assim que estava se sentindo em toda região ferrífera das Minas Geraes. O ar e a umidade locais estavam inundados de cheiros agradáveis de minérios. Inspirava-lhe saúde! No entanto, insisto, Vila Rica não justificava o nome. Dos anos 700, restava-lhe a bauxita, o ferro, o calcário, o manganês, a dolomita. Faltam técnicas para explorá-las, Monlevade refletiu. Quem sabe no futuro... Foi quando abruptamente tropeçou em pedra talhada que, junto com outras, repousava amontoada em canto da rua. O calçamento, haja vista a profusão de materiais espalhados pela via, fora paralisado provavelmente por falta de verba pública. Monlevade viu que alguns negros riram do que acontecera a ele. Como de regra, Monlevade reparou, estavam descalços. Nunca vira um negro calçado nas terras do Brésil. Não havia se incomodado com o riso deles, e riu também. Abaixou-se e analisou a pedra que quase lhe fizera ir ao chão. Cheirou-a. Apalpou-a. Sílica de qualidade. Bom para piso de casa e calçamento. Dura séculos! Enquanto isso, uma parelha de bois mansos puxava carroça com alguns sacos de farinha, dois pretos, os mesmos que haviam debochado do seu tropeço, preparavam-se para receber a carga Jean Monlevade, do Castelo à Forja 301 defronte a um atacadista do produto. Outros dois lutavam para manter os animais sossegados e colocavam pedras lascadas nas rodas de madeira para que a carga e os bois não se arrastassem morro abaixo. Ao lado, outro escravo carregava um velho guarda-chuva nas mãos e instruía os procedimentos do grupo de serviçais. Dava ideia de liberto, e chegou a atingir um dos outros pretos com força, usando com energia o cabo do instrumento. Esses últimos coitados eram seguramente de aluguel. O tempo não passa para esta gente, Monlevade comentou com Martinho. O que passou aqui foi o tempo do ouro fácil, o ouro à flor da terra. Isso não deve mudar por enquanto, prosseguiu, e não posso criticar o governo de Dom João. Neste quesito, como francês, não me sinto com autoridade moral bastante. Não se diz que quem raspa o decalque de um juiz vai dar de cara com o carrasco? A abolição da escravatura nas colônias da França é recente. Foi em 793! Conforme disse-lhe há muito, mon ami, Tisserand continuou, os líderes da revolução francesa exigiam que, entre as disciplinas da Polytéchnique, fossem incluídas fortes instruções sobre ciências humanas. Foi uma das razões que, de certa forma frustrado em termos sociais, o engenheiro francês prosseguia caminhando pela capital da província das Geraes. As ruas mostravam mundo diferente do que vivera na noite anterior em que jantara com o governador e seus convidados. E é por isso que não perdia os detalhes do cotidiano da cidade. Vira traços e anotara como eram realmente os brasileiros do interior, cafuzos, mulatos... Os primeiros, filhos de pretos com índios; os segundos, filhos de brancos com negros. Freitas disseralhe existir certa hierarquia. Os mulatos julgavam-se superiores aos negros brasileiros. Estes, por sua vez, desdenhavam os nascidos na própria África. Mas todos faziam trabalhos braçais. Pode-se pensar alto somente na presença de um amigo, foi o que Monlevade comentou com Freitas enquanto observavam um feitor que dava cascudos em um escravo. Para mim é o que dá sentido, com todas as letras, ao substantivo amizade. Então posso lhe dizer, mon ami, o que acabei de pensar. É triste. Acabei de concluir mais uma vez, Freitas, que na vida acostuma-se a tudo. Pois é. Fiquei absolutamente consternado com o que vimos na Loja de Escravos da Rua do Valongo... Agora vejo o negro que 302 Jairo Martins de Souza ali está sendo espancado como se fosse parte do meu cotidiano... o que faço? Freitas respondeu-lhe com um olhar triste. Nada. Monlevade compreendeu. Estava em desvantagem, era um estrangeiro e, não somente isso, era um estrangeiro francês. Veja, ore, converse com amigos, escreva, mas não se manifeste publicamente sobre o assunto! É, portanto, e com os olhos ligeiramente avermelhados, que foi se afastando discretamente da cena de agressão. Adotou como estratégia o que todo ser humano faz. Passou a observar o céu e os horizontes das montanhas de Vila Rica e a refletir, bem, modificando o que o Hamlet de Shakespeare disse, e disse certo, que há mais coisas entre o céu e a terra que até um ex-aluno da Polytéchnique pode imaginar. Nas varandas das casas de, no máximo dois pisos, moradores, espias de plantão, permaneciam observando, curiosos, o que se passava pelas ruas. E igrejas. Muitas igrejas. A esperança dos que ficavam debruçados, observando a vida passar, é que algo diferente ou estranho pudesse acontecer. Um acidente de carruagem, ou carroça, ou até mesmo com uma simples mula que tem no lombo cangas com instrumentos científicos de estrangeiro. Alguns não viram, mas souberam que acontecera um grave na ladeira próxima à igreja de São Francisco, bem defronte ao hotel de Alá. O animal fora sacrificado com tiro certeiro de garrucha. Ou quem sabe, ver os dois estrangeiros que passavam às vezes falando em francês: não já tinham sido vistos por alguns felizardos? Portanto rostos fugidios, o que é fato comum em pequenas cidades, observavam Martinho e Monlevade entremeio às gretas das janelas. De Freitas não se pode dizer o mesmo. É figura daqui mesmo. Um militar à paisana seguia-os discretamente. A poucos metros de distância, um negro, vestido com roupas que mais pareciam um pijama de saco branco, carregava desajeitadamente um pesado balde de leite e estava por entrar em confeitaria que ficava na esquina da Praça do Paço do Governo. Mesmo com riscos de entornar a espessa nata da parte superior do líquido, tinha aguardado humildemente que os estrangeiros terminassem de entrar. O miliciano, por sua vez, subitamente deu por encerrada sua missão ao ver os três amigos sumirem por dentro das portas para degustação de café. Não teria nada de anormal para informar ao alferes Ferro. Os franceses haviam se comportado bem, e já estavam de volta às proximidades do hotel e do palácio do governador. Jean Monlevade, do Castelo à Forja 303 À parte esse detalhe, que nem ele nem Freitas haviam percebido, o engenheiro francês observara cuidadosamente as ruas que guardam segredos e histórias jamais conhecidas da revolta de Felipe dos Santos e, principalmente, da inconfidência mineira do também alferes Tiradentes. Fizera isso e, ao mesmo tempo, prosseguira sentindo vibrações extraordinárias das quais disse faz pouco e, mais ainda, acrescentadas pela lembrança da bonita figura da moça chamada Clara. O tio franqueou-lhe oportunidade. Escrever-lhe-ia. Manteria contato. E Martinho? O estrangeiro Tisserand perguntou-me. Causame estranheza, mon ami, que o senhor não tenha me indagado o porquê de ele não ter expressado opiniões desde sua estada em Portugal. Surpreendi-me com a preocupação do estrangeiro. Na verdade ele, de certa forma, adivinhara meus pensamentos. E disse-me que, de fato, não foi somente a barba crescida que diferenciou Martinho quando de seu retorno de Lisboa. Era outro homem. Não que tivesse deixado de ser bondoso como sempre fora. Voltara notadamente mais circunspecto. Reflexivo. Dissera que vira coisas horríveis. Lisboa não mais estava ocupada pelos franceses. Portugal não mais era dividido entre Napoleão e os espanhóis. Mas a presença dos ingleses de Beresford fê-lo testemunhar injustiças em incontáveis situações. Queria ser justo. Ajudava aos pobres e necessitados. Não permitia que um negro assumisse carga superior às suas forças. Tinha braços fortes e não negava auxílio a quem quer que fosse. Cumprimentava a todos que encontrava nas ruas. Uma carroça com rodas emperradas no barro, um miserável que pede um naco de pão, um cego que roga por auxílio, enfim, esses sempre poderiam contar com sua ajuda. No entanto, a vida ensinara-lhe que quem aceita a ideia de ser pessoalmente justo não pode temer a de viver sozinho. Ajudava. Mas sabia que o troco era a ingratidão. A ajuda dada de coração é impossível de ser paga. Confirmara a duras penas o que Ribérry certa ocasião martelara em sua cabeça. Não espere troco quando fizer caridade ou emprestar dinheiro, caro Martinho, quem recebe grande favor se irrita e, por não ter condições de pagar, passa a odiar a quem o ajudou. Por tudo isso não sabia bem o que fazer. Talvez a batina e o exemplo do abade Ribérry fossem por final a sua solução existencial. Com uma diferença. Não é 304 Jairo Martins de Souza possível que Deus tenha criado a mulher a partir da costela de Adão se não fossem para se separar e, ao fim e ao cabo, viverem vida conjunta. Nunca seria celibatário. Que Deus seria esse que viesse a frear seus instintos naturais? Mas por ora a opção era seguir seu caminho ao lado do amigo e meio-irmão Jean de Monlevade. Tinha grande auxílio na bíblia que recebera de presente do fidalgo, poucos dias depois de sua admissão no orfanato de sua nunca esquecida Guéret. Sua terra por adoção. Emprestava-a sempre que possível para os colegas de infortúnio e sonhava que todas as crianças que lá chegassem pudessem receber um exemplar. Um exemplar da bíblia, naqueles dias, era destinado a poucos privilegiados. Custava muito dinheiro, Tisserand esclareceu. Impossível de ser adquirido em quantidade por instituição de crianças de poucos recursos como a de Guéret. A que Martinho ganhara tinha dedicatória especial. Em noite de troca de ideias sobre alguns trechos que nela havia selecionado, permitira a Jean que lesse a mensagem especial que o fidalgo havia lhe ofertado. Na ocasião ainda moravam em Paris. O amigo emocionou-se, pois se deparou com a bonita caligrafia do pai que simplesmente copiara o tranquilizante salmo 23: Martinho, o Senhor é o meu pastor; nada me faltará. Deitar-me faz em pastos verdejantes; guia-me mansamente a águas tranquilas. Refrigera a minha alma.... certamente que a bondade e a misericórdia me seguirão todos os dias da minha vida, e habitarei na casa do Senhor por longos dias. O dia do sorteio em que perdera a companhia dos pais e dos irmãos não lhe saía da memória. Seria um dos escolhidos? Lia um versículo por dia. Olhava para as florestas de Minas e via restos de um Éden recuperado. Lugar santo. Olhava para Jean. Via olhos que cobiçavam a mesma terra como vasto manancial de combustível para fundição de ferro. Para ele qualquer pico de montanha de Minas seria sítio para edificar mosteiro. Para Jean, ele sabia, a mesma montanha significava a palavra ferro. Ferro. Ferro para edificar casas, produzir armas, estruturas, foices, máquinas... A missão do irmão era uma. A dele, outra. A de forjar caráter de brasileiros que buscassem consolo e refrigério na fé cristã. A construção de um mosteiro, ou igreja, poderia vir a ser o ins- Jean Monlevade, do Castelo à Forja 305 trumento. Montaria uma biblioteca, pouquíssimos têm livros por aqui. E ajudaria a Jean. Jean o ajudaria. Fosse mosteiro, havia de visitar um bem antigo que Freitas dissera-lhe existir na província do Espírito Santo. Poderia erigir um daquela monta em algumas dessas montanhas que contemplava. Talvez com nome dedicado a escravos ou operários. Ou a ambos. Não era São José um marceneiro? Para Jean de Monlevade, tudo que viam significava a riqueza e a produção. Para Martinho, tudo simbolizava a fé. Em dados momentos, em Vila Rica, pediu licença e separou-se por horas de Monlevade e Freitas para observar detidamente os altares pintados a ouro de Nossa Senhora do Pilar. Esteve em outras... algumas inacabadas por falta de recursos. Os bispos e figuras de grande devoção tinham sepulturas mais próximas do altar. Mais próximos de Deus. Desejava profundamente ser um deles. Em todos os templos, debruçou-se e rezou em voz alta atraindo atenção dos outros fiéis. Emocionou-se com a simplicidade da Igreja do Rosário construída, exclusivamente, para uso dos pretos convertidos. Ao finalizar seu roteiro em São Francisco de Assis, o hotel de Alá era próximo, de repente lembrou-se de que deveria balbuciar suas preces em português. Estava no Brésil, mas a alma por alguns instantes selecionados repousou candidamente na França. Ao lado dos familiares perdidos. Rezou mais. Refletia sobre as palavras que repetia, e repetia e repetia. Com isso considerava estar preparado para as agruras do dia que, graças a Deus, estaria por passar! De tudo sobrava-lhe, em termos práticos, que seu destino era o de servir a Jean de Monlevade com toda força dos seus braços e alma. Não havia prometido a si mesmo? 306 Jairo Martins de Souza Jean Monlevade, do Castelo à Forja 307 VII Rumo a Caeté. O capitão Freitas é forçado a abandonar a caravana Eram 5 horas da manhã e a caravana estava ultimando preparativos para partida de Vila Rica. Às cinco e dezessete estava pronta para seguir rumo a Caeté. Justo o horário pré-marcado com todos pelo engenheiro francês! Os negros se surpreenderam: como são esquisitos estes europeus! Foi aí que Tisserand chamou-me atenção para o fato de ter dito que Monlevade assumira a coordenação geral da viagem. É por razão justa, acrescentou. O homem que Freitas cumprimentara, e que tomava gole de cachaça em bar, havia-lhe alertado de algo importante que acontecera em sua fazenda durante sua estada no Rio e viagem de volta a Geraes. Havia ocorrido uma enchente de proporções consideráveis na região e alguns parceiros do capitão, que trabalhavam em regime de meia, sofreram fortes prejuízos. Não Freitas. Pelo menos diretamente. A casa grande de sua fazenda, assim como seu gado e suas plantações de maior produtividade, ficavam em terrenos altos, distantes das margens do Piracicaba. Desculpou-se com os dois amigos, mas seguiria direto para São Miguel, enquanto o grupo se dirigiria para Caeté. Aguardá-los-ia em sua casa. Foi razão de já ter partido na madrugada seguinte acompanhado do Tião, que havia se tornado escravo de estima. O homem era habituado a levantar-se antes dos galos. A partir de agora, Jean de Monlevade dependeria somente de si e da experiência que outro mulato tinha pelas estradas das Geraes. E foi já nestas condições que ouviu alguém chamá-lo com voz não muito alta. Tinha o pé a meio caminho para alcançar estribo do seu cavalo. Virou-se. O tom de voz era familiar. A caravana, inclusive os pretos a pé, também virou o rosto para o local de onde o som provinha. O homem estivera no jantar promovido pelo governador e pago por João Baptista... Monlevade 308 Jairo Martins de Souza mentalmente repassou os olhos por sua caderneta de anotações até localizar um dos rostos que desenhara. Encontrou-o na letra L. Luiz Soares de Gouveia era igualmente capitão e rapidamente informou a Monlevade que, por acaso, também iria dirigir-se a Caeté. Conheço a região. Se o senhor me concede o privilégio, posso guiá-lo até lá. Podemos ajuntar nossos recursos, estou com poucos negros, e, pelo menos é minha intenção, temos muito que conversar! E foi enquanto cavalgavam lentamente, tendo ao fundo a bela visão do mar de montanhas mineiro, é que chegaram ao xis da questão que Monlevade suspeitava existir. Não seria por nada que o empresário mineiro buscaria companhia para gastar horas jogando conversa para fora! Gouveia andou rodeando o assunto, enfim, Jean já estava quase, ele mesmo, em vias de indagar ao capitão. Afinal, o que desejas em relação a mim? Ouvi dizer, monsieur Monlevade, que o ferro na Europa já está sendo usado até mesmo em grandes áreas públicas. Estações de trens, pavilhões... Deves estar bem mais informado sobre essas construções revolucionárias. C’est vrai, Jean falou distraidamente, em francês, ao lembrarse de Paris e seu surpreendente desenvolvimento, é verdade. O futuro do ferro é enorme na construção. Seu uso deverá ampliarse assustadoramente: a idade do Ferro, caro Gouveia, mal começou... imagino que dentro de poucos anos não precisaremos mais, para construir edifícios mais altos, de usar paredes com mais de metro de largura. O ferro, senhor Gouveia, fará com que fiquem finas como as de uma panela de cozinha. Pois é, tenho terras com muitas árvores e madeira. E muita jacutinga. Não digo somente do pássaro, monsieur, a despeito de tê-lo também em grande quantidade. É boa caça, mas não vem ao caso. A que digo é a do minério que chamamos pelo mesmo nome. Dizem ser rico em ferro... E pouco enxofre e fósforo, Jean respondeu-lhe. Bom para fundição! Aí que está, Luís Gouveia imediatamente aproveitou a deixa. A ideia é aproveitar tudo isso... O senhor deve ter concluído, Tisserand afirmou, que, em situação como a que descrevi, nada mais natural que pudesse surgir uma sociedade entre os dois para funcionamento de fundição. Jean Monlevade, do Castelo à Forja 309 Bem, os dois homens mal se conheciam, mas Gouveia tinha pesquisado rapidamente as origens de Monlevade e especulara ocasionalmente com Freitas sobre o engenheiro e seu procedimento. Não poderia existir, nas terras de Minas, sócio mais adequado. Quanto a Monlevade, bem, Monlevade consultaria, provavelmente, o mesmo Freitas. Apenas para tirar peso da consciência, pois por tudo que tinham conversado, até então, não tinha dúvidas da aprovação. Entraria com o conhecimento; Gouveia, com o capital. Daí, já praticamente combinados, a conversa prosseguiu ainda consistente, porém com maiores intervalos de silêncio. Ambos estavam se entregando à concepção particular de alguns detalhes. Monlevade, em metalurgia e técnicas fabris; Gouveia, em obter licença junto à coroa imperial. A ideia era procurar imediatamente o governador! Não vou desgastá-lo com detalhes do restante da viagem, Tisserand disse-me. A conversa prosseguiu, depois de acordo verbalmente selado, em tom quase sempre comercial. A cada nova paisagem, Monlevade via chance de dar à luz produtivo centro metalúrgico. Em Caeté não foi difícil descobrir a melhor situação para construção da usina de ferro. A princípio não faltava nada. A não ser que... E a mão-de-obra? Perguntara a Gouveia. Farta. Foi o que lhe respondeu prontamente o capitão. Tenho muitos escravos e, se necessário for, encomendo alguns mais ao Rio de Janeiro. Há empresas que fazem trabalho de seleção e que, até mesmo, mandam candidato para entrevista e conferência de saúde, sem compromisso de aluguel ou compra. Também posso fazer o que não é do meu gosto, ir eu mesmo ao Valongo... Então realmente não há problemas, Monlevade afirmara-lhe. A fase de treinamento fica por minha conta. Ensinarei a alguns. Que ensinarão a outros. Com essa ideia de multiplicadores a cadeia do conhecimento se espalha fácil, enfim, até que os próprios trabalhadores treinem totalmente uns aos outros. É claro que não poderei ensinar todos os mistérios do processo. Nem mesmo eles teriam condições de aprendê-los. Há muita química, mineralogia e geologia que se escondem atrás de uma simples fábrica de fundição de ferro. 310 Jairo Martins de Souza Além de dirigir e instruir a rotina de fabricação, Gouveia e Monlevade combinaram que este último também assumiria papel de fiscal da qualidade do ferro fabricado. Colocaria em prática os tesouros que aprendera na Polytéchnique e na école des Mines. Isso foi Caeté. Não sem deixar que o novo sócio partisse totalmente abastecido e bem informado sobre caminho a tomar, Gouveia disse que seguiria de volta para Vila Rica para providências junto a cartórios e à fazenda da província. Não. Não deixaria de ir primeiramente visitar o governador Manoel de Portugal e Castro! Nas demais localidades em que passaram, as imagens se repetiram abrandadas. Vila Rica era a capital e lá Monlevade e Martinho haviam visto o melhor, em termos das Geraes, da arte e arquitetura barroca. Não mais surgiriam com a força que tanto havia impressionado o engenheiro francês. Daí prosseguiram passando sempre pelas fachadas de muitas igrejas. A todas Martinho pedia pequeno tempo para contemplação e causava algum atraso. Monlevade não reclamava, mas tantas eram que, às vezes, somente se persignava à passagem da porta. E os sinos tocavam. Tocavam... Foi assim que Monlevade e Martinho viram casas simples feitas de pedra e muitos escravos trabalhando descalços e encardidos. Os edifícios coloniais eram bonitos, contudo mal cuidados. Nada de neoclassicismo. E pobreza. Quanta pobreza! Como pode acontecer em terras tão abençoadas? E não é que não tenham sido abordados novamente por alguma aborrecida patrulha imperial, Tisserand disse em tom de encerramento. A família Ferro entranhara-se em todas as províncias e vilarejos desta receptiva colônia. No entanto, o salvo-conduto imperial fazia com que se safassem de qualquer situação: “siga na paz do Senhor, doutor Monlevade. Daqui a três léguas bem contadas, há pinguela em péssimo estado. Atravesse as mulas em ponto raso, assim e assado...”. A viagem prosseguia entrecortada e longa. Característica que fazia com que os escravos e o mulato se desentendessem com mais frequência. Fora proveitosa. E nem Monlevade nem Martinho foram acometidos de diarreia, conforme haviam sido avisados. Alguns carrapatos, sim. Aparecem com mais frequência nos pastos onde éguas soltam suas águas, um dos pretos explicou a Jean Monlevade, do Castelo à Forja 311 Martinho, enquanto este retirava um bem gordinho de sua perna. Monlevade foi premiado com um dos grandes que havia se alojado no saco escrotal. Ali soube que era tipo chamado de redoleiro. O detalhe é que foi percebido pelo francês somente pelo terceiro dia: O temor de infecção foi grande! Não vingou, graças aos céus! A comida mineira recendia a gordura de porco e torresmo. Logo no início da jornada pelas alterosas, Jean provou o feijão misturado com carne suína que os pretos faziam e que comiam com farinha de mandioca. Experimentou carne de jacaré e de tatu. Iguarias raras apresentadas pelo mulato que, bom de trempe, nunca usava uma mais larga que o fogão de cascalhos que improvisava. Os pretos também deram sua contribuição, pescaram bagres e assaram no espeto. O tempo de comida consistia, além de tudo, de minutos consagrados à confraternização. As rusgas e mal entendidos ficavam imediatamente esquecidos quando Martinho dizia palavras de união, e de agradecimentos ao Senhor, tanto pelo sucesso da viagem quanto pelo alimento ora sendo concedido. Não que fosse seu costume, refiro-me a Monlevade, Tisserand explicou, mas nessas estradas o engenheiro francês podia tomar banho em água clara e limpa quando lhe aprouvesse. Isso não faltava. Tanto ele quanto Martinho trocavam cuecas de três em três dias, os negros lavavam suas roupas de uso constante e deixavam-nas secar expostas ao sol no lombo das mulas. Com tudo isso, Monlevade não perdia a aparência de elegância e trato fino que aprendera com o pai. Mas, quanto às necessidades humanas, ambos ressentiram a falta de pano para limpeza. Os pretos ensinaram-lhes a distinguir folhas que, desculpe-me a ironia, Tisserand falou, poderiam cumprir o papel. Mas como disse, não faltavam córregos e regatos para beber água, e para afins mais íntimos como os que, faz pouco, acabei de citar. Por felicidade não foram muito incomodados por bichos do mato. É bem verdade que os negros mataram muitas cobras, quase sempre por diversão. A rotina é que atravessassem o caminho sem aborrecer aos passantes. Hospedaram-se aqui e ali e, na falta de estalagem, encontravam sempre um colono ou fazendeiro bom samaritano que os recebia cordialmente. É por isso que foram poucas as ocasiões em que dormiram no mato. Consciente do perigo, Monlevade temia acender fogueira e provocar incêndio florestal, 312 Jairo Martins de Souza pois com a quantidade de árvores existentes, não tinha dúvidas de que terminariam literalmente fritos. Bem, Tisserand explicou, Monlevade poderia galopar dias sem parar. Era treinado para tanto. Não tinha o exército francês o maior plantel de animais treinados da Europa? Mas dois dias antes de chegar a São Miguel do Piracicaba, consultava o relógio quase de hora em hora. Faltavam-lhe condições para leitura. Para mandar notícias. Para escrever cartas. Precisava descansar. Para isso contava com a fazenda Nossa Senhora da Justiça, do amigo Freitas. Jean Monlevade, do Castelo à Forja 313 VIII São Miguel do Piracicaba. A receptiva acolhida dos Freitas. Jean de Monlevade encontra-se com Auguste Saint-Hilaire A caravana seguia morosamente no sentido contrário às águas do Rio Piracicaba e acabava de deixar para trás uma bifurcação de larga trilha. Monlevade e acompanhantes estavam seguros de estar a poucas léguas do vilarejo de São Miguel. Um cavaleiro a galope vinha se aproximando em sentido contrário. Foi o que Tisserand disse, após um breve descanso de voz. Havia cessado de falar por instantes e, com a mão no gogó, emitira sons estranhos: alguns divertidos. E foi somente quando deu por concluídos os exercícios – pedira-me paciência com breve sinal de mão – é que informou estar obedecendo a instruções de fonologista que o aconselhara, desta forma, a amenizar antigos calos em suas já desgastadas cordas vocais. Aspirara muitos resíduos de calcário ao longo da vida, e sua voz fora ferramenta indispensável durante longos anos de árduo trabalho diário. Pó de giz! Foi aí que descobri sua verdadeira profissão, sem que me desse ao trabalho de perguntá-lo... O estrangeiro era na realidade un professeur, um professor! Ah, tarde demais... Prosseguirá aqui, ficticiamente, sendo o nosso já familiar tisserand! O tal cavaleiro, ele explicou, não podia ter o rosto identificado nem mesmo por Martinho que trotava à frente de todos. O Sol, com seus raios vespertinos, confundia sua visão já obscurecida por sombras e pela poeira de ventania que acontecia de passagem. Pelo que se podia depreender da situação, o viajante parecia não ter intenção, nem tempo, para cumprimentar a gente de Monlevade que caminhava em sentido contrário. O que seria grave falha de etiqueta de homem do campo! Nas Geraes, era habitual que todo viajante pelo menos acenasse chapéu para qualquer outro que encontrasse na estrada. 314 Jairo Martins de Souza “A caravana seguia morosamente no sentido contrário às águas do Rio Piracicaba e acabava de deixar para trás uma bifurcação de larga trilha. Pela admirável paisagem, Monlevade e acompanhantes sabiam estar a poucas léguas do vilarejo de São Miguel...”. Jean Monlevade, do Castelo à Forja 315 A distância mais próxima permitiu a Martinho ver que vestia roupa de tropeiro. Chapéu largo, capote e calça preta.No entanto, inesperadamente, Martinho pediu a todos os seus que parassem: após passagem, o estranho havia puxado bruscamente as rédeas do animal. Ato contínuo, sua montaria parou de forma um tanto quanto desajeitada, e relinchando estrepitosamente. As mulas e os pretos se assustaram e houve certo reboliço em trecho que a caravana vinha cortando estrada de forma tranquila, desejosa de colocar a caminhada a termo. O homem, de cor parda, identificou-se um tanto atabalhoadamente. Chamava-se Gervásio. Só Gervásio. Não. Não tinha sobrenome. Mas era feitor da fazenda Nossa Senhora da Justiça e, a mando do patrão, fora enviado para localizar um estrangeiro chamado João. João de Monlevade. Caso o encontrasse, e a seu grupo, deveria pedir, por gentileza, que o acompanhassem até a própria fazenda que era de propriedade do capitão João Gomes de Abreu de Freitas. Sua missão era encaminhá-lo o mais rapidamente possível! A casa grande da fazenda de Freitas era localizada em pequeno promontório de belíssimo vale. Pertencia aos Freitas por gerações. Toda a família fora convocada para dar-lhes as boas vindas. E na sala principal havia até mesmo pequena faixa com dizeres simples, em francês, mas que expressava o respeito que a família dedicava ao estrangeiro. Um dos pequenos a escreveu. Foi o esclarecimento dado por dona Amância, esposa do capitão que, orgulhosamente, apontou para um dos netos com o indicador da mão direita. Envergonhado, o menino imediatamente fugiu e escondeu-se por trás de uma das portas. A família riu feliz. Daí seguiram-se as apresentações. Este é fulano, esta é beltrana. Este é o mais velho, o José Joaquim. Aquele que se esconde atrás da porta é o... Monlevade era conhecido e amado pela família Gomes de Freitas, não somente pela forma com que recebera o moço Ildefonso em Paris, como também pela propaganda antecipada feita pelo chefe do clã, o próprio Freitas. O capitão, Monlevade reparou, no sossego do seu lar era chamado carinhosamente por dona Amância de meu João. Bem, conjecturou feliz, e por extensão, talvez na intimidade do seu quarto a coisa mudasse para meu Joãozinho! 316 Jairo Martins de Souza Decerto que, e apesar do largo tempo em que se conheciam, não sabia se o título capitão significava que o amigo fosse militar de carreira, ou se era simplesmente honorífico. O fato é que meu João era expressão carinhosa que lhe agradou. E não seria de todo mau que fosse assim chamado por uma brasileira chamada Clarinha. Mon petit Jean... O ausente Ildefonso, que sabemos estar aprimorando estudos médicos em Paris, sem quaisquer dúvidas, era o orgulho de todos os parentes. Entre eles, José Joaquim Gomes de Freitas. O Quinzinho. Eram parecidíssimos. Não falava francês, mas tentou dizer sejam bem-vindos: vous êtes bienvenue. Foi dessa forma que tentou saudar a Jean e a Martinho, como se esses fossem seus velhos companheiros. Tão logo ficou novamente a sós com o amigo brasileiro, Monlevade ansiosamente revelou-lhe sobre possível acordo a ser consolidado com o capitão Gouveia da região de Caeté. A reação foi animadora. Conheço o Gouveia de longa data. É homem de palavra. Não precisa assinar nada. É daqueles que honram e fazem negócio a fio de bigode. Já fizera várias transações comerciais com o fazendeiro de Caeté, algumas delas de monta, e nunca tivera problemas. Nem nunca ouvira qualquer queixa a respeito de seu comportamento. No final qualificou-o como homem de família. Nada mais persuasivo podia se dizer sobre o caráter de um mineiro. Intimamente, o sentimento de Freitas em relação à indústria de fundição era melhor ainda. Finalmente aparecera fórmula concreta de o amigo francês se fixar à terra. Por enquanto ele fica em Caeté, depois se arranja um jeito de puxá-lo mais para perto. Era boa companhia, homem de educação refinada. Bom modelo para os seus. Elevaria o nível de cultura da família. Isso tudo sem levar em conta a satisfação que seguramente teria o seu querido e ausente Ildefonso. A família compreendeu que os visitantes desejariam se recolher cedo nesta primeira noite. Após todos alojados, os escravos foram encaminhados para a bem cuidada senzala. O mulato protestou, conseguiu colchão de crina e foi decidido que dormiria no chão ao lado do catre do feitor da fazenda, o também pardo Gervásio. Jean abriu a janela do seu quarto. As dobradiças mal lubrificadas rangeram estrepitosamente ao contato. A casa estava silenciosa e a noite chegara fria e estrelada. Restava-lhe, para compro- Jean Monlevade, do Castelo à Forja 317 var a existência de vida, os barulhos intensos vindos do mato, dos pântanos e das águas. A força do hábito fez com que automaticamente consultasse sua bússola de forma lenta e cuidadosa. Não precisaria. Em um dos extremos do vale, em forma de vê, ficava fácil contemplar a majestade do Cruzeiro do Sul. Contrapartida da estrela Polar aqui neste hemisfério, Monlevade pensou. Emocionou-se. Ato contínuo, lamentou novamente a perda da luneta presenteada por Duchamps. Ildefonso tinha razão. Não era o vinho e a saudade de sua terra que o faziam, em Paris, dizer que neste lugar provavelmente ficam antecipadas as visões definitivamente celestiais do universo conhecido. Melhor deitar-me na varanda para apreciar esse mar infindável de estrelas. Terminou por adormecer de cansaço, e sonhando com a magnificência e o poder da natureza cósmica. Bem antes do alvorecer, acordou incomodado pelo aumento do frio úmido da região. Lá estava de novo Vênus com seu amarelo pálido. Marte e o seu vermelho intenso. Saturno. E a via Láctea, La voie lactée, a via do leite. Inundada de estrelas! Oceanos e oceanos de astros que brilham há milhões e milhões de anos. O que acontece na superfície da Lua nesse exato momento? Algum choque com cometa especial? Dans quelques seconds je peut savoir (em segundos fico sabendo). Pensou e sentiu-se como o cada vez mais religioso Martinho e, sinceramente, se emocionou. Ah, meu Deus, curvo-me a ti! Colocaste, aos meus pés, o passado da criação. Amém! Assim foi a primeira noite de Monlevade em São Miguel do Piracicaba. Com apenas uma manta para se proteger das intempéries. Anos depois declarou aos filhos ter sido extremamente feliz. Dormira com as estrelas! O engenheiro Jean de Monlevade era assim, Tisserand concluiu, escravo do conhecimento, escravo da Polytéchnique, da école des Mines e da matemática. Quanto a outras questões, não mudara desde tempo de criança. A silhueta do fidalgo, seu pai, não o abandonava: prosseguia com a sensibilidade e o espírito de família aguçados. É por isso que devemos voltar à Nossa Senhora da Justiça! O clã dos Freitas o aguarda para o primeiro café da manhã. Festivo. O primeiro café da manhã em família de Jean Antoine Dissandes de Monlevade foi absolutamente festivo! Minto. Não somente ele. Durante vários dias o clima manteve-se o mesmo. 318 Jairo Martins de Souza Depois a casa, mesmo dispensando sempre atenção especial aos convidados, retomou sua rotina. Com uma exceção, há sempre uma delas para que a regra fique justificada, Tisserand, emendou. É que esteve por lá rapidamente o próprio Auguste Saint-Hilaire! Ainda que Freitas tenha comparecido ao jantar de Vila Rica, não foi naquela situação que se tornara chegado ao famoso cientista! Trocaram somente frases curtas: o francês, não por acaso, soubera referências antecipadas sobre o fazendeiro que habitualmente recebia grandes personalidades em sua fazenda. Era de conhecimento geral ser o mineiro excepcionalmente culto e praticante de várias línguas, inclusive o francês. A casa grande da fazenda da Nossa Senhora da Justiça era, na realidade, pousada e parada obrigatórias para viajantes ilustres que buscavam conhecer as Geraes. Freitas era assim: extremamente hospitaleiro. O fato é que nos dias em que Saint-Hilaire esteve em São Miguel, Monlevade dormira acidentalmente na fazenda do alferes José Joaquim e, sendo assim, perdeu a oportunidade de contato mais longo com o famoso compatriota. Lamentou-se mais tarde. O cientista havia sido também aluno da Polytéchnique e dividira quarto com o químico Gay-Lussac. O senhor deve estar se lembrando, mon ami, que o alferes era o filho mais velho do capitão Freitas. Ele tinha uma pequena fábrica de ferro em sua propriedade e é por isso que o francês não fora convidado somente para visitá-lo em termos sociais. Unir-seia o útil ao agradável. Foi prevista breve consultoria para melhora do processo, treinamento dos escravos, etc. Quando retornou, Saint-Hilaire estava de saída. Encontraram-se acidentalmente. Os escravos já conduziam suas malas e apetrechos para o lombo das mulas. Foi tudo muito rápido, mas o cientista teve tempo suficiente para esclarecer-lhe não estar fazendo biopirataria. A imprensa do império no Rio de Janeiro estava equivocada, dissera-lhe, pois estivera injustamente acusando-o do referido crime... As ambições do nosso império, caro Monlevade, são universais, e o que faz bem a ele, faz também ao Brésil. Aí é que os interesses se misturavam. As caixas de plantas que enviara para terras francesas passariam a fazer parte do acervo científico mundial. Pois, até então, eram desconhecidas e poderiam eventualmente ser de excepcionais usos em pesquisas Jean Monlevade, do Castelo à Forja 319 e aplicações médicas. Escreveria um livro sobre o assunto: como cientista, seu sonho na vida era divulgar preciosidades como as achadas nesta terra. Fora diálogo que poderia demorar horas pelas articulações filósoficas que vieram em decorrência da sutileza do tema, mas a conversa, por absoluta carência de tempo, rapidamente chegou a termo. Monlevade e Saint-Hilaire eram homens bem práticos e já haviam conversado brevemente, como sabido, durante o jantar do governador e, por final, atualizaram andamento de intenções de viagem, de um e de outro. Monlevade, sabedor que o cientista retornaria diretamente para o Rio de Janeiro, solicitou-lhe favor especial. Antes disso, perguntou-lhe se conhecia o arquiteto Grandjean de Montigny. Saint-Hilaire respondeu-lhe afirmativamente, indagando o porquê da pergunta. Jean explicou-lhe que gostaria de oferecer ao eminente arquiteto uma proposta de trabalho. É possível de sua parte? Saint-Hilaire assentiu prontamente. Então peço-lhe gentileza de entregar, em mãos, a correspondência que tenho aqui pronta para envio neste pequeno volume. Assim foi feito! Anos mais tarde Saint-Hilaire escreveu a amigos, pouco antes da publicação do seu famoso “Viagem pela Província de Rio de Janeiro e Minas Geraes”, sobre a distinção e a elegância do conterrâneo que viera da pequena Guéret. Surpresa agradabilíssima! Foi como assinalou o fato de encontrar-se com um engenheiro de Polytéchnique em rincões tão remotos! A França tem muito a dar ao Brésil na figura deste filho de fidalgo. Quatro anos depois, Saint-Hilaire retornou para a França. Fora envenenado por ingestão de mel de vespa e havia ficado com o sistema nervoso extremamente abalado. Mas não morreu à custa de tal acidente. Com isso, mais uma vez resumo páginas do rascunho que o abade escreveu, Tisserand disse. A verdade é que ele soube de nuances como esta através do próprio Jean. É que, como reiteradamente tenho dito ao senhor, Jean escrevia muitas cartas. Daí não ser surpreendente que muito do que se passou em Minas Geraes ter vindo à tona exatamente por meio de Kostas Zavoudakis. Quanto a isso, não lhe perguntei nada, como é do meu feitio. O estrangeiro era criterioso, explicar-me-ia a tempo certo. No entanto não vou deixar de relatar que, naquele intervalo de dias, 320 Jairo Martins de Souza Monlevade foi conduzido por todas as roças, pastos e instalações da grande fazenda do amigo latifundiário. Não sou presunçoso como os ingleses, Freitas disse-lhe. Não posso chegar ao ponto de dizer que o sol nunca se deita nas terras dos Gomes de Freitas. Mas realmente nossas propriedades são extensíssimas! Na mesma ocasião, um emissário de Gouveia viera galopando, quase sem descer do cavalo, para comunicar a Monlevade, por meio de carta longa e minuciosamente detalhada, que as coisas iam bem e que tudo estava encaminhado junto aos órgãos da província e a Intendência de Mineração no Rio. Dom João VI aplaudira a ideia. A missiva era praticamente um pré-contrato. Leu-a com cuidado. Passou-a a Freitas. Tudo bem, o amigo respondeu, e acrescentou. Creio que o Gouveia fez este documento simplesmente para orientá-lo. É operação complexa: envolve vários segmentos da administração imperial. E confirmou reforçando o que anteriormente havia dito a Monlevade. Não. Não se carece de formalidade quando um homem como este capitão está envolvido. O emissário posicionou-se para esperar alguns poucos minutos. Não disfarçava pressa de retorno, e novamente havia optado por nem mesmo descer do animal. E quando decidiu deslocar-se para dar-lhe água em tina colocada por um dos escravos, Monlevade chamou-o de volta. O cavalo batia os cascos no chão, era do tipo marchador. Por favor, podes retornar ao capitão Gouveia com o que trouxeste. Freitas a tudo assistiu. Foi única testemunha. A expressão De Acordo, em letras garrafais, havia sido escrita na diagonal da folha em cima da própria carta que Monlevade recebera de Gouveia. Imediatamente abaixo seguia data e assinatura: João de Monlevade. Bem, Tisserand concluiu, foi esse o dia em que o engenheiro francês da école des Mines decidiu que, na escrita, passava da hora de abrasileirar seu nome! Jean Monlevade, do Castelo à Forja 321 IX Caeté e a usina de Luiz Gouveia. O futuro Barão de Catas convoca Monlevade para conversa reservada: assunto sério! Houve algumas modificações quando da elaboração formal do contrato que foram facilmente justificadas por Gouveia, e entendidas e aceitas da mesma forma por Monlevade. O documento final não o colocava na condição de sócio! Fosse constar dessa forma, lembrar que estamos tratando de um estrangeiro, o resultado seria catastrófico para a empreitada. Atrasaria papéis fiscais e de cartório, travaria andamento e faria gerar várias outras necessidades burocráticas. Então, a troco de bom pagamento, o engenheiro francês faria estudo adequado de viabilidade, e o que, nas indústrias de hoje,é chamado de pay back (retorno do investimento). Afora isso, teria compromisso de fazer as plantas básicas e o projeto detalhado da instalação de Caeté. Obviamente também colocaria a fábrica em funcionamento e dedicaria tempo definido para treinar os feitores e escravos indicados por Gouveia. Sua ideia era diversificar os recursos que aplicava no café e no açúcar e, caso acontecesse com sucesso o que se esperava, a restrição à produtividade da fábrica, como sempre, ficaria por conta das montanhas das Geraes que isolavam a província dos demais mercados do reino. Mexeria com seus pauzinhos e insistiria com o governador da Província para criar novos acessos e melhorar os trechos das pouquíssimas existentes. Foi o que, em essência, ficou definitivamente estabelecido nos termos da carta a que Freitas havia dado aprovação verbal. E o que realmente acabou acontecendo. A partir daí, o engenheiro francês daria somente consultoria de tempos em tempos. Estava tranquilo. Aqui no Brésil não teria problemas de matériasprimas. Dominava as técnicas de fabricação. Precisaria de minério, 322 Jairo Martins de Souza água e carvão. Sobrava minério. Sobrava água. Sobrava madeira. Estivesse com este projeto na França, encontraria graves dificuldades. Veja-se o caso da madeira que, sabemos, lá era disputada à ponta de faca entre fabricantes de navio e de ferro. Já naqueles dias, o estrangeiro esclareceu, as florestas europeias estavam em seus últimos estertores. O senhor já deve ter notado, mon ami, que não é meu desejo aborrecê-lo com enfadonhos detalhes técnicos, Tisserand disseme, demonstrando aspecto de alívio. Nem mesmo os conheço. Por outro lado, sentir-me-ia mal em não lhe dizer que Monlevade usaria água em abundância para acionar rodas que tocariam os foles de ar. Este sopro mantém o carvão aceso do mesmo jeito que em fogão a lenha caseiro. Sem ele, não se faz o ferro. A tudo isso, Monlevade acrescentou o pulo do gato. Pois foi baseado em conhecimentos profundos de química é que adicionou areia de rio no segundo cozimento do ferro. Não me pergunte o porquê. Insisto que não saberia lhe responder, Tisserand afirmou defendendo-se. Mas foi com aquela simples providência que resolveu grave problema de deterioração precoce da fornalha em uso. Isso acontecia em função do tipo de minério da mina disponível na própria região. Fez trabalho de qualidade em Caeté. Tanto é assim que o sucesso da usina do capitão Gouveia chegou posteriormente até os ouvidos do príncipe-regente. O francês Monlevade é de capacidade e comportamento irretocáveis e tem trazido lucros para a Província. Dizem pegar sem preguiça nas ferramentas, mas com a elegância de nobre europeu. O estrangeiro dá exemplo para os escravos, mesmo estando sempre vestido com apuro. Filho de fidalgo, fidalgo é. Entusiasmei-me, e estou indevidamente perdendo tempo em detalhes sem maior relevo, Tisserand advertiu-se. Então peço que o senhor, mon ami, acompanhe-me de volta a Caeté. Pois o que Jean de Monlevade encontrou naquela vila foi muito mais que uma indústria de ferro. Explico-lhe. O empresário João Batista Ferreira de Souza Coutinho foi quem havia pago as despesas do jantar promovido pelo governador da província em Vila Rica. Mas não foi esta a razão que fez João de Monlevade lembrar-se de sua figura ao vê-lo circular em carruagem de luxo pelos pedregosos caminhos da cidade. Ele era tio de Clara Sofia! Jean Monlevade, do Castelo à Forja 323 Clara Sofia, la jolie et jeune femme, com quem trocara olhares significativos no paço da província. Ainda não estava seguro se devia escrever-lhe, mas volta e meia não somente consultava o esboço de retrato que fizera, como também o endereço que a menina havia lhe fornecido, estão lembrados, sob os olhos atentos do próprio tio. No primeiro dia que chegara a Caeté, Monlevade soubera que o milionário Coutinho morava no mais belo sobrado de arquitetura colonial da vila. Era uma de suas muitas casas, pois mantinha, afora a de Catas Altas, residências fixas em Vila Rica, Sabará, Santa Luzia, Brumado e Gongo Soco. Com um ponto em comum. Em todas elas, a mesa ficava sempre posta para receber a qualquer pessoa de suas relações. A de Caeté é edificação singular, Tisserand acrescentou. Inclusive atualmente é onde se localiza o Museu Regional da cidade. Destaca-se mais ainda, e é o que a torna mais imponente, por ser localizada entre casas de um só piso, e por sua situação de grande afastamento lateral com as mesmas. No tempo do rico João Batista era conhecida como Casa Setecentista. E é lá que vamos encontrá-lo, pois o empresário estava de passagem por sua casa de Caeté e, sabedor da presença de Monlevade, convidou-o para jantar. Foi neste dia que Batista Coutinho apareceu com variáveis que Monlevade até então desconhecera em seus tantos anos de vida! A moça Clara Sofia perdeu o pai precocemente, foi o que, em dado momento, um sério Coutinho disse ao francês.Tinha em torno de 45 anos e ambos estavam na sala de visitas da própria Setecentista. Jean era, não por acaso, o único convidado, e a partir do momento que escutara do anfitrião que precisavam ter conversa reservada, a quatro paredes, desconfiara do motivo do convite. Freitas alertara-lhe algumas peculiaridades da família mineira. Vamos ver se é isso mesmo. Esse meu parente, pai da moça, era muito querido por mim. Daí praticamente adotei a menina como filha. Ela foi, e está sendo criada, como uma princesa e, asseguro-lhe, senhor Monlevade, muitos dos meus sonhos de pai estão centrados em sua figura. O senhor entende bem o que estou dizendo? Foi aí que Monlevade se atrapalhou, não poderia imaginar-se em tal situação. Quando do seu platônico caso com Angéline, o 324 Jairo Martins de Souza médico Colbert fora bem mais discreto! O resultado foi que confundiu-se com o inusitado da circunstância e disse oui, je comprends. O compenetrado Coutinho não entendeu a resposta. O ambiente tornou-se absolutamente tenso por segundos. Mas Jean havia se recuperado do imprevisto e rapidamente emendou com um retificador sim, eu entendo! O senhor pode continuar! Coutinho imediatamente relaxou os músculos, e preparou-se para prosseguir. Obrigado pela resposta, foi o que disse também percebendo que deveria aliviar o peso de sua conversa. Ela é, Monlevade, descendente de antigo donatário premiado com terras brasileiras pela coroa portuguesa. O que não é pouca coisa. O capitão Vasco Fernandes Coutinho foi homem poderosíssimo na capitania do Espírito Santo. Tanto é assim que o nome completo da minha querida é Clara Sofia de Souza Vasco Fernandes Coutinho. Bem, o senhor conhece com sobras a rigidez da família do interior de Minas Gerais dos dias de hoje, Tisserand disse, e pode imaginá-la, com facilidade, na palavra de um dos seus chefes de há quase duzentos anos. O discurso de Coutinho foi longo! Ele tinha temores quanto ao poder de sedução, considerandose a polidez e o modo elegante da fala de Monlevade. A sobrinha era mais que uma filha e poderia ter problemas futuros. Em dado momento até mesmo pediu licença e leu alguns textos bíblicos, que tinha como exemplares, para o engenheiro francês. Monlevade entendeu melhor ainda a situação. Lembrou-se do fidalgo, seu pai. E deixou que o homem liberasse todas as suas intenções. E ao término, escutou-o dizer que estava ouvindo muito o nome Monlevade em reuniões familiares. Alguns são a favor do namoro. Outros contra. Prefeririam que o senhor fosse oriundo da nobreza inglesa. Eu, particularmente, sou a favor dos franceses. Para resumir o encontro dos dois cavalheiros em Caeté, Tisserand disse-me, e para que o senhor perceba como estava, em termos psicológicos, a situação daquele momento, ocorre-me exemplo bem conhecido na arte literária brasileira de anos não muito passados. Pois é. Em o Tempo e o Vento, de Érico Veríssimo, Pedro Terra desconfiava abertamente das intenções do capitão Rodrigo Cambará em relação à sua filha Bibiana. Bem, Baptista Coutinho não chegou a tais extremos com Monlevade. Mas conceitualmente não há tanta diferença assim! Ambos, Coutinho e Pedro Terra, queriam o melhor para suas filhas. Jean Monlevade, do Castelo à Forja 325 Também não me sinto inseguro em afirmar, Tisserand vaticinou, que, à medida que os minutos foram se escoando, o empresário mineiro foi ficando cada vez mais confiante no futuro de sua sobrinha. Não há outra razão para ter mudado o foco e passado a falar das personalidades com que tinha contato frequente, assim como de suas minas e sua relação com o futuro econômico do Brasil. Já enxergava Monlevade como genro adotivo. Vejamos a outra face da moeda, Tisserand comentou. Faz-se necessário conhecer mais a fundo também o que se passava pela cabeça de Jean, e sua cultura francesa. Pois enquanto ouvia as palavras do, digamos assim, tio João, um dos barões da economia mineira, ele revisava mentalmente alguns propósitos de sua vida. A moça era realmente interessante e poderia ser coisa de futuro. A substituta. A substituta de Angéline. Poderia cumprir com ela o que sonhara fazer com a namorada dos seus sonhos de adolescente. É certo que já havia decidido criar raízes no Brésil. E prosperar. Percebia que, para tanto, poderia contar com a amizade do empresário. Diante de tudo isso, ficou claro para Jean de Monlevade que o namoro com Clara Sofia de Souza havia oficialmente se iniciado. Iria a Catas Altas formalizá-lo com a própria tão logo os compromissos em Caeté o permitissem. Poderia fazê-lo por carta. Não havia sido selado desta forma o compromisso entre Pedro I e Leopoldina? Não temia recusa. O tio da moça falava como representante oficial da família. Além disso, conversaria com Freitas em Piracicaba, iria a terras disponíveis para venda, enfim, compraria propriedade no Vale do Piracicaba, construiria casa... 326 Jairo Martins de Souza Jean Monlevade, do Castelo à Forja 327 X O solar Monlevade e o arquiteto Montigny. A primeira fundição de Monlevade O senhor deve estar lembrado que o arquiteto Granjean de Montigny era um dos integrantes mais famosos da chamada Missão Francesa e estava no Rio desde os idos de 1816. Foi assim que Tisserand retomou seu discurso após breve período de descanso. Havia aproveitado o lapso de silêncio quanto à sua história e feito alguns novos exercícios com suas cordas vocais. Desta vez não se justificou, e eu entendi perfeitamente. Ele disse mais sobre Montigny. Disse que era bastante divulgado, no Rio de Janeiro, que o francês que fugira das perseguições da revolução francesa estava perfeitamente adaptado às condições da vida nos trópicos. Prova maior disso é que já projetara vários prédios de destaque, como também muitos palcos de celebrações importantes da vida da corte de João VI. Foi exatamente lá que Saint-Hilaire havia cumprido a promessa feita a Monlevade na Nossa Senhora da Justiça. Entregara a Montigny a carta do engenheiro da Polytéchnique em tempo mais breve possível, conforme solicitado. Daí Montigny ter tomado conhecimento do pedido de Monlevade, solicitando-lhe gentilmente que fizesse planta baixa e fachada de residência solar que gostaria de edificar em terreno ainda a ser localizado e passível de compra. Mas, em termos gerais, Monlevade afirmou-lhe, como cliente, peço-lhe que o arranjo seja feito conforme minhas intenções. Em anexo, o senhor, professor Montigny, encontrará planta de locação a ser seguida e que deverá ser concretizada seja in natura ou seja no cabo de enxadas e picaretas. Também enviava desenho que fizera ilustrando as florestas e montanhas do entorno. As disponibilidades de água e benfeito- 328 Jairo Martins de Souza rias seriam tais e tais... Pedia preço e dizia aguardar resposta mais breve possível. Por fim, ressaltava ter consciência das grandes empreitadas em que Montigny provavelmente estava engajado, mas seria honroso ter a participação de tão grande talento a seu serviço. Dois meses foram bastantes para que a resposta e o desenho de Montigny chegassem e, junto com ele, recomendação para que fosse construído com detalhamento a ser feito pelo próprio Monlevade. Falta-me tempo, Montigny argumentou. Além do que, não costumo executar nem mesmo rascunhos sem visitar o sítio das obras. Estou tratando o seu caso, caro Monlevade, como uma exceção. E, portanto, em algumas situações, de certa forma tive que usar o truque que nós, arquitetos franceses, chamamos de trompe l’oeil que é, por exemplo, quando incentivamos pintura de janelas em paredes internas. Simulacros de janelas. Trabalhei com suposições e assim tive que enganar os olhos... Peço levar tal fato em consideração se for encontrado qualquer defeito nas ideias que lhe envio. E o conterrâneo Monlevade tem razão! Estou às voltas com grandes projetos imperiais, contudo não estou em particular preocupado com o bom desfecho deste seu projeto, pois sei ser um engenheiro da Polytéchnique capaz de elaborar o detalhamento desta minha sugestão sem maiores atropelos. Não. Monlevade nada lhe devia. Os rabiscos haviam lhe custado cerca de dez minutos! Daí Jean partiu para a compra do local idealizado. Encontrou-o após diversas andanças pela região, e contando com ajuda indispensável do capitão Freitas e o filho José Joaquim. A negociação foi concretizada com pagamento direto ao proprietário feito por Luís Gouveia, que devia a Monlevade restos de pagamento por serviços prestados em Caeté. Em termos geográficos, o local escolhido para construção da casa grande da fazenda ficava em torno de catorze quilômetros distante do vilarejo de São Miguel do Piracicaba. O senhor sabe, mon ami, Tisserand disse-me, quase dois séculos são passados e a tal casa mantém-se ainda de pé. O que não sobreviveu foi o atraente parque circular de jabuticabeiras com seu belo chafariz central. Nele, a água, conduzida por rudimentares canos de ferro, vinha de lugar mais alto e era projetada para chegar a altura superior do telhado da própria casa grande que tinha Jean Monlevade, do Castelo à Forja 329 dois andares. Totalmente construídos sobre baldrames de pedra e madeira. Montigny era craque! Imagine a beleza do cenário! Ao projeto de Montigny, Monlevade acrescentou as moradias dos escravos e demais edificações não inclusas no pedido feito ao arquiteto. Inclusive a igreja que, por sua vez, teve projeto do seu interior desenhado totalmente por Martinho. Espero, Tisserand comentou, que o senhor não tenha se esquecido desse dote que o meio-irmão de Monlevade demonstrara desde tempo de criança. Martinho. Martinho continuava sempre que possível ao lado do amigo de infância e da nunca esquecida Guéret, mas a prioridade de sua vida, a religião, fora elevada ao extremo. E um ano após chegada em Minas Geraes, seus esforços intelectuais eram quase completamente direcionados para aquela que considerava sua maior missão na Terra. Não. Não mudara de opinião quanto a questões de formação familiar. Continuava pensando em mulheres e casamento. Tanto é assim que enquanto Monlevade prosseguia namoro com Clara Sofia, ele mantinha compromisso com uma das amigas da mesma. O nome era Efigênia. Figênia. Efigênia era fruto de relacionamento rápido entre um rico comerciante português com uma de suas escravas. Mas a moça também foi educada e tratada como filha. Até nesses pequenos detalhes, os dois meios-irmãos pareciam ter destino convergente. Caso as coisas corressem de acordo, noivaria em breve e casaria mais rápido ainda. Aliás, os outros amigos antigos de Monlevade também não haviam desaparecido de sua vida. Ele estava ansioso para revêlos e a oportunidade estava próxima, pois além da compra da fazenda, em 1818, sua preocupação era a construção da casa e regularização definitiva de sua permanência no Brasil. Precisava ir ao Rio de Janeiro. Zavoudakis estava por lá há cerca de 9 meses. Não Platini e Just Fontaine. A última vez que falei sobre eles, Tisserand lembrou-me, estavam em pleno curso de viagem com destino ao Brasil. Chegaram bem, apesar da mil vezes relatada dureza do percurso marítimo. Nem é preciso citar detalhes, não é mesmo? O fato é que nenhum dos três alcançou Minas: por várias razões. Cada um teve as suas pessoais... vou explicá-las de forma resumida, começando pelo fim do abecedário. 330 Jairo Martins de Souza Zavoudakis. Kostas Zavoudakis é com quem Jean de Monlevade mantinha correspondência mais constante. O motivo é que o grego era o único dos três que mantinha endereço fixo. Ele, na chegada, havia se hospedado junto com Platini e Fontaine no hotel dos Estrangeiros. Foi onde, de imediato, conheceu uma bela e enfeitada francesa dona de conhecido bordel na Praia de Copacabana. Apaixonou-se. E, com poucos dias de conhecimento, pediu-a em casamento. Com uma condição. Pediu encarecidamente à mulher que largasse o negócio. Ela respondeu-lhe, em tom de brincadeira que, após boa lavagem, qualquer coisa na vida fica adequada para consumo. Zavoudakis não entendeu o gracejo, e propôs-lhe mudança de ramo. A mulher a princípio relutou: muitos homens solitários haviam-lhe feito o mesmo convite ao longo dos anos. O grego pensou ter perdido o que considerava início de nova vida em família. As mulheres da vida, pelo aprendizado do sofrimento, Kostas sempre soubera, terminavam sendo esposas de melhor qualidade. Então, ainda jovem de idade, mas com larga experiência, ela, depois de horas de reflexão, acabou por aceitar a proposta de peito aberto. O grego era boa pessoa. Ilustrado. Algumas circunstâncias trágicas de sua vida é que a tinham levado a seguir a terrível vida fácil, à qual dava adeus... bem, dessa forma declarou fim de carreira, apesar de certos clientes terem procurado seu carinho por meses a fio. E foi, para levar a cabo vida decente, que, entre uma coisa e outra, ambos definiram, de comum acordo, pelo ramo de livros. A cidade do Rio era carente de boas livrarias e Zavoudakis teria suprimento fácil de grandes obras por meio do forte elo de amizade que certamente manteria por toda a vida com Dubois. Mencionou-o à sua amada e não se surpreendeu quando ela disse-lhe conhecer o antigo patrão parisiense. É também boa pessoa, ela comentou com ar enigmático. Foi um dos meus clientes constantes quando eu estava em início de carreira. Zavoudakis compreendeu, lembrando-se que Dubois era celibatário convicto. Mas pediu à mulher que o poupasse, e não voltasse a citar o assunto. O patrão, em tarde de pouco movimento, dissera-lhe que preferia mulheres de aluguel. Daí mudaram-se para o Hotel de France, no Largo do Paço, onde moraram por alguns dias até encontrarem bonito sobrado Jean Monlevade, do Castelo à Forja 331 em Botafogo. Compraram-no. Lá o grego supôs ser seu ponto de referência até o fim dos seus dias. Portanto, foi endereço de onde enviou sua primeira carta para Monlevade, informando, em especial, que casara às pressas, assim como tudo que vinha acontecendo em sua vida. Havia postado a missiva para a fazenda Nossa Senhora da Justiça, a do Capitão Freitas, conforme haviam combinado ainda em Paris. Na mesma comunicação, dizia que Fontaine e Platini sucumbiram ao chamado de Netuno, o deus das águas. O convite feito pelo comandante do navio Résistence para seguir até o porto de Nossa Senhora do Desterro, em Santa Catarina, foi aceito sem maiores considerações. A longa viagem que fizeram da Europa ao Rio despertou em ambos antigos sentimentos de amor pelo desconhecido. Quando voltassem dariam notícias, o menino Monlevade poderia contar com eles em futuro próximo. Não agora. No entanto, meses eram passados e ainda não davam sinal de vida. Mas voltemos à casa que Monlevade pretendia erigir nas proximidades do Rio Piracicaba, Tisserand remendou. A lembrança dos amigos ausentes de Monlevade conduziu-me a afastamento do que dizia. O fato é que a falta de estradas convenceu a ele que deveria prover, para fins de subsistência, todos os produtos agrícolas para si, sua futura família e para os empregados e escravos de sua fábrica. Sim. Sua fábrica! Pois tendo em vista todas as variáveis que vinha analisando desde que chegara ao Brasil, Monlevade decidira ter a sua própria de ferro. Plantaria árvores frutíferas. Teria abelhas. Coelhos. Gado. Cabritos. Porcos. Tudo isso em quantidade suficiente para alimento de cerca de 200 pessoas. Seu negócio era o ferro. Lançou mãos à obra. Bem, não pôde ser considerado surpreendente, Tisserand sugeriu, o fato de ter a família Freitas como vizinhos da grande extensão de terras que adquirira. Não sei dizer exatamente quantos quilômetros quadrados, desculpou-se, mas tenho referências mais palpáveis. Entre elas que eram cortadas por cerca de 8 quilômetros do curso de águas do Rio Piracicaba e englobava todos os bairros da atual grande Monlevade, inclusive o Jacuí, Carneirinhos, o Onça, a Vila Tanque e outros tantos de não menor importância. Sendo assim, para interligar e dar saída para 332 Jairo Martins de Souza seus produtos, o brilhante engenheiro assegurou-se de imediatamente projetar e construir ponte de madeira sobre o Piracicaba. Alguns anos eram passados, não sei exatamente quantos, e já tinha todas as instalações funcionando perfeitamente. Martinho, enquanto o meio-irmão viajava a estudos, serviço e pesquisa mineral, acompanhava todos os passos do promissor negócio e instalações associadas. Plantava-se abacate, feijão e muitos outros frutos carnosos e secos. O ferro escorria dos ainda tímidos fornos catalães e era trabalhado nas oficinas. No entanto, como era de se esperar para os anos 800 em Minas Geraes, poucas toneladas de ferro, trabalhados ou não, saíam da porteira da fazenda a cada mês. A pedra preciosa da fundição era o fabrico de pequenos objetos e acessórios para a recém-implantada indústria de extração do ouro em Minas. É o que dava dinheiro! Tudo de lá era de qualidade. Isso porque o requintado Monlevade era extremamente técnico. Uma exceção nas terras ferrosas de Minas. O único dono de forja que entendia e acompanhava detidamente o andamento de cada passo da fabricação de bem desenhadas peças. Repito o que já disse: praticamente pegava na mão dos escravos para que aprendessem a malhar adequadamente os produtos. Escravos. Vou dizer algo de sua relação com os escravos. Após primeiros dias de Brésil, intimamente Monlevade os recusou. Considerava a escravatura situação humana deprimente! Algum tempo depois achava ser condição transitória. Passaria, não demora. Acostuma-se a tudo, concluiu, lembrando-se que já pensara assim em outras circunstâncias. Era mal indispensável. A partir disso, tomou partido do inferno dos negros, tentando tornálo, dentro de suas possibilidades, o mais ameno possível. Decerto que punia os que se comportavam mal com rigor absolutamente necessário e usava os mecanismos usuais. Para própria instrução do autor, dizia, o mal feito não pode ser tolerado. Mas não permitia excessos. Aos negros que faziam pequenos furtos, os capatazes da fazenda e da fábrica de ferro tinham ordens para aplicar com parcimônia as chibatadas no tronco, a argola nos pescoço e a peia no pé. No entanto, Tisserand destacou, era regra geral que todos dormissem acorrentados. A diferença de Jean de Monlevade em relação a outros proprietários de escravos era a de que o próprio dono lhes havia ensinado a fabricar chaves para que se libertas- Jean Monlevade, do Castelo à Forja 333 sem à noite! Escravos adestrados na indústria do ferro. Escravos chaveiros! Os que o haviam acompanhado na caravana desde o Rio de Janeiro foram, exceto o Tião que, sabemos, mantivera-se ligado aos Freitas, compulsoriamente devolvidos a seus donos, após vencimento do contrato de aluguel. Na ocasião, como cortesia, Freitas presenteara-lhe com um bom de serviço, chamado Tomás. Um quase mulato muito esperto. Com tal sorte, Monlevade adquirira outro escravo, do sexo feminino, agora indicado por Martinho, e que a localizara em andanças pela região, a Isaura. O antigo dono aproveitava-se da pobre mulher e cobrou caríssimo pela venda de sua valiosa mercadoria. A escrava Isaura era de comportamento e beleza de se admirar. Tinha pose e altivez de princesa. Por fim, a dupla, força das circunstâncias, envolveu-se, e se casou. Não mais deixaram o filho do fidalgo Jean-François até o fim dos seus dias. Monlevade entendia do riscado, e ensinava as artes do trato com o ferro com a paciência que aprendera com seu estimado professor Duchamps. Era o único que tinha sob suas ordens escravos artesãos. Foi o que chegou aos ouvidos do imperador. A intendência real inclusive passou a comprar-lhe diversos itens de cavalaria e utensílios em geral para provimento de suas necessidades. Os pedidos de consultoria técnica também não cessavam. Aí é que demonstrava para a sociedade imperial toda sua inteligência e conhecimento. Executava-as com presteza e precisão tão logo tivesse ido ao local e pesquisado as variáveis a serem levadas em consideração. Os profundos conhecimentos de química e mineralogia, associadas à sua forte base matemática, exaustivamente trabalhada nos anos da xis, fizeram com que sua fama se espalhasse por todos rincões da província. É por isso que foi convidado por indicação de senador do império, em 1823, a fazer levantamento sobre as minas de galena, e suas proporções de chumbo e prata, na região do Abaeté. Ele já havia feito vários estudos desta natureza, mas decerto não se deve deixar de levar em consideração o peso do dedo de Souza Coutinho, o próprio Barão de Catas Altas. Ajudou-o por várias vezes, como anos antes o próprio Monlevade havia prognosticado. O pai por adoção de Clara Sofia cumpria magistralmente seu dever. O trabalho de Abaeté, além de tecnicamente perfeito, foi considerada autêntica obra literária. Foi algo precioso a mais e 334 Jairo Martins de Souza a ser acrescentado em seu dossiê de estrangeiro francês que era guardado e mantido a sete chaves nos arquivos do império. Lá figurava, sem economia de elogios, o zelo que dedicava aos seus produtos, instalações e escravos. Em vista disso, Tisserand alegou que o próprio Monteiro Lobato, o festejado criador do sítio do pica-pau amarelo, o veria como perfeito exemplo do que pensava a respeito do papel e da sintonia que devem existir entre empresa, sociedade, empregados e lucro. Monlevade deixou raízes poderosas neste sentido! E, a despeito de toda sua intensa atividade, sempre conseguia algum tempo livre para visitar Clara Sofia. Dentro do velho estilo francês, sempre lhe trazia pequenos presentes e flores. A moça se encantava mais e mais com os bons modos e a educação do noivo. Amava-o. Era neste clima ameno, e recheado de carinho e respeito, que namoravam em varandas, e caminhavam lado a lado em pequenas estradas rurais. À noite, a Lua iluminava os seus caminhos. Faziam planos e, respeitosamente, imaginavam o futuro. Com um detalhe. Clara Sofia jamais mencionara a possibilidade de um dia cruzarem o oceano para que ela conhecesse a terra do amado. Como todas as mulheres que haviam passado pela vida de Monlevade, temia não suportar tão longa viagem. As ondas marítimas em alto-mar causavam pavor aos viajantes, foi o que eventualmente ouvia falar de amigos que haviam ousado enfrentar a situação. Chegam normalmente a quase três metros e ameaçam arrastar os que se encontram no convés... O que não representava possível atrito entre os amados. Jean não pensava também em retornar à França. Passara a ser chamado de capitão, mesmo não tendo a devida patente. Gostava da tal promoção de cortesia! Jean Monlevade, do Castelo à Forja 335 XI A festa de casamento na Setecentista. A nova fábrica de ferro Este namoro está excessivamente longo, o empresário de minérios e de ouro João Baptista Ferreira Chichôrro de Souza Coutinho comentou com a mulher. Ele ainda não havia recebido o título de barão de Catas Altas, mas tinha riqueza e fama equivalentes às de um Eike Batista dos dias de hoje, Tisserand assinalou. A família toda está comentando... de minha parte gosto muito do engenheiro Monlevade, principalmente de suas competências, mas julgo ser tempo de voltar a conversar com ele sobre agenda de casamento. Já usei contatos e procurei ajudá-lo, e o ajudei, em várias ocasiões. E não me arrependi. Confesso que o retorno foi magnífico com respeito às minhas relações com o governo. Ganhei prestígio a mais. Também tenho notícias constantes de que seus negócios prosperam, enfim, nossa Clarinha é paciente e sabemos das intenções do noivo... no entanto, creio passar da hora de tomar algumas providências: esses europeus! Concordo, marido, respondeu-lhe a mulher que ouvia pacientemente as preocupações de João Baptista.. Faça o que seu coração comanda, independente de qualquer comunicação à menina Clara Sofia. Dito e feito. João Monlevade sabia que a cultura das famílias mineiras tinha certa aversão a circunstâncias que julgava corriqueiras, mas concordou sem maiores restrições. Não podia também deixar de levar em conta a verdadeira adoração que tinha pelos bolinhos de fubá que dona Mariana Perpétua, a mãe de Clarinha, a venerável viúva do capitão José Álvares da Cunha Porto, preparava-lhe com toda a consideração e cuidados. Casase não somente com a mulher. Casa-se com a família e, principalmente, com a sogra. 336 Jairo Martins de Souza Apenas solicitou tempo para mobiliar mais adequadamente seu solar em Piracicaba e receber cartas de retorno do recebimento dos convites que enviara para a mãe e os irmãos François e Maria Vitória. Não os via há dez anos, quem sabe decidissem vir até o Brésil. Daí o tempo se arrastou. Cinco meses depois recebeu respostas praticamente simultâneas, vindas da França, em que o irmão e a irmã pesarosamente diziam da impossibilidade de comparecer. A mãe, Felicité, enviou-lhe linhas amorosas, dedicando-lhe votos de felicidade e breve chegada de netos. Não poderia também vir até sítio tão distante. A saúde precária não suportaria. Aguardava visita do filho... Da França havia assuntado também Duchamps, a família Pius, e o abade Ribérry. Somente Lucillia Pius respondeu-lhe a tempo. O marido Septimus havia morrido e ela estava praticamente de saída deste mundo. Desejou-lhe felicidades. No entanto confirmaram presença tanto Zavoudakis e esposa quanto os velhos amigos Platini e Fontaine. Os marinheiros ocasionalmente estariam no Rio por bom período. Nestas circunstâncias, o casamento ficou ajustado para 04 de janeiro de 1827. O dote da moça alcançaria a cifra de 80 contos de réis. Com isso, Tisserand esclareceu, compravam-se dezenas de quilos de ouro! Os convidados, após o casamento a ser realizado na igreja matriz de Caeté, seriam ricamente recebidos na Casa Setecentista. Várias figuras de importância da província, inclusive o governador, estariam presentes. Baptista Coutinho prometia realizar uma autêntica festa de arromba, era voz corrente que sofria irremediavelmente da grave doença do perdularismo. Ele havia vendido a mina de ouro de Gongo Soco dois anos antes, mas continuava como um dos homens mais ricos da província. A casa prometia estar cheia de convivas. O antigo sacristão de Catas Altas era, sobretudo, um exibicionista! Com a perspectiva de formação de família própria e, de certa forma, alheio aos preparativos festivos do matrimônio, Monlevade havia tomado importante decisão de comum acordo com Clara Sofia. Usaria o dinheiro do dote da futura mulher, e criaria uma verdadeira indústria metalúrgica. Padrão para todas as demais que viessem a se instalar nas terras do Brasil. Encomendaria equipamentos ingleses de reconhecida qualidade! Descortinavam-se novos momentos de sucesso para sua indústria. Jean Monlevade, do Castelo à Forja 337 Sete mil quilos é muito peso, Jean! Foi Martinho quem afirmou-lhe, preocupado. Em termos de transporte oceânico não é de assustar, mas como trazer os equipamentos do Rio de Janeiro até o Piracicaba? Por meio de estradas é tarefa impossível, Jean respondeu-lhe. A ideia é usar vias fluviais, a partir da capitania do Espírito Santo. Já estudei a logística contando com suporte de Marlière, um grande entendido no assunto, e fiz o roteiro de navegação em água doce. O Rio Doce é a solução. Quanto à passagem por cachoeiras, criação de pontes provisórias e ultrapassagem de outros obstáculos naturais, há que se ver. Vou pedir ajuda ao exército imperial. Os militares são bons neste tipo de empreitada... além disso, posso contar com Platini e Fontaine. Vou tentar convencê-los quando vierem ao meu casamento com Clara Sofia. Estamos em 1826, Tisserand avisou-me. Entendi seu recado. O estrangeiro, como de hábito, certamente faria breve contextualização dos dois grandes momentos que Monlevade passava. Os planos de casamento, filhos e o nascimento de um novo momento industrial do ferro no Brésil. Então ele prosseguiu relatando que desde que Monlevade chegara ao Brasil, em 1817, muitas coisas haviam acontecido. E resumiu-as. Dom João VI havia retornado com sua corte para Lisboa em 1821. No mesmo ano Bonaparte morrera na ilha de Santa Helena, e o britânico Faraday havia apresentado o primeiro motor elétrico: Monlevade fora avisado por um dos seus pares de Paris. Um ano depois, o filho Pedro, de João VI, e que havia sido feito príncipe-regente quando de sua volta para Portugal, havia declarado a independência do Brasil. Nascia um novo país que respirava arejado pelas ideias das terras francesas. No entanto, tudo isso pouco, ou nada, fizera mudar na vida do engenheiro Monlevade em Minas Geraes. A exceção, com o passar do tempo, naturalmente foi a chegada da eletricidade a ser aplicada na indústria siderúrgica por meio de motores. A vida de nós todos é, sem que saibamos, Tisserand continuou um tanto quanto pensativo, influenciada por fatores externos que mal conhecemos. Por exemplo, os efeitos resultantes das ações secretas da maçonaria francesa naqueles grandes acontecimentos nacionais. A recusa de Monlevade em tornar-se um daqueles pedreiros fê-lo ausente de tais eventos. O convite viera do Rio e a recusa bem entendida pelos emissários. Monlevade estava fisicamente fora da localização de lojas maçônicas. 338 Jairo Martins de Souza Mas voltemos a alguns detalhes do casamento: o padrinho de Clara Sofia pensava alto. O chefe da cozinha real de Pedro I fora convidado, a peso de ouro, a coordenar as atividades culinárias do evento. O rei o havia liberado sem restrições, pois sabia do poder financeiro do empresário mineiro. Na realidade, a ideia era convocar o famoso Antonin Carème que tivera sob sua responsabilidade o banquete de celebração do sempre lembrado congresso de Viena em 1815. Foi o que recompôs o mapa e o poder das monarquias europeias! Decerto o senhor pensa que estou novamente exagerando quanto às excentricidades de Catas Altas, Tisserand chamou-me a atenção. Havia notado com absoluta razão o meu ar de descrédito. Mas Baptista Coutinho não era somente conhecido, em várias partes do mundo, pelas riquezas do ouro da mina de Gongo Soco como também pelo comportamento perdulário que já comentei. E, na realidade, o grande empecilho para a ausência do primeiro grande cozinheiro francês foi o próprio, e riquíssimo, barão de Rothschild. Carème, na ocasião, estava a serviço exclusivo do homem mais rico do mundo, e que não permitiu sua ausência por tão longo período. Em compensação, além do cozinheiro real, também seguiriam para Caeté camareiros imperiais especializados em coordenação de grandes eventos. E, como deferência especial ao noivo, o cardápio consistiria de comidas francesas e mineiras selecionadas criteriosamente. Bem equilibradas, e em mesas ricamente adornadas com enfeites dignos de casal da realeza. Muitas flores. Até mesmo os escravos e serviçais foram premiados com refeições especiais à base de feijão e carnes diversas. Feijoada e churrascos na brasa. Muito foguetório e fumaça de pólvora queimada. Nestas bases, Tisserand comentou, a festa foi coroada de êxito... A imensa cama de casal de Baptista Coutinho mal cabia a quantidade de presentes que, por este motivo, estavam sendo organizadamente esparramados pelo quarto de dimensões também extravagantes. O irmão François enviara-lhe da França pequena placa de bronze com o brasão dos Dissandes de Monlevade gravados em ouro. Mal sabia, Tisserand adiantou que, no futuro, sua filha casar-se-ia com o filho do irmão que se encontrava tão distante! Zavoudakis, além de pequeno constrangimento que explico em breve, trouxe-lhe livros de qualidade. Por sua vez, Platini e Jean Monlevade, do Castelo à Forja 339 Fontaine presentearam-lhe com dois pequenos bustos de capitão de quepe e charuto comprados na cidade de São Salvador, na Bahia. Conversaram muito. Meu casamento não vai ser do tipo grego, Monlevade brincou, em que o homem é a cabeça e a mulher o pescoço, qual seja, vira a cabeça do seu amado para onde lhe aprouver. O combinado era construção de família a dois. Ela dirigindo a cozinha e a casa, e ele cuidando de buscar dinheiro na indústria do ferro e outros afins. As gargalhadas ecoaram pelo salão. O ditado é o mesmo aqui também no Brésil: o homem nasce, cresce, fica bobo e casa. O enxoval da noiva foi absolutamente enriquecido com dezenas de roupas feitas e gravadas a mão com as iniciais dos nomes dela mesma e do noivo, CJ. E, mesmo a contragosto de Jean, toda a província e a sede do governo tomaram conhecimento da pompa com que foram realizadas as cerimônias nupciais. O imperador Pedro I não pôde comparecer por fortes razões não explicadas em carta, de próprio punho, que enviou a Monlevade. Não disse sobre suas crises de epilepsia que estavam se tornando cada vez mais frequentes. Bastou-lhe citar o luto pela morte recente da esposa, a imperatriz Maria Leopoldina, que havia partido para a eternidade em dezembro do ano próximo passado. Não viajaria! Mas mandaria representação na pessoa do importante Ministro da Fazenda Imperial, o marquês de Queluz, etc. e tal. 340 Jairo Martins de Souza Jean Monlevade, do Castelo à Forja 341 XII Amigo é para todas as horas. Monlevade faz pedido especial a Platini e Just Fontaine A festa do matrimônio de Jean de Monlevade e Clara Sofia foi também, como ocorre usualmente em grandes celebrações, evento de negócios e acordos. Inclusive entre amigos, pois, em um dos salões, Monlevade estava radiante com a presença dos amigos Zavoudakis, Platini e Fontaine e, animadamente, convidava os dois últimos para coordenar transporte de importante carga que planejava receber nos próximos meses no porto do Rio. Zavoudakis era o único que tinha companhia feminina. Veio com a esposa francesa que, ao ser apresentada a Monlevade, enrubesceu levemente. Não houve qualquer tipo de desdobramento, mas ambos se recordaram do inesquecível fim de tarde em que estiveram juntos na casa carioca de Freitas. Anos haviam se passado, e... bem, entenderam a situação com a dignidade de caráter que eram portadores: as cenas de amor desfrutadas foram imediatamente jogadas para algum local intocável de suas memórias. De sua parte, Jean, passada surpresa de tão inesperado reencontro, seguiu dizendo aos amigos que os pesados equipamentos siderúrgicos deveriam ser levados, tão logo chegassem, diretamente para São Miguel do Piracicaba. Tarefa difícil. Já lhe disse ligeiramente sobre o tema, Tisserand lembroume. Monlevade, na ocasião, já tinha como certa a colaboração dos dois amigos para solucioná-lo. Eles que, não habituados ao uso de trajes de luxo, estavam um tanto quanto atrapalhados, e ouviam atentamente o antigo menino que, por sua vez, em tempos passados os ouvira assentado em saco de batatas. Após alguns copos de vinho, a emoção crescia ao lembrarem aqueles bons tempos. Estamos, caros amigos, perante vida nova... o que passou, passou! 342 Jairo Martins de Souza Aceitaram a missão de coração aberto. Ainda que a princípio um tanto temerosos pela falta de experiência com navegação fluvial em águas onde poderiam encontrar animais ferozes e índios antropófagos. Não. Desses não há mais, Jean garantiu-lhes. O governo de Dom Pedro tem agido energicamente neste sentido. A situação mudou mais ainda quando Jean disse-lhes que contariam com ajuda preciosa do capitão Guido Marlière, antigo tenente do Regimento de Cavalaria da província de Minas Geraes, e atual diretor-geral dos índios. O francês Marlière, Tisserand esclareceu, pode ser entendido, em tempos recentes, como uma perfeita mistura entre os irmãos Villas-Boas e o marechal Cândido Rondon. E, sendo assim, os dois amigos fariam viagem totalmente orientada por homem que, além de conhecer bem o trajeto marítimo do Rio até a vila de Vitória, dar-lhes-ia suporte garantido por órgãos oficiais. E teriam na retaguarda ninguém menos que João Diogo Sturz, um profundo conhecedor de todo o leito do Rio Doce. Daí, saindo dele, chegar ao Rio Piracicaba e ao distrito de São Miguel aconteceria, se tudo desse certo, num longo piscar de olhos. Sturz, inclusive, Monlevade comentou, é meu sócio nesta empreitada. Temos contrato de premiação, caso a carga chegue a salvo e a tempo: uma espécie de seguro de viagem e transporte. Tais informações não foram suficientes para acalmar a alma de Platini. Ele buscou saber e analisou, principalmente, a ficha técnica de Marlière tal como fazia quando da contratação de seus marinheiros. Guido Marlière. Francês radicado no Brésil. Bom trânsito junto aos índios da província do Espírito Santo. Em 1811, apontado Tenente agregado do Regimento de Cavalaria de Minas. Acusado e preso injustamente como espião de Bonaparte. Absolvido posteriormente e premiado como Comandante da Colonização da Bacia do Rio Doce. Estudou a navegabilidade do grande rio que vazava de Minas ao Atlântico na província do Espírito Santo. Aprovado! O homem é dos nossos. Foi o que disse para Fontaine, após receber relatório encomendado a um contato que fizera no Rio. Quanto aos dados de Sturz, não obteve nenhuma informação detalhada. Nem do engenheiro Lenoir, que foi indicado à últi- Jean Monlevade, do Castelo à Forja 343 ma hora para acompanhamento técnico e zelo pelo manuseio dos equipamentos. A despeito disso, concluíram que estas circunstâncias não deveriam significar motivos para preocupações. Ambos foram indicados pelo próprio Jean. Podemos ficar tranqüilos! Enquanto isso, Tisserand observou, os produtos da fábrica de ferro já eram classificados os melhores do mercado nacional, e vendidos muito além das fronteiras das províncias de São Paulo e Goiás. Jean mantinha pesada estrutura de propaganda. Distribuía calendários e folhinhas fartamente espalhados pelas ferrarias e lojas de comerciantes varejistas do ramo, inclusive armazéns. Em qualquer boteco, achava-se banha de porco e ferramentas oriundas da fábrica de ferro e da fazenda de Monlevade. Seus escravos e feitores riam quando seu capitão lhes dava exemplos de como fazer com que a indústria desse lucro. Alguns deles choraram de rir quando Monlevade disse-lhes o porquê de comerem mais ovos de galinhas do que das patas. As galinhas avisam quando o produto está pronto, explicou! A fundição Monlevade fabrica as melhores ferraduras, cravos... As festas religiosas da região eram destacadas nas folhinhas da fábrica. E as ilustrações à base de gravuras de santos e madonas, e do menino Jesus, ficavam a cargo do dedicado Martinho. Caso fossem desenhos técnicos de ferraduras, parafusos, etc., Jean tomava para si a tarefa. Ele estava se tornando figura folclórica na província. Em termos práticos dizia, muito antes de Luther King, que os negros têm também direito a sonhos, enfim, desmentia alguns hipócritas escravistas que alegavam que sua mercadoria nem mesmo tinha alma. Tanto é assim que permitia cultos afros, mas, por meio de Martinho, não deixava de orientá-los sobre os princípios cristãos. Muitos se convertiam! Também era fato divulgado que lhes ensinava rudimentos de francês e não era raro que seus escravos fizessem entre si a saudação, bon jour! Bom dia! Mas, voltando aos novos investimentos feitos por Jean, não sei exatamente e não posso adiantar qual a função de tão pesados equipamentos na nova fábrica de Monlevade, Tisserand explicou. Apesar de saber, pelo menos é o que pude deduzir de suas notas que chegaram até Zavoudakis e daí... bem, o que se sabe é que o galpão situado nas proximidades da margem esquerda do Piracicaba teria que ser ampliado. 344 Jairo Martins de Souza O vigário geral, reforço, não se dedicou a entrar em detalhes sobre a arte de trabalhar o ferro e a siderurgia. A ideia que tenho, e devido ao fato de, na nota de desembaraço na alfândega carioca, terem sido descritos como grandes objetos cilíndricos de ferro, é que eram destinados a transformar o ferro em chapas. Possivelmente laminadores! Imagino, Tisserand divagou (com expressão satisfeita de quem encontra solução para assunto desconhecido), o que os escravos das culturas agrícolas da fazenda de Jean pensaram ao ajudar a transportá-los para o edifício da fundição. Por que máquinas tão pesadas para amassar mandioca? Já não temos aqui polvilho suficiente? O capitão Monlevade definitivamente perdeu o juízo! Jean Monlevade, do Castelo à Forja 345 XIII Não é fácil manter negócios entre as montanhas das Minas Geraes. O agora capitão Monlevade amplia a fábrica de ferro que leva o seu nome Nunca fui dado às artes da pesca. Nem oceânicas nem fluviais, Tisserand prosseguiu, mas temo aumentar o episódio que vou lhe relatar. É história somente de quem a viveu contar para os netinhos. Na realidade parece relato de pescador, pois desde o porto inglês de Dover até o Rio de Janeiro, aconteceram inúmeras peripécias. Foi longuíssima. Não posso dizer que foram vistos monstros marítimos nem baleias assassinas, mas as viagens transoceânicas, como de praxe, não deixavam saudades em quem as fazia. À custa disso que Lenoir, o engenheiro responsável pela encomenda, benzeu-se e agradeceu a Deus ao vislumbrar a baía da Guanabara. Sua angústia havia se iniciado com as inúmeras dificuldades de colocar os equipamentos dentro do navio que os trouxe. Oh, coisa de difícil manuseio! Até então tudo está absolutamente correto, juro-lhe ser assim, ainda é Tisserand quem diz, mas a situação ficou realmente preta quando, após atenções burocráticas, a desajeitada carga foi liberada para transporte do Rio para o interior de Minas. Mais exatamente para a fábrica de ferro Monlevade, à atenção do monsieur Jean Antoine Felix Dissandes de Monlevade. O capitão Monlevade. Não no trecho marítimo em águas nacionais, Tisserand corrigiu, pois, com Platini ao lado de homem bom conhecedor da costa Rio-Espírito Santo, a carga seguiu tranquilamente até a vila de Vitória, que foi ponto de apoio para reabastecimento e descanso da tripulação. Conforme recomendação de Martinho, os amigos de Monlevade visitaram o Convento da Penha na bela localidade de Vila Velha. Lá fizeram orações e encomendaram bons presságios para a perigosa viagem que empreenderiam após chegada 346 Jairo Martins de Souza ao porto fluvial de Linhares: já estamos falando diretamente das águas do Rio Doce. Não mais viajavam em embarcação marítima, mas em canoas de porte exclusivamente construídas por agente designado pelo império o qual, já disso tomamos conhecimento, prestaria suporte à expedição. A troca havia sido feita a duras penas em Linhares, e o capitão Marlière estava dedicando máximo empenho ao cumprimento da sua missão. As ordens imperiais foram expressas... o empreendimento do engenheiro Monlevade é de máxima importância para a vida industrial da província! Foi o que lhe foi dito diretamente pelo governador em seu paço de Vila Rica. Sua missão, prezado Marlière, é levar a bom termo os preciosos laminadores até Antônio Dias. De lá seguirão para a fábrica de monsieur Monlevade em carros de boi ou no lombo de escravos... Tudo na vida pode ser facilmente resumido em poucas palavras, Tisserand comentou. Posso dizer somente que foram noventa dias. Noventa dias foi quanto durou a arriscada expedição que, em linha reta, seriam em torno de quinhentos quilômetros. A primeira do gênero no Brésil. Olhei-o com interesse, considerando o seu modo de dizer tornado abruptamente introspectivo. Ele continuou sua fala, aparentemente não tomando conhecimento da minha estranheza, e disse que tinha outros exemplos para indicar como as palavras reduzem as coisas. Napoleão invadiu Portugal e fez com que Dom João fugisse para o Brasil. Jesus foi crucificado pelos judeus por ser considerado um revolucionário em potencial. Ronaldo Nazário teve mal súbito passageiro e o Brasil perdeu a copa de 1998... Quanta leviandade, acrescentou consternado! Não se fala do sofrimento do povo português que perdeu sua cabeça pensante. Não se fala da dor de cravos de ferro enterrados na pele nua das mãos e dos pés do Salvador. Não se fala do choque narcísico que acometeu a alma dos brasileiros... O mesmo posso dizer da aventura de Lenoir, Marlière, Fontaine e Platini. Pois ela envolveu várias divisões do exército imperial com ajuda inimaginável dos índios Botocudos e material de apoio. Foram transpostas cachoeiras, incontáveis perigos de doenças e obstáculos naturais até que um dos emissários de Monlevade os localizasse nas proximidades de Antônio Dias. A imprensa da província comemorou o feito, e celebrações e missa de Ação Jean Monlevade, do Castelo à Forja 347 de Graças foram feitas tanto no solar Monlevade quanto no Paço da Província em Vila Rica. Martinho imediatamente comunicou chegada aos monges capixabas do Mosteiro de Nossa Senhora da Penha. Vossas preces foram preciosas! Antes disso, mesmo que a vida seguisse sua rotina corriqueira na fazenda e na fábrica, Jean enviava, semanalmente, emissários que procuravam saber do andamento da viagem. Cruzavam-se entre si e faziam passagem de carta de posto a posto. O governo de dom Pedro, os índios Botocudos... Aí que está! A preocupação era grande pelos perigos da empreitada. O Rio Doce era o único caminho para se transportar sete mil e quinhentos quilos de ferro. Não havia estradas! Foi aí que Tisserand esclareceu que, ao longo dos anos, Jean praticamente implorou ao governo imperial pela construção, em linha reta, de estrada que ligasse Minas à saída marítima da província do Espírito Santo. Morreu sem vê-la! Mas ficou extremamente feliz ao reencontrar-se com Platini e Fontaine. Não esperou que chegassem até seu solar e foi ter com eles às margens do Rio Doce. Ele, elegantemente vestido; os outros, barbudos e sujos. Abraçou-os fortemente e agradeceu dizendo, agora é por conta do nosso pessoal de terra. Vamos diretamente para o solar Monlevade. Clara Sofia nos espera; a hora é de celebração! Em poucos dias os equipamentos estavam montados e em funcionamento. A fábrica de Monlevade subia mais um degrau de prosperidade e tornava-se cada vez mais famosa em todos os pontos do império. O engenheiro francês havia vencido nos trópicos!... No entanto, nem tudo na vida são flores, Tisserand disse-me. Jean de Monlevade tinha um grande inimigo que morava no coração do governo do império português. A competição desleal dos produtos ingleses, estranhamente privilegiados pela política de Pedro, o príncipe-regente. Isso fazia-o sair do sério! Houve ocasiões em que pensou desistir! E não é que não estivesse ficando bastante rico. Estava. A renda da fábrica era-lhe de boa lucratividade. É que via na política imperial um grande obstáculo para a indústria do ferro no Brésil! Bem conduzida, dizia, a nação poderia alimentar todo o mundo com produtos de qualidade excepcional. Razões não faltavam. O solo é rico, os mineiros são inteligentes e jeitosos, os escravos poderiam ser facilmente treinados... 348 Jairo Martins de Souza Jean Monlevade, do Castelo à Forja 349 XIV Esse menino tem a cara do avô! Nasce o neto brasileiro do fidalgo de Guéret Após a belíssima festa que havia sido dada por Baptista Coutinho, Jean e Clara Sofia partiram em lua-de-mel. Estavam radiantes. É bem verdade que a moça um tanto temerosa. Do seu corpo, até então, o noivo vira-lhe somente os tornozelos. Clarinha sabia ser bonita e atraente, mas não conhecia bem as consequências da cama de casal. Preocupava-lhe principalmente a de dormir ao lado de um homem. Dona Maria Perpétua não a orientara: naqueles dias não se tocava no assunto sexo com as filhas. O resultado disso, Tisserand comentou, é que a mãe, antes da subida da filha na carroça para acompanhar até o final dos seus dias ao marido francês, disse-lhe. Clara. Clarinha, leve esse santinho com você. Não o deixe em momento algum. E aí, minha santa, se na hora H você não gostar, feche os olhos. Feche os olhos, minha filha, e reze a Nosso Senhor... Foi uma das razões pelas quais o casamento demorou quinze dias para ser consumado. Jean era paciente e, no final, amaramse com a delicadeza, o respeito e o entusiasmo de quem se casou por amor verdadeiro. E não demorou para que o antigo aluno da xis escrevesse para os irmãos e a mãe, informando-lhes ser pai pela primeira vez em poucos meses. Um entusiasmado Zavoudakis, ao ser comunicado, imediatamente enviou-lhe livro da recém-surgida literatura infantil. Com isso, disse, tanto faz que seja menino ou menina. E, entre outras coisas, avisou, em tom ocasional, e dizendo-se conformado, não poder desfrutar o prazer da paternidade. Séverine Zavoudakis, à custa do seu passado, havia se tornado estéril... Jean emocionou-se, e condoído da desdita do amigo, mandoulhe em troca uma gravura em que o amigo grego aparece partici- 350 Jairo Martins de Souza pando do batismo do bebê que iria nascer. Assim, indiretamente fazia-lhe convite para apadrinhar o filho: pensou servir-lhe como consolo e tornar-se-iam, definitivamente, além de amigos, compadres. Jean de Monlevade teve o prazer de ter ao seu lado no parto do filho – que também responderia como João, tal como o pai e o avô franceses – o doutor Ildefonso Freitas. O antigo companheiro dos tempos de estudante, em Paris, voltara fazia pouco tempo e estava decidido a exercer a medicina no Rio de Janeiro. Com o envelhecimento dos pais, e a pedido da família, mudou de ideia, e estabelecera-se como médico no Vale do Piracicaba. Foi nestas condições que atendeu à gravidez da esposa do amigo. Ao concluir o parto, disse para a negra que o assistia: esse menino tem a cara do avô! No ano seguinte, em 1829, Tisserand disse, a cena se repetiu. Ildefonso novamente exclamou, agora para a amiga Clara Sofia: Clarinha, esta menina tem a cara da avó! Do lado de fora do quarto, Martinho agradecia a Deus por mais essa graça. Jean e Clara Sofia não lograram êxito quanto aos planos de extensa família! Joãozinho e Mariana Monlevade foram seus únicos herdeiros. E o menino, assim como o pai, gostava de procurar e analisar pedras. E, ainda copiando o modelo paterno, eternizou gosto, iniciado desde tenra idade, de ter o seu cachorro buscador. O capitão Jean Antoine Felix Dissandes de Monlevade nunca deixara de ter o seu noir. O seu breu. Manteve sempre ao seu lado um vira-latas de cor preta bem treinado. Quando o Breu, o noir da vez, morria, ele arranjava um pequenino e o adestrava. Com isso não se esquecia dos dias de criança na distante Guéret que nunca voltaria a ver. Jean Monlevade, do Castelo à Forja 351 Epílogo O fundador da Fábrica de Ferro Monlevade morreu de causas naturais na madrugada de catorze de dezembro de 1872. Foram mais de oitenta anos de profícua existência. Na sala de visitas do Solar de sua fazenda, o povo e autoridades da Província renderam-lhe homenagens póstumas que perduraram por três longos dias. Muitos foram os que reverenciaram o cadáver, vestido a rigor, que repousava em caixão de jacarandá coberto por rosas e flores silvestres. Depois do seu fechamento, foi revestido com as bandeiras da França e do Brésil. E todos entenderam o pedido de dona Clara de passar os derradeiros momentos com o marido somente na presença dos parentes e amigos mais íntimos. Martinho emocionou-se ao fazer a oração que antecedeu a primeira pá de cal. Monlevade, conforme seu próprio desejo, foi enterrado na parte central de pequeno cemitério mandado construir por ele mesmo como última morada para seus escravos. Quem sabe um dia decida-se que suas cinzas sejam retiradas e colocadas em panteão municipal. Na França se faz assim! Se há, no fogo que arde no inferno, alguma forma de se jogar uma pitada do bem, Jean de Monlevade procurou fazê-lo. Duchamps, Ribérry e o fidalgo Jean-François, seu pai, foram seus mestres. É por isso que, na condução feita a pé até seu destino final, alguns dos seus escravos suplicavam para prestar derradeira ajuda ao seu amado senhor. Passados alguns meses, o quase octogenário Martinho decidiu voltar para a França. Disse também ter cumprido sua missão no Brésil e deixou para trás, bem encaminhados, a mulher e os filhos. Lá procurou exaustivamente, ao longo dos anos finais de sua vida, mas não conseguiu localizar os irmãos dos quais se separara no inesquecível dia do sorteio. As imagens nunca haviam desaparecido de sua cabeça. Finalmente, quando convocado pelas 352 Jairo Martins de Souza “E todos entenderam o pedido de dona Clara de passar os derradeiros momentos com o marido somente na presença dos parentes e amigos mais íntimos...”. Jean Monlevade, do Castelo à Forja 353 trombetas celestiais, foi enterrado com honras eclesiásticas no cemitério de Saint-Sulpice-le-Guérétois. Platini acabou por casar-se com uma filha de escravos que trabalhavam no Solar Monlevade. Dizia, sorridente, que cavalo velho precisava de capim novo. Levou-a para a França e dele não se teve mais notícia. Fontaine retornou a vida de marinheiro e morreu afogado quando cruzava rios amazônicos. O acidente aconteceu na mesma ocasião em que lá perdeu a vida um dos filhos de Nicolas Taunay: um dos artistas franceses da Missão de 1816. Zavoudakis? Zavoudakis, como disse-lhe, não teve filhos e deixou toda sua correspondência com Jean Monlevade aos cuidados dos descendentes de François. Foi das mãos destes últimos que alguns fatos chegaram ao conhecimento de Leopold, o vigário geral. O resto é história conhecida, Tisserand disse. Possivelmente devem ter sido escritas versões refinadas, e verossímeis, sobre a vida do engenheiro francês na região do Piracicaba. E nelas, acredito, deve ter sido incluído, e disso não se pode duvidar, que manteve estreitos laços de amizade com a família do amigo Freitas até o fim dos seus dias. O mesmo vale para sua cultura, elegância, autoridade e fineza no trato com os familiares, escravos e empregados. Poderiam ser declamados em verso e prosa. Lamentavelmente, pouquíssimo foi salvo pela comumente infalível tradição oral. Mas nada disso impediu que se tornasse figura quase lendária na siderurgia nacional. A Missão Extraordinária saiu-lhe melhor que a encomenda. Pois, ainda que sob outras bandeiras, o brasão dos Dissandes de Monlevade, indiretamente, espalhou-se pelo mundo e prossegue sendo dignificado em todos os continentes em que se consome o aço com avidez. O velho fidalgo Jean-François ficaria orgulhoso do seu produto. A fábrica de ferro deu origem à famosa Companhia Siderúrgica Belgo Mineira. E que, por sua vez, fez gravitar, ao seu lado, a futura cidade batizada de João Monlevade. Justa homenagem! Após dizer isso, o estrangeiro, a quem eu decidira chamar Tisserand, levantou-se. Fazia horas que falava sem parar. Tinha os olhos ligeiramente molhados por lágrimas furtivas. Entendi, com dificuldade, que tentava dizer algo como ter, parcialmente, termi- 354 Jairo Martins de Souza nado sua sina. Também, mon ami, disse-me, fui encarregado de dar cabo de uma missão!... Não com a importância da cumprida por Jean de Monlevade... bem, falta-me dizer algo para encerrála. Algo muito particular!... O ramo Bogenet da família Dissandes de Monlevade não havia se extinguido com a morte do vigário geral, conforme pressuposto pela comunidade de Guéret. Não no sangue. Ele, antes de abraçar a vida clerical, cometera um pecado do qual tardou a saber as sequelas. Tivera um filho sem nunca ter recebido o sacramento do matrimônio. O desajeitado coito, desfecho das sensações e carícias desenfreadas de dois adolescentes, havia acontecido em banco de carruagem velha e abandonada às margens do Creuse. Mal se conheciam. A mãe da moça, viúva e amargurada, assim que reparou no crescimento inesperado da barriga da filha, mudou-se da região. Leópold jamais soube da existência do seu fruto proibido, mas as imagens especialíssimas que o geraram jamais deixaram sua memória! Meu nome é Toujours La France Bogenet, por final me comunicou. O último dos Bogenet. E digo isso por ser celibatário por opção. Foi assim que vivi toda a minha vida e, em grande parte dela, somente com o nome da mãe da minha longínqua avó, que foi a moça que teve caso fortuito com o próprio vigário. Desde aquela tarde de amor insensato, mais de um século se passou. Foram muitas gerações. E minha ilusão é a de que o senhor, mon ami, tenha entendido que quem está diante de sua presença é o produto derradeiro daquele filho bastardo! E, mesmo sendo parente tão distante no tempo, por compaixão, solidarizo-me com Léopold Bogenet, o vigário geral. Imagino o sentimento de aflição que deve ter tomado conta do seu carcomido corpo ao se dar conta daquele nascimento, pouco antes de subir aos céus. Pois sua efêmera paixão da juventude havia comparecido ao seu leito de morte para vê-lo pela última vez! Na ocasião, a Igreja desmentira o acontecido. Mas o fato é que, do lado de fora da casa episcopal, era o seu próprio filho que aguardava a saída da mãe! Este homem, um legítimo Bogenet, nunca soube que o pai, a poucos passos de distância, estava por dar seu último suspiro. A boa notícia é que o velho vigário geral teve tempo suficien- Jean Monlevade, do Castelo à Forja 355 te para modificar seus últimos desejos e anotações. E colocou seu infortúnio a descoberto, incluindo, às pressas, o pecado mortal que cometera. Assim escreveu que, após sua morte, os rascunhos dos seus escritos deveriam ser guardados pela diocese, a partir de extremado amigo de batina, e a serem entregues a parente mais idoso, e mais próximo de sangue, por extensíssimo número de anos a ser estipulado por seus superiores em Roma. Morreu pensativo, ciente que este longo tempo retardaria e encobriria tudo que escrevera, inclusive (aí está o seu castigo), coisas que o encantavam. A admiração que tinha pelo primo Monlevade seria obscurecida. Mas a estratégia de última hora levaria também ao esquecimento o seu infeliz ato de adolescente. Foram essas as razões, Toujours La France esclareceu, de, tanto tempo depois, ter sido escolhido pelos responsáveis do seu espólio, e de ter recebido o livrinho pelo correio. A partir daí, foi que decidi adotar o sobrenome Bogenet. E há anos procurava alguém como você, mon ami, explicou já com os olhos secos. O rosto voltara a ter a tranquilidade de sempre, mas não disse mais nada. Diante do seu silêncio, o meu sentimento foi o de que ele soubera antecipadamente ter achado, em mim, alguém que teria a paciência e a disponibilidade suficientes para escutá-lo com atenção. E, mais ainda, com amor no coração bastante para publicá-la a qualquer custo. Este estrangeiro não confiaria a qualquer um a história que o parente distante deixara. O silêncio que se seguiu confirmou minha impressão. Diante disso, emocionei-me e respondi-lhe que, de bom grado, faria cumprir seu desejo. Pediu-me prometer. E informou-me ser, de sua parte, o ato final. Seria suficiente um pequenino corte de gilete no braço de um e de outro. Juntaríamos as mãos. Depois misturaríamos um pouquinho de sangue em pequena pedra de minério de ferro. O símbolo das Minas Geraes e de Monlevade. Um simples e infantil ritual de irmãos de sangue. Concordei de imediato com a solicitação, mesmo explicando-lhe ser caso especial. Não procedo desta forma desde criança, disse-lhe... 356 Jairo Martins de Souza Jean Monlevade, do Castelo à Forja 357 Post Scriptum Em 30 de Setembro de 2008, chegou até minha caixa de e-mails a seguinte mensagem escrita em língua francesa: “Bonjour, nous sommes désolés mais nous ne connaissons pas cette personne. Essayez peut-être auprès de la bibliothèque municipale de Guéret. Bonnes recherches. Le service accueil.” O jeito prático e direto, com que o texto fora escrito, propiciou-me fazer tradução sem maiores dificuldades: “Bom dia! Estamos desolados, mas não temos conhecimento sobre essa pessoa. Talvez consiga algo por meio da Biblioteca Municipal de Guéret. Boa pesquisa. Do serviço de Ajuda”. Não foi por acaso que tal correspondência havia chegado a mim. Era resposta a uma indagação que eu mesmo havia postado para a prefeitura da pequena cidade de Guéret, localizada na região do Limousin, departamento de La Creuse. O país é a França. Eu procurava informações! Pois foi nas belas paisagens do seu maciço central que havia nascido um dos “bandeirantes” do fabrico de ferro e aço no Brasil. Um dos nossos Fernão Dias Paes Leme da siderurgia. Seu nome completo é Jean Antoine Felix Dissandes de Monlevade. O João Monlevade. O fato é que eu havia escrito duas obras literárias ambientadas no município de João Monlevade, Minas Gerais. E, por questões de contexto, pouco mencionei sobre a vida do estrangeiro que possibilitara dar vida àquelas situações. Não é de se surpreender que, mais tarde, me sentisse na obrigação de prestar-lhe homenagem e agradecimento. Talvez uma pequena biografia. Para tanto, iniciei primeiros movimentos de pesquisa. Fiz busca virtual no mercado livreiro do Brasil. Nada. Nenhuma obra constava sobre a vida do eminente engenheiro de minas francês. A coisa evoluiu. E demorou pouco tempo para que tivesse 358 Jairo Martins de Souza decidido a escrever, e publicar, biografia de Jean de Monlevade que estivesse à altura do que representou para a indústria do ferro no nosso país. Daí o leitor pode imaginar quão frustrante foi, para mim, a resposta que fiz constar no início deste apêndice. Para minha boa fortuna, pouquíssimo tempo depois, tive conhecimento da existência de livro que teria alguns dados confiáveis sobre as origens e a família francesa de Jean de Monlevade. Água limpa se bebe na fonte! No caso, a de um escritor que detém diploma honorífico de cavaleiro da ordem das artes e das letras (chevalier de l’ordre des arts e des lettres). O francês Robert Guinot havia escrito, em 2005, um pequeno livro biográfico chamado “Jean De Monlevade: pionnier français de la sidérurgie Brésilienne” (Guénegaud, 2005). Li-o. Num piscar de olhos, concluí que estava diante de um personagem fascinante. Dadas as mesmas condições, Monlevade poderia ter sido empresário do porte do espetacular Mauá! No entanto, nada é perfeito! Ao concluir a leitura, lembreime, com certa amargura, de que Einstein, em um dos seus comentários sobre o cotidiano, disse que, na vida, tudo que tem valor é inexoravelmente ligado a um preço. O que paguei foi o de confirmar definitivamente que muito pouco ficou registrado sobre a vida pessoal do, digamos assim, monsieur Monlevade. As informações do livro do écrivain Guinot são escassas. E, em termos de França, não há melhores disponíveis. Perderam-se com o tempo! Mas restou confirmado que Jean de Monlevade foi cidadão que teve formação técnica e humanista pesadíssimas! Pelos idos de 1809, havia estudado na escola de maior prestígio no mundo. A Polytéchnique de Paris. Depois teve breve passagem pela engenharia militar, e concluiu estudos graduando-se como engenheiro de minas. Foi nessa condição que veio para o Brasil. Polytéchnique! A menina dos olhos de Napoleão! Era famosa por ser de acesso dificílimo. E sem favores. O jovem Stendhal, recém-premiado com o primeiro lugar de matemática de Grenoble, e futuro grande escritor de O Vermelho e o Negro, foi um dos que, por perda de horário de provas, lamentou não ter tido oportunidade de vestir o uniforme de tão singular instituição. Tudo acima foi motivo bastante para que eu ficasse imaginando coisas. Quais teriam sido os colegas de Monlevade na clas- Jean Monlevade, do Castelo à Forja 359 se de 1809? Com quais gênios da época manteve contato direto? O geômetra Gaspard Monge? O físico Gay-Lussac? O filósofo Augusto Comte?... E minha ideia inicial mudara. Por absoluta impossibilidade, meu projeto não seria mais uma biografia! Passou para a decisão de escrever um romance sobre os anos mal conhecidos da vida do “fundador” do município mineiro de João Monlevade. No fundo, um recorte imaginário de sua vida na França, de suas ideias, e de suas relações. O mundo dos séculos dezoito e dezenove seria extremamente propício para tanto. Mas todo romance é inspirado em algo que o escritor vê ou sente. Uma pintura vista em museu que retrata cena bucólica do cotidiano da vida campestre, um perfume que suscita sensação reprimida, um crime ocorrido em rua escura... Inspirei-me no que poderia ter acontecido por trás das verdades relatadas por Guinot. Aí foi onde realmente dei asas à minha imaginação. O fato de Jean de Monlevade ter nascido em berço de fidalgo, e de ter cruzado a infância durante andamento da revolução francesa facilitaria mais ainda a tarefa. Os efeitos daquele duríssimo período foram sentidos em sua própria carne e família! No Brasil teve sua própria. Como vimos, casou-se, criou filhos e terminou seus dias no Vale do Rio Piracicaba A ocasião não poderia ser mais adequada. Pelos meus cálculos, gastaria 6 meses para escrevê-lo, portanto concluiria o livro em meados de 2009. Ano da França no Brasil! No entanto, já praticamente em março, e por motivos alheios à minha vontade, pouco havia avançado com meu projeto. Foi quando tomei uma autêntica ducha de água fria! Fiquei ciente de que um jornalista monlevadense havia sido encarregado por importante órgão de imprensa regional a elaborar, tal como de minha intenção, biografia romanceada de Jean de Monlevade! Minha mulher sorriu quando percebeu minha frustração momentânea: alguém havia se adiantado ao meu desejo. Não se incomode, disse-me, esqueceu-se que o cálculo diferencial foi alinhavado simultaneamente, e de forma avulsa, por Newton e Leibnitz? Tive que sorrir de volta pelo exagero da comparação. E decidi seguir em frente. 360 Jairo Martins de Souza Monlevade merece ser romanticamente visto por mais de um par de olhos. Oxalá outros órgãos de imprensa, instituições públicas e privadas, assim como outros conterrâneos, decidam homenageá-lo da mesma forma. Antecipadamente, desejo-lhes um sincero bonne route! O autor Vitória, 05/7/2009. Jean Monlevade, do Castelo à Forja 361 362 Jairo Martins de Souza * * * Esse livro foi editado e impresso em papel Polen soft 80g/m2 e Capa Triplex 250g/m2 pela Grafer Editora em 2009 * * * Grafer Editora Rua: Fagundes Varella, 135 Soteco - Vila Velha - ES Tel.: 27 3219-3524 - email: [email protected]