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ANO 18 • 35 • JANEIRO - JUNHO 2015 PUBLICAÇÃO OFICIAL DO INSTITUTO DOS ADVOGADOS DE SÃO PAULO - IASP Diretor da Revista do IASP: ELIAS FARAH REVISTA DO INSTITUTO DOS ADVOGADOS DE SÃO PAULO ANO 18 • 35 • JANEIRO - JUNHO 2015 Conselho Editorial: ACACIO VAZ DE LIMA FILHO KARINA PENNA NEVES ADRIANA LAPORTA CARDINALI STRAUBE KLEBER LUIZ ZANCHIM LAIR LOUREIRO FILHO ALBERTO CAMINA MOREIRA ALEXANDRE JUNQUEIRA GOMIDE LAURO CESAR MAZETTO FERREIRA LUIZ CARLOS OLIVAN ASDRUBAL FRANCO NASCIMBENI LUIZ GUERRA CARLOS ALBERTO MALUF SANSEVERINO CARLOS EDUARDO NICOLETTI CAMILLO LUIZ SERGIO MODESTO MARCIA DINAMARCO CARLOS FREDERICO ZIMMERMANN NETO CLAUDIA ELISABETE SCHWERZ CAHALI MARCIO BELLOCCHI MARCOS PAULO DE ALMEIDA SALLES DANIEL MARTINS BOULOS DEBORA GOZZO MARCUS VINÍCIUS LOBREGAT MAURÍCIO AVILA PRAZAK DINORÁ ADELAIDE MUSETTI GROTTI DIOGO L. MACHADO DE MELO MAURO GRINBERG NELSON RENATO PALAIA RIBEIRO DE CAMPOS DURVAL FERRO BARROS EDSON ANTONIO MIRANDA PAULO HAMILTON SIQUEIRA JUNIOR ELIAS FARAH PAULO LUCENA DE MENEZES PAULO LUCON EVANE BEIGUELMAN KRAMER RAQUEL ELITA ALVES PRETO EVERALDO AUGUSTO CAMBLER FABIANA DOMINGUES CARDOSO RICARDO ALVES BENTO FABIANO CARVALHO RICARDO PEAKE BRAGA RICARDO SAYEG FERNANDO FREIRE ROBERTO CALDAS FRANCISCO JOSÉ CAHALI GLAUCO MARTINS GUERRA RODRIGO BARIONI GUSTAVO MILARÉ ALMEIDA RODRIGO REBOUÇAS ROGERIA GIEREMEK IGOR MAULER SANTIAGO ROGERIO MOLLICA JORGE SHIGUEMITSU FUJITA SILMARA CHINELLATO JOSÉ ALBERTO COUTO MACIEL WAGNER BALERA JOSÉ AUGUSTO DELGADO WALTER VIEIRA CENEVIVA JOSE LUIS RIBEIRO BRAZUNA ISSN 1415-7683 Revista do Instituto dos Advogados de São Paulo Ano 18 / Nº 35 / JANEIRO - JUNHO 2015 Edição e Distribuição da Editora IASP Os colaboradores desta Revista gozam da mais ampla liberdade de opinião e de crítica, cabendo-lhes a responsabilidade das ideias e conceitos emitidos em seus trabalhos. Instituto dos Advogados de São Paulo - IASP CNPJ: 43.198.555/0001-00 Rua Líbero Badaró, 377 - 26º andar - CEP 01009-000 São Paulo - SP - Brasil Telefone: (55 11) 3106 - 8015 Site: www.iasp.org.br E-mail: [email protected] Fundado em 29 de Novembro de 1874 Revisão: Instituto dos Advogados de São Paulo Capa e Diagramação: Kriando / Brandium Impressão: Orgrafic Impresso no Brasil: [09-2015] SÃO PAULO, SETEMBRO DE 2015 ESTA OBRA É LICENCIADA POR UMA LICENÇA CREATIVE COMMONS Atribuição 4.0 Internacional Você pode: • copiar, distribuir, exibir e executar a obra; • criar obras derivadas. Sob as seguintes condições: Atribuição. Você deve dar crédito ao autor original Qualquer direito de uso legítimo (ou fair use) concedido por lei ou qualquer outro direito protegido pela legislação local não são em nenhuma hipótese afetados pelo disposto acima. INTRODUÇÃO 7 INTRODUÇÃO JOSÉ HORÁCIO HALFELD REZENDE RIBEIRO Presidente do Instituto dos Advogados de São Paulo – IASP O INSTITUTO DOS ADVOGADOS DE SÃO PAULO, fundado em 29 de novembro de 1874, declarado de utilidade pública pelo Decreto Federal nº 62.480, de 28 de março de 1968, Decreto Estadual nº 49.222, de 18 de janeiro de 1968 e Decreto Municipal nº 7.362, de 26 de janeiro de 1968, associação civil de fins não econômicos que congrega os principais juristas, professores, advogados, magistrados e membros do Ministério Público do país, admitidos por rigorosa avaliação com pareceres e votação, dedica-se aos altos estudos e a difusão dos conhecimentos jurídicos, ampliando os horizontes da cultura e das carreiras jurídicas em benefício da sociedade. A fundação da Editora IASP foi o marco da comemoração dos 140 anos das atividades do Instituto dos Advogados de São Paulo cuja essência sempre foi o debate que ecoa e se pereniza com as publicações. A Editora IASP dedica-se à publicação de revistas especializadas com os trabalhos das Comissões de Estudos, de livros a partir da seleção de teses, dissertações, trabalhos e pesquisas de excelência, bem como esta Revista do IASP que alcança seu número 35. 8 REVISTA DO INSTITUTO DOS ADVOGADOS DE SÃO PAULO v. 35, JANEIRO - JUNHO 2015 A reflexão e crítica são imprescindíveis, bem como a lição de Norberto Bobbio para guiar o nosso trabalho, pois: “Aprendi a respeitar as idéias alheias, a deter-me diante do segredo de cada consciência, a compreender antes de discutir, a discutir antes de condenar.” O IASP, completando 140 anos de existência, e sendo a mais antiga instituição jurídica associativa do Estado de São Paulo, continua a escrever uma história profícua e inspiradora, nunca se esquecendo que o progresso é a consolidação das conquistas, como esta obra é instrumento para que se possa olhar para o futuro com responsabilidade, responsabilidade essa que deve transcender mandatos e interesses particulares. É nesse contexto que o Instituto dos Advogados de São Paulo colaborará para que políticas públicas garantam uma perspectiva de vida digna para a sociedade, pois o nosso país não deve e não pode estar abaixo das expectativas dos seus cidadãos. O IASP continuará sendo a janela que ilumina a reflexão, os debates, guiado pelas premissas de servir, e não ser servido, de conduzir e não ser conduzido. APRESENTAÇÃO 9 APRESENTAÇÃO ELIAS FARAH Diretor da Revista e Conselheiro do Instituto dos Advogados de São Paulo - IASP Ao ensejo da apresentação deste número 35 da REVISTA DO IASP, muito nos regozijamos em poder destacar a notável contribuição que o sodalício vem prestando, ao longo da presente gestão, à cultura jurídica do país, em várias direções e áreas dos estudos jurídicos, isolado ou coletivamente. Esta profícua e aplaudida façanha, se deve ao promissor e denodado empenho dos seus dIrigentes, sob a hábil batuta da sua presidência. A revista anterior, de número 34, que iniciou a nova fase editorial, com a criação da EDITORA IASP, lançada com muitos aplausos, em caráter especial, em homenagem aos 140 anos de fundação do Instituto, buscou amplamente divulgar uma síntese do grandioso programa de iniciativas culturais, desenvolvido por elevado número de estudiosos do direito e de outros estudos de interesse científico e social. Este número da tradicional revista do iASP constitui, pois, o fiel cumprimento do compromisso de persistir na realização dos objetivos institucionais da entidade, o que vêm sendo realizado mediante a publicação de outras novas revistas, dedicadas, cada uma, à publicação de estudos de outras áreas do direito, e da cultura jurídica, que se 10 REVISTA DO INSTITUTO DOS ADVOGADOS DE SÃO PAULO v. 35, JANEIRO - JUNHO 2015 somam aos inumeráveis seminários, palestras, congressos, e outras participações com outros órgãos associativos ou corporativos da advocacia, para solução de impasses do interesse comum. Ao longo dos últimos anos, o IASP teve justa preocupação de convidar para participar dos seus tradicionais almoços, e conhecer-lhes os pensamentos, as mais renomadas personalidades, como o vice-presidente da República, Michel Temer; o ministro do STF, Ricardo Lewandowski; a jurista, Tereza Arruda Alvim Wambier; o jurista e agraciado com o Prêmio Barão de Ramalho do IASP, Modesto Carvalhosa. Neste número foram publicadas as manifestações feitas durante os almoços dos referidos palestrantes. O IASP busca, com aplaudida lealdade, contribuir no somatório das vozes dos que desejam ou podem contribuir para formar e preservar a sociedade, quanto possível, mais organizada e feliz. O presente número, por exemplo, abre as suas páginas para publicação de pareceres e contribuições de associados do IASP. Busca, com isso, revelar a pujança intelectual dos estudiosos que compõem o seu nobre corpo associativo, além da publicação de estudos sobre direito civil, de direito de família, de propriedade industrial, de direito penal, de direito público, além de considerações sobre o novo CPC. Está já organizado em um índice geral, por temas, títulos, autores, tudo que já foi publicado nos 35 números da revista, como forma da disponibilizar para consulta a todos os estudiosos, o extraordinário patrimônio cultural acumulado pela Instituição. Os homens de bem do país precisam estar alertas na proteção das suas Instituições, mantendo-as fortes e capazes de lutas e reivindicações. Da sua força, independência e civismo é que depende a defesa da ordem legal e a segurança jurídica do cidadão. Uma nuvem negra parece surgir no horizonte, ocultando um temporal oculto e destruidor, que se formaram nas caladas das noites. Revelam, entretanto, que o poder legal precisa estar necessariamente fortalecido em valores éticos e morais básicos. Instituições fortes, altivas, independentes, inspiradas no civismo, são fundamentais para que a ordem legal não seja quebrada. Esta missão o IASP tem orgulhosamente procurado cumprir. 11 DIRETORIA DO IASP DIRETORES 2013.2014.2015 Presidente: José Horácio Halfeld Rezende Ribeiro Vice-Presidente: Paulo Henrique dos Santos Lucon Diretora Administrativa: Raquel Elita Alves Preto Diretor Financeiro: Jairo Sampaio Saddi Diretor Cultural: Diogo Leonardo Machado de Melo Diretor de Comunicação: Fernando Calza de Salles Freire DIRETORES DOS ÓRGÃOS COMPLEMENTARES Escola Paulista de Advocacia – EPA: Renato de Mello Jorge Silveira Comissão dos Novos Advogados – CNA: Rodrigo Matheus Câmara de Mediação e Arbitragem: Marcos Rolim Fernandes Fontes DIRETORES ADJUNTOS Relações Internacionais: André de Almeida Revista: Elias Farah Relações Governamentais: Luiz Guerra Núcleo de Pesquisa: Maria Garcia Assuntos Legislativos: Mário Luiz Delgado Letrado: Allan Moraes ASSESSORES ESPECIAIS DA PRESIDÊNCIA Fabiana Lopes Pinto Fábio Carneiro Bueno Oliveira Flávio Maia Fernandes dos Santos Ivo Waisberg Marina Pinhão Coelho Araújo DIRETOR DE PATRIMÔNIO DIRETORES DE RELAÇÕES INSTITUCIONAIS Alex Costa Pereira Alexandre Jamal Batista Carla Rahal Benedetti Carlos Linek Vidigal Cassio Sabbagh Namur Clarissa Campos Bernardo Cláudio Gomara de Oliveira Frederico Prado Lopes José Marcelo Menezes Vigliar Leonardo Augusto Furtado Palhares Luiz Eduardo Boaventura Pacífico Marco Antonio Fanucchi Mauricio Scheinman Miguel Pereira Neto Milton Flávio de A. Camargo Lautenschläger Ricardo Melantonio Ricardo Peake Braga Rodrigo Fernandes Rebouças Ronaldo Vasconcelos Zaiden Geraige Neto Alexandre Sansone Pacheco DIRETOR DA BIBLIOTECA Roberto Correia da Silva Caldas DIRETOR DO PROGRAMA DE TV Cesar Klouri ASSESSORES DO VICE-PRESIDENTE Carolina Barros de Carvalho Daniel Battaglia de Nuevo Campos ASSESSORA DA DIRETORA ADMINISTRATIVA Paula Marcílio Tonani de Carvalho ASSESSOR DA DIRETORIA CULTURAL Alexandre Junqueira Gomide 12 REVISTA DO INSTITUTO DOS ADVOGADOS DE SÃO PAULO v. 35, JANEIRO - JUNHO 2015 CONSELHO 2013.2014.2015 CONSELHO 2015.2016.2017 EFETIVOS Antonio de Souza Corrêa Meyer Antonio José da Costa Aparicio Dias Celso Cintra Mori Edson Antonio Miranda Eduardo de Mello Jorge Lauro Celidonio Oscavo Cordeiro Corrêa Netto Paulo Faingaus Bekin Regina Beatriz Tavares da Silva Ruy Pereira Camilo Junior Wagner Balera EFETIVOS Antônio Cláudio Mariz de Oliveira Elias Farah Eloy Franco de Oliveira Filho Josefina Maria de Santana Dias Luiz Antônio Sampaio Gouveia Luiz Ignácio Homem De Mello Manoel Alonso Manuel Alceu Affonso Ferreira Marcial Barreto Casabona Maria Garcia Oséas Davi Viana Silmara Juny de Abreu Chinellato COLABORADORES Antonio Carlos Malheiros Paulo Adib Casseb COLABORADORES Maria Cristina Zucchi Ronaldo Alves de Andrade CONSELHO 2014.2015.2016 COLÉGIO DE PRESIDENTES DO IASP EFETIVOS Carlos Alberto Dabus Maluf Décio Policastro Geraldo Facó Vidigal Lauro Celidonio Gomes dos Reis Neto Lionel Zaclis Lourival José dos Santos Luiz Antonio Alves de Souza Marcos Paulo de Almeida Salles Marilene Talarico Martins Rodrigues Renato de Mello Jorge Silveira Renato Ribeiro Silvânio Covas Ives Gandra da Silva Martins Eduardo de Carvalho Tess Rubens Approbato Machado Rui Celso Reali Fragoso Nelson Kojranski Tales Castelo Branco Maria Odete Duque Bertasi Ivette Senise Ferreira COLABORADORES Alberto Camiña Moreira Marco Antonio Marques da Silva 13 ASSOCIADOS DO IASP ASSOCIADOS DO IASP ACACIO VAZ DE LIMA FILHO ACLIBES BURGARELLI ADA PELLEGRINI GRINOVER ADALBERTO SIMAO FILHO ADELIA AUGUSTO DOMINGUES ADEMIR DE CARVALHO BENEDITO ADIB GERALDO JABUR ADILSON ABREU DALLARI ADRIANA BRAGHETTA ADRIANA CALDAS DO REGO FREITAS DABUS MALUF ADRIANA DE ALMEIDA ORTE NOVELLI CALDEIRA ADRIANA LAPORTA CARDINALI STRAUBE ADRIANO FERRIANI AFONSO COLLA FRANCISCO JUNIOR AFONSO GRISI NETO AFRANIO AFFONSO FERREIRA NETO AGOSTINHO TOFFOLI TAVOLARO AIRES FERNANDINO BARRETO ALAMIRO VELLUDO SALVADOR NETTO ALBERTO CAMINA MOREIRA ALBERTO PIMENTA JUNIOR ALBERTO SANTOS PINHEIRO XAVIER ALBERTO ZACHARIAS TORON ALCIDES JORGE COSTA ALESSANDRA NASCIMENTO SILVA E F. MOURAO ALESSANDRO ROSTAGNO ALEX COSTA PEREIRA ALEXANDRE ALVES LAZZARINI ALEXANDRE DAIUTO LEAO NOAL ALEXANDRE DE ALMEIDA CARDOSO ALEXANDRE DE MENDONCA WALD ALEXANDRE DE MORAES ALEXANDRE H.M.THIOLLIER FILHO ALEXANDRE JAMAL BATISTA ALEXANDRE JUNQUEIRA GOMIDE ALEXANDRE MAGNO DE MENDONCA GRANDESE ALEXANDRE PALERMO SIMOES ALEXANDRE SANSONE PACHECO ALFREDO LUIZ KUGELMAS ALLAN MORAES ALMIR PAZZIANOTTO PINTO ALOYSIO RAPHAEL CATTANI ALVARO VILLACA AZEVEDO AMERICO IZIDORO ANGELICO AMERICO LOURENCO MASSET LACOMBE ANA CANDIDA MENEZES MARCATO ANA CAROLINA AGUIAR BENETI ANA CLAUDIA AKIE UTUMI ANA EMILIA OLIVEIRA DE ALMEIDA PRADO ANA LUCIA PENON GONCALVES ANA LUISA PORTO BORGES ANA LUIZA BARRETO DE ANDRADE FERNANDES NERY ANA MARIA GOFFI FLAQUER SCARTEZZINI ANA PAULA PELLEGRINA LOCKMANN ANDRE ALMEIDA GARCIA ANDRE DE ALMEIDA ANDRE DE CARVALHO RAMOS ANDRE GUSTAVO DE OLIVEIRA ANDRE PAGANI DE SOUZA ANDRE WEISZFLOG ANDRE ZONARO GIACCHETTA ANDREA TEIXEIRA PINHO ANGELA MARIA DA MOTTA PACHECO ANIS KFOURI JUNIOR ANNA CANDIDA DA CUNHA FERRAZ ANTENOR BATISTA ANTONIO ARALDO FERRAZ DAL POZZO ANTONIO AUGUSTO DE MESQUITA NETO ANTONIO BRAGANCA RETTO ANTONIO CANDIDO DE AZEVEDO SODRE FILHO ANTONIO CARLOS AGUIAR ANTONIO CARLOS DE ARAUJO CINTRA ANTONIO CARLOS DE OLIVEIRA FREITAS ANTONIO CARLOS MALHEIROS ANTONIO CARLOS MATHIAS COLTRO ANTONIO CARLOS MATOS RUIZ FILHO ANTONIO CARLOS MATTEIS DE ARRUDA ANTONIO CARLOS MATTEIS DE ARRUDA JUNIOR ANTONIO CARLOS MENDES ANTONIO CARLOS MONTEIRO DA SILVA FILHO ANTONIO CARLOS MORATO ANTONIO CARLOS VIANNA DE BARROS ANTONIO CELSO FONSECA PUGLIESE ANTONIO CELSO PINHEIRO FRANCO ANTONIO CEZAR PELUSO ANTONIO CLAUDIO MARIZ DE OLIVEIRA ANTONIO DE ALMEIDA E SILVA ANTONIO DE PADUA SOUBHIE NOGUEIRA ANTONIO DE SOUZA CORREA MEYER ANTONIO FAKHANY JUNIOR ANTONIO FERNANDES RUIZ FILHO ANTONIO GALVAO PERES ANTONIO IVO AIDAR ANTONIO JACINTO CALEIRO PALMA ANTONIO JORGE PEREIRA JUNIOR ANTONIO JOSE DA COSTA ANTONIO LUIZ CALMON TEIXEIRA ANTONIO PENTEADO MENDONCA ANTONIO PINTO MONTEIRO ANTONIO RULLI NETO ANTONIO SERGIO BAPTISTA ANTONIO TITO COSTA APARICIO DIAS AREOBALDO ESPINOLA OLIVEIRA LIMA FILHO ARI POSSIDONIO BELTRAN ARMANDO CASIMIRO COSTA ARNALDO MALHEIROS ARNOLDO WALD ARNOLDO WALD FILHO ARTHUR LUIS MENDONCA ROLLO ARY OSWALDO MATTOS FILHO ASDRUBAL FRANCO NASCIMBENI AUGUSTO NEVES DAL POZZO AURELIA LIZETE DE BARROS CZAPSKI BELISARIO DOS SANTOS JUNIOR BENEDICTO CELSO BENICIO BENEDICTO PEREIRA CORTEZ BENEDICTO PEREIRA PORTO NETO BENEDITO ANTONIO DIAS DA SILVA BENEDITO DANTAS CHIARADIA 14 BENEDITO EDISON TRAMA BENTO RICARDO CORCHS DE PINHO BERENICE SOUBHIE NOGUEIRA MAGRI BERNARDO STROBEL GUIMARAES BIANCA CASALE KITAHARA BRASIL DO PINHAL PEREIRA SALOMAO BRAZ MARTINS NETO BRUNO BALDUCCINI BRUNO DANTAS NASCIMENTO BRUNO FREIRE E SILVA CAESAR AUGUSTUS FERREIRA S. ROCHA SILVA CAETANO LAGRASTA NETO CAIO CESAR VIEIRA ROCHA CAMILA DA MOTTA PACHECO A.ARAUJO TARZIA CAMILA WERNECK DE SOUZA DIAS CANDIDO DA SILVA DINAMARCO CANDIDO RANGEL DINAMARCO CARLA AMARAL ANDRADE J.CANERO CARLA DOMENICO CARLA RAHAL BENEDETTI CARLO BARBIERI FILHO CARLOS ALBERTO CARMONA CARLOS ALBERTO DABUS MALUF CARLOS ALBERTO FERRIANI CARLOS ALBERTO MALUF SANSEVERINO CARLOS DAVID ALBUQUERQUE BRAGA CARLOS EDUARDO N. CAMILLO CARLOS ELOI ELEGIO PERRELLA CARLOS FIGUEIREDO MOURAO CARLOS FRANCISCO DE MAGALHAES CARLOS FREDERICO ZIMMERMANN NETO CARLOS JOSE SANTOS DA SILVA CARLOS LINEK VIDIGAL CARLOS MARCELO GOUVEIA CARLOS MARIANO DE PAULA CAMPOS CARLOS MARIO DA SILVA VELLOSO CARLOS MIGUEL CASTEX AIDAR CARLOS PINTO DEL MAR CARLOS RENATO DE AZEVEDO FERREIRA CARLOS ROBERTO GONCALVES CARLOS ROBERTO HUSEK CAROLINA XAVIER DA SILVEIRA MOREIRA CASSIO DE MESQUITA BARROS JUNIOR CASSIO SABBAGH NAMUR CASSIO SCARPINELLA BUENO CASSIO TELLES FERREIRA NETTO CECILIA FRANCO MINERVINO CELSO ALVES FEITOSA CELSO ANTONIO BANDEIRA DE MELLO CELSO AUGUSTO COCCARO FILHO CELSO CINTRA MORI CELSO DE SOUZA AZZI CELSO JACOMO BARBIERI CELSO LAFER CELSO RENATO D’AVILA CESAR AMENDOLARA CESAR AUGUSTO GUIMARAES PEREIRA CESAR CIAMPOLINI NETO CESAR MARCOS KLOURI CHARLES D. COLE CHRISTIANE DE CARVALHO STROPPA REVISTA DO INSTITUTO DOS ADVOGADOS DE SÃO PAULO v. 35, JANEIRO - JUNHO 2015 CIBELE MIRIAM MALVONE TOLDO CICERO JOSE DA SILVA CID TOMANIK POMPEU CID VIEIRA DE SOUZA FILHO CLARISSA CAMPOS BERNARDO CLAUDIA CARVALHO VALENTE CLAUDIA ELISABETE SCHWERZ CAHALI CLAUDIA NAHSSEN DE LACERDA FRANZE CLAUDIO FELIPPE ZALAF CLAUDIO GOMARA DE OLIVEIRA CLAUDIO JOSE LANGROIVA PEREIRA CLAUDIO MAURICIO ROBORTELLA BOSCHI PIGATTI CLAUDIO SALVADOR LEMBO CLEMENCIA BEATRIZ WOLTHERS CLOVIS BEZNOS CONSTANCA GONZAGA JUNQUEIRA DE MESQUITA CORIOLANO AURELIO A.CAMARGO SANTOS CRISTIANE MARREY MONCAU CRISTIANO AVILA MARONNA CRISTIANO DE SOUSA ZANETTI CRISTIANO ZANIN MARTINS CRISTOVAO COLOMBO DOS REIS MILLER CUSTODIO DA PIEDADE UBALDINO MIRANDA DALTON TOFFOLI TAVOLARO DANIEL DE CAMARGO JUREMA DANIEL MARTINS BOULOS DANIEL PENTEADO DE CASTRO DANIEL ZACLIS DANIELA CAMPOS LIBORIO DANTE BUSANA DANTON DE ALMEIDA SEGURADO DARIO ABRAHAO RABAY DARMY MENDONCA DAVID GUSMAO DEBORA GOZZO DECIO POLICASTRO DELCIO BALESTERO ALEIXO DENISE VIANA NONAKA ALIENDE RIBEIRO DILZIANE ENDO DA CUNHA FRANCO DINORA ADELAIDE MUSETTI GROTTI DIOGENES MENDES GONCALVES NETO DIOGO LEONARDO MACHADO DE MELO DIOGO RAIS RODRIGUES MOREIRA DIRCEO TORRECILLAS RAMOS DIRCEU ANTONIO PASTORELLO DIRCEU AUGUSTO DA CAMARA VALLE DIRCEU DE MELLO DIVA PRESTES MARCONDES MALERBI DJALMA BITTAR DOMINGOS SAVIO ZAINAGHI DONALDO ARMELIN DUDLEY DE BARROS BARRETO FILHO DURVAL FERRO BARROS ECIO PERIN JUNIOR EDDA GONCALVES MAFFEI EDEVALDO ALVES DA SILVA EDGARD HERMELINO LEITE JUNIOR EDGARD SILVEIRA BUENO FILHO EDISON CARLOS FERNANDES EDMO COLNAGHI NEVES EDMO JOAO GELA 15 ASSOCIADOS DO IASP EDSON ANTONIO MIRANDA EDSON COSAC BORTOLAI EDSON ELIAS ALVES DA SILVA EDUARDO ARRUDA ALVIM EDUARDO AUGUSTO ALCKMIN JACOB EDUARDO AUGUSTO ALVES VERA-CRUZ PINTO EDUARDO AUGUSTO DE OLIVEIRA RAMIRES EDUARDO AUGUSTO MUYLAERT ANTUNES EDUARDO CARVALHO TESS EDUARDO CARVALHO TESS FILHO EDUARDO DAMIAO GONCALVES EDUARDO DE ALBUQUERQUE PARENTE EDUARDO DE MELLO EDUARDO DOMINGOS BOTTALLO EDUARDO MOLAN GABAN EDUARDO NELSON CANIL REPLE EDUARDO REALE FERRARI EDUARDO SILVEIRA MELO RODRIGUES EDUARDO TELLES PEREIRA EDVALDO PEREIRA DE BRITO EID GEBARA ELEONORA COELHO ELIANA CALMON ALVES ELIANA RACHED TAIAR ELIANE CRISTINA CARVALHO TEIXEIRA ELIANE TREVISANI MOREIRA ELIANE YACHOUH ABRAO ELIAS FARAH ELIAS KATUDJIAN ELIAS MARQUES DE MEDEIROS NETO ELIO ANTONIO COLOMBO JUNIOR ELISABETH V. DE GENNARI ELIZABETH NANTES CAVALCANTE ELIZABETH NAZAR CARRAZZA ELOISA DE SOUSA ARRUDA ELOY CAMARA VENTURA ELOY FRANCO DE OLIVEIRA FILHO EMERSON DEL RE ENRIQUE RICARDO LEWANDOWSKI ERICKSON GAVAZZA MARQUES ERNESTO ANTUNES DE CARVALHO ERNESTO JOSE PEREIRA DOS REIS ESTEVAO MALLET ESTEVAO PRADO DE OLIVEIRA CARVALHO EUCLIDES BENEDITO DE OLIVEIRA EUCLYDES JOSE MARCHI MENDONCA EURIPEDES SALES EVANE BEIGUELMAN KRAMER EVELCOR FORTES SALZANO EVELIN SOFIA ROSENBERG KONIG EVERALDO AUGUSTO CAMBLER FABIANA DOMINGUES CARDOSO FABIANA LOPES PINTO FABIANO CARVALHO FABIANO SCHWARTZMANN FOZ FABIO CARNEIRO BUENO OLIVEIRA FABIO DE SA CESNIK FABIO DE SOUZA RAMACCIOTTI FABIO GUIMARAES CORREA MEYER FABIO LOPES VILELA BERBEL FABIO MACHADO DE ALMEIDA DELMANTO FABIO MESSIANO PELLEGRINI FABIO MOURAO SANDOVAL FABIO NUSDEO FABIO PRIETO DE SOUZA FABIO ROMEU CANTON FILHO FABIO ROSAS FABIO ULHOA COELHO FABIOLA MARQUES FABRICIO FAVERO FATIMA CRISTINA PIRES MIRANDA FATIMA FERNANDES RODRIGUES DE SOUZA FATIMA NANCY ANDRIGHI FELICE BALZANO FELIPE EVARISTO DOS SANTOS GALEA FELIPE LOCKE CAVALCANTI FELIX RUIZ ALONSO FERNANDA DE GOUVEA LEAO FERNANDA GARCEZ LOPES DE SOUZA FERNANDA HENNEBERG BENEMOND FERNANDA MARQUES BAYEUX FERNANDA TARTUCE SILVA FERNANDO ANTONIO ALBINO DE OLIVEIRA FERNANDO BERTAZZI VIANNA FERNANDO BORGES VIEIRA FERNANDO BRANDAO WHITAKER FERNANDO CALZA DE SALLES FREIRE FERNANDO CAMPOS SCAFF FERNANDO CASTELO BRANCO FERNANDO DANTAS MOTTA NEUSTEIN FERNANDO DE OLIVEIRA MARQUES FERNANDO FACURY SCAFF FERNANDO FORTE FERNANDO FRAGOSO FERNANDO GASPAR NEISSER FERNANDO JOSE DA COSTA FERNANDO LUIZ DA GAMA LOBO D ECA FERNANDO PEREIRA FERNANDO SACCO NETO FLAVIA CRISTINA MOREIRA DE CAMPOS ANDRADE FLAVIO ALBERTO GONCALVES GALVAO FLAVIO FRANCO FLAVIO JAHRMANN PORTUGAL FLAVIO JOSE DE SOUZA BRANDO FLAVIO LUIZ YARSHELL FLAVIO MAIA FERNANDES DOS SANTOS FLAVIO MURILO TARTUCE SILVA FLAVIO PEREIRA LIMA FLAVIO YUNES ELIAS FRAIHA FLORIANO CORREA VAZ DA SILVA FRANCISCO ANTONIO BIANCO NETO FRANCISCO ANTONIO FEIJO FRANCISCO ANTUNES MACIEL MUSSNICH FRANCISCO ARY MONTENEGRO CASTELO FRANCISCO AUGUSTO DE J.V. FALSETTI FRANCISCO AURELIO DENENO FRANCISCO CESAR ASFOR ROCHA FRANCISCO CESAR PINHEIRO RODRIGUES FRANCISCO DE ASSIS VASCONCELLOS P. DA SILVA FRANCISCO GONCALVES NETO FRANCISCO JOSE CAHALI FRANCISCO JOSE F. DE SOUZA R. DA SILVA 16 FREDERICO PRADO LOPES GABRIEL JORGE FERREIRA GABRIEL MARCILIANO JUNIOR GABRIEL SEIJO LEAL DE FIGUEIREDO GASTAO ALVES DE TOLEDO GENESIO CANDIDO PEREIRA FILHO GEORGE WASHINGTON TENORIO MARCELINO GEORGHIO ALESSANDRO TOMELIN GERALDO DE FIGUEIREDO FORBES GERALDO FACO VIDIGAL GERALDO MAGELA DA CRUZ QUINTAO GIL COSTA CARVALHO GILBERTO BERCOVICI GILBERTO DE CASTRO MOREIRA JUNIOR GILBERTO HADDAD JABUR GILBERTO ILDEFONSO FERREIRA CONTI GILDA FIGUEIREDO FERRAZ DE ANDRADE GILDO DOS SANTOS GILSON HIROSHI NAGANO GIOVANNA CARDOSO GAZOLA GIOVANNI ETTORE NANNI GLAUCIA MARA COELHO GLAUCO MARTINS GUERRA GUILHERME ALFREDO DE MORAES NOSTRE GUILHERME CARVALHO E SOUSA GUILHERME MARTINS MALUFE GUILHERME OCTAVIO BATOCHIO GUSTAVO D ACOL CARDOSO GUSTAVO FERRAZ DE CAMPOS MONACO GUSTAVO HENRIQUE RIGHI IVAHY BADARO GUSTAVO MILARE ALMEIDA GUSTAVO NEVES FORTE GUSTAVO RENE NICOLAU HAMILTON DIAS DE SOUZA HAMILTON ELLIOT AKEL HAMILTON PENNA HAROLDO MALHEIROS DUCLERC VERCOSA HELCIO HONDA HELENA REGINA LOBO DA COSTA HELENO TAVEIRA TORRES HELIO PEREIRA BICUDO HELIO RAMOS DOMINGUES HELIO RUBENS BATISTA RIBEIRO COSTA HERMES MARCELO HUCK HOMERO ALVES DE SA HORACIO BERNARDES NETO HUGO FUNARO IGNACIO MARIA POVEDA VELASCO IGOR MAULER SANTIAGO IGOR SANT ANNA TAMASAUKAS ILENE PATRICIA DE NORONHA NAJJARIAN ISABEL DELFINO SILVA MASSAIA ISABEL MARINANGELO IVANA CO GALDINO CRIVELLI IVES GANDRA DA SILVA MARTINS IVETTE SENISE FERREIRA IVO WAISBERG JAIRO HABER JAIRO SAMPAIO SADDI JANE GRANZOTO TORRES DA SILVA JAQUES BUSHATSKY REVISTA DO INSTITUTO DOS ADVOGADOS DE SÃO PAULO v. 35, JANEIRO - JUNHO 2015 JAYME PAIVA BRUNA JERONIMO ROMANELLO NETO JOAO ADELINO DE MORAIS ALMEIDA PRADO JOAO ALBERTO SCHUTZER DEL NERO JOAO ARMANDO MORETTO AMARANTE JOAO BAPTISTA MORELLO NETTO JOAO BIAZZO FILHO JOAO BRASIL VITA JOAO DANIEL RASSI JOAO FRANCISCO RAPOSO SOARES JOAO JOSE PEDRO FRAGETI JOAO OTAVIO DE NORONHA JOAO PAULO HECKER DA SILVA JOAQUIM PORTES DE CERQUEIRA CESAR JONATHAN BARROS VITA JONES FIGUEIREDO ALVES JORGE ELUF NETO JORGE HENRIQUE AMARAL ZANINETTI JORGE LAURO CELIDONIO JORGE LUIZ DE MORAES DANTAS JORGE SHIGUEMITSU FUJITA JORGE TADEO FLAQUER SCARTEZZINI JOSE ALBERTO COUTO MACIEL JOSE ALBERTO WEISS DE ANDRADE JOSE ALEXANDRE AMARAL CARNEIRO JOSE ALEXANDRE TAVARES GUERREIRO JOSE ANCHIETA DA SILVA JOSE ANTONIO DE ANDRADE MARTINS JOSE ARNALDO VIANNA CIONE FILHO JOSE ARTUR LIMA GONCALVES JOSE AUGUSTO DELGADO JOSE AUGUSTO RODRIGUES JUNIOR JOSE CALIMERIO MUZETTI JOSE CARLOS BAPTISTA PUOLI JOSE CARLOS DA SILVA AROUCA JOSE CARLOS DE CARVALHO CARNEIRO JOSE CARLOS DE MORAES SALLES JOSE CARLOS DIAS JOSE CARLOS FAGONI BARROS JOSE CARLOS LEITE M. DE OLIVEIRA JOSE CARLOS MAGALHAES T. FILHO JOSE CARLOS MOREIRA ALVES JOSE CELSO DE MELLO FILHO JOSE DE ARAUJO NOVAES NETO JOSE DE OLIVEIRA ASCENSAO JOSE DEL CHIARO FERREIRA DA ROSA JOSE EBRAN JOSE EDUARDO DUARTE SAAD JOSE EDUARDO GOMES PEREIRA JOSE EDUARDO HADDAD JOSE EDUARDO RANGEL DE ALCKMIN JOSE EDUARDO SOARES DE MELO JOSE EDUARDO VERGUEIRO NEVES JOSE FERNANDO CHRISTINO NETTO JOSE FERNANDO SIMAO JOSE FRANCISCO LOPES DE MIRANDA LEAO JOSE FRANCISCO REZEK JOSE FRANCISCO VIEIRA DE FARIA JOSE GERALDO FERREIRA DE CASTILHO NETO JOSE GUILHERME CARNEIRO QUEIROZ JOSE HORACIO CINTRA GONCALVES PEREIRA 17 ASSOCIADOS DO IASP JOSE HORACIO HALFELD REZENDE RIBEIRO JOSE INACIO GONZAGA FRANCESCHINI JOSE JOAQUIM GOMES CANOTILHO JOSE JORGE NOGUEIRA DE MELLO JOSE JORGE TANNUS JOSE LUIS DE SALLES FREIRE JOSE LUIS MENDES DE OLIVEIRA LIMA JOSE LUIS RIBEIRO BRAZUNA JOSE LUIZ PIRES DE OLIVEIRA DIAS JOSE LUIZ TORO DA SILVA JOSE MACHADO DE CAMPOS FILHO JOSE MANOEL DE ARRUDA ALVIM NETO JOSE MANSSUR JOSE MARCELO MENEZES VIGLIAR JOSE MARIA DE MELLO FREIRE JOSE MARIA SIVIERO JOSE MARIA WHITAKER NETO JOSE MAURO MARQUES JOSE NANTALA BADUE FREIRE JOSE NERI DA SILVEIRA JOSE OSORIO DE AZEVEDO JUNIOR JOSE PAULO MOUTINHO FILHO JOSE PAULO SEPULVEDA PERTENCE JOSE RAIMUNDO GOMES DA CRUZ JOSE RENATO NALINI JOSE REYNALDO PEIXOTO DE SOUZA JOSE RICARDO BIAZZO SIMON JOSE ROBERTO BATOCHIO JOSE ROBERTO DOS SANTOS BEDAQUE JOSE ROBERTO OPICE BLUM JOSE ROBERTO PEIRETTI DE GODOY JOSE ROBERTO PERNOMIAN RODRIGUES JOSE RODRIGUES DE CARVALHO NETTO JOSE RUBENS SALGUEIRO MACHADO DE CAMPOS JOSE THEODORO ALVES DE ARAUJO JOSE YUNES JOSEFINA MARIA DE SANTANA DIAS JUDITH MARTINS-COSTA JULIANA ABRUSIO FLORENCIO JULIANA FERREIRA ANTUNES DUARTE JULIANO SOUZA DE ALBUQUERQUE MARANHAO JULIO KAHAN MANDEL JUNIA VERNA FERREIRA DE SOUZA JUSSARA RITA RAHAL JUSTINO MAGNO ARAUJO KARINA PENNA NEVES KATIA BOULOS KAZUO WATANABE KIYOSHI HARADA KLEBER LUIZ ZANCHIM LAERCIO LAURELLI LAERCIO MONTEIRO DIAS LAERCIO NILTON FARINA LAERTES DE MACEDO TORRENS LAFAYETTE POZZOLI LAIR DA SILVA LOUREIRO FILHO LAIS AMARAL REZENDE DE ANDRADE LARISSA TEIXEIRA QUATTRINI LAURO CELIDONIO GOMES DOS REIS NETO LAURO CESAR MAZETTO FERREIRA LAURO MALHEIROS FILHO LEANDRO SARCEDO LELIA CRISTINA RAPASSI DIAS DE SALLES FREIRE LEO KRAKOWIAK LEO MEIRELLES DO AMARAL LEONARDO AUGUSTO FURTADO PALHARES LEONARDO BAREM LEITE LEONARDO LINS MORATO LEONARDO MASSUD LEONARDO SARTORI SIGOLLO LEONARDO SICA LEONEL CESARINO PESSOA LEOPOLDO UBIRATAN CARREIRO PAGOTTO LESLIE AMENDOLARA LIDIA VALERIO MARZAGAO LIONEL ZACLIS LIVIO DE VIVO LOURIVAL JOSE SANTOS LUCIANA GERBOVIC AMIKY LUCIANA NUNES FREIRE LUCIANO ANDERSON DE SOUZA LUCIANO DE SOUZA GODOY LUCIANO FERREIRA LEITE LUIGI MARIA JACOPO GHISLAIN CHIERICHETTI LUIS ALEXANDRE BARBOSA LUIS ANDRE NEGRELLI DE MOURA AZEVEDO LUIS ANTONIO SEMEGHINI DE SOUZA LUIS CAMARGO PINTO DE CARVALHO LUIS CESAR AMAD COSTA LUIS EDUARDO SIMARDI FERNANDES LUIS FELIPE SALOMAO LUIS OTAVIO SEQUEIRA DE CERQUEIRA LUIS PAULO ALIENDE RIBEIRO LUIZ ANTONIO ALVES DE SOUZA LUIZ ANTONIO GUERRA DA SILVA LUIZ ANTONIO SAMPAIO GOUVEIA LUIZ ARTHUR CASELLI GUIMARAES LUIZ AUGUSTO AZEVEDO DE ALMEIDA HOFFMANN LUIZ AUGUSTO PRADO BARRETO LUIZ CARLOS AMORIM ROBORTELLA LUIZ CARLOS ANDREZANI LUIZ CARLOS DE AZEVEDO RIBEIRO LUIZ CARLOS FONTES DE ALENCAR LUIZ CARLOS OLIVAN LUIZ CARLOS PACHECO E SILVA LUIZ EDSON FACHIN LUIZ EDUARDO BOAVENTURA PACIFICO LUIZ EDUARDO MARTINS FERREIRA LUIZ FELIPE HADLICH MIGUEL LUIZ FELIPE PERRONE DOS REIS LUIZ FERNANDO ALOUCHE LUIZ FERNANDO DE CAMARGO PRUDENTE DO AMARAL LUIZ FERNANDO DO VALE DE ALMEIDA GUILHERME LUIZ FERNANDO MARTINS KUYVEN LUIZ FERNANDO MUSSOLINI JUNIOR LUIZ FLAVIO BORGES D’URSO LUIZ FLAVIO GOMES LUIZ FRANCISCO LIPPO LUIZ FUX LUIZ GONZAGA BERTELLI LUIZ GUILHERME MOREIRA PORTO LUIZ IGNACIO HOMEM DE MELLO 18 LUIZ LEMOS LEITE LUIZ OLAVO BAPTISTA LUIZ PERISSE DUARTE JUNIOR LUIZ RAFAEL DE VARGAS MALUF LUIZ SERGIO MODESTO LUIZ TZIRULNIK MAIDA SILVESTRI MAIRAN GONCALVES MAIA JUNIOR MANOEL ALONSO MANOEL ANTONIO TEIXEIRA FILHO MANOEL GONCALVES FERREIRA FILHO MANUEL ALCEU AFFONSO FERREIRA MANUEL INACIO ARAUJO SILVA MARCAL JUSTEN FILHO MARCEL CORDEIRO MARCEL LEONARDI MARCELLO MARTINS MOTTA FILHO MARCELO ANTONIO MOSCOGLIATO MARCELO BESERRA MARCELO BOTELHO PUPO MARCELO COSTA MASCARO NASCIMENTO MARCELO GUEDES NUNES MARCELO GUIMARAES DA ROCHA E SILVA MARCELO LUCON MARCELO MANHAES DE ALMEIDA MARCELO ROSSI NOBRE MARCELO TADEU ALVES BOSCO MARCELO TERRA MARCELO TESHEINER CAVASSANI MARCELO THIOLLIER MARCELO UCHOA DA VEIGA JUNIOR MARCELO VIANA SALOMAO MARCELO XAVIER DE FREITAS CRESPO MARCIA CONCEICAO ALVES DINAMARCO MARCIA MARTINS MIGUEL MARCIAL BARRETO CASABONA MARCIO CALIL DE ASSUMPCAO MARCIO CAMMAROSANO MARCIO DO CARMO FREITAS MARCIO PESTANA MARCO ANTONIO FANUCCHI MARCO ANTONIO INNOCENTI MARCO ANTONIO MARQUES DA SILVA MARCO AURELIO BRASIL LIMA MARCO AURELIO GRECO MARCO AURELIO MENDES DE FARIAS MELLO MARCO FABIO MORSELLO MARCO VANIN GASPARETTI MARCOS DA COSTA MARCOS PAULO DE ALMEIDA SALLES MARCOS ROLIM FERNANDES FONTES MARCOS VINICIO RAISER DA CRUZ MARCOS VINICIUS DE CAMPOS MARCUS VINICIUS DOS SANTOS ANDRADE MARCUS VINICIUS FURTADO COELHO MARCUS VINICIUS LOBREGAT MARESKA TIVERON SALGE DE AZEVEDO MARIA AURORA CARDOSO DA SILVA OMORI MARIA CECILIA DIAS DE ANDRADE SANTOS MARIA CELESTE CORDEIRO LEITE SANTOS MARIA CELESTE DE OLIVEIRA REVISTA DO INSTITUTO DOS ADVOGADOS DE SÃO PAULO v. 35, JANEIRO - JUNHO 2015 MARIA CLARA DA SILVEIRA VILASBOAS ARRUDA MARIA CRISTINA IRIGOIYEN PEDUZZI MARIA CRISTINA ZUCCHI MARIA DE LOURDES PEREIRA CAMPOS MARIA DO CEU MARQUES ROSADO MARIA ELIZABETH QUEIJO MARIA EUGENIA RAPOSO DA SILVA TELLES MARIA FERNANDA VAIANO S.CHAMMAS MARIA GARCIA MARIA HELENA DINIZ MARIA LUCIA GIANGIACOMO BONILHA MARIA ODETE DUQUE BERTASI MARIA SYLVIA ZANELLA DI PIETRO MARIANA CONTI CRAVEIRO MARIANA NADDEO LOPES DA CRUZ CASARTELLI MARILENE TALARICO MARTINS RODRIGUES MARILIA MURICY MACHADO PINTO MARINA BEVILACQUA DE LA TOULOUBRE MARINA PINHAO COELHO ARAUJO MARIO ANTONIO FRANCISCO DI PIERRO MARIO DE BARROS DUARTE GARCIA MARIO LUIZ DELGADO REGIS MARIO LUIZ OLIVEIRA DA COSTA MARIO SERGIO DE MELLO FERREIRA MARIO SERGIO DUARTE GARCIA MARIO SERGIO MILANI MARLENE LAURO MARTA MARIA RUFFINI PENTEADO GUELLER MARTIM DE ALMEIDA SAMPAIO MASATO NINOMIYA MATHIAS ALEXEY WOELZ MAUCIR FREGONESI JUNIOR MAURICIO ANDERE VON BRUCK LACERDA MAURICIO ASNIS MAURICIO AVILA PRAZAK MAURICIO BAPTISTELLA BUNAZAR MAURICIO FERREIRA LEITE MAURICIO GRANADEIRO GUIMARAES MAURICIO SCHAUN JALIL MAURICIO SCHEINMAN MAURICIO TRALDI MAURICIO ZANOIDE DE MORAES MAURO AUGUSTO PONZONI FALSETTI MAURO CARAMICO MAURO DE MORAIS MAURO DELPHIM DE MORAES MAURO GRINBERG MAURO LUCIANO HAUSCHILD MAURO OTAVIO NACIF MEJOUR DOUGLAS ANTONIOLI MICHEL MIGUEL ELIAS TEMER LULIA MIGUEL ALFREDO MALUFE NETO MIGUEL PEREIRA NETO MIGUEL REALE JUNIOR MILENE CALFAT MALDAUN MILTON FLAVIO DE A. CAMARGO LAUTENSCHLAGER MILTON PAULO DE CARVALHO MODESTO SOUZA BARROS CARVALHOSA MOIRA VIRGINIA HUGGARD CAINE MOISES AKSELRAD MORVAN MEIRELLES COSTA JUNIOR 19 ASSOCIADOS DO IASP MURILO MAGALHAES CASTRO NANCY TANCSIK DE OLIVEIRA NELSON KOJRANSKI NELSON MANNRICH NELSON NERY JUNIOR NELSON RENATO PALAIA RIBEIRO DE CAMPOS NELSON TABACOW FELMANAS NEWTON DE LUCCA NEWTON JOSE DE OLIVEIRA NEVES NEWTON SILVEIRA NEY PRADO NILSON LAUTENSCHLEGER JUNIOR NORMA JORGE KYRIAKOS OLAVO DE OLIVEIRA NETO ORESTE NESTOR DE SOUZA LASPRO ORLANDO MALUF HADDAD OSCAVO CORDEIRO CORREA NETTO OSEAS DAVI VIANA OSWALDO CHADE OSWALDO SANT’ANNA OTAVIO LUIZ RODRIGUES JUNIOR OVIDIO ROCHA BARROS SANDOVAL PATRICIA ROSSET PAULA MARCILIO TONANI DE CARVALHO PAULO ADIB CASSEB PAULO AFONSO PINTO DOS SANTOS PAULO AMADOR THOMAZ ALVES DA CUNHA BUENO PAULO AYRES BARRETO PAULO CELSO BERGSTROM BONILHA PAULO CEZAR PINHEIRO CARNEIRO PAULO DE BARROS CARVALHO PAULO EDUARDO DE CAMPOS LILLA PAULO EGIDIO SEABRA SUCCAR PAULO FAINGAUS BEKIN PAULO FERNANDO CAMPOS SALLES DE TOLEDO PAULO HAMILTON SIQUEIRA JUNIOR PAULO HENRIQUE CREMONEZE PACHECO PAULO HENRIQUE DOS SANTOS LUCON PAULO LUCENA DE MENEZES PAULO MAGALHAES NASSER PAULO MIGUEL DE CAMPOS PETRONI PAULO NAPOLEAO N. BASILE NOGUEIRA SILVA PAULO ROBERTO DE OLIVEIRA SCHMIDT PAULO ROBERTO JOAQUIM DOS REIS PAULO ROBERTO SARAIVA DA COSTA LEITE PAULO SALVADOR FRONTINI PAULO SERGIO V. PEREIRA PEDRO ALBERTO DO AMARAL DUTRA PEDRO ALCANTARA SILVA L.FILHO PEDRO AUGUSTO DE FREITAS GORDILHO PEDRO DA SILVA DINAMARCO PEDRO DE ABREU MARIANI PEDRO LUCIANO MARREY JUNIOR PEDRO PAULO DE REZENDE PORTO FILHO PEDRO PAULO TEIXEIRA MANUS PEDRO PAULO WENDEL GASPARINI PERSIO THOMAZ FERREIRA ROSA PHILIP ANTONIOLI PIERPAOLO CRUZ BOTTINI PLINIO BOLIVAR DE ALMEIDA PRISCILA MARIA PEREIRA CORREA DA FONSECA PRISCILA SANTOS ARTIGAS PRISCILA UNGARETTI DE GODOY WALDER RACHEL FERREIRA ARAUJO TUCUNDUVA RAPHAEL GARCIA FERRAZ DE SAMPAIO RAQUEL ELITA ALVES PRETO REGINA AFFONSO DOS SANTOS FONSECA RIBEIRO REGINA BEATRIZ TAVARES DA SILVA REGINA LUCIA SMITH DE MORAES ARAUJO REGINA SAHM REGIS FERNANDES DE OLIVEIRA RENAN LOTUFO RENATA ALONSO RENATA DE ARRUDA BOTELHO DA VEIGA TURCO RENATA LORENZETTI GARRIDO RENATA SILVA FERRARA RENATO AFONSO GONCALVES RENATO DE MELLO JORGE SILVEIRA RENATO LUIZ DE MACEDO MANGE RENATO MACEDO BURANELLO RENATO MULLER DA SILVA OPICE BLUM RENATO RIBEIRO RENATO RODRIGUES TUCUNDUVA JUNIOR RENATO XAVIER DA SILVEIRA ROSA RENNAN FARIA KRUGER THAMAY RENZO LEONARDI RICARDO ALVES BENTO RICARDO BARRETO FERREIRA SILVA RICARDO CHOLBI TEPEDINO RICARDO DAGRE SCHMID RICARDO DOS SANTOS CASTILHO RICARDO HASSON SAYEG RICARDO JOSE MARTINS RICARDO LISBOA JUNQUEIRA RICARDO MARIZ DE OLIVEIRA RICARDO MELANTONIO RICARDO PEAKE BRAGA RICARDO PENTEADO DE FREITAS BORGES RIVADAVIA PEREIRA GOMES ROBERTA JARDIM DE MORAIS ROBERTO CORREA ROBERTO CORREIA DA SILVA GOMES CALDAS ROBERTO DE SIQUEIRA CAMPOS ROBERTO DELMANTO JUNIOR ROBERTO GARCIA LOPES PAGLIUSO ROBERTO LATIF KFOURI ROBERTO MALICHESKI FERREIRA ROBERTO PARAHYBA DE ARRUDA PINTO ROBERTO PODVAL ROBERTO QUIROGA MOSQUERA ROBERTO ROSAS ROBERTO SENISE LISBOA ROBERTO SOARES ARMELIN ROBERTO TEIXEIRA RODOLFO DA COSTA MANSO REAL AMADEO RODRIGO BERNARDES DIAS RODRIGO FERNANDES REBOUCAS RODRIGO GAGO FREITAS BARBOSA RODRIGO JORGE MORAES RODRIGO MATHEUS RODRIGO OTAVIO BARIONI RODRIGO ROCHA MONTEIRO DE CASTRO 20 ROGERIA PAULA BORGES GIEREMEK ROGERIO BORGES DE CASTRO ROGERIO IVES BRAGHITTONI ROGERIO MOLLICA ROGERIO VIDAL GANDRA DA SILVA MARTINS ROMEU GIORA JUNIOR ROMULO DE SOUZA PIRES RONALDO ALVES DE ANDRADE RONALDO VASCONCELOS RONY VAINZOF ROQUE ANTONIO CARRAZZA ROSIMARA RAIMUNDO VUOLO RUBENS APPROBATO MACHADO RUBENS BECAK RUBENS CARMO ELIAS RUBENS CARMO ELIAS FILHO RUBENS DECOUSSAU TILKIAN RUBENS FERRAZ DE OLIVEIRA LIMA RUBENS NAVES RUBENS TARCISIO FERNANDES VELLOZA RUBENS TAVARES AIDAR RUDI ALBERTO LEHMANN JUNIOR RUI CELSO REALI FRAGOSO RUI FERREIRA PIRES SOBRINHO RUI GERALDO CAMARGO VIANA RUY MARTINS ALTENFELDER SILVA RUY PEREIRA CAMILO JUNIOR RUY ROSADO DE AGUIAR JUNIOR SANDRA REGINA COMI SANDRO DANTAS CHIARADIA JACOB SANTO ROMEU NETTO SEBASTIAO BARBOSA DE ALMEIDA SERGEI COBRA ARBEX SERGIO BERMUDES SERGIO DE FREITAS COSTA SERGIO DE MAGALHAES FILHO SERGIO FERRAZ SERGIO GONINI BENICIO SERGIO MARTINS RSTON SERGIO QUINTELA DE MIRANDA SERGIO ROSENTHAL SHIRLEY FERNANDES MARCON CHALITA SIDNEI AGOSTINHO BENETI SIDNEI AMENDOEIRA JUNIOR SIDNEI TURCZYN SIDNEY GRACIANO FRANZE SILMARA JUNY DE ABREU CHINELLATO SILVANA BUSSAB ENDRES SILVANIO COVAS SILVANO ANDRADE DO BOMFIM SILVIA DA GRACA GONCALVES COSTA SILVIO DE SALVO VENOSA SILVIO SIMONAGGIO SONIA MARIA GIANNINI MARQUES DOBLER SONIA STERMAN SUSETE GOMES SUSY GOMES HOFFMANN SYDNEY SANCHES SYLVIO CESAR AFONSO SYLVIO JOSE DO AMARAL GOMES TAIS BORJA GASPARIAN REVISTA DO INSTITUTO DOS ADVOGADOS DE SÃO PAULO v. 35, JANEIRO - JUNHO 2015 TALES CASTELO BRANCO TALLULAH KOBAYASHI DE ANDRADE CARVALHO TAMIRA MAIRA FIORAVANTE TANIA NIGRI TATIANA DRATOVSKY SISTER TERCIO CHIAVASSA TERCIO SAMPAIO FERRAZ JUNIOR TERESA CELINA DE ARRUDA ALVIM WAMBIER THEREZA CELINA DINIZ DE ARRUDA ALVIM THIAGO RODOVALHO DOS SANTOS THIAGO TABORDA SIMOES THOMAS BENES FELSBERG TIAGO ASFOR LIMA UBIRATAN MATTOS ULISSES BUTURA SIMOES ULYSSES DE OLIVEIRA GONCALVES JR UMBERTO LUIZ BORGES D URSO VALTER EUSTAQUIO FRANCO VANESSA VILARINO LOUZADA VANIA MARIA RUFFINI PENTEADO BALERA VERA LUCIA ANGRISANI VERA LUCIA DE MELLO NAHRA VERA MARIA CALDAS WILKINSON VICENTE MAROTA RANGEL VICTOR LUIS DE SALLES FREIRE VINICIUS BAIRAO ABRAO MIGUEL VINICIUS LOBATO COUTO VITOR RHEIN SCHIRATO VITOR WEREBE VITORINO FRANCISCO ANTUNES NETO VLADMIR OLIVEIRA DA SILVEIRA WAGNER BALERA WALFRIDO JORGE WARDE JUNIOR WALTER CENEVIVA WALTER PIVA RODRIGUES WALTER VIEIRA CENEVIVA WANESSA DE CASSIA FRANCOLIN WILSON LUIS DE SOUSA FOZ WILSON RODRIGUES DE FARIA WOLF GRUENBERG YARA MARTINEZ DE CARVALHO E SILVA STROPPA ZAIDEN GERAIGE NETO ZELMO DENARI 21 SUMÁRIO INTRODUÇÃO JOSÉ HORÁCIO HALFELD REZENDE RIBEIRO 7 APRESENTAÇÃO ELIAS FARAH 9 DIRETORIA DO IASP 11 ASSOCIADOS DO IASP 13 PARECERES E CONTRIBUIÇÕES DO IASP OPINIÃO LEGAL DECRETO 8.441/2015 SUSY GOMES HOFFMANN 27 AUDIÊNCIA DE CUSTÔDIA MARCELO XAVIER DE FREITAS CRESPO 55 MENOR SOB GUARDA WAGNER BALERA 75 NECESSIDADE DE RENOVAÇÃO DE PEDIDO DE CONCESSÃO DE ASSISTÊNCIA JUDICIÁRIA GRATUITA EM SEDE RECURSAL. ORIENTAÇÃO DO EGRÉGIO SUPERIOR TRIBUNAL DE JUSTIÇA. ILEGALIDADE E INCONSTITUCIONALIDADE. ARRUDA ALVIM, THEREZA ALVIM E EDUARDO ARRUDA ALVIM 101 CONSULTA PÚBLICA PORTARIA Nº 54/2014 111 MANHà DE DEBATES “MULHER, LIDERANÇA E REPRESENTATIVIDADE A SUB-REPRESENTAÇÃO FEMININA NO BRASIL E AS SUAS DECORRÊNCIAS” ENUNCIADOS PROPOSITIVOS 13 DE MARÇO DE 2015 117 DOUTRINA DESAFIOS DA JUSTIÇA O EXECUTIVO E A MODERNIZAÇÃO DO JUDICIÁRIO FERNANDO HENRIQUE CARDOSO 127 REVISTA DO INSTITUTO DOS ADVOGADOS DE SÃO PAULO v. 35, JANEIRO - JUNHO 2015 22 DIREITO CIVIL PRESCRIÇÃO E DECADÊNCIA NO CENÁRIO DO DIREITO DO CONSUMIDOR: RELAÇÃO ENTRE O DIREITO E O TEMPO NA CONTEMPORANEIDADE REGINA VERA VILLAS BÔAS E WILSON JOSÉ VINCI JÚNIOR 143 DIREITO DE FAMÍLIA O CASAMENTO NO DIREITO INTERNACIONAL PRIVADO NO BRASIL ANDRÉ DE CARVALHO RAMOS 165 PROPRIEDADE INTELECTUAL TRADEDRESS: IMITAÇÃO E CONCORRÊNCIA DESLEAL FERNANDA NEVES PIVA 191 SOBRE O NOVO CÓDIGO DE PROCESSO CIVIL O PROCEDIMENTO COMUM NO NOVO CÓDIGO DE PROCESSO CIVIL DOUGLAS BELANDA 207 POR UM PROCESSO CIVIL COMUNICATIVO E DIALÓGICO PAULO SÉRGIO VELTEN PEREIRA 235 DIREITO PENAL AS CAUSAS DA VIOLÊNCIA DOMÉSTICA CONTRA A MULHER: UMA REVISÃO DA LITERATURA SÍLVIA APARECIDA GONÇALVES 255 DIREITO PÚBLICO A DESAPROPRIAÇÃO DA ÁGUA JOSÉ AILTON GARCIA E ANDRÉ LUIZ DOS SANTOS NAKAMURA 311 LEI FEDERAL DAS NORMAS GERAIS PARA LICENCIAMENTO E COMPARTILHAMENTO DE INFRAESTRUTURA DE REDE DE TELECOMUNICAÇÕES ERICSON SCORSIM 345 APLICAÇÃO DA TEORIA DO FACTA CONCLUDENTIA E SUA RELAÇÃO COM A REVOGAÇÃO DE ATOS ADMINISTRATIVOS DE FORMA IMPLÍCITA POR PARTE DA ADMINISTRAÇÃO LUÍS ALBERTO DE FISCHER AWAZU 369 23 SUMÁRIO DIREITO AMBIENTAL QUESTÕES CONTEMPORÂNEAS ENVOLVENTES DA CLASSIFICAÇÃO DOS BENS JURÍDICOS TRAZIDA NO CÓDIGO CIVIL E DO CONCEITO ABRANGENTE DO BEM AMBIENTAL REGINA VERA VILLAS BÔAS, JOSÉ ÂNGELO REMÉDIO E MARLENE DOS SANTOS VILHENA 389 TEORIA GERAL DO DIREITO HANS KELSEN E O POSITIVISMO JURÍDICO JOSÉ CARLOS FAGONI BARROS 413 REUNIÕES-ALMOÇO DO IASP DESAFIOS E PERSPECTIVAS DO JUDICÁRIO RICARDO LEWANDOWSKI 453 PERSPECTIVAS ECONÔMICAS PARA O BRASIL GUSTAVO LOYOLA 463 O QUE ESPERAR DO NOVO CÓDIGO DE PROCESSO CIVIL? TERESA ARRUDA ALVIM WAMBIER 473 ANTICORRUPÇÃO E O DESENVOLVIMENTO DO BRASIL MODESTO CARVALHOSA 483 A REFORMA POLÍTICA POSSÍVEL MICHEL TEMER 495 MANIFESTAÇÕES E DISCURSOS LIBERDADE E RESPONSABILIDADE JOSÉ HORÁCIO HALFELD REZENDE RIBEIRO 509 EXAME DE ORDEM LUIZ GONZAGA BERTELLI 513 OFÍCIO - DERRUBADA DO VETO JOSÉ HORÁCIO HALFELD REZENDE RIBEIRO 519 CADEIA NELES! E DEPOIS? LUIZ GONZAGA BERTELLI 523 REVISTA DO INSTITUTO DOS ADVOGADOS DE SÃO PAULO v. 35, JANEIRO - JUNHO 2015 24 DISCURSO PROFERIDO POR OCASIÃO DO 140º ANIVERSÁRIO DO IASP E OUTORGA PRÊMIO BARÃO DE RAMALHO JOSÉ RENATO NALINI NOVO ESTATUTO DO IASP 527 531 PARECERES E CONTRIBUIÇÕES DO IASP OPINIÃO LEGAL DECRETO 8.441/2015 SUSY GOMES HOFFMANN Mestre e Doutora em Direito do Estado pela PUC-SP. Exerceu o cargo de Vice-Presidente do CARF – Conselho Administrativo de Recursos . Autora de livros e artigos. Associada Efetiva do IASP. REVISTA DO INSTITUTO DOS ADVOGADOS DE SÃO PAULO v. 35, JANEIRO - JUNHO 2015 28 São Paulo, 15 de maio de 2015. Com muita honra, atendendo ao pedido da mui Digna Diretoria do Instituto dos Advogados de São Paulo – IASP, na pessoa do Excelentíssimo Presidente – Dr. José Horácio Halfaged Rezende Ribeiro e na pessoa do Excelentíssimo Diretor – Dr. Diogo L. Machado de Melo - aceitei o desafio de emitir uma Opinião Legal acerca do recém editado Decreto 8.441/2015, que dentre outros, instituiu a gratificação de presença aos Conselheiros indicados pelos Contribuintes do Conselho Administrativo de Recursos Fiscais do Ministério da Fazenda – CARF. Em seu pedido de Opinião Legal foi me solicitado que respondesse aos seguintes questionamentos suscitados pela Digna Diretoria desta Nobre Instituição: 1. Há alguma ilegalidade ou inconstitucionalidade no Decreto nº 8.441/2015 a ser identificada? 2. Há incompatibilidade (ou impedimento) entre o exercício da advocacia e a função de juiz do tribunal administrativo fiscal? A incompatibilidade se estende aos integrantes do Escritório do juiz de tribunal administrativo convocado? Em razão do pouco tempo para poder perfilhar todo o caminho que me leva para apresentar ilegalidades e inconstitucionalidades no referido Decreto, vou indicar o sumário da Opinião, para, em seguida, tratar, ainda que de forma breve, dos temas suscitados. A. Contexto da edição do Decreto. B. Breves considerações sobre o histórico do CARF. C. A importância da paridade nos órgãos administrativos de julgamento D. O Decreto 8.441/2015 como decreto regulamentador e não como decreto autônomo E. O Decreto 8.441/2015, naquilo que procurou regulamentar, extrapolou os limites da lei e daí, por consequência, é ilegal. O Decreto ao trazer aos Conselheiros dos Contribuintes as limitações previstas na Lei 12.813/2013 extrapolou a sua competência, além de gerar desigualdade entre Conselheiro dos Contribuintes e Conselheiros Fazendários. PARECERES E CONTRIBUIÇÕES DO IASP OPINIÃO LEGAL DECRETO 8.441/2015 F. 29 O Decreto 8.441/2015 trouxe disparidades entre os julgadores oriundos da representação fiscal e da representação dos contribuintes, o que gera a sua inconstitucionalidade, ainda que indireta. G. O Decreto 8.441/2015 e a sua referência à Lei 8.906/1994. Decreto regulamentador e os limites da lei que regula. Extrapolação dos limites. Ilegalidade. H. Impedimento e Incompatibilidade para advocacia por advogados que compõem órgão julgador. Precedente do Supremo Tribunal Federal que impõe diretrizes de interpretação. Impedimento parcial do advogado e não da sociedade para advogar. Impedimento pessoal do advogado para advogar em causas que tramitam no Órgão a que pertence o Tribunal do qual faz parte. I. Conclusões – respostas objetivas às questões formuladas. Estabelecido o sumário, passarei a trabalhar, individualmente, os itens enumerados. A. O contexto da edição do Decreto 8.441 de 29 de abril de 2015. Relevante para o exame do Decreto que seja colocado o contexto de sua edição. Em 26 de março de 2015 tornou-se pública a Operação da Polícia Federal, denominada “Zelotes” que tem por objetivo apurar eventuais crimes cometidos junto ao antigo Conselho de Contribuintes e atual CARF. De acordo com as notícias veiculadas na imprensa, há fortes indícios de que houve a participação de funcionários, Conselheiros e ex-Conselheiros do CARF para que fossem negociados os resultados de julgamentos vultosos. O CARF, até então um órgão desconhecido da maior parte da sociedade, passou a ser alvo de contínuas discussões e opiniões. Dentre estas discussões veio à tona do tema de advogados que possuem seus escritórios e militam na área tributária figurarem como Conselheiros representantes dos contribuintes. A partir da publicidade dada à Operação Zelotes e em razão dos fatos relevantes nela apontados, várias medidas foram tomadas pelo Ministério da Fazenda: i) houve a suspensão das sessões de julgamento do CARF até que fossem feitas alterações na REVISTA DO INSTITUTO DOS ADVOGADOS DE SÃO PAULO v. 35, JANEIRO - JUNHO 2015 30 estrutura do Órgão, ii) foi constituído pelo Ministro da Fazenda um Grupo de Trabalho para apresentar uma nova proposta de regimento; e iii) foi elaborado um Código de Ética no CARF. A proposta de Regimento foi apresentada à sociedade em 24 de abril e tal proposta foi colocada para Consulta Pública que se encerrou no dia 11 de maio. Observe-se, desde logo, que na citada Proposta de Regimento, não houve mudanças significativas que trouxessem novo impedimento ou qualquer hipótese remota de incompatibilidade do Conselheiro representante dos contribuintes com a advocacia. Em 30 de abril, em pleno curso do procedimento de consulta pública à proposta do Regimento do CARF, foi publicado o Decreto 8.441/2015 que tem o seguinte conteúdo: DECRETO Nº 8.441, DE 29 DE ABRIL DE 2015 Dispõe sobre as restrições ao exercício de atividades profissionais aplicáveis aos representantes dos contribuintes no Conselho Administrativo de Recursos Fiscais e a gratificação de presença de que trata a Lei nº 5.708, de 4 de outubro de 1971. A PRESIDENTA DA REPÚBLICA, no uso da atribuição que lhe confere o art. 84, caput, inciso IV, da Constituição, e tendo em vista o disposto no art. 1º da Lei nº 5.708, de 4 de outubro de 1971, art. 6º, parágrafo único, alínea “a”, do Decreto-Lei nº 1.437, de 17 de dezembro de 1975, art. 48 da Lei nº 11.941, de 27 de maio de 2009, e art. 10 da Lei nº 12.813, de 16 de maio de 2013, DECRETA: Art. 1º O Conselho Administrativo de Recursos Fiscais - CARF, órgão colegiado judicante, integrante da estrutura do Ministério da Fazenda, é constituído, paritariamente, por representantes da Fazenda Nacional e dos contribuintes, na forma da legislação. § 1º Os conselheiros representantes dos contribuintes no CARF estão sujeitos às restrições ao exercício de atividades profissionais em conformidade com a legislação e demais normas dos conselhos profissionais a que estejam submetidos, observado, em qualquer caso, o disposto no art. 10 da Lei nº 12.813, de 16 de maio de 2013. § 2º As restrições a que se refere o § 1º incluem a vedação ao exercício da PARECERES E CONTRIBUIÇÕES DO IASP OPINIÃO LEGAL DECRETO 8.441/2015 31 advocacia contra a Fazenda Pública federal, nos termos da Lei nº 8.906, de 4 de julho de 1994. § 3º O conselheiro, sem prejuízo de outras exigências legais e regulamentares, firmará compromisso de que observará durante todo o mandato as restrições a que se refere este Decreto, ficando sujeito às sanções previstas na legislação. Art. 2º A gratificação de presença estabelecida pela Lei nº 5.708, de 4 de outubro de 1971, devida exclusivamente aos conselheiros representantes dos contribuintes no CARF, corresponderá à sexta parte da remuneração do cargo em comissão do Grupo-Direção e Assessoramento Superiores - DAS nível 5, conforme estabelecido na Lei nº 11.526, de 4 de outubro de 2007, por sessão de julgamento. § 1º Serão remuneradas pela gratificação de presença de que trata o caput até, no máximo, seis sessões de julgamento por mês. § 2º Para a caracterização da presença de que trata o caput, deverá ser comprovada a participação efetiva na sessão de julgamento, na forma estabelecida em ato do Ministro de Estado da Fazenda. Art. 3º O pagamento da gratificação de presença de que trata o art. 2º fica condicionado à existência de dotação orçamentária e autorização específica na Lei Orçamentária Anual. Art. 4º O Ministro de Estado da Fazenda expedirá normas complementares para o cumprimento do disposto neste Decreto. Art. 5º Este Decreto entre em vigor na data de sua publicação. Brasília, 29 de abril de 2015; 194º da Independência e 127º da República. DILMA ROUSSEFF Joaquim Vieira Ferreira Levy Nelson Barbosa A mera leitura do Decreto já faz o intérprete verificar que ele colide com a Proposta de Regimento, uma vez que traz impedimentos maiores ao previsto naquele ato. Ademais, resta indubitável que a pretensão deste ato regulador é de afastar do CARF o advogado militante na área tributária federal, desconstituindo, desta forma, como será melhor explicitado nos próximos itens, a paridade necessária ao referido Tribunal, pelo formato nele proposto. REVISTA DO INSTITUTO DOS ADVOGADOS DE SÃO PAULO v. 35, JANEIRO - JUNHO 2015 32 A. Breves considerações sobre o histórico do CARF. Para a análise da questão aqui proposta merece que seja feito um rápido histórico da existência do então Conselho de Contribuintes do Ministério da Fazenda até o atual CARF. A criação do Conselho de Contribuintes surgiu com o Decreto nº 16.580 de 04 de setembro de 1924 que criou um Conselho de Contribuintes em cada Estado e no Distrito Federal, com competência para julgamento de recursos referentes ao Imposto sobre a Renda, cujos cinco membros seriam escolhidos entre contribuintes do comércio, indústria, profissões liberais e funcionários públicos, todos de reconhecida idoneidade e nomeados pelo Ministro da Fazenda. O Conselho de Contribuintes do Imposto de Renda no Distrito Federal, foi o único a ser instalado, iniciou seu funcionamento em 14 de setembro de 1925. Ou seja, há quase 90 anos existe um órgão do Ministério da Fazenda que tem por objeto julgar processos administrativos fiscais em segunda instância. Este órgão SEMPRE foi composto por membros oriundos do serviço público e por membros indicados pela sociedade civil. Com as alterações sofridas ao longo do tempo, em especial a alteração da sua estrutura que ocorreu em 2009, passando a ser o atual CARF, não foi alterado o sistema paritário para a sua composição. A Lei 11.941/2009, em seu artigo 48 indica o CARF como órgão paritário. E, este dado é importante, porque mesmo com o advento da Constituição Federal de 1988 e com a promulgação do Estatuto da Advocacia por meio da Lei 8.906 de 1994, não houve qualquer óbice para que advogados militantes pudessem atuar como Conselheiros do Tribunal, possibilitando, desta forma, que o órgão permanecesse paritário e tivesse sua paridade confirmada pela citada Lei 11.941/2009 que neste item não sofreu qualquer questionamento por instituições públicas ou privadas. Em todos estes anos nunca houve a preocupação de Ministério Público ou outro órgão “fiscalizador” da Lei e da Constituição em questionar tal modelo. Assim ou o modelo funcionou bem até agora e, com a mudança dos tempos não se presta mais a realizar os relevantes serviços, ou tais Instituições deixaram, em todos estes anos de realizar o seu mister. Ao longo destes quase 90 anos, os Conselhos de Contribuintes e o atual CARF julgaram PARECERES E CONTRIBUIÇÕES DO IASP OPINIÃO LEGAL DECRETO 8.441/2015 33 milhares de processos, sendo que a jurisprudência deste Tribunal foi e é referência tanto para interpretação, pelos contribuintes, da complexa legislação tributária como para o próprio Poder Judiciário, que muitas vezes, em suas decisões, considerou o quanto vinha sendo decidido pelo Tribunal. Deve ser lembrado que são realizados inúmeros Seminários, Congressos, Cursos a partir dos julgamentos do CARF, dada a sua importância no cenário jurídico nacional. Ainda, há que se notar, que o Tribunal conta com 107 Súmulas que são de observância obrigatória pelos membros do CARF e dentre elas há Súmulas Vinculantes que, como o próprio nome diz, vinculam toda a administração tributária. Assim, este órgão julgador, decerto, tem trabalhado com técnica, pois, caso contrário não seria possível uma produção acadêmica, doutrinária, jurisprudencial e normativa como a que ocorreu no decorrer deste percurso. Estes rápidos dados vêm demonstrar que o Tribunal vem cumprindo o seu papel e, se há problemas que a Operação Zelotes veio verificar, estes são problemas pontuais que jamais podem macular todo o histórico do Tribunal, e mais ainda, não pode fazer transparecer que tais problemas surjam em razão da composição paritária do Órgão com ênfase para a representação dos contribuintes. Neste sentido cito a notícia veiculada pela “Folha” em 08/05/20151 em que informa que o Ministério Público Federal tem por objetivo acabar com a representação dos contribuintes no CARF. Anote-se, para ilustração, parte da notícia, em que grifei os trechos que julguei mais relevantes: A principal proposta dos procuradores é acabar com o atual formato de composição do conselho, paritário, em que indicados dos contribuintes têm o mesmo poder de voto que os representantes da Fazenda Nacional –auditores da Receita Federal. O modelo de funcionamento e composição do Carf é único no mundo se comparado a outros tribunais de recursos fiscais. Algo está errado. “Sempre que há uma crise como essa do Carf, abre-se uma janela de oportunidade 1. http;//www1.folha.uol.com.br/colunas/leonardosouza/2015/05/1626206-mpf-pede-a-fazenda-fim-daparidade-no-carf.shtml 34 REVISTA DO INSTITUTO DOS ADVOGADOS DE SÃO PAULO v. 35, JANEIRO - JUNHO 2015 para melhorar e fortalecer a instituição pública. A figura do conselheiro privado no Carf é a porta de entrada para a corrupção”, disse à coluna o procurador José Alfredo de Paula Silva, um dos integrantes da força-tarefa do MPF, coordenada por Frederico Paiva e integrada também por Raquel Branquinho e Rodrigo Leite Prado. É de se lamentar que a notícia denota que os Dignos Membros do Ministério Público Federal atribuam aos advogados a conduta que leva às práticas criminosas no órgão, indicando que estes Conselheiros agem com total irresponsabilidade com a nação e com o Estado de Direito. A partir do lamentável noticiado pode-se concluir que os representantes da Fazenda sempre são honestos e julgam de acordo com a lei e os representantes dos contribuintes – em sua maioria advogados – julgam sempre de acordo com os seus interesses ou interesses dos seus clientes. Novamente a classe dos advogados é aviltada de forma desonrosa, para o que, desde já, entendo que caberia as devidas providências pela Ordem dos Advogados do Brasil para apurar a responsabilidade dos subscritores da notícia. Como subscritora desta Opinião Legal entendo que é o momento de se repensar a estrutura de julgamento de segunda instância, mas dentro de um conjunto de ações. O problema tributário surge com a legislação complexa, com o dever único ao contribuinte, no primeiro momento, de interpretar a legislação e se sujeitar a pesadas multas se ocorrer erros nesta interpretação. O sistema leva a autuações relevantes, em muitos casos, realizadas a partir da interpretação de um Agente Fiscal ou de um Grupo de Agentes que podem determinar o fechamento de uma pessoa jurídica, a insolvência de uma pessoa física. Este sistema como um todo – da complexidade da legislação, das autuações em massa, dentre outros – leva a uma realidade de mais de 100 mil processos aguardando julgamento no Tribunal Administrativo (CARF), pois deve ser considerado que mesmo em casos em que há julgamento definitivo no âmbito do Superior Tribunal de Justiça ou no Supremo Tribunal Federal – o Fisco continua autuando, pois há imensa demora até que seja expedida ordem que determine que o assunto não seja mais objeto de autuação, gerando um imenso contencioso. Ou seja, há que se pensar e rever o todo e não apenas um órgão, e especialmente, no que tange à parte de sua composição: a parte que é indicada pela sociedade. PARECERES E CONTRIBUIÇÕES DO IASP OPINIÃO LEGAL DECRETO 8.441/2015 35 Se for para rever o órgão para alterar o sistema paritário, que isto seja feito e realizado de forma a obedecer o regime democrático e republicano e não na forma pretendida pelo ilegal e inconstitucional Decreto 8.441/2015 em que a representação fazendária continua com todo o seu poder e sem qualquer alteração, isto é, podendo a Fazenda estar representada por qualquer um de seus membros, desde que cumpridos os requisitos; e, de outro turno, para os representantes dos contribuintes, as regras impostas são tão seletivas que poucos poderão se inscrever, trazendo enorme prejuízo a toda a sociedade. A. A importância da paridade nos órgãos administrativos de julgamento A paridade, isto é, o fato de existir, num órgão de julgamento colegiado, membros julgadores oriundos de duas classes diversas, com igualdade de formação, igualdade de prerrogativas e obrigações gera a paridade e daí a imparcialidade. Normalmente o sistema paritário promove um julgamento imparcial, pois a parcialidade de cada classe de julgadores é neutralizada pela paridade entre as duas classes. Os critérios de desempate nos julgamentos são previamente estabelecidos nos regimentos próprios dos órgãos. Paridade significa igualdade de condições para uma disputa. Igualdade de capacidade. A paridade nos órgãos administrativos de julgamento foi a solução encontrada no sistema brasileiro para produzir um julgamento, imparcial em instância administrativa, dentro do próprio órgão que produz o lançamento tributário (Ministério da Fazenda, Secretaria de Fazenda). A obrigatoriedade do CARF ser um órgão colegiado paritário está expressamente prevista no artigo 48 da Lei 11.941/2009. A partir dos próximos itens, parece-me indubitável que a regra da paridade foi quebrada com o advento do Decreto 8.441/2015, de tal modo que se não existe mais a paridade, porque uma das classes sofreu restrições, o sistema não pode mais permanecer na forma proposta, sendo necessário rever o modelo. A. O Decreto 8.441/2015 como decreto regulamentador e não como decreto autônomo Neste item, dada a natureza desta Opinião, não será possível fazer digressões acadêmicas sobre a natureza dos decretos do Poder Executivo. REVISTA DO INSTITUTO DOS ADVOGADOS DE SÃO PAULO v. 35, JANEIRO - JUNHO 2015 36 Para este trabalho vou mencionar os dois tipos de decreto. De acordo com o previsto nos incisos IV e VI do artigo 84 da Constituição Federal: o decreto regulamentador da lei, previsto no inciso IV e o denominado decreto “autônomo” previsto no inciso VI do artigo 84. Art. 84. Compete privativamente ao Presidente da República: IV - sancionar, promulgar e fazer publicar as leis, bem como expedir decretos e regulamentos para sua fiel execução; VI - dispor, mediante decreto, sobre: a) organização e funcionamento da administração federal, quando não implicar aumento de despesa nem criação ou extinção de órgãos públicos; b) extinção de funções ou cargos públicos, quando vagos; O decreto regulamentador está adstrito aos termos da lei. Como determina o comando constitucional é um decreto para possibilitar a fiel execução da lei. O Decreto 8.441/2015, em seu preâmbulo, indica que é um decreto regulamentador. Porém a primeira questão que surge é: qual lei o decreto vem regulamentar? O preâmbulo indica o seguinte: A PRESIDENTA DA REPÚBLICA, no uso da atribuição que lhe confere o art. 84, caput, inciso IV, da Constituição, e tendo em vista o disposto no art. 1º da Lei nº 5.708, de 4 de outubro de 1971, art. 6º, parágrafo único, alínea “a”, do Decreto-Lei nº 1.437, de 17 de dezembro de 1975, art. 48 da Lei nº 11.941, de 27 de maio de 2009, e art. 10 da Lei nº 12.813, de 16 de maio de 2013, DECRETA: ... A primeira Lei citada é a 5.708/1971 que em seu artigo 1º. dispõe: Art 1º Os órgãos de deliberação coletiva da administração federal direta e autárquica serão classificados de acôrdo com o princípio de hierarquia e tendo em vista a importância, o vulto e a complexidade das respectivas atribuições e responsabilidades. Parágrafo único. A classificação dos órgãos referidos neste artigo, inclusive os já regulados por disposições especiais, será proposta pelo Órgão PARECERES E CONTRIBUIÇÕES DO IASP OPINIÃO LEGAL DECRETO 8.441/2015 37 Central do Sistema de Pessoal e aprovada por decreto, que fixará o valor da gratificação de presença e estabelecerá o máximo de sessões mensais remuneradas. O artigo 6º, parágrafo único, “a” do Decreto-lei 1.437/1975 prevê que: Art 6º Fica instituído, no Ministério da Fazenda, o Fundo Especial de Desenvolvimento e Aperfeiçoamento das Atividades de Fiscalização - FUNDAF, destinado a fornecer recursos para financiar o reaparelhamento e reequipamento da Secretaria da Receita Federal, a atender aos demais encargos específicos inerentes ao desenvolvimento e aperfeiçoamento das atividades de fiscalização dos tributos federais e, especialmente, a intensificar a repressão às infrações relativas a mercadorias estrangeiras e a outras modalidades de fraude fiscal ou cambial, inclusive mediante a instituição de sistemas especiais de controle do valor externo de mercadorias e de exames laboratoriais. (Vide Decreto-lei nº 2.280, de 1985) Parágrafo único. O FUNDAF destinar-se-á, também, a fornecer recursos para custear: (Incluído pela lei nº 9.532, de 1997) A. o funcionamento dos Conselhos de Contribuintes e da Câmara Superior de Recursos Fiscais do Ministério da Fazenda, inclusive o pagamento de despesas com diárias e passagens referentes aos deslocamentos de Conselheiros e da gratificação de presença de que trata o parágrafo único do art. 1º da Lei nº 5.708, de 4 de outubro de 1971; (Incluída pela lei nº 9.532, de 1997) O artigo 48 da Lei 11.941/2009 dispõe que: Art. 48. O Primeiro, o Segundo e o Terceiro Conselhos de Contribuintes do Ministério da Fazenda, bem como a Câmara Superior de Recursos Fiscais, ficam unificados em um órgão, denominado Conselho Administrativo de Recursos Fiscais, colegiado, paritário, integrante da estrutura do Ministério da Fazenda, com competência para julgar recursos de ofício e voluntários de decisão de primeira instância, bem como recursos especiais, sobre a aplicação da legislação referente a tributos administrados pela Secretaria da Receita Federal do Brasil. Parágrafo único. São prerrogativas do Conselheiro integrante do Conselho Administrativo de Recursos Fiscais - CARF: (Incluído pela Lei nº 12.833, de 2013) 38 REVISTA DO INSTITUTO DOS ADVOGADOS DE SÃO PAULO v. 35, JANEIRO - JUNHO 2015 I - somente ser responsabilizado civilmente, em processo judicial ou administrativo, em razão de decisões proferidas em julgamento de processo no âmbito do CARF, quando proceder comprovadamente com dolo ou fraude no exercício de suas funções; e (Incluído pela Lei nº 12.833, de 2013) E, finalmente o artigo 10 da Lei 12.813/2013 que dispõe sobre o conflito de interesses no exercício de cargo ou emprego do Poder Executivo federal e impedimentos posteriores ao exercício do cargo ou emprego prevê que: Art. 10. As disposições contidas nos arts. 4o e 5o e no inciso I do art. 6o estendemse a todos os agentes públicos no âmbito do Poder Executivo federal. Ora, verificadas as legislações citadas pelo Decreto, a única regulamentação possível é a prevista no artigo 1º. da Lei 5.708/1971, ou seja, tal decreto apenas poderia instituir a gratificação de presença para os Conselheiros que integram o CARF. Isto é, de acordo com a Lei 5.708/71 e o Decreto 1437/75, o Decreto somente poderia indicar qual o valor da gratificação de presença. Ou seja, jamais poderia estabelecer remuneração por serviços ou criar qualquer tipo de vínculo. Deste modo a única interpretação possível é que este Decreto, por seu artigo 2º. criou uma gratificação de presença. Porém, o artigo 1º. do citado Decreto em nada se relaciona, para fins de regulamentação, à Lei 5.708/71 ou ao Decreto 1.437 ou à Lei 11.941/2009 ou à Lei 12.813/2013. Observe-se que o artigo 1º do Decreto é todo dedicado a restringir a atuação dos Conselheiros dos Contribuintes criando-lhes e impondo-lhes situações de impedimentos e/ou de incompatibilidade que não estão presentes na Lei ou legislação instituidora do Tribunal. Por outro lado, também não há que se falar de, nesta parte, ter natureza de decreto autônomo, pois não estão preenchidos os requisitos previstos no inciso VI do artigo 84 da CF anteriormente citado. Portanto, o artigo 1º. do Decreto é manifestamente inconstitucional (inconstitucionalidade indireta) porque extrapolou todos os limites da lei ou das leis que pretendeu regulamentar. A. O Decreto 8.441/2015, naquilo que procurou regulamentar, extrapolou PARECERES E CONTRIBUIÇÕES DO IASP OPINIÃO LEGAL DECRETO 8.441/2015 39 os limites da lei e daí, por consequência, é ilegal. O Decreto ao trazer aos Conselheiros dos Contribuintes as limitações previstas na Lei 12.813/2013 extrapolou a sua competência, além de gerar desigualdade entre Conselheiro dos Contribuintes e Conselheiros Fazendários. Se por um lado para o artigo 1º resta certo que há a inconstitucionalidade indireta, porque extrapolou os seus limites porque não está fundamentado em nenhuma lei, importante verificar que a análise conjunta do artigo 1º com o artigo 2º, artigo este que, em tese, poderia ser objeto da regulamentação, indica, para este artigo 2º uma ilegalidade. Neste item a ilegalidade, apesar de sutil, está presente. Ao trazer para o valor da gratificação por presença uma relação com o valor recebido por um funcionário público do Ministério da Fazenda comissionado com um DAS nível 5, o Decreto mais do que indicar o valor da gratificação de presença, pretendeu trazer para o Conselheiro do Contribuinte todas as consequências de poder vir a ser equiparado a este servidor. Deste modo, além de no parágrafo primeiro trazer aos Conselheiros do Contribuinte as restrições impostas pela Lei 12.813/2013 – o que não existe para os Conselheiros Fazendários – para que por outra vertente também houvesse tal vinculação, o parâmetro do valor a ser pago a título de “gratificação de presença” foi baseado na remuneração de comissionamento de um funcionário público DAS nível 52, no intuito de por dois aspectos diversos trazer limitações ao exercício da advocacia pelo Conselheiro do Contribuinte, de forma manifestamente inconstitucional e ilegal. Para tanto é preciso verificar o teor da Lei 12.813/2013 que trata sobre conflito de interesses envolvendo ocupantes de cargo ou emprego no âmbito do Poder Executivo Federal. Os artigos 1º e 2º da citada Lei expressam os destinatários da Lei: Art. 1o As situações que configuram conflito de interesses envolvendo ocupantes 2. Art. 2º A gratificação de presença estabelecida pela Lei nº 5.708, de 4 de outubro de 1971, devida exclusivamente aos conselheiros representantes dos contribuintes no CARF, corresponderá à sexta parte da remuneração do cargo em comissão do Grupo-Direção e Assessoramento Superiores - DAS nível 5, conforme estabelecido na Lei nº 11.526, de 4 de outubro de 2007, por sessão de julgamento. REVISTA DO INSTITUTO DOS ADVOGADOS DE SÃO PAULO v. 35, JANEIRO - JUNHO 2015 40 de cargo ou emprego no âmbito do Poder Executivo federal, os requisitos e restrições a ocupantes de cargo ou emprego que tenham acesso a informações privilegiadas, os impedimentos posteriores ao exercício do cargo ou emprego e as competências para fiscalização, avaliação e prevenção de conflitos de interesses regulam-se pelo disposto nesta Lei. Art. 2o Submetem-se ao regime desta Lei os ocupantes dos seguintes cargos e empregos: I - de ministro de Estado; II - de natureza especial ou equivalentes; III - de presidente, vice-presidente e diretor, ou equivalentes, de autarquias, fundações públicas, empresas públicas ou sociedades de economia mista; e IV - do Grupo-Direção e Assessoramento Superiores - DAS, níveis 6 e 5 ou equivalentes. Parágrafo único. Além dos agentes públicos mencionados nos incisos I a IV, sujeitam-se ao disposto nesta Lei os ocupantes de cargos ou empregos cujo exercício proporcione acesso a informação privilegiada capaz de trazer vantagem econômica ou financeira para o agente público ou para terceiro, conforme definido em regulamento. Assim, não há dúvidas de que o Decreto, tanto por seu artigo 1º como pelo 2º, busca levar as citadas restrições aos Conselheiros dos Contribuintes. Ora, o parágrafo primeiro do artigo 1º, traz expressa referência ao artigo 10 da Lei 12.813/13 que por sua vez, remete os agentes para as restrições impostas pelos artigos 4º, 5º e 6º, inciso I3, restrições, estas que, em verdade, vão impedir que Conselheiros 3. Art. 4o O ocupante de cargo ou emprego no Poder Executivo federal deve agir de modo a prevenir ou a impedir possível conflito de interesses e a resguardar informação privilegiada. § 1o No caso de dúvida sobre como prevenir ou impedir situações que configurem conflito de interesses, o agente público deverá consultar a Comissão de Ética Pública, criada no âmbito do Poder Executivo federal, ou a Controladoria-Geral da União, conforme o disposto no parágrafo único do art. 8o desta Lei. § 2o A ocorrência de conflito de interesses independe da existência de lesão ao patrimônio público, bem como do recebimento de qualquer vantagem ou ganho pelo agente público ou por terceiro. Art. 5o Configura conflito de interesses no exercício de cargo ou emprego no âmbito do Poder Executivo federal: PARECERES E CONTRIBUIÇÕES DO IASP OPINIÃO LEGAL DECRETO 8.441/2015 41 advoguem, pois, de acordo com o inciso II do artigo 5º, não poderão receber honorários de qualquer pessoa física ou jurídica que tenha processo em trâmite no CARF. Porém, a grande maioria dos Conselheiros dos Contribuintes ou é funcionário de sociedades empresárias que ou tem processos administrativos fiscais, ou correm o risco de ter; ou advogam na área tributária, e, por consequência, receberão honorários por si ou pelo escritório que pertencem, de pessoas físicas ou jurídicas que já possuem ou podem vir a ter processos em trâmite no CARF. A chance da ocorrência do conflito de interesses nos moldes previstos no inciso II do artigo 5º da Lei 12.813/2013 é quase total. Por sua vez, o artigo 2º do Decreto 8.441/2015 faz referência, ao tratar do valor da gratificação por presença, à remuneração do cargo de comissão de DAS 5. Os funcionários com este cargo em comissão se submetem às rígidas restrições previstas pela Lei 12.813/2013. Veja-se que determinando o valor da gratificação de presença de acordo com a I - divulgar ou fazer uso de informação privilegiada, em proveito próprio ou de terceiro, obtida em razão das atividades exercidas; II - exercer atividade que implique a prestação de serviços ou a manutenção de relação de negócio com pessoa física ou jurídica que tenha interesse em decisão do agente público ou de colegiado do qual este participe; III - exercer, direta ou indiretamente, atividade que em razão da sua natureza seja incompatível com as atribuições do cargo ou emprego, considerando-se como tal, inclusive, a atividade desenvolvida em áreas ou matérias correlatas; IV - atuar, ainda que informalmente, como procurador, consultor, assessor ou intermediário de interesses privados nos órgãos ou entidades da administração pública direta ou indireta de qualquer dos Poderes da União, dos Estados, do Distrito Federal e dos Municípios; V - praticar ato em benefício de interesse de pessoa jurídica de que participe o agente público, seu cônjuge, companheiro ou parentes, consanguíneos ou afins, em linha reta ou colateral, até o terceiro grau, e que possa ser por ele beneficiada ou influir em seus atos de gestão; VI - receber presente de quem tenha interesse em decisão do agente público ou de colegiado do qual este participe fora dos limites e condições estabelecidos em regulamento; e VII - prestar serviços, ainda que eventuais, a empresa cuja atividade seja controlada, fiscalizada ou regulada pelo ente ao qual o agente público está vinculado. Parágrafo único. As situações que configuram conflito de interesses estabelecidas neste artigo aplicam-se aos ocupantes dos cargos ou empregos mencionados no art. 2o ainda que em gozo de licença ou em período de afastamento. Art. 6o Configura conflito de interesses após o exercício de cargo ou emprego no âmbito do Poder Executivo federal: I - a qualquer tempo, divulgar ou fazer uso de informação privilegiada obtida em razão das atividades exercidas; 42 REVISTA DO INSTITUTO DOS ADVOGADOS DE SÃO PAULO v. 35, JANEIRO - JUNHO 2015 remuneração de um DAS 5, consoante o meu entendimento, o Decreto acaba por criar uma situação de desigualdade entre os Conselheiros dos Contribuintes e os Conselheiros Fazendários, pois estes últimos não estarão sujeitos às restrições da Lei 12.813, porque exceção ao Presidente do CARF e aos Presidentes de Seção, nenhum outro Conselheiro faz jus ao DAS 5. Por outro lado, o Conselheiro do Contribuinte não goza das prerrogativas do Conselheiro da Fazenda que é um servidor público concursado, inclusive com remuneração de alto valor, muito superior à gratificação de presença indicada pelo Decreto, mas estará sujeito a regras restritivas muito mais abrangentes. Assim, de um lado o Conselheiro do Contribuinte estará submetido a restrições que praticamente o inviabilizam de qualquer outro trabalho que não seja o de Julgador, pois até mesmo o magistério poderá ser questionado, pelos termos da Lei 12.813, especialmente artigo 5º, inciso II, se a instituição que o Conselheiro ministrar aulas tiver qualquer processo perante o CARF, enquanto que o Conselheiro Fazendário, além de ser efetivamente remunerado por salário de vulto, não sofrerá restrições da citada Lei. Portanto, a única conclusão possível é que mesmo no que tange ao artigo 2º o Decreto 8.441/2015 é ilegal, porque mal regulamentou a Lei 5.708/71, pois não disciplinou apenas o valor da gratificação de presença, além disso, ao relacionar o valor da remuneração ao cargo de comissionamento DAS nível 05 pretendeu afirmar aos Conselheiros dos Contribuintes a condição de agente público sujeito às restrições da Lei 12.813/2013, e desta forma, extrapolou do âmbito do poder regulamentador da citada Lei 5.708/71. A. O Decreto 8.441/2015 trouxe disparidades entre os julgadores oriundos da representação fiscal e da representação dos contribuintes, o que gera a sua inconstitucionalidade, ainda que indireta. Muitos doutrinadores asseguram que o grande princípio da Constituição Federal de 1988 é o da igualdade, com o que concordo, em vista da preocupação do Constituinte em diversas passagens do Texto Constitucional afirmar e reafirmar tal princípio. Por outro lado, a dificuldade está em constatar, em muitos casos, se tal princípio está sendo respeitado, pois a igualdade tem que ser verificada entre situações ou pessoas sempre numa relação, de tal modo, que a situação ou a pessoa é igual ou desigual em relação a outra situação ou a outra pessoa. Precisa ser verificada a situação PARECERES E CONTRIBUIÇÕES DO IASP OPINIÃO LEGAL DECRETO 8.441/2015 43 discriminadora, se ela tem ou não respaldo.4 Neste prisma é preciso ser analisado se o Decreto 8.441/2015 ao se referir, expressamente, como consta de seu preâmbulo, apenas aos representantes dos contribuintes5 se não feriu a igualdade, visto que não há uma situação diferenciadora que permita a regra da desigualdade. Não tenho dúvidas de que o princípio da igualdade foi ferido pelo Decreto 8.441/2015. Tivesse o Decreto simplesmente indicado o valor da gratificação de presença teria cumprido o seu papel regulamentador. Porém, ao estabelecer as restrições aos serviços profissionais, além de ter extrapolado os limites de decreto regulamentador como foi demonstrado, trouxe restrições específicas aos Conselheiros representantes dos contribuintes que ou teriam que ter sido aplicadas também aos Conselheiros representantes da Fazenda Pública ou não poderiam ter sido aplicadas. Neste item refiro-me, especialmente (mas não só), às restrições trazidas pelo parágrafo 1º do artigo 1º. Alguns podem colocar que os Conselheiros representantes da Fazenda não exercem atividades profissionais, pois possuem dedicação exclusiva ao serviço público e, por este motivo, seria inócua tal restrição. Sem sentido este argumento, pois a Lei 12.813 é dirigida, especialmente, aos funcionários públicos em cargos da alta gestão. Mas, ainda para argumentar este primeiro possível argumento aqui indico exemplos. O primeiro já indicado sobre o magistério. Numa interpretação rasa do inciso II, do artigo 5º da Lei 12.813/2013, os Conselheiros representantes dos contribuintes só poderão exercer o magistério para as instituições que não tenham processos no CARF, enquanto que os Conselheiros representantes da Fazenda não terão esta restrição. Todos os que militam no CARF sabem que muitas instituições educacionais possuem processos no CARF, especialmente em razão das diversas discussões acerca das normas de imunidade, isenção e outras aplicáveis às instituições educacionais. 4. Neste sentido é o preciso ensinamento do Prof. Celso Antonio Bandeira de Melo, em seu livro O Conteúdo Jurídico do Princípio da Igualdade. 5. Dispõe sobre as restrições ao exercício de atividades profissionais aplicáveis aos representantes dos contribuintes no Conselho Administrativo de Recursos Fiscais e a gratificação de presença de que trata a Lei nº 5.708, de 4 de outubro de 1971 REVISTA DO INSTITUTO DOS ADVOGADOS DE SÃO PAULO v. 35, JANEIRO - JUNHO 2015 44 Outra situação, por exemplo, os funcionários públicos podem ser sócios de pessoas jurídicas, apenas não podem ter o cargo de administrador. Pois bem, se um Conselheiro representante dos contribuintes, por qualquer motivo for sócio de uma sociedade empresária que tiver um processo administrativo fiscal estará configurado o conflito de interesses e o mesmo não ocorrerá para o Conselheiro representante da Fazenda. E, outra hipótese que traz uma situação esdrúxula: o advogado que mantém uma relação de emprego com determinada sociedade empresária terá o conflito de interesse configurado se esta sociedade tiver um processo administrativo fiscal em trâmite no CARF, enquanto que o Conselheiro representante da Fazenda, como o próprio nome diz, é representante da Fazenda, é funcionário público, a sua remuneração depende da Fazenda, e neste caso, não se cogita conflito de interesses, mesmo sendo a Fazenda uma das partes do processo administrativo. Porém, para além destes exemplos, infelizmente, quer me parecer que este Decreto fez uma odiosa discriminação. Numa possível interpretação do Decreto, os Conselheiros representantes da Fazenda sempre estão acima de qualquer suspeita, sempre votam de acordo com a lei e com as suas convicções, são profissionais altamente gabaritados e não necessitam de qualquer restrição ou de regras severas. Já os Conselheiros dos Contribuintes, em sua maioria, advogados, sempre são suspeitos, porque sempre votam de acordo com o interesse de seus clientes; como não votam em consonância com a melhor interpretação da lei precisam se submeter a regras tão rígidas que praticamente os impede de advogar. Odiosa discriminação. Discriminação que precisa ser extirpada do sistema positivo. Discriminação que coloca sobre a nobre classe dos advogados a origem dos problemas relativos à corrupção no órgão. Paridade é paridade. Há necessidade de classes “parciais”, com as mesmas “armas” em cada um dos lados para possibilitar um resultado neutro. Nesta paridade, a possível “parcialidade” faz parte da regra, tanto que o órgão é do Ministério da Fazenda, a Fazenda é parte no processo, e metade dos integrantes do órgão é oriunda da Fazenda. O que não é possível é admitir que o Decreto institua que uma classe possa ser parcial porque a sua parcialidade está acima de qualquer suspeita e presumir que a PARECERES E CONTRIBUIÇÕES DO IASP OPINIÃO LEGAL DECRETO 8.441/2015 45 outra classe, por não ser oriunda das fileiras do serviço público, tem uma parcialidade obtusa e corrupta e por isso, imprestável, para formar o Tribunal. A inconstitucionalidade pela afronta direta ao princípio da igualdade é latente e precisa ser afastada pelas instituições da sociedade civil comprometidas com o ideal democrático e republicano. A. O Decreto 8.441/2015 e a sua referência à Lei 8.906/1994. Decreto regulamentador e os limites da lei que regula. Extrapolação dos limites. Ilegalidade. O Decreto 8.441/2015 extrapolou nos limites da legalidade ao fazer referência à Lei 8.906/1994. Ora, aqui demonstrei que o Decreto não encontra fundamento legal para trazer restrições ao exercício das atividades profissionais dos Conselheiros representantes dos contribuintes. E, por este mesmo motivo, não há fundamento legal para o Decreto fazer referência à Lei 8.906/1994. Como irei detalhar no próximo item se, em consonância com a interpretação autêntica feita pelo Supremo Tribunal Federal, sequer o advogado que tem assento nos Tribunais Eleitorais tem vedação ao exercício da advocacia, como um Decreto que sequer possui fundamento legal para tratar de restrição à atividade profissional pode pretender disciplinar a Lei 8.906/1994? É óbvio que qualquer referência feita pelo Decreto 8.441/2015 à Lei 8.906/1994 tem que ser considerada ilegal, pois este instrumento – o Decreto – não é o veículo apropriado para tal fim. Ainda que possa ser interpretado como razoável o impedimento do Conselheiro representante dos contribuintes em advogar contra a Fazenda Pública Federal, há que se concluir que o Decreto 8.441/2015 não é o veículo normativo pertinente para trazer tal impedimento. Este impedimento somente pode surgir da lei ou da interpretação da Lei 8.906/1994, por quem de direito, neste caso a própria entidade – Ordem dos Advogados do Brasil – ou o Poder Judiciário. Assim, evidente a ilegalidade do parágrafo 2º do artigo 1º do Decreto 8.441/2015. 46 REVISTA DO INSTITUTO DOS ADVOGADOS DE SÃO PAULO v. 35, JANEIRO - JUNHO 2015 A. Impedimento e Incompatibilidade para advocacia por advogados que compõem órgão julgador. Precedente do Supremo Tribunal Federal que impõe diretrizes de interpretação. Impedimento parcial do advogado e não da sociedade para advogar. Impedimento pessoal do advogado para advogar em causas que tramitam no Órgão a que pertence o Tribunal do qual faz parte. Para iniciar este item que tem uma importância ímpar nos questionamentos que me propus responder, proponho que a resposta seja elaborada a partir da interpretação feita pelo Supremo Tribunal Federal quando julgou a constitucionalidade do artigo 28, II do Estatuto da OAB. E esta proposta vem em função da similaridade da situação colocada para julgamento pela Excelsa Corte. A Associação dos Magistrados Brasileiros propôs uma Ação Direta de Inconstitucionalidade – ADI 1127-8 DF em face de diversos dispositivos da Lei 8.906/1994, dentre eles, o artigo 28, II, que assim determina: Art. 28. A advocacia é incompatível, mesmo em causa própria, com as seguintes atividades: II - membros de órgãos do Poder Judiciário, do Ministério Público, dos tribunais e conselhos de contas, dos juizados especiais, da justiça de paz, juízes classistas, bem como de todos os que exerçam função de julgamento em órgãos de deliberação coletiva da administração pública direta e indireta; Para a referida Ação o questionamento pairava no fato de que tal dispositivo se chocava com o previsto no artigo 119, II e 120, I, § 1º, III da Constituição Federal, que tratavam da organização da Justiça Eleitoral, pois no Tribunal Superior Eleitoral e no Tribunal Regional Eleitoral, por disposição constitucional, dentre outros membros, por advogados de notável saber jurídico. A questão que se colocou foi que o artigo 28, II da Lei 8.906/1994 impedia, em razão da incompatibilidade, que tais membros dos Tribunais Regionais Eleitorais e do Tribunal Superior Eleitoral pudessem exercer a advocacia, o que traria um enorme prejuízo à sociedade, pois, dificilmente ou talvez de modo impossível, os Tribunais seriam compostos pelos melhores e mais preparados profissionais da advocacia. O Relator, Saudoso Ministro Paulo Brossard, assim se manifestou (transcreverei os PARECERES E CONTRIBUIÇÕES DO IASP OPINIÃO LEGAL DECRETO 8.441/2015 47 principais trechos, esclarecendo que grifei e sublinhei o que entendi mais importante): Assim, parece-me que a alteração pretendida pela lei de impedir os advogados que compõem, como juristas, o Tribunal Superior Eleitoral, de advogar, ofende diretamente esses artigos da Constituição, gerando proibição oblíqua, mas real e efetiva. Quando estive no Ministério da Justiça, cuidei de fazer com que funcionasse o CADE que estava um tanto esquecido, ocorre que a lei que regulava a composição do seu Conselho estabelecia que os membros tinham os mesmos impedimentos que os magistrados; por conseguinte, era lhes vedado advogar. Acontece que a remuneração dos Conselheiros era simbólica, de modo que escolher pessoas qualificadas para integrar o Conselho do CADE era operação extremamente difícil. Foi grande a dificuldade em conseguir nomes qualificados e só foi possível consegui-los pela circunstância de haver pessoas que se dedicam exclusivamente ao magistério, e por isso, não advogam. Em princípio, a ideia era boa, só que, na prática, gerava uma quase impossibilidade de bem constituir o Conselho. Entendo que no caso não foi feliz o legislador quando teve a ideia de estabelecer esta proibição para os Juízes dos Tribunais Eleitorais – de exercer a advocacia até em causa própria, pelo fato de serem Juízes – advogados. Nunca existiu essa incompatibilidade, e a fórmula está incorporada ao nosso direito; temos uma experiência de sessenta anos, a esse respeito, e não me consta ter havidos, nesses anos, motivo de queixa, de censura, de crítica, á atuação desses juízes; ao contrário, do depoimento de todos que têm servido ou frequentado a Justiça Eleitoral, os juízes saídos da classe dos advogados têm prestado à Justiça Eleitoral os maiores e melhores serviços. Com esta diretriz interpretativa, posso passar a colocar meu posicionamento sobre possível incompatibilidade ou impedimento para o exercício da advocacia por parte dos Conselheiros dos Contribuintes. Importante ter por pressuposto que o Tribunal Administrativo do Ministério da Fazenda, como coloquei no início deste trabalho, foi instituído em 1924 e entrou em funcionamento em 1925, ou seja, funciona há quase 90 anos, como um órgão paritário. No mesmo molde colocado pelo Ministro Paulo Brossard em seu voto, a “fórmula está incorporada ao nosso direito”. Não há como interpretar a participação dos advogados nos Tribunais Administrativos sem enfrentar esta “fórmula”. 48 REVISTA DO INSTITUTO DOS ADVOGADOS DE SÃO PAULO v. 35, JANEIRO - JUNHO 2015 E, a interpretação constitucional para a regra de incompatibilidade para a advocacia prevista no artigo 28, inciso II da Lei 8.906/1994, feita pelo Supremo Tribunal Federal no que tange à participação de advogados em órgãos colegiados de julgamento, considerou a histórica, a “fórmula incorporada ao nosso direito”. E, consoante o meu modesto entendimento, outro não poderia ter sido o caminho trilhado pelos Nobres Ministros. Particularmente, entendo que a própria OAB, por seu Egrégio CFOAB, deveria seguir a diretriz indicada pelo Supremo Tribunal Federal na citada ADI 1.127-DF para interpretar, quando instada a tal, o artigo 28, II da CF. Não é possível interpretar um dispositivo sem colocá-lo no contexto. Assim, a participação de advogados nos Tribunais Administrativos Fiscais como o CARF tem uma história, uma fórmula incorporada ao direito, que é a fórmula da paridade. Este histórico não pode ser desconhecido ao ser interpretada a norma, em especial, o artigo 28,II. Porém, a paridade, como igualdade de armas, igualdade de forças, num Tribunal Administrativo que é formado por um lado por Auditores da Receita Federal, que são profissionais que tem altíssimo conhecimento técnico aliado a treinamentos constantes só pode ser equilibrada se do outro lado também estiver presente uma classe que detenha tal conhecimento. Na esfera do Direito Tributário, com a complexidade que o sistema brasileiro possui, com mais dezenas de tributos federais, somente profissionais com conhecimento técnico, militância na área e contínuo aprendizado poderão formar uma classe que se iguale, em termos de conhecimento e força para ser paritária à classe dos auditores. Ou há igualdade de forças ou o modelo do Tribunal precisa ser revisto, talvez para um modelo em que não seja paritário, e que todos os julgadores sejam concursados, mas não vinculados à Receita Federal. Porém, esta Opinião não versa sobre possíveis modelos, mas sobre o Decreto 8.441/2015. E o Decreto 8.441/2015 pretende criar uma incompatibilidade seja pelas regras impostas pelo artigo 1º seja pela gratificação pela presença prevista pelo artigo 2º de modo a inserir os Conselheiros dos Contribuintes na regra da incompatibilidade prevista no citado artigo 28, II do EOAB. PARECERES E CONTRIBUIÇÕES DO IASP OPINIÃO LEGAL DECRETO 8.441/2015 49 Como me referi anteriormente a regra previsto no artigo 1º, § 1º é ilegal e indiretamente inconstitucional. A regra prevista no artigo 2º que cria a gratificação pretende inserir os Conselheiros dos Contribuintes na regra de incompatibilidade, pois o CFOAB, em decisão anterior, esclareceu que não haveria incompatibilidade para o exercício da advocacia se o julgador não fosse remunerado. A ementa da Consulta nº 002/2004 assim dispõe: CONSULTA. MEMBROS DO CONSELHO DE CONTRIBUINTES DO MINISTÉRIO DA FAZENDA. FUNÇÃO DESPROVIDA DE REMUNERAÇÃO. ARTIGO 28, II DO ESTATUTO DA OAB. PRINCÍPIO DA PROPORCIONALIDADE. INTEPRETAÇÃO TELEOLÓGICA DO DIPLOMA. INCOMPATIBILIDADE INEXISTENTE. I – O integrante do Conselho de Contribuintes não recebe remuneração fixa por sua atuação no colegiado, devendo manter-se em atividade profissional para a sua subsistência. II – Ofende o princípio da proporcionalidade vedar-se a uma só categoria profissional o acesso ao Conselho de Contribuintes, notadamente àquela que, por sua formação técnica, apresenta-se como a mais habilitada para analisar questões referentes a tributos federais. III – O art. 28, inciso II, do Estatuto da OAB e da Advocacia deve ser interpretado de acordo com os comandos constitucionais maiores, evitando-se que a sua aplicação venham a malferir princípios de isonomia e razoabilidade. IV – Ao membro do Conselho de Contribuintes não se aplica a incompatibilidade para a advocacia, restando somente impedido de atuar em processos administrativos fiscais perante o próprio Conselho, bem como de patrocinar causas judiciais cujo conteúdo possa a ser objeto de apreciação por parte daquele colegiado. Por sua vez houve nova Consulta ao CFOAB versando sobre o tema, que teve a seguinte Ementa 019/2014 julgada em 07/04/2014 e publicada em 21/05/2014: INEXISTÊNCIA DE INCOMPATIBILIDADE DO EXERCÍCIO DA ADVOCACIA COM O DE MEMBROS DOS CONSELHOS DOS TRIBUNAIS ADMINISTRATIVOS QUE NÃO RECEBAM REMUNERAÇÃO DE NATUREZA SALARIAL PARA O EXERCÍCIO DA FUNÇÃO DE CONSELHEIRO OU JULGADOR DESTES ÓRGÃOS COLEGIADOS. 50 REVISTA DO INSTITUTO DOS ADVOGADOS DE SÃO PAULO v. 35, JANEIRO - JUNHO 2015 PRECEDENTES DO ÓRGÃO ESPECIAL. MANIFESTAÇÃO FAVORÁVEL DO CONSELHO FEDERAL DA ORDEM DOS ADVOGADOS DO BRASIL. ADEQUAÇÃO DE REDAÇÃO. Portanto, o artigo 2o do Decreto 8.441/2015, apesar de não ter criado remuneração de natureza salarial, uma vez que o valor tem natureza de “gratificação de presença”, trouxe, novamente, esta discussão. Inclusive, por Consulta feita pela Procuradoria da Fazenda Nacional, o Conselho Federal da Ordem dos Advogados do Brasil deve novamente se manifestar sobre o tema. A questão é que o valor da “gratificação de presença” ao ser vinculado ao valor recebido pelo cargo de comissão de Nível DAS 05, traz um valor de mais relevo, por girar em torno de até R$ 8.000,00 (oito mil reais) ao mês se houver 6 sessões mensais e se o Conselheiro nelas comparecer. Aos meus olhos a discussão não se alterou pela criação da “gratificação de presença”, pois esta não tem a natureza de remuneração salarial. Mas, ainda que tivesse, na esteira do precedente do Supremo Tribunal Federal, a remuneração ou a gratificação de presença não pode ser considerada de forma isolada, porque se a interpretação for assim realizada, não haverá paridade do órgão julgador. Entendo que a norma prevista pelo dispositivo veiculado pelo inciso II do artigo 28 da Lei 8.906/1994 já foi interpretada pelo Supremo Tribunal Federal que ponderou o recebimento da remuneração – naqueles casos da Justiça Eleitoral remuneração com natureza salarial – com a necessidade dos advogados para a composição dos Tribunais Eleitorais e deu preponderância para a importância da participação dos advogados naqueles órgãos de julgamento. E a interpretação que deve ser dado para os órgãos com composição paritária deve seguir a mesma trilha, e, entendo, que sem a importância para a remuneração e com maior preponderância para que seja possível a efetivação da paridade. Como várias vezes assinalei neste documento, se não houver participação de advogado militante não haverá paridade. Sem advogados o órgão terá que ter todo o seu modelo revisto, o que como também afirmei, não é objeto deste estudo. Assim, concluo que não há que se falar em incompatibilidade para o exercício da advocacia pelos membros advogados do Conselho Administrativo de Recursos Fiscais. PARECERES E CONTRIBUIÇÕES DO IASP OPINIÃO LEGAL DECRETO 8.441/2015 51 Quanto ao tema do impedimento, novamente afirmo que o Decreto é ilegal ao disciplinar uma restrição ao exercício da advocacia, de tal modo que concluo pela ilegalidade do parágrafo 2º, do artigo 1º do Decreto 8.441/2015. O impedimento natural e que consta do próprio Regimento do órgão é para o exercício da advocacia, pelo próprio Conselheiro, no âmbito do órgão, e aí entendo que envolva toda a instância administrativa, ou seja, o advogado que atua como Conselheiro não pode exercer a advocacia nas Delegacias da Receita Federal, nas Delegacias de Julgamento e no CARF quando se tratar de processos administrativos fiscais. É certo que sequer se cogita aqui da tão comentada “advocacia administrativa” que deve ser repudiada e condenada sob todos os aspectos. Todo e qualquer Conselheiro, seja representante de qualquer das classes, que usar do cargo para obter vantagem, deve responder administrativa e criminalmente sobre isto. Mas, não é sobre isto que deve ser tratado. Como afirmei, não é classe dos advogados que forma o grupo dos corruptos ativos ou passivos, por isso, não é cabível um Decreto que trate a nossa nobre classe desta forma. A corrupção, infelizmente, existe entre os homens, sem discriminação de raça, cor, credo ou profissão. E, por última questão, entendo que o impedimento parcial para a advocacia atinge apenas o advogado que exerce a função de Conselheiro e não reflete na sociedade da qual participa. Por certo, as regras do regimento interno do CARF já trazem regras de impedimento no julgamento dos casos que envolvam clientes dos advogados ou das sociedades as quais pertençam, regra esta que num ambiente de boa-fé é suficiente para permitir que os julgamentos ocorram dentro da legalidade. A. Conclusões – respostas objetivas às questões formuladas. Após ter trilhado este percurso discursivo, passo responder objetivamente as questões formuladas: 1. Há alguma ilegalidade ou inconstitucionalidade no Decreto nº 8.441/2015 a ser identificada? Sim. Conforme busquei demonstrar ao longo desta Opinião Legal, estão presentes as seguintes inconstitucionalidades e/ou ilegalidades: REVISTA DO INSTITUTO DOS ADVOGADOS DE SÃO PAULO v. 35, JANEIRO - JUNHO 2015 52 A. O artigo 1º. do Decreto 8.441/2015 por não encontrar fundamento de validade em nenhuma lei traz uma inconstitucionalidade indireta em face de sua manifesta ilegalidade. B. O artigo 2º do Decreto 8.441/2015 ao trazer restrições aos Conselheiros representantes dos contribuintes sem fundamento legal para tal também traz inconstitucionalidade indireta em face de sua manifesta ilegalidade. C. O Decreto 8.441/2015 ao trazer tratamento desigual entre os Conselheiros representantes da Fazenda e os Conselheiros representantes dos Contribuintes em situações em que não há fundamento para tal situação de desigualdade fere o princípio constitucional da igualdade. D. O Decreto 8.441/2015 é inconstitucional (ainda que por inconstitucionalidade indireta) ao trazer odiosa e repugnante discriminação à nobre classe dos advogados. E. O parágrafo 1º do artigo 1º do Decreto 8.441/2015 é manifestamente ilegal pois estipula aos Conselheiros dos Contribuintes restrições previstas na Lei 12.813/2013 sem que possua fundamento de validade, isto é, lei que permita estender tais restrições legais aos Conselheiros. F. O parágrafo 2º do artigo 1º do Decreto 8.441/2015 é manifestamente ilegal, pois impõe aos Conselheiros representantes dos contribuintes que exercem a advocacia limitações previstas na Lei 8.906/1994, sem que tenha fundamento legal para impor tal impedimento. G. Há incompatibilidade (ou impedimento) entre o exercício da advocacia e a função de juiz do tribunal administrativo fiscal? A incompatibilidade se estende aos integrantes do Escritório do juiz de tribunal administrativo convocado? Não há incompatibilidade entre o exercício da advocacia e a função de julgador do tribunal administrativo fiscal, seja porque o tribunal administrativo tem formação paritária, por disposição legal, e tal paridade só se torna efetiva com a participação de advogados militantes e experientes; seja tendo como diretriz interpretativa o julgamento da ADI 1.127-8 que considerou compatível com a advocacia a função de Juiz dos Tribunais Eleitorais. PARECERES E CONTRIBUIÇÕES DO IASP OPINIÃO LEGAL DECRETO 8.441/2015 53 Há impedimento parcial para o advogado que exerce a função de juiz no tribunal administrativo apenas para o exercício da advocacia perante as instâncias administrativas relativas ao processo administrativo federal. O impedimento parcial não produz reflexos para a sociedade da qual o advogado participa. Essa é a Opinião Legal que coloco para análise de Vossas Excelências. AUDIÊNCIA DE CUSTÔDIA MARCELO XAVIER DE FREITAS CRESPO Doutor e Mestre em Direito Penal pela Faculdade de Direito da Universidade de São Paulo. Professor Titular na Disciplina Processo Penal III na Faculdade de Direito de Sorocaba. Associado Efetivo do IASP. SUMÁRIO A consulta; 1 – A prisão e a garantias a ela referidas na Constituição Federal de 1988; 2- A prisão e as garantias a ela referidas na Convenção Americana de Direitos Humanos; 3- Do direito da pessoa presa em flagrante ser conduzida, sem demora, à presença de um juiz; 4- Das consequências da inobservância do direito do preso ser levado, sem demora, à presença do juiz; 5- Do Provimento Conjunto nº 03/2015 da Presidência do Tribunal de Justiça do Estado De São Paulo e sua respectiva Corregedoria; 6- Das impugnações ao Provimento Conjunto nº 03/2015; 7- Do Projeto de Lei do Senado nº 554/2011; 8- Respostas à consulta. REVISTA DO INSTITUTO DOS ADVOGADOS DE SÃO PAULO v. 35, JANEIRO - JUNHO 2015 56 A CONSULTA Honra-me o Instituto dos Advogados de São Paulo, a mais antiga instituição jurídica associativa do Estado, com 140 anos de existência, por seu Presidente, José Horácio Halfeld Rezende Ribeiro, formulando consulta com pedido de parecer relativamente à “Audiência de Custódia” e a prisão em flagrante, o Provimento Conjunto nº 03/2015 da Presidência do Tribunal de Justiça do Estado De São Paulo e sua respectiva Corregedoria e eventuais impugnações ao mencionado ato normativo. A consulta foi formulada na 23ª Reunião do Triênio (2013/2015), havida no dia 25 de março, p.p. e não acompanhou documentos. O consulente formulou os seguintes quesitos: a) Existe, em nosso direito, a previsão da realização de “audiência de custódia”, considerada esta a audiência perante juiz, logo após prisão em flagrante? b) O direito de ser submetido a “audiência de custódia” tem aplicação imediata nos casos de prisão em flagrante ou é um direito que dependa de regulamentação? c) Quais as consequências no caso de descumprimento da apresentação do preso em “audiência de custódia”? d) O que é o Provimento Conjunto nº 03/2015 da Presidência do Tribunal de Justiça do Estado De São Paulo e sua respectiva Corregedoria? Houve impugnações judiciais a ele? Quais o status de julgamento destas impugnações? e) Há projeto de lei sobre o tema? E, em havendo-o, o projeto atende a critérios técnico-jurídicos para que seja aprovado ou necessita intervenções em sua redação? Bem examinadas as questões atinentes à presente consulta, passo a emitir o meu parecer. PARECER 1 – A PRISÃO E A GARANTIAS A ELA REFERIDAS NA CONSTITUIÇÃO FEDERAL DE 1988 A Constituição de 1988 adveio para estabelecer uma nova ordem jurídica, mais garantista e com vistas a impedir, além de outros abusos, que ocorressem arbitrariedades praticadas PARECERES E CONTRIBUIÇÕES DO IASP AUDIÊNCIA DE CUSTÔDIA 57 pelo Estado nos casos em que houvessem prisões. Reflexo de deliberações por cerca de vinte meses, a Constituição pretendeu estabelecer direitos e garantias que eram cerceados dos cidadãos no período ditatorial. Não à toa é comumente chamada de “Constituição Cidadã”. Neste sentido, como uma das garantias nela previstas, pretendeu-se evitar que a prisão cautelar representasse um mal além da sua própria necessidade. Por tal razão é que se verificam os seguintes dispositivos no texto constitucional: Art. 5º Todos são iguais perante a lei, sem distinção de qualquer natureza, garantindose aos brasileiros e aos estrangeiros residentes no país a inviolabilidade do direito à vida, à liberdade, à igualdade, à segurança e à propriedade, nos termos seguintes: LXI - ninguém será preso senão em flagrante delito ou por ordem escrita e fundamentada de autoridade judiciária competente, salvo nos casos de transgressão militar ou crime propriamente militar, definidos em lei; LXII - a prisão de qualquer pessoa e o local onde se encontre serão comunicados imediatamente ao juiz competente e à família do preso ou à pessoa por ele indicada; LXIII - o preso será informado de seus direitos, entre os quais o de permanecer calado, sendo-lhe assegurada a assistência da família e de advogado; LXIV - o preso tem direito à identificação dos responsáveis por sua prisão ou por seu interrogatório policial; LXV - a prisão ilegal será imediatamente relaxada pela autoridade judiciária; LXVI - ninguém será levado à prisão ou nela mantido, quando a lei admitir a liberdade provisória, com ou sem fiança. Com a leitura dos incisos acima, conclui-se que à exceção da prisão nos casos de flagrante (arts. 301 a 310, CPP), ninguém poderá ser preso senão por ordem judicial (art. 5º, LXI, CF), devendo a prisão ser comunicada imediatamente ao juiz e à família do preso (art. 5º, LXII, CF), que também terá direito à assistência de um advogado (art. 5º, LXIII, CF), bem como à identificação dos responsáveis pela prisão (art. 5º LXIV). Feita a comunicação ao juiz e sendo ela ilegal por desrespeitar as hipóteses previstas no Código de Processo Penal (art. 302), deverá ser relaxada (art. 5º, LXV, CF). Por outro lado, sendo ela legal, mas havendo a possibilidade de concessão de liberdade provisória, deverá esta ser providenciada (art. 5º, LXVI, CF). 58 REVISTA DO INSTITUTO DOS ADVOGADOS DE SÃO PAULO v. 35, JANEIRO - JUNHO 2015 Quanto à prisão em flagrante, relembramos as palavras de Carnelutti, que esclarece que ela está imediatamente relacionada à llama, que denota con certeza la combustión; cuando se ve la llama, es indudable que alguna cosa arde, sendo verdadeiramente a visibilidade do delito conhecida como fumus commissi delicti.1 Mas é preciso relembrar, ainda, que apesar disso, a prisão em flagrante é precária, eis que surgida administrativamente, constituindo mera detenção que não se presta para o resultado final do processo. Por essa razão, sua jurisdicionalização se mostra fundamental porque só assim sua legalidade será analisada, convalidando a custódia – e concedendo a liberdade provisória se for o caso – ou relaxando-a. Muito embora no sistema processual penal exista a previsão da análise da legalidade da prisão em flagrante pelo Judiciário, dentre as garantias expressas nos incisos do art. 5º da Constituição não há o direito do preso ser encaminhado imediatamente até um juiz para que proceda tal análise presencialmente em “audiência de custódia”. O inciso LXII determina apenas que a prisão deve comunicada imediatamente ao juiz e à família do preso. Não há, portanto, nem no texto constitucional, nem no código de processo penal (arts. 301 a 310), a exigência para que o preso em flagrante seja encaminhado ao Judiciário para que, na presença de um magistrado, particpe de uma “audiência de custódia”. 2- A PRISÃO E AS GARANTIAS A ELA REFERIDAS NA CONVENÇÃO AMERICANA DE DIREITOS HUMANOS Os Estados das Américas, no âmbito da Organização dos Estados Americanos – OEA, adotaram diversos instrumentos internacionais que se converteram nos fundamentos de um sistema regional de promoção e proteção dos direitos humanos, conhecido como o Sistema Interamericano de Direitos Humanos. Pode-se dizer que a formalização do sistema Interamericano teve início com a aprovação da Declaração Americana dos Direitos e Deveres do Homem em 1948, contando, ainda, com outros instrumentos como a Convenção Americana sobre Direitos Humanos, Protocolos e Convenções sobre temas especializados, como a Convenção para Prevenir e Punir a Tortura, a Convenção sobre o Desaparecimento Forçado e a Convenção para Prevenir, Punir e Erradicar a Violência contra a Mulher, entre outros e os Regulamentos e Estatutos de seus órgãos. 1. CARNELUTTI, Francesco. Lecciones sobre el Proceso Penal. Trad. Santiago Sentis Melendo. Buenos Aires, 1950, t. II, pg. 77/78. PARECERES E CONTRIBUIÇÕES DO IASP AUDIÊNCIA DE CUSTÔDIA 59 Diferentemente da Constituição Federal, o Pacto Internacional sobre Direitos Civis e Políticos adotado pela Assembleia Geral das Nações Unidas desde 16 de dezembro de 1966 estabelece que: Art. 9 (3) Qualquer pessoa presa ou encarcerada em virtude de infração penal deverá ser conduzida, sem demora, à presença do juiz ou de outra autoridade habilitada por lei a exercer funções judiciais e terá o direito de ser julgada em prazo razoável ou de ser posta em liberdade. A prisão preventiva de pessoas que aguardam julgamento não deverá constituir a regra geral, mas a soltura poderá estar condicionada a garantias que assegurem o comparecimento da pessoa em questão à audiência, a todos os atos do processo e, se necessário for, para a execução da sentença. De forma congênere previu-se na Convenção Americana sobre Direitos Humanos – um tratado internacional que prevê direitos e liberdades que devem ser assegurados pelos Estados partes – , adotada no âmbito da Organização dos Estados Americanos, em São José da Costa Rica, em 22 de dezembro de 1969 que: art. 7 (5) Toda pessoa presa, detida ou retida deve ser conduzida, sem demora, à presença de um juiz ou outra autoridade autorizada por lei a exercer funções judiciais e tem o direito de ser julgada em prazo razoável ou de ser posta em liberdade, sem prejuízo de que prossiga o processo. Sua liberdade pode ser condicionada a garantias que assegurem o seu comparecimento em juízo. Quanto a estes diplomas internacionais, é fundamental ressaltar que ambos foram integrados ao ordenamento jurídico nacional por meio dos Decretos nº 592, de 6 de julho de 1992 e nº 678, de 6 de novembro de 1992, respectivamente. E, na esteira do discurso sobre normas integradas ao nosso ordenamento, é preciso lembrar do princípio da máxima efetividade do Direito Internacional dos Direitos Humanos que determina que as disposições devem ser aplicadas de forma que não sejam consideradas meramente programáticas. Nas palavras de André de Carvalho Ramos:2 Para melhor defesa dos direitos humanos adota-se a aplicabilidade imediata dos textos normativos às situações fáticas existentes, de modo que se reconhece que, sob o aspecto formal (jurídico normativo), tais direitos são tendencialmente completos, ou seja, aptos a serem invocados desde logo pelo jurisdicionado. 2. RAMOS, André de Carvalho. Teoria Geral dos Direitos Humanos na Ordem Internacional . 2 ed. São Paulo: Saraiva, 2012, p.196. 60 REVISTA DO INSTITUTO DOS ADVOGADOS DE SÃO PAULO v. 35, JANEIRO - JUNHO 2015 Assim, no caso dos tratados internacionais de direitos humanos a interpretação deve efetivamente servir para o incremento da proteção dada ao ser humano. São direitos autoaplicáveis até porque as normas em comento são objetivas, tendo destinatário certo e podem ser perfeitamente aplicadas a casos concretos, não havendo razão para sua não aplicação. Ocorre que a jurisprudência do Supremo Tribunal Federal não reconhecia nem o status constitucional nem o supralegal dos mencionados textos, muito embora parte importante da doutrina já se posicionasse por este reconhecimento em face do art. 5º, §2º da Constituição Federal.3 Entretanto, a partir do julgamento do Recurso Extraordinário nº 466.343/SP (onde se discutiu a inconstitucionalidade da prisão civil do devedor fiduciante em contrato de alienação fiduciária, em 2009), houve significativa mudança de posicionamento da nossa mais alta Corte. Pragmaticamente considerado, o novo entendimento – um marco histórico para a defesa dos direitos humanos – determinou que qualquer norma infraconstitucional colidente com as garantias previstas na Convenção Americana de Direitos Humanos e no Pacto internacional de Direitos Civis e Políticos, anterior ou posterior à promulgação de tais tratados, não mais poderia ter aplicação porque o Brasil não fez qualquer reserva quanto aos textos. Vale dizeer, ainda, que no julgamento do Recurso Extraordinário nº 466.343/SP houve dois posicionamentos distintos quanto à natureza da Convenção Americana de Direitos Humanos. No caso, o Min. Gilmar Mendes entendeu-a como norma supralegal e o Min. Celso de Mello como materialmente constitucional. Em qualquer dos casos, no entanto, deve prevalecer a Convenção caso confrontada com leis ordinárias e que com elas colidir. 3. Cf. PIOVESAN, Flávia. A incorporação, a hierarquia e o impacto dos tratados de proteção dos direitos humanos no direito brasileiro. In: GOMES, Luiz Flávio; PIOVESAN, Flávia (Coords.). O sistema interamericano de proteção dos direitos humanos e o direito brasileiro. São Paulo: RT, 2000, p. 160; STEINER, Sylvia Helena de Figueiredo. A Convenção Americana sobre Direitos Humanos e sua integração ao processo penal brasileiro, SãoPaulo: RT, 2000, p. 90. GOMES FILHO, Antonio Magalhães. O princípio da presunção de inocência na Constituição de 1988 e na Convenção Americana Sobre Direitos Humanos (Pacto de São José da Costa Rica, In: Revista do Advogado , São Paulo, Associação dos Advogados de São Paulo, nº 42, abr. 1994, p. 34. PARECERES E CONTRIBUIÇÕES DO IASP AUDIÊNCIA DE CUSTÔDIA 61 3- DO DIREITO DA PESSOA PRESA EM FLAGRANTE SER CONDUZIDA, SEM DEMORA, À PRESENÇA DE UM JUIZ A Convenção Americana de Direitos Humanos previu, no art. 7 (5), primeira parte, que é assegurado a toda pessoa seu encaminhamento, sem demora, à presença de autoridade judiciária. Além disso, já vimos que essa garantia foi alçada a um status de prevalência quanto a normas infraconstitucionais que com ela colidissem. Mais do que isso, trata-se de norma fundamental em países onde há perigo real de tortura e brutalidade policial, como é o caso do Brasil, tendo passado da hora de abrirmos os olhos para estas questões envolvendo a sedimentação do Estado Democrático de Direito e suas garantias contra o abuso estatal. eis o momento, então, de compreeender o seu conteúdo. Assim, a primeira consideração a ser feita é quanto ao aspecto temporal na perspectiva da expressão “sem demora” contida no art. 7 (5), primeira parte da Convenção Americana de Direitos Humanos. Nas versões em espanhol e em inglês da Convenção4 as expressões utilizadas foram “sin demora” e “promptly”, termos não idênticos, mas próximos e que podem, facilmente ser comparados com sinônimos no nosso vernáculo, tais como “imediatamente”, “seguidamente” e “ato contínuo”. Nessa comparação verifica-se que o “sem demora” deve levar tempo suficente e razoável para que seja possível a tal apresentação a uma autoridade judicial, sendo que o termo inicial de tal período é o momento em que a pessoa é privada de sua liberdade. é bem verdade que o tempo suficente e razoável que defendemos aqui pode variar de caso para caso, especialmente no Brasil com suas imensas dimensões. Por isso, para concretizar o “sem demora” alguns critérios devem ser considerados, tais como i) a existência de uma norma legal mencionando o prazo; ii) não se justificar a demora em apresentar o preso em razão da gravidade ou do tipo de crime; e, ainda, iii) que não se satisfaça a norma com a mera apresentação do preso, mas com a efetiva decisão judicial sobre a prisão. A segunda questão sobre o conteúdo do ato refere-se a quem exercerá o controle da prisão. O art. 7 (5) da Convenção Americana de Direitos Humanos prevê que o preso 4. Textos disponíveis em www.oas.org 62 REVISTA DO INSTITUTO DOS ADVOGADOS DE SÃO PAULO v. 35, JANEIRO - JUNHO 2015 deve ser apresentado a “um juiz ou outra autoridade autorizada por lei a exercer funções judiciais”. Compreender o que é um juiz não traz grandes desafios de interpretação porque será a autoridade judiciária em face de quem se exige que se seja “competente, independente e imparcial, estabelecido anteriormente por lei, na apuração de qualquer acusação penal formulada contra ela, ou na determinação de seus direitos e obrigações de caráter civil, trabalhista, fiscal ou de qualquer outra natureza.”5 No Brasil não cabe discutir o termo “outra autoridade competente” porque a Constituição determina que a comunicação da prisão seja feita para um “juiz competente” (art. 5º, caput, LXII) e que a prisão ilegal será relaxada pela “autoridade judiciária” (art. 5º, caput, LXV). a terceira questão sobre o conteúdo do ato que deve ser enfrentada é o procedimento da “audiência de custódia”. Isso porque a expressão “deve ser apresentado prontamente” necessita ser interpretada à luz do objetivo da garantia, evidenciando que a oitiva pessoal do preso pela autoridade judiciária é um fundamento, verdadeiro requisito procedimental que urge, portanto, ser cumprido antes do juiz decidir sobre a legalidade e necessidade da prisão. Além disso, a apresentação do preso ao juiz deve ser automática e independe de requerimento, o que auxilia cumprir a garantia constitucional de relaxar prisões indevidas e de substituir prisões desnecessárias já que o contraditório sobre a prisão é diferido e o preso tem dificuldades em demonstrar a ilegalidade da prisão. Considerando-se que nas prisões em flagrante a custódia não decorre de um juízo anterior de magistrado, a audiência do preso em flagrante constitui requisito da prisão, que, se não ocorrer, invalidará a medida. Ademais, ao se ouvir o preso na “audiência de custódia” é fundamental a presença de advogado ou defensor porque será uma forma de assegurar a legalidade da própria audiência, fazendo-se respeitar, por exemplo, o direito ao silêncio, além de constituir figura fundamental para que haja paridade de armas em face do Ministério Público, já que poderão ser apresentados argumentos contrários à prisão. A “audiência de custódia”, portanto, tem dois vieses, sendo o primeiro a análise da legalidade da prisão e, o segundo, a necessidade da sua manutenção, nos termos do art. 310, CPP, embora a norma processual mencionada não se refira propriamente a uma audiência, mas apenas ao recebimento do auto de prisão em flagrante para análise, nos seguintes termos: 5. http://www.cidh.oas.org/basicos/portugues/c.convencao_americana.htm, acesso em 02.04.15. PARECERES E CONTRIBUIÇÕES DO IASP AUDIÊNCIA DE CUSTÔDIA 63 Art. 310. Ao receber o auto de prisão em flagrante, o juiz deverá fundamentadamente: I - relaxar a prisão ilegal; ou II - converter a prisão em flagrante em preventiva, quando presentes os requisitos constantes do art. 312 deste Código, e se revelarem inadequadas ou insuficientes as medidas cautelares diversas da prisão; ou III - conceder liberdade provisória, com ou sem fiança. Em suma, apesar do sistema de garantias brasileiro contido na Constituição Federal e no Código de Processo Penal determinar que a prisão em flagrante seja imediatamente comunicada ao juiz em 24 horas, devendo, então, o magistrado, mediante decisão fundamentada, decidir sobre a legalidade da prisão bem como sobre a sua conversão em prisão preventiva ou substituição por medida alternativa, tais previsões não atendem à garantia do art. 7 (5) da Convenção Americana de Direitos Humanos, que determina que a pessoa presa “deve ser conduzida, sem demora, a presença de um juiz”. 4- DAS CONSEQUÊNCIAS DA INOBSERVÂNCIA DO DIREITO DO PRESO SER LEVADO, SEM DEMORA, À PRESENÇA DO JUIZ Como já exposto, o direito previsto no art. 7 (5) da Convenção Americana de Direitos Humanos, integra o ordenamento jurídico nacional. Então, a aplicação literal do art. 306 do Código de Processo Penal, apenas com a comunicação do auto de prisão em flagrante ao magistrado, é inábil para cumprir e respeitar o direito do preso. Mas qual a consequência da não observação do direito do preso neste caso? Ou, em outras palavras, caso não seja realizada a audiência de custódia, qual a consequência processual? Não restam dúvidas que a prisão em flagrante, neste caso, deverá ser relaxada em face do desrespeito ao art. 7 (5) da Convenção Americana de Direitos Humanos e nos termos do art. 5º, caput, inciso LXV, da Constituição. A “audiência de custódia” constitui, portanto, etapa procedimental essencial para a legalidade da prisão de forma que se não for observada a prisão deverá ser imediatamente relaxada. É, pois, uma questão muito mais imbuída de aspectos políticos que propriamente jurídicos para sua efetivação. Nesta perspectiva, Bobbio, com maestria e perspicácia, REVISTA DO INSTITUTO DOS ADVOGADOS DE SÃO PAULO v. 35, JANEIRO - JUNHO 2015 64 relatou no seu “A era dos Direitos”:6 Não se pode dizer que os direitos do homem tenham sido mais respeitados nas épocas em que os eruditos estavam de acordo em considerar que haviam encontrado um argumento irrefutável para defendê-los, ou seja, um fundamento absoluto: o de que tais direitos derivavam da essência ou da natureza do homem. Em segundo lugar, apesar da crise dos fundamentos, a maior parte dos governos existentes proclamou pela primeira vez, nessas décadas, uma Declaração Universal dos Direitos do Homem. Por conseguinte, depois dessa declaração, o problema dos fundamentos perdeu grande parte do seu interesse. Se a maioria dos governos existentes concordou com uma declaração comum, isso é sinal de que encontraram boas razões para fazê-lo. Por isso, agora, não se trata tanto de buscar outras razoes, ou mesmo (como querem os Jusnaturalistas redivivos) a razão das razões, mas de por as condições para uma mais ampla e escrupulosa realização dos direitos proclamados. Não se trata, pois, de buscar (novos) argumentos para o cumprimento dos direitos do homem, mas de procurar efetivamente realizá-los. É uma questão muito mais política que jurídica ou filosófica. Segundo Bobbio:7 O problema fundamental em relação aos direitos do homem, hoje, não é tanto justificálos, mas o de protegê-los. Trata-se de um problema não filosófico, mas político. Caberá, assim, especialmente ao Poder Judiciário a indispensável e necessária vontade política de resolver tal problema e assegurar e proteger os direitos fundamentais do preso. A boa vontade para concretizar os direitos humanos, no entanto, deve advir de todos os agentes envolvidos no nosso sistema processual, que devem analisar a implementação sob a ótica da realização dos direitos humanos em nosso Estado Democrático de Direito, não permitindo que interesses ou sentimentos pessoais ou políticos se sobreponham à proteção dos direitos humanos. 6. BOBBIO, Norberto. A Era dos Direitos . trad. de Carlos Nelson Coutinho, Rio de Janeiro: Campus, 1992, p. 23/24. 7. Idem. PARECERES E CONTRIBUIÇÕES DO IASP AUDIÊNCIA DE CUSTÔDIA 65 5- DO PROVIMENTO CONJUNTO Nº 03/2015 DA PRESIDÊNCIA DO TRIBUNAL DE JUSTIÇA DO ESTADO DE SÃO PAULO E SUA RESPECTIVA CORREGEDORIA O Tribunal de Justiça do Estado de São Paulo, no dia 22 de janeiro de 2015, editou o Provimento Conjunto nº 03/2015 da Presidência e da Corregedoria Geral de Justiça, justamente para regulamentar as denominadas “audiências de custódia”. Em linhas gerais, o Provimento determina a apresentação da pessoa detida em até 24 horas ao juiz competente juntamente com o auto de prisão em flagrante, conforme se vê nas normas abaixo reproduzidas: Art. 1º Determinar, em cumprimento ao disposto no artigo 7º, item 5, da Convenção Americana sobre Direitos Humanos (pacto de San Jose da Costa Rica), a apresentação de pessoa detida em flagrante delito, até 24 horas após a sua prisão, para participar de audiência de custódia. Art. 3º A autoridade policial providenciará a apresentação da pessoa detida, até 24 horas após a sua prisão, ao juiz competente, para participar da audiência de custódia. § 1º O auto de prisão em flagrante será encaminhado na forma do artigo 306, parágrafo 1º, do Código de Processo Penal, juntamente com a pessoa detida. Quanto a estas disposições, verifica-se que o Tribunal de Justiça procurou atender às normas da Convenção Americana sobre Direitos Humanos (o que já deveria ser uma praxe no país, diga-se) e, no quesito temporal, andou muito bem ao exigir que o preso seja apresentado em até 24 horas ao magistrado competente para a “audiência de custódia”, juntamente com o auto de prisão em flagrante. O Provimento estabeleceu, ainda, regras procedimentais da “audiência de custódia”, garantindo que o preso tenha contato prévio com seu advogado ou defensor por tempo razoável, conforme dispõe o art. 5º: Art. 5º O autuado, antes da audiência de custódia, terá contato prévio e por tempo razoável com seu advogado ou com Defensor Público. Prosseguiu determinando que o próprio juiz informará a possiblidade do preso de manter-se silente (reforçando o que o defensor ou advogado já teriam feito na reunião prévia) mas interrogando-o sobre sua qualificação, condições pessoais, meios de vida 66 REVISTA DO INSTITUTO DOS ADVOGADOS DE SÃO PAULO v. 35, JANEIRO - JUNHO 2015 ou profissão, local onde reside e, o mais importante, sobre as circunstâncias objetivas da prisão, conforme descrito abaixo: Art. 6º Na audiência de custódia, o juiz competente informará o autuado da sua possibilidade de não responder perguntas que lhe forem feitas, e o entrevistará sobre sua qualificação, condições pessoais, tais como estado civil, grau de alfabetização, meios de vida ou profissão, local da residência, lugar onde exerce sua atividade, e, ainda, sobre as circunstâncias objetivas da sua prisão. § 1º Não serão feitas ou admitidas perguntas que antecipem instrução própria de eventual processo de conhecimento. § 2º Após a entrevista do autuado, o juiz ouvirá o Ministério Público que poderá se manifestar pelo relaxamento da prisão em flagrante, sua conversão em prisão preventiva, pela concessão de liberdade provisória com imposição, se for o caso, das medidas cautelares previstas no artigo 319 do Código de Processo Penal. § 3º A seguir, o juiz dará a palavra ao advogado ou ao Defensor Público para manifestação, e decidirá, na audiência, fundamentadamente, nos termos do artigo 310 do Código de Processo Penal, podendo, quando comprovada uma das hipóteses do artigo 318 do mesmo Diploma, substituir a prisão preventiva pela domiciliar. Veja-se que o Provimento proíbe que sejam feitas perguntas que possam antecipar a instrução criminal, devendo o ato restringir-se a análise da legalidade da prisão, já que, oportunamente, será providenciada a instrução processual. É, pois, um mecanismo dirigido especificamente para evitar os abusos de prisões que não se encontrariam nas hipóteses legais de flagrância, não um juízo sumário da culpa, o que é corroborado pelos dispositivos acima mencionados, em especial os §§2º e 3º do art. 6º do Provimento. Vê-se, ainda, que após o contraditório o juiz decidirá por um dos caminhos acima apontados, além do poder requisitar exames clínico e de corpo de delito quando concluir que a perícia seja necessária para apurar eventuais abusos cometidos durante o ato ou mesmo determinar o devido encaminhamento assistencial. Ocorre que o Provimento não determinou a imediata aplicação das audiências de custódia em todo o Estado, regulamentando-a nos seguintes termos: PARECERES E CONTRIBUIÇÕES DO IASP AUDIÊNCIA DE CUSTÔDIA 67 Art. 2º A implantação da audiência de custódia no Estado de São Paulo será gradativa e obedecerá ao cronograma de afetação dos distritos policiais aos juízos competentes. Parágrafo único. A Corregedoria Geral da Justiça disciplinará por provimento a implantação da audiência de custódia no Estado de São Paulo e o cronograma de afetação dos distritos policiais aos juízos competentes. Portanto, apesar de louvável e ainda que tardia, a iniciativa do Tribunal de Justiça, é preciso atentar para que se elabore um cronograma factível e que efetivamente se implementem as “audiências de custódia” por todo o Estado. Até porque, como vimos acima, considerando-se a integração no nosso ordenamento jurídico da Convenção Americana de Direitos Humanos e, com o entendimento atual do Supremo Tribunal Federal, as normas atinentes as tais audiências seriam autoaplicáveis, não carecendo de deliberações ulteriores sobre sua concretização. E não só por isso, mas especialmente em face do disposto na Constituição Federal relativamente à regra de aplicação imediata dos direitos fundamentais, prevista no art. 5º, § 1º que determina que as normas definidoras dos direitos e garantias fundamentais têm aplicação imediata. Mas o Provimento nº 03/2015, apesar de bem-vindo, foi duplamente impugnado até o momento. Impugnações revestidas, à primeira vista, de arguições de vícios de forma mas, que na prática, verificam-se questões outras como se verá nas explicações abaixo. 6- DAS IMPUGNAÇÕES AO PROVIMENTO CONJUNTO Nº 03/2015 A Associação Paulista do Ministério Público, que representa os membros do órgão no Estado, pretendeu suspender a implantação das “audiências de custódia” mediante a impetração do Mandado de Segurança nº 2031658-86.2015.8.26.0000 perante o Órgão Especial do Tribunal de Justiça do Estado de São Paulo.8 Como fundamentos da impetração a Associação argumentou que o Provimento extrapola a legitimidade para interferência legislativa no art. 310, CPP. Menciona, ainda, que a medida causaria discordância de membros do Ministério Público e do Judiciário pela sua inviabilidade prática, embora não esclareça o que inviabilizaria o ato. Este argumento (vazio) soa muito mais um ataque à (pequeníssima) carga extra de serviço aos envolvidos, tais como os Promotores de Justiça e Juízes. 8. Íntegra da inicial disponível em http://www.conjur.com.br/2015-fev-25/membros-mp-sp-entram-acaoaudiencias-custodia , acesso em 02.04.15. 68 REVISTA DO INSTITUTO DOS ADVOGADOS DE SÃO PAULO v. 35, JANEIRO - JUNHO 2015 Mas a impetração contou, ainda, com o curioso argumento de que a aplicação do Provimento nº 03/2015 causaria “zonas de exclusão” porque previu a implantação paulatina das “audiências de custódia” no Estado e, por tal razão, o autor de crimes poderia escolher aonde os praticaria tendo em vista que teria o “benefício” de ser entrevistado por um juiz. Como se este “benefício” significasse a imediata soltura do preso em flagrante em todos os casos, uma ilação bastante descompassada com a real função da providência determinada pelo. Trata-se de argumentação verdadeiramente ad terrorem. Prosseguindo nos argumentos, sugere-se que o Provimento foi editado pelo Judiciário com vistas a atuar conjuntamente com o Executivo para evitar superlotação dos presídios. Por fim, alega que a edição do Provimento significa a indevida interferência do Judiciário no Executivo haja vista a violação do art. 144, CF que dispõe que as polícias subordinam-se a este último Poder, não ao Judiciário por meio de Provimento quando determina a apresentação do preso ao juiz, o que evidentemente necessita da participação de policiais para que seja concretizada a condução do preso até o magistrado. O Mandado de Segurança, todavia, foi julgado rapidamente e foi extinto sem resolução do mérito por se entender que a Impetrante não tinha interesse processual pela inadequação da via eleita, haja vista ter-se valido do Petitório para atacar situação geral e impessoal de alcance genérico e que disciplina hipótese nele abstratamente prevista. Da decisão que extinguiu o Mandado de Segurança sem resolução do mérito houve a interposição de Embargos de Declaração e Agravo Regimental, ainda não julgados. A questão está, pois, sub-judice. Por seu turno, a Associação dos Delegados de Polícia do Brasil (Adepol) ingressou com uma Ação Direta de Inconstitucionalidade no Supremo Tribunal Federal (ADI nº 5240) pedindo a suspensão do Provimento nº 03/2015.9 Os fundamentos da ação são, basicamente, os já veiculados no Mandado de Segurança impetrado pela Associação Paulista do Ministério Público, tais como a violação do art. 22, I, CF (competência exclusiva da União para legislar sobre direito processual) e do art. 144 CF (sujeição da polícia civil ao Poder Executivo), inclusive trazendo os mesmo argumentos extrajurídicos e claramente políticos lá mencionados, tais como a 9. Petição inicial disponível em http://s.conjur.com.br/dl/adi-audiencia-custodia.pdf, acesso em 02.04.15. Os autos podem ser consultados via site do STF (ADI nº 5240). PARECERES E CONTRIBUIÇÕES DO IASP AUDIÊNCIA DE CUSTÔDIA 69 repetição de uma Nota crítica ao Provimento, de autoria do Presidente da Associação Nacional dos Juízes Estaduais. 10 A ADI foi distribuída para a relatoria do Min. Fux, que se manifestou no sentido de expedir ofícios ao Advogado-Geral da União, ao Procurador-Geral da República em conjunto com o Tribunal de Justiça do Estado de São Paulo para que manifestem-se. Os ofícios foram expedidos em 30 de março de 2015. A Presidência do Tribunal de Justiça do Estado de São Paulo em conjunto com a Corregedoria Geral de Justiça se manifestaram no sentido de que o Provimento nada mais fez que dar concretude ao procedimento a ser seguido pelos magistrados para garantir os direitos fundamentais dos presos. Alegaram ser um mero ato administrativo em consonância com a política pública federal, não havendo no texto do Provimento qualquer matéria de competência da União. Já a Advocacia-Geral da União igualmente defendeu a constitucionalidade do Provimento. Aguarda-se a manifestação da Procuradoria-Geral da República, a qual, espera-se, se manifeste pela constitucionalidade do Provimento, haja vista o Ministério Público Federal – por meio das Câmaras de Coordenação e Revisão responsáveis pela matéria criminal (2ª CCR), pelo combate à corrupção (5ª CCR) e pelo controle externo da atividade policial e sistema prisional (7ª CCR) – ter apresentado Nota Técnica manifestando apoio à aprovação do Projeto de Lei do Senado n. 554/11. Após, os autos deverão ir à conclusão para a apreciação do pedido liminar. 7- DO PROJETO DE LEI DO SENADO Nº 554/2011 O Processo Penal passou por algumas alterações nas disposições relativas à prisão processual, fiança, liberdade provisória e demais medidas cautelares com o advento da lei 12.403 de 4 de maio de 2011. Todavia, persistiram lacunas como o não estabelecimento de um prazo máximo para prisão preventiva e o dever de revisar periodicamente a medida, por exemplo. Quanto a prisão em flagrante, perdeu-se uma ótima oportunidade para a criação da “audiência de custódia”, já prevista nos tratados internacionais acima mencionados. No entanto, o PLS 554/2011 busca resolver esse grave problema que persiste no sistema de prisões cautelares. Eis a proposta legislativa em discussão: Art. 1º O art. 306 do Decreto-Lei nº 3.689, de 3 de outubro de 1941 (Código de Processo Penal), passa a vigorar com a seguinte redação: 10. Nota disponível em http://blogdofred.blogfolha.uol.com.br/2015/02/06/entidade-de-juizes-critica-adocaoimediata-da-audiencia-de-custodia/ , acesso em 02.04.15. REVISTA DO INSTITUTO DOS ADVOGADOS DE SÃO PAULO v. 35, JANEIRO - JUNHO 2015 70 Art. 306. § 1º No prazo máximo de vinte e quatro horas após a prisão em flagrante, o preso será conduzido à presença do juiz para ser ouvido, com vistas às medidas previstas no art. 310 e para que se verifique se estão sendo respeitados seus direitos fundamentais, devendo a autoridade judicial tomar as medidas cabíveis para preservá-los e para apurar eventual violação. § 2º Na audiência de custódia de que trata o parágrafo 1º, o Juiz ouvirá o Ministério Público, que poderá, caso entenda necessária, requerer a prisão preventiva ou outra medida cautelar alternativa à prisão, em seguida ouvirá o preso e, após manifestação da defesa técnica, decidirá fundamentadamente, nos termos art. 310. § 3º A oitiva a que se refere parágrafo anterior será registrada em autos apartados, não poderá ser utilizada como meio de prova contra o depoente e versará, exclusivamente, sobre a legalidade e necessidade da prisão; a prevenção da ocorrência de tortura ou de maus-tratos; e os direitos assegurados ao preso e ao acusado. § 4º A apresentação do preso em juízo deverá ser acompanhada do auto de prisão em flagrante e da nota de culpa que lhe foi entregue, mediante recibo, assinada pela autoridade policial, com o motivo da prisão, o nome do condutor e os nomes das testemunhas. § 5º A oitiva do preso em juízo sempre se dará na presença de seu advogado, ou, se não o tiver ou não o indicar, na de Defensor Público, e na do membro do Ministério Público, que poderão inquirir o preso sobre os temas previstos no parágrafo 3º, bem como se manifestar previamente à decisão judicial de que trata o art. 310 deste Código. A proposta, como se vê, é bastante semelhante ao que dispõe o Provimento nº 03/2015 já comentado. O que de mais diferente consta dela é um Substitutivo de Autoria do Senador Francisco Dornelles para incluir que a “audiência de custódia” pode ser realizada por videoconferência. O PLS 554/2011 é bem-vindo e atende às disposições para garantir os direitos humanos no Processo Penal, em especial quanto a prisão em flagrante. Como já muito esclarecido acima, a “audiência de custódia” corrige, de forma simples e eficiente, a mera análise dos autos do flagrante pelo juiz para que o faça em conjunto da audiência tendo, assim, mais condições de analisar a presença ou ausência PARECERES E CONTRIBUIÇÕES DO IASP AUDIÊNCIA DE CUSTÔDIA 71 dos requisitos para a manutenção da custódia. O projeto pretende, portanto, positivar em legislação nacional uma prática factível e perfeitamente realizável que demandará uma rápida e simples audiência com o custodiado. Não haverá grandes impactos com sua implementação eis que é o próprio juiz que analisa o flagrante que conduziria a “audiência de custódia”, demandando apenas a presença do órgão do Ministério Público e do Advogado ou Defensor na mesma ocasião. Ou seja, nada complicado demais ou impossível de se realizar. A efetiva implantação das “audiências de custódia” assegura de uma só vez o direito a um processo sem dilações indevidas, além de proporcionar melhores condições de eficácia das cautelares diversas do art. 319 porque no contato pessoal com o imputado, o juiz melhor poderá aferir a medida cautelar mais adequada a ser imposta, além de, por óbvio, garantir a dignidade do imputado ao permitir o imediato acesso à órgão jurisdicional. Ademais, é preciso lembrar que desde 2008 o interrogatório passou a ser o último ato processual para quase todos os procedimentos, fazendo com que o preso em flagrante e que tivesse sua prisão convertida em preventiva viesse a ter contato com o juiz (oportunidade de audiência) apenas no final do procedimento. Ou seja, uma clara violação ao art. 7 (5) do Pacto de São José da Costa Rica. Sendo certo que é bastante comum a prisão preventiva durar vários meses, a garantia da realização de uma “audiência de custódia” corrige esta situação, dando ao preso o acesso ao Judiciário desde logo para fazer valer seus direitos. O projeto, portanto, atende à sistemática processual penal pátria e os diplomas internacionais comentados. Por fim, não se pode esquecer que historicamente e originariamente o Habeas Corpus era um meio de se obter o rápido comparecimento físico de alguém acusado de crime perante uma Corte como um direito fundamental em face dos abusos estatais justamente para verificar prontamente a legalidade da prisão. Daí o termo Habeas Corpus significar “trazer o corpo” (do latim habeo, habere = ter, exibir, trazer; corpus, corporis = corpo). Assim, embora a “audiência de custódia” não constitua uma ação impugnativa autônoma como nosso atual Habeas Corpus, sua concretização remete-nos à ideia de respeito aos direitos humanos fundamentais de forma análoga ao originado no REVISTA DO INSTITUTO DOS ADVOGADOS DE SÃO PAULO v. 35, JANEIRO - JUNHO 2015 72 Direito Inglês. Concluindo, o projeto de lei nº 554/2011 não precisaria ser aprovado caso houvesse a boa vontade política de concretizar direitos já inseridos no ordenamento jurídico pátrio. Todavia, em face da inoportuna resistência à implementação das “audiências de custódia”, a rápida aprovação do projeto faria com que os direitos fossem aplicados em todo o país, como deve ser em nossa federação em face do nosso sistema processual penal. 8- RESPOSTAS À CONSULTA A) Existe, em nosso direito, a previsão da realização de “audiência de custódia”, considerada esta a audiência perante juiz, logo após prisão em flagrante? Não há previsão explícita da “audiência de custódia” em nossa Constituição. Não obstante, tanto o Pacto Internacional de Direitos Civis e Políticos quanto a Convenção Americana de Direitos Humanos, contêm esta previsão em seus respectivos textos e ambos integram o ordenamento jurídico nacional. No âmbito do Estado de São Paulo há o Provimento nº 03/2015 do Tribunal de Justiça e da Corregedoria, que implementa o insituto em São Paulo, a ser aplicado paulatinamente. B) O direito de ser submetido a “audiência de custódia” tem aplicação imediata nos casos de prisão em flagrante ou é um direito que dependa de regulamentação? Todos os direitos fundamentais previstos em tratados internacionais de direitos humanos e, evidentemente todos aqueles constantes da Constituição Federal, são normas autoaplicáveis, independendo de regulamentação pelo Judiciário. Especificamente a norma contida no art. 7 (5) da Convenção Americana de Direitos Humanos que prevê a realização de “audiência de custódia”, é portanto, autoaplicável. C) Quais as consequências no caso de descumprimento da apresentação do preso em “audiência de custódia”? A não observância do art. 7 (5) da Convenção Americana de Direitos Humanos, isto é, a não realização da chamada “audiência de custódia” é ilegal e, como tal, deverá implicar no relaxamento imediato da prisão em flagrante pelo magistrado competente. Considerando-se a existência do Provimento nº 03/2105 no âmbito do Estado de São Paulo, a não realização do ato ensejará o relaxamento da prisão em flagrante. d) Houve impugnações ao Provimento Conjunto nº 03/2015 da Presidência do PARECERES E CONTRIBUIÇÕES DO IASP AUDIÊNCIA DE CUSTÔDIA 73 Tribunal de Justiça do Estado De São Paulo e sua respectiva Corregedoria? Quais os status de julgamento destas impugnações? Sim, até o presente momento há notícias de duas impugnações ao Provimento aludido. A Associação Paulista do Ministério Público, que representa os membros do órgão no Estado, pretendeu suspender a implantação das “audiências de custódia” mediante a impetração do Mandado de Segurança nº 2031658-86.2015.8.26.0000. Este, todavia, foi julgado pelo Órgão Especial do Tribunal e foi declarado extinto sem resolução do mérito por se entender que a Impetrante não tinha interesse processual pela inadequação da via eleita, haja vista ter-se valido do Petitório para atacar situação geral e impessoal de alcance genérico e que disciplina hipótese nele abstratamente prevista. Houve oposição de embargos declaratórios e agravo regimental, ambos ainda não julgados. A Associação dos Delegados de Polícia do Brasil (Adepol) ingressou com uma Ação Direta de Inconstitucionalidade no Supremo Tribunal Federal (nº ADI 5240), pedindo a suspensão do Provimento nº 03/2015. A ADIN foi distribuída para a relatoria do Min. Fux, que se manifestou no sentido de expedir ofícios ao Advogado-Geral da União e ao Procurador-Geral da República para que se manifestem. Os ofícios foram expedidos em 30 de março de 2015 e aguarda-se manifestação das autoridades mencionadas para apreciação do pedido liminar. A Advocacia-Geral da União já se manifestou favoravelmente à Constitucionalidade do Provimento e espera-se que a ProcuradoriaGeral da República faça o mesmo. e) Há projeto de lei sobre o tema? E, em havendo-o, o projeto atende a critérios técnico-jurídicos para que seja aprovado ou necessita intervenções em sua redação? Sim, há projeto de lei sobre o tema, o PLS nº 554/2011 de autoria do Senador Antônio Carlos Valadares, projeto este aprovado pela Comissão de Direitos Humanos e pela Comissão de Assuntos Econômicos do Senado e que pretende dar nova redação ao art. 306, CPP estabelecendo o prazo para a apresentação do preso ao juiz (§ 1º), determinando que haja a intervenção do Ministério Público, do preso e da defesa, na audiência (§ 2º), discorrendo sobre a forma de autuação (§ 3º) e os documentos que deverão ser submetido a Juízo em tal ato. A existência do projeto não implica em restrição ou impedimento para que seja aplicado o art. 7(5) da Convenção Americana de Direitos Humanos, que pode e deve REVISTA DO INSTITUTO DOS ADVOGADOS DE SÃO PAULO v. 35, JANEIRO - JUNHO 2015 74 ser atendido. A não aplicação do dispositivo caracteriza ilegalidade nas prisões em flagrante e ilícito internacional praticado pelo país. É inegável, porém, que uma intervenção legislativa deverá ocorrer com vistas a prover maior segurança e apresentar os requisitos específicos para a observância de tal direito. É o meu parecer. São Paulo, 20 de maio de 2015. MENOR SOB GUARDA WAGNER BALERA Professor Titular da PUC/SP. Presidente da Comissão de Estudos de Direito Previdenciário do IASP. Conselheiro do IASP. REVISTA DO INSTITUTO DOS ADVOGADOS DE SÃO PAULO v. 35, JANEIRO - JUNHO 2015 76 1.INTRODUÇÃO Por designação da douta Presidência sou instado a me pronunciar sobre o texto da Ação Direta de Inconstitucionalidade que versa sobre o tema da Pensão por morte do Guardião para Criança Guardada. Para tanto, tecerei considerações de ordem geral e de cunho previdenciário que entendo pertinentes à reflexão e tomada de posição deste E. Conselho sobre tema de cunho tão importante. Advirto, porém, que irei escusar-me, deliberadamente, de trazer à apreciação da Casa a copiosa jurisprudência que se formou a respeito do assunto. Tais julgados são de fácil acesso e como revelam a controvérsia sob diversas perspectivas não atenderiam ao escopo da presente manifestação. 1.1 A JUSTIÇA SOCIAL. A Justiça Social é, consoante expressão indicativa do art. 193 da Constituição, o fim da Ordem Social. Entre outros instrumentos esse fim é alcançado por meio do sistema de seguridade social. E, dentre os planos de proteção geridos pelo sistema de seguridade social cumpre destacar aqueles que se voltam, mais especificamente, à família. O festejado PIERRE LAROQUE, com propriedade, assinala: “não se pode conceber uma seguridade social do indivíduo que não seja uma seguridade social familiar.1 Dentro do arcabouço da proteção familiar podem ser encontradas distintas vias de acesso. Mais particularmente, é possível distinguir: i. a via previdenciária (seguro social) e; ii. a via assistenciária (integrada por distintos esquemas de atuação: o sistema de saúde e o sistema de assistência social). Mantenhamos em retentiva a definição de seguridade social, no Brasil, como sendo: “o conjunto de medidas constitucionais de proteção dos direitos individuais e 1. PIERRE LAROQUE, Famille et Securité Sociale, in Revue Française du Travail, 1947, p. 829. PARECERES E CONTRIBUIÇÕES DO IASP MENOR SOB GUARDA 77 coletivos concernentes à saúde, à previdência e à assistência social.”2 O conceito que se construiu é útil para o exame dos regimes jurídicos aplicáveis a quem venha a demandar proteção por qualquer daquelas vias. No âmbito da seguridade social podem existir, naturalmente, combinações de programas de natureza distinta, de arte a que todas as situações de necessidade venham a ser protegidas, em pleno cumprimento do primeiro dos objetivos constitucionais desse sistema, que assim se acha enunciado: universalidade da cobertura e do atendimento (art. 194, único, I, da Lei Magna). Merecem destaque, no particular, os planos e programas de proteção social da família. Aliás, como é de comum sabença, a família é a primeira rede de seguridade social, que será coadjuvada pelo Estado se e quando não se revelar apta a garantir as necessidades básicas dos respectivos integrantes. Bem lembrava o saudoso RUY DE AZEVEDI SODRÉ que a proteção da família se dá em ordem a fazer “a coletividade social participar das consequências econômicas de um fato puramente particular.”3 2. A INSTITUIÇÃO FAMILIAR NOS QUADROS DA SEGURIDADE SOCIAL A instituição familiar, por seu turno, é situada em determinado quadro referencial. Seus integrantes tanto podem ser considerados individualmente como beneficiários e, sob esse prisma, estão definidos pela lei como segurados, como podem estar situados em posição de dependência econômica do segurado e, como tal, receberem a qualidade jurídica de dependentes. Recorda LOURIVAL VILANOVA que: “Onde haja direito incidindo em fatos sociais (ou fatos físicos que se tornem relevantes para o direito), aí estará a relação jurídica.” 4 2. Cf. o meu: “A Seguridade Social na Constituição de 1988”, São Paulo, Revista dos Tribunais, 1989, p. 34. 3. RUY DE AZEVEDO SODRÉ ,”Amparo à Família pela Legislação Social”, São Paulo, 1951, p. 23. 4. LOURIVAL VILANOVA, “ As estruturas Lógicas e o Sistema do Direito Positivo”, São Paulo, Revista dos Tribunais, 1977, p. 25. 78 REVISTA DO INSTITUTO DOS ADVOGADOS DE SÃO PAULO v. 35, JANEIRO - JUNHO 2015 No plano familiar estão presentes duas relações jurídicas: a regulada pelo direito de família e a disciplinada pelo direito previdenciário. A primeira qualifica os agentes integrantes da entidade familiar e sob a influência de tal atribuição é que se monta o quadro referencial da segunda relação jurídica. No atual quadro referencial previdenciário, os segurados foram classificados em duas classes: o obrigatório e o facultativo. Segurados obrigatórios são todos trabalhadores, menos aqueles que se acham sob os regimes próprios de seguridade social (como, por exemplo, os servidores públicos, os magistrados e congressistas). De outra parte, segurado facultativo é qualquer pessoa que, mesmo não integrando o mundo do trabalho, quer ingressar ou manter vínculo formal com a seguridade social. A qualidade de segurado, em qualquer das duas situações, é atribuída ao sujeito pela filiação, ato administrativo que documenta o estatuto jurídico previdenciário do sujeito de direito previdenciário. Os maiores de dezesseis anos, como receberam o direito ao trabalho, se resolverem exercer esse direito, estarão enquadrados dentre os segurados. Qualquer que seja a categoria em que esteja enquadrado o segurado, se o mesmo tiver recebido do direito de família certa qualificação jurídica, é a partir dessa perspectiva que se situará a relação previdenciária de dependência. Os beneficiários da proteção social familiar foram definidos pela lei previdenciária como dependentes. O liame existente entre segurados e dependentes é, sobretudo, de natureza econômica. Pode-se dizer, mais propriamente, que a dependência é fato econômico a que a lei atribui consequências jurídicas e, dentre estas, concretamente, a outorga de proteção social previdenciária. Com efeito, apurada a dependência econômica, potencial geradora de estado de necessidade, o sistema de seguridade social se põe em movimento a fim de outorgar ao dependente a correspondente cobertura previdenciária ou assistencial. O dependente detém direito subjetivo público por direito próprio. Não se confunde, tal direito, com o ius atribuído pela lei ao segurado. PARECERES E CONTRIBUIÇÕES DO IASP MENOR SOB GUARDA 79 Assim, por exemplo, se marido e mulher trabalham, são os dois segurados obrigatórios, e, por conseguinte, um também está qualificado como dependente do outro. Por igual, o filho não emancipado pode ser dependente do pai e, este último, está sob a dependência do filho. A dependência econômica não demanda exclusividade. De todo modo, certa classificação dos dependentes pode restringir o grupo protegido. O pano de fundo a partir do qual se entretece essa situação é o da dependência econômica. Quem merecia sustento do segurado, na ausência desse passa a merecer sustento do sistema de seguridade social. A qualidade de dependente exige a inscrição do sujeito no quadro de integrantes de tal categoria jurídica. O segurado foi investido, pela lei, da prerrogativa de efetuar a inscrição do dependente, observadas as formalidades ditadas pelo órgão previdenciário. Aliás, em precedente jurisprudencial que, em meu entendimento, tem cunho interpretativo plenamente conforme com a certeza e segurança das relações jurídicas, o Conselho de Recursos da Previdência Social assentou: “A existência de beneficiário preferencial não impede que o segurado inscreva, para fins meramente declaratórios, pessoa que viva sob sua dependência econômica.”5 A inscrição poderá, excepcionalmente, ser realizada “post mortem” se e quando não tiver sido efetivada pelo segurado. O art. 16 do Plano de Benefícios da Previdência Social (Lei n.º 8.213, de 1991, com a redação dada pelas Leis n. 9.032, de 1995, n. 9,528, de 1997 e 12.470, de 2011) fixa o seguinte quadro referencial dos dependentes: Art. 16. São beneficiários do Regime Geral de Previdência Social, na condição de dependentes do segurado: 5. Trata-se do Enunciado n.º 15, do CRPS que, embora revogado, é de manifesto conteúdo interpretativo do melhor direito. REVISTA DO INSTITUTO DOS ADVOGADOS DE SÃO PAULO v. 35, JANEIRO - JUNHO 2015 80 I - o cônjuge, a companheira, o companheiro e o filho não emancipado, de qualquer condição, menor de 21 (vinte e um) anos ou inválido ou que tenha deficiência intelectual ou mental que o torne absoluta ou relativamente incapaz, assim declarado judicialmente; II - os pais; III - o irmão não emancipado, de qualquer condição, menor de 21 (vinte e um) anos ou inválido ou que tenha deficiência intelectual ou mental que o torne absoluta ou relativamente incapaz, assim declarado judicialmente; IV – revogado. § 1º A existência de dependente de qualquer das classes deste artigo exclui do direito às prestações os das classes seguintes. § 2º. O enteado e o menor tutelado equiparam-se a filho mediante declaração do segurado e desde que comprovada a dependência econômica na forma estabelecida no Regulamento. § 3º Considera-se companheira ou companheiro a pessoa que, sem ser casada, mantém união estável com o segurado ou com a segurada, de acordo com o § 3º do art. 226 da Constituição Federal. § 4º A dependência econômica das pessoas indicadas no inciso I é presumida e a das demais deve ser comprovada. Para os propósitos deste estudo convém trazermos à tela de considerações a redação do § 2º, do art. 16, modificado pela Lei n. 9.528, de 1997. Assim se encontrava grafado o comando em questão: § 2º Equiparam-se a filho, nas condições do inciso I, mediante declaração do segurado: o enteado; o menor que, por determinação judicial, esteja sob a sua guarda; e o menor que esteja sob sua tutela e não possua condições suficientes para o próprio sustento e educação. Atentemos, ainda para a regra estampada no § 2º, do artigo em comento. A dependência econômica das pessoas indicadas no inciso I é presumida, diz a regra, enquanto que, a das demais, é de ser comprovada. PARECERES E CONTRIBUIÇÕES DO IASP MENOR SOB GUARDA 81 Portanto, presunção ditada pelos termos da subordinação econômica - viver às expensas - do dependente ao segurado dispensa o respectivo beneficiário de produzir qualquer comprovação dessa vivência. Dependentes arrolados no inciso I, do art. 16 da Lei, ficam eximidos de produzir qualquer prova da dependência econômica. Quanto aos demais, o liame econômico está subordinado à manifesta demonstração, no mundo fenomênico, da vivência às expensas do segurado. Registrada essa observação preliminar, passemos ao exame da primeira categoria de dependentes, justamente aqueles em cujo favor milita a presunção de vivência às expensas do segurado. Esse rol de dependentes – a quem o Regulamento da Previdência Social batiza de preferenciais – está, atualmente, assim adnumerado no art. 16, I, do Plano de Benefícios, com a redação que lhe deu a Lei n. 12.470, de 2011: I - o cônjuge, a companheira, o companheiro e o filho não emancipado, de qualquer condição, menor de 21 (vinte e um) anos ou inválido ou que tenha deficiência intelectual ou mental que o torne absoluta ou relativamente incapaz, assim declarado judicialmente Trata-se de certo grupo de pessoas situadas, pela lei, em igual posição jurídica, no quadro referencial dos dependentes do segurado. Não existe, entre elas, qualquer primazia. Todas fazem jus, em igual posição jurídica, aos benefícios previdenciários. Portanto, tanto o cônjuge quanto o companheiro e os filhos de qualquer condição merecem idêntico tratamento na esfera da previdência social. Aliás, o art. 226, § 5º, da Constituição de outubro de 1988, manifestamente, situa o homem e a mulher em posição de mútua dependência. Por igual, entre esposa e companheira, o marido e companheiro, se estabelece a chamada concorrência, em igualdade de condições, às prestações. Incumbe comprovar o vínculo entre o segurado e o dependente, mediante fórmulas jurídicas concernentes a cada uma das distintas situações. Assim, por exemplo, o casamento será comprovado mediante o registro civil, 82 REVISTA DO INSTITUTO DOS ADVOGADOS DE SÃO PAULO v. 35, JANEIRO - JUNHO 2015 devidamente certificado pelo órgão competente. Sublinhe-se: incumbe ao interessado demonstrar tão somente o liame entre as partes, vez que é presumida a dependência econômica das pessoas enquadradas no inciso I, do artigo em estudo. Tal demonstrativo decorre da dúplice perspectiva em que se situa o sujeito de direitos: a] a econômico e; b] a jurídica. Ao vetor jurídico, ainda que conglobe o vetor econômico, não é dado desfazer posições paralelas na vida social do segurado: a familiar e a previdenciária. A ordenança legal, à partida, considera a realidade familiar para, de seguida, conferir a competente cobertura do sistema previdenciário. É outra a qualidade jurídica da vetusta expressão «filhos de qualquer condição» desde que colocada sob a perspectiva do art. 227, § 6º da Constituição. Nenhuma discriminação pode existir entre os filhos. O fenômeno jurídico da concorrência carrega consigo a equiparação, entre os sujeitos, dos respectivos direitos. Todos os sujeitos catalogados no inciso I, do art. 16 do Plano de Benefícios, possuem os mesmos direitos Todos são credores das prestações, em igualdade de condições. É bem verdade que incumbe ao segurado equiparar entre dependentes, desde que observada a restritíssima regra fixada pelo § 2º do art. 16. Ainda assim, no entanto, surge manifesto o discrimen entre os beneficiários: os filhos seguem mantendo a presunção de dependência econômica, enquanto que os equiparados haverão de comprovar a vivência a cargo do segurado, ainda que não exclusiva. Fica, desde logo, excluído do quadro dos dependentes aquele que deixa de viver às custas do segurado. Enfileirado sob o mesmo estatuto protetor do filho encontrava-se, segundo a tradição do direito previdenciário, o menor sob guarda. Com efeito, o Decreto-Lei n. 66, de 21 de novembro de 1966, ao alterar a redação do art. 11 da Lei Orgânica da Previdência Social (Lei n. 3.807, de 1960), introduzia o seguinte preceptivo: PARECERES E CONTRIBUIÇÕES DO IASP MENOR SOB GUARDA 83 “Art. 11. Consideram-se dependentes dos segurados, para os efeitos desta Lei: I - a esposa, o marido inválido, os filhos de qualquer condição menores de 18 (dezoito) anos ou inválidos, e as filhas solteiras de qualquer condição, menores de 21 (vinte e um) anos ou inválidas; .................................................................. § 2º Equiparam-se aos filhos, nas condições estabelecidas no item I, e mediante declaração escrita do segurado: a) o enteado; b) o menor que, por determinação judicial, se ache sob sua guarda; c) o menor que se ache sob sua tutela e não possua bens suficientes para o próprio sustento e educação. ................................................................... Em verdade, as prestações da seguridade são fieis a esse modelo essencial. Fundamenta o sistema de seguridade social o preceito estampado no art. 194, parágrafo único, I, da Constituição pelo qual a ordem jurídica se compromete com a universalidade da cobertura e do atendimento. Como tive oportunidade de explicar em outra oportunidade, esse princípio, quanto aos sujeitos protegidos, pode ser traduzido da seguinte forma: Todas as pessoas colocadas em situação de risco social terão direito ao atendimento integral.6 Tal modelo atende, sobretudo, a três ordens de exigências: i] as que são próprias dos direitos humanos; ii] as que confluem com os objetivos do sistema organizado a partir do art. 194, da Constituição e, finalmente, iii] à conformação técnica de cada uma das prestações. 6. Cf. o meu: Noções Preliminares de Direito Previdenciário, São Paulo, Quartier Latin, 2ª edição, 2010, p. 106 REVISTA DO INSTITUTO DOS ADVOGADOS DE SÃO PAULO v. 35, JANEIRO - JUNHO 2015 84 3. OS DIREITOS HUMANOS. Na evolução da concepção dos direitos humanos, como se sabe, foram engendrados, com especial empenho, os assim denominados direitos civis e políticos, dentre os quais se destaca o direito da família. E, no estágio contemporâneo, essa evolução foi sumariada pela Declaração Universal dos Direitos Humanos, de 10 de dezembro de 1948. O texto do Art. XXV da Declaração, tal como aprovado pela Resolução n. 317 – A, da Assembleia Geral das Nações Unidas, assim se acha grafado: Artigo XXV 1. Toda pessoa tem direito a um padrão de vida capaz de assegurar a si e a sua família saúde e bem estar, inclusive alimentação, vestuário, habitação, cuidados médicos e os serviços sociais indispensáveis, e direito à segurança em caso de desemprego, doença, invalidez, viuvez, velhice ou outros casos de perda dos meios de subsistência fora de seu controle. 2. A maternidade e a infância têm direito a cuidados e assistência especiais. Todas as crianças nascidas dentro ou fora do matrimônio, gozarão da mesma proteção social. O comando assegura, desde logo, o direito da família ao bem-estar, expressão que compreende prestações fornecidas pelos programas de proteção social, dentre os quais o mais destacado é o da seguridade social. Tal exigência vem reforçada, no ordenamento constitucional brasileiro, por tríade elementar: a) a dignidade da pessoa humana; b) a prevalência dos direitos humanos e; c) a promoção do bem de todos. Capacitemo-nos bem desses três fundamentos. 3.1. A DIGNIDADE DA PESSOA HUMANA. Conquanto não dependa de configuração em texto normativo, vez que é valor que antecede à juridicidade, a dignidade é elemento constitutivo da sociedade e chave essencial de toda a caminhada da humanidade rumo à justiça. Explica, com claridade, MIGUEL REALE: PARECERES E CONTRIBUIÇÕES DO IASP MENOR SOB GUARDA 85 “A ideia de valor, para nós, encontra na pessoa humana, na subjetividade entendida em sua essencial intersubjetividade, a sua origem primeira, como valor-fonte de todo o mundo das estimativas, ou mundo histórico-cultural. ”7 Não é por acaso ou por exigências topográficas que a dignidade da pessoa humana está colocada no Art. 1º da Constituição. É que a força instauradora e transformadora da Constituição encontra suporte em tal valor, que haverá de ser reconhecido como tal, preservado e restaurado se e quando restar abalado. Daí que, ao considerar a pessoa humana enquanto tal, o ordenamento jurídico a um só tempo reconhece incumbir ao próprio homem o cuidado com a vida e o desenvolvimento individual e social, igualmente trata de aparelhar a pessoa com o ferramental apto a permitir que aquela, tanto na dimensão individual como em projeção comunitária, conquista o ideal do bem estar. JORGE MIRANDA sublinha que a dignidade da pessoa humana confere: “...unidade de sentido, de valor e de concordância prática ao sistema de direitos fundamentais”, 8 Justamente porque a pessoa é: “...fundamento e fim da sociedade e do Estado”.9 Parece certo que a dignidade humana parte da “noção decisiva de pessoa” que, como se sabe, constitui a base do cristianismo, como sublinha MOUNIER. 10 Trata-se, melhor dizendo, de valor essencial para a compreensão do ser pessoa e do lugar que está reservado à pessoa no interior do ordenamento jurídico. KANT, com propriedade, explica que a pessoa se acha investida de valor por si e em si. O notável filósofo explicita tal ideia no conhecido imperativo prático: “Age de tal maneira que possas usar a humanidade, tanto em tua pessoa como na pessoa de qualquer outro, 7. MIGUEL REALE, Introdução à filosofia, 2. edição, Saraiva, São Paulo, 1989, p. 168 8. JORGE MIRANDA, Manual de Direito Constitucional, Tomo IV. Lisboa: Ed. Coimbra, segunda edição, 1993, p. 180 9. JORGE MIRANDA, Manual de Direito Constitucional, citado, página 180. 10. EMMANUEL MOUNIER, O Personalismo, Martins Fontes, Santos, 1964, p. 23. 86 REVISTA DO INSTITUTO DOS ADVOGADOS DE SÃO PAULO v. 35, JANEIRO - JUNHO 2015 sempre e simultaneamente como fim e nunca simplesmente como meio”11. Concluamos este ponto afirmando que a dignidade da pessoa humana é o primeiro e decisivo critério de interpretação de todo o direito e, particularmente, dos direitos humanos. Ora, sendo certo que a Declaração de 1948 se apresenta – e realmente o é - como o denominador comum da sociedade humana destes tempos, será necessário que esse histórico documento, lido sob a chave hermenêutica da dignidade humana, encontre efetividade nos quadrantes da Constituição brasileira de 1988 também sob o mesmo critério de interpretação. 3.2. A PREVALÊNCIA DOS DIREITOS HUMANOS. A prevalência dos direitos humanos é de ser considerada a partir do tema da estrutura escalonada das normas jurídicas, consoante a conhecida concepção de Kelsen. 12 Poderíamos considerar que, no plano ideal, o catálogo de direitos humanos estampado na Declaração de 1948, conquanto não se ache revestido de formalidades inerentes à celebração de um ato internacional, revela a norma fundamental internacional de direitos humanos que a comunidade mundial aceita por consenso.13 11. IMMANUEL KANT, Fundamentação da metafísica dos costumes e outros escritos, tradução de Leopoldo Holzbach, Martin Claret, São Paulo, 2004, p. 64. 12. HANS KELSEN, Teoria Pura do Direito, Coimbra, Armênio Amado, 1974, tradução de João Baptista Machado, 3ª ed., páginas 309 e seguintes. O autor também cogita da existência de idêntica estrutura nos quadrantes do direito internacional (p. 431 e segs.). 13. A Declaração é como que a súmula do pensamento das Nações Unidas sobre os direitos humanos. Aos seus formuladores não pareceu que, àquela altura, devesse conformar-se como tratado ou convenção. Restou reservada tal função aos dois Pactos de 1966. É certo que se trata de um consenso aprovado pela unanimidade dos integrantes. É verdade que houve oito abstenções (África do Sul, Arábia Saudita Iugoslávia, Polônia, Tchecoslováquia União Soviética, Ucrânia e Rússia Branca, e, a e abstiveram-se de votar. Em novembro de 2013, a África do Sul foi eleita para o Conselho de Direitos Humanos da ONU. Integram igualmente o Conselho a Russia e a Arabia Saudita. A Tchecoslováquia foi dissolvida em 1993. A Republica Checa, sua sucessora, assim como a Bielorrussia, a Polonia e a Ucrânia, são signatárias dos dois Pactos que projetam, no plano formal, a Declaração. A Iugoslávia foi desintegrada e as repúblicas que a sucederam Eslovênia, Croácia, Bósnia e Herzegovina, Macedônia, Montenegro, Sérvia, - integraram-se à União Européia e a seu sistema de direitos humanos, posto em ordem à Declaração de 1948. Portanto, é unânime a adesão daqueles que se abstiveram inicialmente, ao bill normativo internacional dos direitos humanos. PARECERES E CONTRIBUIÇÕES DO IASP MENOR SOB GUARDA 87 Para simplificar ao máximo a questão, dentro dos estreitos limites deste estudo, o mesmo pode ser situado como resposta singela à seguinte indagação: Natureza constitucional ou caráter de supralegalidade dos tratados internacionais de direitos humanos? 14 Essa questão só aparentemente teria sido superada pelo advento da Emenda Constitucional n. 45, de dezembro de 2004, que acrescentou o seguinte parágrafo ao art. 5º da Constituição: § 3º Os tratados e convenções internacionais sobre direitos humanos que forem aprovados, em cada Casa do Congresso Nacional, em dois turnos, por três quintos dos votos dos respectivos membros, serão equivalentes às emendas constitucionais. Digo que só aparentemente a questão foi superada porque, em verdade, as normas internacionais de direitos humanos que vierem a ser introduzidas no ordenamento jurídico pátrio com observância do processo de produção normativa estatuído pelo preceito acima transcrito já se encaixam, na estrutura escalonada do ordenamento jurídico, no quadro das emendas constitucionais, ocorre que até o presente momento, somente um diploma internacional de direitos humanos foi apreciado pelas duas Casas do Congresso por meio do procedimento especial e qualificado de deliberação. Deste modo, para uma concepção estritamente positivista, os tratados de direitos humanos se acham colocados em nível superior ao das normas legais, mas não podem superar, em termos estritos, as normas constitucionais. Como afirma o Supremo Tribunal Federal: “ . o caráter especial desses diplomas internacionais sobre direitos humanos lhes reserva lugar específico no ordenamento jurídico.”15 Pode-se dizer que ao encravar o inciso II no artigo 4º da Constituição, como referencial que há de reger as relações da Republica do Brasil tanto com a sua gente como defronte aos estrangeiros, o constituinte deu por concluído o processo histórico pelo qual nosso país se ombreia com aqueles que fazem questão absoluta de situar os 14. A questão figura na Ementa do Habeas Corpus 96.772, Relator o Ministro CELSO DE MELLO, julgado pelo Supremo Tribunal Federal, publicado no Diário da Justiça de 21/08/2009. 15. Vide Ementa do HC 96772-SP, relator o Min. Celso de Mello, publicada no Diário da Justiça de 21/08/2009. REVISTA DO INSTITUTO DOS ADVOGADOS DE SÃO PAULO v. 35, JANEIRO - JUNHO 2015 88 direitos humanos no mais elevado patamar da normatividade e da vivência nacional e internacional. Adequadamente compreende Kildare Gonçalves Carvalho que: “o princípio da prevalência dos direitos humanos situa o homem como destinatário do direito internacional”16 Avançando pouco mais no tema, não há como conviverem no ordenamento constitucional o princípio da prevalência dos direitos humanos e leis que impeçam ou inibam a cabal efetividade de tais direitos. 3.3. A PROMOÇÃO DO BEM DE TODOS. Em linha com os comandos que descrevem os assim chamados Princípios Fundamentais da Constituição (Titulo I), se acha catalogado o art. 3º, cujo inciso IV estabelece, dentre os objetivos fundamentais da República o da promoção do bem de todos. A efetividade de tal desiderato encontra sua mais genuína expressão mediante o trabalho, adequadamente catalogado como o valor dotado de primazia para a Ordem Social (art. 193). Entretanto, a finalidade da Ordem Social, contemplada pelo mesmo comando, é o bem estar social, que se concretiza no bem de todos. Operam o bem estar, nos quadrantes do assim chamado Estado do Bem-Estar (Welfare State) as políticas sociais e econômicas de cunho prestacional, notadamente aquelas levadas a efeito pelo sistema de seguridade social. De feito. Observado o catálogo dos direitos sociais expressos nos artigos 6º, 7º, 196 e seguintes, da Constituição de 1988, de pronto se percebe que o principal instrumento com que conta o Estado do Bem-Estar é a seguridade social. Sob a cobertura e o atendimento da seguridade social serão colocados os trabalhadores em geral e respectivos dependentes. Aliás, o estudo presente é relacionado com a seguridade social devida ao dependente do trabalhador. A seguridade social é o aparato estatal que promove, sob certas e determinadas 16. KILDARE GONÇALVES CARVALHO, Direito constitucional. 14. ed. Belo Horizonte: Del Rey, 2008. p. 661. PARECERES E CONTRIBUIÇÕES DO IASP MENOR SOB GUARDA 89 condições técnicas, o bem de todos, fornecendo as prestações de benefícios e serviços. Força concluir que a seguridade social, expressão do direito previdenciário, integra o catálogo dos direitos humanos e deve prestações com plena observância da prevalência desses direitos e com vistas à promoção do bem de todos. 4. OS OBJETIVOS DA SEGURIDADE SOCIAL. A morte é um dos riscos cobertos pela seguridade social. Verificada esse fato, o objetivo da seguridade social, no caso especifico, consiste em oferecer a prestação apta a atender àquele que dependia economicamente, até então, da pessoa falecida. Portanto, os dependentes são credores do benefício, cuja concessão não será retardada pela falta de requerimento de quaisquer deles.17 Cada qual pode exercer o respectivo direito, independentemente ou até mesmo em oposição aos demais que se apresentem revestidos de igual qualidade jurídica. No caso, não se instaura concurso de credores e nem se espera que os interessados todos postulem a prestação. Acorre ao INSS, de ordinário, quem tinha provido diretamente o seu sustento pelo segurado, não esperando nada nem ninguém, pois está em necessidade, emergente necessidade como quer VENTURI, provocada pela perda de ingresso que o falecido percebia e com o qual sustentava a si mesmo e os seus. O benefício, que é a denominada pensão por morte, independe de carência e será devido de imediato. Havendo habilitação posterior, o beneficiário retardatário ingressa na relação jurídica a partir de então e novo rateio do benefício será efetuado. Havendo perda da qualidade de dependente (por exemplo, pela maioridade) segue a prestação sendo devida aos demais dependentes, após novo rateio. 17. O art. 76 da Lei n. 8.213/91 assim dispõe: A concessão da pensão por morte não será protelada pela falta de habilitação de outro possível dependente, e qualquer inscrição ou habilitação posterior que importe em exclusão ou inclusão de dependente só produzirá efeito a contar da data da inscrição ou habilitação. 90 REVISTA DO INSTITUTO DOS ADVOGADOS DE SÃO PAULO v. 35, JANEIRO - JUNHO 2015 A pensão equivale, hoje em dia, a 100 % (cem por cento) do salário-de-benefício do segurado ou da que teria direito se estivesse aposentado por invalidez na data do respectivo falecimento. A única exigência para que o sujeito de direitos faça jus à prestação é que o mesmo viva a cargo do segurado falecido. MOACYR VELLOSO CARDOSO DE OLIVEIRA sublinhava que não existia regra rígida sobre os meios de prova de dependência econômica.18 É certo que, presentemente, todos os meios admitidos em direito podem ser acolhidos, bastando que se vislumbre o exemplário armado no bojo do art. 22 do Regulamento da Previdência Social (Decreto n.º 3.048/99). Serão chamados a integrar a relação jurídica, implementada, no mundo fenomênico, a situação de risco, os irmãos do segurado, desde que fique demonstrada a ausência de outros dependentes e a vivência às expensas do segurado. Vez que comprovada a assim chamada qualidade de dependente, não há como se denegar o beneficio a quem dele necessitar. 4.1. O DIREITO PREVIDENCIÁRIO. No atual estágio da seguridade social, quanto mais abrangente seja o quadro dos beneficiários com maior presteza será alcançado vetor constitucional da promoção do bem de todos. A exclusão de um daqueles beneficiários ao invés de caminhar a favor do objetivo constitucional se volta contra tal propósito. Entendo que, para perfilar-se com o móvel essencial da seguridade social, a previdência social deve deferir a prestação familiar ao menor sob guarda, em quantia suficiente para a mantença desse e dos demais dependentes, assegurando-se, destarte, o padrão de vida equivalente ao que lhes era conferido pelo segurado. E, como em todas as situações a que confere cobertura, a previdência social não estará atendendo a pessoa tão somente em sua posição individual. Estará, mais propriamente, conferindo proteção social, promovendo o bem de 18. “A Dependência Econômica na Previdência Social”, in Revista de Previdência Social n. 122, p. 3. PARECERES E CONTRIBUIÇÕES DO IASP MENOR SOB GUARDA 91 todos, consoante o comando da Lei Suprema, ao integrante de um grupo que mereceu especial atenção do constituinte. Eis como se encontra enunciado o art. 227 da Superlei: Art. 227. É dever da família, da sociedade e do Estado assegurar à criança, ao adolescente e ao jovem, com absoluta prioridade, o direito à vida, à saúde, à alimentação, à educação, ao lazer, à profissionalização, à cultura, à dignidade, ao respeito, à liberdade e à convivência familiar e comunitária, além de colocálos a salvo de toda forma de negligência, discriminação, exploração, violência, crueldade e opressão. (Redação dada Pela Emenda Constitucional nº 65, de 2010) § 1º O Estado promoverá programas de assistência integral à saúde da criança, do adolescente e do jovem, admitida a participação de entidades não governamentais, mediante políticas específicas e obedecendo aos seguintes preceitos: (Redação dada Pela Emenda Constitucional nº 65, de 2010) § 3º - O direito a proteção especial abrangerá os seguintes aspectos: ......................................................... II - garantia de direitos previdenciários e trabalhistas; ..................................................................................... VI - estímulo do Poder Público, através de assistência jurídica, incentivos fiscais e subsídios, nos termos da lei, ao acolhimento, sob a forma de guarda, de criança ou adolescente órfão ou abandonado Portanto, todos os direitos constitucionais, que integram o conceito de atendimento integral (art. 196) ou mesmo de proteção especial (art. 227, § 3º) terão necessariamente que confluir para uma única direção. Apreciada em termos sociais, a normativa constitucional não deixa nenhuma dúvida – in claris cessat interpretatio - a respeito da extensão e do alcance dos direitos sociais conferidos à criança e ao adolescente. Como se não fossem suficientes os termos amplos e objetivos, o inciso VI do mesmo preceito ainda insiste: o Poder Público deve estimular e incentivar, até mesmo com medidas fiscais, a guarda da criança e do adolescente. REVISTA DO INSTITUTO DOS ADVOGADOS DE SÃO PAULO v. 35, JANEIRO - JUNHO 2015 92 Nenhum comando legal pode afrontar essas diretrizes, componentes de urdidura bem amarrada, que alia o direito social geral das crianças e dos adolescentes com o direito especial, de cunho previdenciário, a que faz nominal e expressa menção o parágrafo transcrito literalmente. Sobre ser manifesto o entrelaçamento entre o direito familiar e o direito previdenciário cujos titulares integram o grupo familiar, ninguém pode denegar que o direito à proteção social de cunho previdenciário, a ser fruído pelas crianças e adolescentes projeta, no particular, a dignidade humana. De fato, como acentua o art. 3º do Estatuto da Criança e do Adolescente, todos os direitos fundamentais desse grupo são (devem ser) exercidos em condições de liberdade e de dignidade. Eis o comando do ECA: Art. 3º A criança e o adolescente gozam de todos os direitos fundamentais inerentes à pessoa humana, sem prejuízo da proteção integral de que trata esta Lei, assegurando-se-lhes, por lei ou por outros meios, todas as oportunidades e facilidades, a fim de lhes facultar o desenvolvimento físico, mental, moral, espiritual e social, em condições de liberdade e de dignidade O desenvolvimento da pessoa humana da criança e do adolescente está em manifesta conexão com a respectiva proteção social de cunho previdenciário. A muitos e muitos somente restará, como instrumental econômico e social capaz de assegurar o desenvolvimento da pessoa de que aqui se cuida, o valor mensal do benefício previdenciário. Dentre os critérios a serem observados em toda e qualquer modificação legislativa de leis que concretizam direitos sociais está, como é curial, o da impossibilidade de afronta aos valores constitucionais. Uma norma não ingressa no ordenamento jurídico pátrio se tem por escopo forcejar a destruição ou redução dos direitos já garantidos pela Leis das Leis. Aliás, é bom critério de exegese o constante da parte final do caput do art. 7º da Constituição. Após fazer referência genérica aos direitos dos trabalhadores e de seus dependentes, PARECERES E CONTRIBUIÇÕES DO IASP MENOR SOB GUARDA 93 o constituinte acrescenta: “além de outros que visem à melhoria de sua condição social”. Vale dizer, os direitos são outorgados em ordem à melhoria da condição social dos trabalhadores e modificações devem ser realizadas com idêntico escopo, em conformidade – na esfera específica da seguridade social – com o objetivo último da promoção do bem de todos. O fato de ter uma medida provisória – que já não passaria pelo primeiro teste de constitucionalidade – mesmo depois de convertida em lei, ter intentado excluir o menor sob guarda do rol dos beneficiários do segurado falecido não resiste à interpretação conforme com a Constituição que emana do sistema de proteção social no seu todo considerado. Tampouco se sustenta a exclusão diante da garantia constitucional da proteção dos direitos previdenciários da criança e do adolescente e da regra estampada no Estatuto da Criança e do Adolescente. Por fim, não para em pé a exclusão perpetrada pela medida provisória depois convertida em lei pela elementar regra hermenêutica que ensina: a lei geral não prevalece sobre a lei especial. Com efeito, a Lei n. 9.528, de 1997, ao mutilar o Plano de Benefícios da Previdência Social nada pondo em seu lugar para a disciplina do direito previdenciário aplicável ao menor sob guarda não poderia se sobrepor ao ditame do Estatuto da Criança e do Adolescente que, concretamente, outorgou a qualidade de dependente a essa figura jurídica. Ao explicar o instituto da antinomia, MARIA HELENA DINIZ leciona: “Antinomia é o conflito entre duas normas, dois princípios, ou de uma norma e um princípio geral de direito em sua aplicação prática a um caso particular” 19 A mesma autora, na sua classificação das antinomias, refere que casos como o que estamos a estudar são de antinomia de segundo grau. São assim denominadas antinomias em que norma anterior especial conflita com a norma posterior geral. A antinomia, em casos que tais, é resolvida pelo princípio da especialidade, 19. MARIA HELENA DINIZ, Compêndio de introdução à ciência do direito: introdução à teoria geral do direito, à filosofia do direito, à sociologia jurídica. 22ª ed. ver. e atual. São Paulo: Saraiva, 2011, p. 501. REVISTA DO INSTITUTO DOS ADVOGADOS DE SÃO PAULO v. 35, JANEIRO - JUNHO 2015 94 obediente ao velho aforismo romano: lex posterior generalis num derrogati legi priori speciali É, manifestamente o que se tem aqui. A lex posterior generalis – que cuida da descrição genérica dos beneficiários do Regime Geral de Previdência Social (RGPS) - não poderia derrogar a lex speciali que a precedeu, cujo teor dá disciplina aos direitos constitucionais da criança e do adolescente, sob o signo da proteção integral de tais sujeitos de direito.20 A regra, na descrição dos dependentes do segurado, é a que se encontra estampada no art. 16 da Lei n. 8.213, de julho de 1991, com a supressão cominada pela Lei n. 9.5.28, de 1997. A exceção, para o caso, consiste na qualificação jurídica do menor posto sob guarda como sujeito de direitos previdenciários, em plena conformidade com a garantia constitucional da proteção integral. Observemos bem. A norma especial carrega consigo os elementos essenciais enunciativos da qualidade do dependente do segurado. A norma especial já informara, antes mesmo da edição da norma geral – o Plano de Benefícios da Previdência Social – o critério norteador conforme com a Constituição, de proteção previdenciária do menor sob guarda. O legislador, em verdade, tomou na devida conta outro essencial elemento para o deslinde dessa grave questão. O legislador do ECA considerou que o instituto da guarda não é o mero esquema burocrático formal de manifestação do poder familiar. O Estatuto pretende, sobretudo, situar a criança e o adolescente no seio da família, onde não só o poder seja exercido pelo guardião. Para além do poder, que se configure o amparo, a solidariedade, o amor. Enfim, uma verdadeira família! A família, insista-se, é o primeiro estamento de proteção social. Núcleo fundamental e 20. O artigo 1º da Lei n. 8.069, de julho de 1990, denominada Estatuto da Criança e do Adolescente, resume e compendia o teor do Diploma: dispõe sobre a proteção integral à criança e ao adolescente. PARECERES E CONTRIBUIÇÕES DO IASP MENOR SOB GUARDA 95 natural da sociedade, como guardiã se vê investida do dever grave de proporcionar moradia, alimentação, educação, saúde e bem estar. Tudo com o propósito de substituir-se a quem, por circunstâncias diversas e adversas, que não vem a pelo discutir aqui, não se revelou apto a proporcionar à criança e ao jovem tais atributos elementares inerentes à vida digna. Ademais, incumbe à sociedade e ao Estado atuarem, em linha com o princípio da subsidiariedade. Ao conferir ao menor sob guarda o mesmo status atribuído ao filho, o legislador cumpre o mandato constitucional que lhe indicou o caminho: estimular a guarda da criança e do adolescente. É bem verdade que a guarda é, em sua essência, instituto de cunho provisório, apto a solucionar situações emergenciais. Mas, ninguém ignora que as vicissitudes da vida acabam por estender até a maioridade o status de tal figura jurídica. Ao impor a Medida Provisória n. 1523, de 11 de outubro de 1996, sucessivamente reeditada, até converter-se na Lei n. 9.528, de 1997, muito possivelmente o Poder Executivo interpretava, a seu modo, certa práxis que pode, decerto, ocorrer. Consistiria, essa práxis, na utilização do instituto da guarda pura e simplesmente para a obtenção do benefício previdenciário. Como reconhecem Daniel Machado da Rocha e José Paulo Baltazar Junior: É verdade que muitas vezes se buscou o deferimento da guarda de menores para fins de propiciar abatimentos fiscais ao guardião, ou alcançar benefícios previdenciários...21 Ocorre que a drástica supressão do instituto jurídico de nenhum modo pode ser justificada sob tal fundamento. Incumbe ao Poder Público velar pela moralidade (art. 37 da Constituição) e não suprimir direitos sob pretexto da imoralidade. Verificada a burla à legislação, o caminho natural e lógico consistiria, pura e simplesmente, no cancelamento da pensão. 21. DANIEL MACHADO DA ROCHA e JOSÉ PAULO BALTAZAR JUNIOR, Comentários à Lei de Benefícios da Previdência Social. Porto Alegre, Livraria do Advogado, 7ª edição, 2007, p. 103. REVISTA DO INSTITUTO DOS ADVOGADOS DE SÃO PAULO v. 35, JANEIRO - JUNHO 2015 96 A estratégia governamental, a que de maneira estranha e inexplicável, deu guarida o Congresso Nacional, afronta toda a construtura da proteção social constitucional, pacientemente armada em 1988. Sob perspectiva previdenciária, ademais, não existe distinção jurídica entre os institutos da tutela e da guarda, meros revestimentos da condição de dependência, quando muito aplicáveis – no plano formal – aos quadrantes do direito privado. O direito previdenciário é direito público. A pessoa da criança e do adolescente estão investidas, tanto pela Constituição de outubro de 1988 quanto pelo ECA, de 1990, do direito subjetivo público aos benefícios e serviços devidos pelo sistema de seguridade social. Sobre ser cabal afronta ao princípio dos princípios da Lei Magna – a isonomia – porque trata desigualmente situações que, sob a perspectiva previdenciária, são iguais, o legislador avança em direito social já consagrado pelo sistema jurídico. Assinala Souto Maior Borges: Por isso se diz que a igualdade garante a igualdade. Essas normas somente podem ser interpretadas uma em conexão com a outra. Se essa conexidade for desconsiderada, abre-se oportunidade à aplicação da igualdade apenas formal (igualdade perante à lei), com prejuízo à igualdade material (igualdade na lei) ”.22 Impõe, a norma em comento, afronta ao princípio constitucional da isonomia e, igualmente, manifesto retrocesso social. Impede, ademais, que seja cumprido o já referido objetivo constitucional da universalidade da cobertura e do atendimento que é, no âmbito da seguridade social, a mais cabal expressão da isonomia.23 Sem que desempenhe a tarefa de universalização, o sistema de seguridade social estará sendo tolhido na sua especifica missão constitucional de dar cumprimento ao fim da ordem social: o bem estar e a justiça, consoante o teor expresso do art. 193 da 22. JOSÉ SOUTO MAIOR BORGES, Significação do princípio da isonomia na Constituição de 1988, Revista de Direito Público. São Paulo, n° 93, ano 23, jan. /mar. 1990, p. 34-40. 23. Como escrevi em outra oportunidade: “A universalidade do atendimento e da cobertura pode ser considerada a especifica dimensão do princípio da isonomia (garantia estatuída no art. 5º da Lei Maior) na Ordem Social. É a igual proteção para todos. ” In Noções Preliminares de Direito Previdenciário, citado, p. 106. PARECERES E CONTRIBUIÇÕES DO IASP MENOR SOB GUARDA 97 Lei Fundamental. Na conhecida teorização de Canotilho, os direito sociais não podem ser atingidos por normas que lhes inferiorizem o espectro de aplicação. Consoante a lição do mestre de Coimbra: Neste sentido se fala também de cláusulas de proibição de evolução reaccionária ou de retrocesso social (ex. consagradas legalmente as prestações de assistência social, o legislador não pode eliminá-las posteriormente sem alternativas ou compensações <<retornando sobre seus passos>>; reconhecido, através de lei, o subsídio de desemprego como dimensão do direito ao trabalho, não pode o legislador extinguir este direito, violando o núcleo essencial do direito social constitucionalmente protegido)24 Não pode o legislador, com base nesse oportuno critério de interpretação dos direitos sociais, impor o retrocesso antissocial em que consiste a exclusão de alguém do quadro de dependentes do RGPS. Ao apreciar a questão, o Desembargador Federal Sergio Nascimento, conhecido especialista em direito previdenciário asseverou, em sintético julgado: “Restou consignado na decisão ora embargada que a Lei nº 9.528/97 não teve o condão de revogar o parágrafo 3º, do art. 33, do ECA, pois não poderia o legislador ordinário contrariar os princípios e valores constitucionais em matéria de promoção do melhor interesse da criança e do adolescente. A alteração legislativa deve, pois, ser interpretada de modo a se considerar que apenas nos casos de colocação do menor sob guarda, no sentido formal, mas sem a correspondente constituição da família assistencial, é que não haverá o direito à pensão previdenciária. Entretanto, nos casos em que a criança ou o adolescente foi regular e corretamente colocado em família substituta sob a forma da guarda, haverá direito à pensão. ”25 A discriminação odiosa, ofensiva à isonomia e ao direito social contraria, ademais, a tradicional acolhida que as crianças e adolescentes sempre receberam, seja nos 24. JOSÉ J. GOMES CANOTILHO, m. Direito Constitucional e teoria da constituição. Coimbra: Almedina, 2006, p. 177 25. BRASIL. Tribunal Regional Federal da 3.ª Região. Agravo de Instrumento n.º 2010.03.00.037344-0. Partes [?]. Relator: Des. Fed. Sergio Nascimento. Julgado em 10/05/2011. Publicado em 18/05/2011. Disponível em <http://www.trf3.jus. br/NXT/Gateway.dll?f=templates&fn=default.htm&vid=trf3e:trf3ve. > Acesso em 25 de agosto de 2014. REVISTA DO INSTITUTO DOS ADVOGADOS DE SÃO PAULO v. 35, JANEIRO - JUNHO 2015 98 quadrantes da tutela como na esfera da guarda. Sem adentrarmos ao mérito de certo julgamento, ao reproduzir os dizeres de um Termo de Entrega e Guarda, o Desembargador Rui Portanova, do Tribunal de Justiça do Rio Grande do Sul como que sumariou o “ethos” do instituto em estudo. Assim se achava redigido o referido documento: “Pelo segundo casal comparecente foi dito que recebe o casal a mencionada menor de bom grado, como já o fez extra-oficialmente, prometendo tratar dita menor como se sua filha fosse” (fl. 33, grifei). 26 E, como não poderia deixar de ser, agindo em consequência, o guardião fez questão de que outro documento identificasse com que qualidade estava sendo objeto de seus cuidados a criança que, desde os três anos de idade, fora posta sub sua guarda: “ Na carteira do antigo INPS, em nome de F., consta o nome de M. N. como “filha adotiva” 27). Claro, o verdadeiro guardião deve cuidar, e efetivamente cuida, da criança e do adolescente, postos sob os seus cuidados, como trata dos integrantes de sua própria família. Foi pleno de coerência o primitivo preceito da lei previdenciária, encravado no sistema jurídico em 1966, portanto bem antes dos avanços estabelecidos pela Constituição de 1988, quando equiparou o menor sob guarda ao filho, conferindo o status que a cultura da comunidade desde sempre imprimiu a essa peculiar situação jurídica e de fato. Ora, encadeado com os novos rumos que ao direito brasileiro imprimiu a Constituição de 1988, o Congresso Nacional introduziu na ordem jurídica pátria, por meio do Decreto Legislativo n° 28, de 14 de setembro de 1990, a Convenção sobre os Direitos da Criança, cujo artigo 26, em linha com a promoção do bem de todos e com a universalidade da cobertura e do atendimento acentua: Artigo 26 1. Os Estados Partes reconhecerão a todas as crianças o direito de usufruir da previdência social, inclusive do seguro social, e adotarão as medidas necessárias 26. http://s.conjur.com.br/dl/tj-rs-nega-reconhecimento-paternidade.pdf 27. http://s.conjur.com.br/dl/tj-rs-nega-reconhecimento-paternidade.pdf PARECERES E CONTRIBUIÇÕES DO IASP MENOR SOB GUARDA 99 para lograr a plena consecução desse direito, em conformidade com sua legislação nacional. 2. Os benefícios deverão ser concedidos, quando pertinentes, levando-se em consideração os recursos e a situação da criança e das pessoas responsáveis pelo seu sustento, bem como qualquer outra consideração cabível no caso de uma solicitação de benefícios feita pela criança ou em seu nome. Apontando, uma vez mais, para onde deve caminhar a ordem jurídica pátria nesse setor, isto é, para a “plena consecução desse direito” erigido em favor das crianças e dos adolescentes, a regra da Convenção se encaixa dentro do escopo maior prefigurado pela Constituição. É, pois, um todo coerente – o do sistema jurídico – que define e institucionaliza a proteção jurídica da criança e do adolescente, inclusos nesse grupo os menores sob guarda, entrelaçando diversas regras capazes de projetar esse mesmo sistema rumo ao respectivo fim último. 4. CONCLUSÃO E PROPOSTAS. Tudo visto, cremos que a suma de comandos constitucionais e legais aponta para a plena incompatibilidade com o sistema jurídico brasileiro da exclusão do menor sob guarda do quadro de dependentes do segurado, catalogado pelo Regime Geral de Previdência Social. Bem andou o Conselheiro Oseas Davi Viana ao propor que o IASP tome parte do intenso debate que ora se trava a respeito do tema aqui examinado. Tal debate se desenvolve em duas frentes: a] a do Poder Judiciário e; b] a do Congresso Nacional. Com efeito, Na primeira frente duas Ações Diretas de Inconstitucionalidade se situam: i. A Ação Direta de Inconstitucionalidade (ADI) 4878, aforada em novembro de 2012, pelo Procurador Geral da República, cujo teor se encontra encartado no presente expediente. O relator do feito, no Supremo Tribunal Federal, é o Min. Gilmar Mendes. ii. E a Ação Direta de Inconstitucionalidade (ADI) 5083, em que o Conselho REVISTA DO INSTITUTO DOS ADVOGADOS DE SÃO PAULO v. 35, JANEIRO - JUNHO 2015 100 Federal da Ordem dos Advogados do Brasil (OAB), em janeiro de 2014, também questiona o mesmo assunto, cujo relator é o Min. Dias Tofolli. Os dois processos constitucionais aguardam julgamento. Proponho que o Instituto dos Advogados de São Paulo ingresse como Amicus Curiae em tais feitos, perfilando-se com os entendimentos esposados pelos autores das referidas medidas judiciais. Na segunda frente se encontra o Projeto de Lei n. 6399, de 2013, que adentrou à Câmara dos Deputados em setembro de 2013, para revisão daquela Casa do Congresso, depois de haver sido aprovado pelo Senado Federal, onde fora apresentado pelo Senador Paulo Paim. O projeto reinsere no preceito estampado no art. 16 da Lei n. 8 .213, de julho de 1991, o teor primitivo do § 2º, nele situando o menor sob guarda no catálogo dos dependentes equiparados aos filhos do segurado. Em julho do corrente ano a propositura recebeu parecer favorável da Comissão de Seguridade Social e Família da Câmara e aguarda pareceres de outras duas Comissões para, afinal, ser apreciado pelo Plenário. Proponho que o IASP oficie à Câmara dos Deputados opinando pela aprovação do texto legislativo do Plano de Benefícios da Previdência Social. Eis o meu parecer. São Paulo, 22 de fevereiro de 2015 Conselheiro Wagner Balera NECESSIDADE DE RENOVAÇÃO DE PEDIDO DE CONCESSÃO DE ASSISTÊNCIA JUDICIÁRIA GRATUITA EM SEDE RECURSAL. ORIENTAÇÃO DO EGRÉGIO SUPERIOR TRIBUNAL DE JUSTIÇA. ILEGALIDADE E INCONSTITUCIONALIDADE. ARRUDA ALVIM Doutor e Livre-docente. Professor Titular da Pós-graduação stricto sensu (Mestrado e Doutorado) da Pontifícia Universidade Católica de São Paulo. Advogado em São Paulo, Brasília, Porto Alegre e Rio de Janeiro. Associado Remido do IASP. THEREZA ALVIM Doutora em Direito. Professora Associada da Pós-graduação stricto sensu (Mestrado e Doutorado) da Pontifícia Universidade Católica de São Paulo. Advogada em São Paulo, Brasília, Porto Alegre e Rio de Janeiro. Associada Remida do IASP. EDUARDO ARRUDA ALVIM Presidente da Comissão Permanente de Estudos de Processo Constitucional do IASP. Doutor e Mestre em Direito pela Pontifícia Universidade Católica de São Paulo – PUC/SP. Professor da PUC/SP (doutorado, mestrado, especialização e graduação) e da FADISP – Faculdade Autônoma de Direito de São Paulo (doutorado e mestrado). Associado Efetivo do IASP. 102 REVISTA DO INSTITUTO DOS ADVOGADOS DE SÃO PAULO v. 35, JANEIRO - JUNHO 2015 Consulta-nos o Excelentíssimo Presidente do Instituto dos Advogados de São Paulo – IASP, Dr. José Horácio Halfeld Rezende Ribeiro, a respeito de recente orientação do Egrégio Superior Tribunal de Justiça, na linha de exigir, no ato de interposição de recursos dirigidos àquela Corte Superior, a comprovação da concessão de Assistência Judiciária Gratuita ou, ainda, a renovação de aludido requerimento. Dita orientação restou firmada pela Corte Especial do Egrégio Superior Tribunal de Justiça por ocasião do julgamento do Agravo Regimental nos Embargos de Divergência em Agravo em Recurso Especial n.º 321.732/RS, relatado pela Eminente Ministra Maria Thereza de Assis Moura, promovido aos 16/10/2013, e publicado no Diário de Justiça Eletrônico do dia 23/10/2013, assim ementado: “AGRAVO REGIMENTAL NOS EMBARGOS DE DIVERGÊNCIA. AUSÊNCIA DE COMPROVAÇÃO DO RECOLHIMENTO DAS CUSTAS NO ATO DE INTERPOSIÇÃO DO RECURSO. BENEFICIÁRIO DA JUSTIÇA GRATUITA. AUSÊNCIA DE PEDIDO NA PETIÇÃO DE RECURSO. DESERÇÃO. INCIDÊNCIA DO ART. 511 DO CÓDIGO DE PROCESSO CIVIL. RECURSO A QUE SE NEGA PROVIMENTO. 1. O preparo deve ser feito no momento da interposição do recurso, sob pena de deserção, sendo certo, outrossim, que na hipótese de o recorrente ser beneficiário da justiça gratuita, deve haver a renovação do pedido quando do manejo do recurso, uma vez que o deferimento anterior da benesse não alcança automaticamente as interposições posteriores. Precedente desta Corte. 2. Agravo regimental a que se nega provimento” (STJ, AgRg nos EAREsp 321.732/RS, Rel. Ministra MARIA THEREZA DE ASSIS MOURA, CORTE ESPECIAL, julgado em 16/10/2013, DJe 23/10/2013). O recurso julgado, cuja ementa transcrevemos acima discutia, fundamentalmente, a necessidade de renovação do pedido de Assistência Judiciária Gratuita, no âmbito do Superior Tribunal de Justiça. Deveras, segundo se dessume do inteiro teor do Acórdão, o Recorrente havia interposto Embargos de Divergência contra Acórdão prolatado em Agravo em Recurso Especial, julgado pelo STJ. Mesmo sendo beneficiário da Assistência Judiciária Gratuita, concedida pelo Tribunal de Origem, seu recurso de Embargos de Divergência não veio a ser conhecido por falta de recolhimento das custas no ato de interposição do recurso, tendo sido aplicada em seu desfavor a pena de deserção. Contra essa PARECERES E CONTRIBUIÇÕES DO IASP NECESSIDADE DE RENOVAÇÃO DE PEDIDO DE CONCESSÃO DE ASSISTÊNCIA JUDICIÁRIA GRATUITA EM SEDE RECURSAL - ORIENTAÇÃO DO EGRÉGIO SUPERIOR TRIBUNAL DE JUSTIÇA. ILEGALIDADE E INCONSTITUCIONALIDADE. 103 última decisão, interpôs o Recorrente Agravo Regimental, que restou improvido, à unanimidade pela Colenda Corte Especial do Superior Tribunal de Justiça. O fundamento para a manutenção da decisão Agravada foi assim sintetizado: “(...). Cumpre ressaltar que essa compreensão não afronta o disposto no art. 9.º da Lei nº 1.06/50, porquanto é bem verdade que o benefício compreende todos os atos do processo, assim como também é certo que a gratuidade de justiça é um benefício momentâneo dependente de uma situação provisória, podendo ser requerido a qualquer tempo e enquanto perdurar o processo, ou, se o caso, decair quanto a parte não mais detenha a condição de hipossuficiência. Daí a necessidade de renovação do pedido quando do manejo recursal (...).” Após o julgamento do recurso acima, essa orientação vem sendo seguida pelo STJ, o que pode ser confirmado, por exemplo, a partir dos resultados dos julgamentos dos seguintes feitos: a) AgRg no AREsp 261.520/SC, Rel. Ministra ASSUSETE MAGALHÃES, SEGUNDA TURMA, julgado em 25/11/2014, DJe 03/12/2014; b) AgRg no AREsp 587.595/ RS, Rel. Ministro HUMBERTO MARTINS, SEGUNDA TURMA, julgado em 25/11/2014, DJe 05/12/2014; c) AgRg nos EREsp 1182705/RS, Rel. Ministro BENEDITO GONÇALVES, CORTE ESPECIAL, julgado em 19/11/2014, DJe 11/12/2014; d) AgRg nos EREsp 1405752/ DF, Rel. Ministro BENEDITO GONÇALVES, PRIMEIRA SEÇÃO, julgado em 12/11/2014, DJe 18/11/2014. Em outros termos, muito embora a Constituição Federal, bem como a legislação federal disponham que a Assistência Judiciária Gratuita seja um direito do jurisdicionado e que deve estar presente até o final do litígio, uma vez concedida e mantida a mesma situação econômica, o STJ vem exigindo, por ocasião da interposição de recurso àquela Corte Superior, que o beneficiário de dita Assistência renove o pedido, ainda que já tenha sido concedido nas instâncias locais. Em nosso sentir, trata-se de orientação que não se coaduna, seja com a Legislação Federal, seja com a Constituição Federal. Preparo tem natureza de tributo (taxa) – violação às normas constitucionais e infraconstitucionais que disciplinam o direito tributário REVISTA DO INSTITUTO DOS ADVOGADOS DE SÃO PAULO v. 35, JANEIRO - JUNHO 2015 104 O preparo, como se sabe, constitui requisito extrínseco de admissibilidade dos recursos. Trata-se do pagamento prévio das custas relativas ao processamento do recurso. Por se tratar de requisito extrínseco de admissibilidade, o preparo diz respeito à matéria de processo, devendo, obrigatoriamente respeitar a lei, seja federal, seja local, nos termos dos arts. 22, I, e 24, IX da Constituição Federal, que estatuem, respectivamente competir à União legislar sobre direito processual e à União, aos Estados e ao Distrito Federal legislar sobre procedimentos em matéria processual. O art. 511, do Código de Processo Civil (Lei Federal, portanto), de seu turno, remete à legislação pertinente a exigência de preparo, providência essa feita, no âmbito da Justiça Estadual, pelas respectivas Leis Estaduais. Em outros termos, na medida em que se trata de tema que requer regulamentação disposta em lei ao lado, não é dado a ato normativo infralegal regulamentá-lo de forma antagônica ao que dispõem a lei, a Constituição Federal e o próprio Regimento do Superior Tribunal de Justiça. Ao lado disso, tem-se que o preparo, assim como as demais despesas processuais, pode ser considerado espécie do gênero tributo, amoldando-se bem à ideia do art. 3.º do Código Tributário Nacional. Nesse contexto, autorizada doutrina, bem como o Egrégio Superior Tribunal de Justiça costumam inserir o preparo como modalidade de taxa, tributo devido em decorrência de atuação estatal: “PROCESSUAL CIVIL. APELAÇÃO. PREPARO. DESISTÊNCIA EM RAZÃO DE ACORDO ENTRE AS PARTES. RECURSO PENDENTE DE JULGAMENTO. DEVOLUÇÃO DAS CUSTAS. IMPOSSIBILIDADE. 1. O preparo para a interposição de recurso inclui-se no conceito de custas judiciais que se revestem da natureza de taxa. Precedentes do STJ e do STF. 2. Consoante dispõe o art. 511 do CPC, “no ato de interposição do recurso, o recorrente comprovará, quando exigido pela legislação pertinente, o respectivo preparo, inclusive porte de remessa e de retorno, sob pena de deserção”, levando à conclusão de que a hipótese de incidência dessa taxa é a protocolização do recurso . PARECERES E CONTRIBUIÇÕES DO IASP NECESSIDADE DE RENOVAÇÃO DE PEDIDO DE CONCESSÃO DE ASSISTÊNCIA JUDICIÁRIA GRATUITA EM SEDE RECURSAL - ORIENTAÇÃO DO EGRÉGIO SUPERIOR TRIBUNAL DE JUSTIÇA. ILEGALIDADE E INCONSTITUCIONALIDADE. 105 3. Portanto, não é a manifestação do juízo a quo quanto aos efeitos em que recebe a insurgência, tampouco o deslocamento dos autos ao Tribunal de Justiça ou o julgamento do recurso que torna exigível o recolhimento do preparo, mas, antes de tudo, a sua interposição que materializa a hipótese de incidência dessa taxa. 4. Saliente-se, outrossim, que a desistência do recurso não implica reconhecer a ausência de atividade jurisdicional. Isso porque, embora seja um ato que independe da concordância da parte contrária, está submetido ao controle pelo Judiciário, sendo necessária sua homologação para que produza a totalidade de seus efeitos. Nesse contexto, o art. 26, do CPC expressamente consigna a necessidade de pagamento das despesas processuais, mesmo que o processo seja extinto em razão da desistência. 5. Recurso especial não provido” (REsp 1216685/SP, Rel. Ministro CASTRO MEIRA, SEGUNDA TURMA, julgado em 12/04/2011, DJe 27/04/2011). O art. 511, § 1.º, do Código de Processo Civil, disciplina hipóteses de isenção quanto ao pagamento de preparo, ou seja, isenção quanto ao pagamento de taxa. De outro lado, o art. 150, § 6.º, da Constituição Federal, ao disciplinar o princípio da estrita legalidade em matéria tributária, estatui que “Qualquer subsídio ou isenção, redução de base de cálculo, concessão de crédito presumido, anistia ou remissão, relativos a impostos, taxas ou contribuições, só poderá ser concedido mediante lei específica, federal, estadual ou municipal, que regule exclusivamente as matérias acima enumeradas ou o correspondente tributo ou contribuição, sem prejuízo do disposto no art. 155, § 2.º, XII, g”. A respeito desse importante princípio em matéria tributária, diz Paulo de Barros Carvalho que: “O princípio da legalidade é limite objetivo que se presta, ao mesmo tempo, para oferecer segurança jurídica aos cidadãos, na certeza de que não serão compelidos a praticar ações diversas daquelas prescritas por representantes legislativos, e para assegurar a observância ao princípio constitucional da tripartição dos poderes. O princípio da legalidade compele o intérprete, como é o caso dos julgadores, a procurar frases prescritivas, única e exclusivamente, entre as introduzidas no ordenamento positivo por via de lei ou de diploma que tenha o mesmo status. Se do conseqüente da regra advier obrigação de dar, fazer ou não fazer alguma coisa, sua construção reivindicará a seleção de enunciados colhidos apenas e tão-somente no plano legal” 106 REVISTA DO INSTITUTO DOS ADVOGADOS DE SÃO PAULO v. 35, JANEIRO - JUNHO 2015 (Cf. Paulo de Barros Carvalho, Direito Tributário: Linguagem e Método, 2.ª ed., São Paulo: Noeses, 2008, pp. 282 e 283). Por sua vez, o Código Tributário Nacional dispõe que “A isenção, ainda quando prevista em contrato, é sempre decorrente de lei que especifique as condições e requisitos exigidos para a sua concessão, os tributos a que se aplica e, sendo caso, o prazo de sua duração” (CTN, art. 176). Ao lado disso, esse mesmo diploma legal prescreve que a legislação tributária que disponha sobre outorga de isenção deve ser interpretada restritivamente (CTN, art. 111, II). Em outros termos, uma vez concedida a isenção tributária quanto ao pagamento do preparo, nos termos do art. 511, § 1.º, do CPC e demais regras que serão abordadas no curso do presente Parecer, não é dado ampliá-las, tampouco criar embaraços a sua concessão. Vale dizer, a norma em apreço veda tanto a interpretação da norma isentiva quanto a adoção de requisito não previsto na lei, conforme eloquente decisão do Superior Tribunal de Justiça: “RECURSO ESPECIAL. TRIBUTÁRIO. ISENÇÃO. ARTIGO 96, DA LEI 8.383/91 (DIFERENÇA ENTRE O VALOR DE MERCADO AFERIDO EM 31 DE DEZEMBRO DE 1991 E O CONSTANTE DE DECLARAÇÕES DE BENS DE EXERCÍCIOS ANTERIORES A 1992). APRESENTAÇÃO DA DECLARAÇÃO DE AJUSTE ANUAL APÓS O EXERCÍCIO FINANCEIRO DE 1992. (...). 6. A imposição da interpretação literal da legislação tributária que disponha sobre outorga de isenção (artigo 111, inciso II, do CTN) proscreve tanto a adoção de exegese ampliativa ou analógica, como também a restrição além da mens legis ou a exigência de requisito ou condição não prevista na norma isentiva. 7. Raciocínio inverso implicaria em instituir isenção “condicional” sem observância do princípio constitucional da estrita legalidade tributária, que veda a instituição ou aumento de tributo sem lei que o estabeleça (artigo 150, I), bem como determina que “qualquer subsídio ou isenção, redução de base de cálculo, concessão de crédito presumido, anistia ou remissão, relativos a impostos, taxas ou contribuições, só poderá ser concedido mediante lei específica, federal, estadual ou municipal” (artigo 150, § 6º). 8. Outrossim, o Codex Tributário determina que a isenção (ainda quando prevista em contrato) é sempre decorrente de lei que especifique as condições e requisitos exigidos para a sua concessão (artigo 176). PARECERES E CONTRIBUIÇÕES DO IASP NECESSIDADE DE RENOVAÇÃO DE PEDIDO DE CONCESSÃO DE ASSISTÊNCIA JUDICIÁRIA GRATUITA EM SEDE RECURSAL - ORIENTAÇÃO DO EGRÉGIO SUPERIOR TRIBUNAL DE JUSTIÇA. ILEGALIDADE E INCONSTITUCIONALIDADE. 107 9. Conseqüentemente, inexistindo norma expressa que condicione a fruição da isenção à entrega tempestiva da declaração de ajuste anual, não se revela possível a exclusão do contribuinte que retardou o cumprimento do aludido dever instrumental. (...). 11. Recurso especial desprovido” (REsp 1098981/PR, Rel. Ministro LUIZ FUX, PRIMEIRA TURMA, julgado em 02/12/2010, DJe 14/12/2010). Em suma, ao se considerar o preparo como taxa, tem-se que não é dado se exigir requisitos não prescritos na lei para a concessão de sua isenção, sob pena de violação da estrita legalidade em matéria tributária, aplicável também às normas de cunho isentivo. Renovação do Pedido de Concessão de Assistência Judiciária Gratuita por ocasião da interposição de recursos – violação da Constituição, da Lei Federal e do Regimento Interno do STJ O beneficiário da assistência judiciária (Lei 1.060/50) é dispensado do recolhimento do preparo. Nos termos do art. 3.º, VII, da Lei 1.060/50, acrescentado pela Lei Complementar 132/09, a assistência judiciária compreende a isenção “dos depósitos previstos em lei para interposição de recurso, ajuizamento de ação e demais atos processuais inerentes ao exercício da ampla defesa e do contraditório”. De seu turno, o art. 9.º, também da Lei 1.060/50 é expressa no sentido de que “Os benefícios da assistência judiciária compreendem todos os atos do processo até decisão final do litígio, em todas as instâncias” (Art. 9.º, Lei 1.060/50 – grifamos). Trata-se, sem dúvida alguma, de dispositivo que disciplina o tempo de duração do benefício da Assistência Judiciária Gratuita, não impondo, de outro lado, qualquer requisito quanto à renovação de seu pedido. Exigir a renovação desse pedido implica em impor ao beneficiário que comprove por mais de uma vez fazer jus a ele, o que vai novamente contra a letra da lei. Deveras em caso de inexistência ou desaparecimento dos requisitos essenciais à concessão do benefício, pode a parte contrária pleitear a sua revogação (art. 7.º, da Lei 1.060/50), o que pode também ser determinado de ofício (art. 8.º, da Lei 1.060/50). Contudo, mesmo nesse último caso, deve-se implementar o contraditório devendo-se ouvir a parte contrária (parte final do art. 8.º, da Lei 1.060/50). 108 REVISTA DO INSTITUTO DOS ADVOGADOS DE SÃO PAULO v. 35, JANEIRO - JUNHO 2015 O que não se deve tolerar é que haja a presunção de que houve a revogação de tal benefício por ocasião da interposição do recurso. Em outros termos, não se deve impor ao seu beneficiário que renove dito pedido demonstrando, uma vez mais, a existência dos requisitos para tanto. Mas não é só. A desnecessidade de renovação do pedido pode ainda ser vislumbrada a partir de outros dispositivos legais e regimentais. No âmbito legal, há o art. 13, da Lei 11.636/2007, que cuida de disciplinar as custas judiciais no âmbito do Superior Tribunal de Justiça. Segundo aludido dispositivo legal, “prevalecerá no Superior Tribunal de Justiça a assistência judiciária já concedida em outra instância”. Ao lado disso, o art. 511, § 1.º, do Código de Processo Civil prescreve que “são dispensados de preparo os recursos interpostos pelo Ministério Público, pela União, pelos Estados e Municípios e respectivas autarquias, e pelos que gozam de isenção legal”. Já no âmbito regimental, o Regimento Interno do Superior Tribunal de Justiça, possui semelhante redação no art. 115, § 2.º, onde se lê também que “prevalecerá no Tribunal a assistência judiciária já concedida em outra instância”. Deve-se ainda ressaltar que dita exigência de renovação do pedido, ainda que já tenha sido concedido pelos tribunais locais, é medida que afronta a própria Constituição Federal, a exemplo do que dispões os arts. 5.º, incisos II (legalidade); XXXV (princípio da inafastabilidade do Judiciário e acesso à justiça); LIV (princípio do devido processo legal); LV (princípio do contraditório e ampla defesa) e LXXIV (que assegura a Assistência Judiciária Gratuita e integral aos necessitados). Com efeito, a legalidade é amparada pela máxima segundo a qual ninguém é obrigado a fazer ou deixar de fazer alguma coisa, senão em virtude lei. Nesse contexto, não há qualquer legislação que imponha a renovação do pedido que já tenha sido concedido pelas instâncias locais. Diferentemente, o que há é expressa (expressas, em verdade) disposição legal na linha de que o benefício, uma vez concedido, deverá perdurar até o final do processo. Já o princípio da inafastabilidade do controle jurisdicional está intimamente ligado àquele que assegura assistência jurídica gratuita e integral aos necessitados (art. 5.º, LXXIV, da CF/88). Com efeito, sem que se enseje esse tipo de assistência, não se irá dar PARECERES E CONTRIBUIÇÕES DO IASP NECESSIDADE DE RENOVAÇÃO DE PEDIDO DE CONCESSÃO DE ASSISTÊNCIA JUDICIÁRIA GRATUITA EM SEDE RECURSAL - ORIENTAÇÃO DO EGRÉGIO SUPERIOR TRIBUNAL DE JUSTIÇA. ILEGALIDADE E INCONSTITUCIONALIDADE. 109 efetividade ao comando que garante o amplo acesso ao Judiciário, pois grande parte da população, em que pese a garantia insculpida no inciso XXXV do art. 5.º, estaria alijada do efetivo acesso ao Judiciário. Tal benefício, é importante que se diga, pode ser concedido inclusive para pessoas jurídicas, desde que comprove a impossibilidade de arcar com os encargos processuais, de acordo com a orientação cristalizada na Súmula 481 do STJ: “Faz jus ao benefício da justiça gratuita a pessoa jurídica com ou sem fins lucrativos que demonstrar sua impossibilidade de arcar com os encargos processuais”. Dito de outro modo, a exigência da renovação pode vir retirar do jurisdicionado que já obteve o benefício a ter de experimentar o dissabor de ver o seu recurso não conhecido, ainda que não haja lei para tanto. Em função de toda legislação que cuida da matéria, temos que tal exigência afronta a Constituição Federal, a Legislação Federal e, ainda, o próprio Regimento Interno do Superior Tribunal de Justiça, devendo ser revista tal orientação. APLICAÇÃO PROSPECTIVA DA ORIENTAÇÃO FIRMADA PELO SUPERIOR TRIBUNAL DE JUSTIÇA Oportuno consignar, inclusive, que ainda que tal orientação seja mantida, devem ser ressalvados os recursos já interpostos, sob pena de colocar em risco inúmeros princípios constitucionais, sobretudo a segurança jurídica. Com efeito, a aplicação dessa orientação do STJ quanto à renovação do pedido de concessão de Assistência Judiciária Gratuita, se vier a prevalecer (ainda que não haja respaldo legal e a fortiori, constitucional), deverá ser aplicada somente para os recursos interpostos após sua consolidação, ou seja, prospectivamente. Deveras, sabe-se que as normas de direito processual têm aplicação imediata. Ao lado disso, em matéria recursal, a norma aplicável deve ser aquela que existia na data da decisão a ser impugnada, eis que é daí que exsurge o direito de recorrer. A esse respeito, dizia Galeno Lacerda que “em direito intertemporal, a regra básica no assunto é que a lei do recurso é a lei do dia da sentença (...) proferida a decisão, a partir desse momento nasce o direito subjetivo à impugnação, ou seja, o direito ao recurso autorizado pela lei vigente nesse momento. Estamos, assim, em presença de verdadeiro direito adquirido processual, que não pode ser ferido por lei nova, sob pena de ofensa à proteção que a Constituição assegura a todo e qualquer direito adquirido” (Cf. Galeno Lacerda, O novo REVISTA DO INSTITUTO DOS ADVOGADOS DE SÃO PAULO v. 35, JANEIRO - JUNHO 2015 110 direito processual civil e os feitos pendentes, Rio de Janeiro: Forense, 1974, p. 68). Em outras palavras, não deve o jurisdicionado que já interpôs seu recurso na vigência da orientação anterior, ou seja, em que não era necessário renovar o pedido de concessão de Assistência Judiciária Gratuita, ser surpreendido pela nova orientação cristalizada no STJ. Dando respaldo ao que estamos afirmando, o Novo Código de Processo Civil, recentemente aprovado pelo Congresso Nacional e pendente de sanção presidencial veio a trazer eloquente e interessante dispositivo, permitindo aos tribunais modular os efeitos da decisão em função de alteração de jurisprudência dominante. É o que dispõe o art. 925, § 3.º, do Novo CPC, in verbis: “Na hipótese de alteração de jurisprudência dominante do Supremo Tribunal Federal e dos tribunais superiores ou daquela oriunda de julgamento de casos repetitivos, pode haver modulação dos efeitos da alteração no interesse social e no da segurança jurídica”. Esse, s.m.j., o nosso Parecer. São Paulo, 04 de Fevereiro de 2015. CONSULTA PÚBLICA PORTARIA Nº 54/2014. 112 REVISTA DO INSTITUTO DOS ADVOGADOS DE SÃO PAULO v. 35, JANEIRO - JUNHO 2015 Excelentíssimo Senhor Desembargador Hamilton Elliot Akel DD. Corregedor Geral de Justiça do Estado de São Paulo Assunto: Portaria nº 54/2014. Consulta Pública. O INSTITUTO DOS ADVOGADOS DE SÃO PAULO – IASP, a mais antiga instituição jurídica do Estado de São Paulo, fundado em 29 de novembro de 1874, declarado de utilidade pública pelo Decreto Federal nº 62.480, de 28 de março de 1968, Decreto Estadual nº 49.222, de 18 de janeiro de 1968 e Decreto Municipal nº 7.362, de 26 de janeiro de 1968, associação civil de fins não econômicos que congrega atualmente 965 Associados, admitidos por rigorosa avaliação com pareceres e votação, dentre os principais juristas, professores, advogados, magistrados e membros do Ministério Público do país, dedica-se aos altos estudos e a difusão dos conhecimentos jurídicos, ampliando os horizontes da cultura e das carreiras jurídicas em benefício da sociedade. O IASP, agradecendo o honroso convite de colaborar a Ilustre Corregedoria Geral de Justiça do Estado de São Paulo, em atendimento à Portaria nº 54/2014, vem, pela presente, apresentar suas considerações em relação à Consulta Pública que tem por objetivo coletar sugestões quanto à viabilidade de previsão expressa dos denominados “condomínios de lotes” no Capítulo XX das NSCGJ - Extrajudicial. Considerando o prazo concedido, solicitamos a análise da matéria aos Drs. Alexandre Jamal Batista, associado efetivo e presidente da Comissão de Direito Imobiliário do IASP, Rodrigo Matheus, associado efetivo, diretor da Comissão dos Novos Advogados e membro da Comissão de Urbanismo e Mobilidade do IASP, e Renato Guilherme Góes, membro da Comissão de Urbanismo e Mobilidade do IASP. PARECERES E CONTRIBUIÇÕES DO IASP PORTARIA Nº 54/2014 - CONSULTA PÚBLICA 113 INTRODUÇÃO Trata-se de espécie de empreendimento imobiliário assemelhado ao condomínio horizontal, sendo certo que nos condomínios de lotes não há prévia edificação, razão pela qual o próprio lote constitui-se uma unidade imobiliária autônoma. O condômino proprietário do lote pode incorporar nele a edificação que bem entender, com as limitações impostas pela Municipalidade e pelas regras internas do condomínio constituído sob essa forma. Essa espécie de parcelamento do solo não se confunde com os loteamentos, disciplinados na Lei 6.766/79, uma vez que: i) nos condomínios de lotes as áreas destinadas ao arruamento interno e as áreas livres comunitárias são privadas, de propriedade comum dos condôminos, enquanto nos loteamentos referidas áreas são transferidas ao Município; ii) a aprovação dos projetos e os procedimentos registrários observam o regramento disciplinado na Lei 4.591/64 (Lei de Condomínios e Incorporações), e não os ditames da Lei 6.766/79 (Parcelamento do Solo Urbano). Os condomínios de lotes decorrem de construção doutrinária, pois não existe lei federal que expressamente os regulamente. Assim sendo, a viabilidade de previsão expressa dessa modalidade de condomínio no Capítulo XX das NSCGJ – Extrajudicial, deve então subsumir-se à análise do condomínio de lotes sob o ponto de vista da competência legislativa e da vigência das regras que a ele fazem referência. ANÁLISE DA LEGALIDADE Parte da doutrina sustenta a ilegalidade dos condomínios de lotes por considerar essa espécie de parcelamento do solo uma forma de burlar a Lei 6.766/79, pois não haveria necessidade de se observar para esses condomínios os rígidos requisitos previstos no artigo 4º da Lei 6.766/79. Além disso, as legislações municipais e as normas administrativas que disciplinam os condomínios de lotes seriam inconstitucionais sob alegada revogação pela Lei 6.766/79 o Decreto-lei 271/67, que em seu artigo 3º aplicava aos loteamentos a Lei 4.591/64, equiparando o loteador ao incorporador, os compradores de lotes aos condôminos e as obras de infraestrutura à construção da edificação. O Decreto-lei 271, de 28 de fevereiro de 1967, dispôs sobre o loteamento urbano, sobre a responsabilidade do loteador e deu outras providências. Em seu artigo 3º previu 114 REVISTA DO INSTITUTO DOS ADVOGADOS DE SÃO PAULO v. 35, JANEIRO - JUNHO 2015 expressamente a aplicação da Lei 4.591/64 aos loteamentos, e equiparou “o loteador ao incorporador, os compradores de lote aos condôminos e as obras de infraestrutura à construção da edificação”. Com o advento da Lei 6.766/79, que disciplinou o parcelamento do solo urbano, foram tacitamente revogados os artigos 1o, 2o, 4o, 5o e 6o do Decreto-lei 271/67, que tratavam justamente do loteamento urbano. Entretanto, a revogação não atingiu todo o referido Decreto-lei, que além de disciplinar o loteamento urbano tratava de outras matérias. Tanto o é, que o artigo 7o do Decreto-Lei 271/67 teve recentemente sua redação expressamente alterada pelo artigo 7o da Lei 11.481/2007. No que diz respeito ao já mencionado artigo 3o do Decreto-lei 267/67, não há incompatibilidade entre a sua redação e a disciplina trazida aos loteamentos pela Lei 6.766/79, de modo que nosso ordenamento admite a aplicação do regime de condomínio tratado na Lei 4.591/64 aos loteamentos disciplinados na Lei 6.766/79.1 O artigo 3º do Decreto-lei 271/67 foi também recepcionado pela Constituição Federal de 1988, pois se harmoniza com seus princípios e com os direitos sociais de moradia e segurança, insculpidos no artigo 6º, e serve de importante instrumento para a implementação das políticas de desenvolvimento urbano previstas no artigo 182. A regulamentação dos condomínios de lotes cabe aos municípios, nos termos da competência que lhes atribuiu o artigo 30, VIII da Constituição Federal, para promoverem o adequado ordenamento territorial, mediante o planejamento do uso, do parcelamento e da ocupação do solo urbano. Com base nesses fundamentos muitos municípios regulamentaram os condomínios de lotes e os órgãos correicionais de diversos estados admitiram os registros dessa espécie de ocupação urbana, ao lado dos loteamentos e condomínios edilícios2. No Estado de São Paulo os condomínios de lotes foram aceitos por algum tempo e muitos foram registrados, até que o Conselho Superior da Magistratura passou a considerá-los irregular, em especial a partir do parecer do Magistrado Francisco Eduardo 1. Neste mesmo sentido, Melhim Namem Chalub, in Condomínio de Lotes de Terreno Urbano, Revista de Direito Imobiliário (RT), v. 67, jul-dez/2009, p. 101-151. 2. Confira-se João Pedro Lamana Paiva, in Espécies de Empreendimentos Imobiliários com Ênfase em Condomínio de Lotes, na 6ª Reunião Ordinária do CONURB, em 09 de maio de 2010. PARECERES E CONTRIBUIÇÕES DO IASP PORTARIA Nº 54/2014 - CONSULTA PÚBLICA 115 Loureiro3, proferido no Processo CG 1.536/96 e Ap. Cíveis nº 2.002-0, da Comarca de Taubaté-SP e 2.553-0, da Comarca de Sorocaba4. Nas I Jornadas de Direito Civil promovida nos dias 12 e 13 de setembro de 2002, pelo Centro de Estudos Judiciários do Conselho da Justiça Federal, sob a Coordenação-Geral do Ministro Milton Pereira, 130 juristas aprovaram 137 enunciados, dentre os quais o de nº 89, com a seguinte redação: Art. 1.331: O disposto nos arts. 1.331 a 1.358 do novo Código Civil aplica-se, no que couber, aos condomínios assemelhados, tais como loteamentos fechados, multipropriedade imobiliária e clubes de campo. Mais recentemente, a Corregedoria Geral de Justiça de São Paulo sinalizou mudança de posicionamento e assumiu a vigência do Decreto-lei 271/67 com a edição do Provimento nº 18/20125, quando ao dispor na Seção III sobre a regularização de condomínios de frações ideais, permitiu que a regularização fundiária fosse realizada com base no referido Decreto-lei.6 O mesmo Provimento previu também a obrigatoriedade dos requerimentos de abertura de matrículas especificarem qual a modalidade de regularização pretendida: i) parcelamento do solo ou ii) instituição e especificação de condomínio de casas ou lotes7. E fez expressa referência ao artigo 3º do Decreto-Lei 271/67 ao determinar que o 3. (…) imprescindível a vinculação do terreno à efetiva construção que nele será erigida e constituirá a unidade autônoma. Entender o contrário permitiria, por exemplo, que se aprovasse incorporação com dez, cinco, um metro quadrado de área construída, ou apenas um tijolo ou um bloco construído, delegando ao próprio condômino a prerrogativa de construir posteriormente a sua unidade, como bem entender. Em termos diversos, estaria consagrada a figura de condomínio de solo, ou de lotes, em formal contradição ao espírito e ao que dispõe a Lei 4.591/64 e em manifesta fraude ao que dispõe a Lei 6.766/79 (Lei do Parcelamento do Solo). 4. Base de dados do IRIB Responde: http://www.irib.org.br/html/noticias/noticia-detalhe.php?not=962 5. Prov. 18/2012: 236. Na hipótese de a irregularidade fundiária consistir na ocupação individualizada de fato, cuja propriedade esteja idealmente fracionada, as novas matrículas serão abertas a requerimento dos titulares das frações ideais ou de seus legítimos sucessores, em conjunto ou individualmente, aplicando-se, conforme o caso concreto, o disposto no art. 3º, do Decreto lei 271/67, o art. 1º, da Lei nº 4.591/64, ou o art. 2º da Lei nº 6.766/79. 6. Cf. Fábio Ribeiro dos Santos, in “Condomínio de Lotes”: Panorama Legal e seu Registro, in Carta Forense: http:// www.cartaforense.com.br/conteudo/artigos/condominios-de-lotes-panorama-legal-e-seu-registro/13962 7. Prov. 18/2012: 236.1. O requerimento deverá especificar a modalidade de regularização pretendida, se parcelamento do solo ou instituição e especificação de condomínio de casas ou lotes, com as respectivas atribuições de unidades autônomas ou lotes, obedecidas as condições abaixo. REVISTA DO INSTITUTO DOS ADVOGADOS DE SÃO PAULO v. 35, JANEIRO - JUNHO 2015 116 requerimento de regularização do condomínio seja subscrito por todos os titulares de fração registrada, ou seus sucessores8. E o Poder Executivo, em recentíssima Medida Provisória 656, de 07 de outubro de 2014, que, dentre outras matérias, dispôs sobre a concentração dos atos na matrícula do imóvel, igualmente fez expressa referência ao condomínio de lotes instituído pelo artigo 3º do Decreto-lei 271/67, ao dispor em seu artigo 11 que “A alienação ou oneração de unidades autônomas integrantes de incorporação imobiliária, parcelamento do solo ou condomínio de lotes de terreno urbano, devidamente registrada, não poderá ser objeto de evicção ou de decretação de ineficácia, mas eventuais credores do alienante ficam sub-rogados no preço ou no eventual crédito imobiliário, sem prejuízo das perdas e danos imputáveis ao incorporador ou empreendedor, decorrentes de seu dolo ou culpa, bem como da aplicação das disposições constantes da Lei nº 8.078, de 11 de setembro de 1990.”9 CONCLUSÃO Considerando que não se analisou as implicações de ordem urbanísticas, no que diz respeito à pertinência dessa espécie de parcelamento do solo para as cidades, o que deverá ser observado casuisticamente, de acordo com as necessidades e características de cada município, diante do fundamento legal apresentado, e subsidiado na interpretação de respeitáveis juristas10 que se dedicaram à análise da legalidade dos condomínios de lotes, afigura-se viável a sua expressa previsão no Capítulo XX das NSCGJ – Extrajudicial, para a regulamentação de seus atos registrários, o que, entretanto, não dispensa a necessária disciplina dessa forma de parcelamento do solo por lei municipal, ante a competência definida pela Constituição Federal. JOSÉ HORÁCIO HALFELD REZENDE RIBEIRO Presidente 8. Prov. 18/2012: 238. O requerimento de regularização como condomínio deverá vir subscrito por todos os titulares de fração registrada ou seus legítimos sucessores, nos termos da Lei nº 4.591/64 ou no art. 3º, do Dec. Lei nº 271/67, e instruído com: (...) 9. Medida Provisória 656, de 07 de outubro de 2014. 10. Entre outros, Clari de Fátima Bottega, Décio Antônio Erpen, Eduardo Pacheco de Souza, Fábio Ribeiro dos Santos, Francisco Arnaldo Schmidt, Gilberto Valente da Silva, Gustavo Burgos de Oliveira, Hely Lopes Meirelles, João Padro Lamana Paiva, Julio Cesar Weschenfelder, Mário Pazutti Mezzari e Melhim Namem Chalub. MANHà DE DEBATES “MULHER, LIDERANÇA E REPRESENTATIVIDADE A SUB-REPRESENTAÇÃO FEMININA NO BRASIL E AS SUAS DECORRÊNCIAS” ENUNCIADOS PROPOSITIVOS 13 DE MARÇO DE 2015 REVISTA DO INSTITUTO DOS ADVOGADOS DE SÃO PAULO v. 35, JANEIRO - JUNHO 2015 118 ENUNCIADOS – A MULHER E A POLÍTICA 1. Sendo a população brasileira composta por 51,5% de Mulheres e o eleitorado brasileiro, por 52,13% de Mulheres, impõe-se a paridade de gênero na composição dos órgãos legislativos do País. 2. A composição do Legislativo deve ser paritária, a fim de que a discussão dos assuntos relativos aos interesses do País tenha a efetiva participação feminina, especialmente aqueles correlatos à condição da Mulher. Tratar de temas de interesse público sem a participação da Mulher não se mostra condizente com o Estado Democrático de Direito, conforme arts. 1º e 5º, inciso I, da Constituição da República Federativa do Brasil, e, torna-se especialmente dramático naqueles temas eminentemente femininos diante de um Congresso Nacional composto por 89,22% de Deputados Federais e Senadores do sexo masculino. 3. A maioria esmagadora da população brasileira ignora que o Brasil é o 116º colocado no ranking mundial de participação feminina no Legislativo, ficando atrás de países como a Líbia, o Afeganistão, o Paquistão, a Arábia Saudita, ou ainda os latino-americanos Paraguai, Venezuela e Peru, dentre outros 109 países melhor posicionados. 4. É fundamental que haja paridade de assentos a fim de assegurar o preenchimento, por Mulheres, de 50% das vagas disponíveis nas Casas Legislativas, sob pena de sanções legais que sejam efetivas. 5. É premente a implantação de um sistema eficaz de sanções aos partidos e coligações que não cumpram as normas legais quanto ao percentual de participação e representação feminina no Legislativo, tais como: perda expressiva da participação no fundo partidário, perda de tempo de propaganda radiotelevisiva, perda de vagas do partido ou coligações, além da inclusão em lista pública restritiva, sem prejuízo de outras que venham a ser estipuladas por lei. 6. Criação imediata de lista pública restritiva ao recebimento de doações eleitorais, na qual sejam incluídos os partidos políticos e as coligações partidárias que não cumpram as normas legais quanto ao percentual de participação e representação feminina no Legislativo. 7. A cota de gêneros prevista em lei deverá ser aplicada e respeitada também PARECERES E CONTRIBUIÇÕES DO IASP MANHà DE DEBATES “MULHER, LIDERANÇA E REPRESENTATIVIDADE – A SUB-REPRESENTAÇÃO FEMININA NO BRASIL E AS SUAS DECORRÊNCIAS” ENUNCIADOS PROPOSITIVOS - 13 DE MARÇO DE 2015 119 quanto à distribuição de tempo na propaganda eleitoral gratuita no rádio e na televisão, sob pena de sanções. 8. A proporção legal de gênero deve ser observada pelos partidos políticos inclusive na composição de suas lideranças e diretorias executivas. 9. O órgão nacional de direção partidária deverá observar o percentual de tempo mínimo legal da participação política feminina em cada uma das praças nas quais for transmitida propaganda partidária. 10. Deverá haver gasto efetivo e comprovado do fundo partidário, a ser auditado formal e especificamente, em prol de programas de promoção e difusão da participação politica feminina, bem como o fomento de suas candidaturas. 11. As doações eleitorais recebidas pelos partidos políticos deverão também ser distribuídas na proporção das cotas de participação para mulheres, conforme determinado em lei. 12. A Reforma Política deverá contemplar todos estes temas e proposições, pois é fundamental a resolução definitiva da disparidade de participação feminina no Legislativo Brasileiro e o contexto inconstitucional de sub-representação hoje existente. Urge utilizar a Reforma Política para resolver de vez a subrepresentação feminina no Legislativo Brasileiro, bem como para se fazer respeitar o comando constitucional de igualdade entre Mulheres e Homens. 13. A igualdade política tem como substrato a condição feminina, a qual abrange vários outros aspectos e dimensões, que devem ser tratados por meio de Políticas Públicas frontais e efetivas e com a adequada atenção estratégica por parte dos governos, inclusive com a destinação de parcela específica e adequada do orçamento público para esse fim, com vinculação de despesas orçamentárias específicas e/ou fixação de despesas mínimas obrigatórias, com vedação de contingenciamento de tais despesas orçamentarias vinculadas ou despesas mínimas obrigatórias, de tal sorte haja efetivo suporte financeiro para subsidiar ações e programas de empoderamento feminino. A vinculação dessas despesas orçamentárias ou o estabelecimento de despesas mínimas obrigatórias conforme referido não poderá sofrer contingenciamento. 120 REVISTA DO INSTITUTO DOS ADVOGADOS DE SÃO PAULO v. 35, JANEIRO - JUNHO 2015 ENUNCIADOS – A MULHER E O DIREITO 1. Apesar do mandamento constitucional específico, estatísticas e dados diversos demonstram, de forma inconteste, que ainda não existe igualdade de oportunidades para Homens e Mulheres no Brasil, nem mesmo nas carreiras jurídicas. Portanto, é imperiosa a construção de acervo normativo que viabilize de forma concreta e real a igualdade de oportunidades para todos, Homens e Mulheres, inclusive e especialmente por meio de ações afirmativas, que têm se mostrado inteiramente efetivas em todo o mundo. 2. O pressuposto da ascensão de Mulheres aos cargos de alta gestão, de cúpula e de maior densidade decisória é a concretização da meritocracia em ambientes efetivamente democráticos. 3. Ações afirmativas devem ser viabilizadas imediatamente, pois além de serem constitucionais, são ações que têm mostrado capacidade de transformação positiva nos diversos países em que há várias décadas vem sendo amplamente utilizadas com vistas à solução dos problemas que envolvem a condição feminina, notadamente a sub-representação da Mulher. 4. É impreterível a criação de leis que instituam política nacional de cotas para garantir a participação de Mulheres em todos os níveis governamentais, espaços decisórios e em todos os cargos de alta gestão, públicos ou privados. Trata-se de mecanismo transitório para a solução de problemas seculares, senão milenares. 5. É inaceitável que nomes de Mulheres sequer sejam cogitados para a ocupação de cargos de Ministros do Supremo Tribunal Federal, por exemplo, o que bem demonstra a desigualdade de oportunidades para Mulheres diante das posições mais elevadas nos cargos de comando e de alta gestão no País. 6. Nomes de Mulheres devem ser sempre colocados, de forma paritária, em todas e quaisquer listas de escolha de candidatos para todos os cargos, sejam eles públicos ou privados, e, especialmente, para aqueles mais elevados, até para que isso sirva de exemplo às boas práticas que devem imperar no País, em estrito respeito, aliás, aos comandos constitucionais. 7. Não é aceitável, muito menos constitucional que apenas duas, dentre onze Ministros do Supremo Tribunal Federal, sejam Mulheres. Assim como não é aceitável, que dos 33 Ministros do Superior Tribunal de Justiça, apenas 6 sejam PARECERES E CONTRIBUIÇÕES DO IASP MANHà DE DEBATES “MULHER, LIDERANÇA E REPRESENTATIVIDADE – A SUB-REPRESENTAÇÃO FEMININA NO BRASIL E AS SUAS DECORRÊNCIAS” ENUNCIADOS PROPOSITIVOS - 13 DE MARÇO DE 2015 121 Mulheres. Ou ainda, que dos 360 cargos de Desembargadores do Estado de São Paulo, apenas 24 deles sejam ocupados por Mulheres. E também não é aceitável que nenhuma Mulher até hoje tenha sido Procuradora Geral do Ministério Público de São Paulo ou Procuradora Geral da União. Todas essas são situações sintomáticas que evidenciam a sub- representação feminina nos cargos de gestão e de maior envergadura nas carreiras jurídicas. 8. Esses números e cenários, e todos os inúmeros outros, bem evidenciam e comprovam de forma inescapável as maiores e diversas dificuldades para a inserção feminina em todos os patamares da vida pública e privada brasileira e, especialmente, para a ascensão das Mulheres a quaisquer cargos mais elevados, o que as distancia dos centros de decisão de nossa Nação. 9. É fundamental que haja presença feminina expressiva nos órgãos de cúpula e alta gestão no Poder Judiciário, no Ministério Público e em todas as Instituições representativas da Advocacia Pública e Privada do País. 10. Somente a presença expressiva de Mulheres nas instâncias mais altas dos órgãos do Judiciário, do Ministério Público, das Instituições Representativas da Advocacia, fará com que haja efetiva representatividade feminina e tornará tais entes e órgãos efetivamente diversificados, o que levará a movimentações e manifestações mais plurais e materialmente mais democráticas. Do contrário, nem a Democracia, nem os comandos constitucionais frontais, quanto à paridade de gênero, serão concretizados. ENUNCIADOS – A MULHER NOS CARGOS EXECUTIVOS – PÚBLICO E PRIVADO 1. É inaceitável que os mais elevados cargos executivos da esfera pública não sejam paritariamente distribuídos entre Homens e Mulheres. Não é admissível que dentre 39 Ministérios Federais, apenas 6 sejam ocupados atualmente por Mulheres. Assim como, dentre 26 Secretarias Estaduais em São Paulo, apenas duas sejam chefiadas por Mulheres. Ou ainda, que dentre as 24 Secretarias do Município de São Paulo, apenas 4 sejam atualmente chefiadas por Mulheres. 2. Os Chefes dos Executivos Federal, Estaduais e Municipais, podem e devem utilizar sua prerrogativa legal de organização de funções e cargos públicos REVISTA DO INSTITUTO DOS ADVOGADOS DE SÃO PAULO v. 35, JANEIRO - JUNHO 2015 122 na Administração Pública Direta para, por meio de Decreto, expedirem normas de concretização do comando constitucional de paridade de gênero, estabelecendo, por exemplo, política de cotas crescente até que haja a ocupação paritária de cargos e funções públicos sob seu comando e controle direto. 3. Os Conselhos de Administração e Diretorias Executivas de empresas públicas e privadas podem e devem estabelecer programas internos efetivos de valorização da profissional Mulher, de forma a garantir a ocupação paritária de cargos e funções em todos os níveis da empresa que dirijam, independentemente de que tenham de cumprir disposições normativas que venham a ser instituídas. Tais iniciativas deverão merecer incentivo público específico, a exemplo da criação de incentivos fiscais para tais programas espontâneos, bem como a divulgação em lista oficial de empresas mais democráticas. 4. As Bolsas de Valores, a Comissão de Valores Mobiliários (CVM) e outros Órgãos Reguladores deverão criar sistemas de verificação e avaliação das empresas e agentes de mercado que efetivamente estejam implementando, ou tenham implementado, programas e condutas de inserção efetiva da Mulher em todos os níveis de gestão nos ambientes empresariais. 5. É fundamental criar, paralelamente, ações afirmativas diversas, dentre outras medidas, que incentivem e estimulem de forma concreta o respeito à condição feminina no ambiente corporativo, tais como: leis que estabeleçam cotas para participação de Mulheres em Conselhos de Administração e Diretoria, que proíbam a participação de empresas não paritárias no sistema de contratação pública, que estabeleçam licença paternidade mandatória para Homens equivalente àquela existente para Mulheres, que aprimorem o sistema de estabilidade de emprego para a Mulher após o retorno da Licença Maternidade, que estabeleçam a paridade de gênero como premissa para concessão de créditos em Bancos Públicos ou de Desenvolvimento, bem como para repasses e incentivos de verbas públicas em favor de ONGs ou demais entidades vinculadas ao Terceiro Setor. 6. Em pleno século 21, torna-se premente que a condição feminina, milenarmente estabelecida numa situação de desigualdade, receba a valorização e o respeito necessários, de tal sorte possa essa situação de desigualdade ser efetivamente superada. PARECERES E CONTRIBUIÇÕES DO IASP MANHà DE DEBATES “MULHER, LIDERANÇA E REPRESENTATIVIDADE – A SUB-REPRESENTAÇÃO FEMININA NO BRASIL E AS SUAS DECORRÊNCIAS” ENUNCIADOS PROPOSITIVOS - 13 DE MARÇO DE 2015 São Paulo, 22 de Abril de 2015 A COMISSÃO DE REDAÇÃO DE ENUNCIADOS PROPOSITIVOS: Raquel Elita Alves Preto Maria Garcia Clarissa Campos Bernardo Silvana Bussab Endres Eloísa de Sousa Arruda Rogéria Paula Borges Gieremek Rosimara Raimundo Vuolo Marcia Dinamarco Ana Emília Oliveira de Almeida Prado Karina Penna Neves Maria Cristina Zucchi Fátima Cristina Pires Miranda Renata Lorenzetti Garrido Alessandra Nascimento Silva Figueiredo Mourão Marina Bevilacqua de La Touloubre Sílvia da Graça Gonçalves Costa Luciana Oliveira Ramos Ligia Pinto Sica Priscila Santos Artigas Regina Affonso dos Santos Fonseca Ribeiro Paula Tonani Fernanda Marques Bayeux Maria de Lourdes Pereira Campos Cibele Malvone Toldo 123 DOUTRINA DESAFIOS DA JUSTIÇA O EXECUTIVO E A MODERNIZAÇÃO DO JUDICIÁRIO FERNANDO HENRIQUE CARDOSO Ex-Presidente da República. Medalha Barão de Ramalho do IASP. 128 REVISTA DO INSTITUTO DOS ADVOGADOS DE SÃO PAULO v. 35, JANEIRO - JUNHO 2015 A Justiça falha quando tarda. O Brasil democrático reclama uma Justiça mais rápida, sem arranhar o princípio do contraditório e ampla defesa e o direito de recurso, pilares do devido processo legal. Temos, como nação, respondido positivamente a esse desafio. A própria intensidade do debate público sobre a organização e desempenho da Justiça deve ser saudada como um sinal de que o processo constituinte, em sentido amplo, não se esgotou no ato de promulgação da Constituição de 1988. Mais de vinte anos depois, a construção da democracia – obra, por definição, inacabada – prossegue sobre a pedra angular da nova Carta, renovando esperanças no seu enraizamento definitivo em solo brasileiro. O equilíbrio entre Executivo e Judiciário é uma variável tão fundamental quanto complexa nesse processo. Uma balança capaz de aferi-la precisaria de vários pares de pratos, para as várias dimensões da relação entre os dois Poderes. Pela quantidade de ações em que é parte direta ou indiretamente interessada, o Executivo, nos três níveis de governo, é o principal cliente do Judiciário. O descontrole administrativo e fiscal dos governos tende a afogar o Judiciário numa enxurrada de demandas, como se viu no rescaldo dos planos econômicos mal sucedidos dos anos 80 e começo dos 90. Reciprocamente, a morosidade da Justiça tanto compromete o controle dos atos do Executivo como esvazia seu poder de polícia, nas várias frentes em que ele é essencial para a garantia dos direitos individuais e interesses coletivos. Para o custeio e expansão da sua estrutura, o Judiciário depende dos recursos arrecadados e transferidos pelo Executivo nos planos estadual e federal. A interlocução entre os dois Poderes em matéria orçamentária comporta tanto parceria em torno de objetivos comuns como disputa por recursos escassos. Pressões por elevação do teto remuneratório, aumentos e equiparações salariais de servidores testam a capacidade de arbitragem dos governos e somam tensões entre e no interior de cada um dos Poderes. Seu poder de iniciativa legislativa e capacidade de articulação política fazem do Presidente da República um ator-chave na formulação, discussão e aprovação das propostas de reforma do Judiciário, como de outras reformas. A orientação dos membros dos tribunais superiores, indicados pelo Presidente, repercute na implementação das mudanças. Se o Presidente se distancia da agenda de reformas, ela perde tração. Se ele se engaja além de certo ponto, pode suscitar protestos de atropelo da autonomia do Judiciário. As reformas em curso atravessam todas essas dimensões da relação Judiciário-Executivo. Acrescente-se o Legislativo, e a complexidade da equação aumenta exponen- DOUTRINA . DESAFIOS DA JUSTIÇA O EXECUTIVO E A MODERNIZAÇÃO DO JUDICIÁRIO 129 cialmente. Isso tende a amplificar a percepção de riscos, reais ou supostos, para os atores com interesse investido no statu quo, e pode obscurecer os benefícios da mudança para o conjunto da sociedade. Discussões como a que a OAB promove neste livro – de caráter interdisciplinar, foco amplo e abordagem equidistante, tanto quanto possível, de demandas estritamente setoriais – podem iluminar alternativas, mitigar apreensões exageradas e subsidiar a construção dos consensos necessários para levar adiante as reformas. Nossa contribuição nesse sentido começa por um retrospecto dos avanços na organização e desempenho da Justiça brasileira sob a Constituição de 1988. Sobre esse pano de fundo, discutimos pontos que nos parecem relevantes na agenda de reformas por fazer, sempre destacando suas implicações para a relação Judiciário-Executivo. O arcabouço institucional da democracia brasileira está de pé. Retoques, reformas sempre serão necessárias. Mas falta algo essencial: falta a alma da democracia, que é o sentimento da igualdade perante a lei como valor fundamental, compartilhado pelos dirigentes e o conjunto da sociedade. As dificuldades persistentes de aplicar a lei de modo igual para todos, expostas pelo espetáculo da corrupção política impune, difundem sentimentos opostos, de desânimo e cinismo em relação às instituições democráticas. A “pedagogia da lei” supõe a possibilidade de difundir o sentimento da igualdade por exemplos de rigor na administração da Justiça. Este é o grande desafio da modernização do Judiciário. 1. ESTABILIDADE ECONÔMICA E SEGURANÇA JURÍDICA Às vésperas da promulgação da Constituição de 1988, o presidente José Sarney alertou que o descompasso entre o aumento das obrigações da União e a diminuição da sua fatia no bolo tributário poderia tornar o país “ingovernável”.1 A preocupação mostrou-se, afinal, exagerada. Mas não sem que antes a expansão do gasto público pusesse de fato em cheque a capacidade dos três níveis de governo de equilibrar seus recursos e obrigações, e a disparada da inflação consumisse a boa vontade popular em relação à Nova República e seus fundadores. O desequilíbrio fiscal vinha de desajustes estruturais herdados do regime autoritário. 1. Sarney faz ameaça do país ingovernável. O Estado de S. Paulo, 27/07/1988, p. 1. http://acervo.estadao.com.br/ pagina/#!/19880727-34791-nac-1-999-1-not/ 130 REVISTA DO INSTITUTO DOS ADVOGADOS DE SÃO PAULO v. 35, JANEIRO - JUNHO 2015 Também fazia parte dessa herança a indexação generalizada de preços, salários, ativos financeiros e tributos, que realimentava a inflação. Qualquer que fosse a origem dos problemas, no entanto, o desafio que se apresentava era enfrentá-los pelas vias democráticas, sem quebrar contratos nem reeditar procedimentos do velho Executivo “imperial”, atropelando os freios e contrapesos entre os Poderes constituídos. Instituições não funcionam por si mesmas, sem lideranças políticas, organizações sociais e uma massa crítica de cidadãos que saibam operá-las. Aprender a operar instituições democráticas depois de vinte anos de autoritarismo não seria, em qualquer hipótese, uma tarefa fácil. As sucessivas tentativas fracassadas de controlar a inflação impuseram um custo extraordinário a esse aprendizado. Na esteira dos planos Cruzado (1986), Bresser (1987), Verão (1989), Collor I (1990) e Collor II (1991), milhares de empresas, trabalhadores, aposentados, pensionistas, poupadores foram à Justiça reclamar perdas decorrentes de congelamentos, tabelamentos e conversões compulsórias de preços, salários e outras obrigações. O primeiro plano Collor testou o limite de tolerância do país a essa sequência de experimentos desastrados. Só o desespero com a hiperinflação explica que uma retenção de depósitos bancários por ato unilateral do Executivo tenha encontrado tão pouca resistência dos outros Poderes e do público em geral. A volta da inflação, porém, avivou a indignação com o “confisco da poupança” e acendeu um sinal vermelho para novas tentativas de estabilizar a economia às custas da segurança jurídica da sociedade. O Real (1994) aproveitou lições das dificuldades dos planos econômicos anteriores. Em vez da popularidade fácil mas efêmera de um novo congelamento de preços, como no Cruzado, optou-se pela combinação de um ajuste fiscal convencional com uma estratégia inovadora de desindexação da economia.2 O ajuste fiscal esbarrava numa dificuldade política – a resistência a cortes de gasto por parte do Congresso e de grupos de interesse influentes – que foi possível superar graças à firmeza do presidente Itamar Franco e à própria exaustão da maioria da sociedade com a corrida atrás da inflação. A desindexação passaria, paradoxalmente, pela superindexação: a criação de um indexador diário universal, a Unidade Real de Valor – URV, que funcionaria como 2. Ver Gustavo Franco, O Plano Real e URV – fundamentos da reforma monetária brasileira de 1993-94, in O Plano Real e outros ensaios. Rio de Janeiro, Francisco Alves, 1995. pp. 31-53. DOUTRINA . DESAFIOS DA JUSTIÇA O EXECUTIVO E A MODERNIZAÇÃO DO JUDICIÁRIO 131 unidade de conta estável até dar lugar à nova moeda, o Real. Essa estratégia embutia dois riscos: que a indexação diária acelerasse a inflação até explodir antes da troca de moeda; e que as regras de conversão das obrigações na moeda velha – o cruzeiro real – para a URV suscitassem uma nova enxurrada de demandas judiciais. A URV foi criada pela Medida Provisória nº 434, de fevereiro de 1994. Para surpresa de muitos, o público a entendeu e adotou sem dificuldade, não como mais um indexador, mas como embrião da futura moeda. Isso provou o acerto da decisão de anunciar e explicar antecipadamente cada passo do plano, sem o sobressalto dos “choques” econômicos passados. A equipe econômica, reforçada por bons advogados, estudou a fundo a jurisprudência a fim de evitar a repetição dos impasses legais criados pelos planos anteriores. A própria URV foi uma construção jurídico-econômica que levou em conta a distinção estabelecida pelo Supremo Tribunal Federal entre “correção monetária” – medida objetiva da inflação ocorrida – e “indexação” – regra de atualização de valores convencionada entre as partes. O cálculo da paridade diária entre URV e cruzeiro real baseou-se, por uma fórmula complexa, em três índices de preços amplamente utilizados. Essa proeza econômica deu solidez jurídica à URV como instrumento de correção monetária, afastando dúvidas sobre a neutralidade do seu efeito no equilíbrio econômico dos contratos em vigor. Um teste decisivo da reforma monetária foi seu trânsito por um terreno onde outros planos de estabilização haviam atolado – a política salarial. Sindicatos contestaram a conversão dos salários em URV pela média do valor dos últimos quatro meses, conforme previsto pela MP nº 434, e não pelo pico do valor na data-base do último reajuste. O Tribunal Regional do Trabalho de São Paulo, no julgamento de um dissídio de greve dos metalúrgicos, reconheceu a consistência jurídica e econômica da regra de conversão. O julgamento de outros dissídios confirmaria esse entendimento. A discussão das perdas reclamadas pelos sindicatos esvaziou-se, nos meses subsequentes, na medida em que a percepção geral dos trabalhadores foi de aumento do seu poder aquisitivo. A conversão de outras obrigações, fora os salários, foi deixada à vontade das partes. As condições de preço e prazo dos contratos vigentes entre empresas embutiam, comumente, o efeito esperado da inflação sobre os valores a pagar e receber. A supressão do chamado “float inflacionário” traria ganhos para algumas empresas e perdas para outras. A negociação para reequilibrar essas relações ao longo das cadeias de produção e distribuição foi dura, em muitos casos. A aceitação generalizada da URV funcionou, no 132 REVISTA DO INSTITUTO DOS ADVOGADOS DE SÃO PAULO v. 35, JANEIRO - JUNHO 2015 entanto, como um forte estímulo à conversão, mesmo nos casos mais difíceis. Quando a nova moeda entrou em circulação, em julho de 1994, os contratos estavam renegociados e só foi preciso renomear seus valores de URV para Real, sem os desalinhamentos de preços que haviam sido uma das causas do insucesso dos planos anteriores. Todas essas cautelas foram recompensadas pelo número relativamente baixo de demandas judiciais suscitadas pelo Plano Real. Destacam-se, pelo montante dos valores envolvidos, as ações questionando a regra prevista pelo art. 36 da MP nº 434, convertido no art. 38 da Lei nº 8.880, para a correção monetária de obrigações nos meses de julho e agosto de 1994. A validade desse dispositivo foi confirmada, porém, por reiteradas decisões dos tribunais federais. Ao passar de forma tranquila pelo crivo da Justiça, o Real fez mais que derrubar a inflação: reconciliou estabilidade econômica e segurança jurídica, que os planos anteriores pareciam colocar em campos opostos. Apraz-nos pensar que esse foi um capítulo importante do amadurecimento da capacidade do país de lidar com os desafios de uma economia emergente nos marcos do estado democrático de direito. Páginas fundamentais desse capítulo foram escritas, como vimos, para e pelo Poder Judiciário. 2. JUDICIALIZAÇÃO DA POLÍTICA E A ADVOCACIA DA UNIÃO Ao explicar os desdobramentos do Plano Real, os responsáveis por sua concepção e execução insistiam que a derrubada da inflação não era um fim em si mesmo, mas o começo de mudanças destinadas a consolidar a estabilidade e refazer as condições de desenvolvimento econômico e social do país. Outros capítulos dessa agenda de reformas envolveram intensamente o Poder Judiciário. A Constituição de 1988 inovou ao detalhar em seu próprio texto um amplo elenco de direitos e obrigações; ao espalhar pela sociedade a titularidade para questionar diretamente no STF a constitucionalidade de atos dos Poderes Executivo e Legislativo; e, não menos importante, ao garantir em termos inequívocos a autonomia do Ministério Público em relação ao Executivo. Tudo isso teve o efeito esperado e desejável de fortalecer o Judiciário. E teve o efeito, talvez menos esperado, mas inevitável, de deslocar para os tribunais questões que em outros países são matéria precípua de deliberação política. DOUTRINA . DESAFIOS DA JUSTIÇA O EXECUTIVO E A MODERNIZAÇÃO DO JUDICIÁRIO 133 A oposição às reformas pós-Real, notadamente às privatizações e às mudanças na previdência social, recorreu amplamente à “judicialização da política”. Propostas referendadas pelo eleitorado, aprovadas pelo Legislativo e sancionadas pelo Executivo foram levadas ao Judiciário, a pretexto de questionar sua constitucionalidade, para o que era na verdade um turno adicional de discussão do seu mérito, ou mera manobra de obstrução da sua implementação. Isso pode parecer uma anomalia do ponto de vista do direito comparado. Do ponto de vista prático, contudo, trata-se de um dado da realidade (que tem sua recíproca na “politização da Justiça”). Lidar com as consequências dessa peculiaridade da democracia brasileira obrigou o Executivo federal a encarar a fragilidade da sua representação na esfera judicial. Não é segredo que a Advocacia-Geral da União, ao ser separada do Ministério Público, em 1993, nasceu como uma espécie de patinho feio, carente de pessoal, recursos e charme. Essas carências obrigaram os membros da instituição a esforços heróicos para responder, por exemplo, às dezenas de ações simultâneas em varas da Justiça Federal por todo o país tentando bloquear na última hora a realização de leilões de privatização. Menos visíveis, mas tão ou mais graves, eram os prejuízos para o erário acumulados em decorrência da falta de defesa adequada numa miríade de processos envolvendo funções rotineiras da administração pública. O reforço da sua estrutura a partir de 1995, tanto em termos orçamentários quanto de pessoal, permitiu à AGU erguer-se à altura da sua missão de defesa do interesse público na representação judicial e extrajudicial da União. A unificação da representação judicial das autarquias e fundações federais diretamente pela AGU, ou sob sua supervisão, foi fundamental para fechar os ralos de negligência e corrupção pelos quais escoava dinheiro público em algumas dessas entidades. A criação, em 2002, da Procuradoria-Geral Federal, no âmbito da AGU, nivelou por cima a assistência jurídica às entidades da administração direta da União. A revisão de cálculos e perícias judiciais por um departamento especializado da AGU permitiu a impugnação de precatórios superfaturados no montante de R$17 bilhões de reais entre 1995 e 2001. Os esforços de elaboração de teses jurídicas e sistematização de estratégias processuais em defesa dos interesses da União também deram frutos na sustentação de outros pontos da agenda de reformas, como o reconhecimento da constitucionalidade do fator previdenciário e da fixação de limites à despesa de pessoal pela Lei de Responsabilidade Fiscal. Anos e anos de inflação alta acostumaram os agentes públicos a apostar na procrastinação para diluir o valor real de obrigações do erário. Sem inflação, esse 134 REVISTA DO INSTITUTO DOS ADVOGADOS DE SÃO PAULO v. 35, JANEIRO - JUNHO 2015 expediente tornava-se financeiramente insustentável, além de eticamente condenável. A presença mais eficaz da AGU em juízo teve por contrapartida medidas visando aliviar o Poder Judiciário de recursos procrastinatórios e ações sem possibilidade real de sucesso para a União. O Decreto nº 1.601, de 1995, autorizou a Procuradoria-Geral da Fazenda Nacional a não recorrer de decisões judiciais relativas a determinados tributos, onde houvesse jurisprudência firmada pelos tribunais superiores. Várias súmulas administrativas do Advogado-Geral especificaram condições em que fica autorizada a não interposição de recursos sobre diferentes matérias. O Decreto nº 2.346, de 1997, consolidou normas e procedimentos destinados a conformar os atos do Executivo às decisões do Judiciário. No mesmo passo em que contribuíram para desafogar o Judiciário, essas medidas estimularam a criação, no âmbito do Executivo, de uma cultura administrativa condizente com tempos de estabilidade econômica e controles democráticos. 3. A REFORMA POLÍTICA QUE DÁ CERTO Enquanto o Poder Executivo se adaptava às exigências de um Judiciário fortalecido, este iniciava um ciclo de abertura às demandas da cidadania. As discussões sobre reforma política costumam girar em torno das propostas de mudança do sistema eleitoral e partidário. Mas é neste outro campo – o do aperfeiçoamento das estruturas e procedimentos da Justiça – que a democratização das instituições tem avançado a passos mais largos. A Lei nº 8.952, de 1994, introduziu, entre outras inovações, a tutela antecipada, permitindo ao juiz proteger direitos que seriam irreversivelmente lesados com a demora de uma decisão final. A criação dos Juizados Especiais Civis e Criminais, pela Lei nº 9.099, de 1995, é um marco desse processo. Com soluções inovadoras, tanto na área criminal como na civil, o modelo tradicional da Justiça brasileira, ensimesmada em seus ritos burocráticos, deu lugar a um procedimento mais simples e rápido, que facilitou o acesso do cidadão comum à Justiça, inclusive com dispensa de advogado em parte dos casos. A criação dos Juizados Especiais Federais, pela Lei nº 10.259, de 2001, teve um sentido democratizador semelhante. A simplificação de processos em que figuram como rés a União, suas autarquias, fundações e empresas públicas atendeu a uma aspiração DOUTRINA . DESAFIOS DA JUSTIÇA O EXECUTIVO E A MODERNIZAÇÃO DO JUDICIÁRIO 135 antiga da sociedade e do próprio Judiciário. O sucesso da medida foi tão grande, que se descobriu uma demanda escondida expressiva, principalmente relativa aos benefícios da previdência e da assistência social. Há alguns anos, os Juizados Especiais Federais julgam mais processos que a Justiça Federal comum e os Tribunais Regionais Federais. No mesmo espírito, o Código de Processo Civil passou por uma série de “microrreformas”. Destacam-se a introdução da ação monitória (Lei nº 9.079, de 1995); alterações no agravo de instrumento (Lei nº 9.139, de 1995); a regulamentação da arbitragem (Lei nº 9.307, de 1996); aperfeiçoamentos no processamento de recursos no âmbito dos tribunais (Lei nº 9.756, de 1998); a limitação das questões relacionadas com o duplo grau de jurisdição e a alteração de procedimentos recursais (Lei nº 10.352, de 2001); a alteração de dispositivos do processo de conhecimento (Lei nº 10.358, de 2001). O processo e julgamento da ação direta de inconstitucionalidade e da ação declaratória de constitucionalidade perante o STF foram regulamentados pela Lei nº 9.868, de 1999. A Lei nº 9.882, de 1999, dispôs sobre o processo e julgamento da arguição de descumprimento de preceito fundamental, regulamentando o § 1o do art. 102 da Constituição. Ela também contribui para desafogar o Judiciário, na medida em que a decisão do STF tem eficácia contra todos e efeito vinculante para os demais órgãos públicos. A regulamentação da ação direta de inconstitucionalidade, da ação declaratória de constitucionalidade e da arguição de descumprimento de preceito fundamental valorizaram o papel do STF como corte constitucional, permitindo às demais instâncias do Judiciário se alinharem mais rapidamente com suas decisões. Na área trabalhista, a Lei nº 9.957, de 2000, instituiu o procedimento sumaríssimo, permitindo acelerar o julgamento de dissídios individuais de valor até quarenta vezes o salário mínimo. A Lei nº 9.958, de 2000, criou as Comissões de Conciliação Prévia e permitiu a execução de título executivo extrajudicial na Justiça do Trabalho. As comissões, integradas por representantes de empregados e empregadores, promovem a conciliação de conflitos individuais do trabalho, o que tende a diminuir o número de demandas reclamatórias. Sua importância foi limitada, no entanto, por uma decisão posterior do STF que desobrigou as partes de comparecerem à comissão. 3 3. Valemo-nos aqui do sumário das “microrreformas” do Judiciário incluído na Mensagem ao Congresso Nacional. Brasília, Presidência da República, 2002. pp. 483-487. 136 REVISTA DO INSTITUTO DOS ADVOGADOS DE SÃO PAULO v. 35, JANEIRO - JUNHO 2015 A promulgação da Emenda Constitucional nº 45, de 2004, coroou esse ciclo. Outros autores saberão discutir neste livro, com mais propriedade, as implicações jurídicas da Reforma do Judiciário, como tem sido chamada essa emenda. Destacamos aqui duas implicações políticas. Quanto ao processo da sua elaboração, ela é um testemunho eloquente tanto da dificuldade como, ao fim e ao cabo, da viabilidade da construção dos consensos necessários para realizar mudanças de vulto no e pelo marco legal da nossa democracia. Da dificuldade dizem bem os 13 anos de tramitação desde a apresentação da proposta original de emenda pelo deputado Hélio Bicudo. A viabilidade é atestada pela amplitude da sua discussão, dentro e fora do Congresso Nacional. Dos membros dos Poderes constituídos, nos diferentes níveis, aos setores da sociedade direta ou indiretamente interessados, ninguém deixou de se fazer ouvir.4 Quanto ao resultado, ela criou dois instrumentos fundamentais para desafogar o STF – os institutos da súmula vinculante e da repercussão geral – e uma fórmula original, engenhosa, de controle interno – o Conselho Nacional de Justiça. Talvez mais importante, fixou na Constituição dois princípios para o aprimoramento contínuo do Poder Judiciário: a simplificação dos seus procedimentos, tendendo à sua maior celeridade, e a transparência das suas estruturas perante a sociedade. Desse ponto de vista, a Emenda Constitucional nº 45 foi o coroamento de um ciclo, mas não o fim das reformas necessárias para alinhar o desempenho da Justiça com as demandas da cidadania. 4. UMA AGENDA DA SEGURANÇA COM TRANSPARÊNCIA O Presidente da República, sozinho, não faz reformas – nem governa, diga-se. Mas reformas importantes não avançam sem a liderança ou pelo menos o estímulo do Presidente. As mudanças legislativas que resenhamos acima começaram por iniciativa do Presidente e avançaram quando e na medida em que este atuou para somar a seu favor a maioria do Congresso e a hierarquia do Judiciário. A exceção notável foi a Emenda Constitucional nº 45, de iniciativa da Câmara dos Deputados. Mas mesmo essa teria levado mais do que os 13 anos que levou para ser aprovada, se não fosse o 4. A tramitação da Reforma do Judiciário na Câmara dos Deputados (PEC nº 96, de 1992) e no Senado Federal (PEC nº 29, de 2000) está detalhada nestas páginas: http://www.camara.gov.br/proposicoesWeb/ fichadetramitacao?idProposicao=14373 | http://www.senado.gov.br/atividade/materia/detalhes.asp?p_cod_ mate=44577 DOUTRINA . DESAFIOS DA JUSTIÇA O EXECUTIVO E A MODERNIZAÇÃO DO JUDICIÁRIO 137 empenho sucessivo de dois Presidentes e seus principais auxiliares na área jurídica. Tal convergência de forças não ocorre sempre, nem ocorre só porque o país precisa de reformas. Depende das prioridades do Presidente, da visão dos demais atores com poder de decisão – inclusive poder de veto – e, em última análise, das circunstâncias históricas. A história não é uma loteria, porém. Não avança a golpes de fortuna, somente, mas graças à virtù de quem busca deliberadamente tornar possíveis as mudanças necessárias. Poucos acreditavam, em 1993, que seria possível derrubar a inflação. Faltavam condições políticas para tanto, dizia-se. O rescaldo do impeachment de um presidente e um Congresso Nacional mergulhado no escândalo dos “anões do orçamento” não pareciam, de fato, um cenário favorável para atacar de frente o dragão inflacionário. Havia, contudo, razoável clareza sobre o rumo das reformas econômicas necessárias, fruto de anos de reflexão e discussão entre técnicos, gestores públicos, lideranças sociais e políticos mais afeitos ao assunto. Isso nos permitiu avançar quando as condições políticas se apresentaram, ou antes, foram alcançadas. As condições para propostas mais ambiciosas de reforma do Judiciário podem não parecer dadas no momento – mas quem garante que não podem ser criadas? O esforço de iluminar os próximos itens dessa agenda será recompensado, de todo modo, se estivermos prontos para aproveitar a oportunidade quando uma conjunção favorável de atores e circunstâncias se apresentar. Adiantamos algumas ideias nesse sentido, mais em forma de questões que de sugestões específicas. Estas virão, acreditamos, de quem tem qualificação jurídica para formula-las. O norte são os princípios, já assinalados, da eficiência e transparência da Justiça. A variável crítica da eficiência continua sendo a celeridade do processo judicial, ainda longe de satisfatória, apesar dos avanços realizados. A situação é dramática na área criminal, sobretudo nos casos de homicídio e corrupção, de forte repercussão pública, onde a morosidade da Justiça cria sensação de impunidade e mina a confiança nos Poderes constituídos em geral. Sem prejuízo de microrreformas simplificadoras do Código de Processo Penal, semelhantes às que foram feitas na área civil, seria bom ver propostas mais ousadas em debate. 138 REVISTA DO INSTITUTO DOS ADVOGADOS DE SÃO PAULO v. 35, JANEIRO - JUNHO 2015 Menos de 10% dos homicídios são esclarecidos no Brasil. Um esforço conjunto das autoridades federais e estaduais conseguiu elevar essa taxa para 19%. 5 É um avanço importante, mas que ainda nos deixa em má posição na escala da impunidade. O desfecho do processo penal depende, na origem, da consistência da denúncia, que por sua vez depende da qualidade do inquérito policial. O STF tem respaldado a atuação do Ministério Público na investigação criminal, sem prejuízo da competência precípua das polícias Civil e Federal. Se isso não encerrar as disputas frequentes entre as corporações, mudanças na legislação podem ser necessárias para lhes dar regras claras de cooperação no combate ao crime. Da mesma forma, conflitos e lacunas de competência entre as polícias Civil, Militar e Federal reclamam respostas mais efetivas, tanto de arranjos administrativos quanto da lei. Aguardam regulamentação legal, a propósito, dispositivos da Constituição que tratam das atribuições da Polícia Federal (artigo 144, § 1º, inciso I) e da “organização e o funcionamento dos órgãos responsáveis pela segurança pública, de maneira a garantir a eficiência de suas atividades” (artigo 144, § 7º). O preciosismo dos trâmites judiciais, em nossa vetusta tradição luso-brasileira, é a delícia do legista e o suplício das partes, ou pelo menos da parte interessada em resolver e não procrastinar a demanda. Isso aumenta a distância entre a lei e o cidadão comum. Existe uma forma consagrada de encurtar essa distância: o júri popular. Tocqueville equiparou o júri ao voto como pilares da democracia americana. O júri, e sobretudo o júri civil, serve para dar ao espírito de todos os cidadãos uma parte dos hábitos de espírito do juiz; e esses hábitos são precisamente os que melhor preparam o povo para ser livre. Ele difunde em todas as classes o respeito pela coisa julgada e a ideia do direito... Ensina os homens a praticar a equidade. Cada um, ao julgar seu vizinho, pensa que por sua vez poderá ser julgado... O júri ensina cada homem a não se furtar à responsabilidade por seus próprios atos; disposição viril, sem a qual não existe virtude política. 5. Estratégia Nacional de Justiça e Segurança Pública. Relatório Nacional da Execução da Meta 2 : um diagnóstico da investigação de homicídios no país. Brasília, Conselho Nacional do Ministério Público, 2012. p. 43. http://www. cnmp.gov.br/portal/images/stories/Enasp/relatorio_enasp_FINAL.pdf DOUTRINA . DESAFIOS DA JUSTIÇA O EXECUTIVO E A MODERNIZAÇÃO DO JUDICIÁRIO 139 Ele investe cada cidadão numa espécie de magistratura; faz todos sentirem que têm deveres a cumprir para com a sociedade, e que tomam parte no seu governo. Ao obrigar os homens a cuidarem de outra coisa além de seus próprios assuntos, combate o egoísmo individual, que é como a ferrugem das sociedades.6 A ideia pode soar mal a ouvidos conservadores, mas não terá chegado a hora de sacudir a ferrugem da tradição e estender a competência do júri popular no Brasil? Por que não levar a júri, por exemplo, os casos de corrupção que assaltam o bolso e agridem a consciência dos cidadãos? Se Tocqueville tinha razão – como acreditamos que tinha – tanto a confiança na Justiça como a qualidade da participação popular na democracia ganhariam com essa virada histórica. É verdade que isso fará pouca diferença, se os casos de corrupção e outros submetidos a júri demorarem tanto quanto os de homicídio para transitarem em julgado. Voltamos à questão da celeridade. Os possíveis ganhos incrementais de microrreformas, somente, parecem paliativos diante das notícias recorrentes de prescrição da pena de crimes graves. Como “acelerar a aceleração” do processo? Duas respostas se apresentaram recentemente.6 A Lei Complementar nº 135, de 2010, chamada Ficha Limpa, atacou o problema de maneira efetiva mas, por assim dizer, lateralmente, ao proibir a candidatura de pessoas condenadas em segunda instância. Dizemos lateralmente, porque a lei tratou a inelegibilidade, não como punição, mas como impedimento decorrente do não cumprimento de um requisito para a assunção de cargo público. Contornou, desse modo, o princípio da presunção de inocência até o trânsito em julgado da sentença condenatória. A Proposta de Emenda à Constituição nº 15, de 2011, conhecida como PEC dos Recursos, quer atacar o problema frontalmente, acabando com o efeito suspensivo dos recursos ao Superior Tribunal de Justiça e STF. As sentenças dos tribunais de segunda instância teriam, assim, efeito imediato. Sem mergulhar na discussão acalorada que essa proposta suscitou no meio jurídico, limitamo-nos a assinalar o óbvio: se a solução é controvertida, o problema é real, assim como a indignação que provoca na opinião pública. Impossível tira-lo da ordem do dia, a não ser com uma solução melhor, se 6. Alexis de Tocqueville, De la Démocratie en Amérique, tome deuxième. Douzième édition. Paris, Pagnerre, 1848. The Project Gutenberg EBook, Released Nov 21, 2009, Kindle format, Location 1796. http://www.gutenberg.org/ ebooks/30514 140 REVISTA DO INSTITUTO DOS ADVOGADOS DE SÃO PAULO v. 35, JANEIRO - JUNHO 2015 possível, mas efetiva, para acabar com o exotismo brasileiro que é o julgamento em quatro instâncias como rotina, e não exceção. O Conselho Nacional de Justiça ajudou a colocar a questão da celeridade da Justiça na ordem do dia, motivando e apoiando os Tribunais estaduais para reduzir as pilhas de processos a espera de julgamento. No mínimo, prestou um enorme serviço ao radiografar nacionalmente o problema. O que nos leva, para concluir, à questão da transparência. Houve sinais de desconforto com a exposição, pelo CNJ, do atraso acumulado no fluxo de processos dos Tribunais. A intensidade do desconforto subiu vários pontos com a exposição de pagamentos mal justificados feitos por alguns Tribunais a alguns de seus membros. A transparência, como a espada da Justiça, é um valor que muda de sinal conforme se lhe sinta a ponta ou empunhe o cabo. A Justiça deve sair-se bem dessa prova, com o STF, boa parte da magistratura e a opinião pública respaldando o papel fiscalizador do CNJ. Pode sair-se ainda melhor se a consolidação do controle interno abrir caminho para mais avanços no aprimoramento da administração do Poder Judiciário. O princípio da autonomia administrativa dos tribunais, em si mesmo defensável, tem o efeito colateral de sobrecarregar magistrados com tarefas administrativas para as quais eles não são vocacionados. A missão do CNJ, com as adaptações eventualmente necessárias da legislação, poderia incluir a formulação e estímulo à implementação de medidas no sentido da profissionalização da administração judiciária, com gestores de carreira especialmente selecionados e treinados. A política remuneratória dos membros e servidores do Judiciário é outra matéria sobre a qual o CNJ parece apto a atuar. Os presidentes de tribunais vêem-se frequentemente na posição delicada de dublê de supremo magistrado e porta-voz de reivindicações salariais de seus pares perante o Executivo e o Legislativo. Seria preferível, para a dignidade da sua função precípua, desonera-los da função secundária e remetê-la para o CNJ ou algum foro ligado a ele. Isso parece tanto mais recomendável quanto maior é a repercussão da política remuneratória do Judiciário sobre os outros Poderes, seja pelo instituto formal do teto, seja pelo parâmetro de fato que os salários do Judiciário estabelecem para as demandas dos demais servidores. Ideias não faltarão, se houver ambiente propício para apresenta-las e discutilas com tranquilidade. O desejável é que representantes dos três Poderes e da DOUTRINA . DESAFIOS DA JUSTIÇA O EXECUTIVO E A MODERNIZAÇÃO DO JUDICIÁRIO 141 sociedade civil sintam-se à vontade para intervir no debate buscando explorar novas possibilidades de avanço, sem interditos nem sobressaltos corporativos antecipados. E que a prática do debate amplo sobre o desempenho, estruturas e perspectivas do Judiciário se torne permanente, em múltiplos foros, como condiz com seu papel proeminente no Brasil democrático. DIREITO CIVIL PRESCRIÇÃO E DECADÊNCIA NO CENÁRIO DO DIREITO DO CONSUMIDOR: REÇÃO ENTRE O DIREITO E O TEMPO NA CONTEMPORANEIDADE REGINA VERA VILS BÔAS Pós-Doutora em Democracia e Direitos Humanos pela Universidade de Coimbra - Ius Gentium Conimbrigae. Graduada, Mestre Doutora em Direito Civil e Doutora em Direitos Difusos e Coletivos, todos pela PUC/SP. WILSON JOSÉ VINCI JÚNIOR Mestrando em Direito pela PUC/SP. Especialista em Direitos Difusos e Coletivos (2013) e Direito Público (2007), ambas pela Escola Superior do Ministério Público de São Paulo. Procurador Federal. Deus pede estrita conta de meu tempo. / E eu vou do meu tempo, dar-lhe conta. / Mas, como dar, sem tempo, tanta conta / Eu, que gastei, sem conta, tanto tempo? / Para dar minha conta feita a tempo, / O tempo me foi dado, e não fiz conta, / Não quis, sobrando tempo, fazer conta, / Hoje, quero acertar conta, e não há tempo. / Oh, vós, que tendes tempo sem ter conta, não gasteis vosso tempo em passatempo. / Cuidai, enquanto é tempo, em vossa conta! Pois, aqueles que, sem conta, gastam tempo, quando o tempo chegar, de prestar conta, chorarão, como eu, o não ter tempo. (Tempo e Conta - Frei António das Chagas, in ‘Antologia Poética’) SUMÁRIO 1. Introdução: Contextualização dos Institutos na Sociedade Contemporânea; 2. Compreensão dos Institutos: Distinção e Conceitos; 3. Prescrição e Decadência no Código de Defesa do Consumidor (CDC); 4. Notas Finais; 5. Referências. RESUMO ABSTRACT O presente artigo apresenta breves considerações sobre os institutos da prescrição e da decadência, a partir das disposições contidas no Código de Defesa do Consumidor, analisando, também, as principais divergências doutrinárias relacionadas ao assunto. A importância do tema reside na complicada relação entre o tempo e o direito, afinal, via de regra, o exercício de um direito é condicionado a um lapso temporal. O texto apresenta especificidades dos institutos da prescrição e da decadência pelo viés do Direito do Consumidor, o qual desafia o contexto jurídico clássico em que, inicialmente, se desenvolveram os institutos, tudo em favor do consumidor. A rica doutrina utilizada na elaboração do presente artigo é interpretada de maneira criativa, com a finalidade de melhor compreender a prescrição e a decadência, promovendo a atualização cultural dos significados dos institutos na sociedade contemporânea. This article presents a brief look about the institutes of prescription and limitation, from the provisions of the Consumer Protection Code, analyzing also the major doctrinal differences related to the subject. The importance of the issue lies in the complicated relationship between time and the right, after all, as a rule, the exercise of a right is conditional upon a time gap. The text presents specificities of prescription and limitation by the Consumer Law view, which challenges the classic legal context in which initially developed the institutes, all in favor of the consumer. The rich doctrine used in the preparation of this article is interpreted creatively, in order to better understand the prescription and limitation, promoting cultural update of the meanings of the institutes in contemporary society. PAVRAS-CHAVE KEYWORDS Prescrição. Decadência. Direito do consumidor. Comtemporaneidade. Prescription. Limitation. Consumer. Lae. Contemporaneity 146 REVISTA DO INSTITUTO DOS ADVOGADOS DE SÃO PAULO v. 35, JANEIRO - JUNHO 2015 1. INTRODUÇÃO: CONTEXTUALIZAÇÃO DOS INSTITUTOS NA SOCIEDADE CONTEMPORÂNEA A complexidade das relações e das situações sociais contemporâneas impõe aos aplicadores do Direito a utilização de visão interdisciplinar e transdisciplinar, porque esta corrobora a clareza e a justeza de suas reflexões. O homem hodierno necessita ter claros e definidos os valores que ambiciona concretizar na trajetória de sua vida, valores incorporados nos horizontes por ele sonhados. Sem traçar os seus horizontes, caminha desequilibrado na busca de suas necessidades, interesses e desejos, distanciando-se cada vez mais das referências naturais e essenciais do ser humano, que o acompanham nessa longa trajetória da vida. Por um lado, pensar o homem contemporâneo é, sobretudo, discutir a dignidade da pessoa humana. O ordenamento jurídico nacional apresenta fundamento sólido no artigo 1º, inciso III, da Constituição da República Federativa do Brasil, o qual propicia a valoração do homem e da sua dignidade, independentemente das suas características, eis que ele, ser humano, deve ser considerado um fim em si mesmo, possuidor de potências capazes de satisfazer a si mesmo e aos seus semelhantes. Por outro lado, pensar o Direito implica, antes, a lembrança da máxima regra de conduta que informa “havendo homem, haverá a sociedade e, havendo sociedade, haverá o direito”. Ora, se isso ocorre porque o Direito agrega entre as suas finalidades a de ordenar a convivência social dos indivíduos, poder-se-ia considerar desnecessária a aplicação de regras jurídicas, regulamentadoras de condutas, nas situações de vivência solitária do homem? Seria possível, na sociedade contemporânea, levar uma vida isolada da sociedade, considerando-se que o mundo atravessa uma época, regida pelo famigerado hiperconsumismo, que invade e desencanta a todos? Pode-se pensar que os povos, dantes isolados das relações civis costumeiras, não conseguem sequer garantir a utilização dos espaços territoriais que herdaram das gerações que os antecederam, e que o homem encontra, isoladamente, dificuldades maiores de manterse em isolamento? Observa-se, nessa cadência, que a interface compartilhada pelo homem e pelo direito mostra, do lado do direito, uma feição controladora das condutas sociais, que tem base em estrutura conservadora; e do lado do homem uma feição de liberdade, que tem base na busca constante de verdades, orientadas pela sua vontade. O homem, valendo-se de sua liberdade criativa, pode tornar sua conduta ativa e modificar a sua DOUTRINA . DIREITO CIVIL PRESCRIÇÃO E DECADÊNCIA NO CENÁRIO DO DIREITO DO CONSUMIDOR: RELAÇÃO ENTRE O DIREITO E O TEMPO NA CONTEMPORANEIDADE 147 vida, transformando o mundo em algo melhor. O direito, que não é somente um poço de regras de condutas, transformará também a sociedade e o homem, na medida em que o homem os transformarem. Todas as palavras, ações, gestos e comandos praticados pelo homem e assimilados pelo direito são transformadores dos valores das condutas sociais. As reflexões ora apresentadas procuram apinhar de humanidade as palavras e orações escritas, de maneira a conjugar a linguagem jurídico-técnica com a jurídicoartística, possibilitando ao leitor uma pitada de visão interdisciplinar, regada por conceitos extraídos do pensamento da complexidade, difundido, notadamente, por Edgar Morin1. Dessa maneira, a presente pesquisa considera que todas as interfaces do direito interagem com as do ser humano, que carrega em si o dom de ser independente, capaz e bem-aventurado. O interesse humano, em regra, começa a ser valorado na ordem social e, somente após, ganha realce e status no mundo jurídico, que passa a protegê-lo no rol dos direitos e garantias do homem, propiciando instrumentos jurídicos que promovam a sua defesa e tutela. Pois bem, esclarecendo-se, inicialmente, que o exercício de um direito não pode ficar pendente indefinidamente, porque tal fato geraria, sem dúvida, uma instabilidade social, desafia-se os institutos ora apreciados a defenderem a dignidade da pessoa humana, destacada como fundamento maior da Constituição da República Federativa do Brasil, e o consumidor, cuja defesa é prevista como um princípio geral da atividade econômica, no art. 170, inciso V da Constituição da República Federativa do Brasil, localizado “na ordem econômica e financeira nacional”. Nesse contexto, a ordem pública exige que o titular do exercício de direitos e da pretensão à propositura da ação observe o lapso temporal predeterminado para exercitá-lo, garantindo a estabilidade econômico-social. A importância sempre contemporânea da prescrição e da decadência enseja a pontual conceituação dos institutos, matéria exposta a seguir. 1. MORIN, Edgar. Introdução ao Pensamento Complexo. Trad. Eliane Lisboa. 3. ed. Porto Alegre: Sulina, 2007. 148 REVISTA DO INSTITUTO DOS ADVOGADOS DE SÃO PAULO v. 35, JANEIRO - JUNHO 2015 2. COMPREENSÃO DOS INSTITUTOS: DISTINÇÃO E CONCEITOS Por primeiro, necessária a compreensão dos vocábulos jurídicos inércia e tempo, que são comuns na conceituação dos institutos da decadência e da prescrição, mas que não se confundem quanto aos seus objetivos e momentos de atuação. O tempo remete o intérprete à questão da duração relativa das coisas, que institui no imaginário humano a ideia de passado, presente e futuro, apontando a continuidade a que os acontecimentos se sujeitam, determinando lapsos temporais ao exercício e à pretensão de defesa de direitos. A inércia se mostra, por um lado, como uma antonímia do agir, uma atonia que revela estagnação e indiferença, colocando o titular do exercício de direito e o do exercício da ação, esmorecido, diante destas possibilidades que o ordenamento jurídico lhe propicia e, de outro lado, pode servir de fundamento ao interesse público. Extrai-se, das premissas acima, que na decadência a inércia diz respeito ao exercício do direito e o tempo opera os seus efeitos desde o nascimento deste (direito), enquanto que, na prescrição, a inércia diz respeito ao exercício da pretensão à propositura da ação e o tempo opera os seus efeitos desde o nascimento desta, que, em regra, é posterior ao nascimento do direito por ela protegido. Prescrição2 é a extinção da pretensão à propositura de ação judicial possível, em virtude da inércia de seu titular por um certo lapso de tempo, conforme dispõe o § 194 do BGB (Código Civil alemão), que estabelece estarem sujeitas à prescrição somente as pretensões, tendo início a contagem de referido prazo, do nascimento da pretensão. No debate clássico travado entre ela (prescrição) e a justiça, a interpretação mais apropriada é a de que o instituto, certamente, serve à justiça, não cuidando, dessa maneira, de apenar a desídia do titular de um direito, fundamento este equivocado e afastado pela doutrina contemporânea, que alicerça a prescrição não mais na punição do credor, mas sim no direito e na proteção do devedor, o qual não pode ficar, eternamente, em estado de sujeição ao credor, o que, per se, coloca a prescrição a serviço da justiça ao fixar prazos para o exercício das pretensões do credor. O instituto promove a estabilidade e harmonia social, protegendo o interesse social. A prescrição, de maneira absoluta, não teria a ver com o direito, já que este pode 2. Ressalte-se que a prescrição referida neste artigo refere-se à prescrição extintiva ou propriamente dita, uma vez que a prescrição aquisitiva, em tese, é instituto afeto ao direito das coisas. DOUTRINA . DIREITO CIVIL PRESCRIÇÃO E DECADÊNCIA NO CENÁRIO DO DIREITO DO CONSUMIDOR: RELAÇÃO ENTRE O DIREITO E O TEMPO NA CONTEMPORANEIDADE 149 sobreviver àquela, conforme leciona Pontes de Miranda3. Exemplo dessa situação é extraído da norma do artigo 882 do Código Civil Brasileiro vigente, que dispõe não poder repetir o que se pagou para solver dívida prescrita, ou seja, quem paga dívida prescrita não pode acionar o credor, em razão de tê-la solvido, o que impõe ausência de prescrição de direito, nesta situação. A decadência, por sua vez, refere-se à extinção do direito pela inércia de seu titular, quando sua eficácia é, de origem, subordinada à condição de seu exercício dentro de um prazo prefixado, tendo este se esgotado sem que referido exercício se tenha verificado. Para Antônio Luis Câmara Leal4, decadência ou caducidade é “a extinção ou perecimento do direito pelo decurso do prazo fixado ao seu exercício, sem que o seu titular o tivesse exercido”. Logo, para o autor, a extinção do direito é o principal efeito operado pela decadência, decorrendo dessa situação, o desaparecimento da ação que deveria assegurar referido direito, ou seja, quando ação e direito não se identificam, não ocorre o nascimento da ação, que perece juntamente com o direito, na ocasião em que com ele, simultaneamente, nasce. Agnelo Amorim Filho5 leva em conta a espécie de ação relacionada à proteção do direito, para estabelecer critério prático de distinção dos institutos, lecionando que: a) se a ação é condenatória, o prazo é de prescrição, prescrevendo a pretensão a que referida ação corresponde; b) se a ação é constitutiva, tendo o prazo de exercício legalmente instituído, está-se diante da decadência, sendo que o direito potestativo (cujo exercício propicia a extinção, modificação ou criação de certa relação jurídica, e não uma prestação do sujeito passivo) é que enseja a propositura da ação constitutiva; c) se a ação é declaratória, a prescrição não ocorre, tendo em vista ser ela imprescritível, o mesmo acontecendo com as pretensões exercidas por meio de ações constitutivas que não possuem prazo de exercício, legalmente fixado. Pois bem, fixados os conceitos e as principais distinções - entre os dois institutos apreciados - pela doutrina clássica e contemporânea, observa-se, ainda, que: a) a decadência tem por efeito extinguir o direito, e a prescrição extinguir a pretensão à 3. Tratado de Direito Privado, § 662, nº 9, 4ª e, SP: RT, 1983, p. 106. 4. Da prescrição e da decadência: Teoria Geral de Direito Civil, nº 71 e 86, 4ª e., RJ: Forense, 1982, pp. 99 e 115, respectivamente. 5. Critério científico para distinguir a prescrição da decadência e para identificar as ações imprescritíveis. Revista dos Tribunais, v. 744, pp 725-750, SP: RT, out. 1997. 150 REVISTA DO INSTITUTO DOS ADVOGADOS DE SÃO PAULO v. 35, JANEIRO - JUNHO 2015 propositura da ação; b) a decadência, em regra, não se suspende nem se interrompe, e só é impedida pelo exercício do direito a ela sujeito; a prescrição pode ser suspensa ou interrompida por causas preclusivas, previstas em lei; c) a decadência corre contra todos, não prevalecendo contra ela as isenções criadas pela lei em favor de certas pessoas; a prescrição não corre contra todos, havendo pessoas que, por consideração de ordem especial da lei, ficam isentas de seus efeitos; d) a decadência resultante de prazo extintivo imposto pela lei não pode ser renunciada pelas partes, nem depois de consumada; a prescrição, depois de consumada, pode ser renunciada pelo prescribente. 3. PRESCRIÇÃO E DECADÊNCIA NO CÓDIGO DE DEFESA DO CONSUMIDOR (CDC) As normas jurídicas contidas no Código de Defesa do Consumidor são cristalinas no tocante à intenção de restabelecer o equilíbrio nas relações de consumo, o que não significa a ausência de prazos a serem cumpridos pelo consumidor6 em prol dos seus direitos. Os institutos da prescrição e da decadência são fundamentais às relações sociais, já que podem propiciar a extinção de pretensões e de direitos, respectivamente. Assim, em última análise, afastam de maneira definitiva, pela inércia, a proteção legal a que o consumidor faz jus. São, portanto, institutos que têm por escopo a estabilidade e a segurança jurídica. Nesse diapasão, dispõe o artigo 26 do Código de Defesa do Consumidor: Art. 26. O direito de reclamar pelos vícios aparentes ou de fácil constatação caduca em: I - trinta dias, tratando-se de fornecimento de serviço e de produtos não duráveis; II - noventa dias, tratando-se de fornecimento de serviço e de produtos duráveis. § 1° Inicia-se a contagem do prazo decadencial a partir da entrega efetiva do produto ou do término da execução dos serviços. 6. Na lição de José Geraldo Brito Filomeno, “o conceito de consumidor adotado pelo CDC foi exclusivamente de caráter econômico, ou seja, levando-se em consideração tão-somente o personagem que no mercado de consumo adquire bens ou então contrata a prestação de serviços, como destinatário final, pressupondo-se que assim age com vistas ao atendimento de uma necessidade própria e não para o desenvolvimento de uma outra atividade negocial.” (GRINOVER, Ada Pellegrini [et al]. Código Brasileiro de Defesa do Consumidor comentado pelos autores do anteprojeto, São Paulo: Forense Universitária, 2005, p. 27). DOUTRINA . DIREITO CIVIL PRESCRIÇÃO E DECADÊNCIA NO CENÁRIO DO DIREITO DO CONSUMIDOR: RELAÇÃO ENTRE O DIREITO E O TEMPO NA CONTEMPORANEIDADE 151 § 2° Obstam a decadência: I - a reclamação comprovadamente formulada pelo consumidor perante o fornecedor de produtos e serviços até a resposta negativa correspondente, que deve ser transmitida de forma inequívoca; II - (Vetado) a reclamação formalizada perante os órgãos ou entidades com atribuições de defesa do consumidor, pelo prazo de noventa dias. III - a instauração de inquérito civil, até seu encerramento. § 3° Tratando-se de vício oculto, o prazo decadencial inicia-se no momento em que ficar evidenciado o defeito. A norma contida no artigo 26 do Código de Defesa do Consumidor dispõe que o direito do consumidor de reclamar por vícios7 aparentes ou ocultos dos produtos ou serviços se extingue em: 1) trinta dias, tratando-se de fornecimento de produtos ou serviços não duráveis; 2) em noventa dias, tratando-se de fornecimento de produtos ou serviços duráveis. Segundo Zelmo Denari8, a qualificação dos produtos ou serviços como de consumo duráveis ou não duráveis envolve a sua maior ou menor durabilidade, mensurada em termos de tempo de consumo. Exemplifica o referido autor dizendo que os produtos alimentares, de vestuário e os serviços de dedetização não são duráveis, ao passo que os eletrodomésticos, veículos automotores e os serviços de construção civil são duráveis. Cumpre esclarecer que os prazos referidos no artigo 26 do CDC são considerados pela doutrina majoritária como de natureza decadencial. Trata-se da conhecida “garantia legal” de produtos/serviços, obrigatória e inderrogável, decorrente do próprio sistema legal de proteção do consumidor. Ao lado dessa garantia legal, existe a chamada garantia contratual, consistente em um prazo facultativo e deliberadamente concedido pelos fornecedores de produtos e/ ou serviços, visando a atrair consumidores para a sua aquisição, sob o argumento da boa qualidade daquilo que produzem. 7. Vício é a característica negativa de qualidade ou quantidade que torna o produto/serviço impróprio ao consumo (inviabilizando o seu uso), inadequado ao consumo (dificultando o seu uso) ou que diminui o seu valor. 8. GRINOVER, Ada Pellegrini [et al]. Código Brasileiro de Defesa do Consumidor comentado pelos autores do anteprojeto, São Paulo: Forense Universitária, 1999, p. 199.1 152 REVISTA DO INSTITUTO DOS ADVOGADOS DE SÃO PAULO v. 35, JANEIRO - JUNHO 2015 Vale esclarecer que, para a maioria da doutrina consumerista, o prazo de garantia legal somente começa a ser contado após cessado o prazo de garantia contratual. Em outras palavras, não há o risco da vigência de duas garantias ao mesmo tempo, a legal e a contratual. Referido entendimento encontra lastro, inclusive, no artigo 50 do CDC, que estabelece que “a garantia contratual é complementar à legal e será conferida mediante termo escrito.” Observe-se que esse entendimento é amplamente mais favorável ao consumidor. Explica-se. Imagine-se que o consumidor tenha adquirido um bem durável, cuja garantia legal seja de 90 (noventa) dias, nos termos do artigo 26, inciso II do CDC, e cuja garantia contratual seja fixada pelo prazo de 1 (um) ano. Pelo entendimento majoritário da doutrina, primeiro o consumidor estará protegido pela garantia contratual de 1 (um) ano, sendo que, após se escoar esse prazo, começará a valer a garantia legal de 90 (noventa) dias, totalizando um ano de noventa dias de garantia do bem durável adquirido. Evidentemente, esse entendimento é mais favorável ao consumidor do que se imaginar uma relação de continência, onde o prazo de 90 (noventa) dias estaria contido no prazo de 1 (um) ano, totalizando apenas 1 (um) ano de garantia. Em suma, a garantia total de um produto ou serviço equivale à soma da garantia contratual com a garantia legal, confirmando assim, que a interpretação mais favorável ao consumidor encontra guarida no Código de Defesa do Consumidor, o qual estabelece, em seu artigo 47, que as cláusulas contratuais devem ser interpretadas de maneira mais favorável ao consumidor. Em se tratando de vícios aparentes, o prazo decadencial se inicia a partir da efetiva entrega do produto ou do término da execução dos serviços (art. 26, § 1° do CDC). É o chamado termo inicial da decadência. Tratando-se de vícios ocultos, inicia-se o prazo decadencial a partir do momento em que estes vícios se tornam perceptíveis (art. 26, § 1° do CDC). Salienta-se, ainda, que o vício aparente é aquele de fácil constatação, enquanto o vício oculto é aquele de complexa ou dificultosa percepção, que não pode ser visualizado de pronto. Se o vício oculto se manifesta durante o prazo da garantia do produto ou serviço, o consumidor poderá fazer uso das alternativas sancionatórias previstas no artigo 18, incisos I, II e III, do CDC, consistentes em: DOUTRINA . DIREITO CIVIL PRESCRIÇÃO E DECADÊNCIA NO CENÁRIO DO DIREITO DO CONSUMIDOR: RELAÇÃO ENTRE O DIREITO E O TEMPO NA CONTEMPORANEIDADE 153 Art. 18, § 1°: Não sendo o vício sanado no prazo máximo de trinta dias, pode o consumidor exigir, alternativamente e à sua escolha: I - a substituição do produto por outro da mesma espécie, em perfeitas condições de uso; II - a restituição imediata da quantia paga, monetariamente atualizada, sem prejuízo de eventuais perdas e danos; III - o abatimento proporcional do preço. Uma parte da doutrina considera que, se o vício oculto se exterioriza somente após o termo contratual de garantia, o fornecedor não pode ser compelido a substituir o produto defeituoso, restituir imediatamente a quantia paga ou reduzir proporcionalmente o preço. Referido entendimento é exposto por Zelmo Denari9, justificando o bom senso e o elementar critério de justiça. Contudo, saliente-se que há entendimento doutrinário e jurisprudencial defendendo a possibilidade de se responsabilizar o fornecedor de produtos ou serviços que contenham vícios, ainda que já expirado o termo final de garantia, conforme já decidiu o STJ no REsp 984.106/SC, Rel. Ministro LUIS FELIPE SALOMÃO, QUARTA TURMA, julgado em 04/10/2012, DJe 20/11/2012: DIREITO DO CONSUMIDOR E PROCESSUAL CIVIL. RECURSO ESPECIAL. AÇÃO E RECONVENÇÃO. JULGAMENTO REALIZADO POR UMA ÚNICA SENTENÇA. RECURSO DE APELAÇÃO NÃO CONHECIDO EM PARTE. EXIGÊNCIA DE DUPLO PREPARO. LEGISLAÇÃO LOCAL. INCIDÊNCIA DA SÚMULA N. 280/STF. AÇÃO DE COBRANÇA AJUIZADA PELO FORNECEDOR. VÍCIO DO PRODUTO. MANIFESTAÇÃO FORA DO PRAZO DE GARANTIA. VÍCIO OCULTO RELATIVO À FABRICAÇÃO. CONSTATAÇÃO PELAS INSTÂNCIAS ORDINÁRIAS. RESPONSABILIDADE DO FORNECEDOR. DOUTRINA E JURISPRUDÊNCIA. EXEGESE DO ART. 26, § 3º, DO CDC. 1. (...). 2. (...). 3. No mérito da causa, cuida-se de ação de cobrança ajuizada por vendedor 9. GRINOVER, Ada Pellegrini [et al]. Código Brasileiro de Defesa do Consumidor comentado pelos autores do anteprojeto, São Paulo: Forense Universitária, 1999, p. 201. 154 REVISTA DO INSTITUTO DOS ADVOGADOS DE SÃO PAULO v. 35, JANEIRO - JUNHO 2015 de máquina agrícola, pleiteando os custos com o reparo do produto vendido. O Tribunal a quo manteve a sentença de improcedência do pedido deduzido pelo ora recorrente, porquanto reconheceu sua responsabilidade pelo vício que inquinava o produto adquirido pelo recorrido, tendo sido comprovado que se tratava de defeito de fabricação e que era ele oculto. Com efeito, a conclusão a que chegou o acórdão, sobre se tratar de vício oculto de fabricação, não se desfaz sem a reapreciação do conjunto fático-probatório, providência vedada pela Súmula 7/STJ. Não fosse por isso, o ônus da prova quanto à natureza do vício era mesmo do ora recorrente, seja porque é autor da demanda (art. 333, inciso I, do CPC) seja porque se trata de relação de consumo, militando em benefício do consumidor eventual déficit em matéria probatória. 4. O prazo de decadência para a reclamação de defeitos surgidos no produto não se confunde com o prazo de garantia pela qualidade do produto - a qual pode ser convencional ou, em algumas situações, legal. O Código de Defesa do Consumidor não traz, exatamente, no art. 26, um prazo de garantia legal para o fornecedor responder pelos vícios do produto. Há apenas um prazo para que, tornando-se aparente o defeito, possa o consumidor reclamar a reparação, de modo que, se este realizar tal providência dentro do prazo legal de decadência, ainda é preciso saber se o fornecedor é ou não responsável pela reparação do vício. 5. Por óbvio, o fornecedor não está, ad aeternum, responsável pelos produtos colocados em circulação, mas sua responsabilidade não se limita pura e simplesmente ao prazo contratual de garantia, o qual é estipulado unilateralmente por ele próprio. Deve ser considerada para a aferição da responsabilidade do fornecedor a natureza do vício que inquinou o produto, mesmo que tenha ele se manifestado somente ao término da garantia. 6. Os prazos de garantia, sejam eles legais ou contratuais, visam a acautelar o adquirente de produtos contra defeitos relacionados ao desgaste natural da coisa, como sendo um intervalo mínimo de tempo no qual não se espera que haja deterioração do objeto. Depois desse prazo, tolera-se que, em virtude do uso ordinário do produto, algum desgaste possa mesmo surgir. Coisa diversa é o vício intrínseco do produto existente desde sempre, mas que somente veio a se manifestar depois de expirada a garantia. Nessa categoria de vício intrínseco certamente se inserem os defeitos de fabricação relativos a projeto, cálculo DOUTRINA . DIREITO CIVIL PRESCRIÇÃO E DECADÊNCIA NO CENÁRIO DO DIREITO DO CONSUMIDOR: RELAÇÃO ENTRE O DIREITO E O TEMPO NA CONTEMPORANEIDADE 155 estrutural, resistência de materiais, entre outros, os quais, em não raras vezes, somente se tornam conhecidos depois de algum tempo de uso, mas que, todavia, não decorrem diretamente da fruição do bem, e sim de uma característica oculta que esteve latente até então. 7. Cuidando-se de vício aparente, é certo que o consumidor deve exigir a reparação no prazo de noventa dias, em se tratando de produtos duráveis, iniciando a contagem a partir da entrega efetiva do bem e não fluindo o citado prazo durante a garantia contratual. Porém, conforme assevera a doutrina consumerista, o Código de Defesa do Consumidor, no § 3º do art. 26, no que concerne à disciplina do vício oculto, adotou o critério da vida útil do bem, e não o critério da garantia, podendo o fornecedor se responsabilizar pelo vício em um espaço largo de tempo, mesmo depois de expirada a garantia contratual. 8. Com efeito, em se tratando de vício oculto não decorrente do desgaste natural gerado pela fruição ordinária do produto, mas da própria fabricação, e relativo a projeto, cálculo estrutural, resistência de materiais, entre outros, o prazo para reclamar pela reparação se inicia no momento em que ficar evidenciado o defeito, não obstante tenha isso ocorrido depois de expirado o prazo contratual de garantia, devendo ter-se sempre em vista o critério da vida útil do bem. 9. Ademais, independentemente de prazo contratual de garantia, a venda de um bem tido por durável com vida útil inferior àquela que legitimamente se esperava, além de configurar um defeito de adequação (art. 18 do CDC), evidencia uma quebra da boa-fé objetiva, que deve nortear as relações contratuais, sejam de consumo, sejam de direito comum. Constitui, em outras palavras, descumprimento do dever de informação e a não realização do próprio objeto do contrato, que era a compra de um bem cujo ciclo vital se esperava, de forma legítima e razoável, fosse mais longo. 10. Recurso especial conhecido em parte e, na extensão, não provido. (STJ - REsp 984.106/SC, Rel. Ministro LUIS FELIPE SALOMÃO, QUARTA TURMA, julgado em 04/10/2012, DJe 20/11/2012) Questão interessante que se extrai tanto da doutrina quanto da jurisprudência reside no fato de que, a despeito dos prazos de garantia contratual e legal existentes, 156 REVISTA DO INSTITUTO DOS ADVOGADOS DE SÃO PAULO v. 35, JANEIRO - JUNHO 2015 ainda que o produto ou serviço apresente defeito após expirado o prazo de garantia total10, haverá responsabilidade do fornecedor, se ficar comprovado que o vício oculto decorreu de problemas no projeto e na fabricação (e não do desgaste natural do seu uso pelo consumidor), diminuindo-lhe a vida útil. Em outras palavras, a interpretação que deve ser conferida ao § 3º do artigo 26 do CDC (“Tratando-se de vício oculto, o prazo decadencial inicia-se no momento em que ficar evidenciado o defeito”), relaciona-se menos ao critério da garantia e mais ao critério da vida útil do bem, esta entendida como o lapso temporal que legitimamente se espera, de ser o bem fruível sem apresentar qualquer desconformidade. Conforme já decidiu o E. TJSP11, “não se pode confundir vício oculto com desgaste natural decorrente do uso. Aquele gera ao adquirente o direito de rescindir o contrato ou abater do preço o valor do defeito, mas pelo segundo ele nada pode cobrar.” Obviamente, para se evitar abusos na invocação dessa teoria por parte do consumidor, deve-se avaliar qual é o lapso temporal de vida útil do produto/serviço objeto no caso concreto, com base no critério interpretativo da razoabilidade e nas cláusulas gerais da probidade e da boa-fé, além da vedação ao enriquecimento sem causa. Vale dizer: não é de se admitir, por exemplo, que não exista um prazo para o consumidor exercer o seu direito de reclamação por vício oculto, isto é, que o fornecedor seja “eternamente” responsável por qualquer vício que surja naquele produto ou serviço adquirido. A prevalecer essa tese, o consumidor poderia até mesmo demandar o fornecedor a responder por vícios decorrentes de desgaste natural na utilização do bem, o que, como há de se perceber, geraria enriquecimento sem causa em favor do consumidor, ofendendo, inclusive, o princípio da boa-fé nas relações consumeristas. Acerca do assunto, pode-se conferir o acórdão do TJSP que, adotando o critério da vida útil do bem, indefere pedido de devolução de veículo adquirido com nove anos de uso, sob o argumento de que algumas peças do carro naturalmente apresentam desgaste depois desse lapso temporal de utilização: 10. Com a expressão “garantia total”, alude-se à soma dos prazos de garantia contratual e legal incidentes sobre um produto/serviço. 11. (TJSP - Apelação nº 0113165-32.2008.8.26.0006, Relator(a): Arantes Theodoro; Comarca: São Paulo; Órgão julgador: 36ª Câmara de Direito Privado; Data do julgamento: 13/11/2014; Data de registro: 14/11/2014) DOUTRINA . DIREITO CIVIL PRESCRIÇÃO E DECADÊNCIA NO CENÁRIO DO DIREITO DO CONSUMIDOR: RELAÇÃO ENTRE O DIREITO E O TEMPO NA CONTEMPORANEIDADE 157 Compra e venda de veículo automotor. Ação de rescisão contratual com pedido cumulado de indenização por danos morais. Veículo com nove anos de fabricação. Desgaste natural consequente ao uso e esgotamento da vida útil de componentes. Quadro que não podia ser classificado como vício oculto. Improcedência da ação que se impunha. Apelo provido. (TJSP, Apelação nº 0113165-32.2008.8.26.0006 Relator(a): Arantes Theodoro; Comarca: São Paulo; Órgão julgador: 36ª Câmara de Direito Privado; Data do julgamento: 13/11/2014; Data de registro: 14/11/2014). O artigo 26, § 2° do CDC, preleciona as hipóteses de obstaculização da decadência. São elas: (i) a reclamação formulada pelo consumidor até a resposta negativa do fornecedor e (ii) a instauração de inquérito civil a cargo do Ministério Público, até seu encerramento. Para a maioria da doutrina consumerista, este prazo de obstaculização da decadência é suspensivo, ou seja, terminada a suspensão, o prazo retoma o seu curso, com aproveitamento do tempo anteriormente decorrido. E a explicação para esta consideração é um tanto quanto lógica: uma vez que o legislador previu um termo final (dies ad quem, como, por exemplo, a resposta negativa do fornecedor e o encerramento do inquérito civil), seu propósito não foi interromper, mas simplesmente suspender, uma vez que, na interrupção, não há possibilidade de haver o estabelecimento prévio de um termo final. Referido entendimento também já foi manifestado pelo STJ, através do REsp 579.941/RJ, Rel. Ministro CARLOS ALBERTO MENEZES DIREITO, Rel. p/ Acórdão Ministra NANCY ANDRIGHI, TERCEIRA TURMA, julgado em 28/06/2007, DJe 10/12/2008: Consumidor. Rescisão de contrato de compra e venda. Vícios aparentes. Termo a quo do prazo decadencial. - Trata-se, na hipótese, da fixação do termo inicial para a contagem do prazo decadencial de garantia, determinado no CDC, quando, durante o período de garantia ofertado pela concessionária, veículo novo que apresenta defeito é encaminhado, recorrentemente, à rede autorizada, voltando sempre com o mesmo defeito. - Se ao término do prazo de garantia contratado, o veículo se achava retido pela oficina mecânica para conserto, impõe-se reconhecer o comprovado período que o automóvel passou nas dependências da oficina mecânica autorizada, sem solução para o defeito, como de suspensão do curso do prazo de garantia. REVISTA DO INSTITUTO DOS ADVOGADOS DE SÃO PAULO v. 35, JANEIRO - JUNHO 2015 158 - Prorroga-se, nessa circunstância, o prazo de garantia inicialmente ofertado, até a efetiva devolução do veículo ao consumidor, sendo este momento fixado como dies a quo do prazo decadencial para se reclamar vícios aparentes em produtos duráveis. Recurso não conhecido. Já o instituto da prescrição está regulado no artigo 27 do CDC, in verbis: Art. 27. Prescreve em cinco anos a pretensão à reparação pelos danos causados por fato do produto ou do serviço prevista na Seção II deste Capítulo, iniciando-se a contagem do prazo a partir do conhecimento do dano e de sua autoria. Parágrafo único. (Vetado) Interrompe-se o prazo de prescrição do direito de indenização pelo fato do produto ou serviço nas hipóteses previstas no parágrafo 1° do artigo anterior, sem prejuízo de outras disposições legais. O citado dispositivo normativo, para a maioria da doutrina, se refere ao instituto da prescrição, aplicável nos casos de responsabilidade por danos, isto é, nos acidentes causados por defeitos12 dos produtos ou serviços, o que para Zelmo Denari, não se confirma, já que para ele a hipótese versada no citado art. 27 do CDC é de decadência, e não de prescrição, tratando-se de perecimento de direitos subjetivos em via de constituição13. Corrobora o entendimento exposto por Zelmo Denari o aresto do Tribunal de Justiça do Estado de São Paulo: “Decadência – Indenização – Consumidor – Responsabilidade pelo fato do serviço – Danos materiais e morais em virtude de serviços defeituosamente prestados – Prazo decadencial de cinco anos – Inteligência do art. 27 da Lei n. 8.078/90 – Inaplicabilidade do art. 26 do mesmo diploma legal (TJSP – RT 743/258)”. De qualquer maneira, seja o lapso temporal conceituado como decadência ou como prescrição, importa saber que o prazo extintivo é de cinco anos, contado do conhecimento do dano e de sua autoria, ressaltando-se, ainda, que o entendimento doutrinário majoritário assenta-se na aplicação das causas obstaculizadoras do artigo 26, § 2° do CDC, no artigo 27 do mesmo diploma legal14. 12. Defeito é mais que o vício, o que levou alguns autores a conceituá-lo como um “vício potencializado”. O defeito é a característica negativa do produto/serviço que extrapola o âmbito de prejudicialidade, chegando até mesmo a atingir a pessoa do consumidor ou seus bens. 13. GRINOVER, Ada Pellegrini [et al]. Código Brasileiro de Defesa do Consumidor comentado pelos autores do anteprojeto, São Paulo:Forense Universitária, 1999, p. 202. 14. Segundo informações do próprio Zelmo Denari, in GRINOVER, Ada Pellegrini [et al]. Código Brasileiro de DOUTRINA . DIREITO CIVIL PRESCRIÇÃO E DECADÊNCIA NO CENÁRIO DO DIREITO DO CONSUMIDOR: RELAÇÃO ENTRE O DIREITO E O TEMPO NA CONTEMPORANEIDADE 159 Contudo, em sentido contrário ao acima afirmado, William Santos Ferreira15 assim se manifesta: Não é cabível, como defendem alguns, a aplicação do parágrafo 2° do art. 26 (que trata das causas obstativas da decadência), porque não há no direito positivado a remissão indispensável, já que esta foi vetada, não havendo qualquer outro dispositivo que possibilite através de uma interpretação sistemática a aplicação das causas obstativas da decadência, até porque estas pelo próprio emprego de terminologia específica ao instituto da decadência (‘obstam a decadência’) não admitem uma interpretação extensiva. Continua o autor, afirmando que “ao que nos parece, incidiriam as causas suspensivas, interruptivas e impeditivas da prescrição estampadas no Código Civil, porque estas, em princípio, não colidem com as disposições insertas no Código de Defesa do Consumidor.” 16 Possível questionamento pode ser feito em relação à prescrição e decadência previstas no atual Código Civil e seu suposto conflito em relação aos mesmos institutos previstos no CDC. O artigo 205 do Código Civil estabelece ser a prescrição, via de regra, de dez anos, quando a lei não lhe fixar prazo menor. O artigo 206, em seu § 3°, inciso V do Código Civil, dispõe que prescreve em três anos a pretensão de reparação civil, o que poderia gerar um eventual conflito com o prazo prescricional de cinco anos disposto no artigo 27 do CDC. Assim, denota-se um conflito aparente entre os prazos prescricionais previstos no Código de Defesa do Consumidor e no Código Civil. Todavia, não se deve esquecer que tais relações têm origens diferentes, sendo inconcebível a confusão entre ambas. Defesa do Consumidor comentado pelos autores do anteprojeto, São Paulo:Forense Universitária, 1999, p. 203. 15. FERREIRA, Willian Santos. Prescrição e Decadência no Código de Defesa do Consumidor. Revista de Direito do Consumidor, São Paulo:RT, Abril/Junho de 1994, p. 94. 16. FERREIRA, Willian Santos. Prescrição e Decadência no Código de Defesa do Consumidor. Revista de Direito do Consumidor, São Paulo:RT, Abril/Junho de 1994, p. 94 160 REVISTA DO INSTITUTO DOS ADVOGADOS DE SÃO PAULO v. 35, JANEIRO - JUNHO 2015 Entende-se, portanto, que, quando a relação é consumerista17, aplicam-se os prazos dispostos no Código de Defesa do Consumidor; e se a relação for aquela paritária (calcada na igualdade entre as partes), a que se refere o Direito Privado, civil ou empresarial, aplicam-se os prazos dispostos no Código Civil. Em relação aos prazos decadenciais previstos no artigo 26 do CDC, tem-se que, pelo princípio da especificidade da norma consumerista, sua aplicação revela-se inconteste. O cerne da dúvida reside na aplicação (ou não) do prazo previsto no artigo 27 do CDC para os casos de vícios do produto ou do serviço, uma vez que o mencionado artigo apenas aduz expressamente ser aplicável “à reparação pelos danos causados por fato do produto ou do serviço”. Por interpretação analógica (art. 4° da Lei de Introdução às Normas do Direito Brasileiro – Decreto-Lei n° 4.657/42), é plausível o entendimento de aplicação do prazo prescricional de cinco anos para hipóteses de vício do produto ou do serviço (artigo 27 do CDC). Todavia, levando-se em conta a proteção do consumidor insculpida no artigo 5°, inciso XXXII, da Constituição Federal e, sabendo ser este a parte mais vulnerável18 da relação de consumo, merecendo, pois, tratamento diferenciado, não se pode simplesmente ignorar a corrente doutrinária que sustenta ser o prazo prescricional decorrente de vício do produto ou serviço aquele estabelecido no artigo 205 do Código Civil, qual seja, dez anos. Assim, através de uma interpretação constitucional, pode-se sustentar a aplicação do maior prazo prescricional para o consumidor exercer o seu direito de pretensão à propositura da ação. Essa discussão acima travada só se faz pertinente quando se considera que o prazo previsto no artigo 27 do CDC, efetivamente, é prescricional. Entendido, porém, que o prazo é decadencial, deve-se lembrar que não há um “prazo geral decadencial” estabelecido no Código Civil. 17. Relação de consumo é aquela que traz, em seus polos subjetivos, o consumidor e o fornecedor, tendo por objeto o fornecimento de produtos e/ou a prestação de serviços, conceito este extraído da análise conjunta dos artigos 2° e 3° do CDC. 18. Cabe lembrar que vulnerabilidade é instituto de direito material, gerando presunção absoluta em favor do consumidor. Já a hipossuficiência é instituto de direito processual, analisado no caso concreto, em regra dependendo do deferimento do juiz e ostentando presunção relativa, ou seja, admitindo-se prova em contrário. DOUTRINA . DIREITO CIVIL PRESCRIÇÃO E DECADÊNCIA NO CENÁRIO DO DIREITO DO CONSUMIDOR: RELAÇÃO ENTRE O DIREITO E O TEMPO NA CONTEMPORANEIDADE 161 Veja-se que a interpretação constitucional dada à solução da questão é permeada por uma visão interdisciplinar, garantida por interpretação jurídica contemporânea, a qual, percebendo a amplitude e complexidade do sistema sócio-jurídico, procura estudar e compreender, transversalmente, teorias, disciplinas, e ciências que possam enriquecer as realidades da vida e, com isso, corroborar a busca e a efetivação dos valores da essência humana. 4. NOTAS FINAIS O presente texto, objetiva diferenciar claramente os institutos da prescrição e da decadência, a fim de melhor explicitar a natureza dos prazos dispostos no Código de Defesa do Consumidor. Após situar, conceituar e contextualizar os institutos da decadência e da prescrição, extraem-se algumas conclusões que podem significar maior celeridade na aplicação do direito, no plano do direito do consumidor, o que implica homenagear a dignidade humana, garantindo estabilidade ao ordenamento jurídico. Extrai-se que o prazo decadencial, disposto no artigo 26 do CDC, para casos de vícios do produto/serviço não suscita grandes dúvidas, sendo sua redação dotada de um maior primor técnico em relação à redação do artigo 27 do mesmo diploma. Referido artigo 27 do CDC dispõe sobre o prazo prescricional para o exercício do direito de ação, que resulta de danos causados por produtos/serviços defeituosos, havendo algumas interpretações divergentes. Parte da doutrina entende que a disposição do artigo 27 do CDC corresponde, em verdade, a um prazo de natureza decadencial, e não prescricional. Outros entendem que o prazo do artigo 27 do CDC é de natureza prescricional e complementam dizendo que o prazo de cinco anos também se aplica aos casos de vícios do produto/serviço. Há ainda quem sustente que, levandose em conta a especial proteção constitucional conferida ao consumidor, o prazo prescricional para as situações relativas aos vícios do produto/serviço é aquele disposto no artigo 205 do Código Civil, ou seja, dez anos. Ressalta-se, ainda, relativamente ao vício oculto, que a doutrina e a jurisprudência acolhem a teoria de que, enquanto o produto/serviçi estiver no prazo da sua vida útil, o consumidor possui proteção em face do fornecedor. Evidentemente, o lapso temporal de vida útil de cada produto/serviço deve ser definido no caso concreto, à REVISTA DO INSTITUTO DOS ADVOGADOS DE SÃO PAULO v. 35, JANEIRO - JUNHO 2015 162 luz da razoabilidade, garantindo-se a proteção do vulnerável na relação de consumo, ao mesmo tempo em que se busca evitar o enriquecimento sem causa do consumidor, caso tal prazo seja efetivamente exagerado. O Direito, por ser considerado uma ciência humana em permanente transformação, admite várias interpretações acerca de um mesmo assunto, não se vislumbrando, em tese, a existência de uma interpretação totalmente correta em detrimento de outra absolutamente equivocada19. A pesquisa compila algumas posições doutrinárias e jurisprudenciais, algumas majoritárias, outras não, ficando a escolha da “melhor”, a cargo de cada operador do Direito, e dependente da sua ideologia e do interesse do patrocinador. Por derradeiro, o presente artigo almeja ao menos honrar a lição de Dylan Thomas20, para quem “o conhecimento exerce-se na noite silenciosa”, sobressaindo do texto, ora escrito, “páginas de espuma/Não para o homem orgulhoso/Que se afasta da lua enfurecida/Nem para os mortos de alta estirpe/Com seus salmos e rouxinóis,/Mas para os amantes, seus braços/Que enlaçam as dores dos séculos.(...)”. Afinal, o Direito e o homem caminham juntos para alcançar a paz, que pode ser percebida, em tempos de violência e de não violência. O tempo e o espaço são figuras abstratas aos olhos do homem e, ao raciocínio do direito, afetam pretensões e direitos almejados pelo homem, conforme argumentado no presente texto. 5. REFERÊNCIAS AMORIM FILHO, Agnelo. Critério científico para distinguir a prescrição da decadência e para identificar as ações imprescritíveis. Revista dos Tribunais, v. 744, pp 725-750, SP: RT, out. 1997. CÂMARA LEAL, Antônio Luis. Da prescrição e da decadência: Teoria Geral de Direito Civil, nº 86, 4ª e., RJ: Forense, 1982. 19. Neste sentido, extrai-se a recente discussão, em algumas universidades brasileiras, acerca do estudo da “lógica jurídica”, instituto pelo qual toda interpretação é válida, desde que sejam respeitadas proposições lógicas basilares do sistema jurídico. 20.THOMAS, Dylan. Em meu ofício ou arte taciturna. Trad. Ivan Junqueira. Disponível em: http://www.culturapara. art.br/opoema/dylanthomas/dylanthomas.htm. Data de acesso: ago de 2011. DOUTRINA . DIREITO CIVIL PRESCRIÇÃO E DECADÊNCIA NO CENÁRIO DO DIREITO DO CONSUMIDOR: RELAÇÃO ENTRE O DIREITO E O TEMPO NA CONTEMPORANEIDADE 163 FERREIRA, William Santos. Prescrição e Decadência no Código de Defesa do Consumidor [Revista de Direito do Consumidor], São Paulo:RT, Abril/Junho de 1994. GRINOVER, Ada Pellegrini [et al]. Código Brasileiro de Defesa do Consumidor comentado pelos autores do anteprojeto. São Paulo:Forense Universitária, edições de 1999 e 2005. GUGLINSKI, Vitor. Jurisprudência: Vício oculto. Defeito após garantia. Vida útil do produto (REsp 984.106-SC). Revista Jus Navigandi, Teresina, ano 19, n. 3859, 24 jan. 2014. Disponível em: <http://jus.com.br/artigos/26466>. Acesso em: 29 mar. 2015. MIRANDA, Pontes. Tratado de Direito Privado, § 662, nº 9, 4ª e, SP: RT, 1983. MORIN, Edgar. Ciência com consciência. Tradução de Maria D. Alexandre e Maria Alice Sampaio Dória, ed. Ver. e modificada pelo autor, 14ª. RJ: Bertrand Brasil, 2010. ______.Introdução ao Pensamento Complexo. Trad. Eliane Lisboa. 3. ed. Porto Alegre: Sulina, 2007. VENOSA, Sílvio de Salvo. Direito Civil, São Paulo: Editora Atlas, 2004. VILLAS BÔAS, Regina Vera. “Um olhar transverso e difuso aos Direitos Humanos de terceira dimensão: a solidariedade concretizando o dever de respeito à ecologia e efetivando o postulado da dignidade da condição humana”. Revista de Direito Privado - Ed. Revista dos Tribunais – Ano 13 - nº 51 – Julho/Setembro – 2012 – Coordenação de Nelson Nery e Rosa Maria de Andrade Nery. _____. Violência Ética e Socioambiental: macula dignidade da condição humana e desafia a proteção dos interesses difusos e coletivos, in Obra Coletiva” Direito e a Dignidade Humana: Aspectos éticos e socioambientais” – Orgs: Consuelo Yoshida e Lino Rampazzo, Campinas, SP: Editora Alínea, 2012 (Cap. 3º - p. 101 a 122) – ISBN 978-85-7516-599-7 _____. Concretização dos postulados da Dignidade da Condição Humana e da Justiça – Revista de Direito Privado – Ed. Rev. dos Tribunais, coord. Nelson Nery Jr. e Rosa Maria Nery, SP: Ed. RT. Ano 12, nº 47 – jul.-set/2011. _____. Apontamentos sobre o código civil vigente. Revista Direito & paz, do Centro Universitário Salesiano de São Paulo, nº 09, Ano 05, Lorena - SP, p. 129-156, 2º Sem.2003. DIREITO DE FAMÍLIA O CASAMENTO NO DIREITO INTERNACIONAL PRIVADO NO BRASIL ANDRÉ DE CARVALHO RAMOS Professor de Direito Internacional e Direitos Humanos da Faculdade de Direito da Universidade de São Paulo (Largo São Francisco). Doutor e Livre-Docente em Direito Internacional (USP). Procurador Regional da República. Procurador Regional Eleitoral do Estado de São Paulo (2012-2016). SUMÁRIO 1. Introdução: a proposta do artigo; 2. A lei brasileira aplicável ao casamento: celebração e impedimentos; 3. O domicílio dos cônjuges e a interpretação conforme aos direitos humanos da LINDB; 4. A lei aplicável aos casos de invalidade do casamento; 5. A lei aplicável ao regime de bens; 6. A mudança do regime de bens; 7. O casamento de estrangeiros; 8. O divórcio e a evolução do Direito Internacional Privado brasileiro; 9. A lei aplicável ao divórcio; 10. Conclusão. RESUMO ABSTRACT O artigo analisa o desenvolvimento do tratamento ao casamento e temas correlatos no âmbito do Direito Internacional Privado de matriz legal no Brasil, sob o foco da interpretação conforme aos direitos humanos. This article analyses the development of the marriage legal treatment in Brazil and some related issues, focusing on a human rights approach of this matter. PAVRAS-CHAVE KEYWORDS Direito Internacional Privado. Lei de Introdução às Normas do Direito Brasileiro. Direito de Família. Casamento. Private International Law. Introduction of Brazilian Law Statute. Matrimonial Law. Marriage. 168 REVISTA DO INSTITUTO DOS ADVOGADOS DE SÃO PAULO v. 35, JANEIRO - JUNHO 2015 1. INTRODUÇÃO: A PROPOSTA DO ARTIGO O Direito Internacional Privado (DIPr) deve levar em consideração a jusfundamentalização do direito das famílias, que abarca formas, como a união estável, união homoafetiva, família monoparental etc., e ainda é regulado pela promoção da dignidade humana e igualdade de direitos entre os indivíduos (homens e mulheres). A Constituição de 1988 prevê que um dos fundamentos do Estado Democrático de Direito brasileiro é a dignidade da pessoa humana (art. 1º, III). Também determina que é dever do Estado a proteção da família (art. 226), assegurando a igualdade entre os cônjuges (art. 226, § 6º)1. No plano internacional, a igualdade de direitos no direito de família é prevista no art. XVI da Declaração Universal de Direitos Humanos2, no art. 23 do Pacto Internacional dos Direitos Civis e Políticos3 e o art. 16 da Convenção da ONU pela Eliminação de toda forma de discriminação contra a mulher4. 1. Art. 226. A família, base da sociedade, tem especial proteção do Estado. (...); § 6º O casamento civil pode ser dissolvido pelo divórcio. (Redação dada Pela Emenda Constitucional nº 66, de 2010). 2. Art. XVI - Os homens e mulheres de maior idade, sem qualquer restrição de raça, nacionalidade ou religião, têm o direito de contrair matrimônio e fundar uma família. Gozam de iguais direitos em relação ao casamento, sua duração e sua dissolução. 2. O casamento não será válido senão com o livre e pleno consentimento dos nubentes. 3. A família é o núcleo natural e fundamental da sociedade e tem direito à proteção da sociedade e do Estado. 3. Artigo 23 - 1. A família é o núcleo natural e fundamental da sociedade e terá o direito de ser protegida pela sociedade e pelo Estado. 2. Será reconhecido o direito do homem e da mulher de, em idade núbil, contrair casamento e constituir família. 3. Casamento algum será celebrado sem o consentimento livre e pleno dos futuros esposos. 4. Os Estados-partes no presente Pacto deverão adotar as medidas apropriadas para assegurar a igualdade de direitos e responsabilidades dos esposos quanto ao casamento, durante o mesmo e por ocasião de sua dissolução. Em caso de dissolução, deverão adotar-se as disposições que assegurem a proteção necessária para os filhos. 4. Art. 16. Os Estados-partes adotarão todas as medidas adequadas para eliminar a discriminação contra a mulher em todos os assuntos relativos ao casamento e às relações familiares e, em particular, com base na igualdade entre homens e mulheres, assegurarão: a) o mesmo direito de contrair matrimônio; b) o mesmo direito de escolher livremente o cônjuge e de contrair matrimônio somente com o livre e pleno consentimento; c) os mesmos direitos e responsabilidades durante o casamento e por ocasião de sua dissolução; d) os mesmos direitos e responsabilidades como pais, qualquer que seja seu estado civil, em matérias pertinentes aos filhos. Em todos os casos, os interesses dos filhos serão a consideração primordial; e) os mesmos direitos de decidir livre e responsavelmente sobre o número de filhos e sobre o intervalo entre os nascimentos e a ter acesso à informação, à educação e aos meios que lhes permitam exercer esses direitos; f) os mesmos direitos e responsabilidades com respeito à tutela, curatela, guarda e adoção dos filhos, ou institutos análogos, quando esses conceitos existirem na legislação nacional. Em todos os casos, os interesses dos filhos serão a consideração DOUTRINA . DIREITO DE FAMÍLIA O CASAMENTO NO DIREITO INTERNACIONAL PRIVADO NO BRASIL 169 Esse é o vetor de interpretação pro homine que deve conduzir a análise do Direito Internacional Privado brasileiro, composto por normas constitucionais, legais e convencionais. Essa visão contemporânea informada pela gramática dos direitos humanos é indispensável para a conformação do Direito Internacional Privado brasileiro de matriz legal, pois a antiga Lei de Introdução ao Código Civil (Decreto-Lei 4.657/42), agora denominada Lei de Introdução às Normas do Direito Brasileiro (LINDB - graças à Lei 12.376/2010), não sofreu alteração substancial desde sua edição em 1942 até os dias atuais.5 Por isso, a proposta do presente artigo é rever a interpretação das disposições da Lei de Introdução às Normas do Direito Brasileiro referentes ao casamento, à luz de uma interpretação conforme aos direitos humanos que defendo para todo o novo Direito Internacional Privado no Brasil. Para tanto, abordarei neste artigo os principais temas do Direito Internacional Privado sobre o casamento, a saber: a (i) lei aplicável à celebração e aos impedimentos; (ii) a determinação do domicílio conjugal; (iii) a lei aplicável à invalidade do casamento; (iv) a lei aplicável ao regime de bens; (v) a lei que rege a mudança do regime de bens. (vi) a lei que regula o casamento de estrangeiros e, finalmente, (vii) o tratamento de DIPr ao divórcio. 2. A LEI BRASILEIRA APLICÁVEL AO CASAMENTO: CELEBRAÇÃO E IMPEDIMENTOS Na regra geral do caput do art. 7º6 da LINDB aplica-se a lei do domicílio para reger a capacidade dos nubentes em celebrar o casamento e demais formas de união entre pessoas para fins de vida comum (uniões civis, por exemplo). primordial; g) os mesmos direitos pessoais como marido e mulher, inclusive o direito de escolher sobrenome, profissão e ocupação; h) os mesmos direitos a ambos os cônjuges em matéria de propriedade, aquisição, gestão, administração, gozo e disposição dos bens, tanto a título gratuito quanto a título oneroso. 5. Os projetos de alteração da LICC, agora LINDB, não prosperaram. O último foi o projeto de lei do Senado Federal nº 269, apresentado em 2004, pelo Senador Pedro Simon, que consistia em reapresentação do projeto de lei 4.905/94, com alterações pontuais. 6. In verbis: “Art. 7º. A lei do país em que domiciliada a pessoa determina as regras sobre o começo e o fim da personalidade, o nome, a capacidade e os direitos de família.” 170 REVISTA DO INSTITUTO DOS ADVOGADOS DE SÃO PAULO v. 35, JANEIRO - JUNHO 2015 O §1º do art. 7º7 estabelece uma regra especial, ao dispor que o casamento será regido pela lei do local da celebração quanto à (i) formalidade da celebração e (ii) impedimentos matrimoniais. A LINDB adotou a regra do locus regit actum no tocante às formalidades da celebração do matrimônio. Assim, caso seja celebrado no Brasil, devem ser cumpridos os artigos 1.525 a 1.542 do Código Civil, ainda que os nubentes não sejam brasileiros, que tratam: (i) do processo de habilitação para o casamento (art. 1.525 ao 1.5328); (ii) cerimônia, local de realização, forma de celebração e assento no livro de registro (art. 1.533 a 1.5379); 7. In verbis: Art. 7º, § 1º: “Realizando-se o casamento no Brasil, será aplicada a lei brasileira quanto aos impedimentos dirimentes e às formalidades da celebração.” 8. Art. 1.525. O requerimento de habilitação para o casamento será firmado por ambos os nubentes, de próprio punho, ou, a seu pedido, por procurador, e deve ser instruído com os seguintes documentos: I - certidão de nascimento ou documento equivalente; II - autorização por escrito das pessoas sob cuja dependência legal estiverem, ou ato judicial que a supra; III - declaração de duas testemunhas maiores, parentes ou não, que atestem conhecê-los e afirmem não existir impedimento que os iniba de casar; IV - declaração do estado civil, do domicílio e da residência atual dos contraentes e de seus pais, se forem conhecidos; V - certidão de óbito do cônjuge falecido, de sentença declaratória de nulidade ou de anulação de casamento, transitada em julgado, ou do registro da sentença de divórcio. Art. 1.526. A habilitação será feita pessoalmente perante o oficial do Registro Civil, com a audiência do Ministério Público. (Redação dada pela Lei nº 12.133, de 2009) Parágrafo único. Caso haja impugnação do oficial, do Ministério Público ou de terceiro, a habilitação será submetida ao juiz. (Incluído pela Lei nº 12.133, de 2009). Art. 1.527. Estando em ordem a documentação, o oficial extrairá o edital, que se afixará durante quinze dias nas circunscrições do Registro Civil de ambos os nubentes, e, obrigatoriamente, se publicará na imprensa local, se houver. Parágrafo único. A autoridade competente, havendo urgência, poderá dispensar a publicação. Art. 1.528. É dever do oficial do registro esclarecer os nubentes a respeito dos fatos que podem ocasionar a invalidade do casamento, bem como sobre os diversos regimes de bens. Art. 1.529. Tanto os impedimentos quanto as causas suspensivas serão opostos em declaração escrita e assinada, instruída com as provas do fato alegado, ou com a indicação do lugar onde possam ser obtidas. Art. 1.530. O oficial do registro dará aos nubentes ou a seus representantes nota da oposição, indicando os fundamentos, as provas e o nome de quem a ofereceu. Parágrafo único. Podem os nubentes requerer prazo razoável para fazer prova contrária aos fatos alegados, e promover as ações civis e criminais contra o oponente de má-fé. Art. 1.531. Cumpridas as formalidades dos arts. 1.526 e 1.527 e verificada a inexistência de fato obstativo, o oficial do registro extrairá o certificado de habilitação. Art. 1.532. A eficácia da habilitação será de noventa dias, a contar da data em que foi extraído o certificado. 9. Art. 1.533. Celebrar-se-á o casamento, no dia, hora e lugar previamente designados pela autoridade que houver de presidir o ato, mediante petição dos contraentes, que se mostrem habilitados com a certidão do art. 1.531. Art. 1.534. A solenidade realizar-se-á na sede do cartório, com toda publicidade, a portas abertas, presentes pelo menos duas testemunhas, parentes ou não dos contraentes, ou, querendo as partes e consentindo a autoridade celebrante, noutro edifício público ou particular. § 1o Quando o casamento for em edifício particular, ficará este de portas abertas durante o ato. § 2o Serão quatro as testemunhas na hipótese do parágrafo anterior e se algum dos contraentes não souber ou não puder escrever. Art. 1.535. Presentes os contraentes, em pessoa ou por procurador especial, juntamente com as testemunhas e o oficial do registro, o presidente do ato, ouvida aos nubentes a afirmação de DOUTRINA . DIREITO DE FAMÍLIA O CASAMENTO NO DIREITO INTERNACIONAL PRIVADO NO BRASIL 171 (iii) das causas de suspensão da cerimônia (art. 1.53810); (iv) do caso de moléstia grave de nubente e dos requisitos do casamento nuncupativo (aquele celebrado de urgência perante testemunhas em virtude do risco iminente à vida de um dos contraentes - arts. 1.539 a 1.54111) e (v) do casamento por procuração (1.54212) que pretendem casar por livre e espontânea vontade, declarará efetuado o casamento, nestes termos:”De acordo com a vontade que ambos acabais de afirmar perante mim, de vos receberdes por marido e mulher, eu, em nome da lei, vos declaro casados.” Art. 1.536. Do casamento, logo depois de celebrado, lavrar-se-á o assento no livro de registro. No assento, assinado pelo presidente do ato, pelos cônjuges, as testemunhas, e o oficial do registro, serão exarados: I - os prenomes, sobrenomes, datas de nascimento, profissão, domicílio e residência atual dos cônjuges; II - os prenomes, sobrenomes, datas de nascimento ou de morte, domicílio e residência atual dos pais; III - o prenome e sobrenome do cônjuge precedente e a data da dissolução do casamento anterior; IV - a data da publicação dos proclamas e da celebração do casamento; V - a relação dos documentos apresentados ao oficial do registro; VI - o prenome, sobrenome, profissão, domicílio e residência atual das testemunhas; VII - o regime do casamento, com a declaração da data e do cartório em cujas notas foi lavrada a escritura antenupcial, quando o regime não for o da comunhão parcial, ou o obrigatoriamente estabelecido. Art. 1.537. O instrumento da autorização para casar transcrever-se-á integralmente na escritura antenupcial. 10. Art. 1.538. A celebração do casamento será imediatamente suspensa se algum dos contraentes: I - recusar a solene afirmação da sua vontade; II - declarar que esta não é livre e espontânea; III - manifestar-se arrependido. Parágrafo único. O nubente que, por algum dos fatos mencionados neste artigo, der causa à suspensão do ato, não será admitido a retratar-se no mesmo dia. 11. Art. 1.539. No caso de moléstia grave de um dos nubentes, o presidente do ato irá celebrá-lo onde se encontrar o impedido, sendo urgente, ainda que à noite, perante duas testemunhas que saibam ler e escrever. § 1o A falta ou impedimento da autoridade competente para presidir o casamento suprir-se-á por qualquer dos seus substitutos legais, e a do oficial do Registro Civil por outro ad hoc, nomeado pelo presidente do ato. § 2o O termo avulso, lavrado pelo oficial ad hoc, será registrado no respectivo registro dentro em cinco dias, perante duas testemunhas, ficando arquivado. Art. 1.540. Quando algum dos contraentes estiver em iminente risco de vida, não obtendo a presença da autoridade à qual incumba presidir o ato, nem a de seu substituto, poderá o casamento ser celebrado na presença de seis testemunhas, que com os nubentes não tenham parentesco em linha reta, ou, na colateral, até segundo grau. Art. 1.541. Realizado o casamento, devem as testemunhas comparecer perante a autoridade judicial mais próxima, dentro em dez dias, pedindo que lhes tome por termo a declaração de: I - que foram convocadas por parte do enfermo; II - que este parecia em perigo de vida, mas em seu juízo; III - que, em sua presença, declararam os contraentes, livre e espontaneamente, receber-se por marido e mulher. § 1o Autuado o pedido e tomadas as declarações, o juiz procederá às diligências necessárias para verificar se os contraentes podiam ter-se habilitado, na forma ordinária, ouvidos os interessados que o requererem, dentro em quinze dias. § 2o Verificada a idoneidade dos cônjuges para o casamento, assim o decidirá a autoridade competente, com recurso voluntário às partes. § 3o Se da decisão não se tiver recorrido, ou se ela passar em julgado, apesar dos recursos interpostos, o juiz mandará registrá-la no livro do Registro dos Casamentos. § 4o O assento assim lavrado retrotrairá os efeitos do casamento, quanto ao estado dos cônjuges, à data da celebração. § 5o Serão dispensadas as formalidades deste e do artigo antecedente, se o enfermo convalescer e puder ratificar o casamento na presença da autoridade competente e do oficial do registro. 12. Art. 1.542. O casamento pode celebrar-se mediante procuração, por instrumento público, com poderes 172 REVISTA DO INSTITUTO DOS ADVOGADOS DE SÃO PAULO v. 35, JANEIRO - JUNHO 2015 Já o impedimento também deve ser regido pela lei do local da celebração, consistindo em uma incapacidade que restringe o direito de contrair matrimônio ou união civil, o que excepciona a regra geral da lei do domicílio para reger a capacidade dos nubentes. Com isso, mesmo que um dos nubentes seja domiciliado no estrangeiro, caso o casamento seja celebrado no Brasil, a lei brasileira será aplicável (lex loci actus), no que tange aos impedimentos dirimentes, absolutos e relativos (arts. 1.52113, 1.548, I14, e 1.55015 do Código Civil). Como o § 1º menciona tão somente “impedimentos dirimentes”, a norma brasileira deve ser cumprida tanto no que tange o impedimento dirimente absoluto ou público, cuja violação torna o casamento nulo quanto o impedimento relativo ou privado, que é aquele cuja violação torna o casamento anulável.16 especiais. § 1o A revogação do mandato não necessita chegar ao conhecimento do mandatário; mas, celebrado o casamento sem que o mandatário ou o outro contraente tivessem ciência da revogação, responderá o mandante por perdas e danos. § 2o O nubente que não estiver em iminente risco de vida poderá fazer-se representar no casamento nuncupativo. § 3o A eficácia do mandato não ultrapassará noventa dias. § 4o Só por instrumento público se poderá revogar o mandato. 13. Caso de impedimento público ou absoluto, pois o casamento é nulo. Art. 1.521. Não podem casar: I - os ascendentes com os descendentes, seja o parentesco natural ou civil; II - os afins em linha reta; III - o adotante com quem foi cônjuge do adotado e o adotado com quem o foi do adotante; IV - os irmãos, unilaterais ou bilaterais, e demais colaterais, até o terceiro grau inclusive; V - o adotado com o filho do adotante; VI - as pessoas casadas; VII - o cônjuge sobrevivente com o condenado por homicídio ou tentativa de homicídio contra o seu consorte. Art. 1.522. Os impedimentos podem ser opostos, até o momento da celebração do casamento, por qualquer pessoa capaz. Parágrafo único. Se o juiz, ou o oficial de registro, tiver conhecimento da existência de algum impedimento, será obrigado a declará-lo. 14. Caso de impedimento dirimente público ou absoluto, pois o casamento é nulo. Art. 1.548. É nulo o casamento contraído: I - pelo enfermo mental sem o necessário discernimento para os atos da vida civil; II - por infringência de impedimento. 15. Caso de impedimento privado ou relativo, pois o matrimônio é anulável. Art. 1.550. É anulável o casamento: I - de quem não completou a idade mínima para casar; II - do menor em idade núbil, quando não autorizado por seu representante legal; III - por vício da vontade, nos termos dos arts. 1.556 a 1.558; IV - do incapaz de consentir ou manifestar, de modo inequívoco, o consentimento; V - realizado pelo mandatário, sem que ele ou o outro contraente soubesse da revogação do mandato, e não sobrevindo coabitação entre os cônjuges; VI - por incompetência da autoridade celebrante. Parágrafo único. Equipara-se à revogação a invalidade do mandato judicialmente decretada. 16. Nesse sentido, ESPÍNOLA, Eduardo e ESPÍNOLA FILHO, Eduardo. Tratado de Direito Civil Brasileiro. Vol. VIII, “Do Direito Internacional Privado Brasileiro”, Tomo II, Rio de Janeiro: Freitas Bastos, 1943, p. 809. Os citados autores reconhecem que a LICC/42 não distinguiu os impedimentos dirimentes, devendo, quanto aos impedimentos dirimentes relativos “também atender a lei brasileira”. Contra, Serpa Lopez, para quem o dispositivo deve ser interpretado de modo DOUTRINA . DIREITO DE FAMÍLIA O CASAMENTO NO DIREITO INTERNACIONAL PRIVADO NO BRASIL 173 Antes da edição do novo Código Civil brasileiro, houve discussão na doutrina sobre a lei a ser utilizada na hipótese dos impedimentos impedientes, que eram os casos que não tornavam nulo ou anulável o casamento, mas impunham regime de bens - adoção do regime de separação legal de bens no casamento. Valladão criticou a redação do § 1º do art. 7º, que menciona expresssamente o uso da lei brasileira para os casamentos celebrados no Brasil apenas para os impedimentos dirimentes, levando à aplicação da lei do domicílio do nubente (regra geral do caput do art. 7º) para reger os impedimentos meramente impedientes (terminologia anterior).17 A alternativa, defendida por Valladão, seria o uso da lei brasileira, pois a lei do local de celebração faria parte da nossa tradição, sendo a exclusão dos impedimentos impedientes na redação do § 1º do art. 7º da LICC (hoje, LINDB) uma omissão a ser suprida pelo uso da lei do local da celebração. Porém, não se tratou de omissão, mas de se utilizar a lei brasileira tão somente nos casos de incapacidade para contrair matrimônio considerados mais graves, que geram a nulidade ou anulabilidade do casamento, em clara convergência com o conceito de ordem pública. Atualmente, ao invés dos impedimentos impedientes, o Código Civil atual prevê causas suspensivas do casamento (art. 1.52318), cujo descumprimento não gera a nulidade ou anulabilidade do casamento, mas sim a imposição do regime de separação legal dos bens, conforme o art. 1.641, I do CC.19. finalístico, uma vez que seu objetivo seria o de preservar a ordem pública brasileira. Como os impedimentos dirimentes relativos não geram a nulidade do casamento (somente a anulabilidade), não precisariam ser observados, devendo imperar a lei do domicílio do nubente. Conferir em SERPA LOPES, Miguel Maria de. Comentários à Lei de Introdução ao Código Civil. Vol. II, 2ª edição, Rio de Janeiro: Freitas Bastos, 1959, pp. 92. 17. VALLADÃO, Haroldo. Direito Internacional Privado. Vol. II. 2ª ed., Rio de Janeiro: Freitas Bastos, 1977, p. 60. 18. Art. 1.523. Não devem casar: I - o viúvo ou a viúva que tiver filho do cônjuge falecido, enquanto não fizer inventário dos bens do casal e der partilha aos herdeiros; II - a viúva, ou a mulher cujo casamento se desfez por ser nulo ou ter sido anulado, até dez meses depois do começo da viuvez, ou da dissolução da sociedade conjugal; III - o divorciado, enquanto não houver sido homologada ou decidida a partilha dos bens do casal; IV - o tutor ou o curador e os seus descendentes, ascendentes, irmãos, cunhados ou sobrinhos, com a pessoa tutelada ou curatelada, enquanto não cessar a tutela ou curatela, e não estiverem saldadas as respectivas contas. Parágrafo único. É permitido aos nubentes solicitar ao juiz que não lhes sejam aplicadas as causas suspensivas previstas nos incisos I, III e IV deste artigo, provando-se a inexistência de prejuízo, respectivamente, para o herdeiro, para o ex-cônjuge e para a pessoa tutelada ou curatelada; no caso do inciso II, a nubente deverá provar nascimento de filho, ou inexistência de gravidez, na fluência do prazo. 19. Art. 1.641. É obrigatório o regime da separação de bens no casamento: I - das pessoas que o contraírem com inobservância das causas suspensivas da celebração do casamento; 174 REVISTA DO INSTITUTO DOS ADVOGADOS DE SÃO PAULO v. 35, JANEIRO - JUNHO 2015 Por fim, apesar da regra do § 1º do art. 7º ser unilateral, ou seja, só fazer menção à lei brasileira, admite-se a sua bilateralização, para que os casamentos celebrados no exterior obedeçam (i) as formalidades e ainda os (ii) impedimentos da lei local (lex loci celebrationis), mesmo que não previstos no nosso ordenamento.20 3. O DOMICÍLIO DOS CÔNJUGES E A INTERPRETAÇÃO CONFORME AOS DIREITOS HUMANOS DA LINDB Um dos dispositivos da LINDB incompatíveis com a gramática dos direitos humanos é o § 8º do art. 7º. que prevê que “ salvo o caso de abandono, o domicílio do chefe da família estende-se ao outro cônjuge e aos filhos não emancipados, e o do tutor ou curador aos incapazes sob sua guarda”. Essa parágrafo contém o conceito do domicílio de dependência, que é aquele fixado por uma pessoa e que se estende a outras, consideradas dependentes do primeiro. No caso, há a menção ao “domicílio do chefe da família”. À época, o Código Civil de 1916 estipulava que o “chefe da família” era, em geral, o marido (art. 233, III)21, que, então, determinava o domicílio da esposa e dos filhos não emancipados. Também é feita referência ao “domicílio do tutor” e ao “domicílio do curador”, que abrangem os incapazes sob sua guarda. No caso da mulher casada, em 1962 a Lei nº 4.121 (“Estatuto da Mulher Casada”) modificou apenas ligeiramente a situação, continuando a dar ao marido o direito de fixar o domicílio da família, mas permitindo que a mulher recorresse ao Judiciário, caso a deliberação a prejudicasse.22 Com a Constituição de 1988, a igualdade entre homem e mulher na sociedade conjugal foi determinada expressamente no art. 226, § 5º, pelo qual “os direitos e deveres referentes à sociedade conjugal são exercidos igualmente pelo homem e pela mulher”. Nessa linha, 20. Nesse sentido, TENÓRIO, Oscar. Lei de Introdução ao Código Civil. 2ª ed., Rio de Janeiro: Borsói, 1955, p. 254. 21. Redação original do Código Civil: “art. 233. O marido é o chefe da sociedade conjugal. Compete-lhe: (...) III. direito de fixar e mudar o domicílio da família (arts. 46 e 233, nº IV).” 22. Redação dada pela Lei nº 4.121, de 1962: “Art. 233. O marido é o chefe da sociedade conjugal, função que exerce com a colaboração da mulher, no interêsse comum do casal e dos filhos (arts. 240, 247 e 251). Competelhe: III - o direito de fixar o domicílio da família ressalvada a possibilidade de recorrer a mulher ao Juiz, no caso de deliberação que a prejudique;” DOUTRINA . DIREITO DE FAMÍLIA O CASAMENTO NO DIREITO INTERNACIONAL PRIVADO NO BRASIL 175 o Código Civil (CC) de 2002 dispõe que a direção da sociedade conjugal será exercida, em colaboração, pelo marido e pela mulher, sempre no interesse do casal e dos filhos (art. 1.567). No tocante ao domicílio do casal, o art. 1.569 do CC prevê que este será escolhido por ambos os cônjuges, mas um e outro podem ausentar-se do domicílio conjugal para atender a encargos públicos, ao exercício de sua profissão, ou a interesses particulares relevantes. Havendo divergência, qualquer dos cônjuges poderá recorrer ao Judiciário. Com isso, faltou atualização da LINDB sob à luz da gramática dos direitos humanos. Na falta de alteração expressa da lei, resta sua interpretação conforme aos direitos humanos, para considerar que o domicílio do “chefe da família” é, na verdade, o domicílio escolhido por ambos os cônjuges. Na existência de pluralidade domiciliar da família (com os cônjuges possuindo domicílio diferente, por razões de foro íntimo, razões profissionais etc), deve ser utilizada a lei do domicílio respectivo para o fato transnacional que lhe corresponda. 4. A LEI APLICÁVEL AOS CASOS DE INVALIDADE DO CASAMENTO. No caso da lei para reger a invalidade do casamento, dispõe o § 3º do art. 7º23 da LINDB que será a lei do domicílio dos nubentes, ou, se distintos os domicílios, a lei do primeiro domicílio conjugal. Obviamente, há inevitável estranhamento pois se ignorou o básico: a validade ou invalidade deve ser regida pela lei do local da celebração. Caso contrário, há o risco de considerarmos inválido um casamento pelo uso de lei estabelecendo requisitos que não eram indispensáveis pela lei do local da celebração, gerando insegurança jurídica evidente. Como aponta Valladão, a validade de um ato da importância do casamento ficou dependente não da lei que presidiu o ato, mas sim de outra lei, livremente escolhida pelos nubentes (a lei do primeiro domicílio conjugal), bastando que eles tenham domicílio diverso no momento da celebração do matrimônio24. 23. In verbis: Art. 7º, § 3º. “Tendo os nubentes domicílio diverso, regerá os casos de invalidade do matrimônio a lei do primeiro domicílio conjugal.” 24. Para Valladão, esse dispositivo é absurdo. In verbis: “A Lei de Introdução, art. 7º, § 3º, adotou, absurdamente, 176 REVISTA DO INSTITUTO DOS ADVOGADOS DE SÃO PAULO v. 35, JANEIRO - JUNHO 2015 O Código Bustamante segue linha diversa da LINDB, dispondo que a nulidade do matrimônio deve ser regulada pela mesma lei a que estiver submetida a condição intrínseca ou extrínseca que a tiver motivado (art. 47).25 Finalmente, o Supremo Tribunal Federal (STF) julgou inócua a regra, considerando-a “não escrita”, uma vez que a “validade ou invalidade de um ato só pode ser aferida em face da lei a que ele obedeceu”. Quanto ao § 3º do art. 7º, no mesmo julgado, o STF reconheceu que “esse dispositivo resultou de equívoco evidente e não há como aplicá-lo”. 26 5. A LEI APLICÁVEL AO REGIME DE BENS Dispõe o § 4º do art. 7º da LINDB que “o regime de bens, legal ou convencional, obedece à lei do país em que tiverem os nubentes domicílio, e, se este for diverso, a do primeiro domicílio conjugal”. Curiosamente, na publicação original do Decreto-Lei 4.657, em setembro de 1942, o dispositivo em questão possuía redação diferente, dispondo que a lei de regência deveria ser a lei do domicílio conjugal dos nubentes. Obviamente, o nubente é aquele que vai casar-se, não possuindo, ainda, domicílio conjugal. Em 17 de junho de 1943, houve a republicação do texto, com a sua retificação para a redação ora em análise. para reger a invalidade do matrimônio de nubentes de domicílio diverso uma lei estranha...ao ato e da livre escolha pelos interessados”. Grifo do próprio autor. VALLADÃO, Haroldo. Direito Internacional Privado. Vol. II. 2ª ed., Rio de Janeiro: Freitas Bastos, 1977, p. 133. 25. Art. 47. A nullidade do matrimonio deve regular-se pela mesma lei a que estiver submettida a condição intrinseca ou extrinseca que a tiver motivado. 26. Tratou-se de casamento celebrado no Brasil, por nubentes de domicílio diverso (Estados Unidos e Brasil). Após o casamento, o primeiro domicílio conjugal foi fixado na Califórnia, Estados Unidos. O marido requereu e obteve a anulação do casamento nos EUA, por ter a esposa descumprido obrigação de fixação de residência nos EUA e de ter filhos, assumida antes do casamento. Essa promessa da mulher teria sido essencial para o consentimento do homem e para a consequente celebração do casamento, ensejando sua anulação de acordo com a lei californiana. Após, o marido requereu, no Brasil, a homologação da sentença estrangeira de anulação, obrigando o STF a analisar o alcance do art. 7º, § 3º, ou seja, se seria possível a lei do primeiro domicílio conjugal considerar inválido aquilo que a lei do local da celebração (lei brasileira) não considera como hipótese de anulação de casamento. O caso chamou a atenção até porque o STF havia, inicialmente, homologado - burocraticamente - a sentença estrangeira. Depois, em um segundo julgamento, para correção de erro material, o STF considerou o preceito (art. 7º, § 3º) como “inaplicável, por impossibilidade lógica, e assim, como não escrito” (consta do Voto do Relator, Ministro Luiz Gallotti) e indeferiu a homologação. Conferir em Sentença Estrangeira nº 2.085 - segundo julgamento/ EUA - Relator: Min. Luiz Gallotti. Julgamento: 03/03/1971, publicado no DJ de 10-11-1972, pp. 07727. DOUTRINA . DIREITO DE FAMÍLIA O CASAMENTO NO DIREITO INTERNACIONAL PRIVADO NO BRASIL 177 O fundamento do dispositivo encontra-se no desejo de substituição da lei da nacionalidade (critério de conexão da antiga introdução ao Código Civil de 1916) pela lei do domicílio na regência do Direito de Família, no bojo da ruptura promovida por Vargas com a nova LICC/42. Era necessário, contudo, dar uma resposta à hipótese dos nubentes terem domicílio diverso. A solução encontrada foi a escolha da lei do primeiro domicílio conjugal, o que valoriza a autonomia de vontade dos próprios interessados (os cônjuges), na escolha do primeiro domicílio do casal. Na jurisprudência, houve intenso debate sobre o alcance do § 4º do art. 7º. No caso Mardini, casal de brasileiros casou-se no Uruguai, cujo regime de bens (no silêncio dos nubentes) é o da separação total de bens, alegando, no ato, serem lá domiciliados. Após trinta dias, foram viver no Rio Grande do Sul. No litígio que se seguiu a separação do casal, houve intenso debate sobre a fixação ou não do domicílio no Uruguai, a despeito do alegado por ambos. O Supremo Tribunal Federal entendeu que, além da declaração de ambos, houve ainda aquisição de fazenda e permanência por certo período no país, não tendo sido apenas uma passagem temporária para fins de casamento. Além disso, o regime da separação total de bens é permitido pelo Direito brasileiro, o que evitou debate sobre fraude à lei e à ordem pública. Ademais, o princípio da proibição do venire contra factum proprium pesou contra o interessado (no caso, o marido) em contestar a aplicação da lei uruguaia referente à separação total de bens, uma vez que ele havia declarado expressamente seu domicílio no Uruguai. 27 Analisando o Caso Mardini, é possível extrair algumas conclusões: (i) o regime do casamento foi fixado pela lei do domicílio (idêntico) dos nubentes, pouco importando o domicílio anterior (que era no Brasil) ou posterior (que voltou a ser no Brasil); (ii) mesmo que se admitisse a existência de pluralidade domiciliar, a lei do domicílio no Uruguai rege o ato que lhe corresponde, no caso, o casamento ali realizado; (iii) a lex fori (a lei do foro no qual se analisa o fato transnacional) é a lei que define o que é domicílio. No caso, era a lei brasileira, sendo importante a aferição do ânimo definitivo dos nubentes na fixação da residência (exigência da lei brasileira para que se caracterize o domicílio) por meio da análise da declaração deles, da aquisição de fazenda etc. 27. Supremo Tribunal Federal, Recurso Extraordinário nº 86.787/RS, Relator Min. Leitão de Abreu, julgamento: 20/10/1978, publicado no DJ 04-05-1979, pp. 3520. 178 REVISTA DO INSTITUTO DOS ADVOGADOS DE SÃO PAULO v. 35, JANEIRO - JUNHO 2015 Já no caso Ruthofer, discutiu-se a partilha de herança, no qual o autor (de cujus) havia contraído matrimônio, na Áustria (domicílio comum dos nubentes, à época), em 1951, sob o regime da separação legal de bens. Após três anos, o casal fixou domicílio no Brasil e, durante a convivência comum, houve a aquisição de diversos bens, feita cada qual em seu nome próprio. Na partilha dos bens da herança, a filha do primeiro casamento do falecido exigiu que houvesse a comunicação dos aqüestos (bens adquiridos na constância do casamento) à herança (levando, então, ao aumento do valor do seu quinhão), tendo em vista a inexistência de pacto antenupcial que vedasse tal comunhão e aplicando a lei brasileira da época (art. 259 do Código Civil de 191628), bem como o enunciado 377 da Súmula o Supremo Tribunal Federal29. O Superior Tribunal de Justiça (STJ), em especial no voto do Min. Luis Felipe Salomão, reconheceu como correta a invocação do art. 7º, § 4º da LINDB, que, em tese, favoreceria a segunda mulher do falecido, uma vez que diversos bens adquiridos após o casamento estavam em seu nome. Todavia, o STJ ponderou essa regra da LINDB com a vedação do uso de direito estrangeiro que ofenda a ordem pública brasileira (art. 17 da LINDB). A defesa da unidade familiar pela Constituição Federal (artigo 226, caput) exigiu, na visão do STJ, que o patrimônio amealhado na constância do casamento e oriundo do esforço comum fosse comunicado também ao outro cônjuge. Considerou o STJ que a ordem pública seria violada, caso fosse aceita no Brasil a separação radical de bens prevista no ordenamento civil austríaco.30 Assim, a jurisprudência brasileira utiliza o art. 7º, § 4º (Caso Mardini), mas mantém a aplicação da lei estrangeira sobre o regime de bens sob o crivo da ordem pública (Caso Ruthofer). 6. A MUDANÇA DO REGIME DE BENS Com a redação dada pela Lei nº 6.515, de 1977, a LINDB permite ao estrangeiro casado, que se naturalizar brasileiro e mediante expressa anuência de seu cônjuge, requerer ao 28. Art. 259. Embora o regime não seja o da comunhão de bens, prevalecerão, no silêncio do contrato, os princípios dela, quanto à comunicação dos adquiridos na constância do casamento. 29. Súmula 377 do STF: «No regime de separação legal de bens, comunicam-se os adquiridos na constância do casamento». 30. Superior Tribunal de Justiça, Recurso Especial nº 123.633/SP, Relator Min. Aldir Passarinho Junior, Data do Julgamento: 17/03/2009, Data da Publicação/Fonte: DJe 30/03/2009. DOUTRINA . DIREITO DE FAMÍLIA O CASAMENTO NO DIREITO INTERNACIONAL PRIVADO NO BRASIL 179 juiz, no ato de entrega do decreto de naturalização, se apostile ao mesmo a adoção do regime de comunhão parcial de bens, respeitados os direitos de terceiros e dada esta adoção ao competente registro (art. 7º, § 5º). Esse dispositivo trata da mutabilidade do regime de bens no casamento. A redação original da LICC/42 era semelhante, mas determinava que o estrangeiro, ao se naturalizar brasileiro, poderia optar tão somente pela comunhão universal31. Com a mudança do regime legal do Código Civil para o regime da comunhão parcial, houve a reforma da lei, tendo sido escolhido o regime da comunhão parcial, que não comunica o patrimônio adquirido pelos nubentes antes do casamento. Destaco que a regra impunha, à época, uma exceção à imutabilidade do regime de bens do casamento que era adotada pelo Código Civil de 1916 (depois abandonada pelo Código Civil de 2002). É mais um reforço à mutabilidade justificada do regime de bens do casamento agora previsto no Código Civil de 200232, valorizando a autonomia da vontade sem prejudicar terceiros. Sua origem está no Decreto-Lei nº 389, de 25 de abril de 1938 (em plena ditadura Vargas), que estabelecia, em seu art. 2333, que o naturalizado poderia, com aquiescência expressa do outro cônjuge, no ato de entrega do decreto de naturalização, manifestar o seu desejo de adotar o regime de comunhão universal de bens, respeitados os direitos de terceiro. A intenção do legislador de 1938 era permitir aos estrangeiros casados no exterior que pudessem adotar a comunhão universal de bens (a regra geral do Código Civil de 1916). A comunhão universal não era a regra geral em alguns Estados e essa previsão legislativa varguista tinha como objetivo homogeneizar o regime de bens vigente no 31. LICC/42, redação original do art. 7º, § 5º: “ O estrangeiro casado, que se naturalizar brasileiro, pode, mediante expressa anuência de seu cônjuge, requerer ao juiz, no ato de entrega do decreto de naturalização, se apostile ao mesmo a adoção do regime da comunhão universal de bens, respeitados os direitos de terceiro e dada esta adoção ao competente registro.” Grifo meu. 32. Art. 1.639 do Código Civil (2002), in verbis: É lícito aos nubentes, antes de celebrado o casamento, estipular, quanto aos seus bens, o que lhes aprouver. § 1o O regime de bens entre os cônjuges começa a vigorar desde a data do casamento. § 2o É admissível alteração do regime de bens, mediante autorização judicial em pedido motivado de ambos os cônjuges, apurada a procedência das razões invocadas e ressalvados os direitos de terceiros” 33. Disponível em http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/decreto-lei/del0389.htm, último acesso em 2 de fevereiro de 2015. 180 REVISTA DO INSTITUTO DOS ADVOGADOS DE SÃO PAULO v. 35, JANEIRO - JUNHO 2015 Brasil. Tratou-se, mais uma vez, do desejo do Estado Novo brasileiro de eliminar os nichos de direito estrangeiro existentes no Brasil, o que, levaria, quatro anos depois, à mudança da lei de regência do estatuto pessoal (de lei da nacionalidade para lei do domicílio). Após, em 1977, com a adoção da regra geral da comunhão parcial, houve também a mudança da LICC (hoje LINDB) para possibilitar que o estrangeiro, ao se naturalizar, apostile a mudança do regime de bens para o regime de comunhão parcial. Os requisitos, então, para tal mudança do regime de bens são os seguintes: (i) prova do casamento válido; (ii) momento adequado, que é a solicitação no ato de entrega por juiz federal da portaria de naturalização (e não mais decreto, de acordo com o art. 119 da Lei 6.815/8034); (iii) anuência expressa do outro cônjuge, que deve ser feita por instrumento público ou particular; (iv) forma, que é a apostila na portaria de naturalização, que formaliza a modificação do regime (v) preservação dos direitos de terceiro, o que pode redundar em ineficácia da mudança, caso haja prova de prejuízo a terceiro e (vi) registro para efeito em relação a terceiros, aplicando-se analogicamente o disposto no art. 1.657 do Código Civil, que trata do registro dos pactos antenupciais35. 7. O CASAMENTO DE ESTRANGEIROS. Os estrangeiros podem se casar perante a autoridade diplomática ou consular do Estado patrial, o que implica no uso da lei estrangeira para reger tanto a celebração quanto os impedimentos ao casamento celebrado no Brasil. Essa exceção à lei do local da celebração do casamento foi estabelecida no §1º do art. 7º da LINDB36 34. Art. 119. Publicada no Diário Oficial a portaria de naturalização, será ela arquivada no órgão competente do Ministério da Justiça, que emitirá certificado relativo a cada naturalizando, o qual será solenemente entregue, na forma fixada em Regulamento, pelo juiz federal da cidade onde tenha domicílio o interessado. § 1º. Onde houver mais de um juiz federal, a entrega será feita pelo da Primeira Vara. Quando não houver juiz federal na cidade em que tiverem domicílio os interessados, a entrega será feita através do juiz ordinário da comarca e, na sua falta, pelo da comarca mais próxima. § 3º. A naturalização ficará sem efeito se o certificado não for solicitado pelo naturalizando no prazo de doze meses contados da data de publicação do ato, salvo motivo de força maior, devidamente comprovado. 35. Código Civil, art. 1.657: « As convenções antenupciais não terão efeito perante terceiros senão depois de registradas, em livro especial, pelo oficial do Registro de Imóveis do domicílio dos cônjuges». Nessa linha, SERPA LOPES, Miguel Maria de. Comentários à Lei de Introdução ao Código Civil. Vol. II, 2ª edição, Rio de Janeiro: Freitas Bastos, 1959, p.122. 36. “Art. 7º, § 2º O casamento de estrangeiros poderá celebrar-se perante autoridades diplomáticas ou consulares do país de ambos os nubentes.” DOUTRINA . DIREITO DE FAMÍLIA O CASAMENTO NO DIREITO INTERNACIONAL PRIVADO NO BRASIL 181 Nesse dispositivo, o DIPr interage com o Direito Internacional Público, uma vez que esse poder dado às autoridades diplomáticas ou consulares originou-se em costume internacional ou tratados sobre os poderes dados a tais autoridades (e não em tratados sobre o DIPr). No Brasil, já em 1863, Pimenta Bueno, no primeiro livro de Direito Internacional Privado publicado no país, referiu-se a “costume admitido de poderem efetuar-se os casamentos dos estrangeiros nos respectivos consulados”.37 Durante o Império brasileiro, admitia-se tal regra, desde que observada a reciprocidade, ou seja, que o Estado estrangeiro também considerasse válido casamento de brasileiros pela autoridade consular brasileira no exterior.38 Após a proclamação da República, o Decreto nº 181/1890 (que promulgou a lei sobre casamento civil) estabeleceu, em seu artigo 47,§ 2º, que, se ambos os nubentes fossem brasileiros, poderiam casar perante agente diplomático ou consular do Brasil no exterior. O citado Decreto foi omisso quanto à possibilidade dos estrangeiros casarem no Brasil perante seu agente consular. Em consulta expressa feita pelas Missões Diplomáticas do Reino Unido e da Alemanha, o governo brasileiro respondeu, em 1910, que somente tratados, sob reciprocidade, poderiam dar validade nacional a casamentos de estrangeiros celebrados no Brasil perante seu agente consular. 39 O Código Civil de 1916 previu, laconicamente, em seu art. 204, único, que o casamento celebrado fora do Brasil e contraído perante agente consular (e não mais perante agentes diplomáticos), deveria ser provado por certidão do assento no registro do consulado. Para Espínola e Espínola Filho, o Código Civil de 1916 exigia que ambos os nubentes fosses brasileiros para pudessem celebrar casamento perante agente consular do Brasil no exterior.40Pontes de Miranda, em sentido contrário, defendeu que bastaria que um dos nubentes fosse brasileiro41. 37. PIMENTA BUENO, José Antônio. Direito internacional privado e applicação de seus principios com referencia as leis particulares do Brazil. Rio de Janeiro: Typographia Imp. e Const. de J. Villeneuve e C, 1863, p.60. Grafia atualizada. 38. VALLADÃO, Haroldo. Direito Internacional Privado. Vol. II. 2ª ed., Rio de Janeiro: Freitas Bastos, 1977, p. 68. 39. Essa resposta do Ministério das Relações Exteriores do Brasil está em OCTÁVIO, Rodrigo. Droit International Privé dans la legislation brèsilienne. Paris: Librarie de la Société du Recueil Sirey, 1915, p. 160. 40. ESPÍNOLA, Eduardo e ESPÍNOLA FILHO, Eduardo. Tratado de Direito Civil Brasileiro. Vol. VIII, “Do Direito Internacional Privado Brasileiro”, Tomo II, Rio de Janeiro: Freitas Bastos, 1943, p. 860. 41. PONTES DE MIRANDA, Francisco Cavalcanti. Tratado de Direito Internacional Privado. Tomo II, Parte Especial. Rio 182 REVISTA DO INSTITUTO DOS ADVOGADOS DE SÃO PAULO v. 35, JANEIRO - JUNHO 2015 Assim, a Lei de Introdução ao Código Civil (LICC) de 1942 veio resolver polêmicas e regrar expressamente a temática do casamento, quer de brasileiros ou estrangeiros, perante autoridade diplomática ou consular. Porém, a redação original da LICC/42, apesar de adotar viés de permissão genérica de tal matrimônio (evitando a reciprocidade que fere a igualdade entre brasileiros e estrangeiros), adotou, surpreendentemente, o princípio da lei do domicílio e não da nacionalidade dos nubentes, da seguinte forma: “O casamento de estrangeiros pode celebrar-se perante as autoridades diplomáticas ou consulares do país em que um dos nubentes seja domiciliado”. Ocorre que essa atribuição dada a autoridades diplomáticas ou consulares é fruto justamente da nacionalidade42, para permitir que os nacionais possam se socorrer de institutos jurídicos do seu Estado, como, por exemplo, um tipo especial de casamento, uma forma de lavratura de procuração etc. Por isso, a Lei nº 3.238/57 alterou esse dispositivo da LICC e retornou à exigência da nacionalidade, dispondo que o casamento será celebrado perante autoridade diplomática ou consular do “país de ambos os nubentes”. Nesse caso, apesar da celebração ocorrer no Brasil, aplica-se a lei estrangeira. Essa regra também é aplicada aos brasileiros no exterior, que podem se casar perante nossa autoridade consular, que, por sua vez, deve observar as regras brasileiras sobre a celebração e os impedimentos. A celebração do casamento de brasileiros pela autoridade consular brasileira no exterior está regulada no Decreto 24.113/34, que, na parte sobre “Regulamento para o Serviço Consular Brasileiro”, dispõe que os consulados só poderão celebrar casamentos quando ambos os nubentes forem brasileiros e a legislação local reconhecer efeitos civis aos casamentos assim celebrados (art. 13, § único)43. Há, ainda, a exigência de residência de pelo menos um dos nubentes no local sob jurisdição administrativa do Consulado (a chamada “jurisdição consular”), como de Janeiro : José Olympio, 1934, pp. 34-35. 42. Esse dispositivo original da lei recebeu ácidas críticas da doutrina especializada da época. Por todos, ver VALLADÃO, Haroldo. “ A Lei de Introdução ao Código Civil e sua reforma” in Revista dos Tribunais, v. 49, n. 292, fev., 1960, pp. 7–21. 43. Art. 13, § único: “Os Consulados de carreira só poderão celebrar casamentos quando ambos os nubentes forem brasileiros e a legislação local reconhecer efeitos civis aos casamentos assim celebrados”. DOUTRINA . DIREITO DE FAMÍLIA O CASAMENTO NO DIREITO INTERNACIONAL PRIVADO NO BRASIL 183 premissa para a atuação dos serviços consulares44. Obviamente, esses dois requisitos (reconhecimento do ordenamento estrangeiro e residência) não constam da LINDB, o que torna questionável a sua aplicação, em face do princípio da legalidade previsto na Constituição e nos tratados internacionais. De qualquer modo, o casamento de brasileiro celebrado no estrangeiro deverá ser registrado em cento e oitenta dias, a contar da volta de um ou de ambos os cônjuges ao Brasil, no cartório do respectivo domicílio, ou, em sua falta, no 1o Ofício da Capital do Estado em que passarem a residir, conforme dispõe o art. 1.544 do Código Civil45. O registro é meramente declaratório, sendo o casamento válido e impedindo novo casamento no Brasil até que seja dissolvido o primeiro matrimônio.46 8. O DIVÓRCIO E A EVOLUÇÃO DO DIREITO INTERNACIONAL PRIVADO BRASILEIRO A dissolução do casamento pelo divórcio no exterior e sua posterior homologação no Brasil é tema de DIPr que está vinculado à evolução da (in)dissolubilidade do casamento e o tratamento do divórcio. De início, o casamento no Brasil imperial era religioso e católico, tendo o Imperador D. Pedro I determinado, pelo Decreto de 03 de novembro de 182747, a aplicação das normas da Igreja 44. Ver, por exemplo, o que consta da página na internet da Embaixada brasileira na Rússia: “Apenas dois cidadãos brasileiros podem casar-se diretamente em repartição consular brasileira. A Autoridade Consular somente poderá celebrar casamento se ambos os nubentes forem brasileiros maiores de 16 (dezesseis) anos e se a legislação local não o impedir. Para os brasileiros com idade entre 16 e 18 anos incompletos, é necessário o consentimento de ambos os pais ou responsáveis. Pelo menos um dos contraentes deverá ser residente na jurisdição consular há, no mínimo, um ano”. Disponível em: http://moscou.itamaraty.gov.br/pt-br/casamento.xml. Último acesso em 02 de fevereiro de 2015. 45. Art. 1.544. O casamento de brasileiro, celebrado no estrangeiro, perante as respectivas autoridades ou os cônsules brasileiros, deverá ser registrado em cento e oitenta dias, a contar da volta de um ou de ambos os cônjuges ao Brasil, no cartório do respectivo domicílio, ou, em sua falta, no 1º Ofício da Capital do Estado em que passarem a residir. 46. Superior Tribunal de Justiça. Recurso Especial n° 280.197 - RJ. Civil. Casamento realizado no estrangeiro. Matrimônio subseqüente no país, sem prévio divórcio. Anulação. O casamento realizado no estrangeiro é válido no país, tenha ou não sido aqui registrado, e por isso impede novo matrimônio, salvo de desfeito o anterior. Recurso especial não conhecido. (STJ, Resp 280.197, 3ª Turma, Rel. Min. Ari Pargendler, j. 05.08.02) 47. Disponível em http://www2.camara.leg.br/legin/fed/decret_sn/1824-1899/decreto-38408-3-novembro-1827- 184 REVISTA DO INSTITUTO DOS ADVOGADOS DE SÃO PAULO v. 35, JANEIRO - JUNHO 2015 Católica (do Congresso de Trento e do Arcepispado da Bahia) para regular o matrimônio, cujo vínculo, pelas regras católicas, era indissolúvel. Somente em 1861, foi editada a Lei nº 1.144, permitindo que outras Igrejas celebrassem casamentos com efeitos civis.48 Com a proclamação da República em 1889, houve a consequente separação da Igreja do Estado. O Decreto nº 181, de 24 de janeiro de 1890 implantou o casamento civil49, na linha da laicização do Estado, já estabelecida pelo Decreto nº 119-A de 7 de janeiro de 1890.50Por sua vez, a Constituição de 1891 tratou de reconhecer somente o casamento civil (art. 72, § 4º51), omitindo-se quanto à proibição do divórcio. Mas a herança católica da indissolubilidade do vínculo marital foi mantida no Código Civil de 1916, que previu o desquite, que rompia somente a sociedade conjugal (terminava a vida em comum e o regime de bens52), impedindo que os desquitados pudessem celebrar novo matrimônio. Em 1934, a influência da Igreja fez com que houvesse a introdução expressa da indissolubilidade do casamento no texto da Constituição (art. 14453, que previu que a lei ordinária regularia os casos de desquite e anulação do casamento), impedindo que o divórcio pudesse ser introduzido por mera lei ordinária, no que foi mantido na Constituição de 1937 (art. 12454), na Constituição de 1946 (art. 16355), na Constituição de 566712-publicacaooriginal-90232-pl.html, último acesso em 2 de fevereiro de 2015. 48. Conferir em SOARES, Oscar de Macedo. Casamento Civil - Decreto n. 181 de 24 de janeiro de 1890, Commentado e Annotado. Rio de Janeiro: B.L Garnier, Livreiro-Editor, 1890, em especial p. 12 e seguintes. 49. Disponível em http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/decreto/1851-1899/D181.htm, último acesso em 2 de fevereiro de 2015. 50. Disponível em http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/decreto/1851-1899/d119-a.htm, último acesso em 02 de fevereiro de 2015. 51. In verbis: “ A República só reconhece o casamento civil, cuja celebração será gratuita.”. 52. Art. 322 do Código Civil de 1916: “ Art. 322. A sentença do desquite autoriza a separação dos conjugues, e põe termo ao regime matrimonial dos bens, como se o casamento fosse anulado (art. 267, n. III)”. 53. Art 144 - A família, constituída pelo casamento indissolúvel, está sob a proteção especial do Estado. Parágrafo único - A lei civil determinará os casos de desquite e de anulação de casamento, havendo sempre recurso ex officio , com efeito suspensivo. 54. Art. 124 - A família, constituída pelo casamento indissolúvel, está sob a proteção especial do Estado. Às famílias numerosas serão atribuídas compensações na proporção dos seus encargos. 55. Art. 163 - A família é constituída pelo casamento de vínculo indissolúvel e terá direito à proteção especial do Estado. DOUTRINA . DIREITO DE FAMÍLIA O CASAMENTO NO DIREITO INTERNACIONAL PRIVADO NO BRASIL 185 1967 (art. 167, § 1º56) e na Emenda Constitucional de 1969 (art. 175, §1º57). O impacto da proibição do divórcio no Brasil no âmbito do Direito Internacional Privado é evidente. De início, a introdução ao Código Civil de 1916 era omissa, mas a proibição de divórcio no Brasil gerou, rapidamente, a existência de divórcios de brasileiros (ou entre brasileiros e estrangeiros) feitos em Estado estrangeiro com ordenamento mais permissivo e, após, era feito o pedido de homologação da sentença estrangeira de divórcio no Brasil. Buscava-se, assim, contornar a rigidez da legislação brasileira. A jurisprudência da época posicionou-se de modo contrário a tais condutas, considerando que a indissolubilidade do casamento era matéria de ordem pública, o que impedia a homologação dessas sentenças estrangeiras de divórcio de casais brasileiros. No máximo, o Judiciário brasileiro aceitava considerar, no caso de divórcio de brasileiro e estrangeiro, homologar a sentença estrangeira como sendo de desquite caso a legislação nacional do estrangeiro admitisse o divórcio, o que impedia que ambos os cônjuges (inclusive o cônjuge estrangeiro) pudessem se casar de novo no Brasil. Assim, com a aprovação da LICC/42, supriu-se a omissão da introdução ao Código Civil de 1916, com a redação original do § 6.o do art. 7º, que dispunha, em linha com os precedentes judiciais dos anos anteriores, que «não será reconhecido no Brasil o divórcio, se os cônjuges forem brasileiros. Se um deles o for, será reconhecido o divórcio quanto ao outro, que não poderá, entretanto, casar-se no Brasil.» A redação original da LICC/42 alinhava-se com a jurisprudência então reinante, determinando que o divórcio no exterior não seria reconhecido no Brasil, se os cônjuges fossem brasileiros. Seria considerado como mero desquite, previsto no Código Civil da época, se as condições lá previstas tivessem sido preenchidas58. Se um deles o fosse, seria reconhecido o divórcio quanto ao outro (cônjuge estrangeiro), caso a lei de sua nacionalidade admitisse o divórcio, mas que não poderia, entretanto, casar-se no Brasil. Essa posição era assim resumida: se os brasileiros não podiam divorciar-se no Brasil, também não poderiam em outro país. Esse dispositivo, embora compatível com a jurisprudência da época, rompeu com a regra geral da LICC/42 sobre o uso da lei do domicílio para reger o estatuto pessoal (art. 56. Art. 167 - A família é constituída pelo casamento e terá direito à proteção dos Poderes Públicos. § 1º - O casamento é indissolúvel. 57. Art. 175. A família é constituída pelo casamento e terá direito à proteção dos Poderes Públicos. § 1º O casamento é indissolúvel. 58. Nesse sentido, TENÓRIO, Oscar. Lei de Introdução ao Código Civil. 2ª ed., Rio de Janeiro: Borsói, 1955, p. 287. 186 REVISTA DO INSTITUTO DOS ADVOGADOS DE SÃO PAULO v. 35, JANEIRO - JUNHO 2015 7º, caput), pois levava em consideração a nacionalidade brasileira dos cônjuges, como se o novo DIPr brasileiro não houvesse substituído a lex patriae pela lex domicilii. Assim, a LICC, na sua redação original, acabou acatando o sistema misto no tocante ao estatuto pessoal, abrindo exceção quanto ao divórcio, que continuou regido pela lei da nacionalidade, para atender a pressão da Igreja Católica (a favor da indissolubilidade do casamento) contra os divórcios celebrados no exterior de casais brasileiros. Para manter a coerência com a lei do domicílio (que, em abstrato, permitiria que um casal de brasileiros, domiciliados em Estado estrangeiro que aceitasse o divórcio de casamento celebrado em outro país, se divorciasse), a saída seria invocar a cláusula de ordem pública para vedar a homologação de sentença estrangeira de divórcio de brasileiro domiciliado no exterior. Somente em 1977, 86 anos depois da separação republicana da Igreja do Estado, foi aprovada a Emenda Constitucional nº 09, de 28 de junho de 1977, que alterou a redação artigo 175, § 1º, da Constituição então vigente dispondo que “ o casamento somente poderá ser dissolvido, nos casos expressos em lei, desde que haja prévia separação judicial por mais de três anos”. A dissolução do casamento pelo divórcio, então, foi, finalmente, aceita pelo ordenamento brasileiro, condicionada à prévia separação judicial por mais de três anos (o antigo “desquite” do Código Civil de 1916). Após a aprovação da Emenda nº 09/77, a Lei 6.515/77 (“Lei do Divórcio”) deu nova redação ao § 6º do art. 7º da LICC, dispondo que o divórcio realizado no estrangeiro, se um ou ambos os cônjuges fossem brasileiros, seria reconhecido no Brasil somente depois de três anos da data da sentença, salvo se houvesse sido antecedida de separação judicial por igual prazo, caso em que a homologação produziria efeito imediato, obedecidas as condições estabelecidas para a eficácia das sentenças estrangeiras no Brasil . A nova redação desse dispositivo da LICC obedeceu a lógica do sistema misto (lei da nacionalidade usada no divórcio, ao invés da regra geral da lei do domicílio) acima apontada: a lei brasileira havia sido modificada (permitindo o divórcio, com lapsos temporais) e, então, a LICC seguiu o mesmo rumo, só que usou os lapsos temporais para postergar a homologação da sentença estrangeira, evitando que os brasileiros que quisessem se divorciar optassem por uma “via rápida” do divórcio no exterior. A LICC ainda autorizou o Supremo Tribunal Federal (na época competente para julgar a ação de homologação de sentença estrangeira), na forma de seu regimento interno, DOUTRINA . DIREITO DE FAMÍLIA O CASAMENTO NO DIREITO INTERNACIONAL PRIVADO NO BRASIL 187 a reexaminar, a requerimento do interessado, decisões já proferidas em pedidos de homologação de sentenças estrangeiras de divórcio de brasileiros, a fim de que passem a produzir todos os efeitos legais. A redação originária da Constituição de 1988 manteve, obviamente, a dissolubilidade do casamento, ampliando a forma de sua concessão, prevendo que o casamento civil poderia ser dissolvido pelo divórcio, após (i) prévia separação judicial por mais de um ano nos casos expressos em lei, ou (ii) comprovada separação de fato por mais de dois anos59. O Código Civil de 2002 seguiu a linha da divisão entre a “separação judicial” (que extingue a sociedade conjugal, os deveres de coabitação e fidelidade recíproca e regime de bens60) e o “divórcio direto” (art. 1.580, § 2º61). Em 2007, a Lei 11.441 possibilitou a realização de inventário, partilha, separação consensual e divórcio consensual por via administrativa. O art. 1.124 - A do Código de Processo Civil (introduzido por essa lei) prevê a existência de divórcio consensual por escritura pública, da qual constarão as disposições relativas à (i) descrição e à partilha dos bens comuns e (ii) à pensão alimentícia e, ainda, ao (iii) acordo quanto à retomada pelo cônjuge de seu nome de solteiro ou à manutenção do nome adotado quando se deu o casamento. É requisito para o divórcio consensual por escritura pública a inexistência de filhos menores ou incapazes do casal.62 Com a maior liberalização do divórcio dada pela Constituição de 1988, novamente o § 6.o do art. 7º da lei foi alterado. A Lei 12.036/09 estabeleceu que o divórcio realizado no estrangeiro, se um ou ambos os cônjuges fossem brasileiros, só seria 59. Constituição de 1988, redação original do art. 226, § 6º: “ O casamento civil pode ser dissolvido pelo divórcio, após prévia separação judicial por mais de um ano nos casos expressos em lei, ou comprovada separação de fato por mais de dois anos.” 60. Art. 1.576. A separação judicial põe termo aos deveres de coabitação e fidelidade recíproca e ao regime de bens. 61. Art. 1.580. Decorrido um ano do trânsito em julgado da sentença que houver decretado a separação judicial, ou da decisão concessiva da medida cautelar de separação de corpos, qualquer das partes poderá requerer sua conversão em divórcio. § 1o A conversão em divórcio da separação judicial dos cônjuges será decretada por sentença, da qual não constará referência à causa que a determinou. § 2o O divórcio poderá ser requerido, por um ou por ambos os cônjuges, no caso de comprovada separação de fato por mais de dois anos. 62. Conferir Res. 35 do Conselho Nacional de Justiça, que disciplina a aplicação da Lei nº 11.441/07 pelos serviços notariais e de registro. Disponível em http://www.cnj.jus.br/atos-administrativos/atos-da-presidencia/323resolucoes/12151-resolu-no-35-de-24-de-abril-de-2007, último acesso em 2 de fevereiro de 2015. 188 REVISTA DO INSTITUTO DOS ADVOGADOS DE SÃO PAULO v. 35, JANEIRO - JUNHO 2015 reconhecido no Brasil depois de um ano da data da sentença, salvo se houvesse sido antecedida de separação judicial por igual prazo, caso em que a homologação produziria efeito imediato, obedecidas as condições estabelecidas para a eficácia das sentenças estrangeiras no país. Novamente, a lógica da lei da nacionalidade brasileira para reger o divórcio dominou o DIPr: como a CF/88 havia criado a figura do divórcio direto depois de dois anos de separação de fato ou divórcio depois de um ano de separação judicial63, entendeu o legislador que esses prazos poderiam ser adaptados ao DIPr, evitando, novamente, que o divórcio no exterior fosse mais rápido que o doméstico. O Superior Tribunal de Justiça, na forma de seu regimento interno, foi autorizado pela Lei 12.036 a reexaminar, a requerimento do interessado, decisões já proferidas em pedidos de homologação de sentenças estrangeiras de divórcio de brasileiros, a fim de que passassem a produzir todos os efeitos legais. Essa redação dada em 2009 ao § 6.o do art. 7º está em vigor até hoje.64 Em 2010, houve mais um avanço, com a edição da Emenda Constitucional nº 66 (cuja proposta de emenda constitucional foi apelidada de “PEC do Divórcio”), que suprimiu o requisito de prévia separação judicial por mais de um ano ou de comprovada separação de fato por mais de dois anos, dispondo, sucintamente, que “o casamento civil pode ser dissolvido pelo divórcio” (nova redação do art. 226, § 6º). O Superior Tribunal de Justiça já possui precedente pelo qual a regra do art. 226, § 6°, da CF⁄88 prevalece sobre o disposto no art. 7°, § 6°, da LINDB65. 63. Constituição de 1988, redação original do art. 226, § 6º: “ O casamento civil pode ser dissolvido pelo divórcio, após prévia separação judicial por mais de um ano nos casos expressos em lei, ou comprovada separação de fato por mais de dois anos.” 64. In verbis: § 6º. «O divórcio realizado no estrangeiro, se um ou ambos os cônjuges forem brasileiros, só será reconhecido no Brasil depois de 1 (um) ano da data da sentença, salvo se houver sido antecedida de separação judicial por igual prazo, caso em que a homologação produzirá efeito imediato, obedecidas as condições estabelecidas para a eficácia das sentenças estrangeiras no país. O Superior Tribunal de Justiça, na forma de seu regimento interno, poderá reexaminar, a requerimento do interessado, decisões já proferidas em pedidos de homologação de sentenças estrangeiras de divórcio de brasileiros, a fim de que passem a produzir todos os efeitos legais.» (Redação dada pela Lei nº 12.036, de 2009). 65. Sentença Estrangeira Contestada nº 4441 / Estados Unidos - Relatora: Ministra Eliana Calmon - Órgão Julgador: Corte Especial - Data do Julgamento: 29/06/2010 - Data da Publicação/Fonte: DJe 19/08/2010. DOUTRINA . DIREITO DE FAMÍLIA O CASAMENTO NO DIREITO INTERNACIONAL PRIVADO NO BRASIL 189 Deve ser atualizada, então, a interpretação da LINDB, para permitir o reconhecimento do divórcio realizado no exterior sem qualquer exigência temporal, na linha das últimas alterações dessa regra de DIPr, que sempre foi atualizada para estar em linha com o desenvolvimento do regime jurídico brasileiro do divórcio. 9. A LEI APLICÁVEL AO DIVÓRCIO. Questão importante sobre o divórcio no DIPr é a determinação da lei aplicável. Caso ambos os cônjuges sejam domiciliados no mesmo Estado, utiliza-se tal lei, que é a lei do domicílio conjugal, regra geral sobre direito de família no DIPr brasileiro. Caso eles possuam domicílio em Estados diferentes, a LINDB é omissa. Em primeiro lugar, não é possível o uso extensivo do domicílio de um cônjuge, como chefe da família conforme consta da regra prevista no art. 7º, § 7º da LINDB. De fato, como já visto acima, a escolha de um “chefe da família” é inconstitucional e inconvencional, uma vez que esse tipo de domicílio por dependência ofende a igualdade entre os cônjuges prevista na Constituição e nos tratados de direitos humanos celebrados pelo Brasil. Assim, para suprir essa omissão legislativa, é possível a utilização de duas soluções. A primeira solução possível é a aplicação analógica do art. 7º, § 8º, que estabelece alternativas para o caso de inexistência de domicílio (no caso, a residência ou onde quer que a pessoa se encontre). Inexistindo o domicílio conjugal, utiliza-se, para reger o divórcio, a lei da última residência habitual comum durante o casamento. A segunda solução possível seria a utilização da lex fori, ou seja, a lei brasileira.66 10. CONCLUSÃO. O presente artigo buscou esmiuçar os dispositivos da Lei de Introdução às Normas do Direito Brasileiro sobre o casamento e temas correlatos. O enfoque foi o do questionamento das soluções tradicionais doutrinárias e mesmo normativas à luz da gramática dos direitos humanos. Como já defendi em outro artigo, atualmente, é um truísmo a afirmação da necessidade do Direito Internacional Privado respeitar os direitos humanos, pois 66. Nesse sentido, ver TANAKA, Aurea Christine. O divórcio dos brasileiros no Japão. O direito internacional privado e os princípios constitucionais. São Paulo: Kaleidos-Primus, 2005, pp; 97-98. 190 REVISTA DO INSTITUTO DOS ADVOGADOS DE SÃO PAULO v. 35, JANEIRO - JUNHO 2015 todo o ordenamento jurídico internacional – e nacional – deve respeito a essa nova centralidade.67 Assim, espera-se que o casamento no Direito Internacional Privado seja agora interpretado sob esse novo foco, permitindo uma interpretação conforme aos direitos humanos da LINDB, evitando seu engessamento e obsolescência. 67. CARVALHO RAMOS, André de. “Pluralidade das fontes e o novo Direito Internacional Privado” in Revista da Faculdade de Direito da Universidade de São Paulo v. 109, jan./dez. 2014, pp. 597 - 620. PROPRIEDADE INTELECTUAL TRADEDRESS IMITAÇÃO E CONCORRÊNCIA DESLEAL FERNANDA NEVES PIVA Mestranda em Direito Comercial pela Pontifícia Universidade Católica de São Paulo. Graduada em Direito pela Pontifícia Universidade Católica de São Paulo. Advogada. SUMÁRIO 1. Introdução; 1.a Conceito de trade dress,1.b Trade dress em estabelecimentos comerciais; 2. Tutela jurídica do trade dress no Brasil; 3. Elementos caracterizadores da infração do trade dress, 3.a Distintividade, 3.b Possibilidade de confusão ou associação – Desvio de clientela; 4. Dever de indenizar; 5. Conclusão; 6. Bibliografia. RESUMO ABSTRACT Este artigo visa a analisar brevemente o conceito de trade dress e, principalmente, identificar os elementos caracterizadores da conduta anticoncorrencial consistente na imitação do conjunto-imagem de um determinado player por seus concorrentes de mercado. Será também examinada a forma como os tribunais brasileiros têm julgado as ações em que se busca reparação civil em virtude da violação do trade dress, inclusive no que diz respeito à necessidade de comprovação do dano material para a configuração do dever de indenizar nesses casos. This paper aims to briefly analyze the concept of trade dress and especially identify the elements capable of characterizing the anti-competitive conduct of trade dress imitation. We will also examine how the Brazilian courts have been judging the lawsuits regarding breach of trade dress, with special attention to the need to prove damages in order to configurate the duty to indemnify in these cases. PAVRAS-CHAVE KEYWORDS Conjunto-imagem. Concorrência desleal. Desvio de clientela. Propriedade intelectual. Unfair competition. Antitrust law. Intellectual property REVISTA DO INSTITUTO DOS ADVOGADOS DE SÃO PAULO v. 35, JANEIRO - JUNHO 2015 194 1.INTRODUÇÃO A sociedade pós-moderna é, incontestavelmente, regida pelo consumo em grande escala. Uma das maiores características do mercado de consumo atual, por conseguinte, é o alto nível de competitividade existente entre os players de cada segmento. Prova disto é a grande quantidade de produtos similares ofertados ao consumidor, das mais diversas marcas. Neste cenário, portanto, cada vez mais importantes são os elementos identificadores das empresas – tais como o trade dress - que desempenham o relevante papel de diferenciá-las dos demais concorrentes de mercado, conferindo a cada uma delas identidade única. A) CONCEITO DE TRADE DRESS O trade dress – no Brasil também chamado de conjunto-imagem - nada mais é do que a identidade visual de determinado produto, serviço ou estabelecimento. Como explica JOSÉ CARLOS TINOCO SOARES, trata-se da “exteriorização do objeto, do produto ou de sua embalagem, é a maneira peculiar pela qual se apresenta e se torna conhecido. É pura e simplesmente a ’vestimenta’, e/ou ‘uniforme’, isto é, um traço peculiar, uma roupagem ou a maneira particular de alguma coisa se apresentar ao mercado consumidor ou diante dos usuários”1. Em aprofundado estudo sobre a matéria, GUSTAVO PIVA DE ANDRADE esclarece que trade dress “é o conjunto dos elementos que compõem a atividade visual de determinado produto ou serviço, distinguindo-o e individualizando-o dos seus congêneres no mercado”2. O conjunto-imagem desempenha papel de extrema relevância, porquanto “muitas vezes exerce um poder de atração equivalente ou até maior do que aquele exercido pela principal marca da empresa”3. É, assim, fator determinante no ato da escolha e da aquisição de determinado bem ou serviço pelo consumidor. A título de exemplo, podemos mencionar, dentre outros, latas e garrafas de bebidas, embalagens de produtos de limpeza, caixas e recipientes de alimentos, e, ainda, layouts de restaurantes, interiores de lojas, fachadas de postos de gasolina, etc. 1. Concorrência Desleal vs. Trade Dress e/ou Conjunto-imagem. Ed. Tinoco Soares, 2004, p. 213. 2. O trade dress e a proteção da identidade visual de produtos e serviços. In: Revista da ABPI, nº 112, mai/jun 2011, p. 4. 3. Gustavo Piva de Andrade. Ob. cit., p. 6. DOUTRINA . PROPRIEDADE INTELECTUAL TRADEDRESSIMITAÇÃO E CONCORRÊNCIA DESLEAL 195 Nas palavras de JOSÉ ROBERTO GUSMÃO e LAETITIA PABLO d’HANENS, o instituto “configura um vínculo entre o empresário e o consumidor, levando este último a optar pelo produto ou serviço baseado na memória da aparência ou da roupagem que os identificava em experiência satisfatória passada”4. No que diz respeito ao destaque de determinado produto, serviço ou estabelecimento, o trade dress é, portanto, figura determinante no mercado. Em função disso, conjuntos-imagem bem sucedidos e fortes são frequentemente copiados por imitadores que, ao invés de criarem a própria identidade visual, apropriamse indevidamente daquela desenvolvida por um concorrente, visando a alcançar lucro e sucesso de maneira mais rápida e fácil. B) TRADE DRESS EM ESTABELECIMENTOS COMERCIAIS Ainda que, no início, o termo estivesse relacionado apenas a embalagens e rótulos de produtos, a proteção ao conjunto-imagem posteriormente estendeu-se também à impressão visual de estabelecimentos. O leading case, no Brasil, foi a ação proposta pela loja de calçados Mr. Cat, na qual alegava que a forma como decorava suas lojas havia sido copiada por outra empresa do ramo (grife Mr. Foot). A autora sustentava que a porta de entrada dos estabelecimentos, a fachada e até mesmo as prateleiras e balcões internos das lojas haviam sido reproduzidos pela concorrente. O caso foi julgado pelo Juízo da 4ªVara Cível da Comarca de Goiânia, que, reconhecendo a infração ao trade dress da Mr. Cat, entendeu que “os estabelecimentos se confundem pela característica da decoração feita com mobiliário em madeira, saquinhos em algodão ou malha, com logotipo impresso e expostas no interior das lojas, prateleiras em arquibancadas, balcões abertos, caixas recuados ao fundo das lojas e as portas de acesso em estilo boutique, com passagem individual para clientes”5. A ação foi julgada procedente, reconhecida a prática de concorrência desleal pela ré, que foi condenada a alterar o layout de sua loja, bem como ao pagamento de indenização à autora. 4. Breves comentários sobre a proteção ao trade dress no Brasil. In: Revista dos Tribunais - RT 919, maio de 2012, p. 591. 5. Processo n° 1101/97, 4ª Vara Cível da Comarca de Goiânia/GO. 196 REVISTA DO INSTITUTO DOS ADVOGADOS DE SÃO PAULO v. 35, JANEIRO - JUNHO 2015 Ainda sobre trade dresses de estabelecimentos comerciais, pode-se dizer que cada vez mais comuns são os casos em que postos de gasolina copiam as fachadas de seus concorrentes, apropriando-se indevidamente das cores, formas e símbolos que compõem sua identidade visual. Assim ocorreu em caso julgado recentemente pelo Tribunal de Justiça do Estado de São Paulo. Veja-se: “CONCORRÊNCIA DESLEAL. Utilização do trade dress de marca de distribuidora de combustíveis, com utilização de fachada do posto de gasolina com as cores que caracterizam o conjunto de imagens distintivo. Violação de direitos da propriedade industrial e usurpação que tem finalidade de aproveitamento da bandeira para captação de clientela. Sentença de procedência. Apelo para reconhecimento de ausência de interesse de agir, ou julgamento de improcedência, bem como redução dos honorários. Não provimento”6. O relator, ilustre Des. ENIO ZULIANI, manteve a sentença que julgou procedente a ação proposta pela Petrobras, em virtude do provável desvio de clientela ocasionado pela imitação do trade dress da autora. Segundo ele, “as características inseridas na fachada do estabelecimento comercial da ré são suficientes para causar prejuízos à autora, bem como causar confusão na massa consumidora”. São diversas as ações judiciais, portanto, em que se busca coibir eventuais imitações do conjunto-imagem. A seguir, analisaremos os fundamentos jurídicos de tais ações. Brevemente caracterizado o trade dress e também apontada a possibilidade de aplicação do conceito a estabelecimentos, cumpre-nos examinar a tutela jurídica do instituto na legislação brasileira. Em outras palavras: quais instrumentos legais podem e são utilizados na proteção ao conjunto-imagem? 2.TUTELA JURÍDICA DO TRADE DRESS NO BRASIL O instituto teve origem nos Estados Unidos e vem ganhando cada vez mais importância no cenário mundial. Naquele país, é tutelado pelo Lanham Act7, que prevê 6. Ap. 0203428-85.2009.8.26.0100, 1ª Câmara Reservada de Direito Empresarial. 7. Section 43 (15 U.S.C. § 1125): “Any person who, on or in connection with any goods or services, or any container for goods, uses in commerce any word, term, name, symbol, or device, or any combination thereof, or any false designation of origin, false or misleading description of fact, or false or misleading representation of fact, which-(A) is likely to cause confusion, or to cause mistake, or to deceive as to the affiliation, connection, or association DOUTRINA . PROPRIEDADE INTELECTUAL TRADEDRESSIMITAÇÃO E CONCORRÊNCIA DESLEAL 197 expressamente a possibilidade de reparação civil em caso de violação do trade dress. No Brasil, o conjunto-imagem ainda não é tutelado por previsão legal específica, mas sua imitação tem sido coibida com base no instituto da concorrência desleal. Essencial ao estudo da proteção jurídica do instituto no ordenamento jurídico pátrio é compreender a distinção entre o trade dress e outros sinais distintivos (marcas, desenhos industriais, etc). Isto porque, como elucidam JOSÉ ROBERTO GUSMÃO e LAETITIA PABLO d’HANENS, “a proteção jurídica ao trade dress, como conjunto de elementos e/ou sinais característicos e distintivos, não afasta nem se confunde com a eventual proteção conferida a cada um deles individualmente considerados como, por exemplo, quando tais elementos ou sinais constituem marcas, desenhos industriais, títulos de estabelecimento, e assim por diante”8. Ponderam os autores, assim, que o instituto pode ser equiparado a um sinal distintivo não registrado. Portanto, apesar de não existir, no Brasil, dispositivo legal específico que proteja o trade dress, os atos de violação do conjunto-imagem podem - e tem sido - coibidos por meio da aplicação: (i) do art. 5º, inciso XXIX, da Constituição Federal, que determina que “a lei assegurará aos autores de inventos industriais privilégio temporário para sua utilização, bem como proteção às criações industriais, à propriedade das marcas, aos nomes de empresas e a outros signos distintivos...” e (ii) das regras de proteção à concorrência, especialmente os arts. 2º, V9, e 195, III, da Lei de Propriedade Industrial (“comete crime de of such person with another person, or as to the origin, sponsorship, or approval of his or her goods, services, or commercial activities by another person, or (B) in commercial advertising or promotion, misrepresents the nature, characteristics, qualities, or geographic origin of his or her or another person’s goods, services, or commercial activities, shall be liable in a civil action by any person who believes that he or she is or is likely to be damaged by such act. (2) As used in this subsection, the term “any person” includes any State, instrumentality of a State or employee of a State or instrumentality of a State acting in his or her official capacity. Any State, and any such instrumentality, officer, or employee, shall be subject to the provisions of this Act in the same manner and to the same extent as any nongovernmental entity. (3) In a civil action for trade dress infringement under this Act for trade dress not registered on the principal register, the person who asserts trade dress protection has the burden of proving that the matter sought to be protected is not functional”. 8. Ob. cit., p. 592. 9. “A proteção dos direitos relativos à propriedade industrial, considerando o seu interesse social e o 198 REVISTA DO INSTITUTO DOS ADVOGADOS DE SÃO PAULO v. 35, JANEIRO - JUNHO 2015 concorrência desleal quem: II – emprega meio fraudulento para desviar, em proveito próprio ou alheio, clientela de outrem”). Citamos, a título ilustrativo, recente julgado do Tribunal de Justiça do Estado de São Paulo, no qual, aplicando o art. 195, III, da LPI, o nobre Des. ROBERTO MAIA reconheceu a concorrência desleal praticada por posto de combustível, em virtude do uso indevido de trade dress do seu concorrente: “POSTO DE COMBUSTÍVEL. USO INDEVIDO DE TRADE DRESS. CONCORRÊNCIA DESLEAL. DANOS MATERIAIS. O réu-apelado utilizou testeira nas cores verde e amarela, com uma fixa branca no meio, em medidas semelhantes às empregadas pelos postos vinculados à autora-apelante. Cartaz com a marca ‘BR’ estrategicamente posicionado. Placa com o valor do litro da gasolina e do álcool, na qual constavam os dizeres ‘De olho no produto’, cartaz muito similar ao da recorrente, o qual anuncia os preços e também o programa de qualidade ‘De olho no combustível’. Uso ilícito de elementos característicos do trade dress da apelante. Concorrência desleal específica. Artigo 195, inciso III, da Lei nº 9.279/1996. O recorrido deverá pagar à recorrente indenização por danos materiais (danos emergentes e lucros cessantes), em valor a ser apurado na fase de liquidação. Recurso provido, com alteração do ônus da sucumbência” 10. No caso, além de condenado à abstenção do uso do trade dress de seu concorrente, o réu foi também obrigado ao pagamento de indenização ao autor, em virtude de sua conduta anticoncorrencial. Vale ressaltar que a reparação civil, nesses casos, tem respaldo no art. 209 da LPI, que assim preconiza: “Fica ressalvado ao prejudicado o direito de haver perdas e danos em ressarcimento de prejuízos causados por atos de violação de direitos de propriedade industrial e atos de concorrência desleal não previstos nesta Lei, tendentes a prejudicar a reputação ou os negócios alheios, a criar confusão entre estabelecimentos comerciais, industriais ou prestadores de serviço, ou entre os produtos e serviços postos no comércio”. desenvolvimento tecnológico e econômico do País, efetua-se mediante: (...) V – repressão à concorrência desleal”. 10. Ap. 0340728-98.2009.8.26.0000, 10ª Câmara de Direito Privado. DOUTRINA . PROPRIEDADE INTELECTUAL TRADEDRESSIMITAÇÃO E CONCORRÊNCIA DESLEAL 199 Comentando o instituto, DENIS BORGES BARBOSA pondera que, além “dos artigos da LPI que protegem e possibilitam a tutela civil e o ressarcimento por perdas e danos, ainda é possível se valer dos artigos 186 e 927 do código civil de 2002”11. Importante esclarecer que o trade dress não precisa estar registrado para que se busque sua proteção em juízo. Como explica o especialista na área, GUSTAVO PIVA DE ANDRADE, “a própria lei brasileira, inclusive, salienta que o fato gerador do ato ilícito é o desvio fraudulento de clientela”. Assim, “mesmo que o trade dress não esteja registrado, o empresário pode buscar proteção sobre a impressão visual do seu produto ou serviço com base nas regras de concorrência”. Além disso, nem sempre o trade dress é passível de registro, porquanto, por muitas vezes, não pode ser enquadrado no conceito de marca ou desenho industrial. É o caso, por exemplo, da identidade visual de lojas, que envolve não apenas cores, símbolos, etc., mas, muitas vezes, a organização e disposição interna de móveis e objetos. Em outras palavras, o registro do trade dress não é condição indispensável para que se pretenda proibir a prática de concorrência desleal por imitação. Assim decidiu o Colendo Tribunal de Justiça do Estado de São Paulo, em brilhante e recente decisão relatada pelo Des. RAMON MATEO JR.: “É certo inexistir nos autos notícia do registro da marca mista da autora, solicitado antes mesmo do ajuizamento da presente demanda. Esse aspecto, entretanto, não apresenta qualquer relevo. O pedido de registro da marca mista (correspondente ao nome e ao desenho), pendente de aprovação, assegura à autora ‘zelar pela sua integridade material ou reputação. Esse depósito ou requerimento, a princípio, assegura a precedência e a proteção contra a utilização ilícita por terceiros.’ (Apelação Cível n. º 016567735.2007.8.26.0100, Rel. Des. Francisco Loureiro). Logo, ainda que ausente o registro, irrecusável possuir a autora direito de ver salvaguardada a trade-dress de seu produto. 11. Do trade dress e suas relações com a significação secundária. Disponível em: http://www.denisbarbosa.addr. com/arquivos/200/propriedade/trade_dress.pdf. REVISTA DO INSTITUTO DOS ADVOGADOS DE SÃO PAULO v. 35, JANEIRO - JUNHO 2015 200 A alegação da ré, no sentido de comercializar os produtos anteriormente à autora, desde 2002, sobre não haver sido corroborada com qualquer prova nos autos, não merece acolhida. E, de toda sorte, a autora demonstrou que comercializa seus produtos denominados Doguitos, desde 2001 (fl. 95). Logo, ainda que o pedido de registro da marca mista tenha sido levado a efeito em 2012, tal aspecto não possui qualquer relevância. Pois a colocação do produto Doguitos no mercado é anterior ao produto da ré” 12. Nos Estados Unidos, igualmente, o Lanham Act confere a mesma proteção para o trade dress registrado ou não registrado, como aponta GUSTAVO PIVA DE ANDRADE em seu detalhado estudo, citando decisão da Suprema Corte Americana nesse sentido: “The Supreme Court interprets this section as having created a federal cause of action for infringement of unregitered trade mark or trade dress and concludes that such a mark or trade dress should receive essentially the same protection as those that are registered’ (Two Pesos, Inc v. Taco Cabana, Inc. 505 U.S. 763, 1992)”13. Uma vez registrado, vale dizer, o trade dress estará protegido não apenas pelas regras que regem a concorrência, mas também pelas normas de propriedade intelectual. Eventual imitação do trade dress, nesses casos, importará também, portanto, em contrafação. São diversas as vantagens de se registrar o trade dress quando possível. Ao fazê-lo, o titular efetivamente adquire direitos de propriedade sobre o signo e pode, pois, licenciálo e aliená-lo. Além disso, poderá basear-se nos dispositivos legais relativos à infração de marca ou desenho industrial para combater eventuais imitações, como já dito. Ainda, com o registro, o titular adquire direitos exclusivos sobre o trade dress em todo o território nacional, o que afasta eventuais argumentos do infrator no sentido de que inexiste relação de concorrência entre as empresas pelo fato de atuarem em diferentes territórios (estados, por exemplo). 12. Ap. 0011981-66.2013.8.26.0100, 2ª Câmara Reservada de Direito Empresarial. E, no mesmo sentido: TJSP, Ap. 374.951.4/8-00. 13. Ob. cit., p. 8. DOUTRINA . PROPRIEDADE INTELECTUAL TRADEDRESSIMITAÇÃO E CONCORRÊNCIA DESLEAL 201 De se ponderar, ainda, que a existência do registro facilita também a obtenção de liminares em juízo. Nas palavras do autor supracitado, “influenciados pelas características do sistema atributivo, juízes brasileiros se sentem mais confortáveis em conceder tutelas de urgência baseados em um título de propriedade, validamente expedido pelo órgão competente, do que baseados somente no instituto da concorrência desleal”. Em suma: quando viável, o registro do conjunto-imagem é recomendável – ainda que não seja imprescindível, como visto, para que se busque protegê-lo. Superada a questão do registro, há de se avaliar quais elementos serão considerados pelo juízo quando do julgamento de uma disputa judicial envolvendo a identidade visual de um produto, serviço ou estabelecimento. Ou seja: o que deverá ser demonstrado pela empresa que alega a imitação de seu trade dress para que consiga proibir seu uso por terceiros concorrentes e, ainda, receber indenização pelos danos que experimentou em virtude da suposta infração. 3. ELEMENTOS CARACTERIZADORES DA INFRAÇÃO DO TRADE DRESS Essencialmente, são dois os fatores que devem estar presentes para que se consiga obter em juízo a proteção do trade dress: (a) distintividade do conjunto-imagem e (b) possibilidade de confusão ou associação (desvio de clientela). Discorreremos, a seguir, sobre cada um de tais elementos. A) DISTINTIVIDADE A distintividade pode ser descrita como a identidade única conferida ao produto ou ao serviço pelo conjunto-imagem, que o distingue e diferencia dos demais. Como explica CASSIANO RICARDO GOLOS TEIXEIRA em artigo publicado na Revista Eletrônica do IBPI14, “o primeiro ponto da avaliação do conceito de trade dress seria o aspecto inerentemente distintivo que se resume justamente à habilidade do trade dress servir como função para identificar a fonte dos produtos e serviços, sendo adquirida ao longo do uso extensivo da ‘aparência’”. 14. Concorrência desleal: Trade Dress. In: Revista Eletrônica do IBPI, 2009, p. 8. Disponível em: http://ibpibrasil.org/ ojs/index.php/Revel/article/view/17/17. REVISTA DO INSTITUTO DOS ADVOGADOS DE SÃO PAULO v. 35, JANEIRO - JUNHO 2015 202 Assim, para ser considerado distintivo, o conjunto-imagem deve ser hábil a destacar determinado produto, serviço ou estabelecimento em relação aos seus concorrentes de mercado. GUSTAVO PIVA DE ANDRADE pondera que “o escopo de proteção conferido ao trade dress é diretamente proporcional ao seu grau de disntintividade. Trade dresses únicos e absolutamente distintitvos são merecedores de um amplo escopo de proteção”15. Caracterizada a distintividade do trade dress, dever-se-á verificar, no caso concreto, se a similaridade existente entre os conjuntos-imagem sob análise causa ou poderá vir a causar, futuramente, confusão entre produtos ou serviços. B) POSSIBILIDADE DE CONFUSÃO OU ASSOCIAÇÃO – DESVIO DE CLIENTELA A simples possibilidade de confusão, vale dizer, é reconhecida pela jurisprudência como suficiente para a proteção do trade dress. Nesse sentido, pontua o mesmo autor, em outro artigo de sua autoria sobre o tema16: “É interessante notar que a lei brasileira proíbe não apenas a confusão concreta como também a possibilidade de confusão entre os produtos. O tipo mais comum de confusão ocorre quando o novo competidor tenta aproximar a embalagem do seu produto da embalagem do produto líder de mercado. Tratase de uma forma de concorrência desleal e já existem diversos precedentes no Judiciário brasileiro atestando a ilicitude dessa conduta (vide Sanofi v.H.B. Farma, 2003, Sanofi v. Vitapan, 2006)” . Sobre a confusão, explica o renomado jurista JOSÉ CARLOS TINOCO SOARES: “Como exemplo flagrante dessa modalidade temos a hipótese em que são reproduzidos ou imitados os característicos do produto, de sua embalagem, de sua forma de apresentação no mercado, aliados ao emprego de sinais distintivos (marcas nominativas ou figurativas, tipos de letra, emblemas, desenhos e outros), com o emprego ou não das expressões de propaganda que salientam as qualidades do produto ou do estabelecimento. O conjunto levará fatalmente os menos avisados a erro e confusão quanto à origem ou PROCEDÊNCIA DO PRODUTO”17. 15. Ob. cit., p. 12. 16.A proteção do ‘’trade dress’’ na área farmacêutica. Disponível em: http://www.dannemann.com.br/dsbim/ Biblioteca_Detalhe.aspx?&ID=392&pp=1&pi=2. 17. Apud NEWTON SILVEIRA. Estudos e Pareceres de Propriedade Intelectual. Rio de Janeiro: Ed. Lumen Juris, 2008, p.437. DOUTRINA . PROPRIEDADE INTELECTUAL TRADEDRESSIMITAÇÃO E CONCORRÊNCIA DESLEAL 203 De se ponderar, ainda, que não só a confusão, mas também a associação indevida pode ser reconhecida como desvio fraudulento de clientela. A associação indevida, decorrente do chamado “aproveitamento parasitário”, resulta na obtenção de vantagem, pela empresa infratora, a partir do uso de trade dress pioneiro ou já conhecido no mercado. Nesses casos, ainda que não haja aquisição errônea do produto, o infrator se aproveita dos esforços empreendidos pelo criador do conjunto-imagem copiado (especialmente de marketing), visando a facilitar o reconhecimento e a venda de seu bem no mercado. A associação indevida também gera, portanto, desvio de clientela e, assim, é igualmente considerada prática anticoncorrencial, inclusive para a finalidade de proteção do trade dress. Assim, embora menos evidente do que a confusão, a associação indevida tem sido reconhecida como infração pelos tribunais brasileiros. Comenta GUSTAVO PIVA DE ANDRADE nesse sentido: “Hoje já existem diversos julgados que atestam a infração não só em função da errônea aquisição de um produto pelo outro, como também em decorrência da associação fraudulenta, capaz de transmitir indevidamente ao produto entrante os mesmos valores e atributos do produto tradicional”18. Hipótese muito comum e que facilita a visualização da associação indevida na prática diz respeito às fábricas de medicamentos genéricos que, por vezes, lançam novos produtos no mercado, reproduzindo a impressão visual do medicamento de referência, de maneira idêntica, adicionando apenas a letra “G” na embalagem. Haverá nesses casos, indubitavelmente, aproximação indevida pelo consumidor. Em suma, é essencial, portanto, que estejam presentes os dois elementos referidos (distintividade e confusão/associação) para que se reconheça o ato ilícito praticado pelo concorrente e, assim, o dever de indenizar. 4. DEVER DE INDENIZAR No que diz respeito ao dever de indenizar nos casos em que há imitação do trade dress (consagrado, como mencionado, no art. 209 da LPI19), imprescindível examinar 18. Ob. cit., p. 13. 19.“Fica ressalvado ao prejudicado o direto de haver perdas e danos em ressarcimento de prejuízos causados 204 REVISTA DO INSTITUTO DOS ADVOGADOS DE SÃO PAULO v. 35, JANEIRO - JUNHO 2015 como a questão da necessidade de prova dos prejuízos é vista pela doutrina e, ainda, como vem sendo tratada na jurisprudência dos tribunais brasileiros. De acordo com um dos maiores doutrinadores na matéria, GAMA CERQUEIRA, a prática do ato ilícito (anticoncorrencial) é suficiente para que surja a obrigação de reparação: “A simples violação do direito obriga à satisfação do dano, na forma do art. 159 do Cód. Civil, não sendo, pois, necessário, ao nosso ver, que o autor faça a prova dos prejuízos no curso da ação. Verificada a infração, a ação deve ser julgada procedente, condenando-se o réu a indenizar os danos emergentes e os lucros cessantes (Cód. Civil, art. 1.059), que se apurarem na execução. E não havendo elementos que bastem para se fixar o quantum dos prejuízos sofridos, a indenização deverá ser fixada por meio de arbitramento, de acordo com o art. 1.553 do Cód. Civil”20. No mesmo sentido tem se posicionado o Colendo Superior Tribunal de Justiça ao interpretar o art. 209 da LPI, reconhecendo repetidas vezes o dever de indenizar na hipótese sob análise, em virtude do dano patrimonial presumido sofrido pelo autor da ação: “PROCESSUAL CIVIL. AGRAVO REGIMENTAL NO AGRAVO EM RECURSO ESPECIAL. DANOS MORAIS. CONTRAFRAÇÃO. NECESSIDADE DE COMPROVAÇÃO. PRECEDENTES. 1. Conforme a jurisprudência desta Corte, em se tratando de direito de marcas, o dano material pode ser presumido, pois a violação do direito é capaz de gerar lesão à atividade empresarial do titular, tais como, o desvio de clientela e a confusão entre as empresas. Por outro lado, há a necessidade de comprovação do efetivo dano moral suportado pela empresa prejudicada pela contrafação, uma vez que, a indenização extrapatrimonial está ligada à pessoa do titular do direito. 2. AGRAVO REGIMENTAL A QUE SE NEGA PROVIMENTO”21. Na linha do entendimento do STJ, veja-se, também, recente julgado do TJSP, em que o ilustre relator do acórdão, Des. CLÁUDIO GODOY, entendeu que o dano material está in re ipsa: por atos de violação de diretos de propriedade industrial e atos de concorrência desleal não previsto nesta Lei, tendentes a prejudicar reputação ou os negócios alheios, a criar confusão entre estabelecimentos comercias, indústrias ou prestadores de serviço, ou entre os produtos e serviços postos no comércio”. 20. Tratado da Propriedade Industrial. São Paulo: Ed. Lumen Juris, 2012, vol. II, p. 218. 21. AgRg no AREsp 51.913/SP, Quarta Turma, Rel. Min. Luis Felipe Salomão. DOUTRINA . PROPRIEDADE INTELECTUAL TRADEDRESSIMITAÇÃO E CONCORRÊNCIA DESLEAL 205 “Propriedade industrial. Trade dress. Reprodução pelos réus do mesmo conjuntoimagem para a comercialização de produto concorrente. Concorrência desleal. Conduta predatória tipificada no art. 195, II, da Lei 9.279/96. Divulgação, por exrepresentante comercial da autora, da informação de que ela havia encerrado suas atividades. Prejuízo havido e mesmo presumido. Liquidação por arbitramento, nos termos dos artigos 208 e 210 da Lei 9.279/96. Honorários contratuais hão também de ser ressarcidos. Inteligência do art. 389 do CC. Sentença revista. Recurso provido”22. Não se trata, porém, de questão sedimentada na jurisprudência. Parte dos julgadores ainda entende que, em se tratando de violação a direito de propriedade intelectual ou ato de concorrência desleal, o dano – assim como o ato ilícito e o nexo causal - deve ser demonstrado pelo autor da ação em que se busca reparação civil23. Assim, ideal seria que a questão da necessidade de prova do prejuízo quando evidenciada a imitação do trade dress fosse pacificada na jurisprudência, especialmente em atenção ao princípio da segurança jurídica e da isonomia, assegurados na Constituição Federal. 5.CONCLUSÃO Realizadas as breves ponderações acima acerca do tema, verifica-se, em síntese, que, embora não haja previsão legal expressa de proteção ao trade dress no Brasil, o ordenamento jurídico brasileiro conta com meios eficazes de combate à concorrência desleal – perfeitamente aplicáveis às hipóteses de imitação do conjunto-imagem. Nota-se, também, que a jurisprudência dos tribunais brasileiros sobre o tema é bem desenvolvida e conta com diversas decisões que reforçam a importância do instituto, protegendo-o, por exemplo, independentemente de registro no INPI e pela simples possibilidade de confusão ou associação resultante da imitação do trade dress. Repisa-se, por fim, o antes exposto no sentido de que a questão relativa à necessidade de comprovação dos prejuízos materiais decorrentes da violação do conjunto-imagem merece especial atenção da jurisprudência, a fim de que se consolide um entendimento quanto ao dano nesses casos (se presumido ou não). 22. Ap. 0001513-77.2011.8.26.0176, 1ª Câmara Reservada de Direito Empresarial. No mesmo sentido: Ap. 001198166.2013.8.26.0100, 2ª Câmara Reservada de Direito Empresarial, Rel. Des. Ramon Mateo Jr. 23. Confiram-se, a respeito, no TJSP, EI 0065228-57.2011.8.26.0576/50000, Rel. Des. Alexandre Marcondes. 206 REVISTA DO INSTITUTO DOS ADVOGADOS DE SÃO PAULO v. 35, JANEIRO - JUNHO 2015 6. BIBLIOGRAFIA ANDRADE, Gustavo Piva de. O trade dress e a proteção da identidade visual de produtos e serviços. In: Revista da ABPI, nº 112, mai/jun 2011. ANDRADE, Gustavo Piva de. A proteção do ‘’trade dress’’ na área farmacêutica. Disponível em: http://www.dannemann.com.br/dsbim/Biblioteca_Detalhe. aspx?&ID=392&pp=1&pi=2. BARBOSA, Denis Borges. Do trade dress e suas relações com a significação secundária. Disponível em: www.denisbarbosa.addr.com/arquivos/200/propriedade/trade_dress. pdf CERQUEIRA, João da Gama. Tratado da Propriedade Industrial. Rio de Janeiro: Ed. Lumen Juris, 2012. GUSMÃO, José Roberto d’Affonseca; d’HANENS, Laetitia Maria Alice Pablo. Breves comentários sobre a proteção ao trade dress no Brasil. In: Revista dos Tribunais - RT 919, maio de 2012. SILVEIRA, Newton. Estudos e Pareceres de Propriedade Intelectual. Rio de Janeiro: Ed. Lumen Juris, 2008. SOARES, José Carlos Tinoco. Concorrência Desleal vs. Trade Dress e/ou Conjuntoimagem. Ed. Tinoco Soares. TEIXEIRA, Cassiano Ricardo Golos. Concorrência desleal: Trade Dress. In: Revista Eletrônica do IBPI, 2009. Disponível em: http://ibpibrasil.org/ojs/index.php/Revel/ article/view/17/17. http://www.tjsp.jus.br/. Acesso em: 10/3/2015. http://www.tjgo.jus.br/. Acesso em: 10/3/2015. SOBRE O NOVO CÓDIGO DE PROCESSO CIVIL O PROCEDIMENTO COMUM NO NOVO CÓDIGO DE PROCESSO CIVIL DOUGS BENDA Advogado. Membro da Comissão dos Novos Advogados do IASP. SUMÁRIO 1. Introdução; 2. Conceito e Estrutura do Teor Procedimental; 3. Aspectos Gerais da Lei Nº 8.046/2010; 4. Ponto Focal do Futuro Procedimento Comum; 5. Modificações Gerais no Novo Procedimento Comum; 6. Conclusão; 7. Bibliografia. RESUMO ABSTRACT Recentemente, tivemos a sanção presidencial quanto ao novo código de processo civil, o qual traz mudanças significantes na sociedade brasileira e no poder judiciário. Assim, já presenciamos alguns escritos e obras tratando das principais mudanças verificadas no texto legislativo, todavia, nenhuma tratando de modo claro e preciso quanto ao Procedimento Comum e suas nuances, especificamente no que concerne ao novo rito procedimental. A idéia principal é dissertar sobre as principais diferenças e adequações de procedimentos previstas, dando enfoque ao Procedimento Comum. We have recently had the presidential approval of the new Brazilian Code of Civil Procedure, which brings significant changes to the Brazilian society and the judiciary branch. Thus, we have already followed some writings and works addressing the major changes of the new Code. However, none of them addressed, in a clear and accurate manner, the Common Procedure and its nuances, specifically regarding the new procedure. The main idea is to address the main procedural differences and adequacy sought, focusing on the Common Procedure. PAVRAS-CHAVE KEYWORDS Novo código de processo civil. Procedimento comum. Rito. Principais alterações. New code of civil procedure. Common procedure. Procedure. Main changes. 210 REVISTA DO INSTITUTO DOS ADVOGADOS DE SÃO PAULO v. 35, JANEIRO - JUNHO 2015 1. INTRODUÇÃO: Tratando da realidade do Novo Código de Processo Civil (Projeto de Lei do Senado nº 166/2010 e Projeto de Lei na Câmara dos Deputados nº 8.046/2010), que prevê a substituição do Código de Processo Civil Atual (Lei nº 5.689, de 11.01.1973), especificamente no que concerne ao novo rito procedimental, e ainda, sem o condão principal de esgotar na íntegra o tema que traz calorosos debates, todavia, trazendo abordagens interessantes e corriqueiras na esfera judiciária, pretendemos aprofundar algumas questões e conhecimentos que serão necessários aos militantes do Judiciário, inclusive, dissertando sobre as principais diferenças e adequações de procedimento previstas. Temos que haverá certa flexibilidade de rito procedimental, podendo o magistrado ajustar de ofício o procedimento mais adequado para o trâmite processual, sempre observando alguns conceitos processuais. De imediato, apontamos a inserção de uma parte geral com fortes preceitos fundamentais no referido texto de lei. Na citada parte geral, notamos o impute de certo rol de princípios presentes em Carta Magna e Direito Constitucional puro, os quais irão reger nosso novo Código. Com isso, não seria demais falarmos em Código de Processo Civil constitucionalizado. Assim, temos grande reafirmação dos conceitos existentes em nossa Constituição Federal, gerando até mesmo apontamento de alguns juristas sobre a real necessidade de tal alocação. Importante ressaltar que, a inclusão de princípios gerais de Direito Constitucional no Código de Processo Civil, pensando amplamente, poderá gerar certa confusão doutrinária e legal, posto que, observando preliminarmente e sendo extremista na análise, seria possível ingressar eventualmente ou conjuntamente com Recurso Especial e Recurso Extraordinário numa mesma decisão, pois teríamos conceitos materiais e em alguns casos formais, realmente conflitantes, não trazendo nesse ponto a famosa celeridade processual desejada e respectiva economia processual, ao identificarmos mais de uma hipótese de recurso para mesma decisão. No referido Novo Código, existe ainda grande influência da “Commom Law”, pois será nos casos possíveis apresentada uma tentativa de transação imediata, isto é, no início efetivo do embate judicial. Tal fato não diminui a tentativa de conciliação que será DOUTRINA . SOBRE O NOVO CÓDIGO DE PROCESSO CIVIL O PROCEDIMENTO COMUM NO NOVO CÓDIGO DE PROCESSO CIVIL 211 efetuada no transcorrer do pleito judicial. Ademais e especificamente tratando desse artigo jurídico, o elaborado Novo Código de Processo Civil possuirá algumas mudanças significantes no que condiz aos procedimentos atuais denominados de ordinário, sumário e especiais devidamente previstos na atualidade nos Artigos 270, 890 e seguintes do CPC e, ainda, outros tantos apontamentos em legislação extravagante, como passaremos a pormenorizar na seqüência. A idéia principal, inclusive no aspecto de alterar a estrutura procedimental, é dar simplicidade à normativa processual civil e ao processo em si, com o objetivo de fazer com que o juiz deixe, sempre que possível for, de se preocupar tanto com aspecto formal da demanda, e sim, com o aspecto material. Portanto, o intuito do código projetado é justamente dar autonomia para as partes se preocuparem mais em fazer boas provas, e ainda, tratar a demanda com caráter justamente conciliatório. Com tal viés e em conjunto com livre acesso ao judiciário, a celeridade processual e economia processual, poderemos ter uma ótima prestação jurisdicional, com efetividade judicial. Assim, a noção de efetividade do processo, embora abrangente e dotada de “dose inevitável de fluidez”, conforme alerta Barbosa Moreira1 pode ser compreendida como uma série de exigências que convergem, em síntese, para a concretização de um processo adaptável ao caso concreto, aproximado da verdade dos fatos, breve e voltado à realização da tutela jurisdicional requerida. Um processo efetivo deve garantir, necessária e primordialmente, a observância de três fatores fundamentais: o tempo razoável, o contraditório e a realização do direito. É de ressaltar que é justamente esse o intuito perquirido no Código Projetado pelos legisladores e respectiva comissão, que fora presidida pelo notável Ministro Luiz Fux, do Superior Tribunal de Justiça (STJ), e na versão substitutiva (Câmara dos Deputados), sob batuta do relator Deputado Paulo Teixeira. 1. MOREIRA, José Carlos Barbosa. Efetividade do processo e técnica processual.Temas de direito processual. Sexta série. São Paulo: Saraiva, 1997. 212 REVISTA DO INSTITUTO DOS ADVOGADOS DE SÃO PAULO v. 35, JANEIRO - JUNHO 2015 2. CONCEITO E ESTRUTURA DO TEOR PROCEDIMENTAL: Ainda na atualidade, é comum notar certa confusão conceitual sobre procedimento, e não raro, conflito com o conceito de processo judicial. O projeto do novo código de processo civil nada mais fez do que sintetizar o processo cautelar do Código de Processo Civil vigente com o processo de conhecimento, originando de modo simples o novo procedimento comum, mais abrangente, e assim, com amplitude de normas. Nesse mesmo prisma, existirá a extinção do atual procedimento sumário, e ainda, do ordinário, os quais passarão em conjunto a serem nomeados de procedimento comum. Na visão do termo procedimento, temos que o respectivo é a forma pela qual ocorre a movimentação do processo, isto é, a seqüência pela qual ocorrem as práticas dos atos judiciais. Com tal exposição, fica notório que todo processo segue determinado procedimento, o que não ocorre no inverso. De acordo com o Professor J. E Carreira Alvim2, temos que: “...o processo é uma viagem e o procedimento é o itinerário perseguido para se realizar a viagem...”. Analisando esse preceito, notamos que o procedimento é uma noção puramente formal, circunscrita à coordenação de atos que se sucedem logicamente, isto é, o meio pelo qual se materializam as fórmulas e atos legais do processo. Procedimento é o modo de realização do processo, ou seja, o rito processual. Observando a estrutura do CPC projetado e contextualizando o mesmo, concluímos que o código ter-se-á as seguintes divisões estruturais: a Parte Geral e a Parte Especial. A Parte Geral conterá seis livros (Livro I: Das Normas Processuais Civis; Livro II: Da Função Jurisdicional; Livro III: Dos Sujeitos do Processo; Livro IV: Dos Atos Processuais; Livro V: Da Tutela Antecipada; Livro VI: Formação, suspensão e extinção do processo). Já a parte abordada no presente trabalho, consta da Parte Especial, que conterá três livros (Livro I: Do processo de conhecimento e do cumprimento de sentença; Livro II: Do Processo de Execução; Livro III: Dos Processos nos Tribunais e dos Meios 2. ALVIM, J. E Carreira. O Novo Código de Processo Civil. São Paulo: Editora Campus Jurídico, 2013. DOUTRINA . SOBRE O NOVO CÓDIGO DE PROCESSO CIVIL O PROCEDIMENTO COMUM NO NOVO CÓDIGO DE PROCESSO CIVIL 213 de Impugnação das Decisões Judiciais). Haverá, ainda, um último Livro, denominado de Livro Complementar, que conterá as disposições finais e transitórias Não raro, notamos tratamentos severos quanto ao fato de acreditarem que a possibilidade de flexibilização de procedimentos e demais nuances pelo Código Projetado irá trazer uma justiça efetiva e célere, o que para alguns juristas não seria concebível na prática em termos globais. Sem dúvidas, ao adequar o procedimento ao caso, o juiz pode escolher uma forma já existente ou fixar tramitação sucedânea3. Voltaremos a tratar dos itens analisados supra de modo mais detalhado. 3. ASPECTOS GERAIS DA LEI Nº 8.046/2010: Elucidando o intróito procedimental no ilustre Novo Código de Processo Civil, podemos apontar simplificando e muito o teor conceitual, que teremos dois procedimentos, quais sejam, o procedimento comum e o especial. Com isso, não sendo identificada a demanda e suas nuances no rol do procedimento especial, automaticamente entenderemos a ação como sendo do procedimento comum. Veja que, o intuito é realmente dar uma autonomia maior aos jurisdicionados e ao sistema judicial como um todo, alterando a instrumentalidade em prol da real busca da verdade jurídica. O Código projetado engloba o processo cautelar no próprio processo de conhecimento, com fito de evitar repetição de processos, o que é realmente inútil, caminhando em total sentido contrário com o requisitado do judiciário na atualidade. Esse novo estilo de procedimento visa claramente à simplificação dos atos processuais, trazendo a desburocratização cartorária, os atos certos que deverão ser praticados pelo escrivão, a possibilidade do Advogado efetuar a intimação por correio de parte contrária e suas testemunhas e, muito importante, a devida utilização do processo eletrônico. 3. GAJARDONI, Fernando da Fonseca. Flexibilização procedimental: um novo enfoque para o estudo do procedimento em matéria processual, São Paulo, Atlas, 2008. 214 REVISTA DO INSTITUTO DOS ADVOGADOS DE SÃO PAULO v. 35, JANEIRO - JUNHO 2015 O Novo Código de Processo Civil confere ao juiz o poder (e a responsabilidade) de dar flexibilidade ao procedimento, passando a lhe ser possível dilatar os prazos processuais e alterar a ordem de produção dos meios de prova, sempre que necessário às necessidades do conflito. A novidade propulsiona o alcance da efetividade à tutela do direito por meio da concretização do princípio da adequação, que impõe ao processo a sua compatibilidade com os direitos por ele tutelados, os sujeitos envolvidos e os seus fins. No projeto, os legisladores e juristas pegam mesclas de Rito Sumário e Ordinário, organizando o novo Procedimento Comum. Tratando de exemplo claro, temos que o Procedimento Comum será utilizado toda vez que a ação versar sobre interesses indisponíveis, tal como matérias envolvendo Família e Sucessões. No que concernem as novidades do Projeto e no procedimento da ação, vimos que ele prevê a tentativa de audiência de conciliação / mediação, que não será regida por um magistrado, e sim, pelos mediadores e conciliadores. Caso o acordo ocorra de modo efetivo, o juiz homologará o pleito judicial. Entretanto e para que funcione efetivamente, precisamos de forte iniciativa do setor político e governamental no sentido de concretização e provimento de concurso público com fito de contratação dos respectivos conciliadores e mediadores. Alternando um pouco os temas do projeto, passamos a tratar da inversão do ônus da prova (atualmente prevista no Artigo 333 do atual Código de Processo Civil), observando a adequação da necessidade de produção de provas no caso em concreto. Com isso, temos que no projeto a inversão do ônus da prova depende de atitude do juiz, que deverá comunicar as partes sobre seu entendimento e, eventual inversão. Portanto, o magistrado pode inverter automaticamente o ônus da prova, cabendo Agravo de Instrumento de tal decisão e se o caso. No que tange a intervenção de terceiros, fica claro o que podemos entender por litisconsórcios necessários e afins. Ainda, não há efetivamente uma nomeação à autoria. Com isso, se o réu alegar ser parte ilegítima na ação, poderá o juiz corrigir a parte envolvida. A oposição no Projeto do Novo Código Civil passa a ser Procedimento Especial, passando assim a ser sempre Incidental. DOUTRINA . SOBRE O NOVO CÓDIGO DE PROCESSO CIVIL O PROCEDIMENTO COMUM NO NOVO CÓDIGO DE PROCESSO CIVIL 215 Notem que a intenção é dar celeridade e simplicidade ao processo judicial, realmente desburocratizando a lide. Igualmente, tratando dos Julgamentos no Projeto, vislumbramos e citamos novamente a forte presença da “Commom Law”. Com tal feito, o magistrado irá decidir a demanda com avaliação dos precedentes existentes nos Tribunais Superiores. As vantagens de tal julgamento são: previsibilidade, estabilidade e segurança jurídica. Em contrapartida, temos como forte desvantagem a falta de análise conceitual de precedente, ou seja, existem divergências sobre precedentes. Ademais, os precedentes só cabem (via de regra) em matéria de Direito, o que deve ser sempre avaliado no pleito decisório. Sem nos furtarmos da busca do judiciário consubstanciados em fatos relevantes e inerentes ao direito personalíssimo, correto e real, a eventual análise simplista de uma determinada ação em detrimento de julgados análogos, pode ceifar um direito em seu nascedouro e de maneira cruel, sendo que devemos nos atentar a fatos atentatórios do atendimento judicial. Outra novidade no Projeto nº 166/2010 (Projeto de Lei do Senado) e Projeto nº 8.046/2010 (Projeto na Câmara dos Deputados), é que a figura da reconvenção no Procedimento Ordinário (art.315 a 318 do CPC vigente), seria substituída no novo Procedimento Comum do Código Projetado por um pedido contraposto (art.326, Parágrafo 1 e 2, do PLS nº 166/2010), a ser deduzido no bojo da contestação, com o que se corporifica o princípio de que natureza dúplice da ação dúplice passa a ser a regra geral. Se a contestação pode abrigar o pedido contraposto, não haveria mais necessidade de reconvenção. Entretanto, é importante deixar consignado que a figura da Reconvenção retornou no Projeto de Lei atual tratado pela Câmara dos Deputados (nº 8.046/2010) sob o prisma do Artigo 344 e parágrafos, onde obteve novamente um destaque, e assim, hoje temos certa indefinição sobre sua efetivação ou não no Código Projetado. Com isso, a certeza quando da finalização do presente artigo, é que haverá Reconvenção, todavia, figurado como um pedido contraposto na contestação, ou seja, será alocado como tópico nessa peça, podendo tramitar em apartado, mesmo com julgamento improcedente do mérito da ação principal. 216 REVISTA DO INSTITUTO DOS ADVOGADOS DE SÃO PAULO v. 35, JANEIRO - JUNHO 2015 Algumas matérias, que atualmente são objeto de incidentes processuais específicos, como é o caso da impugnação ao valor da causa (art.261 do CPC), passam, na redação do Projeto, a ser passíveis de postulação dentro da contestação, sem necessidade de incidente apartado com autuação em apenso (arts. 294 do Projeto Substitutivo na Câmara dos Deputados nº 8.046/2010). São eliminadas, ainda, as exceções de suspeição e impedimento, dispondo o art.146 do Projeto nº 8.046/2010, em sua redação do substitutivo aprovado pelo Senado Federal em dezembro de 2010, que tais matérias deverão ser argüidas mediante simples petição, acompanhadas das respectivas provas documentais e/ou de rol de testemunhas, o que está, nitidamente, em consonância com a instrumentalidade que se pretende imprimir no processo. Muitos procedimentos especiais são extintos pelo Projeto, ficando estabelecido o uso do processo de conhecimento como processo padrão, com muito mais intensidade do que no Código atual. Falando de novidade no tema Julgamento no Projeto, vemos o Julgamento Antecipado Parcial, do qual caberá eventualmente Agravo de Instrumento. Exemplificando o apontado supra sobre Julgamento Antecipado Parcial, podemos citar uma determinada Ação de Prestação de Alimentos cobrando originariamente 72 (setenta e duas) parcelas. O magistrado, verificando o caso em concreto e percebendo juridicamente ser o prazo de prescrição de tal cobrança 05 (cinco) anos, isto é, 60 (sessenta) parcelas, poderá declarar de plano a prescrição de 12 (doze) parcelas, dando prosseguimento na ação no que concerne 60 (sessenta) parcelas. Pelo conteúdo exposto, vislumbramos uma maior autonomia ao magistrado, inclusive, no sentido de fornecer diretrizes para julgar o pleito judicial em prazo menor temporal, ocasionando agilidade à prestação jurisdicional. 4. PONTO FOCAL NO FUTURO PROCEDIMENTO COMUM: Conforme anteriormente destacado, temos algumas simplificações no rumo procedimental no Projeto do Novo Código, sendo a extinção do procedimento sumário a primeira que abarcaremos. O procedimento sumário, em suma, nunca cumpriu com seu principal objetivo DOUTRINA . SOBRE O NOVO CÓDIGO DE PROCESSO CIVIL O PROCEDIMENTO COMUM NO NOVO CÓDIGO DE PROCESSO CIVIL 217 que era proporcionar a resolução de conflitos num menor prazo do que o obtido pelo rito ordinário, e assim, é justo no Código Projetado alterar o respectivo para o novo procedimento comum, onde passaremos a expor. 4.1. EXTINÇÃO DO PROCEDIMENTO COMUM SUMÁRIO: Visando trazer celeridade ao processo, e ainda, economia processual respeitando preceitos fundamentos, houve por bom entendimento finalizar o rumo procedimental denominado de Procedimento Comum Sumário, tornando-se regra o novo procedimento denominado comum, isto é, efetuando uma junção do antigo procedimento sumário com o ordinário, com determinada simplificação. Assim, notamos o feito ao ler o Artigo 319 do Projeto, que diz: Art. 319. Aplica-se a todas as causas o procedimento comum, salvo disposição em contrário deste Código ou de lei. Parágrafo único. O procedimento comum se aplica subsidiariamente aos demais procedimentos especiais e ao processo de execução. Alinhando o entendimento, vimos que a regra é a utilização do procedimento comum. Não menos importante, temos o momento da conversão e utilização do novo procedimento aos processos já em trâmite, onde teremos que observar o teor do dispositivo contido no Artigo 1.059 do Projeto, o qual relata: Art. 1.059. Ao entrar em vigor este Código, suas disposições se aplicarão desde logo aos processos pendentes, ficando revogada a Lei nº 5.869, de 11 de janeiro de 1973. § 1º As disposições da Lei nº 5.869, de 11 de janeiro de 1973, relativas ao procedimento sumário e aos procedimentos especiais, que forem revogadas, aplicar-se-ão às ações propostas até o início da vigência deste Código, desde que ainda não tenham sido sentenciadas. Pela análise do dispositivo supra, torna-se evidente que até o momento da sentença as ações serão observadas e tratadas pelo crivo do novo procedimento comum, sem qualquer prejuízo as partes da demanda. Esse momento de transição, ressaltando novamente, se faz necessário tão somente para ajustar os ritos de procedimento e suas particularidades, todavia, sem maior impacto no anteriormente tratado. REVISTA DO INSTITUTO DOS ADVOGADOS DE SÃO PAULO v. 35, JANEIRO - JUNHO 2015 218 Outra importante atualização de conceito se faz quanto às novas ações que ingressarão já sob batuta do Novo Projeto, principalmente no ato de comparecimento do réu ao processo e afins, onde melhor abordaremos no transcorrer do artigo. 5. MODIFICAÇÕES GERAIS NO NOVO PROCEDIMENTO COMUM: 5.1. DO DEVIDO COMPARECIMENTO DO RÉU AO PROCESSO: No Código de Processo Civil vigente, temos que a efetiva inclusão do réu no processo judicial se inicia (via de regra), com a respectiva apresentação de defesa no prazo de 15 (quinze) dias a contar da devida citação (arts. 297 c/c 241 do CPC). Já no novo Código Projetado, teremos a citação do réu para comparecimento em audiência de conciliação, podendo a audiência ser presidida por conciliador ou mediador, inclusive, necessário atentar-se ao aparelhamento (contratação), que o poder judiciário deverá tratar, para atender efetivamente a respectiva legislação. A intimação do autor, a partir de então, deverá ocorrer na pessoa do seu Advogado constituído. O prazo para contestar será de 15 (quinze) dias, igualmente o código vigente, ressalvando o momento do início de tal contagem, que será: a) da audiência de conciliação ou mediação em caso de não autocomposição; b) do protocolo do pedido de cancelamento da audiência apresentado pelo réu; c) nos demais casos, de acordo com o art. 231 – semelhante ao regramento atual; Tratando do Litisconsórcio passivo, observaremos os seguintes feitos e prazo para contestar: d) No caso de protocolo do pedido de cancelamento de audiência – o prazo para cada litisconsorte contestar fluirá independentemente; e e) da data da intimação do despacho que homologar a desistência da ação em relação a um dos litisconsortes, nos casos em que não se admita autocomposição. Assim, notaremos também os entendimentos elencados pelos artigos 231, 335 e 336 do Código Projetado, senão vejamos: DOUTRINA . SOBRE O NOVO CÓDIGO DE PROCESSO CIVIL O PROCEDIMENTO COMUM NO NOVO CÓDIGO DE PROCESSO CIVIL 219 231. Salvo disposição em sentido diverso, considera-se dia do começo do prazo quando: I – a citação ou a intimação for pelo correio, a data de juntada aos autos do aviso de recebimento; II – a citação ou a intimação for por oficial de justiça, a data de juntada aos autos do mandado cumprido; III – a citação ou a intimação se der por ato do escrivão ou do chefe de secretaria, a data da sua ocorrência; IV – a citação ou intimação for por edital, o dia útil seguinte ao fim da dilação assinada pelo juiz; V – a citação ou a intimação for eletrônica, o dia útil seguinte à consulta ao seu teor ou ao término do prazo para que a consulta se dê; VI – citação ou a intimação se realizar em cumprimento de carta, a data de juntada do comunicado de que trata o §5º deste artigo, ou, não havendo este, da juntada da carta aos autos de origem devidamente cumprida; VII – a intimação se der pelo Diário da Justiça impresso ou eletrônico, a data da publicação; VIII – a intimação se der por meio da retirada dos autos, em carga, do cartório ou da secretaria, o dia da carga. § 1º Quando houver mais de um réu, o dia do começo do prazo para contestar corresponderá à última das datas a que se referem os incisos I a VI do caput. § 2º Havendo mais de um intimado, o prazo para cada um é contado individualmente. § 3º Quando o ato tiver que ser praticado diretamente pela parte ou por quem, de qualquer forma, participe do processo, sem a intermediação de representante judicial, o dia do começo do prazo para cumprimento da determinação judicial corresponderá à data em que se der a comunicação. § 4º Aplica-se o disposto no inciso II do caput à citação com hora certa. Ainda, Art. 335. Se a petição inicial preencher os requisitos essenciais e não for o caso de 220 REVISTA DO INSTITUTO DOS ADVOGADOS DE SÃO PAULO v. 35, JANEIRO - JUNHO 2015 improcedência liminar do pedido, o juiz designará audiência de conciliação ou de mediação com antecedência mínima de trinta dias, devendo ser citado o réu com pelo menos vinte dias de antecedência. § 1º O conciliador ou mediador, onde houver, atuará necessariamente na audiência de conciliação ou de mediação, observando o disposto neste Código, bem como as disposições da lei de organização judiciária. § 2º Poderá haver mais de uma sessão destinada à conciliação e à mediação, não excedentes a dois meses da primeira, desde que necessárias à composição das partes. § 3º A intimação do autor para a audiência será feita na pessoa de seu advogado. § 4º A audiência não será realizada: I – se ambas as partes manifestarem, expressamente, desinteresse na composição consensual; II – no processo em que não se admita a autocomposição. § 5º O autor deverá indicar, na petição inicial, seu desinteresse na autocomposição, e o réu, por petição, apresentada com dez dias de antecedência, contados da data da audiência. § 6º Havendo litisconsórcio, o desinteresse na realização da audiência deve ser manifestado por todos os litisconsortes. § 7º A audiência de conciliação ou de mediação pode realizar se por meios eletrônicos, nos termos da lei. § 8º O não comparecimento injustificado do autor ou do réu à audiência de conciliação é considerado ato atentatório à dignidade da justiça e será sancionado com multa de até dois por cento da vantagem econômica pretendida ou do valor da causa, revertida em favor da União ou do Estado. § 9º As partes devem estar acompanhadas por seus advogados ou defensores públicos. § 10. A parte poderá constituir representante, por meio de procuração específica, com poderes para negociar e transigir. § 11. A autocomposição obtida será reduzida a termo e homologada por sentença. DOUTRINA . SOBRE O NOVO CÓDIGO DE PROCESSO CIVIL O PROCEDIMENTO COMUM NO NOVO CÓDIGO DE PROCESSO CIVIL 221 § 12. A pauta das audiências de conciliação ou de mediação será organizada de modo a respeitar o intervalo mínimo de vinte minutos entre o início de uma e o início da seguinte. e Art. 336. O réu poderá oferecer contestação, por petição, no prazo de quinze dias, cujo termo inicial será a data: I – da audiência de conciliação ou de mediação, ou da última sessão de conciliação, quando qualquer parte não comparecer ou, comparecendo, não houver autocomposição; II – do protocolo do pedido de cancelamento da audiência de conciliação ou de mediação apresentado pelo réu, quando ocorrer a hipótese do art. 335, § 4º, inciso I; III – prevista no art. 231, de acordo com o modo como foi feita a citação, nos demais casos. § 1º No caso de litisconsórcio passivo, ocorrendo a hipótese do art. 335, § 6º, o termo inicial previsto no inciso II será, para cada um dos réus, a data de apresentação de seu respectivo pedido de cancelamento da audiência. § 2º Quando ocorrer à hipótese do art. 335, § 4º, inciso II, e havendo litisconsórcio passivo, o autor desistir da ação em relação a réu ainda não citado, o prazo para resposta correrá da data de intimação do despacho que homologar a desistência. Não menos importante, é o prestígio e reconhecimento dado ao Advogado em si, a partir do momento da previsão legal das intimações serem efetuadas em nome do procurador devidamente constituído da parte. Com isso, é fato obrigatório as partes estarem representadas legalmente por Advogado. Outra questão inerente ao contencioso e que ajudará no combate as rotinas diárias, principalmente em empresas com grande número de litígios, é a possibilidade real de constituir preposto com poderes para transigir. No intuito claro de corroborar com a rapidez do serviço judiciário, e ainda, trazendo economia processual e ampliação do acesso ao judiciário em sentido lato, temos a possibilidade real de utilização de meios eletrônicos (cito Skype), para realização de audiência e oitiva de testemunhas, ou seja, a videoconferência se tornará cada vez mais efetiva no futuro código. 222 REVISTA DO INSTITUTO DOS ADVOGADOS DE SÃO PAULO v. 35, JANEIRO - JUNHO 2015 Fator importante é a diminuição de custos para as partes, ao ser permitido e utilizado as vias eletrônicas para realização de audiências e devida instrução processual, adequando-se ao caso real. Ainda tratando de audiência, as pautas deverão conter um mínimo de 20 minutos entre uma e outra, para a devida instrução do feito. Portanto, temos que o Código Projetado ataca a eficiência jurídica, dando mais hipóteses para soluções de conflitos judiciais. Por tais exposições, o projeto descreve mais eficiências jurídicas com o devido aproveitamento de alguns atos processuais, os quais trataremos no item em seqüência. 5.2. POSSIBILIDADES MATERIAIS DE DEFESA: Reforçando a idéia, o Código projetado tem o claro interesse de trazer celeridade e economia de atos processuais, para com isso, dar maior sincronia ao processo judicial, fato que é louvável. Partindo de tal premissa, avaliamos na contestação do novo procedimento comum, que alguns atos e peças jurídicas passarão a ser incorporadas na própria peça de defesa, como é o caso da impugnação ao valor da causa. Dando robustez ao pleito, transcrevo o Artigo 294 do projeto: 294. O réu poderá impugnar, em preliminar da contestação, o valor atribuído à causa pelo autor, sob pena de preclusão; o juiz decidirá a respeito, impondo, se for o caso, a complementação das custas. A decisão do juiz que acolher a impugnação do réu é impugnável por agravo de instrumento, salvo se for um capítulo da sentença, quando então será impugnável por apelação. Ademais, alguns atos processuais serão sucumbidos, cito, por exemplo, a incompetência relativa. Após tal análise, resta claro que a contestação passará a concentrar toda a matéria da defesa, no claro esforço de dar unicidade a peça e ato de defesa efetiva, mais uma vez reforçando a celeridade. Outra mudança é o fato da suspeição passar a ser veiculada por intermédio de petição autônoma, sendo tratado tal aspecto no Artigo 146 do projeto, o qual apontamos: DOUTRINA . SOBRE O NOVO CÓDIGO DE PROCESSO CIVIL O PROCEDIMENTO COMUM NO NOVO CÓDIGO DE PROCESSO CIVIL 223 Art. 146. No prazo de quinze dias, a contar do conhecimento do fato, a parte alegará o impedimento ou a suspeição, em petição específica dirigida ao juiz da causa, na qual indicará o fundamento da recusa, podendo instruí-la com documentos em que se fundar a alegação e com rol de testemunhas. § 1º Se reconhecer o impedimento ou a suspeição ao receber a petição, o juiz ordenará imediatamente a remessa dos autos a seu substituto legal; caso contrário, determinará a autuação em apartado da petição e, no prazo de quinze dias, apresentará suas razões, acompanhadas de documentos e de rol de testemunhas, se houver, ordenando a remessa do incidente ao tribunal. § 2º Distribuído o incidente, o relator deverá declarar os efeitos em que é recebido. Se o incidente for recebido sem efeito suspensivo, o processo voltará a correr; se com efeito suspensivo, permanecerá suspenso o processo até o julgamento do incidente. § 3º Enquanto não for declarado o efeito em que é recebido o incidente ou quando este for recebido com efeito suspensivo, a tutela de urgência será requerida ao substituto legal. § 4º Verificando que a alegação de impedimento ou de suspeição é improcedente, o tribunal rejeitá-la-á. Acolhida a alegação, tratando-se de impedimento ou de manifesta suspeição, condenará o juiz nas custas e remeterá os autos ao seu substituto legal; neste caso, pode o juiz recorrer da decisão. § 5º Reconhecido o impedimento ou a suspeição, o tribunal fixará o momento a partir do qual o juiz não poderia ter atuado. § 6º O tribunal decretará a nulidade dos atos do juiz, se praticados quando já presente o motivo de impedimento ou de suspeição. No mesmo sentido, discorremos sobre o Artigo 338 do projeto, trazendo as incumbências do Réu: Art. 338. Incumbe ao réu, antes de discutir o mérito, alegar: I – inexistência ou nulidade da citação; II – incompetência absoluta e relativa; III – incorreção do valor da causa; 224 REVISTA DO INSTITUTO DOS ADVOGADOS DE SÃO PAULO v. 35, JANEIRO - JUNHO 2015 IV – inépcia da petição inicial; V – perempção; VI – litispendência; VII – coisa julgada; VIII – conexão; IX – incapacidade da parte, defeito de representação ou falta de autorização; X – ausência de legitimidade ou de interesse processual; XI – falta de caução ou de outra prestação que a lei exige como preliminar; XII – indevida concessão do benefício da gratuidade de justiça. § 1º Verifica-se a litispendência ou a coisa julgada quando se reproduz ação anteriormente ajuizada. § 2º Uma ação é idêntica a outra quando possui as mesmas partes, a mesma causa de pedir e o mesmo pedido. § 3º Há litispendência quando se repete ação que está em curso. § 4º Há coisa julgada quando se repete ação que já foi decidida por decisão transitada em julgado. § 5º Excetuada a incompetência relativa, o juiz conhecerá de ofício das matérias enumeradas neste artigo. § 6º O juiz observará o disposto nos §§ 3º e 4º do art. 73 em relação à falta de autorização do cônjuge para a propositura da ação. Por tal artigo, vimos que o Réu terá que trazer muitos apontamentos na peça de defesa, sob pena de ser responsabilizado, algumas vezes, até mesmo injustamente e, ainda, ser punido em demanda que contestada corretamente, poderia trazer vitória judicial ou redução de eventual prejuízo em esferas diversas. Outro ponto de suma relevância é a extinção da Nomeação à Autoria, prevista no atual Código de Processo Civil no artigo 62 e seguintes. DOUTRINA . SOBRE O NOVO CÓDIGO DE PROCESSO CIVIL O PROCEDIMENTO COMUM NO NOVO CÓDIGO DE PROCESSO CIVIL 225 5.3. EXTINÇÃO DA NOMEAÇÃO À AUTORIA: Atendendo ao conceito de Nomeação à Autoria, temos que é o meio pelo qual se corrige o pólo passivo da demanda judicial, atualmente prevista no artigo 62 e seguintes do Código de Processo Civil. Em suma, é o ato pelo qual se comunica o real responsável por ser parte passiva no processo. Igualmente, tendo em vista a unicidade e celeridade que se busca com o Código Projetado, temos que a figura da Nomeação à Autoria, definitivamente, será extinta. Com tal afirmação, existirá a possibilidade de emenda à inicial para correção do pólo passivo quando o réu argüir ilegitimidade passiva e o autor concordar com a argüição. O intuito é aproveitar o processo, que correrá contra a parte passiva correta. Elucidando o explicitado supra, trazemos o Artigo 339 e 340 do Código Projetado, o qual diz: Art. 339. Alegando o réu, na contestação, ser parte ilegítima ou não ser o responsável pelo prejuízo invocado, o juiz facultará ao autor, em quinze dias, a alteração da petição inicial para substituição do réu. Parágrafo único. Realizada a substituição, o autor reembolsará as despesas e pagará honorários ao procurador do réu excluído, que serão fixados entre três e cinco por cento do valor da causa ou, sendo este irrisório, nos termos do art. 85, § 8º. e Art. 340. Quando alegar sua ilegitimidade, incumbe ao réu indicar o sujeito passivo da relação jurídica discutida sempre que tiver conhecimento, sob pena de arcar com as despesas processuais e de indenizar o autor pelos prejuízos decorrentes da falta da indicação. § 1º Aceita a indicação pelo autor, este, no prazo de quinze dias, procederá à alteração da petição inicial para a substituição do réu, observando-se, ainda, o parágrafo único do art. 339. § 2º No prazo de quinze dias, o autor pode optar por alterar a petição inicial para incluir, como litisconsorte passivo, o sujeito indicado pelo réu. Por todo informado, percebemos que a nomeação à autoria realmente foi 226 REVISTA DO INSTITUTO DOS ADVOGADOS DE SÃO PAULO v. 35, JANEIRO - JUNHO 2015 privilegiada no código projetado, tendo em vista que sua utilização foi facilitada, ao admitir-se respectiva utilização no bojo da contestação, e não menos importante, facilitando ao autor corrigir ou incluir pólo correto no embate judicial. Ainda tratando das novidades ou alterações no novo procedimento comum, abarcaremos o Julgamento Liminar de Improcedência, previsto no Código de Processo Civil em vigor no Artigo 285-A, e já no código projetado no Artigo 333, sendo que será fornecido maiores detalhes no transcorrer do próximo capítulo. 5.4. JULGAMENTO LIMINAR DE IMPROCEDÊNCIA: No projeto do novo Código de Processo Civil, que de tanto tempo em discussão logo mais possuirá idéias ou conceitos antigos para os militantes da área, teremos o julgamento liminar de improcedência com ampliação de hipóteses, recepcionando os seguintes pontos com mais amplitude, quais sejam: a - Pedido que contrariar Súmulas; b - Acórdãos em julgamentos de casos repetitivos; c - Entendimento firmado em incidente de resolução de demandas repetitivas; d - Pedido que for juridicamente impossível; e - Súmula de tribunal local sobre direito local; e f - Prescrição ou decadência Igualmente, é necessário afiançar que, uma vez julgada liminarmente improcedente a ação, e ingressando o autor com Recurso de Apelação da presente decisão, caberá juízo de retratação pelo magistrado no prazo de 5 (cinco) dias. No intuito de trazer um melhor entendimento do instituto em tela, importante colacionar nesse trabalho o teor integral do Artigo 333 do futuro código, que diz: Art. 333. Nas causas que dispensem a fase instrutória, o juiz, independentemente da citação do réu, julgará liminarmente improcedente o pedido que contrariar: I – súmula do Supremo Tribunal Federal ou do Superior Tribunal de Justiça; II – acórdão proferido pelo Supremo Tribunal Federal ou pelo Superior Tribunal de Justiça em julgamento de recursos repetitivos; DOUTRINA . SOBRE O NOVO CÓDIGO DE PROCESSO CIVIL O PROCEDIMENTO COMUM NO NOVO CÓDIGO DE PROCESSO CIVIL 227 III – entendimento firmado em incidente de resolução de demandas repetitivas ou de assunção de competência; IV – frontalmente norma jurídica extraída de dispositivo expresso de ato normativo; V – enunciado de súmula de tribunal de justiça sobre direito local. § 1º O juiz também poderá julgar liminarmente improcedente o pedido se verificar, desde logo, a ocorrência de decadência ou de prescrição. § 2º Não interposta a apelação, o réu será intimado do trânsito em julgado da sentença, nos termos do art. 241. § 3º Interposta a apelação, o juiz poderá retratar-se em cinco dias. § 4º Se houver retratação, o juiz determinará o prosseguimento do processo, com a citação do réu para apresentar resposta; se não houver retratação, determinará a citação do réu para apresentar contrarrazões, no prazo de quinze dias. § 5º Na aplicação deste artigo, o juiz observará o disposto no art. 521. Esse instituto é interessante, pois dificulta o ingresso de ações que não merecem prosperar no Judiciário ou que já tiveram análise do crivo anteriormente, novamente trazendo rapidez ao combate judicial, todavia, é interessante apontar que pode haver, em casos pontuais, cerceamento de defesa em virtude da gama de itens que o vinculam. Assim, caberá ao Poder Judiciário avaliar o julgamento liminar de improcedência e seus pormenores no dia a dia e nas respectivas decisões proferidas pelos magistrados, coibindo eventual equívoco doutrinário ou conceitual. Dentre outras funções inerentes a magistratura, haverá forte percepção das provas necessárias para deslinde da ação judicial no advento do código projetado, razão pela qual demonstraremos relevância ao subitem seqüencial, qual seja, Distribuição Dinâmica do Ônus da Prova. 5.5. DISTRIBUIÇÃO DINÂMICA DO ÔNUS DA PROVA: Inequívoco, no direito pátrio, que as provas sempre tiveram uma importância ímpar na persuasão racional dos magistrados, trazendo muitas sentenças lastreadas nas respectivas. Esse fato é justo, sem dúvidas. Igualmente, temos doravante (futuro código projetado), certa participação do 228 REVISTA DO INSTITUTO DOS ADVOGADOS DE SÃO PAULO v. 35, JANEIRO - JUNHO 2015 magistrado na valoração da prova, indicando o que entende viável e importante para decidir a ação, ou seja, o juiz instruirá de certo modo a ação judicial. O magistrado poderá determinar a prova de ofício, fator relevante ao extremo no Código Projetado. Como novidade, temos que o juiz irá inverter o ônus da prova sempre que for necessário, pois o foco principal é a busca da verdade real. Para tanto, dará ciência de suas intenções devidamente fundamentadas as partes envolvidas, que poderão se manifestar ou pedir esclarecimentos. Faz-se necessário reafirmar que o juiz não deve pegar as partes de surpresa, e sim, entender as particularidades da ação para não cometer injustiças ou onerar demasiadamente uma parte, gerando desequilíbrio na pontualidade do ônus da prova. Observando o texto legal, disposto no Projeto em trâmite na Câmara dos Deputados, temos os seguintes artigos 377 e 380, discorrendo sobre o ônus probatório, que cientificamos: Art. 380. O ônus da prova incumbe: I – ao autor, quanto ao fato constitutivo do seu direito; II – ao réu, quanto à existência de fato impeditivo, modificativo ou extintivo do direito do autor. § 1º Nos casos previstos em lei ou diante de peculiaridades da causa, relacionadas à impossibilidade ou à excessiva dificuldade de cumprir o encargo nos termos do caput ou à maior facilidade de obtenção da prova do fato contrário, poderá o juiz atribuir o ônus da prova de modo diverso, desde que o faça por decisão fundamentada. Neste caso, o juiz deverá dar à parte a oportunidade de se desincumbir do ônus que lhe foi atribuído. § 2º A decisão prevista no § 1º deste artigo não pode gerar situação em que a desincumbência do encargo pela parte seja impossível ou excessivamente difícil. § 3º A distribuição diversa do ônus da prova também pode ocorrer por convenção das partes, salvo quando: I - recair sobre direito indisponível da parte; II - tornar excessivamente difícil a uma parte o exercício do direito. § 4º A convenção de que trata o § 3º pode ser celebrada antes ou durante o processo. DOUTRINA . SOBRE O NOVO CÓDIGO DE PROCESSO CIVIL O PROCEDIMENTO COMUM NO NOVO CÓDIGO DE PROCESSO CIVIL 229 Art. 377. Caberá ao juiz, de ofício ou a requerimento da parte, determinar as provas necessárias ao julgamento do mérito. Parágrafo único. O juiz indeferirá, em decisão fundamentada, as diligências inúteis ou meramente protelatórias. Pelo dito, entendemos que o futuro código dará mais relevância ainda ao conteúdo das provas, fato glorioso. Dando seguimento, incluiremos no trabalho os pormenores do Julgamento Antecipado Parcial, o qual apaziguou algumas discussões no que tange recurso cabível. 5.6. JULGAMENTO ANTECIPADO PARCIAL: O instituto do julgamento parcial, previsto no Código de Processo Civil atual e também no citado projeto, realmente teve evolução. Falamos desse fato positivo, pois houve no projeto a definição conceitual sobre recurso cabível em decisão que julga parcialmente o feito, que doravante (com o advento e aprovação do novo Código Projetado), será o Agravo de Instrumento, alocado no código projetado no Artigo 363, §4.º. Tal ponto, por si só, já demonstra a intenção dos legisladores em realmente diminuir as discrepâncias atuais. Assim, não seria forçoso concluir que o código projetado efetivamente consagra o instituto do Julgamento Antecipado Parcial, definindo seus limites e dando sincronia a essa engrenagem, que na opinião desse Autor, irá ser cada vez mais utilizado, inclusive, pelas hipóteses de julgamento maduro. Para darmos uma noção clara do cabimento do respectivo, importo do Código Projetado o disposto no Artigo 363: Art. 363. O juiz decidirá parcialmente o mérito quando um ou mais dos pedidos formulados ou parcela deles: I - mostrar-se incontroverso; II – estiver em condições de imediato julgamento, nos termos do art. 362. § 1º A decisão que julgar parcialmente o mérito poderá reconhecer a existência de obrigação líquida ou ilíquida. § 2º A parte poderá liquidar ou executar, desde logo, a obrigação reconhecida na decisão 230 REVISTA DO INSTITUTO DOS ADVOGADOS DE SÃO PAULO v. 35, JANEIRO - JUNHO 2015 que julgar parcialmente o mérito, independentemente de caução, ainda que haja recurso contra essa interposto. Se houver trânsito em julgado da decisão, a execução será definitiva. § 3º A liquidação e o cumprimento da decisão que julgar parcialmente o mérito poderão ser processados em autos suplementares, a requerimento da parte ou a critério do juiz. § 4º A decisão proferida com base neste artigo é impugnável por agravo de instrumento. Isto posto, estando a demanda apta para julgamento conforme preceituado no artigo supra, sem dúvidas será possível ao magistrado julgar de pronto a respectiva e de modo parcial. Dando por encerrado esse ponto de trâmite do novo procedimento comum, iremos falar sobre a parcial finalização do processo em primeiro grau, com a sentença. Temos que, com o advento do código projetado, a sentença deverá ser muito bem fundamentada e com todos seus pontos avaliados. 5.7. DEVIDA FUNDAMENTAÇÃO DAS DECISÕES JUDICIAIS: A fundamentação das decisões judiciais, poderá se tornar com o advento do código projetado, fatidicamente algo muito discutível. Relato discutível, posto existir junto ao poder judiciário e na figura de seus magistrados, a necessidade imperial de abarcar na decisão judicial todos os pontos elencados na demanda, para com isso, termos algo bem elaborado, não deixando item algum sem avaliação por parte do poder judiciário. Em suma, o que é levado ao conhecimento do magistrado deverá ser valorado e julgado, com explicação de entendimento e fundamentação. Esse ponto é algo realmente complexo, pois muitas vezes o juiz não se apega aos detalhes do caso em si, justamente pelo volume de trabalho e, ainda, por entender que alguns fatos são irrelevantes para conclusão do embate judicial. O juiz, não menos importante, deverá sempre observar as decisões proferidas pelos Tribunais Superiores, buscando verdadeira eficácia na finalização do processo. Outrossim, deverá sempre indicar na legislação aquilo que não considera DOUTRINA . SOBRE O NOVO CÓDIGO DE PROCESSO CIVIL O PROCEDIMENTO COMUM NO NOVO CÓDIGO DE PROCESSO CIVIL 231 fundamentado, excluindo de sua decisão conceitos vagos ou imprecisos. Veja que, esse ponto é perigoso, pois o teor de conceito vago é muito subjetivo, podendo gerar certo casos junto ao Poder Judiciário. Exemplificando com detalhes o dito supra, sentimos claramente no texto legal o intuito do código projetado, principalmente em seus artigos 378 e 499, resgatados: Art. 378. O juiz apreciará a prova constante dos autos, independentemente do sujeito que a tiver promovido, e indicará na decisão as razões da formação de seu convencimento. e Art. 499. São elementos essenciais da sentença: I – o relatório, que conterá os nomes das partes, a identificação do caso, com a suma do pedido e da contestação, bem como o registro das principais ocorrências havidas no andamento do processo; II – os fundamentos, em que o juiz analisará as questões de fato e de direito; III – o dispositivo, em que o juiz resolverá as questões principais que as partes lhe submeterem. § 1º Não se considera fundamentada qualquer decisão judicial, seja ela interlocutória, sentença ou acórdão, que: I – se limitar à indicação, à reprodução ou à paráfrase de ato normativo, sem explicar sua relação com a causa ou a questão decidida; II – empregar conceitos jurídicos indeterminados, sem explicar o motivo concreto de sua incidência no caso; III – invocar motivos que se prestariam a justificar qualquer outra decisão; IV – não enfrentar todos os argumentos deduzidos no processo capazes de, em tese, infirmar a conclusão adotada pelo julgador; V – se limitar a invocar precedente ou enunciado de súmula, sem identificar seus fundamentos determinantes nem demonstrar que o caso sob julgamento se ajusta àqueles fundamentos; VI – deixar de seguir enunciado de súmula, jurisprudência ou precedente invocado pela 232 REVISTA DO INSTITUTO DOS ADVOGADOS DE SÃO PAULO v. 35, JANEIRO - JUNHO 2015 parte, sem demonstrar a existência de distinção no caso em julgamento ou a superação do entendimento. § 2º No caso de colisão entre normas, o órgão jurisdicional deve justificar o objeto e os critérios gerais da ponderação efetuada, enunciando as razões que autorizam a interferência na norma afastada e as premissas fáticas que fundamentam a conclusão. § 3º A decisão judicial deve ser interpretada a partir da conjugação de todos os seus elementos e em conformidade com o princípio da boa-fé. Analisando pormenorizadamente a legislação em tela, é fácil notar que o legislador atual concretiza a necessidade de trazer ainda mais segurança ao combate processual, fazendo com que nesse novo texto, o judiciário seja obrigado a avaliar todas as questões trazidas ao seu crivo, exigindo participação efetiva do magistrado no processo. 6. CONCLUSÃO: O código de processo civil devidamente sancionado realmente é positivo e traz uma evolução no texto legal e no âmbito social, principalmente. Podemos citar inúmeras benfeitorias no respectivo, como autonomia ao magistrado para apontar provas interessantes no processo, o interesse contínuo na conciliação, fortalecimento do meio eletrônico e a necessidade imperial do magistrado em atender todos os itens do processo na sua decisão final, isto é, na fundamentação da sentença judicial. Esse esforço é muito salutar, mesmo que ocasione pouca mudança imediata na questão da celeridade processual e efetividade da justiça. De acordo com o Conselho Nacional de Justiça (CNJ), temos no Brasil (período de 2013 – 2014), cerca de 95,14 milhões4 de processos em andamento, e com isso, toda atitude com fito de melhorar a prestação jurisdicional é válida para tentar diminuir ou equalizar esse alto número de demandas. 4.http://www.cnj.jus.br/images/programas/justica-em-numeros/Resumo_Justica_em_Numeros_2014_anobase_2013.pdf DOUTRINA . SOBRE O NOVO CÓDIGO DE PROCESSO CIVIL O PROCEDIMENTO COMUM NO NOVO CÓDIGO DE PROCESSO CIVIL 233 7. BIBLIOGRAFIA: MOREIRA, José Carlos Barbosa. Efetividade do processo e técnica processual.Temas de direito processual. Sexta série. São Paulo: Saraiva, 1997. ALVIM, J. E Carreira. O Novo Código de Processo Civil. São Paulo: Editora Campus Jurídico, 2013. GAJARDONI, Fernando da Fonseca. Flexibilização procedimental: um novo enfoque para o estudo do procedimento em matéria processual, São Paulo, Atlas, 2008. Sítio Eletrônico: http://www.cnj.jus.br – Acessado em 07.11.2014, às 09:25 h. CHIOVENDA. Sagli di Diritto Processuale Civile, vol. I. Roma: Foro Italiano, 1930. GONÇALVES, Aroldo Plínio. Técnica Processual e Teoria do Processo. Rio de Janeiro: AIDE Editora, 2001. DINAMARCO, Cândido Rangel. FUNDAMENTOS DO PROCESSO CIVIL MODERNO. Tomo I. 5 Ed. São Paulo: Malheiros, 2002. LIEBMAN, Erico Tullio. Manual de Direito Processual Civil. Volume I. Notas e Tradução: Cândido Rangel Dinamarco. 2 Ed. Rio de Janeiro: Forense,1985. MARINONI, Luiz Guilherme. Curso de Processo Civil. Teoria Geral do Processo. Vol. I. São Paulo: Editora Revista dos Tribunais, 2006. SILVA, Ovídio A Baptista da. Curso de Processo Civil, Volume I, Tomo I. 8. ed. Rio de Janeiro: Forense, 2008. SOBRE O NOVO CÓDIGO DE PROCESSO CIVIL POR UM PROCESSO CIVIL COMUNICATIVO E DIALÓGICO PAULO SÉRGIO VELTEN PEREIRA Doutorando e Mestre em Direito Civil pela PUC/SP. Especialista em Direito Processual Civil pela PUC/SP. Desembargador do TJMA. Associado Colaborador do IASP. SUMÁRIO 1. Introdução; 2. Um Código informado pelo princípio do contraditório; 3. O abandono do processo autocrático com contraditório restrito às partes; 4. O modelo constitucional de processo civil brasileiro.; 5. O contraditório como dever de consulta e de diálogo; 6. Da decisão-surpresa à decisão-projeto; 7. Considerações finais; 8. Referências. RESUMO ABSTRACT O presente artigo aborda o tema da edição do novo Código de Processo Civil brasileiro e da expansão que o princípio do contraditório terá com a entrada em vigor da nova lei, gerando para o juiz deveres de consulta e de diálogo com as partes acerca da fundamentação a ser adotada em sua decisão definitiva, substituindo a surpresa por um projeto de decisão que garanta a participação efetiva de todos os sujeitos do processo na construção de uma solução mais justa e democrática. This article discusses the new edition of the Brazilian Code of Civil Procedure. It also debates the expansion caused to the principal of an adversarial process following the entry into force of new bill of law, which will create judge’s duties of consultation and dialogue among the parties pertaining the reasoning he intends to adopt in his final decision, replacing the surprise factor with a decision project that can guarantee an effective participation of all the subjects involved in the process of building up a more just and democratic solution. PAVRAS-CHAVE KEYWORDS Novo Código de Processo Civil; Princípio do contraditório; Modelo constitucional de processo; Democracia; Dever de consulta e de diálogo; Processo comunicativo e dialógico; Decisãosurpresa; Decisão-projeto. New Code of Civil Procedure; Principal of an adversarial process; Constitutional model of procedure; Democracy; Duty of consultation and dialogue; Communicative and dialogical process; Surprise-decision; Project-decision. 238 REVISTA DO INSTITUTO DOS ADVOGADOS DE SÃO PAULO v. 35, JANEIRO - JUNHO 2015 1. INTRODUÇÃO Com a edição da Lei nº 13.105 de 16 de março de 2015, que instituiu o novo Código de Processo Civil no ordenamento jurídico brasileiro, percebe-se que os debates forenses e acadêmicos em torno desse novel Diploma têm dado pouca ênfase à dimensão que o princípio do contraditório passará a ter a partir de 16 de março do próximo ano, quando o CPC entrará em vigor, considerando o prazo de um ano da sua vacatio legis. Desde sempre o contraditório foi limitado a garantir o conhecimento da existência de um processo e a sucessiva manifestação das partes sobre os atos subsequentes, mas com o novo Código esse princípio será expandido para impor novas obrigações ao magistrado condutor do feito, que deverá, antes de decidir, submeter à manifestação das partes a fundamentação jurídica que pressupõe aplicável ao caso, algo como um projeto de decisão. Aqui será visto que essa forma de atuação do juiz no modelo do novo Código de Processo Civil é bem distinta daquela com a qual os operadores do direito estão habituados a trabalhar, em que, essencialmente, apenas se assegura a possibilidade de manifestação de uma das partes sobre os atos praticados e alegações deduzidas pela contraparte, observando-se a bilateralidade do processo. Ao longo do trabalho espera-se demonstrar que a expansão do contraditório tem por finalidade adequar a lei processual ao texto da Constituição Federal, fazendo com que a atividade jurisdicional seja desenvolvida da forma mais democrática possível, por meio do aprofundamento do diálogo com as partes e da cooperação judicial, rompendo-se as barreiras impostas pelo processo autocrático do Código Buzaid, com base no qual o juiz é tratado como diretor isolado da batalha travada entre autor e réu. Submetido ao modelo constitucional de processo, esse contraditório expandido constitui o solo fértil sobre o qual pode se desenvolver um processo civil renovado no país, de bases realmente democráticas, em que as partes, conhecendo previamente a fundamentação jurídica a ser utilizada pelo magistrado, têm a oportunidade de interagir mais ativamente com o Estado-juiz na construção de uma decisão judicial mais justa e efetiva, obtida por um processo igualmente justo e equilibrado. Este ensaio pretende evidenciar que a elaboração da decisão judicial com a observância do dever de consulta e de diálogo, além de permitir a substituição da decisão-surpresa pela decisão-projeto, também pode contribuir decisivamente para DOUTRINA . SOBRE O NOVO CÓDIGO DE PROCESSO CIVIL POR UM PROCESSO CIVIL COMUNICATIVO E DIALÓGICO 239 a redução do déficit democrático do Poder Judiciário, tudo a partir de um processo comunicativo e dialógico, desenvolvido em sintonia fina com a Constituição. 2. UM CÓDIGO INFORMADO PELO PRINCÍPIO DO CONTRADITÓRIO Ao tempo da edição do atual Código Civil brasileiro (Lei nº 10.406/2002) dizia-se que as modificações introduzidas no novo ordenamento eram essencialmente tópicas, uma vez que um dos objetivos declarados pela comissão de juristas encarregada da elaboração do anteprojeto era manter, na medida do possível, boa parte da redação original do Código Civil de 1916, considerado por muitos estudiosos um primoroso monumento linguístico.1 Pouco se falava à época da verdadeira revolução projetada pelos valores e princípios do novo Código Civil, sendo restrita ao círculo acadêmico alguma discussão em torno do sistema móvel de direito privado, composto de princípios e conceitos adredemente vagos para permitir a interpretação dinâmica da nova lei e evitar seu engessamento diante da evolução social.2 Situação semelhante sucede agora com o novo Código de Processo Civil brasileiro sancionado em março do corrente ano. Dá-se grande destaque para a necessidade de organização, coesão e sistematização dos dispositivos da lei processual, 3 mas se dispensa pouca reflexão para os princípios encartados nos enunciados do Livro I da Parte Geral do Código, em especial para a nova dimensão do princípio do contraditório. A ausência desse debate é lamentável, pois nenhuma mudança legislativa será suficiente para a obtenção de um processo justo, efetivo e de bases democráticas se o 1. Ver a respeito: REALE, Miguel. História do novo código civil. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2005, p. 83. Nessa obra o grande jurista brasileiro registra que uma preocupação permanente da comissão elaboradora do anteprojeto do Código Civil de 2002 foi preservar a beleza formal do Código de 1916, tido como um modelo insuperável de vernaculidade, ressaltando Reale que uma lei bela representa meio caminho andado para a comunicação da Justiça. 2. Sobre abertura e mobilidade do sistema de direito privado: CANARIS, Claus-Wilhelm. Pensamento sistemático e conceito de sistema na ciência do direito. 4. ed. Lisboa: Fundação Calouste Gulbenkian, 2008, p. 103 e ss. 3. Necessidade justificada, segundo a comissão elaboradora do anteprojeto, pelo fato de o velho Código de 1973 ter-se transformado numa colcha de retalhos, mercê das sucessivas reformas tópicas realizadas a partir de meados da década de 1990. 240 REVISTA DO INSTITUTO DOS ADVOGADOS DE SÃO PAULO v. 35, JANEIRO - JUNHO 2015 intérprete autêntico não estiver pronto para interpretar/aplicar o novo direito segundo seus valores e princípios informativos.4 Sem conferir especial atenção para o tema, corre-se o risco de a nova lei ser aplicada com os olhos no retrovisor, abstraindo-se dela um raciocínio meramente formal, desprovido de conteúdo, desconectado da realidade cotidiana e sem sintonia com o Estado Democrático de Direito. Portanto, o alerta é necessário: com o novo Código, não será possível continuar a conceber a existência do contraditório apenas em relação às duas partes do feito, aos sujeitos parciais do processo. Ao abrigar o princípio do contraditório em mais de um dispositivo do Título referente às Normas fundamentais e da Aplicação das normas processuais,5 o legislador emprestou a esse princípio o papel de pensamento diretor da lei processual. Tanto assim, que se trata do Título de abertura, da sua Parte Geral, cujo propósito é exatamente o de abrigar os princípios vetores que irão informar todos os demais setores do novo Código.6 E o fato de o princípio do contraditório estar desse modo organicamente posicionado não deixa de ter um importante significado simbólico, na medida em que serve para disseminar na cultura jurídica a necessidade de encarar a nova legislação como um desdobramento da Constituição Federal e ainda sinalizar o dever de interpretá-la de acordo com os direitos fundamentais processuais civis.7 É nesse contexto que o contraditório constitui fundamento basilar para a interpretação e aplicação do novo direito processual, sendo a sua expansão de vital importância para a construção de um processo moderno, capaz de atender o clamor 4. Intérprete autêntico no sentido atribuído por Hans Kelsen, de interpretação realizada pelo órgão estatal aplicador do direito (KELSEN, Hans. Teoria pura do direito. Tradução de João Baptista Machado. São Paulo: Martins Fontes, 2003, p. 387 e ss.). Interpretar/aplicar o direito como atividade unitária e não-autônoma, pois o intérprete somente obtém o verdadeiro sentido do texto a partir de um dado caso concreto. Interpretar o direito consiste em dar concretude à lei em cada caso, ou seja, aplicá-la (GADAMER, Hans-Georg. Verdad y método, 4.ed. Tradução de Ana Agud Aparício e Rafael de Agapito. Salamanca: Ediciones Sígueme, 1991, p. 397-401). 5. O art. 7º determina que o juiz zele pelo efetivo contraditório, não qualquer contraditório; o art. 9º veda que se profira decisão contra uma parte sem antes ouvi-la; e o art. 10 proíbe a prolação de decisão sem que as partes tenham oportunidade de se manifestar sobre seus fundamentos (fundamentos da decisão). 6. LARENZ, Karl. Derecho justo - fundamento de ética jurídica. Tradução de Luis Diez-Picazo, Madri: Civitas, 1985, p. 32. Este autor confere aos princípios a função de pensamentos diretores de uma regulação jurídica existente ou possível. 7. NMARINONI, Luiz Guilherme; Mitidiero, Daniel. O projeto do CPC: crítica e propostas. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2010, p. 16. DOUTRINA . SOBRE O NOVO CÓDIGO DE PROCESSO CIVIL POR UM PROCESSO CIVIL COMUNICATIVO E DIALÓGICO 241 social por uma justiça mais célere, efetiva e comprometida com a concretização dos valores democráticos. O direito processual é um fiel indicador do grau de democracia e de civilidade existentes em determinado Estado. Por isso, o legislador reformista projetou a nova lei tendo o princípio do contraditório como fundamento basilar, assegurando uma participação mais efetiva das partes no processo de construção da decisão judicial. Nesse contexto, prevê o art. 10 do novo Código que “O juiz não pode decidir, em grau algum de jurisdição, com base em fundamento a respeito do qual não se tenha dado às partes oportunidade de se manifestar, ainda que se trate de matéria sobre a qual deva decidir de ofício”. Sem correspondência no Código de Processo Civil vigente, o novel dispositivo não encapsula o contraditório na simples manifestação sucessiva de autor e réu, como ocorre atualmente. Ele vai além: redimensiona o contraditório, assegurando a manifestação prévia das partes sobre o fundamento da futura decisão, buscando com isso evitar o proferimento de decisões-surpresa (Verbot der Überraschungsentscheidungen), cuja fundamentação é conhecida somente no momento da publicação. O novo Código será informado por um contraditório participativo, que obrigará o juiz a se comunicar com as partes – e indiretamente com a sociedade –, transformando o diálogo processual num importante fator de democratização do próprio Poder Judiciário. 3. O ABANDONO DO PROCESSO AUTOCRÁTICO COM CONTRADITÓRIO RESTRITO ÀS PARTES A perda de funcionalidade e eficiência do velho Código Buzaid não é apenas fruto da atual desarmonia de seus dispositivos, desarmonia gerada pelas sucessivas reformas tópicas adotadas a partir da década de 90. Decorre também da manutenção de antigas fórmulas pouco afetas ao contraditório amplo, que hoje somente encontram sentido e aplicação depois de ajustadas pela lente constitucional.8 8. Exemplo disso são os embargos de declaração, recurso que se distingue dos demais pela ausência de previsão do contraditório no Código de Processo vigente, mas que na prática é assegurado com fundamento no art. 5º LV da Constituição Federal, sempre que possível a aplicação de efeito modificativo em caráter excepcional. O novo CPC, conformando-se com a Lei Maior, expressamente prevê o contraditório para os embargos de declaração no art.1.023 § 2º. 242 REVISTA DO INSTITUTO DOS ADVOGADOS DE SÃO PAULO v. 35, JANEIRO - JUNHO 2015 Não há dúvida de que se faz mesmo necessário um novo Código de Processo Civil, capaz não só de dar maior coesão aos enunciados normativos, mas primordialmente aprofundar a harmonização de seus dispositivos com o texto da Constituição Federal de 1988, conformidade que o velho Código Processual de 1973, por ter surgido muito tempo antes, não logrou mais sustentar. Por isso é que entre os objetivos anunciados pela comissão de juristas encarregada da elaboração do Anteprojeto destacam-se a necessidade de imprimir maior grau de organicidade ao sistema e estabelecer uma sintonia fina com a Constituição. O que se busca em verdade, mas quase não se ressalta, é deixar de lado o contraditório restrito aos sujeitos parciais do processo e encontrar meios de arbitrar os conflitos da forma mais democrática possível, prestigiando a efetiva participação das partes e também a cooperação do Estado-juiz, pois o direito fundamental ao contraditório encontra assento no valor participação. Nesse aspecto, melhor seria ter mantido a essência da redação dada ao art. 5º pelo Projeto de Lei aprovado no Senado (PL nº 166/2010), que estabelecia possuir as partes “direito de participar ativamente do processo, cooperando entre si e com o juiz e fornecendo-lhe subsídios para que profira decisões, realize atos executivos ou determine a prática de medidas de urgência”. Apesar da boa redação desse dispositivo, a redação final do novo CPC adotou a alteração introduzida pelo Projeto de Lei aprovado na Câmara (PL nº 8.046/2010), substituindo a expressa regra de cooperação pelo dever de probidade processual e boa-fé, valores igualmente importantes e que somente reforçam a necessidade de instauração de um ambiente cooperativo cuja razão de ser é garantir a participação ativa do autor e do réu no processo,9 de modo a fornecer ao juiz a maior quantidade possível de elementos aptos a permitir o arbitramento de uma solução lógica, coerente e de acordo com o direito posto, se não para eliminar o conflito, por certo para absorver a insegurança.10 9. A redação do art. 5º do Projeto de Lei do Senado foi fortemente criticada ao prever a existência de cooperação entre as próprias partes, o que em tese não se compatibilizaria com a estrutura adversarial ínsita ao processo contencioso. Afinal, se existe processo é porque faltou colaboração mútua no sentido de encontrar uma solução amigável para o conflito. Isso, todavia, seria motivo para simples ajuste e não para o completo abandono do texto, sobretudo, quando o dever de cooperação entre as partes encontrou abrigo no art. 6º do novo CPC. E pior, sem que ficasse aclarado que a colaboração no processo civil do Estado Constitucional, de rigor, deve ser sempre compreendida como a colaboração do juiz em relação às partes. Nesse sentido ver: MARINONI, Luiz Guilherme; MITIDIERO, Daniel. O projeto do CPC: crítica e propostas. Op. cit., p. 73. 10. É de Ferraz Junior a percuciente observação de que a finalidade última da decisão judicial não é eliminar DOUTRINA . SOBRE O NOVO CÓDIGO DE PROCESSO CIVIL POR UM PROCESSO CIVIL COMUNICATIVO E DIALÓGICO 243 Não se submete a esse modelo constitucional e sistemático, a forma centralizadora e autocrática de absorção de insegurança reinante na atual processualística nacional, em que somente as partes atuam para valer (quando atuam), ficando reservado para o juiz um papel passivo, de árbitro autômato e equidistante, que conhece o direito (jura novit curia), mas permanece numa redoma de vidro, cooperando pouco e nunca dialogando com as partes na construção do caminho condutor da decisão, que hoje é imposta verticalmente, de forma autocrática. O tema remete ao mito da caverna de Platão, em que apenas o filósofo que dela podia sair para a luz do dia é capaz de ver as coisas como realmente são e assim governar os demais habitantes que permaneciam olhando para as sombras refletidas na parede da caverna. Revisitando esse mito e aplicando-o como critério de solução dos dilemas do cotidiano, Michael Sandel afirma que essa forma platônica de ver as coisas está certa apenas em parte, “pois os clamores dos que ficaram na caverna devem ser levados em consideração”, já que “a filosofia que não tem contato com as sombras na parede só poderá produzir uma utopia estéril”.11 Sandel quer com isso mostrar que para se captar o sentido de justiça dos julgamentos não basta ao juiz colocar-se acima dos preconceitos e das rotinas do dia a dia – o que, por si só, já é algo bastante difícil para alguns. Essencial, segundo esse pensador, que também colha opiniões e convicções dos outros sujeitos do processo, ainda que posições parciais, como pontos de partida, pois constitui um falso pluralismo, típico de democracias ainda jovens, apenas assegurar a manifestação dos destinatários da decisão, olvidando que o mais importante é levar em consideração o que dizem, prestigiando o direito de as partes influenciarem o resultado do julgamento. os conflitos, mas absorver a insegurança por eles gerada. “Absorção de insegurança significa, pois, que o ato de decidir transforma incompatibilidades indecidíveis em alternativas decidíveis, ainda que, num momento subsequente, venha a gerar novas situações de incompatibilidade eventualmente até mais complexas que as anteriores. Absorção de insegurança, portanto, nada tem a ver com a ideia mais tradicional de obtenção de harmonia e consenso, como se em toda decisão estivesse em jogo a possibilidade de eliminar-se o conflito. Ao contrário, se o conflito é incompatibilidade que exige decisão é porque ele não pode ser dissolvido, não pode acabar, pois então não precisaríamos de decisão, mas de simples opção que já estava, desde sempre, implícita entre as alternativas. Decisões, portanto, absorvem insegurança, não porque eliminam o conflito, mas porque o transformam”(FERRAZ JUNIOR, Tercio Sampaio. Introdução ao estudo do direito: técnica, decisão, dominação. 6 ed. São Paulo: Atlas, 2011, p. 288). 11. SANDEL, MICHAEL J. Justiça: o que é fazer a coisa certa. 6. ed. Tradução de Heloísa Matias e Maria Alice Máximo. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2012, p. 38-39. 244 REVISTA DO INSTITUTO DOS ADVOGADOS DE SÃO PAULO v. 35, JANEIRO - JUNHO 2015 Convocando essa filosofia para o campo da ciência jurídica, é possível concluir que um processo centrado na figura do juiz, que restringe o contraditório à simples manifestação sucessiva das partes, não é um processo de moldura constitucional capaz de produzir resultados justos e coerentes, ou simplesmente aptos a absorver insegurança, sabido que no processo autocrático a jurisdição, com frequência cada vez maior, tem sido utilizada menos para dirimir do que para criar e recriar conflitos. Esse vetusto modelo autoritário de processo deve ser abandonado, sendo em seu lugar erigido um novo tipo de contraditório, expandido a partir de uma visão cooperativa de processo, em que o juiz submete às partes sua primeira impressão técnica sobre a questão a ser decidida, colhe suas manifestações a respeito como pontos de partida parciais, abstraindo daí os elementos para a formação de sua convicção e elaboração da solução final de maneira democrática, proferindo uma decisão fundamentada e com o enfrentamento das argumentações deduzidas.12 Um país que se proclama democrático e atualmente possui cerca de 95 milhões de processos em tramitação13 não pode manter seus jurisdicionados sob o jugo de um processo de cariz autocrática, que não privilegia o diálogo inerente ao princípio da colaboração nem se conforma com as escolhas políticas elegidas pela Constituição. 4. O MODELO CONSTITUCIONAL DE PROCESSO CIVIL BRASILEIRO O processo civil brasileiro não ficou livre do fenômeno da constitucionalização que os direitos, de um modo geral, experimentaram a partir da segunda metade do século XX, fenômeno que Virgílio Afonso da Silva bem definiu como a “irradiação dos efeitos das normas (ou valores) constitucionais aos outros ramos do direito”.14 12. A propósito, a necessidade de enfrentamento de todos os argumentos importantes deduzidos no processo está expressamente prevista no novo CPC (art. 489 §1º IV), não se considerando fundamentada a decisão que não observe essa regra, entre outras. 13. De acordo com a 10ª edição do Relatório Justiça em Números, divulgado pelo Conselho Nacional de Justiça. Disponível em:<ftp://ftp.cnj.jus.br/Justica_em_Numeros/relatorio_jn2014.pdf>. Acesso em 12 nov. 2014. 14.SILVA, Virgílio Afonso da. A constitucionalização do direito: os direitos fundamentais nas relações entre particulares. São Paulo: Malheiros, 2008, p. 18. DOUTRINA . SOBRE O NOVO CÓDIGO DE PROCESSO CIVIL POR UM PROCESSO CIVIL COMUNICATIVO E DIALÓGICO 245 Estando a Constituição no centro do sistema jurídico dela se projetam efeitos para as diversas disciplinas, que passam a se comunicar entre si e em perfeita harmonia com os princípios e regras irradiantes do texto constitucional. Em virtude disso, o processo civil também deve se harmonizar com as garantias constitucionais de um Estado Democrático de Direito, entre as quais a que assegura o contraditório aos litigantes no processo judicial, conforme art. 5º LV da Carta Republicana.15 Para o autor de uma ação judicial isso importa a possibilidade de veicular perante o Estado-juiz o interesse que pretende ver tutelado, assim como a respectiva prova de suas alegações. E para o réu, a garantia de ser comunicado sobre a demanda e de poder se contrapor em face dela, também por meio de alegações e da produção da prova correlata. Para ambos os protagonistas do processo, representa a garantia de que terão suas argumentações efetivamente levadas em conta (isto é, acolhidas ou rejeitadas) por ocasião do proferimento de qualquer decisão. Ao Estado-juiz cabe assegurar o equilíbrio e a igualdade de atuação das partes, dentro do que se convencionou chamar de princípio da paridade de armas, em verdade, um desdobramento dos princípios da isonomia e do contraditório.16 Tão significativo é o papel do contraditório na atualidade, que esse princípio, no Estado Constitucional, passa a compor o próprio conceito de processo, hoje melhor e mais tecnicamente compreendido como “atividade estatal desenvolvida sob contraditório e ampla defesa para viabilizar o exercício democrático do poder do Estado.”17 15. CF, art. 5º LV: “aos litigantes, em processo judicial ou administrativo, e aos acusados em geral são assegurados o contraditório e ampla defesa, com os meios e recursos a ela inerentes.” 16. O princípio da paridade de armas foi positivado no art. 7º do novo CPC, com a seguinte redação: “É assegurada às partes paridade de tratamento em relação ao exercício de direitos e faculdades processuais, aos meios de defesa, aos ônus, aos deveres e à aplicação de sanções processuais (...)”. A regra correspondente do Código de Processo Civil vigente é a do art. 125 I, que diz competir ao juiz “assegurar às partes igualdade de tratamento”. Tem-se que a paridade contemplada no texto da nova lei constitui expressão mais ajustada à prática da igualdade aristotélica, à medida que o juiz pode estabelecer as discriminações necessárias, visando assegurar e preservar a participação igualitária das partes, inclusive, por meio da dinamização do ônus da prova, nos termos do art. 373 §1º do novo CPC. 17. RAMOS, Glauco Gumerato. Processo jurisdicional civil, tutela jurisdicional e sistema do CPC: como está e como poderá estar o CPC brasileiro. In: CARNEIRO, Athos Gusmão; CALMON, Petrônio (Coord.). Bases científicas para um renovado direito processual. 2.ed. Salvador: Editora Podivm, 2009, p. 574. 246 REVISTA DO INSTITUTO DOS ADVOGADOS DE SÃO PAULO v. 35, JANEIRO - JUNHO 2015 Nesse conceito subjaz a ideia segundo a qual o Estado-juiz não possui a chave da verdade, por essa razão deve se preocupar com a legitimidade de sua decisão, e esta será tanto mais legítima à proporção que advenha de um processo de deliberação, que assegure a participação ampla e efetiva de todos os atores envolvidos. No âmbito do processo civil, o juiz do Estado Constitucional deve ser “ativo na condução do processo em colaboração com as partes”.18 Outra compreensão não é possível quando se invoca o exercício democrático do poder. E para que uma democracia possa funcionar bem e perdurar, as decisões não podem ser proferidas antes de um amplo processo de deliberação, que envolva o debate e a crítica esclarecida. Forte nesse entendimento, Albert Hirschman sustenta que constitui um risco para a democracia a existência de opiniões sólidas e preconcebidas, que interditam o debate e não valorizam a opinião do outro.19 Essa visão moderna, fundada na teoria da democracia, pressiona por uma mudança de postura do intérprete autêntico, que deve abandonar opiniões preconcebidas, não raro formadas no discurso ideológico, e abrir a mente para as argumentações deduzidas pelas partes. Mais que isso: deve levar em conta tais argumentações. Essa deve ser a prática resultante do modelo constitucional de processo, fora do qual não há atividade jurisdicional válida e capaz de assegurar o acesso a uma ordem jurídica justa, democrática e apta a tutelar o direito material de forma efetiva e eficiente. Mas para que a atividade jurisdicional seja realmente legítima e viabilizadora do exercício democrático do poder do Estado, o contraditório precisa ser visto nessa dimensão mais ampla, participativa e abrangente de todos os aspectos, processuais e materiais, como decorrência das conquistas sociais obtidas ao longo da evolução histórica. Em suma, a nova processualística deve ter presente um contraditório elevado à condição de dogma, que tenha por base o diálogo e por horizonte a convicção de que nada pode ser decidido sem o conhecimento e a participação das partes. 18. MARINONI, Luiz Guilherme; MITIDIERO, Daniel. O projeto do CPC: crítica e propostas. Op. cit., p. 32. 19. HIRSCHAMAN, Albert O. Auto-subversão: teorias consagradas em xeque. Tradução de Laura Teixeira Motta. São Paulo: Companhia das Letras, 1996, p. 96. DOUTRINA . SOBRE O NOVO CÓDIGO DE PROCESSO CIVIL POR UM PROCESSO CIVIL COMUNICATIVO E DIALÓGICO 247 5. O CONTRADITÓRIO COMO DEVER DE CONSULTA E DE DIÁLOGO Na perspectiva de um processo realmente dialógico, acertou o legislador com a introdução do art. 10 no novo Código. O dispositivo inspira-se na ideia de cooperação judicial e reafirma o direito de participação ativa das partes no processo, consagrando o contraditório como dever de consulta e de diálogo judicial, considerando que o princípio não fica mais restrito às partes, ele se expande e passa a ter como destinatário também o juiz.20 Com a entrada em vigor da nova lei, não bastará ao magistrado assegurar a manifestação mútua das partes antes de decidir. Deverá primeiro consultálas, submetendo ao seu exame prévio os fundamentos que pretende adotar na decisão. O processo é produto da vida de relações que se desenvolve no seio da sociedade. Logo, não pode ficar encastelado na técnica e no conhecimento do aplicador da lei. Ao revés, deve estar aberto para sofrer as influências da sociedade que o criou. E é por meio do diálogo que as partes possuem a oportunidade de influenciar eficazmente na formação da convicção do juiz. Como pressuposto da decisão judicial, o contraditório expandido transforma o processo em instrumento de comunicação, um processo emancipador de comunicabilidade, como preconizava Habermas, 21 favorecendo o escopo político de participação da sociedade na busca civilizada da solução dos litígios. Uma busca coletiva, que requer interlocutores instruídos, e não mais um trabalho hercúleo de investigação introspectiva, feita no silêncio do gabinete do magistrado. O processo deixa de ser dialético, limitado ao embate argumentativo fixado entre autor e réu, e passa a ser dialógico, pois considera a manifestação das partes como pontos de partida parciais para a elaboração da decisão judicial. Com isso, concede-se aos sujeitos do processo, que vivenciam o contexto fático regulado pela norma, a possibilidade de ser um de seus cointérpretes, pondo fim ao monopólio da 20. MARINONI, Luiz Guilherme; MITIDIERO, Daniel. O projeto do CPC: crítica e propostas. Op. cit., p. 75. 21. HABERMAS, Jürgen. Consciência moral e agir comunicativo. Tradução de Guido A. de Almeida. Rio de Janeiro: Tempo Brasileiro, 2003, p. 145. 248 REVISTA DO INSTITUTO DOS ADVOGADOS DE SÃO PAULO v. 35, JANEIRO - JUNHO 2015 interpretação tão criticado pela pena de Peter Häberle, ao argumento de que “todo aquele que vive no contexto regulado por uma norma e que vive com este contexto é, indireta ou, até mesmo diretamente um intérprete dessa norma. O destinatário da norma é participante ativo, muito mais ativo do que se pode supor tradicionalmente, do processo hermenêutico”.22 Com essa visão ampliada de contraditório fundado em dever de consulta e de diálogo com os sujeitos parciais do processo, contribui-se, em preciosa medida, com o equacionamento do problema de déficit democrático do Poder Judiciário23 – pois a democracia se alimenta muito mais do entrechoque de opiniões do que de consensos e unanimidades –, eliminando a chamada decisão-surpresa, nascida da pressa e da falta de diálogo, sendo por isso incapaz de produzir efeito em face do modelo constitucional de processo.24 Além de reafirmar as bases democráticas do processo civil brasileiro, a nova técnica do contraditório recolocará no tablado a necessidade da reflexão resultante do cumprimento dos deveres de consulta e de diálogo, retirando os juízes da linha de produção para a qual foram empurrados pelos órgãos de controle com vistas ao atendimento frenético de metas, com graves consequências para a qualidade da prestação jurisdicional. 25 Juízes não podem ser convertidos em autômatos do 22. HÄBERLE, Peter. Hermenêutica constitucional: a sociedade aberta dos intérpretes da constituição: contribuição para a interpretação pluralista e ‘procedimental’ da constituição. Tradução de Gilmar Ferreira Mendes. Porto Alegre: Fabris, 2002, p. 15. 23. E resolver problemas foi uma das linhas de trabalho da Comissão, conforme exposição de motivos do Anteprojeto no novo Código de Processo Civil. 24. MARINONI, Luiz Guilherme; MITIDIERO, Daniel. O projeto do CPC: crítica e propostas. Op. cit., p. 76. Esses autores criticam o fato de o novo Código não haver disciplinado as consequências da decisão-surpresa, que existe e pode ser considerada válida (desde que formalmente fundamentada), embora se revele ineficaz por violar uma das condições de sua prolação, que é exatamente o dever de diálogo em que se desdobra o contraditório. 25. As Metas Nacionais do Poder Judiciário, também conhecidas como Metas de nivelamento, foram definidas pela primeira vez no 2º Encontro Nacional do Judiciário, no ano de 2009, em Belo Horizonte, sob a coordenação do Conselho Nacional de Justiça – CNJ. Entre essas metas, a de nº 2 foi merecedora de maior destaque, pois ela determinou aos tribunais que identificassem e julgassem os processos judiciais mais antigos, distribuídos até 31/12/2005. Através da Meta 2 o Judiciário buscou conferir concretude ao direito fundamental à razoável duração do processo (CF, art. 5º LXXVIII), empenhando-se ao máximo para eliminar o estoque de processos responsáveis pelas elevadas taxas de congestionamento nos tribunais. Para 2014, a Meta 2 estabeleceu percentuais de julgamento distintos para os diversos seguimentos do Judiciário. A Justiça Estadual, por exemplo, deverá identificar e julgar, até 31/12/2014, pelo menos 80% dos processos distribuídos até 31/12/2010 no 1º grau, e até 31/12/2011 no 2º grau; e 100% dos processos distribuídos até 31/12/2011 nos Juizados Especiais e nas DOUTRINA . SOBRE O NOVO CÓDIGO DE PROCESSO CIVIL POR UM PROCESSO CIVIL COMUNICATIVO E DIALÓGICO 249 sistema, devem ser estimulados a proferir decisões maturadas e forjadas no debate processual. O Judiciário da pós-modernidade não deve cuidar apenas de fazer depressa (e a qualquer custo). Deve, conforme o dito espirituoso de José Alberto dos Reis, fazer bem e depressa,26 o que importa prestar a jurisdição em tempo razoável, mas sem prejuízo da qualidade, trabalho que requer uma demora mínima, necessária à reflexão como fruto do diálogo processual.27 E não se diga que a sistemática de um processo comunicativo resultará num formalismo excessivo, uma das causas da morosidade que tanto atormenta a comunidade jurídica e constrange o Judiciário. O processo comunicativo prestigiará o formalismo na dose certa, o bastante para disciplinar o andamento do processo, de modo a evitar o arbítrio do poder e os excessos de uma parte em face da outra. Um formalismo-valorativo destinado a conferir segurança jurídica e atenção com os atos que precedem a prolação de uma sentença justa. Quando proferida com precisão, boa técnica e garantia da efetiva participação dos sujeitos do processo, a decisão judicial tende a ser mantida nos tribunais e melhor assimilada pela parte sucumbente, que aceita mais resignadamente o resultado proclamado, à medida que com ele contribuiu, recebendo todas as justificativas concretas pelas quais o juiz deixou de acolher suas alegações, conforme passará a exigir o rico enunciado do art. 489 §1º. Percebe-se, então, que a tutela jurisdicional proferida em bases democráticas, com a observância do dever de consulta e de diálogo, absorve a insegurança de maneira definitiva e plena, devolvendo mais rapidamente a estabilidade para a vida de relações. Eis aí uma boa forma de celeridade a ser resgatada. Turmas Recursais Estaduais. O CNJ também colocou em seu sítio eletrônico um processômetro com o índice de produtividade dos Tribunais brasileiros. Os juízes estão na linha de produção e fiscalizados. 26. FUX, Luiz (Org.). O novo processo civil brasileiro: direito em expectativa. Rio: Forense, 2011, p. 3. 27. A propósito do papel do tempo no processo judicial, Lorenzo Zolezzi Ibárcena adverte que “La búsqueda de la verdad toma tiempo y el tiempo es bueno para enfriar las pasiones y hacer que las personas tocadas por la tragedia, los investigadores, acusadores y juzgadores, y el público em general, tengan tiempo para reflexionar y domar esos instintos de que hablámos, esos instintos de venganza, de búsqueda de un castigo casi siempre irreflexivo” (IBÁRCENA, Lorenzo Zolezzi. Derechoen contexto. Lima: Fondo Editorial de la Pontificia Universidad Católica del Perú, 2012, p.160/161). 250 REVISTA DO INSTITUTO DOS ADVOGADOS DE SÃO PAULO v. 35, JANEIRO - JUNHO 2015 6. DA DECISÃO-SURPRESA À DECISÃO-PROJETO No contexto de um processo de moldura constitucional, em que o contraditório se expande para incluir o magistrado, sendo redimensionado como dever de consulta e de diálogo, a tradicional decisão-surpresa deve dar lugar à decisão-projeto, compreendida como tal um plano ou esboço de fundamentação jurídica que, depois de submetido à manifestação das partes, em qualquer momento em que se houver de decidir, comporá os fundamentos da futura decisão, com base nos quais o juiz analisará as questões de fato e de direito deduzidas. A depender da qualidade da crítica ofertada pelas partes ao projeto de motivação da futura decisão, o juiz terá a possibilidade de rever a fundamentação pressuposta para a hipótese, conformando-a com as argumentações apresentadas. Assim, através da participação ativa e da cooperação das partes no processo, o condutor do feito tem a oportunidade de entregar uma prestação jurisdicional de melhor qualidade, sendo infinitamente maiores as chances de encontrar uma solução justa, também no sentido de solução precisa e ajustada ao caso, a solução que contemple a chamada equidade individualizadora de que falava Agostinho Alvim.28 A garantia de manifestação prévia das partes sobre os fundamentos da futura decisão não importa prejulgamento, à medida que, nessa fase preparatória, as questões de fato e de direito deduzidas não são analisadas em pormenor e tampouco há acolhimento ou rejeição de qualquer tipo de pretensão. Tudo isso fica para a ocasião de prolação da decisão propriamente dita, decisão em sentido lato (interlocutória ou sentença). O dever de consulta se encerra na apresentação de um simples esboço ou projeto de decisão (que pode ser oral, quando em audiência), pois o que o novo Código exigirá é que o magistrado apenas submeta ao exame das partes o fundamento jurídico que pretende adotar, sem ter que necessariamente dizer se o adotará para deferir ou indeferir o que se pede. A decisão propriamente dita, se positiva ou negativa, estará sempre a depender da crítica esclarecida apresentada pelas partes, nisso consiste o diálogo judicial. Sendo a regra do contraditório expandido também aplicável à matéria sobre a qual o juiz deva decidir de ofício, a decisão-projeto caberia na seguinte fórmula: “digam 28.ALVIM, Agostinho. Da inexecução das obrigações e suas consequências. 5. ed. São Paulo: Saraiva, 1980, p.4. DOUTRINA . SOBRE O NOVO CÓDIGO DE PROCESSO CIVIL POR UM PROCESSO CIVIL COMUNICATIVO E DIALÓGICO 251 as partes sobre a incidência da prescrição ao caso”. Como se vê, a questão não reside apenas em assegurar a manifestação. Está em garantir a manifestação das partes sobre determinada matéria que o julgador pressupõe poder aplicar à situação concreta que se apresentar, mas que somente poderá dela se valer para fundamentar sua decisão, após submetê-la ao escrutínio das partes. Na prática judiciária hodierna, de um modo geral, a decisão vem na forma de surpresa, o juiz decide de ofício matéria que sequer é agitada no processo, porque de ordem pública, suprimindo a possibilidade de as partes, segundo o exemplo dado, trazerem ao seu conhecimento a ocorrência de uma causa interruptiva ou suspensiva da prescrição.29 A consequência é que a jurisdição acaba gerando perplexidade. O juiz decide sem ouvir ou consultar ninguém e, de ordinário, decide mal. Rende ensejo à interposição de um recurso, que sendo provido, determinará a reforma da decisão e, em alguns casos, a restituição dos autos ao 1º grau para novo julgamento, com perda de tempo e energia, prolongando o litígio e ampliando a carga de trabalho dos tribunais desnecessariamente, tudo em desprestígio da jurisdição e do princípio que assegura a solução do processo em tempo razoável. A ideia de contraditório como dever de diálogo e de consulta, permitindo a substituição da decisão-surpresa pela decisão-projeto, vem para eliminar o anacronismo, a falta de transparência, o desperdício de tempo e de energia, tornando mais justo o resultado e o processo em si, mercê do equilíbrio propiciado pela garantia da efetiva participação democrática. 7. CONSIDERAÇÕES FINAIS O contraditório expandido previsto no art. 10 do novo Código colocará o direito processual civil brasileiro num outro estágio evolutivo, com a maximização da oportunidade de as partes atuarem de modo mais efetivo na construção da decisão judicial. 29.Nada obstante o sistema processual atual esteja alinhado, em geral, ao modelo de decisão-surpresa, é oportuno observar que a Lei de Execução Fiscal (Lei 6.830/1980), de forma vanguardista e aplicando a ideia de contraditório como dever de diálogo e de consulta, já exige desde 2004 que o magistrado ouça a Fazenda Pública antes de pronunciar a prescrição intercorrente na execução fiscal (art. 40 §4º), exatamente para que possam ser arguidas eventuais causas de suspensão ou interrupção da prescrição do crédito tributário. 252 REVISTA DO INSTITUTO DOS ADVOGADOS DE SÃO PAULO v. 35, JANEIRO - JUNHO 2015 Concebendo-se o contraditório como dever de consulta e de diálogo, construirse-á um processo com bases democráticas, que de certo favorecerá o atingimento dos escopos da jurisdição mais eficazmente do que o atual modelo autocrático de processo permite realizar, sobretudo os objetivos políticos de participação da sociedade na busca da melhor e mais adequada solução do conflito de interesses. A nova lei, se corretamente compreendida e aplicada, promoverá uma importante mudança de postura do seu aplicador, que deverá refugar idiossincrasias e posições peremptórias, adotando um estilo de atuação mais transparente, maduro e cooperativo, sujeitando a decisão-projeto à análise crítica das partes, criando espaços para um debate esclarecido e propositivo. Processo não é monopólio das partes e tampouco do juiz. A natureza pública do instituto reclama um debate plural, democrático e amplificado pelo diálogo permanente de todos os seus sujeitos. O contraditório expandido pela efetiva participação das partes na construção da norma do caso concreto constitui uma preciosa garantia fundamental do processo, uma vez que além de legitimar democraticamente a atuação dos juízes, contribuirá para melhorar a qualidade das decisões judiciais. Por um processo civil comunicativo e dialógico, que venha o novo Código! 8. REFERÊNCIAS ALVIM, Agostinho. Da inexecução das obrigações e suas consequências. 5.ed. São Paulo: Saraiva, 1980. CANARIS, Claus-Wilhelm. Pensamento sistemático e conceito de sistema na ciência do direito.4.ed. Lisboa: Fundação CalousteGulbenkian, 2008. CONSELHO NACIONAL DE JUSTIÇA- CNJ.Relatório justiça em números. 10.ed. Disponível em: <ftp://ftp.cnj.jus.br/Justica_em_Numeros/relatorio_jn2014.pdf>. Acesso em 12 nov. 2014. FERRAZ JR., Tercio Sampaio. Introdução ao estudo do direito: técnica, decisão, dominação. 6.ed. São Paulo: Atlas, 2011. FUX, Luiz (Org.). O novo processo civil brasileiro: direito em expectativa. Rio: Forense, 2011. DOUTRINA . SOBRE O NOVO CÓDIGO DE PROCESSO CIVIL POR UM PROCESSO CIVIL COMUNICATIVO E DIALÓGICO 253 GADAMER, Hans-Georg. Verdad y método, 4.ed. Tradução de Ana Agud Aparício e Rafael de Agapito. Salamanca: Ediciones Sígueme, 1991. HÄBERLE, Peter. Hermenêutica constitucional: a sociedade aberta dos intérpretes da constituição: contribuição para a interpretação pluralista e ‘procedimental’ da constituição. Tradução de Gilmar Ferreira Mendes. Porto Alegre: Fabris, 2002. HABERMAS, Jürgen. Consciência moral e agir comunicativo. Tradução de Guido A. de Almeida. Rio de Janeiro: Tempo Brasileiro, 2003. HIRSCHAMAN, Albert O. Auto-subversão: teorias consagradas em xeque. Tradução de Laura Teixeira Motta. São Paulo: Companhia das Letras, 1996. IBÁRCENA, Lorenzo Zolezzi. Derechoen contexto. Lima: Fondo Editorial de la Pontificia Universidad Católica del Perú, 2012. KELSEN, Hans. Teoria pura do direito. Tradução de João Baptista Machado. São Paulo: Martins Fontes, 2003. LARENZ, Karl. Derecho justo - fundamento de ética jurídica. Tradução de Luis DiezPicazo, Madri: Civitas, 1985. MARINONI, Luiz Guilherme; Mitidiero, Daniel. O projeto do CPC: crítica e propostas. São Paulo:Revista dos Tribunais, 2010. RAMOS, Glauco Gumerato. Processo jurisdicional civil, tutela jurisdicional e sistema do CPC: como está e como poderá estar o CPC brasileiro. In: CARNEIRO, Athos Gusmão; CALMON, Petrônio (Coord.). Bases científicas para um renovado direito processual. 2.ed. Salvador: Editora Podivm, 2009. REALE, Miguel. História do novo código civil. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2005. SANDEL, MICHAEL J. Justiça: o que é fazer a coisa certa. 6.ed. Tradução de Heloísa Matias e Maria Alice Máximo. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2012. SILVA, Virgílio Afonso da. A constitucionalização do direito: os direitos fundamentais nas relações entre particulares. São Paulo: Malheiros, 2008. DIREITO PENAL AS CAUSAS DA VIOLÊNCIA DOMÉSTICA CONTRA A MULHER: UMA REVISÃO DA LITERATURA SÍLVIA APARECIDA GONÇALVES Doutorando e Mestre em Direito Civil pela PUC/SP. Especialista em Direito Processual Civil pela PUC/SP. Desembargador do TJMA. SUMÁRIO 1. Introdução; 2. Conceitos e Origem da Violência, 2.1 Tipos de Violência e Violência de Gênero, 2.2 Modalidades e Ciclo da Violência contra a Mulher; 3. As Origens da Violência contra a Mulher, 3.1. A Formação da Família e o Sistema Patriarcal, 3.2. A Construção dos Papéis Sociais; 3.3. Conseqüências da Desigualdade entre Homens e Mulheres; 4. A Evolução dos Direitos das Mulheres, 4.1. A Luta do Movimento de Mulheres pelos Direitos Sociais e Políticos – O Movimento Feminista, 4.2. As Leis e a Lei n.11.340/2006 – Lei Maria da Penha – As inovações e a transdisciplinariedade; 4.3. Neofeminismo e Visão Restauradora; 5. Considerações Finais; 6. Referências. RESUMO ABSTRACT O presente trabalho pretende explorar a dinâmica da violência doméstica contra a mulher, abordando a sua relação com uma visão restauradora. Através de uma revisão bibliográfica apresenta uma reflexão sobre as causas da violência doméstica e possíveis soluções, haja vista tratar-se de uma violação dos Direitos Humanos (ONU 1993) e um problema de Saúde Pública (ONU 1994), pelo seu impacto para a saúde e o desenvolvimento biopsicossocial da mulher. Revisa o contexto do sistema patriarcal e machista presente na sociedade, bem como seus rebatimentos no exercício da sexualidade feminina. Propõe uma visão restauradora, partindo do neofeminismo, da cultura de paz e de uma intervenção interdisciplinar entre as áreas profissionais, objetivando integrar conhecimentos para coibir a violência, através da rede de serviços, varas especializadas, formação continuada e capacitação em gênero. Abstract the present work aims to explore the dynamics of domestic violence against women, addressing its relationship with a restorative vision. Through a literature review presents a reflection on the causes of domestic violence and possible solutions, given that this is a violation of human rights (UN 1993) and a public health problem (UN 1994), by its impact on health and the biopsychosocial development of women. Revises the context of patriarchal and sexist system present in society, as well as their rebatimentos in the exercise of female sexuality. Proposes a restorative vision, starting from neofeminismo, the culture of peace and of interdisciplinary intervention among the professional areas, aiming to integrate knowledge to curb violence, through the network of services, specialty sticks, continuing education and training in gender. PAVRAS-CHAVE KEYWORDS violência contra a mulher; sistema patriarcal; direitos; sociedade; feminismo violence against women; patriarchy; rights; society; feminism 258 REVISTA DO INSTITUTO DOS ADVOGADOS DE SÃO PAULO v. 35, JANEIRO - JUNHO 2015 1. INTRODUÇÃO O presente trabalho pretende explorar a dinâmica da violência doméstica contra a mulher abordando a sua relação com uma visão restauradora. O interesse pelo tema surgiu a partir da minha trajetória profissional em Direito de Família, observando a presença da violência relacionada ao contexto social e psicológico das pessoas, propondo uma nova perspectiva na dinâmica do Direito com o objetivo de desenvolver soluções mais abrangentes dos conflitos. A relevância da presente pesquisa deve-se aos fatos incontroversos observados na sociedade que retratam a violência contra a mulher, apresentando a necessidade de uma reflexão sobre suas causas e possíveis soluções, haja vista tratar-se de uma violação dos Direitos Humanos (ONU 1993) e um problema de Saúde Pública (ONU 1994), pelo seu impacto para a saúde e o desenvolvimento da mulher. Os objetivos são refletir sobre as causas da violência contra a mulher e desconstruir o conceito de que se trata de um problema privado. Os métodos de pesquisa adotados foram a revisão bibliográfica para a construção da fundamentação teórica, bem como a sistematização e análise das informações. As hipóteses prováveis para o tema são o sistema patriarcal e machista presente na sociedade, objetivando o controle da sexualidade da mulher e a manutenção de riquezas. Esta monografia encontra-se dividida em quatro itens. O item dois conceitua a violência de uma forma geral, abordando as suas possíveis causas e origens, objetivando compreender melhor o comportamento agressivo que pode se tornar violento, dependendo de vários fatores, os quais não se têm uma definição única devido à amplitude do tema. Apresenta ainda a conceituação de violência de gênero, natureza, tipos e causas da violência doméstica contra a mulher. Aborda as novas definições das formas de violência: física, sexual, psicológica, moral e patrimonial, dentro de um ciclo destrutivo. Para que sejam compreendidas as causas relacionadas à violência doméstica contra a mulher o item três inicia-se com a formação da família para colaborar com o entendimento de como se deu as relações entre homens e mulheres e a transformação do sistema matriarcal para patriarcal. DOUTRINA . DIREITO PENAL AS CAUSAS DA VIOLÊNCIA DOMÉSTICA CONTRA A MULHER: UMA REVISÃO DA LITERATURA 259 Explora as informações sobre a construção de gênero e os papéis sociais dos homens e mulheres, bem como as conseqüências da desigualdade. O item quatro traz uma análise sobre a conquista das mulheres na sociedade mediante a cultura machista arraigada a ela, através dos movimentos de luta, tais como o movimento feminista. O referido movimento tem como meta a igualdade de direitos entre homens e mulheres, intervindo na sociedade através de propostas de garantia de direitos, exaltando algumas personalidades femininas que contribuíram significativamente para a transformação da história. Apresenta a forma como a legislação trata a conduta da mulher e regulariza as suas relações, através da Constituição Federal, Código Civil (Lei. n.º 3.071/1916 e n.º 10.406/2.002; Código Penal (Decreto Lei n.º 2.848/1940); Estatuto da Mulher Casada (Lei n.º 4121/1962), Lei n.º 6.515/77 (Lei do Divórcio) e Lei n.º 9.099/95. Aborda os Tratados Internacionais e especificamente a Lei n.º 11.340/06 – Lei Maria da Penha, suas inovações, caráter transdisciplinar, pontos controversos e constitucionalidade. Finaliza com uma proposta restauradora, partindo do neofeminismo, da cultura de paz e de uma intervenção interdisciplinar entre as áreas profissionais, objetivando integrar conhecimentos para coibir a violência, através da rede de serviços, varas especializadas, formação continuada e capacitação em gênero. 2. CONCEITOS E ORIGENS DA VIOLÊNCIA “Não existe uma definição consensual ou incontroversa de violência. O termo é potente demais para que isso seja possível.” (Anthony Asblaster) Dicionário do Pensamento Social do Século XX Com intuito de elucidar a compreensão das origens da violência, se faz necessário definir alguns conceitos. Segundo o Dicionário Houaiss (2010, p.804), “violência é uso de força física; ação de intimidar alguém moralmente ou o seu efeito; ação freqüente destrutiva, exercida com ímpeto, força; expressão ou sentimento vigoroso; fervor”. A Organização Mundial da Saúde (OMS), no Relatório Mundial sobre Violência e Saúde (2002), define violência como: 260 REVISTA DO INSTITUTO DOS ADVOGADOS DE SÃO PAULO v. 35, JANEIRO - JUNHO 2015 O uso intencional da força física ou do poder, real ou em ameaça, contra si próprio, contra outra pessoa, ou contra um grupo ou uma comunidade, que resulte ou tenha grande possibilidade de resultar em lesão, morte, dano psicológico, deficiência de desenvolvimento ou privação. Violência em seu significado mais freqüente quer dizer uso da força física, psicológica ou intelectual para obrigar outra pessoa a fazer algo que não está com vontade; é constranger, é tolher a liberdade, é incomodar, é impedir a outra pessoa demanifestar seu desejo e sua vontade, sob pena de viver gravemente ameaçada ou até mesmo ser espancada, lesionada ou morta. É um meio de coagir, de submeter outrem ao seu domínio, é uma violação dos direitos essenciais do ser humano (TELES e MELO, 2002). Michaud (1989, p. 08) propõe em relação à etimologia do termo: Violência vem do latim violentia, que significa violência, caráter violento ou bravio, força. O verbo violare significa tratar com violência, profanar, transgredir. Tais termos devem ser referidos a vis, que quer dizer força, vigor, potência, violência, emprego de força física, mas também quantidade, abundância, essência ou caráter essencial de uma coisa. Mais profundamente, a palavra vis significa a força em ação, o recurso de um corpo para exercer sua força e portanto a potência, o valor, a força vital. O autor ressalta ainda que, devido à diversidade, é difícil definir violência, porém, um conceito possível seria: “uma ação direta ou indireta destinada a limitar, ferir ou destruir as pessoas ou os bens” (MICHAUD, 1989, p.10). Ou então: A violência se define, no sentido estrito, como um comportamento que visa causar ferimentos às pessoas ou prejuízo aos bens. Coletiva ou individualmente, podemos considerar tais atos de violência como bons, maus, ou nem um nem outro, segundo quem começa contra quem. (MICHAUD; GRAHAM; GURR, 1989, p. 10). Analisando a origem da violência salienta-se a importância do estudo da agressividade. Segundo Michaud (1989), as abordagens antropológicas descrevem a agressividade sugerindo um estado que leva ao ataque e ao combate, de forma positiva adaptativa ao ser vivo. Há uma agressividade correspondente às situações de estresse no organismo para a produção de uma modificação. Na agressividade humana a função positiva é relativa, em que pese seja ela própria do homem como dos outros animais. Tem caráter adaptativo nos primeiros homens, mas com o conhecimento e domínio do DOUTRINA . DIREITO PENAL AS CAUSAS DA VIOLÊNCIA DOMÉSTICA CONTRA A MULHER: UMA REVISÃO DA LITERATURA 261 meio ambiente, técnicas e instrumentos de caça passam a ser nocivos, de modo que a violência humana traz uma transgressão, uma destruição e uma crueldade que não coadunam com a natureza. A agressão acompanha a conquista, a destruição e a exploração. Neste sentido, há uma violência no próprio âmago da humanidade, que anima suas invenções, suas descobertas e sua produção de cultura. (MICHAUD, 1989, p.76). De acordo com Goldberg (2004), há duas formas de agressão: a instintiva, impulso mediante o ataque ou recuo quando há ameaça à vida ou ao espaço vital; e aquela com requintes de crueldade e objetivo de satisfação de um desejo. O homem reage impulsionado por uma herança da era pré-histórica, onde por sua primitividade caçava para sobreviver, já a vontade de matar teria prosperado pela competitividade. Sob o prisma da Psicologia Social, a violência pode ser compreendida como a seqüela da centralização dos poderes, da burocratização das decisões e da globalidade representativa presentes nas sociedades totalitárias. Enfatiza que a violência pode ser causa e não só efeito, pois não existe uma psicologia do indivíduo sem o entendimento, também, da sua inserção social. Pelo entendimento de Michaud (1989), há várias abordagens psicológicas da violência e da agressividade: as que consideram fortes excitações, privações e hiperestimulações como fatores desencadeadores da agressividade e da raiva e outras que concebem os modelos na aprendizagem da agressão, através do convívio. Existem ainda teorias que equacionam a proporção da agressividade com a reação à frustração, ampliando-a com aspectos da vida social que podem influenciar o comportamento. Outras abordagens trazem os fatores traumáticos na formação das personalidades agressivas, dentro do ambiente familiar de forma a correlacionar a auto-agressão suicida e agressão voltada contra alguém, ou seja: uma situação de interação, onde agressor e vítima se condicionam mutuamente, concluindo: “Ninguém sabe realmente de que pode tornar-se capaz em matéria de violência”. Esclarece que todos estes fatores e aspectos contribuem para esclarecer sobre os indivíduos e suas capacidades de violência, de forma a produzir iniciativas práticas e educação. (MICHAUD, 1989, p. 81). Ainda com relação ao conceito e a natureza da violência, Sá (1999) enfatiza a dificuldade de defini-los, concluindo que as diversas opiniões dos autores sobre a violência passam por aspectos como o psiquismo, as frustrações e as privações como possíveis causas de uma força que causa à vítima uma privação ainda que oculta e não menos lesiva. 262 REVISTA DO INSTITUTO DOS ADVOGADOS DE SÃO PAULO v. 35, JANEIRO - JUNHO 2015 A violência e a agressividade não são sinônimas, pois ainda que a violência tenha origem no instinto agressivo, este pode não gerar violência propriamente dita, enquanto que ela não vem do instinto e pode ser totalmente racionalizada, planejada e justificada, como diz Costa (1992, apud Sá,1999, p.60): “violência é o emprego desejado da agressividade com fins destrutivos”. A agressividade é compreendida como reação natural do ser animal e hominal como forma de sobrevivência, visando suas necessidades e não seus objetivos. Devido à violência ser um resultado de vários fatores, não há uma única explicação para o comportamento violento das pessoas, sendo aplicado pela OMS (2002) um modelo chamado ecológico para concluir sua natureza de modo que fatores individuais e contextuais se relacionam. Assim, elementos históricos, biológicos, pessoais e demográficos, tais como: a) impulsividade; b) baixo rendimento escolar; c) abuso de substâncias tóxicas; d) histórico de abuso e agressão podem ser desencadeadores de atos violentos, além do convívio em ambientes que perpetuam e reproduzem tais atos nas relações sociais e íntimas. Sob um enfoque social a violência pode ser visualizada como um modo de viver da sociedade a qual, com o decorrer do tempo, se aculturou dela marginalizandose do mundo através dos muros, enquanto que nas favelas passou a ser vivenciada intimamente. Vale ressaltar que a violência sempre se apresentou sob várias faces, a partir do reconhecimento de seu uso como defesa e sobrevivência dos primórdios da vida humana. O exemplo da mais original e ostensiva das violências é a expulsão de Adão e Eva do paraíso partindo de um Deus agressor e punitivo, justificando o trabalho e a dor como castigos e conseqüências do bem e do mal, o que traz o conceito de normas, leis e regras e subordinação (ODALIA, 1985). O autor aponta ainda a violência institucional traduzida pelas diferenças sociais que sempre fizeram parte da sociedade humana como uma forma de violência, uma vez que afasta o homem do homem e impõe uma relação de força e não de equilíbrio. Por outro lado, viver em sociedade implica em uma organização em relação ao outro, trazendo a necessidade de definição do que é permitido e proibido, inclusive delimitando a violência através das leis. Neste sentido Reale (1993, p.44) ensina que: “Quem pratica um ato, consciente da sua moralidade já aderiu ao mandamento a que obedece.” O autor esclarece que há regras sociais que podem ser cumpridas espontaneamente ou por coação, quando o indivíduo é obrigado a obedecer, através da idéia da força que a norma jurídica prevê. DOUTRINA . DIREITO PENAL AS CAUSAS DA VIOLÊNCIA DOMÉSTICA CONTRA A MULHER: UMA REVISÃO DA LITERATURA 263 Esta idéia de força presente nas regras do Direito como controle da conduta humana também é apontada por Ferraz Junior (1988) quando diz que a justiça é uma maneira de impor uma ordem a qual, se desrespeitada, pode gerar uma oposição, mas que sem ela, as pessoas são levadas a um descontrole das regras de convivência, demonstrando assim que as normas possuem um caráter de obediência e de revolta. Costa e Pimenta (2006) enfatizam a necessidade de se compreender a formação do Estado Brasileiro, permeado de vários tipos de violência, principalmente contra índios, negros, mulheres e pobres, além dos problemas sociais, econômicos e culturais não superados desde o Brasil - Colônia. Ensina Pedroso (2002), que as práticas de violência foram herdadas de Portugal, que seguiam as Ordenações Filipinas, cujas normas legais eram muito rígidas e as penas aplicadas de acordo com a condição social do réu, demonstrando a falta do princípio de igualdade, até 1808, quando se iniciou uma revisão das leis e a associação entre Estado e Igreja. Surge então a Inquisição, procedimento que fora instituído oficialmente em Portugal em 1492 para justificar a perseguição de todos os que não fossem cristãos. Através das Visitações Portuguesas compostas por representantes da Igreja e do Estado Português, os infiéis eram levados à Igreja onde eram processados e sentenciados na própria Colônia. Já os casos mais graves contra a fé, eram julgados pelo Tribunal Lisboeta, tal como o caso de Joana Maria, que fora acusada de heresia por tentar vender uma hóstia consagrada, em 1772. No processo contra Joana Maria, casada com o serrador de madeiras Francisco Antônio Coluna e moradora do Grão-Pará, consta que ela cometeu “o mais horroroso, abominável e sacrilégio desacato” aos dogmas da fé. A pena aplicada à ré foi dura, mesmo levando-se em conta sua confissão espontânea do crime e seu objetivo em praticá-lo – livrar-se do marido que a espancava rotineiramente. Para o Santo Ofício, Joana Maria desprezou a obrigação de temer a Deus e a seu esposo, permitindo que sua fragilidade e ignorância naturais a dominassem, ao servir como agente de Satã. Foi, então, punida. “Não com a morte, já que confessou seu pecado, mas com o açoite purificador e o degredo de dez anos em uma casa de correção, a fim de voltar aos preceitos da fé e reparar seus erros. PEDROSO (2002, p.14). A autora explica que tais imposições e regras autoritárias, políticas e religiosas, trouxeram para o Brasil a base de normas políticas, morais e sociais para a criação dos 264 REVISTA DO INSTITUTO DOS ADVOGADOS DE SÃO PAULO v. 35, JANEIRO - JUNHO 2015 primeiros códigos legais brasileiros, atingindo a todos, e no tocante às mulheres, as quais foram estigmatizadas como seres com menos ou nenhum direito, surgindo assim uma modalidade específica de violência. Tais fatos consubstanciam a dificuldade de aplicação da justiça social sob o pressuposto da igualdade e de atendimento das demandas advindas do processo de imigração, urbanização e industrialização, gerando frustrações e revolta dos menos favorecidos, possíveis geradores de atos violentos. (PEDROSO, 2002). Para Costa e Pimenta (2006) o modelo de produção capitalista e o projeto político democrático, porém, tradicional, instituíram um sistema controlador e padronizou aos seus moldes o comportamento de todos sem considerar as diferenças sociais existentes. Para os autores, se antes o modelo de comportamento era do “homem cordial” e submisso, com a globalização, os papéis sociais buscam uma melhor sintonia democrática, porém, ainda numa sociedade desorganizada, o que contribui para disseminação de condutas violentas. Neste sentido observa-se nos homens um movimento individualista e uma busca de satisfação imediata que acirra as disputas e dificulta soluções, indicando que a violência está presente em todos os setores da sociedade, de algum modo, cultivando o desrespeito pelo outro. Da perspectiva cultural, a violência é parte do viver, do presente, e está no trânsito, nas casas, nas ruas, nas escolas, no tráfico de drogas, no Estado, nas relações de gênero e de poder e nas instituições (policiais, judiciárias, hospitalares, educacionais, entre outras). A violência não é somente um reflexo da violência urbana e nem exclusivamente se vincula às estruturas sociais injustas, às desigualdades econômicas, à inércia do Estado ou à desestruturação da ordem legal. Em campo aberto a violência ganha dimensão de excesso, banal, brutal, vazia, espetacular, desconectada e, aparentemente para muitos sem sentido e sem conteúdo. (COSTA e PIMENTA, 2006, p. 65) O homem é o único primata capaz de torturar membros da mesma espécie sem motivo biológico, econômico e com obtenção de prazer (sadismo, paixão pelo poder sobre o outro ser de sensibilidade). (GOLDBERG, 2004, p.34). Mediante toda esta perspectiva pode-se atentar mais pormenorizadamente em um tipo de violência praticada contra as mulheres, hoje chamada violência de gênero. DOUTRINA . DIREITO PENAL AS CAUSAS DA VIOLÊNCIA DOMÉSTICA CONTRA A MULHER: UMA REVISÃO DA LITERATURA 265 2.1. TIPOS DE VIOLÊNCIA E VIOLÊNCIA DE GÊNERO Para se definir violência de gênero, primeiramente conceituam-se os tipos de violência segundo a OMS (2002, p.5): “[...] o resultado da complexa interação de fatores individuais, de relacionamento, sociais, culturais e ambientais”. Assim, sua natureza pode ser: física, sexual, psicológica, envolvendo privação ou negligência. Além disso, propõe uma divisão conforme a característica de quem comete o ato de violência, dividindo-a em três grandes categorias: 1) violência dirigida a si mesmo (auto-infligida): suicídio, auto-abuso ou automutilação; 2) violência interpessoal: entre pessoas de um mesmo grupo; 3) violência coletiva: social, política e econômica, praticada por grandes grupos ou pelos Estados. A violência interpessoal é dividida em duas subcategorias: Violência da família e de parceiro (a) íntimo (a), ou seja, violência que ocorre em grande parte entre os membros da família e parceiros íntimos, normalmente, mas não exclusivamente, dentro de casa. Violência comunitária: violência que ocorre entre pessoas sem laços de parentesco (consangüíneo ou não), e que podem conhecer-se (conhecidos) ou não (desconhecidos), geralmente fora de casa (OMS, 2002, p. 6). Os tipos de violência pertencentes à primeira subcategoria (familiar) incluem: o abuso infantil, a violência praticada por parceiro íntimo e o abuso contra os idosos. A segunda (comunitária) inclui violência juvenil, atos aleatórios de violência, estupro ou ataque sexual por estranhos, bem como a violência em grupos institucionais, tais como escolas, locais de trabalho, prisões e asilos. Dentre os diversos tipos de violência definidos pela OMS (2002), a violência intrafamiliar é aquela que ocorre entre membros da própria família, podendo ser caracterizada pela violência conjugal entre homens e mulheres nas relações afetivas de casal, dentro e fora do ambiente doméstico, podendo estendê-las também para os relacionamentos entre noivos, namorados, ex-maridos e ex-conviventes, incluindo aquela que ocorre pela discriminação sexual, ou seja, violência de gênero. De acordo com Teles e Melo (2002), gênero é um termo definido pela gramática como uma categoria que indica por meio de desinências (flexão de número, gênero, pessoa, tempo etc.) uma divisão dos nomes baseada em critérios como sexo e associações psicológicas. A violência de gênero é entendida como “violência contra a mulher”, sendo gênero uma expressão que foi aplicada pelo movimento feminista nos anos 70 para definir atos lesivos contra a mulher. É a violência que é praticada contra 266 REVISTA DO INSTITUTO DOS ADVOGADOS DE SÃO PAULO v. 35, JANEIRO - JUNHO 2015 a mulher exatamente por ser mulher, usada como instrumento de poder e dominação masculina, construído, reafirmado e mantido pelo sistema social baseado no modelo patriarcal de forma que produz e banaliza a violência doméstica contra as mulheres. Para a OMS (2002), a violência de gênero é uma das formas mais comuns de violência contra as mulheres, praticada por um marido ou um parceiro íntimo. O que normalmente não ocorre com relação aos homens, pois geralmente eles são atacados por um desconhecido ao invés de alguém que faça parte de seu círculo íntimo de amizades. Um fato colaborador deste tipo de violência é que as mulheres, em geral, estão emocionalmente envolvidas com quem as vitimiza e dependem economicamente deles, implicando tanto para a dinâmica do abuso quanto para as formas de lidar com o problema. Segundo a OMS (2002) a violência de gênero ocorre em todos os países, independentemente do grupo social, econômico, religioso ou cultural e apesar de mulheres poderem ser violentas em seus relacionamentos com homens ou em relacionamentos homoafetivos, a grande parcela da violência de gênero recai sobre as mulheres nas mãos dos homens. Se inicialmente a violência de gênero era vista como uma questão de direitos humanos, atualmente é cada vez mais encarada como um importante problema de saúde pública. Os dados advindos de uma grande variedade de países indicam que a violência de gênero é responsável por um significativo número de mortes por assassinato entre as mulheres. Estudos realizados na África do Sul, na Austrália, no Canadá, nos Estados Unidos e em Israel mostram que: das mulheres vítimas de assassinato, de 40% a 70% foram mortas por seus maridos ou namorados, normalmente no contexto de um relacionamento de abusos constantes. Esse fato contrasta com a situação dos homens vítimas de assassinato. Nos Estados Unidos, por exemplo, apenas 4% dos homens assassinados entre 1976 e 1996 foram mortos por suas esposas, ex-esposas ou namoradas (OMS, 2002). O relatório do Fundo das Nações Unidas para a Infância (UNICEF, 2000, apud GOLDBERG, 2004) registra 60 milhões de mulheres a menos nas estatísticas globais devido a fatores como: violência (espancamentos, crimes de honra), desatenção, falta de acesso a unidades médicas e educação, incesto, aborto seletivo, infanticídio, mutilação genital, matrimônio precoce, desnutrição, prostituição e trabalhos forçados. Em uma relação íntima, a violência de gênero refere-se a qualquer comportamento DOUTRINA . DIREITO PENAL AS CAUSAS DA VIOLÊNCIA DOMÉSTICA CONTRA A MULHER: UMA REVISÃO DA LITERATURA 267 que cause dano físico, psicológico ou sexual àqueles que fazem parte da relação. Esse comportamento inclui: atos de agressão física, tais como estapear, socar, chutar e surrar; abuso psicológico, tais como intimidação, constante desvalorização e humilhação; relações sexuais forçadas e outras formas de coação sexual e vários comportamentos controladores, tais como isolar a pessoa de sua família e amigos, monitorar seus movimentos e restringir seu acesso às informações ou à assistência (OMS, 2002). Violência doméstica é a que ocorre dentro de casa, nas relações entre pessoas da família, entre homens e mulheres, pais/mães e filhos, entre jovens e pessoas idosas. Podemos afirmar que, independentemente da faixa etária das pessoas que sofrem espancamentos, humilhações e ofensas nas relações descritas, as mulheres são o alvo principal (TELES; MELO, 2002, pág.19). Mas como já foi visto a violência contra a mulher é um tipo de violência interpessoal praticada por parceiro íntimo, que ocorre ou não no ambiente doméstico em razão da relação íntima de afeto, conforme define a Lei n.º11.340/2006 (Lei Maria da Penha), que cria mecanismos para coibir a violência doméstica e familiar contra a mulher, definindo e identificando as formas de violência com um caráter pedagógico à sociedade. Tal conceito era desconhecido e sua prática tolerada como se não existisse, motivo pelo qual não era considerada como violação de direito. Deste modo, violência doméstica é: “qualquer ação ou omissão baseada no gênero que lhe cause morte (femicídio1), lesão, sofrimento físico, sexual ou psicológico e dano moral ou patrimonial.” (DIAS, 2007, p.40). Para a autora, seu campo de abrangência é aquele em que é praticada, seja no âmbito da unidade doméstica, da família ou qualquer relação íntima de afeto, independente de orientação sexual, devido a vários fatores. 2.2. MODALIDADES E CICLO DA VIOLÊNCIA CONTRA A MULHER Além de um novo conceito e uma nova definição, a Lei 11.340/2006 reconheceu formas específicas de violência doméstica e familiar contra a mulher, sem ser exaustiva, podendo reconhecer outras ações que configurem a agressão, de modo inovador pelo legislador: Violência Física: “qualquer conduta que ofenda sua integridade ou saúde corporal”, podendo ser entendida como o resultado do uso da força, ainda que não deixe marcas físicas, independente da intenção do agressor. Violência Psicológica: “qualquer conduta que cause dano emocional, diminuição 268 REVISTA DO INSTITUTO DOS ADVOGADOS DE SÃO PAULO v. 35, JANEIRO - JUNHO 2015 da auto-estima, prejudique ou perturbe o pleno desenvolvimento ou que vise degradar ou controlar suas ações, comportamentos, crenças e decisões, mediante ameaça, constrangimento, humilhação, manipulação, isolamento, vigilância constante, perseguição contumaz, insulto, chantagem, ridicularização, exploração e limitação do direito de ir e vir ou qualquer outro meio que lhe cause prejuízo à saúde psicológica e à autodeterminação”. 1 Novo conceito aplicado para o assassinato de mulheres por razões associadas às relações de gênero, usado pela primeira vez por Diana Russell e Jill Radford, em seu livro The Politics of Woman Killing, publicado em 1992, em Nova York. A expressão já havia sido empregada no Tribunal Internacional de Crimes contra Mulheres, em 1976. Lei nº 13.104/2015 – Alterou o art. 121 do Decreto Lei 2.848/1940, para prever o feminicídio como circunstância qualificadora do crime de homicídio e o art. 1º da Lei nº 8.072/1990 para incluir o feminicídio no rol dos crimes hediondos. Violência Sexual: entendida como: “qualquer conduta que a constranja a presenciar, a manter ou a participar de relação sexual não desejada, mediante intimidação, ameaça, coação ou uso de força; que a induza a comercializar ou a utilizar, de qualquer modo, a sua sexualidade, que a impeça de usar qualquer método contraceptivo ou que a force ao matrimônio, à gravidez, ao aborto ou a prostituição, mediante coação, chantagem, suborno ou manipulação; ou que limite ou anule o exercício de seus direitos sexuais e reprodutivos.” Violência Patrimonial, configurada como: “retenção, subtração, destruição parcial ou total de seus objetos, instrumentos de trabalho, documentos pessoais, bens, valores e direitos ou recursos econômicos, incluindo os destinados a satisfazer suas necessidades.” Violência Moral, entendida como: “qualquer conduta que configure calúnia, difamação ou injúria.” Calúnia: atribuição à vítima de um fato definido como crime; Injúria, ofensa a dignidade ou decoro da vítima – honra subjetiva; Difamação, ofensa a reputação da vítima – honra objetiva. No contexto familiar e propriamente nas relações íntimas de afeto entre casais, a violência tem um ciclo de evolução característico, proveniente de vários fatores que será tratado no próximo capítulo, tais como fatores sócio-culturais, econômicos, emocionais e religiosos, os quais no decorrer do tempo foram se arraigando no consciente das pessoas de forma banalizada. (DIAS, 2007). DOUTRINA . DIREITO PENAL AS CAUSAS DA VIOLÊNCIA DOMÉSTICA CONTRA A MULHER: UMA REVISÃO DA LITERATURA 269 A despeito da crença popular de que “mulher gosta de apanhar”, Dias (2007), observa que a mulher tem dificuldade de denunciar seu agressor, por vários motivos: ambivalência entre o amor e o ódio, eis que é o seu companheiro, pai de seus filhos quem a desrespeita; medo, vergonha, dependência financeira e afetiva; falta de informação e apoio, etc. Desta forma, a autora explica que o ciclo da violência se dá primeiramente pela indiferença, reclamações, discussões, reprovações, ofensas e punições (Fase de Tensão); posteriormente pelas ameaças, humilhações públicas, empurrões, tapas, destruição de seus pertences, agressões de todo o tipo e lesões (Fase da Violência); depois vêm as justificativas, pedidos de perdão, promessas e arrependimento (Fase da Lua de Mel) e assim sucessivamente, as fases vão se repetindo numa espiral ascendente, até o próximo conflito. Este ciclo se concretiza perversamente porque entre o homem e a mulher foi construída uma relação de dominante e dominado, de desigualdade sociocultural e da ideologia patriarcal que “protege” a agressividade masculina definindo papéis específicos para ambos, tais como: “homem não chora” e “trabalho doméstico é coisa de mulher”, além dos conceitos e ditados populares que absorvem a violência contra a mulher, por exemplo: “em briga de marido e mulher ninguém mete a colher”; “ele pode não saber por que bate, mas ela sabe por que apanha” e “mulher gosta de apanhar”, fruto de uma educação diferenciada que leva à invisibilidade desta problemática (DIAS, 2007, p.15-20). A ferida sara, os ossos quebrados se recuperam, o sangue seca, mas a perda da auto-estima, o sentimento de menos valia, a depressão, essas são feridas que não cicatrizam. (DIAS, 2007, p.20) 3. AS ORIGENS DA VIOLÊNCIA CONTRA A MULHER “Quando se respeita alguém não queremos forçar a sua alma sem o consentimento.” (Simone de Beauvior) A violência doméstica contra a mulher é uma realidade histórica que tem uma origem construída e mantida pela sociedade e por diversos fatores inerentes ao ser humano, tornando-se extremamente relevante entender as causas, seus efeitos, conseqüências 270 REVISTA DO INSTITUTO DOS ADVOGADOS DE SÃO PAULO v. 35, JANEIRO - JUNHO 2015 e fatores de sua existência para, mais que constatar passivamente tal fato, compreender que o indivíduo faz parte desta cultura e por isso pode transformá-la (MURARO, 2002; DIAS, 2007). 3.1. A FORMAÇÃO DA FAMÍLIA E O SISTEMA PATRIARCAL Nesta seção, Engels (2009), explana sobre a formação da família a partir das pesquisas de Morgan e textos de Marx. Antes de se atingir a civilização o desenvolvimento humano se iniciou pelo estado selvagem, onde o modo de sobrevivência era caracterizado pelo consumo das espécies da própria natureza. Através do desenvolvimento e fabricação de instrumentos veio a apropriação de alimentos. Posteriormente, o homem passou a usufruir de produtos artificiais, da criação de gado e da agricultura, até desenvolver o aprendizado para a produção da natureza. A partir da civilização surge o período da indústria e da arte. Na constituição dos primeiros modelos o sistema verificado era o da família acasalada, juntada ou estendida por grupos onde os homens não conheciam nenhuma outra forma de organização familiar. Na família punaluana, só se admitia um macho adulto como marido e como não podiam sobreviver isolados, precisavam formar grupos para se tornarem mais fortes, tornando-se, portanto necessário controlar o sentimento de ciúme e haver tolerância entre os machos para que se mantivesse o casamento grupal. Nessas formas de organização havia relação entre grupos de homens e grupos de mulheres e o conceito de incesto não existia, pois todos se relacionavam entre si à semelhança dos animais. As primeiras etapas da constituição familiar posterior, a família consangüínea, foram formadas por relações temporárias entre os pares e os filhos de um determinado casal, ou seja, os irmãos eram também maridos e mulheres uns dos outros, não havendo mais as relações entre ascendentes e descendentes. Posteriormente, passou-se a excluir também os relacionamentos sexuais entre os irmãos e em seguida entre os primos. Nessa forma de constituição familiar, não se tinha certeza em relação à paternidade, apenas da maternidade. A descendência, portanto só era possível se estabelecer em relação à mãe, a exemplo da organização por classes, onde a herança era materna. Essas formas de organização se mantiveram até que se constituísse o impedimento das relações sexuais e o casamento entre os membros consangüíneos, favorecendo a formação da família pré-monogâmica. DOUTRINA . DIREITO PENAL AS CAUSAS DA VIOLÊNCIA DOMÉSTICA CONTRA A MULHER: UMA REVISÃO DA LITERATURA 271 Na família pré-monogâmica havia a proibição do casamento entre parentes consangüíneos, em que pese haver uniões por pares mais longas e com uma mulher principal, mantinha-se ainda, a poligamia e a infidelidade dos homens. Às mulheres exigia-se o rigor da fidelidade e o castigo mais cruel em caso de adultério, apesar do vínculo conjugal poder ser dissolvido por ambas as partes. Com este novo arranjo de relações familiares, nova organização ocorreu uma mistura das classes através das uniões entre pessoas de grupos diferentes, criando-se uma raça mais forte física e mentalmente e por conseqüência o destaque das mais adiantadas sobre as mais atrasadas. Por esse motivo se reduziu muito a rotatividade entre seus membros, característica das relações grupais antes existentes, bem como o número de mulheres que podiam se relacionar livremente, surgindo assim o rapto e a compra de mulheres através dos arranjos de casamento, característica das uniões pré-monogâmicas. Sob este modelo de união houve o predomínio da mulher no âmbito doméstico e o reconhecimento da mãe natural devido à impossibilidade de se reconhecer o verdadeiro pai, o que de certo modo demonstrava consideração às mães e o domínio das mulheres na organização dos lares, mas por outro lado existia o caráter humilhante e opressor nas relações. O casamento temporário ou definitivo com um só homem significava uma libertação para a mulher que não desejava mais ser objeto de negociação, através do direito à castidade como forma de autoproteção. A América foi o berço da família prémonogâmica, no velho mundo, entretanto havia outra realidade histórica e econômica verificada através da criação de gado e da necessidade de mão-de-obra. Nesse contexto, surgiu o trabalho escravo, tido como fonte de riqueza por ser considerado um dos utensílios de trabalho dos homens, chefes de família, aos quais era atribuído o trabalho externo como parcela da divisão dos esforços nas relações. Tais utensílios, como os instrumentos de trabalho, as terras, os animais e os escravos com eles permaneciam em caso de separação do casal. Como a descendência só se contava pela linha feminina (materna), os filhos conseqüentemente se tornavam herdeiros somente do que a mãe possuía o que não constituía riquezas em razão da divisão do trabalho, uma vez que a mulher havia ficado reduzida aos afazeres domésticos. À medida que as riquezas foram aumentando, através dos lucros, o homem se destacou numa posição mais importante, o que motivou uma mudança profunda na sociedade, visto que a ele interessava modificar a ordem de herança materna, já que passou a se impor perante a mulher através das conquistas materiais, atribuídas 272 REVISTA DO INSTITUTO DOS ADVOGADOS DE SÃO PAULO v. 35, JANEIRO - JUNHO 2015 somente ao seu trabalho, sendo de seu interesse manter esta situação e subjugar a mulher a ter muitos filhos, preferencialmente homens que pudessem trabalhar nas suas terras e acumular bens. Desse modo, a mulher foi excluída e substituída pelo direito hereditário paterno e pela linha de descendência masculina, como garantia de sucessão das riquezas e posses. Casuística nata nos homens, a de mudar as coisas mudando-lhes os nomes! E encontrar saídas para romper com a tradição sem sair dela, sempre que um interesse direto der o impulso suficiente para isso (MARX, 1848, apud ENGELS, 2009, pág.57). Surgia assim, a família patriarcal monogâmica, caracterizada pelo domínio e poder exclusivo dos homens, os quais mantinham em seu poder: as riquezas, a mulher, os filhos e certo número de escravos, o que se chamava de família. Assim era na sociedade romana, cujo chefe mantinha o pátrio poder e o direito de vida e morte sobre todos eles, ocorrendo à transição do casamento pré-monogâmico para a monogamia, o qual objetivava assegurar a fidelidade da mulher e a paternidade dos filhos, através do controle da sexualidade feminina. A mulher tinha a finalidade expressa de procriar filhos, cuja paternidade fosse indiscutível e exigida, porque os filhos deviam tomar posse dos bens paternos na qualidade de herdeiros diretos. De acordo com o Código Napoleônico (1804, apud Engels, 2009), neste modelo só o homem tinha direito à infidelidade e podia romper o casamento com o e repudio a sua mulher. Portanto, a monogamia era só para a mulher, para a qual se exigia tolerância, castidade e a fidelidade conjugal, exercendo a administração da casa, dos filhos e das escravas, que eram exploradas sexualmente por seus maridos, expressando uma forma de subjugação de um sexo pelo outro “como proclamação de um conflito entre os sexos, ignorado, até então, em toda a pré-história” (p.65). Sendo assim, a liberdade sexual era benefício apenas dos homens, e r a tolerada p ela sociedade e praticada livremente, principalmente p elas classes dominantes. Para as mulheres esta prática era reprovada, ficando elas desprezadas e relegadas, enquanto aos homens proclamava-se a supremacia absoluta sobre o sexo feminino. Esse quadro contribuiu para o surgimento da figura da mulher abandonada, a do inevitável amante desta mulher e a do marido traído. Essa situação gerou desconforto e na tentativa de solucioná-la foi criado, através do Código Napoleônico, o art.º 312 que visava a preservação dos bens: “L´enfant conçu pendant lê mariage a pour père le mari” (O filho concebido durante o casamento tem por pai o marido), pois tanto a mulher DOUTRINA . DIREITO PENAL AS CAUSAS DA VIOLÊNCIA DOMÉSTICA CONTRA A MULHER: UMA REVISÃO DA LITERATURA 273 como o homem geravam filhos impuros ou bastardos com os amantes e as concubinas, fato que não podia ser tolerado pela sociedade e pela igreja, já que os bens seriam de herança paterna. Este modelo de casamento que moldou três mil anos de monogamia motivou a abolição do divórcio pela Igreja Católica, que tinha influência social e interesse de preservação dos bens da classe burguesa. No entanto, percebia-se uma diferença desta interferência nas relações, dependendo da classe social mais ou menos abastada. Na burguesia o matrimônio era condicionado pela posição social dos contratantes, por conveniência. Na classe pobre não se justifica papel algum na atitude controladora do marido para com sua mulher, a qual não deixa de ser mal tratada pelo homem em razão do aculturamento do machismo introduzido pela monogamia. Do mesmo modo não há interesse econômico, possui características de maior liberdade de escolha do parceiro e apresenta maior participação na economia através do trabalho na indústria e na fábrica. A derrocada do direito materno foi a derrota do sexo feminino na história universal. O homem tomou posse também da direção da casa, ao passo que a mulher foi degradada, convertida em servidora, em escrava do prazer do homem e mero instrumento de reprodução. Esse rebaixamento da condição da mulher, tal como aparece abertamente, sobretudo entre os gregos dos tempos heróicos e mais ainda dos tempos clássicos, tem sido gradualmente retocado, dissimulado e, em alguns lugares, até revestido de formas mais suaves, mas de modo algum eliminado (ENGELS, 2009, pág.57). Priore (1997) complementa a elucidação, mostrando que a educação formal, com o mínimo possível de conteúdo, destinava-se somente às mulheres da burguesia, através da clausura da igreja a partir de princípios religiosos, o que não ocorria com os homens. O casamento continuava com a interferência da igreja na convivência do casal, pois o ato sexual era destinado somente à procriação, sendo proibido o prazer feminino e o comportamento ardente do homem com sua esposa. O uso de muitos adornos, vestimentas que mostrasse o pescoço, o colo, os pés eram proibidos, já que eram considerados altamente eróticos. A medicina acreditava que as doenças eram castigos divinos associados à culpa por pecados cometidos ou sinal demoníaco. Voltava-se para o estudo da anatomia e patologia, sobretudo feminina com o objetivo de saber por que e para quê Deus havia criado a mulher. Acreditava-se que a função reprodutiva da mulher era a causa de doenças e estas ligadas ao demônio, através da genitália da mulher, que a transformava 274 REVISTA DO INSTITUTO DOS ADVOGADOS DE SÃO PAULO v. 35, JANEIRO - JUNHO 2015 numa eterna doente. Seu útero era objeto de estudo, porém, limitado, pois era considerado um mero depósito das sementes do macho, terras disponíveis para serem fertilizadas. (PRIORE, 1997). Fato histórico relevante e pouco estudado muito menos pesquisado, ocorrido na idade média foi o genocídio contra as mulheres na Europa e nas Américas, chamado “caça as bruxas” através do Tribunal da Inquisição. Eram consideradas incrédulas (hereges) pelo trato com ervas ao exercerem funções de curandeiras e parteiras, função que concorria com a medicina, profissão permitida somente aos homens. Sendo ela associada ao mal e seu corpo à fonte de malefícios, período em que o poder, monopólio da nobreza e do clero, baseava-se na posse da terra e na ascendência espiritual, afastando a mulher da participação pública. Acontecimento que faz parte da herança do silêncio que recobre a história da mulher. (ALVES e PITANGUY, 1981; PRIORE, 1997). “Segundo Aristóteles (384-322 a.C. apud Priore, 1997, p.82) era o homem que insuflava alma, vida e movimento à matéria inerte produzida no útero pela mulher.” Neste sentido, Venâncio (1997), discorre sobre a maternidade feminina no período colonial do Brasil demonstrando como a mulher tinha que se sacrificar para viver em sociedade. Valendo citar a figura da Roda dos Expostos ou Enjeitados, já antes conhecida em Portugal, que era um cilindro de madeira com uma abertura lateral vertical instalada nas santas casas ou casas de misericórdias hospitalares. Tinha como finalidade o depósito e acolhimento de bebês ou crianças abandonadas por suas mães e tal procedimento ocorria na calada da noite para que essas não fossem vistas. Abriam mão de seus filhos em razão dos conceitos morais e religiosos que as reprimiam, já que eram da burguesia, solteiras ou casadas que haviam engravidado em relações extraconjugais ou ainda pobres e escravas sem condições de assumirem ou sustentarem seus filhos. O aborto era praticado irregularmente e sem os cuidados médicos necessários, já que a mulher corria o risco de ser presa ou processada pelo Tribunal do Santo Ofício Português (Inquisição), submetendo-se a métodos de eficácia duvidosa, sob muitos temores e risco de morte. Além disso, as índias morriam em decorrência de doenças trazidas pelo homem, frutos de relações dos homens brancos, para as quais não possuíam defesa orgânica, sendo seus filhos deixados com os padres jesuítas. (VENÂNCIO, 1997). A posição social da mulher na sociedade brasileira, principalmente no caso das mulheres de classes mais altas era puramente simbólica, pois estas não exerciam DOUTRINA . DIREITO PENAL AS CAUSAS DA VIOLÊNCIA DOMÉSTICA CONTRA A MULHER: UMA REVISÃO DA LITERATURA 275 atividade fora do lar, mas representavam e se comportavam como objeto de posse dos maridos (capital simbólico), aos quais eram livres para ocupar os espaços públicos em todas as áreas sociais. Às mulheres era admitido receber a família e os amigos do marido, dentro do ambiente doméstico, devendo-se portar como peça de apreciação pública quando era do interesse social e econômico do homem, seguindo as regras de bem receber e bem representar diante das pessoas. Podiam freqüentar certos lugares da vida social do esposo, como cafés, bailes, teatros desde que vigiadas por eles, pais ou irmãos, com muita moderação. (D’INCAO, 1997). A máscara social será um índice das contradições profundas da sociedade burguesa e capitalista [...] em função da repressão dos sentimentos, o amor vai restringir-se à idealização da alma à supressão do corpo”. (LEITE; MASSANI, 1989 apud PRIORE, 1997, p.229). A autora argumenta que as mulheres pobres ou de menos condições e as viúvas se ocupavam de trabalhos manuais, artesanais, quitutes, costuras, entre outras atividades para sobreviverem, mas o faziam com muita dificuldade ou até escondidas, pois não eram bem aceitas pela sociedade. As muito pobres sempre trabalhavam com a família no cultivo da terra e plantações além de acumular os serviços domésticos e os cuidados com os filhos, demonstrando ser mão-de-obra para qualquer serviço, o que no caso das escravas, ocorria desde a infância. Acrescenta que a mulher escrava era considerada “coisa”, podendo ser vendida, dada, emprestada ou alugada. Não tinha família nem ascendência, se liberta, podia absorver o sobrenome do antigo dono ou uma referência religiosa católica, exemplo: Ana Maria de Jesus. Seu casamento era informal, sem qualquer publicidade, caracterizado pela espontaneidade e junção de corpos do casal. No casamento da mulher pobre não havia interesse financeiro e nem dote, pois era visto como um alívio para o pai que comemorava com parcos recursos, desde que o genro tivesse um cavalo e uma casa de palha para levar sua filha como esposa. Ainda de acordo com D’Incao, 1997, as demais mulheres eram destinadas ao casamento para garantia de descendência, posição social e patrimônio, sendo providenciado pela família o compromisso e o acordo financeiro entre os interessados no aumento de riquezas. O regime era dotal onde o pai da noiva costumava adiantar parte da herança da filha ao genro, observando-se a doação como presente de casamento. Tais presentes 276 REVISTA DO INSTITUTO DOS ADVOGADOS DE SÃO PAULO v. 35, JANEIRO - JUNHO 2015 eram representados através de uma escrava, ainda que fosse bebê, até animais, ficando tudo sob o poder marital, para usar, gastar, dispor ou destruir sem qualquer direito de intervenção da esposa. Os casamentos eram realizados em festas gigantescas de pompa, esbanjamento de comidas, ostentação de riquezas e competição de poder. Muitas uniões que objetivavam manter e unir posses eram realizadas entre primos consangüíneos, gerando filhos “doentes mentais”, já que eram “arranjados” pelas famílias. As mulheres que escolhiam um homem e casavam informalmente, sem o consentimento do pai eram excluídas da família e mal vistas pela sociedade. (D’INCAO, 1997). Das leis do Estado e da Igreja, com freqüência bastante duras, à vigilância inquieta de pais, irmãos, tios, tutores, e à coerção informal, mas forte, de velhos costumes misóginos, tudo confluía para o mesmo objetivo: abafar a sexualidade feminina que, ao rebentar as amarras, ameaçava o equilíbrio doméstico, a segurança do grupo social e a própria ordem das instituições civis e eclesiásticas. (ARAÚJO, 1993, apud PRIORE, 1997, p.45). O texto de Nunes (1997) ensina que mulheres consideradas excluídas ou desviadas das regras da sociedade viviam marginalizadas, por vezes praticavam a prostituição como meio de sobrevivência já que tinham pouca oportunidade de trabalho, principalmente se seus companheiros estivessem desempregados ou mortos. Outra forma de submissão das mulheres eram os conventos que serviam de controle das atividades desviantes da mulher que não obedecia às ordens impostas ou até mesmo por espontaneidade da mulher para escapar de um casamento não desejado, clausura piedosa ou para se livrar dos maus tratos que sofriam de seus maridos. Sendo o acolhimento feito mediante dote, o que dificilmente acontecia para as mulheres pobres, indígenas, mestiças, negras, estas últimas, quando recebidas viviam como escravas das religiosas, pois não eram consideradas “puras de sangue”, além de possuírem “tendências acentuadas à lascívia e á luxúria” por serem mais sensuais do que as brancas e até por isso sofriam mais violência. (NUNES, 1997, p.489). A autora enfatiza que a repressão das mulheres no campo religioso também é relevante, pois no Brasil, mesmo as freiras não tiveram oportunidade de manifestação, participação ou influência no desenvolvimento das organizações eclesiásticas até hoje, dominada por homens, os quais através do poder “enviado por Deus” tinham muita influência social, econômica e política, portanto, uma realidade totalmente desigual mantida há muito tempo. DOUTRINA . DIREITO PENAL AS CAUSAS DA VIOLÊNCIA DOMÉSTICA CONTRA A MULHER: UMA REVISÃO DA LITERATURA 277 3.2. CONSTRUÇÃO DOS PAPÉIS SOCIAIS Vários autores analisaram a construção e a estrutura dos papéis sociais sob um enfoque de gênero, permitindo visualizar melhor o papel da mulher na sociedade. Enfatizaram que os papéis do homem e da mulher são construídos, delimitados e naturalizados pela sociedade, atribuindo-lhes funções específicas e desiguais, além de outros fatores e idéias. Tal naturalização deve-se à interferência humana, o que faz concluir que esta construção de papéis é sociocultural e se difere em cada sociedade em razão de interesses dos poderes dominantes. Existem grupos, por exemplo, que não sofrem a interferência do meio social, como as tribos indígenas brasileiras onde as mulheres, logo após o parto, retomam suas atividades e o pai cuida do filho. Pela influência social, percebe-se que as mulheres foram ocultando-se na história, estigmatizadas como domésticas ou do lar, realizando trabalhos considerados de menos valia, o que colaborou com a supremacia do homem. (ENGELS, 2009; MURARO, 1992; CUSCHNIR, 1994; TELES; MELO, 2002; DIAS, 2007). De acordo com estes autores, uma das justificativas poderia ser a diferença de força física entre homens e mulheres, o que deixaria o homem em vantagem para abonar a discriminação das mulheres. No entanto as mulheres pobres sempre trabalharam na terra com maior produtividade que o homem e ocuparam seus lugares na indústria bélica durante a guerra. Além disso, deve-se destacar que do ponto de vista biológico a mulher apresenta maior resistência e longevidade que o homem. Uma tentativa de fixar a idéia de inferioridade feminina refere-se à inteligência, já que ao homem é destinado o espaço público enquanto que poucas oportunidades são dadas à mulher para desenvolver suas potencialidades, haja vista sua maior permanência no espaço privado, restrito e doméstico. Cabe salientar que neste ambiente não há divisão social dos afazeres e geralmente pouca “ajuda” masculina e nunca a responsabilidade, a partilha e a preocupação do homem. Daí a idéia do trabalho doméstico não ser considerado e o trabalho externo ser visto como “ajuda” e nunca participação, mesmo porque, quando trabalha fora do lar na maioria das vezes tem um salário inferior ao do homem, sendo também discriminada nesta área. Causa de uma construção social de gênero feminino fragilizado de modo que até hoje a mulher ainda não ocupa espaços públicos em igualdade com os homens e não tem seus direitos respeitados na integralidade. (MURARO, 1992; PRIORE, 1997, TELES; MELO, 2002; FARIA, 1994). 278 REVISTA DO INSTITUTO DOS ADVOGADOS DE SÃO PAULO v. 35, JANEIRO - JUNHO 2015 Outra ligação importante para a compreensão da dominação e violência seria entre castração e patriarcado, a partir de uma visão religiosa, mostrando as relações de submissão da natureza ao homem, dos homens entre si, da mulher ao homem e do homem a um Deus (pai), evidenciado pelo elemento da culpa da mulher pela saída do homem do Paraíso; pela conseqüência de punição pelo trabalho (repressão do prazer e da sexualidade) assim como a aquisição de saber e conhecimento visto como transgressão às regras da sociedade. Demonstrado pelas idéias eclesiásticas: “e comerás o pão com o suor do teu rosto”; e ainda a dor e a submissão à mulher: darás à luz ao teu filho com dores”; “e teu desejo te levará ao teu marido e ele te dominará”.(GOLDBERG, 2004, p.25; MURARO, 1992, p.73; MURARO; BOFF, 2002, p.96). O fato de se adquirir conhecimento, segundo os autores, geraria indivíduos mais exigentes e esclarecidos, por isso a falta de incentivo à educação e à instrução formal. Pois, se assim não fosse não haveria sociedade agrária para justificar a escravidão e com isso a necessidade do domínio pelos mais abastados sobre os menos favorecidos, o que faz funcionar o sistema. Neste sentido, é observado que um sentimento de transcendência, alimentado provavelmente pela descoberta do papel do homem na procriação dos filhos o que acabou com a idéia da relação da mulher com o sagrado, antes temida devido ao parto, a nudez e a menstruação. Nascendo então a possibilidade de controle e poder da sexualidade da mulher e da natureza, além da crença em um Deus do sexo masculino, transcendente e controlador, início da moralidade e pecado. Principalmente ou diretamente para os oprimidos e às mulheres, através das regras criadas pelos próprios homens empoderados de soberba para manter o controle e a opressão. (GOLDBERG, 2004; PRIORE, 1997; SAFFIOTTI, 1987). Sob este panorama as mulheres foram associadas à sedução, à traição, a derrota e a morte rompendo-se o laço de afeição entre homens, mulheres e os grupos, por isso subjugada, humilhada, explorada econômica, social e sexualmente como serviçal, introjetando sua inferioridade, causa da dependência psicológica, tendências masoquistas, baixa estima, frigidez e carência sexual. Carência que geralmente verificada pela compensação afetiva na relação com os filhos, sobretudo os filhos homens. Outra hipótese seria a cultura genitalizada concentrada nos órgãos sexuais masculinos que os torna menos sensíveis às outras áreas do seu corpo e do corpo da mulher, detendo ele o direito ao desejo e ao prazer, porém solitário, incompleto focado exclusivamente na ejaculação, o que torna o ato sexual empobrecido para ambos, eis DOUTRINA . DIREITO PENAL AS CAUSAS DA VIOLÊNCIA DOMÉSTICA CONTRA A MULHER: UMA REVISÃO DA LITERATURA 279 que ausente a reciprocidade e o prazer do dar e receber simultâneos em várias atividades e não somente naquelas meramente serviçais atribuídas à mulher, cujas atividades não trazem realização, admiração e valorização. A falta de sensibilidade que permeia a educação masculina pode levar o homem para o hábito de dominação dos outros, o pensamento abstrato, a manipulação, o trabalho, a violência, a competitividade etc. Reflete nos relacionamentos podendo resultar em pura racionalidade e incapacidade de amar uma mulher, se ocorrer rompimento do afeto e da imagem da mulher, que ora pode se confundir com a mãe afetiva e ora com a da mulher perniciosa e vulgar que só serve para o prazer momentâneo, fruto do aprendizado de que o amor por uma mulher pode castrá-lo ou vencê-lo deixando o fraco. Tudo isso, segundo os autores, não ocorreria com a mulher, pois esta desde a infância não romperia a sexualidade do afeto, não reprimiria o amor e nem a ligação com a mãe, desenvolvendo a sociabilidade, a intuição, a subjetividade, solidariedade e partilha, reprimindo, no entanto, a iniciativa, inteligência, agressividade, a partir do inconsciente. (SAFFIOTI, 1987; MURARO, 1992; MURARO; BOFF, 2002, PRIORE, 1997). A plenitude do prazer só pode ser alcançada quando nenhuma dimensão da personalidade do ser humano – homem ou mulher - é impedida de se desenvolver. Por que não permitir, e mesmo estimular, o desenvolvimento da razão nas mulheres? Por que não incentivar o homem a não reprimir a dimensão afetiva de sua personalidade? Ambos seriam mais completos e, portanto, mais capazes de sentir e dar prazer. Das relações assimétricas, desiguais, entre homens e mulheres derivam prejuízos para ambos. Basta observar atentamente o tipo mais freqüente de relações homem-mulher para se chegar a esta conclusão. Cabe, então, perguntar a quem beneficia este estado de coisas, já que forças poderosas tentam, de todos os modos, impedir que nele se operem mudanças. (SAFFIOTI, 1987, p.20). Para Muraro e Boff (2002), na construção dos princípios femininos e masculinos há três correntes, sendo que a primeira afirma que a origem dos comportamentos se dá através de características psicológicas próprias e os tipos de relação entre os sexos, opressora ou igualitária, são condicionadas por esta base biológica. A segunda afirma que as diferenças resultam de condicionamentos sociais que podem ser moldados dependendo da influência social operada. E a terceira reconhece parte das duas correntes anteriores, reputando a singularidade de cada um, seu capital biológico-sexual e a influência social que se interagem simultaneamente, construindo socialmente o 280 REVISTA DO INSTITUTO DOS ADVOGADOS DE SÃO PAULO v. 35, JANEIRO - JUNHO 2015 gênero através do meio social cultural em que o indivíduo vive. Nesse sentido, poderiam surgir conflitos quando não ocorre reciprocidade e complementariedade. Nas relações injustas e desumanas não se considera a reciprocidade, nela vigora a diferença como deficiência e, por isso, não se admitindo esta complementariedade que pode existir entre homem e mulher. 3.3. CONSEQÜÊNCIAS DA DESIGUALDADE ENTRE HOMENS E MULHERES Analisando as conseqüências destas desigualdades apontadas pelos diversos autores acima descritos, Muraro e Boff (2002) explicam que considerando a evolução da humanidade ter passado por todas as fases e mutações para chegar às formas mais elevadas nas relações e tomada de consciência verifica-se que o despertar foi lento até chegar à explosão em que a sociedade se encontra através da aceleração histórica e tecnológica. Demonstrando que a solidariedade e a partilha que antes existia nos primórdios das civilizações passaram à consciência da competição e com isso a banalização da violência. Através do uso da força pelo homem e a sua destinação ao domínio público, ao contrário da mulher que se dirigiu ao privado e a procriação, a relação homem – mulher passa a ser de dominação e violência. Mas a mulher milenarmente educada para o altruísmo e a partilha passa a fechar um ciclo de cultura patriarcal, trazendo para o sistema produtivo e para o Estado, um novo modo de atuação na área pública. Atualmente, a mulher é quem traz os novos/arcaicos valores simbólicos de solidariedade da família para o sistema produtivo e para o Estado. Desta forma, a entrada da mulher no domínio público masculino é condição essencial para reverter o processo de destruição. (MURARO; BOFF, 2002, p.14). Muraro e Boff (2002) classificam as conseqüências das desigualdades em vários aspectos, tanto no âmbito da personalidade quanto no âmbito sexual. Tais conseqüências relativas à personalidade manifestam-se nos meninos, através de posturas marcadas pelo egoísmo, racionalidades, rigidez, impessoalidade, autonomia, controle, solidão, agressividade, manipulação e fragmentação. No caso das meninas, através do altruísmo, corpo, flexibilidade, passividade, dependência, união, acolhimento, cuidado e integração. No âmbito sexual, os meninos expressam que o amor leva à morte, o sexo é diferente de afeto, foco na realização dos prazeres e objetivos materiais, sentimento de medo em aprofundar as relações, dificuldade DOUTRINA . DIREITO PENAL AS CAUSAS DA VIOLÊNCIA DOMÉSTICA CONTRA A MULHER: UMA REVISÃO DA LITERATURA 281 em demonstrar emoções. As meninas se constituiriam por um forte sentimento de altruísmo, valorização de relações estáveis e idealização do amor. Weil (2002) considera normose um conjunto de valores e comportamentos compostos de consenso geral, ameaça à saúde ou a dignidade humana, individual, social ou planetária, de forma inconsciente, critérios que podemos observar tanto na normose masculinista como a feminista. Na normose masculinista há um consenso aceito por toda a sociedade há séculos, de caráter patológico e violento, totalmente inconsciente. Na normose feminista, em que pese a luta pela igualdade de direitos estar no caminho de busca por uma nova identidade feminina e uma nova definição do papel da mulher na sociedade, ainda há algumas linhas que se inclinam a pensar que a mulher foi reduzida ao exercício das atividades domésticas devido à cultura machista, oprimindo-a e causando uma série de frustrações e doenças mesmo quando ela tenta se equiparar ao homem. Na sociedade hodierna, quando então tem de enfrentar o preconceito, a diferença salarial, a culpa e as patologias provocadas pelo acúmulo de funções. A consciência desta realidade nos foi trazida pelo movimento feminista, hoje neofeminismo, buscando o resgate do feminino na mulher e no homem, assim como a transformação do masculino em ambos. Contrária a essa forma de pensar, que se inclina à redução e à subordinação da mulher em relação ao homem, surgiu o movimento feminista, que através de seus integrantes, busca resgatar a valorização do feminino e o maior equilíbrio entre os sexos. Isto implica uma visão transdisciplinar que passa pelos aspectos: sociológico, cultural, psicológico, educacional e evolutivo das pessoas, objetivando uma transformação e a integração da sociedade. A normose masculinista produz homens autoritários, tirânicos, arrogantes, orgulhosos, prepotentes, intolerantes, racionalistas ao extremo e, no fundo emocionalmente frágeis, imaturos e infelizes. A mesma normose produziu e continua produzindo mulheres submissas, dependentes, internamente revoltadas ou resignadamente dóceis, também imaturas e infelizes. (WEIL, 2002 p.42). Muraro e Boff (2002) afirmam que na desconstrução das desigualdades das relações de gênero o movimento feminista mundial enfrentou o projeto do patriarcado, exigindo respeito nas relações entre homens e mulheres. 282 REVISTA DO INSTITUTO DOS ADVOGADOS DE SÃO PAULO v. 35, JANEIRO - JUNHO 2015 No sistema patriarcal a violência faz parte da estrutura do homem, nascendo no momento em que o menino enfrenta o dilema do medo mata ou morre, mostrando a natureza essencialmente violenta da sublimação, já que lhe é negada a capacidade de amar no sentido de afeto, negação que o torna incompatível com a mulher, pois reforça o poder masculino e diminui a potencialidade da mulher. “Toda sublimação, abstração, generalização, nada mais são do que o jogo da opressão no mais íntimo do ser humano” (MURARO; BOFF, 2002 p. 151). Ou seja, não é a natureza a responsável pelos padrões e limites sociais que determinam comportamentos agressivos aos homens e dóceis e submissos às mulheres. Os costumes, a educação e os meios de comunicação tratam de criar e preservar estereótipos que reforçam a idéia de que o sexo masculino tem o poder de controlar os desejos, as opiniões e a liberdade de ir e vir das mulheres. (TELES; MELO, 2002, pág.18). Para os autores, a realização e a completude acompanhadas das naturais adaptações e singularidade que podem gerar conflitos trazem a descoberta do novo e a liberação de energias sublimadas, acabando com as repressões, culpa e agressão contra si mesmo. Tudo isso é contrário ao conservadorismo, onde prevalece o comodismo, afinal muitos interesses estão em jogo, principalmente os de poder. 4. A EVOLUÇÃO DOS DIREITOS DAS MULHERES Por uma concepção multicultural de direitos humanos, temos o direito a ser iguais quando a nossa diferença nos inferioriza; e temos o direito a ser diferentes quando a nossa igualdade nos descaracteriza. (Boaventura de Souza Santos) A evolução dos direitos na sociedade é gradativa, sendo construída sob bases e costumes já definidos e por isso passam por interesses de grupos dominantes, apoiando ou não a introdução de novos paradigmas que podem afetá-los diretamente, oferecendo mudanças de valores, conceitos e idéias que não se adéquam mais ao indivíduo ou a um grupo, o que pode gerar conflito e resistência, de forma que muitas conquistas são conseguidas pelo embate. (SAFFIOTI, 1987; MURARO, 1992; PRIORE, 1997). DOUTRINA . DIREITO PENAL AS CAUSAS DA VIOLÊNCIA DOMÉSTICA CONTRA A MULHER: UMA REVISÃO DA LITERATURA 283 4.1. A LUTA DO MOVIMENTO DE MULHERES PELOS DIREITOS SOCIAIS E POLÍTICOS – O MOVIMENTO FEMINISTA Face aos valores implementados pelo sistema patriarcal na construção dos papéis sociais baseados nas desigualdades implantadas entre homens e mulheres levandoas à condição de desigualdade em relação aos homens, ressaltam-se os movimentos de transformação de um estado de coisas e pessoas ou situação em todas as épocas que contribuem para a evolução da humanidade, novos conceitos e transmutação de valores. Dentre esses movimentos destaca-se o feminista. Alves e Pitanguy (1981) ilustram nesta seção que o feminismo não tem uma única definição ou tradução enquanto movimento de transformação, assim como outros movimentos conexos de libertação, de denúncia, de existência de formas de opressão e desrespeito aos direitos, ele rompe o silêncio das mulheres. Além disso, torna visível o caráter subjetivo do desrespeito, procurou superar as formas de organização tradicionais e “revela os laços existentes entre as relações interpessoais e a organização política pública.” (p.08) O movimento feminista caracteriza-se pela descentralização na sua organização, reconhecendo-se em suas múltiplas frentes, incluindo grupos que se mobilizam em torno de cursos, debates, pesquisas, campanhas, editoras, clínicas de saúde, manifestações culturais etc. E principalmente na esfera doméstica e no trabalho buscando recriar um novo modelo de relações interpessoais de igualdade onde homem ou mulher tenham suas qualidades atribuídas ao ser humano. Através deste movimento é que pode se recuperar a presença da mulher na história, sua condição e suas lutas. (ALVES ; PITANGUY,1981) Com relação à conquista de direitos, as autoras explanam que as mulheres não eram cidadãs de direito. Na Grécia eram equiparadas aos escravos. Na civilização romana as próprias leis legitimavam o paterfamilias (homem) como o detentor do poder sobre a mulher, filhos e escravos. No entanto, no ano 195 a.C. mulheres protestaram perante o Senado Romano por direitos ao uso do transporte público, privilégio masculino na época. Diversamente desta realidade, ressaltam que em sociedades tribais na Gália e na Germânia inexistia o controle de um sexo pelo outro, ocupando, homens e mulheres um espaço de atuação semelhante, sem divisão estrita na economia doméstica e social. Conjuntamente faziam à guerra, participavam dos conselhos, de decisões como juízas, ocupavam-se da agricultura e do gado, assim como da construção de suas casas. 284 REVISTA DO INSTITUTO DOS ADVOGADOS DE SÃO PAULO v. 35, JANEIRO - JUNHO 2015 Até o século XIII, início da Idade Média, antes da reintrodução da legislação romana, as mulheres gozavam de alguns direitos e participação política com direito ao voto para as mulheres burguesas (proprietárias). Na ausência das guerras as mulheres assumiram os negócios da família e participavam da força de trabalho, possibilitando receber instrução profissional, direito posteriormente perdido e motivo de bandeira de luta. Mas a ascensão da mulher sofria restrição, mesmo para as economicamente autônomas. Para as assalariadas a competição e hostilidade desvalorizavam a mulher que sempre recebeu remuneração inferior ao homem. A minoria das mulheres estudava, pois foram registradas 15 mulheres que estudaram medicina e exerceram a profissão em Frankfurt no século XIV, e outras que se graduaram em medicina e direito na Bolonha. (ALVES; PITANGUY,1981) As autoras destacam personalidades e fatos, tais como: Christine de Pisan, escritora francesa, primeira mulher a ser indicada poetiza oficial da corte, uma das primeiras feministas, discursava em defesa dos direitos da mulher defendendo a igualdade entre homens e mulheres e condenando a dupla moral, onde um mesmo ato é crime quando praticado pela mulher e apenas pequeno defeito quando pelo homem. Para as articulistas, o feminismo enquanto movimento político, na América do século XVII, antecedendo a Revolução e princípio do capitalismo, marcado pela ideologia puritana religiosa e pelo comércio, surgiu através de figuras e vozes de insubordinação e revolta, tais como: Ann Hutchinson que afirmava que os homens e mulheres haviam sido criados iguais por Deus; Abigail Adams que reivindicava igualdade de direitos entre sexos na Declaração de Independência Americana. E por Mary Wollstonecraft na Inglaterra, conhecida por afirmar que a inferioridade da mulher advinha da educação diferenciada e pela falta de oportunidade. Na França, em que pese à mulher participar ativamente do processo revolucionário, também não viam seus direitos respeitados, passando então o feminismo por uma prática de ação política organizada, reivindicando a mudança da legislação em consonância com os princípios gerais da Revolução Francesa, denunciando a situação da mulher, do trabalho, da desigualdade legal, da participação política, da prostituição etc. A mulher nasce livre e permanece igual ao homem em direitos (...). Esses direitos inalienáveis e naturais são: a liberdade, a propriedade, a segurança e sobretudo a resistência à opressão (...). O exercício dos direitos naturais da mulher só encontra seus limites na tirania que o homem exerce sobre ela; essas limitações devem ser reformadas pelas leis da natureza e da razão. (GOUGES, 1791, apud ALVES; PITANGUY, 1981, p.34). DOUTRINA . DIREITO PENAL AS CAUSAS DA VIOLÊNCIA DOMÉSTICA CONTRA A MULHER: UMA REVISÃO DA LITERATURA 285 Neste período o movimento feminista foi ativo, participando dos principais eventos da Revolução até 1795 quando um decreto fechou o acesso à mulher, de acordo inclusive com as idéias de Jean Jacques Rousseau, principal ideólogo da Revolução que afirmava sobre a submissão da mulher ao homem, desde a infância até a idade adulta. Discorrem Alves e Pitanguy (1981), que com a reintrodução do direito romano de forma a reduzir direitos civis e depreciar o trabalho da mulher, no início do século XIX não se tem registros de mulheres freqüentando universidades. Assim como com a consolidação do sistema capitalista, também no século XIX, em que as conseqüências são maiores como: a deterioração da formação profissional feminina e a desvalorização profissional, o que alerta as líderes operárias como Jeanne Deroin e Flora Tristan para a necessidade de educação e organização das mulheres da defesa de seus interesses, já que a condição da mulher é vista como parte das relações de exploração na sociedade de classes, tendo como origem a propriedade privada. Estes movimentos uniram homens e mulheres nas organizações sindicais e na repressão que sofreram. A luta por melhores condições de trabalho, direitos de cidadania, votar e ser votado foram as bandeiras de luta. Acrescentam que no dia oito de março de 1857, operárias de uma indústria têxtil de Nova Iorque fizeram greve objetivando melhores condições de trabalho, redução da carga horária diária de 16 para 10 horas, equiparação de salário com os homens e tratamento digno. Sendo trancadas dentro da fábrica que foi incendiada, resultando na morte de aproximadamente 130 tecelãs. Pela violência e desumanidade praticadas, o dia 8 de março passaria a ser considerado o “Dia Internacional da Mulher”, reconhecido em 1910 durante uma conferência na Dinamarca, oficializada, porém, somente em 1975 através de um decreto pela Organização das Nações Unidas (ONU). Apontam que o sufrágio universal (direito de votar e ser votado) para a mulher foi motivo de luta específica por sete décadas nos Estados Unidos e Inglaterra, marcado por um intenso movimento de massa e pela violência do governo contra as mulheres. No Brasil, por 40 anos a contar da constituinte de 1891, retomado posteriormente em 1910 com a fundação do Partido Republicano Feminino, pela professora Deolinda Daltro e em 1919 pela Liga pela Emancipação Intelectual das Mulheres, por Bertha Lutz. O direito ao voto foi vagarosamente sendo adotado pelos Estados, sendo promulgado oficialmente em 1932 por Getúlio Vargas, pela pressão do movimento característico do feminismo, como forma de denunciar a exclusão das mulheres. 286 REVISTA DO INSTITUTO DOS ADVOGADOS DE SÃO PAULO v. 35, JANEIRO - JUNHO 2015 De certa forma as reivindicações por direitos da mulher estavam sendo atendidas, até a necessidade econômica daquele período (1930-1940) prevalecer com a liberação da mão de obra masculina para as frentes de batalha na guerra concomitantemente com a valorização e o incentivo do trabalho da mulher na indústria. Realidade que se inverteu com o final da guerra e o retorno da força de trabalho masculina, evidenciando-se a diferenciação de papéis por sexo, reativando a condição feminina ao espaço doméstico para ceder seu lugar aos homens. Neste contexto contraditório, Simone de Beauvior, isoladamente, analisou as raízes culturais da desigualdade social através do desenvolvimento psicológico da mulher, os condicionamentos a ele impostos, constituindo um marco da reflexão feminista que ressurgiu a partir da década de 60, através de Betty Friedan, Kate Millet, Juliet Mitchell. Essas escritoras analisaram a frustração constante e indefinida da mulher, o sistema patriarcal como um sistema universal de dominação que prevalece em todas as civilizações. (ALVES; PITANGUY, 1981) Giulani (1997), também explana os acontecimentos no Brasil, ressaltando que as anarquistas e socialistas procuraram organizar as trabalhadoras em assembléias sindicais nas primeiras décadas do século XX na busca de uma igualdade social e pelo fim do patriarcado. A autora lembra o empenho de Maria Lacerda de Nora, Matilde Magrassi, Patrícia Galvão (Pagu), Maria Lobos, Nísia Floresta e Heleieth Saffioti, que t r o u xe r a m u m a contribuição pioneira das ciências sociais para o estudo da mulher no Brasil. Acrescentaram ao enfoque das reivindicações femininas, além da igualdade dos direitos políticos, trabalhistas e civis, o questionamento das raízes culturais destas desigualdades baseadas na suposta inferioridade natural da mulher, mascarada pela construção de uma cultura predominantemente masculina em todas as áreas da sociedade. Explica que o movimento feminista denuncia e enfrenta o controle da sexualidade, do corpo, da liberdade e da imagem da mulher bem como qualquer tipo de violência. Reivindica o direito a autodeterminação quanto a sua sexualidade, procriação e métodos contraceptivos, de forma que a maternidade seja o resultado de uma opção consciente. Bem como o autoconhecimento de seu corpo e suas funções. Propõe reconstruir seu papel social, através da superação do machismo na educação. E enfatiza a igualdade de funções, salários, direitos e oportunidades no mercado de trabalho, dupla jornada como parte de autovalorização e união das mulheres. (GIULANI, 1997). DOUTRINA . DIREITO PENAL AS CAUSAS DA VIOLÊNCIA DOMÉSTICA CONTRA A MULHER: UMA REVISÃO DA LITERATURA 287 Enfatiza ainda a conquista e a formação da cidadania depois dos anos 30 quando o movimento de luta feminista surtia reflexos em várias esferas, colaborando para a criação do Ministério do Trabalho, até o golpe militar de 1964, quando o governo rompe com a cidadania, reafirmando a centralização do Estado e do homem como única autoridade e representante da família, baseada na formação de um homem, uma mulher e filhos (família nuclear) de forma autoritária e violenta. Destacaram-se nesta conquista de melhores condições de vida, de trabalho e cidadania política, o direito ao voto, alcançado pelas brasileiras em 1932 e aos poucos penetraram nas organizações tradicionalmente masculinas, podendo também ser observadas essas conquistas através dos movimentos das mulheres rurais (os sem terra). A autora apresenta cronologicamente: a partir da década de 70 o movimento passa a ter uma característica organizacional, formada por várias frentes de luta, tais como a sexualidade, a violência, a ideologia, formação profissional e mercado de trabalho. Em 1975 foi fundado em São Paulo, o Movimento Feminino pela Anistia e neste mesmo ano, ano Internacional da Mulher, foi promovido no Rio de Janeiro com apoio da ONU uma semana de debates sobre a condição feminina que precursores de grupos de reflexão em Londres e São Paulo. A partir dos anos 80 propõe uma nova imagem da feminilidade e masculinidade, surgindo o conceito de equidade entre sexos e debatidas modificações na ordem cultural e jurídica, importante para a redemocratização da sociedade e contra a violência, opressão e discriminação da mulher. Muitas mulheres a propósito de lutarem pelo fim da desigualdade sexual no trabalho e na família participaram do processo de elaboração da Constituição Federal de 1988 que contemplou os cidadãos com vários direitos resultantes desta luta, mas longe ainda das demandas do povo e da implementação destes direitos na prática, demonstrando que as dimensões sociais da discriminação sexista ainda eram muito significativas (GIULANI , 1997). 4.2. AS LEIS E A LEI 11.340/2006 – LEI MARIA DA PENHA – INOVAÇÕES E A TRANSDISCIPLINARIEDADE O ensaio de direitos à igualdade, já promulgada em anteriores constituições brasileiras (1891, art. 72, §2º; 1934 e 1969) não foram suficientes para transformar uma estrutura social construída na discriminação das mulheres enquanto cidadãs de direito em todas as classes sociais, haja vista o poder ainda hoje estar concentrado em mãos masculinas (SAFIOTTI, 1987). 288 REVISTA DO INSTITUTO DOS ADVOGADOS DE SÃO PAULO v. 35, JANEIRO - JUNHO 2015 Considerações sobre a evolução das leis ao conceito das mulheres, Engel; Soihet (1997), elucidam sobre a criminalização da mulher ensinando que a influência da medicina, religião e o regime de propriedade privada patriarcal, baseados também na teoria do médico italiano Cesare Lombroso, colaboraram para controlar e julgar a sexualidade da mulher, que era impedida de ter relações sexuais até o casamento e esta atividade totalmente controlada após o enlace matrimonial. Conceito que aprovava a tese de que o crime de adultério (infidelidade no casamento) deveria ser criminalizado somente para as mulheres, principalmente aquelas dotadas de intenso erotismo e forte inteligência já que não eram maternais como as mulheres “normais” e, por isso, criminosas natas, prostitutas e loucas. Devendo, portanto serem punidas e banidas da sociedade. Com isso o sistema controlava a conduta social, sexual e formas de trabalho das mulheres através do complexo judiciário, por meio da coerção e do caráter multiforme da violência. Neste contexto surgia o conceito de “mulher honesta” e “vagabunda”, consubstanciado pela burguesia, a ciência e as leis, pois à mulher, especialmente a pobre, só cabia o espaço privado, doméstico, não podendo sair às ruas livremente, sob o risco de ser considerada “desonesta” e “vadia” estando submetida às normas e conceitos impostos, como formas de influência na sua liberdade sexual e individual. (ENGEL; SOIHET, 1997). Ressaltam Giulani e Silva (1997) novamente, que a realidade da mulher pobre era contrária aos conceitos impostos em razão da grande quantidade de trabalhadoras braçais, artesanais e pequenas comerciantes nos grandes centros urbanos, pois essa era a única forma de sobrevivência, sofrendo então muito mais em razão da vulnerabilidade social em que se encontravam. Sofriam inclusive com seus companheiros, pois o contraste entre o homem burguês e o pobre era grande já que o pobre não podia exercer o papel de mantenedor, provedor e dominador nos espaços públicos e também no privado, eis que a mulher pobre, na condição de companheira dele também trabalhava informalmente para garantir a subsistência. Relevante salientar, de acordo com Soihet (1997), que nesta classe social onde o homem sofre pressão do papel social imposto e não tem o poder financeiro, pode gerar a ele o sentimento de insegurança e impotência com relação à mulher, que pode ser motivo de conflitos internos, externos e as agressões como forma de exercício de autoridade e poder, surgindo daí figura do “crime passional”, motivado pelas paixões, caráter relevante na sociedade do século XX. DOUTRINA . DIREITO PENAL AS CAUSAS DA VIOLÊNCIA DOMÉSTICA CONTRA A MULHER: UMA REVISÃO DA LITERATURA 289 Tal tipo de crime contém aspectos controversos, pois somente ao homem era admitida a isenção de responsabilidade nestes crimes, pois as paixões eram vistas como formas de loucura, capazes de anular a função inibidora da vontade, acometendo os criminosos de motivos úteis à sociedade: “amor e honra”, o ideal político e religioso. Fatores não inerentes à mulher, pela sua passividade, sendo esta a característica de regulamentação jurídica de vários países com a impunidade total em favor do marido que “vingasse a honra” ao assassinar sua mulher que supostamente cometesse ou estivesse cometendo o crime adultério. No Brasil, pela ordenação penal de 1890, acompanhada pela norma penal Decreto Lei n.º 2.848/40, só a mulher era penalizada pelo crime de adultério, o homem não, pois se o praticasse, era com aceitação da sociedade, devido suas “fraquezas sexuais”. Só seria considerado crime se possuísse concubina fixa, ou seja, mantida por ele. Mas os motivos de punição são claramente observados já que filhos bastardos eram considerados ameaça ao patrimônio familiar. (SOIHET, 1997). A honra da mulher constitui-se em um conceito sexualmente localizado do qual o homem é o legitimador, uma vez que a honra é atribuída pela ausência do homem, através da virgindade ou pela presença masculina no casamento. (SOIHET, In PRIORE, 1997, p. 389). Assim, observa-se que o sistema judiciário não se baseava nas causas do significado da violência contra a mulher, no desrespeito a pessoa humana, na integridade da mulher e na liberdade, já que não existia honra feminina, somente masculina no sentido de um bem nato do homem. (SOIHET, 1997). Importante falar, sob o aspecto das normas, sobre a imposição de prestação de serviços sexuais às mulheres nas relações de trabalho e conjugais, designado como estupro, eis que contraria a vontade da mulher, comprometendo o desejo e o direito ao prazer da mulher, neste último caso, consubstanciado e permitido pelo Código Civil de 1916 (Lei n.º 3.071/1916), legitimando o poder do macho através do “dever conjugal: obrigação da mulher prestar serviços sexuais ao companheiro quando por ele solicitado” (SAFFIOTI, 1987). Neste mesmo sentido observa-se pelo nosso estatuto civil, inspirado no Código Napoleônico (França) e pelo nosso Código Penal (Decreto Lei n.º 2848/1940), inspirado na legislação italiana, que representa anseios e protege direitos individuais da burguesia, longe da realidade brasileira, de forma opressiva e insensível, baseado no sistema patriarcal onde a mulher é propriedade do homem (KATO, 1994). 290 REVISTA DO INSTITUTO DOS ADVOGADOS DE SÃO PAULO v. 35, JANEIRO - JUNHO 2015 O destino manifesto do patriarcado já há quatro mil anos foi sempre este: buscar o dominium mundi, assenhorar-se dos segredos da natureza para submetêlos aos interesses humanos e fazer-se “mestre e possuidor de todas as coisas. (DESCARTES) Faria (1994), mostra que toda a história da civilização se baseia em códigos, sempre a despeito do povo ou das maiorias pobres. O povo não tendo a quem recorrer e sem independência de ação, de pensamento e conhecimento, carece de consciência jurídica que pode fazê-lo valer seus direitos e dar visibilidade às suas necessidades. A imposição da vontade da minoria no poder, através das regras (leis), por meio de mensagem alienatória, deturpada e manipulada subjetivamente, promove o conflito, a descrença e a violência. Regras de conduta existem talvez desde os Dez Mandamentos de Moisés, indicam que um dos mais antigos códigos legais foi Lipit Isjtar, dois mil anos antes do Código de Hamurabi, da Babilônia de 1690 a.C., códigos da Assíria e Hititas, Doze Tábuas Romanas, Código Bizantino de Justiniano e Código de Napoleão, baseados na regulação do comportamento humano, por meio de comunicação escrita, que pode ser interpretada de várias formas, daí a dificuldade de adequar as leis à realidade. “Nem mesmo a nossa CF/88 conseguiu abranger todas as transformações sociais necessárias” (FARIA, 1994, p.102). No âmbito civil, podemos observar vários exemplos representativos do preconceito presente ma sociedade, tal como, quanto ao nome da mulher casada, onde também observamos o ranço do poder do marido sobre a mulher, estando esta submissa ao pai antes do casamento e depois submissa ao poder do marido, tendo a obrigatoriedade de adotar o “patronímico” (nome da família a que pertencia o homem) dele que por si só já se explica, pois “pater” = “poder”, a mesma coisa que pai, patrão, chefe, dono, vide art. 240 do Código Civil de 1916. Longa jornada foi transposta até chegarmos à opção de adotar o citado patronímico, com a igualdade de direito ao nome e á personalidade é individual. (FERRARA, 2009). No Brasil, Ferrara (2009), explica que somente com o Estatuto da Mulher Casada em 1962 (Lei n.º 4121/1962) é que a mulher deixa de ser relativamente incapaz, e deixa de ter que pedir autorização ao marido para trabalhar e dar opiniões. Alteração feita com a Lei do Divórcio (Lei n.º 6515/1977) e com o Código Civil de 2002 (Lei n.º 10.406/2002), art. 16 a 19; 1565 §1º; 1578 acerca do nome da mulher casada quando da DOUTRINA . DIREITO PENAL AS CAUSAS DA VIOLÊNCIA DOMÉSTICA CONTRA A MULHER: UMA REVISÃO DA LITERATURA 291 separação e divórcio, sendo adotado também o termo sobrenome ao invés de patronímico. A Lei n.º 8.408/92 que alterou o art. 25 da Lei do Divórcio, diz que a mulher poderia conservar o patronímico do marido se considerada “inocente” (sistema de culpa pela causa da separação), o que significava então que a “mater famílias” não teria identidade. A Lei n.º 11.441/07 que alterou o Código de Processo Civil (Lei n.º 5.869/1973) possibilitando a realização de separação e divórcio consensual via administrativa permite acordo quanto à manutenção ou não do nome adotado no casamento. (CHINELATTO, 2008). Uma das mais importantes conquistas atuais é a tendência a universalização dos Direitos Humanos, independente das leis, de forma a aproximar o código legal ao moral, que deve ser baseado no respeito e na responsabilidade. É notada a necessidade de aproximação entre as leis vigentes e o contexto social através de uma proposta reflexiva e alternativa de modo que amplie a visão formal do direito positivo e imposto para uma consciência mais ampla das relações, considerando que os valores são adquiridos pela educação, tradição, religião e pela cultura jurídica. (GOLDBERG, 2004) No sistema das Ordenações Filipinas (Liv.V, Títs.36, par 1., e 95, par. 4.), não praticava ato censurável aquele que castigasse criado, ou discípulo, ou sua mulher, ou seu filho, ou seu escravo. (RODRIGUES, 2004, p.120). Com base neste conjunto de anseios, mediante uma realidade onde a violação dos direitos é forte, prevalece a desigualdade e certos grupos são desprotegidos e invisíveis, surge a Lei Maria da Penha. Dias (2007), esmiúça e esclarece sobre a Lei n.º 11.340/2006 – Lei Maria da Penha que é um marco no resgate da cidadania feminina, conquista de muitas lutas, para dar visibilidade à violência doméstica contra a mulher e o patamar que ela atingiu na sociedade atual. Como luta por direitos, em 2002 foi elaborado um projeto através de 15 ONGs e a Secretaria Especial de Políticas para as Mulheres, por meio do Decreto n.º 30/04, Projeto de Lei n.º 4559/04, sendo recebido pelo Senado Federal e sancionada a Lei n.º 11340/06 em 07/08/2006. Ressalta-se que ela foi criada e promulgada como resultado de punição ao Governo Brasileiro, dentro de um modelo ainda moralmente patriarcal e tradicional, afinal, só leis e códigos não são suficientes para modificar paradigmas. (KATO, 1994; DIAS, 2007). 292 REVISTA DO INSTITUTO DOS ADVOGADOS DE SÃO PAULO v. 35, JANEIRO - JUNHO 2015 Mais do que uma lei, esta norma traz uma nova consciência sobre o tema, demonstrando que a violência doméstica contra a mulher, além de ferimento aos direitos humanos é um problema de saúde pública pelo seu impacto para a saúde biopsicossocial da mulher (ONU 1993, 1994). As estatísticas mostram que 87% das agressões são praticadas pelos maridos ou companheiros (Senado Federal, 2007). A cada 2minutos, 5 mulheres são espancadas no Brasil (Fundação Perseu Abramo, 2011). Dias (2007), esclarece que as conseqüências atingem à família, as relações interpessoais e de trabalho, e, principalmente às crianças, que aprendendo com os exemplos, tendem a se tornar multiplicadoras do comportamento vivenciado. Tudo isso somado a idéia da família como entidade inviolável, “não sujeita a interferência da justiça.” O que fazia com que a tal tipo de violência fosse vista como crimes de menor potencial ostensivo, abarcada pela Lei n.º 9099/95, Leis dos Juizados Especiais que adotou medidas despenalizadoras, mas que não priorizou a vida humana, condicionando à vontade da vítima de lesões corporais leves ou culposas decidir se o agressor será ou não processado em total contradição com os crimes contra o patrimônio, que não está vinculado à vontade da vítima por se tratar de ação pública incondicionada, sendo, portanto, os bens mais valorizados que a vida. A autora demonstra que fatos indicam o desprezo e a falta de conhecimento do legislador da secular discriminação contra a mulher, em que pese a igualdade promulgada pela nossa carta magna, que justifica um tratamento diferenciado para a questão eis que a violência recorrente no ambiente doméstico, era invisível, por ser em local visto como privado portanto “sagrado” e “lacrado”. E mediante esta realidade, mais um caso foi gritante, com a diferença de ter se tornado visível por isso dado origem a Lei Maria da Penha. Para ser levada sério, segundo Dias (2007), é que a biofarmacêutica Maria da Penha Maia Fernandes, uma de tantas vítimas de violência doméstica, em Fortaleza (CE), denunciou as agressões que sofreu do marido Marco Antonio Heredia Viveros, professor universitário e economista, que por duas vezes tentou matá-la, sendo a primeira vez em 29/05/83 simulando um assalto com o uso de uma espingarda que a deixou paraplégica e depois de algum tempo a segunda vez tentando eletrocutá-la. Tais crimes foram investigados e depois denunciados pelo MP em setembro de 1984 sendo que o réu foi condenado pela tentativa de homicídio a 10 anos e 6 meses de prisão, em segundo julgamento realizado somente em 1996, dos quais cumpriu dois, a partir de 2002, após 19 anos depois dos fatos. DOUTRINA . DIREITO PENAL AS CAUSAS DA VIOLÊNCIA DOMÉSTICA CONTRA A MULHER: UMA REVISÃO DA LITERATURA 293 Fatos que foram denunciados por ela e tiveram repercussão internacional através do CEJIL (Centro pela Justiça e o Direito Internacional) e o CLADEM (Comitê Latino Americano e do Caribe para a Defesa dos Direitos da Mulher), que formalizaram denúncia à Comissão Interamericana de Direitos Humanos da OEA, (Organização dos Estados Americanos) órgão que solicitou por 4 vezes informações do governo brasileiro sobre o caso, sem êxito. Por isso condenou o Brasil em 2001 obrigando-o a pagar uma indenização de US$20mil à Maria da Penha, responsabilizando o Brasil por negligência e omissão nos casos de violência doméstica e recomendando a simplificação dos procedimentos judiciais penais. O Brasil foi obrigado a cumprir as convenções e tratados internacionais que é signatário e motivo pelo qual a Lei Maria da Penha faz referência à Convenção sobre a Eliminação de Todas as Formas de Discriminação contra a Mulher (Convenção CEDAW, 1979 – Convention on the Elimination of All Forms of Discrimination against Women) assinada com reservas pelo Brasil em 1981 e ratificada pelo Congresso Nacional em 1984, aprovada na íntegra pelo Decreto Legislativo n.º 26/94 e promulgada pelo Decreto n.º 4.377/02, mais de 20 anos depois de sua elaboração e a Convenção Interamericana para Prevenir, Punir e Erradicar a Violência Contra a Mulher (Convenção de Belém do Pará, 1994), ratificada pelo Brasil em 1995, aprovada pelo Congresso Nacional no mesmo ano pelo Decreto-Legislativo n.º 107/95 e promulgada pelo Decreto n.º 1973/96. (DIAS, 2007; FERREIRA, 2008, p. 23-24): Art.1. estabelece o conceito de discriminação contra s mulheres como sendo “toda distinção, exclusão ou restrição fundada no sexo e que tenha por objetivo ou consequência prejudicar ou destruir o reconhecimento, gozo ou exercício pelas mulheres, independentemente de seu estado civil, com base na igualdade dos homens e das mulheres, dos direitos humanos e liberdades fundamentais, nos campos político, econômico e social, cultural e civil ou em qualquer outro campo”. (CEDAW, 1979) Art.3. preceitua: “Toda mulher tem direito a uma vida livre de violência, tanto no âmbito público como no privado”. E o art. 6. complementa: “O direito de toda mulher a uma vida livre de violência inclui, entre outros: A. o direito da mulher de ser livre de toda forma de discriminação; e B. o direito da mulher ser valorizada e educada livre de padrões estereotipados de comportamento e práticas sociais e culturais baseados em conceitos de inferioridade e subordinação”. (Convenção de Belém do Pará, 1994). 294 REVISTA DO INSTITUTO DOS ADVOGADOS DE SÃO PAULO v. 35, JANEIRO - JUNHO 2015 Os tratados internacionais têm aplicabilidade imediata e natureza de norma constitucional, conforme a nossa Constituição Federal de 1988 (art. 5º. § 1º e 2º, Emenda Constitucional n.º 45/2004 (CUNHA e PINTO, 2007), que já previa o amparo aos elementos mais frágeis como mulheres, idosos e crianças, começando pelo seu art. 5º, inciso I: “homens e mulheres são iguais em direitos e obrigações”, e inciso XLI, a punição, pela lei, de qualquer discriminação atentatória aos direitos e liberdades fundamentais. (FERREIRA, 2008). Protegeu a família através do art.226: “A família, base da sociedade, tem especial proteção do Estado.” Sendo-lhe assegurada a assistência para cada um de seus integrantes, criando mecanismos para coibir a violência no âmbito de suas relações. Por isso a Lei Maria da Penha atende a um compromisso constitucional. (DIAS, 2007). Enfatiza a autora que a liberdade é reconhecida como um dos principais direitos do ser humano, assim como a igualdade e a solidariedade, por isso, a dominação do homem sobre a mulher viola este estes direitos. Além de cumprir compromisso constitucional, esta lei trouxe inúmeras inovações e conceitos que demonstram a sua atualidade e abrangência, tais como o reconhecimento das uniões homoafetivas como entidades familiares e não só como uniões estáveis e a diversidade dos tipos de família, baseadas no afeto e por escolha de seus membros. Raciocina a autora no campo da entidade familiar explicando que o agressor ou a agressora é qualquer sujeito que tenha ou tenha tido uma relação íntima de afeto, ou ainda uma relação doméstica ou familiar com a vítima, ampliando o leque de possibilidades de ocorrências, ainda que o conflito seja só de ordem familiar. A ofendida é sempre a mulher, incluindo-se a que se identificam como mulheres, com agravante penal em caso de deficiente física. Com relação ao espaço de convivência permanente de pessoas com ou sem vínculo familiar, ainda que esporadicamente agregadas, foi definida como entidade familiar, sendo considerada família qualquer grupo de indivíduos que esteja unido por laços de sangue, por afinidade ou por vontade, inovando a concepção de família pela presença do vínculo de afetividade, não previstos pela Constituição e pelo Código Civil de 2002, vigente (DIAS, 2007). Além disso, de acordo com a autora, a Lei definiu e ampliou os tipos de violência contra a mulher: física, psicológica, sexual, patrimonial e moral. Ressaltando o reconhecimento dos crimes de natureza sexual, que antes eram chamados de crimes contra os costumes. DOUTRINA . DIREITO PENAL AS CAUSAS DA VIOLÊNCIA DOMÉSTICA CONTRA A MULHER: UMA REVISÃO DA LITERATURA 295 Com relação à polêmica com relação à constitucionalidade da lei, que poderia infringir o princípio da igualdade e beneficiar somente a mulher como se seu teor fosse discriminatório, à autora cumpre lembrar que é exatamente por cumprir o preceito constitucional de igualar os desiguais ou vulneráveis que a tal norma foi acolhida, reconhecendo o fato da desigualdade da mulher na sociedade em relação ao homem, assim como foram também recepcionados outros grupos, pelo princípio da isonomia e da uma discriminação positiva como meio de sanar as desvantagens históricas e proteger sua integridade física. A difícil Revolução da Mulher sem agressividade, ela que foi tão agredida. Uma revolução sem imitar a linha machista na ansiosa vontade de afirmação e de poder, mas uma luta com maior generosidade, digamos. Respeitando a si mesma e nesse respeito o respeito pelo próximo, o que quer dizer amor. (TELES, 1997, p. 672). Leva em consideração a autora que a realidade muitas vezes demonstra: a mulher que sofre violência doméstica do marido ou companheiro nem sempre quer ou está preparada emocionalmente para se separar, ela quer que a violência cesse e procura ajuda, normalmente quando já está cansada e impotente. Neste contexto foram criadas as Delegacias de Defesa da Mulher (DDM’s), em SP em 1985 com equipe feminina, no sentido de melhor acolher a mulher além de desenvolver uma função intimidatória para o agressor e papel pedagógico à sociedade. Mas com a Lei n.º 9099/95 que regulava o procedimento técnico para tais crimes, a conciliação era imposta, mesmo com a representação (ato formal de requisição processual formulado pela ofendida) e sem a participação da vítima. O Ministério Público podia transacionar uma pena de multa, arrecadação de cesta básica ou restrição de direitos, sem constar dos antecedentes criminais e civis do agressor. O que não resolveu a violência doméstica, sendo ela ainda mais banalizada e impune. (DIAS, 2007). Através de projetos de lei e participação do movimento de mulheres a Lei n.º 10455/2002 alterou o parágrafo único do art. 69 da Lei n.º 9099/95, admitindo a possibilidade de o juiz determinar por medida de cautela, o afastamento do agressor do lar. Já a Lei n.º 10886/2004, acrescentou um subtipo à lesão corporal leve, decorrente de violência doméstica, aumentando a pena mínima de 3 para 6 meses de detenção, alterando o art. 129 do Código Penal (Decreto Lei n.º 2.848/40, §9º), mais ainda dentro dos sistemas patriarcal e dos juizados especiais criminais e perante os índices alarmantes já que de 100 brasileiras assassinadas, 70 são vítimas dos homens no ambiente doméstico privado. (DIAS, 2007). 296 REVISTA DO INSTITUTO DOS ADVOGADOS DE SÃO PAULO v. 35, JANEIRO - JUNHO 2015 A obra de Dias, 2007, mostra que a lei trouxe muitas mudanças que ainda vem sendo implantadas, tais como: Juizados de Violência Doméstica e Familiar contra a Mulher – JVDFMs, com competência cível e criminal (art.14), devolvida à autoridade policial a prerrogativa investigatória e instauração de inquérito; o direito da vítima ser acompanhada por advogado (art.27) em todas as fases; garantia de acesso a assistência judiciária gratuita (art.28), não poder ser ela portadora da notificação ou intimação do agressor (art.21); o direito de ela ser cientificada quando da prisão e soltura do agressor (art.21) e o direito a requerer as medidas protetivas de urgência tais como: afastamento do agressor do lar, de distanciamento e proibição de contato (art.22), possibilidade de encaminhamento da mulher e dos filhos para abrigo seguro com manutenção do vínculo de emprego (art.9º,II), separação de corpos, fixação de alimentos, suspensão de porte de arma e proibição de visitas aos filhos, suspensão dos efeitos de procuração e anulação de venda de bens comuns (art.24). Proíbe a aplicação de pena pecuniária, multa de cesta básica (art.17) e permite a prisão em flagrante, preventiva ou temporária do ofensor (art.20). Possibilidade de o juiz determinar o comparecimento obrigatório do agressor a programas de recuperação e reeducação (art.45) entre outras. Além disso, assegura à mulher garantia ao trabalho, podendo suspender o contrato por até seis meses, por determinação judicial. Ainda nesta obra, observa-se que nos crimes onde as ações penais são condicionadas à representação (vontade) da ofendida, por exemplo: as lesões corporais leves ou culposas, a renúncia (desistência) só pode ser admitida perante o juiz, antes do recebimento da denúncia (acusação) pelo Ministério Público, o que não ocorre com os crimes de ação pública incondicionada à vontade da vítima, por exemplo: lesões corporais graves etc. Os crimes de ação privada dependem de ação própria, chamadas de Queixa-Crime, tais como: injúria, calúnia e difamação. Tal representação é ofertada no momento do registro da ocorrência do crime, na delegacia, quando é tomada por termo a vontade da vítima de ver o agressor processado pela prática do crime, iniciando-se assim o inquérito policial, que quando concluído, deve ser enviado a juízo, passando pelo Ministério Público, quem oferecerá ou não a denúncia do crime e, se admitida pelo juiz, será iniciado o processo criminal. A Lei Maria da Penha, de acordo com Dias (2007), ainda que de natureza criminal, também é abrangente o sentido de mesclar a aplicação das normas de Direito Civil, Processo Civil e Processo Penal, quando não conflitantes, exigindo maior comprometimento do Ministério Público, Policiais, Juízes e demais operadores do direito. DOUTRINA . DIREITO PENAL AS CAUSAS DA VIOLÊNCIA DOMÉSTICA CONTRA A MULHER: UMA REVISÃO DA LITERATURA 297 Outra relevância dos apontamentos da autora é quanto ao atendimento à vítima ou ofendida, devendo ser iniciativa dos governos federal, estadual e municipal por meio de políticas públicas específicas, fazer parte do novo caráter de formação dos profissionais envolvidos nesta temática trazida pela Lei, de modo que envolve maior zelo, participação, humanização, conhecimento e comprometimento na aplicação desta regra, garantindo a escuta da mulher, o registro da ocorrência, o encaminhamento para a rede de serviços especializada, atendimento médico, acompanhamento para retirada de seus pertences, transporte para abrigo seguro, informação de seus direitos, das medidas protetivas de urgência que pode pleitear, devendo ser encaminhado a juízo em 48hs, acompanhamento de advogado, exame de corpo de delito ou demais exames e perícias. O Ministério Público agente defensor dos direitos fundamentais em todas as esferas de atuação deve ter como escopo a integração com todas as entidades, pública e privada ou rede de serviços envolvidas na aplicação da Lei, podendo inclusive fiscalizá-las, requisitando serviços em todas as áreas que forem necessárias, tais como saúde, educação, assistência social, entre outros. Imprescindível, no entanto, que sejam instalados os JVDFMs e que seus juízes, promotores, advogados e defensores estejam devidamente capacitados. Imperioso, igualmente, que seja montada uma estrutura interdisciplinar, para que todos os membros da família recebam atendimento psicológico e acompanhamento por assistentes sociais. (DIAS, 2007, p.26). Através de um conjunto articulado de ações da União, Estados, Municípios e ações não governamentais objetivando integrar o Poder Judiciário, Ministério Público, Defensoria Pública, Segurança Pública, assistência social, saúde, educação, trabalho e habitação, por meio de estudos, pesquisas, estatísticas, campanhas de prevenção, articulação, capacitação permanente dos profissionais envolvidos, promoção dos valores éticos e sociais da pessoa e da família, de forma a reduzir a definição dos papéis estereotipados que validam a violência doméstica contra a mulher, são previsões da Lei que são medidas integradas de prevenção à violência. (CUNHA; PINTO, 2007). De acordo com os autores, a Lei traz um caráter transdisciplinar pioneiro e uma necessidade de integração da rede de serviços e de áreas profissionais, totalmente inovadoras dentro do sistema judiciário e na sociedade. 4.3. NEOFEMINISMO E VISÃO RESTAURADORA Concomitantemente com as importantes mudanças pelas quais a sociedade 298 REVISTA DO INSTITUTO DOS ADVOGADOS DE SÃO PAULO v. 35, JANEIRO - JUNHO 2015 passa novos modos de ver e solucionar conflitos emergem proporcionando opções de restauração de valores. (CUSCHNIR,1994; KOLONTAI, 2000; WEIL, 2002; MURARO;BOFF,2002; GOLDBERG, 2004). Weil (2002), mostra que a década de 90 foi um período de reavaliação do feminismo, de modo que as conseqüências para o psicológico das mulheres não possam reprimir o feminino, mas sim resgatá-lo. A visão feminista foi mudando com o tempo, pois inicialmente a busca da mulher era para demonstrar que não era inferior ao homem, depois a busca é para provar que eram diferentes e não precisavam imitá-los para serem aceitas, depois, buscam serem consideradas iguais exatamente pela capacidade de serem diferentes dos homens, iguais enquanto seres humanos e equivalentemente capazes, o que transforma a sociedade culturalmente através da paz e do amor. A questão de gênero se coloca em praticamente todos os assuntos, trabalho, pela escola, nas diferentes áreas. Estar atento a isso, explicitando sempre que necessário, é, respeito pela diferenças, somando e complementando o que os homens e as mulheres têm de melhor, compreendendo o outro e aprendendo com isso a ser pessoas mais abertas e equilibradas. (WEIL, 2002 p.87). Muraro e Boff (2002) analisam: se por um lado o movimento feminista mundial enfrentou o patriarcado e descortinou as relações desiguais de gênero, “inaugurou relações mais simétricas” introduzindo na nossa cultura novos tipos de personalidades femininas e masculinas baseadas na parceria e solidariedade, propondo novas definições de papéis que acolhem as diferenças com respeito a igualdade, definindo-o como novo feminismo ou neofeminismo. Seguindo neste movimento renovador positivo, Muraro (1992), busca a conscientização e a reeducação para o equilíbrio. A autora acredita na possibilidade de vivenciar um embrião de superação do patriarcado, mas esta mudança ainda está sendo feita com base na construção social e psicológica antigos, dentro de um sistema capitalista competitivo, o que dificulta a transformação, sem, com isso, deixar de exercê-la através da entrada da mulher no domínio público, trazendo transmutação nas estruturas psíquicas tanto de homens como de mulheres. Abrindo o espaço privado para os homens também participarem em igualdade, de modo que seus filhos introjetem o respeito e não um modelo de domínio uns pelos outros, sem afeto e sem amor. DOUTRINA . DIREITO PENAL AS CAUSAS DA VIOLÊNCIA DOMÉSTICA CONTRA A MULHER: UMA REVISÃO DA LITERATURA 299 Afirma que tendem a cair os regimes autoritários como já vem acontecendo, demonstrando um desejo pela democracia, pelos direitos iguais e pela ética, sendo o crescimento da mulher colaborador para tal desmoronamento. Lembrando ainda, a resistente opressão das mulheres no Oriente Médio, caso que fere totalmente os Direitos Humanos, chamando a atenção para que toda esta transformação necessária venha a nível coletivo e institucional. Andrade (2007), afirma que a democracia, apesar de suas imperfeições, é o único caminho que garante o respeito aos princípios dos Direitos Humanos, não pelo estado de igualdade que nascem os homens, mas sim quando adultos e, portanto, desiguais. Os direitos fundamentais representam uma conquista plausível de ser alcançada, passando por uma conscientização vital que antecede a norma jurídica, por meio dos valores éticos e morais do legislador e do operador do direito, para a concretização e irradiação de garantias reais e não só como regra imposta com título de proteção e de promoção da dignidade humana. Tal garantia deve ser independente para que seja reconhecida a sua necessidade, independente do grupo a que pertence, mas pelo fato de pertencer ao gênero humano, que deve ser mais relevante do que os demais bens jurídicos. Delors, (2002) elucida a necessidade de uma transformação na educação, de forma a exigir uma maior eficácia na transmissão de saberes adaptados a uma maior capacidade de aprendizado, baseada em conhecer, fazer, viver em sociedade e cooperar. Atrelado ao ensino estruturado a aprendizagem deve englobar a prática da instrução como parte integrante, de maneira que o indivíduo se inclua como membro da sociedade e seja um instrumento de formação contínua e humanitária. Conceber uma educação de base capaz de evitar ou resolver conflitos com fundamento no conhecimento e respeito de outras culturas possibilitando um meio de amenizar a violência, através de um contexto social e econômico igualitário. A grande lição que nos deixaram tanto o cristianismo quanto o socialismo é que transformações estruturais e mentalidades devem vir juntas, complementandose umas às outras. (MURARO, 1992, p.195). Homens e mulheres não precisam competir, apesar de diferentes podem criar um vínculo generoso, rico de experiências e trocas, com divisão de tarefas renovadoras e complementares, baseado no respeito e na simetria, que pode fortalecer a diferença entre si, eliminando as desigualdades visando o equilíbrio. “Somente se os indivíduos estiverem motivados a se renovarem, a sociedade do futuro poderá contar com todos os seus membros” (CUSCHNIR, 1994 p. 89). 300 REVISTA DO INSTITUTO DOS ADVOGADOS DE SÃO PAULO v. 35, JANEIRO - JUNHO 2015 Graças ao reencontro entre o Oriente Feminino e o Ocidente Masculino, a nossa Humanidade, atualmente dilacerada por uma visão distorcida, por ser predominantemente masculina, poderá chegar a reconstruir uma sociedade de gênero verdadeiramente iluminada pelo Amor e pela Sabedoria. (WEIL, 2002 p. 246). Uma nova sociedade baseada na solidariedade e camaradagem inclui o desenvolvimento máximo da capacidade de simpatia e amor com o próximo mediante seus sofrimentos e necessidades, baseados numa consciência de união e coletividade, os quais não se baseiam somente no “domínio das relações matrimoniais e da família, mas são os laços que contribuem para o desenvolvimento da solidariedade coletiva” (KOLONTAI, 2000, p.144). O coletivo será prioritário, ao contrário do individualismo, segundo a autora, pois, com a modificação de sentimentos, no sentido de união e coisa pública, tende a desaparecer a desigualdade entre os sexos e as formas de dominação masculina ou dependência da mulher em relação ao homem. Confirma Goldberg (2004), que homens e mulheres têm sua essência e sua consciência fundadas no bem, diversamente da categoria que postula poder de dominação. Podem ser companheiros de participação igualitária, livres de regras impostas. “Fechem-se simultaneamente a temporada homicida de caça às mulheres e o sensacionalismo irresponsável” (GOLDBERG, 2004, p.101). 5. CONSIDERAÇÕES FINAIS A violência doméstica contra a mulher é uma realidade histórica que tem uma origem construída e mantida pela sociedade e por diversos fatores inerentes ao ser humano, tornando-se extremamente relevante entender as causas, seus efeitos, conseqüências e fatores de sua existência para, mais que constatar passivamente tal fato, compreender que o indivíduo faz parte desta cultura e por isso pode transformá-la. (MURARO, 2002; DIAS, 2007). Para se compreender as origens da violência iniciou-se pelos seus conceitos e definições até chegar à violência contra a mulher, sendo necessário primeiramente entender a construção dos papéis sociais sob vários enfoques, a começar pela formação e evolução da família em suas etapas. Sua constituição e organização necessitaram da figura do Estado, representante do poder e gerador de condutas como uma forma de DOUTRINA . DIREITO PENAL AS CAUSAS DA VIOLÊNCIA DOMÉSTICA CONTRA A MULHER: UMA REVISÃO DA LITERATURA 301 monitorar a propriedade privada e as pessoas. A partir de sua intervenção, observouse a transição do sistema familiar matriarcal para o modelo patriarcal. Tais idéias foram observadas na obra de Engels (2009). Neste contexto conclui-se que no sistema patriarcal prevalecia o interesse do Estado e das classes dominantes na divisão sexual do trabalho entre homem e mulher e no acúmulo de bens, caracterizado pelo capitalismo, sistema econômico e político baseado na garantia dos lucros, sendo esta uma das causas da origem da violência contra a mulher. Outro fator seria a construção de papéis sociais sob vários aspectos, pois muitas diferenças foram edificadas neste processo, entre homem e mulher, segundo os autores revisados. Daí pode ser deduzido que cada um possui uma carga biológica caracterizada por uma definição sexual, mas inserido numa cultura, num arranjo existencial de profundo desejo de liberdade e insatisfação. Sem, contudo, deixar de considerar que o elemento masculino e feminino existe em todo ser humano, nem por isso pior nem melhor, apenas diferente em formas de ser e em forças produtoras. Nunca como a cultura patriarcal construiu, determinando o enrijecimento do homem baseado na pura racionalidade, da mesma forma aculturando o papel feminino como determinante da submissão e subjetividade, destruindo a possibilidade da construção de um ser humano uno e diverso, recíproco e igualitário. Historicamente os papéis foram arquitetados sob a influência do meio social e os interesses dominantes, enraizados pelos seres humanos formando uma cultura naturalizada e inconscientemente sexista (machista) no sentido do poder do homem sobre as mulheres, sob a égide do Estado e da Igreja formados por estes homens, em proteção aos bens materiais que possuíam, visando os lucros e a manutenção de um modelo de família que oprimia as mulheres e sua liberdade individual. Fato que gerou, em todas as épocas, a revolta de muitas pessoas e de mulheres que lutaram com suas vidas para que seus direitos fossem respeitados, com igualdade, gradativamente, ainda em evolução. Como conseqüência das desigualdades na construção de papéis sociais pode-se observar que muitas vezes somos agentes da cultura machista, até porque fazemos parte dela através da educação que nos foi passada e reproduzida pelas gerações. Normalmente em aniversários de meninas se leva como presentes: bonecas, panelinhas e kit limpeza, roupas de cor rosa, no sentido de confirmar-lhes o espaço privado e doméstico, enquanto que para os meninos se leva: bolas, carrinhos, armas de brinquedos e jogos, no sentido de confirmar-lhes o espaço público e livre. 302 REVISTA DO INSTITUTO DOS ADVOGADOS DE SÃO PAULO v. 35, JANEIRO - JUNHO 2015 Às meninas são ensinados as atividades domésticas e os cuidados com os outros, a obrigatoriedade de ser delicada, recatada, dizer “sim”, ser obediente e condescendente. Os meninos têm total tolerância para não assumir nenhuma atividade doméstica, afinal isto “é coisa de mulher”, podem dizer “não”, ter manifestações agressivas, afinal isto “é coisa de homem” e estes devem aprender a “se defender”, com a única preocupação de trabalhar fora ou de estudar nas famílias mais estruturadas. Neste contexto as crianças vão definindo seus papéis aprendendo que “mulher é frágil”, “chora à toa” e é “sensível”, enquanto: “homem não chora”, “homem tem que ser forte” e “provedor”. Num ambiente de desrespeito e violência, independente de classe social e dificuldades sócio-econômicas, os filhos tendem a reproduzir os papéis no ambiente social em que vivem, como por exemplo, na escola, demonstrando agressividade, problemas emocionais de toda a ordem, comprometendo seu pleno desenvolvimento, por isso a violência doméstica contra a mulher não é um problema privado, mas sim público com a intercorrência de várias outras formas de violência e reflexos em todas as áreas da sociedade: social, saúde, educação e trabalho. Pela revisão dos autores, no âmbito religioso também vemos o preconceito contra a mulher pela interpretação sexista que se dá ao texto bíblico, fortalecendo o conceito de culpabilidade e menor valor da mulher pelo simbolismo da “costela de Adão” e “fruto proibido”. Além disso, várias passagens bíblicas textualizam a condição de submissão e insignificância da mulher: “É dom de Deus uma mulher sensata e silenciosa.” (Eclesiástico, cap.26). O sexismo, popularmente chamado de machismo, onde o homem se baseia e uma relação de poder e domínio sobre as mulheres por se considerarem detentores de maiores direitos e considerarem as mulheres seres de menor valor e respeito, ocorre a coação e o exercício do controle, poder, subjugação, constrangimento, ciúme, falta de apoio, abandono e todos os tipos de violência. Valendo isto em qualquer parte do mundo e em todas as classes sociais, variando pela sua visibilidade. Nas nossas músicas também pode ser observado o ranço da discriminação, cultuadas tradicionalmente: “Eu tenho pena da mulher do meu patrão... mas nervosa sofre muito por não ter o que fazer no atiço da panela, no batuque do pilão...” (A Mulher do meu Patrão – Luiz Gonzaga); “Quero te pegar no colo, te deitar no solo e te fazer mulher” (Deixa eu Te amar – Wando); “Mas que mulher indigesta, indigesta, merece um tijolo na testa” (Mulher Indigesta – Noel Rosa); “Se te agarro com outro te mato, te mando algumas flores e depois escapo” (Se te agarro com outro te mato – Sidney DOUTRINA . DIREITO PENAL AS CAUSAS DA VIOLÊNCIA DOMÉSTICA CONTRA A MULHER: UMA REVISÃO DA LITERATURA 303 Magal); “Eu nunca vi fazer tanta exigência, nem fazer o que você me faz ...” (Amélia – Mário Lago/Ataulfo Alves). Outra reflexão trata do significado do masculino e do feminino presente nos dicionários da língua português, assim como os adjetivos que são dados para os homens os quais tem cunho diferenciado, com relação à sexualidade da mulher, quando a ela aplicados, como, por exemplo: “homem vagabundo – homem que não trabalha; aventureiro – viajante, desbravador; homem da vida – homem de grande experiência; vadio- que não faz nada; homem dado – que não faz nada; atirado – disponível, impetuoso; atrevido – ousado, petulante; ambicioso- visionário, enérgico. Terão o mesmo significado se dirigidos às mulheres? Qual? (Texto da Peça: Carne, Patriarcado e Capitalismo – Cia Kiwi de Teatro, 2011). Um fato sobre a violência contra a mulher seria a associação dela com o alcoolismo ou outro tipo de droga, uma maneira de justificar as agressões, pois o agressor com perfil machista normalmente não bate no amigo ou no patrão. Ele bebe, se motiva e bate na sua esposa, porque acha que a mulher é propriedade dele e sua “empregada conjugal”, podendo ele dispor dela quando quiser e corrigi-la se ela lhe “provocar” ou não realizar “suas funções”, de preferência calada! A literatura infantil, segundo Luz (2007), traz inúmeros exemplos como: “Bela Adormecida, doce frágil, indefesa, ‘dorme’ enquanto o príncipe, forte e corajoso, vence todos os perigos para chegar até lá. Cinderela (que antes do baile era a Gata Borralheira) que depende do príncipe para romper com as agressões sofridas, indefesas, cria o sonho do castelo encantado e da vida eternamente feliz. Afinal, somos educados no simbolismo de princesas e príncipes encantados, castelos de sonhos e doce lar... Será que não está na hora das Princesas se tornarem Belas Acordadas? O papel de submissão dados às mulheres reflete na tomada de suas decisões, nas relações afetivas, demonstrando muito mais dependência emocional do que financeira, pois ficou demonstrado que as mulheres sempre trabalharam e muito. As de família mais abastada estudavam sob muita pressão, mas, esclarecidas lutavam por seus direitos, já as de classe pobre restava trabalhar para sobreviver. No campo do direito onde se observa no texto das leis a evidente e taxativa a discriminação contra as mulheres, a evolução é lenta e muitas vezes baseada no embate, a exemplo do caminho árduo de conquista da Lei n.º 11.340/06 (Lei Maria da Penha) para um maior reconhecimento da violência doméstica. Até 2001, o ordenamento civil, art. 304 REVISTA DO INSTITUTO DOS ADVOGADOS DE SÃO PAULO v. 35, JANEIRO - JUNHO 2015 129, permitia a anulação do casamento se houvesse o defloramento da mulher ignorado pelo marido. Sofrendo ao longo do tempo algumas modificações, porém, com muita resistência, demonstrando que nesta área o tradicionalismo e conservadorismo são muito fortes e arraigados à cultura patriarcal. Somente em 2005 houve a descriminalização do adultério, antes previsto como crime no ordenamento penal. Não se vê muito interesse do legislador em atualizar ou agilizar as normas. Muito menos nos operadores do direito, que tiveram uma base totalmente positivista e conservadora em ampliar seu ângulo de visão para qualquer fato que não se enquadre no texto da lei, protegendo-se atrás do texto legal como forma de se isentar? Ou porque estão distantes da realidade da vulnerabilidade social que passam a maioria dos casos de violência denunciados. E com os profissionais da saúde também não se observa o necessário comprometimento com a causa, notificando os casos de violência e denunciando à rede de serviços o ocorrido, de modo a acolher a vítima, ainda que seja pela sua conscientização e informação. A todos os profissionais e áreas seria útil o conhecimento dos problemas e da constituição social da sociedade. Muitos casos de femicídio (homicídio) conhecidos chegaram ao conhecimento público, ressaltando que mulheres pobres são mortas e espancadas todos os dias sem a necessária visibilidade, mas com a mesma banalidade antes vista: Ângela Diniz (1979), Eliane de Gramond (1981), Sandra Gomide, Eloá Pimentel, Eliza Samudio, Mércia Nakashima, Viviane dos Santos, Marias, Elaines, Jussaras, etc. A OMS (2002) recomenda como medidas de prevenção à violência praticada por parceiros íntimos: o treinamento, capacitação profissional, criação de serviços especializados para atendimento às vítimas que envolva o acolhimento, apoio social e psicológico, tratamento médico e abrigo seguro. Maior rigor das leis, com o afastamento do agressor para contê-lo e possivelmente encaminhá-lo para programas de reeducação. Intervenção dos demais serviços envolvidos, análise, pesquisa e cadastro com registros estatísticos além de educação de base e integração em rede. Souza (2006), fala sobre Políticas Púbicas enquanto área de estudo e sub-área da Ciência Política com base na ação dos governos, analisando o que o Estado faz e como faz, por pesquisadores independentes, ou seja: apesar de muitas definições, as Políticas Públicas assumem uma visão de que o todo é mais importante, buscando ao mesmo tempo acionar o governo e analisar esta ação, podendo propor mudanças, já que os governos democráticos visam produzir resultados que influenciam na vida das pessoas. Por isso tem caráter multidisciplinar com influência de outras áreas de conhecimento. Vários segmentos se envolvem na formulação de políticas públicas, tais como DOUTRINA . DIREITO PENAL AS CAUSAS DA VIOLÊNCIA DOMÉSTICA CONTRA A MULHER: UMA REVISÃO DA LITERATURA 305 grupos de interesse, movimentos sociais (sociedade civil) e governo. O ciclo das políticas públicas compõe-se de: definição de agenda, identificação de alternativas, avaliação das opções, seleção de opções, implementação e avaliação. Para definição da agenda, os governos são definidos pela focalização de um problema, da necessidade de fazer algo sobre ele e da visão que se tem dele, reforçado ou não por grupos de interesse, com um objetivo, sendo também influenciar pelas regras formais e informais que regem as instituições, pois a formulação de políticas públicas passa pela disputa de poder e para recursos entre grupos sociais. Em 1996 o governo brasileiro lançou o Programa Nacional de Direitos Humanos implementando decisões da Conferência Mundial dos Direitos Humanos de Viena de 1993, que define a violência contra as mulheres como violência contra os direitos humanos; da Convenção Interamericana para Prevenir, Punir e Erradicar a Violência contra as Mulheres e da IV Conferência Mundial da Mulher em Pequim de 1995, destacando-se a criação de um Programa Nacional de Combate à Violência contra as Mulheres, á criação de centros integrados de assistência a mulheres sob risco de violência doméstica e sexual; às políticas dos governos estaduais e municipais para prevenção da violência doméstica e sexual contra as mulheres, pesquisas sobre violência contra as mulheres e sobre formas de proteção e promoção dos direitos da mulher, e ao projeto que trata do estupro como crime contra a pessoa e sua liberdade sexual, e não mais como crime contra os costumes. Tal programa, por meio do Conselho Nacional dos Direitos da Mulher (CNDM) de 1997 passou a viabilizar a celebração de convênios com estados e municípios para implementação de casas-abrigo; elaborou a Norma Técnica sobre atendimento às Mulheres Vítimas de Violência Sexual, com apoio de grupos feministas, em 1998; criação da Secretaria dos Direitos das Mulheres (Sedim) que passou a ter categoria ministerial como Secretaria Nacional de Políticas para as Mulheres (SPM) em 2003 e em 2004 através da Conferência Nacional de Políticas para as Mulheres, que apresentou diretrizes para a política nacional baseada na igualdade de gênero, criou-se o Plano Nacional de Políticas para as Mulheres, elaborado pela Secretaria Especial de Políticas para as Mulheres (SPM) visando uma Política Nacional de Enfrentamento à Violência contra as Mulheres que busca autonomia, igualdade, no mundo do trabalho, cidadania, educação inclusiva e não sexista, saúde, direitos sexuais e reprodutivos através de atendimento humanizado e de qualidade às mulheres, revisar a legislação e integrar os serviços em redes locais, regionais e nacionais, envolvendo Delegacias das Mulheres, 306 REVISTA DO INSTITUTO DOS ADVOGADOS DE SÃO PAULO v. 35, JANEIRO - JUNHO 2015 Polícia Militar, Centros de Referência, Casa-Abrigo, Serviços de Saúde, IML, Defensoria Pública e Núcleos Especializados (Leila Linhares Barsted, 2008 – Secretaria Especial de Políticas para as Mulheres (SEPM-DF). A SEPM-DF, também criou um número de denúncia, reclamações e sugestões através da Central de Atendimento à Mulher – 180, serviço que realizou, de abril de 2006 a outubro de 2011, cerca de 2,2 milhões de atendimentos, sendo de janeiro a outubro de 2011, relatados 58,5 mil casos de violência – 35,9 mil de violência física; 14 mil de violência psicológica; 6,3 mil de violência moral; 959 de violência patrimonial; 1.014 de violência sexual; 264 de cárcere privado e 31 de tráfico de mulheres. No Estado Conselho Estadual da Condição Feminina, através do Decreto n.º 20892/83 e Lei n.º 5447/86 e nos Municípios: Secretaria Especial para Participação e Parceria, Coordenadoria da Mulher, no caso do município de São Paulo, criada em 1989, regulamentada em 1992, com atribuições de formular, coordenar e acompanhar políticas públicas para as mulheres, desenvolver projetos com foco no combate às desigualdades e discriminações de gênero, na defesa e garantia dos direitos econômicos, sociais, culturais e políticos das mulheres. É através destas políticas que Centros e Núcleos especializados fazem o atendimento de base, na linha de frente da problemática da violência contra a mulher, através de equipe multidisciplinar, objetivando o rompimento do ciclo da violência, o desenvolvimento emocional e social da mulher, baseados no fortalecimento, na cidadania, autonomia, fonte de renda e trabalho, informação, medidas judiciais e encaminhamentos diversos para a rede de serviços (saúde, educação, programas sociais, centros de apoio ao trabalhador, defensoria pública, delegacias, campanhas e atitudes afirmativas. Campanhas e atitudes pacíficas fazem parte dos 16 dias de Ativismo e Combate à Violência contra a Mulher, pela Rede de Enfrentamento, iniciando-se todos os anos pelo dia 25 de novembro, Dia Internacional de Luta Contra a Violência à Mulher, instituída durante o 1º Encontro Feminista Latino Americano e do Caribe (Bogotá, 1.981), data apoiada também pela Ordem dos Advogados do Brasil São Paulo, através de seu presidente Luiz Flávio Borges D’Urso, que ressalta a realidade da dificuldade de denúncia pela mulher observada pelo seu conflito pessoal em aceitar o fim do relacionamento, o fim do amor e de ver o pai de seus filhos possivelmente preso. Fatores que, no entanto, não tiram a importância da denúncia e a necessidade de ação, pois: “Não é preciso ser mulher para saber da necessidade de se criar políticas públicas que cuidem de casos de violência contra a mulher, não apenas do ponto de vista criminal, como também do DOUTRINA . DIREITO PENAL AS CAUSAS DA VIOLÊNCIA DOMÉSTICA CONTRA A MULHER: UMA REVISÃO DA LITERATURA 307 ponto de vista social, psicológico e físico.” Nesta vertente, observa-se a urgente necessidade de ampliar a visão sobre o tema, reformulando conceitos e assumindo o compromisso com o enfrentamento e a prevenção da violência, afinal a “Violência Doméstica contra as Mulheres é um Problema de todos Nós” (Campanha dos 16 Dias de Ativismo, Agende, 2008). 6. REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS ALVES, Branca M.; PITANGUY, Jacqueline. O que é feminismo. São Paulo: Brasiliense, 1981. ARAÚJO, Emanuel. “A arte da sedução: sexualidade feminina na colônia”. In: PRIORE, Mary Del (org). História das Mulheres no Brasil. São Paulo: Contexto, 1997. p.45-77. BRASIL. Lei n.º 11.340, de 7 de Agosto de 2006.Cria mecanismos para coibir a violência doméstica e familiar contra a mulher. 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Desapropriação da água por necessidade ou utilidade pública, ou por interesse social; 4. A justa e prévia indenização na desapropriação da água; 5. Conclusão; 6. Referências. RESUMO O trabalho foi elaborado tendo em vista a evidente relevância da água, por tratar-se de um bem essencial à existência humana individual e coletiva. Seu regime jurídico é complexo e intenso, tendo merecido tratamento cuidadoso e detalhado. A identificação do titular do domínio da água é realizada sob a ótica constitucional e sob o prisma da legislação especial. Na segunda parte, são tecidas considerações acerca do processo judicial de desapropriação da água, sob os fundamentos da necessidade ou utilidade pública ou do interesse social, na hipótese do não cumprimento da função social de tão valioso bem. Por fim, versa-se sobre a justa e prévia indenização na desapropriação da água. PAVRAS-CHAVE Agua; desapropriação; necessidade ou utilidade pública; interesse social; justa indenização. REVISTA DO INSTITUTO DOS ADVOGADOS DE SÃO PAULO v. 35, JANEIRO - JUNHO 2015 314 1. INTRODUÇÃO Este artigo, ao apresentar tema único e delimitado, pautado em investigação original, examina de forma inédita, fundamentada e crítica, a desapropriação da água. O tema foi escolhido, tendo em vista a evidente relevância de tão precioso bem, essencial à existência humana individual e coletiva. O discurso adota a forma científica procurando respeitar as exigências estabelecidas pela Associação Brasileira de Normas Técnicas e aquelas preestabelecidas pelos Editores. O objetivo é identificar e deslindar aspectos intrigantes relacionados ao regime jurídico das águas brasileiras, o processo de desapropriação e a justa e prévia indenização, que resulta do processo expropriatório. O texto está estruturado em três partes. Na parte inaugural, aborda-se o regime jurídico das águas a fim de elucidar o seu domínio. Em seguida, estuda-se a desapropriação da água por necessidade ou utilidade pública ou por interesse social com as ilações necessárias ao material legislativo que disciplina o processo expropriatório, em geral. Por fim, investiga-se a instigante questão da justa e prévia indenização na desapropriação, nela incluída a hipótese de desapropriação das águas. Tudo isso com base na legislação especial pertinente e no cenário da atual Carta Política da nação brasileira. DOUTRINA . DIREITO PÚBLICO A DESAPROPRIAÇÃO DA ÁGUA 315 2. O REGIME JURÍDICO DAS ÁGUAS NO BRASIL Para tratar do regime jurídico 1-2-3 das águas no Brasil e identificar seu domínio cumpre debruçar sobre o significado de água, bem como investigar a atual Carta Política da nação brasileira e a legislação infraconstitucional especial. 1. O vocábulo água deriva do latim (aqua). Numa abordagem físico-química, trata-se de um líquido inodoro, insípido e incolor. Suas moléculas são formadas por dois átomos de hidrogênio e um de oxigênio (H2O). Tal substância química se encontra na superfície terrestre nos estados líquido, sólido e gasoso4, possuindo grande poder de dissolução de muitas outras substâncias químicas.5 Numa abordagem jurídica, tem-se que a água é um bem de domínio público. É um “bem ambiental”6 de uso comum do povo e indispensável à sadia qualidade de vida. É um recurso natural limitado e dotado de valor econômico. 1. Carlos Maximiliano assenta que a Hermenêutica e a Aplicação do Direito “precisam inquirir qual a norma que melhor corresponde não só às exigências da justiça, como também às da utilidade social”. O hermeneuta deve não apenas atender ao regime jurídico geral, mas principalmente ao especial. A exegese de um preceito de direito está subordinada ao sistema como um todo, adotado a respeito de cada instituto (MAXIMILIANO, Carlos. Hermenêutica e aplicação do direito. Rio de Janeiro: Forense, 2010, p. 134). 2. A expressão regime jurídico é utilizada para indicar “o conjunto de normas jurídicas que dispõem sobre um certo sujeito, bem ou atividade” (JUSTEN FILHO, Marçal. Curso de direito administrativo. 11.ed. rev. atual. e ampl. São Paulo: Editora Revista dos Tribunais, 2015, p. 127). Compreende desde a norma de origem constitucional até as disposições legais que regulamentam o mesmo tema (SILVA, De Plácido e. Vocabulário jurídico. 28.ed. Atualizadores: Nagib Slaibi Filho e Glaucia Carvalho. Rio de Janeiro: Forense, 2010, p. 1176). 3. Na definição clássica de Ulpiano, encontrada no Digesto (D.1.1.2), o regime jurídico pode ser público (jus publicum), que diz respeito às coisas do Estado, ou privado (jus privatum), que se refere aos bens dos particulares. Extrai-se do fragmento original: “Huius studii duae sunt positiones, publicum et privatum. publicum ius est quod ad statum rei romanae spectat, privatum quod ad singulorum utilitatem: sunt enim quaedam publice utilia, quaedam privatim. publicum ius in sacris, in sacerdotibus, in magistratibus constitit. privatum ius tripertitum est: collectum etenim est ex naturalibus praeceptis aut gentium aut civilibus.” Tradução livre: Duas são as posições neste estudo: o público e o privado. É direito público o que diz respeito ao estado da república, privado o que diz respeito à utilidade dos particulares, pois há coisas de utilidade pública e outras de utilidade privada. O direito público consiste no ordenamento religioso, dos sacerdotes e dos magistrados. O direito privado é tripartite, pois está composto dos preceitos naturais, dos povos e civis. (Nesse sentido: LUMIA, Giuseppe. Elementos de teoria e ideologia do direito. Trad. Denise Agostinelli. São Paulo: Martins Fontes, 2003, p. 56.) 4. Neste trabalho vamos nos referir apenas à forma líquida da água. 5. MILARÉ, Édis. Dicionário de direito ambiental. São Paulo: Editora Revista dos Tribunais, 2015, p. 43. FREIRE, William; MARTINS, Daniela Lara (coords.). Dicionário de direito ambiental e vocabulário técnico de meio ambiente. Belo Horizonte: Mineira, 2003. 6. FIORILLO, Celso Antonio Pacheco. Curso de direito ambiental brasileiro. 2.ed. ampl. São Paulo: Saraiva. 2001, p. 54. REVISTA DO INSTITUTO DOS ADVOGADOS DE SÃO PAULO v. 35, JANEIRO - JUNHO 2015 316 É elemento essencial à vida do ser humano, dos animais e vegetais, sendo necessário que seja de boa qualidade e em quantidade suficiente para proporcionar o seu uso múltiplo. Em situações de escassez, destina-se essencialmente a atender o consumo humano e à dessedentação de animais.7 2. A atual Carta Política da nação brasileira fornece as bases fundamentais necessárias à compreensão e identificação do domínio das águas brasileiras. A Constituição Federal, no que concerne à propriedade das águas, classificou-as em federais ou estaduais. As águas denominadas federais são os lagos, rios e correntes de água localizados em terrenos de domínio da União ou que banhem mais de um Estado, que sirvam de limítrofes com outros países, ou, ainda, que se estendam a território estrangeiro (CF, art. 20, III).8 Por sua vez, as águas denominadas estaduais, que podem ser superficiais, subterrâneas, fluentes, emergentes ou em depósito, são aquelas localizadas em áreas de domínio dos Estados-membros (CF, art. 26, I). Destaca-se, desde já, que a Carta Magna não tratou de águas particulares, tampouco municipais. Além da Constituição Federal, em caráter infraconstitucional, subsidiário e regulamentar, a matéria relacionada ao domínio da água está disciplinada, também, na legislação especial – Código das Águas (Decreto nº 24.643/1934), Lei nº 9.433/1997, e Lei nº 9984/2000 – e na legislação ordinária – Código Civil (Lei nº 10.406/2002). Nesse ponto, cabe trazer algumas ponderações acerca do significado, do alcance e da aplicação da norma especial, também denominada singular. Norberto Bobbio alerta que são possíveis muitas distinções entre as normas 7. Lei nº 9.4337/1997, art. 1º, inciso III. 8. Em sentido diverso, Celso Antonio Pacheco Fiorillo entende que os rios e lagos mencionados no inciso III do art. 20 da Constituição Federal, por se tratarem de bens ambientais, “não são propriedade de qualquer dos entes federados. [...] Na verdade, esta atua como simples administradora de um bem que pertence à coletividade, devendo geri-lo sempre com a participação direta da sociedade” (FIORILLO, Celso Antonio Pacheco. Curso de direito ambiental brasileiro. 2.ed. ampl. São Paulo: Saraiva. 2001, p. 54). No mesmo sentido: MIRRA, Alvaro Luiz Valery. Fundamentos do direito ambiental no Brasil. RT, 2706:8. DOUTRINA . DIREITO PÚBLICO A DESAPROPRIAÇÃO DA ÁGUA 317 jurídicas. Entre elas, a elementar, que se encontra em todos os tratados de lógica, é aquela entre as proposições universais e singulares.9 Com base nisso, no que se refere à amplitude ou ao alcance da norma, pode-se dizer que as leis classificam-se em gerais ou especiais. Enquanto as gerais disciplinam um número indeterminado de pessoas e atingem uma esfera de situações genéricas, as leis especiais regulam matérias com critérios particulares, específicos. As leis singulares, também denominadas especiais “não se opõem às normas gerais, antes, as completam”10. Nesse diapasão, Dimitri Dimoulis alude que o princípio da especialidade possui justificação lógica, pois, sendo o legislador racional, ao estabelecer de forma específica um determinado assunto, revela que essa é a vontade concreta que deve prevalecer11. Disso se extrai que, quando houver lei especial e lei genérica estabelecendo regras sobre determinado assunto, prevalecerá aquela cujos preceitos forem dotados de maior grau de especialidade (lex specialis derogat legi generali). No mais, na doutrina clássica, Carlos Maximiliano consignou que as leis especiais limitadoras do domínio são disposições de ordem pública, imperativas ou proibitivas e que “interpretam-se estritamente”12. Estas breves considerações acerca do alcance e significado da norma especial servem para estabelecer que, enquanto as regras gerais disciplinam um número indeterminado de pessoas e atingem uma esfera de situações genéricas, as leis especiais regulam matérias com critérios particulares específicos. Havendo qualquer divergência entre a norma geral e a especial, esta deve prevalecer. A regra dotada de maior grau de especialidade deve prevalecer sobre a geral. É isto que se aplica às disposições sobre o domínio da água, tal qual insculpido em nosso ordenamento jurídico. Tendo em vista que o ponto de interesse nesta parte é tratar sobre o domínio das águas, na seara da legislação especial, cabe mencionar, inicialmente, o Código das Águas (Decreto nº 24.643/1934). 9. BOBBIO, Norberto. Teoria da norma jurídica. Trad. Fernando Pavan Baptista e Ariani Bueno Sudatti. Apresentação: Alaôr Caffé Alves. Bauru/SP: EDIPRO, 2001, p. 178. No me sentido: BOBBIO, Norberto. Teoria geral do direito. Tradução: Denise Agostinetti; revisão da tradução: Silvana Cobucci Leite. 2.ed. São Paulo: Martins Fontes, 2008, p. 159-160. 10. VENOSA, Sílvio de Salvo. Introdução ao estudo do direito: primeiras linhas. 2.ed. São Paulo: Atlas, 2008, p. 98. 11. DIMOULIS, Dimitri. Manual de introdução ao estudo do direito. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2003, p. 234. 12. MAXIMILIANO, Carlos. Hermenêutica e aplicação do direito. Rio de Janeiro: Forense, 2010, p. 182. 318 REVISTA DO INSTITUTO DOS ADVOGADOS DE SÃO PAULO v. 35, JANEIRO - JUNHO 2015 O vetusto Código das Águas classifica as águas no Brasil em públicas (art. 1º), comuns (art. 7º) e particulares (art. 8º). As públicas, de uso comum ou dominicais, pertencem, conforme estabelecido no artigo 29, do mesmo Código, à União (inciso I), aos Estados (inciso II) ou aos Municípios (III). As denominadas particulares são as nascentes e todas as águas situadas em terrenos privados, quando as mesmas não estiverem classificadas entre as águas públicas ou as comuns (art. 8º). Na doutrina, renomados autores, entre eles Hely Lopes Meirelles, ainda sustentam a existência de águas particulares, que, portanto, pertencem aos seus proprietários1314 15 - . Não obstante, o mesmo autor entende que o fato de a Constituição não atribuir qualquer domínio aos Municípios importa em derrogação da norma pertinente às águas municipais16. De nossa parte, entendemos que em razão de a Carta Magna não tratar expressamente de águas particulares, tampouco municipais, exclui-se a pertencialidade desses institutos ao ordenamento jurídico atual. Portanto, não há mais que se falar em 13. Para Hely Lopes Meirelles, as águas localizadas em caudais “particulares, pertencem aos respectivos proprietários” (MEIRELLES, Hely Lopes; ALEIXO, Délcio Balestero; BURLE FILHO, José Emmanuel. Direito administrativo brasileiro. 38.ed. atual. São Paulo: Malheiros, 2012, p. 621). 14. Também assim, com base no § 3º do art. 2º do Código de Águas, Celso Antônio Bandeira de Mello propugna que “os lagos e lagoas situados e cercados por um só prédio particular e que não forem alimentados por correntes públicas não são bens públicos” (BANDEIRA DE MELLO, Celso Antônio. Curso de direito administrativo. 29.ed. rev. e atual. São Paulo: Malheiros, 2012, p. 929). 15. Da mesma forma, José dos Santos Carvalho Filho entende que “as águas formadas em áreas privadas – tanques, pequenos açudes e lagos, locais de armazenamento de águas da chuva – são bens privados” (CARVALHO FILHO, José dos Santos Direito administrativo. 23.ed. Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2010, p. 1320). 16. Hely Lopes Meirelles, ao mencionar a partilha constitucional dos rios públicos, aduz que o fato de a Constituição não atribuir qualquer domínio fluvial ou lacustre aos Municípios “já importava derrogação do art. 29 do Código de Águas” (MEIRELLES, Hely Lopes; ALEIXO, Délcio Balestero; BURLE FILHO, José Emmanuel. Direito administrativo brasileiro. 38.ed. atual. São Paulo: Malheiros, 2012, p. 620). DOUTRINA . DIREITO PÚBLICO A DESAPROPRIAÇÃO DA ÁGUA 319 águas particulares17- 18-19. Além disso, deve-se aplicar a legislação especial, mormente a Lei nº 9.433/1997 e a Lei nº 9.984/2000. Nesse diapasão, cabe mencionar um julgado de 2007, no qual a 2ª Turma do Superior Tribunal de Justiça, com relatoria e voto da lavra do Ministro João Otávio de Noronha, integrada pelos demais Ministros Herman Benjamim, Castro Meira, Humberto Martins, e Eliana Calmon, por unanimidade, ao dar parcial provimento ao recurso, fez constar, in verbis: ADMINISTRATIVO. DESAPROPRIAÇÃO. TERRENOS SITUADOS NA MARGEM DOS RIOS. TERRENOS MARGINAIS E PRAIAS FLUVIAIS. DOMÍNIO PARTICULAR. IMPOSSIBILIDADE. INDENIZAÇÃO. INVIABILIDADE. 1. Código de Águas (Decreto nº 24.643/1934) deve ser interpretado à luz do sistema da Constituição Federal de 1988 e da Lei nº 9.433/1997 (Lei da Política Nacional de Recursos Hídricos), que só admitem duas modalidades de domínio sobre os recursos hídricos – águas federais e águas estaduais. [...]20. No mesmo sentido, em precedente de 2011, a mesma 2ª Turma do Superior Tribunal de Justiça, dessa vez com relatoria e voto da lavra do Ministro Mauro Campbell Marques, acompanhado unanimemente pelos Ministros Cesar Asfor Rocha, Castro Meira, Humberto Martins e Herman Benjamim, em sede de Recurso Especial que questionava uma desapropriação indireta, fez constar no acórdão “que a Constituição Federal aboliu expressamente a dominialidade privada dos cursos de água”21. 17. Também José Carlos de Moraes Salles sustenta que não há mais que se falar águas particulares, “porque estas não mais existem” (SALLES, José Carlos de Moraes. A Desapropriação à luz da doutrina e da jurisprudência. 6.ed. rev. atual. e ampl. São Paulo: Editora Revista dos Tribunais, 2009, p. 160). 18. Da mesma forma, Maria Sylvia Zanella Di Pietro sustenta que diante da atual Constituição, “não se pode mais falar em águas particulares, o que é confirmado pela Lei nº 9.433, de 8 de janeiro de 1997” (DI PIETRO, Maria Sylvia Zanella. Direito administrativo. 25.ed. São Paulo: Atlas, 2012, p. 785). 19. Na mesma linha, Marçal Justen Filho aduz que “A Constituição não deixou espaço para a propriedade privada ou municipal de águas” (JUSTEN FILHO, Marçal. Curso de direito administrativo. 11.ed. rev. atual. e ampl. São Paulo: Editora Revista dos Tribunais, 2015, p. 1228). 20. BRASIL. Superior Tribunal de Justiça – STJ. 2a Turma (decisão unânime). REsp no 508.377-MS (2003/0011452-8). Rel. Min. João Otávio de Noronha, 23.10.2007. 21. BRASIL. Superior Tribunal de Justiça – STJ. 2a Turma (decisão unânime). REsp no 1.152.028-MG (2009/00000382). Rel. Min. Mauro Campbell Marques, 17.03.2011. 320 REVISTA DO INSTITUTO DOS ADVOGADOS DE SÃO PAULO v. 35, JANEIRO - JUNHO 2015 Ainda investigando a atual Carta Política da nação brasileira, no que concerne ao domínio da água, tem-se no artigo 21, inciso XIX, que cabe à União “instituir sistema nacional de gerenciamento de recursos hídricos e definir critérios de outorga de direitos de seu uso”. De fato, tal dispositivo está regulamentado em lei especial – Lei nº 9.433/1997 – que, ao estabelecer a Política Nacional de Recursos Hídricos, deu origem ao Sistema Nacional de Gerenciamento de Recursos Hídricos. Esta norma revela-se imprescindível ao presente estudo, notadamente no que tange ao domínio da água. Os fundamentos da lei que regulamenta a Política Nacional de Recursos Hídricos (Lei nº 9.433/1997) estão dispostos no art. 1º e devem ser interpretados estritamente. In verbis: “a água é um bem de domínio público” (inciso I). “A água é um recurso natural limitado, dotado de valor econômico” (inciso II). “Em situações de escassez, o uso prioritário dos recursos hídricos é o consumo humano e a dessedentação de animais” (inciso III). “A gestão dos recursos hídricos deve sempre proporcionar o uso múltiplo das águas” (inciso IV). “A bacia hidrográfica é a unidade territorial para implementação da Política Nacional de Recursos Hídricos e atuação do Sistema Nacional de Gerenciamento de Recursos Hídricos” (inciso V). “A gestão dos recursos hídricos deve ser descentralizada e contar com a participação do Poder Público, dos usuários e das comunidades (inciso VI). Assim, a lei especial que trata dos recursos hídricos (Lei nº 9.433/1997), estabelece que a água é um bem de domínio público (art. 1º). Além de tratar das questões relacionadas ao domínio da água, a Lei nº 9.433/1997 cuidou também das hipóteses de uso dos recursos hídricos sujeitas a outorga pelo Poder Público, (art. 12, § 1º). São elas: o uso para a satisfação das necessidades de pequenos núcleos populacionais, distribuídos no meio rural (inciso I)22; as derivações, captações e lançamentos considerados insignificantes (inciso II) e as acumulações de volumes de água consideradas insignificantes (inciso III). E frisou: “a outorga não implica a alienação parcial das águas, que são inalienáveis, mas o simples direito de seu uso” (art. 18). Na mesma seara da especialidade legiferante, com a finalidade de se implementar a Política Nacional de Recursos Hídricos, foi sancionada a Lei nº 9.984/2000, que dispõe sobre a criação da Agência Nacional de Águas – ANA, entidade federal que coordena o Sistema Nacional de Gerenciamento de Recursos Hídricos. No texto, encontra-se tão somente a previsão de domínio dos corpos de águas pela 22. Nesse sentido, STJ, REsp 1317668 / RJ, Rel. Min. OG Fernandes, 24/03/2015. DOUTRINA . DIREITO PÚBLICO A DESAPROPRIAÇÃO DA ÁGUA 321 União, Estados ou Distrito Federal (art. 7º, § 2º), sem, em nenhum ponto haver referência ao domínio particular das águas. Por outro lado, a legislação ordinária – Código Civil de 2002 –, adotando concepção individualista, ao tratar sobre o direito à utilização das águas, emprega equivocadamente a expressão “proprietário de nascente” (art. 1.290). Entende-se tratar de sentido impróprio, pois a conotação apropriada é a de “proprietário do solo onde se encontra nascente de água”23-24. Assim, à luz do teor estabelecido na atual Carta Magna (CF, art. 20, III; art. 26, I e art. 21, IXX) e na legislação especial que deve ser aplicada ao tema (Lei nº 9.433/1997 e Lei nº 9.984/2000), entende-se que o domínio das águas brasileiras é da União e dos Estadosmembros. Afasta-se, nesse ponto, o vetusto Código das Águas (Decreto nº 24.643/1934). Da mesma forma, não se aplica, in casu, o teor individualista mencionado no Código Civil de 2002. Com isso, pode-se dizer que o regime jurídico, ou seja, o conjunto de normas jurídicas aplicáveis às águas brasileiras é de direito público25. Ademais, não se pode mais falar em domínio muni ou domínio particular da água. O particular não mais detém o domínio desse bem; apenas aufere o direito ao seu uso. 3. Esclareceu-se que o regime jurídico aplicável ás águas no Brasil é de direito público. Também ficou esclarecido que o domínio das águas no Brasil é da União, dos seus Estados-membros ou do Distrito Federal. Contudo, as águas não integram o patrimônio privado26 de tais entes federativos, mas o seu patrimônio público. Pode-se definir patrimônio público como sendo o conjunto de bens e direitos de valor econômico, artístico, estético, histórico ou turístico, a moralidade administrativa, o 23. NERY JUNIOR, Nelson; NERY, Rosa Maria de Andrade. Código Civil comentado. 7. ed. rev. ampl. e atual. até 25 ago. 2009. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2009. p. 996, nota 2 ao art. 1.290. 24. Da mesma forma, Francisco Eduardo Loureiro, ao tratar o tema, utiliza acertadamente a expressão “o dono ou possuidor do prédio onde nascem ou caem” (LOUREIRO, Francisco Eduardo. Direito das coisas. In: PELUSO, Cezar (Coordenador). Código Civil comentado: doutrina e jurisprudência. Lei n. 10.406, de 10.01.2002. 9.ed. rev. e atual. Barueri, SP: Manole, 2015, p. 1221). 25. Marçal Justen Filho, na mesma linha, assevera que o regime jurídico aplicável aos recursos hídricos no Brasil é “um regime jurídico de direito público” (JUSTEN FILHO, Marçal. Curso de direito administrativo. 11.ed. rev. atual. e ampl. São Paulo: Editora Revista dos Tribunais, 2015, p. 1225). 26. Os bens que integram o patrimônio privado dos entes federativos são também chamados dominicais – são os próprios do Estado como objeto de direito real, não aplicados ao uso comum (BANDEIRA DE MELLO, Celso Antônio. Curso de direito administrativo. 29.ed. rev. e atual. São Paulo: Malheiros, 2012, p. 930). 322 REVISTA DO INSTITUTO DOS ADVOGADOS DE SÃO PAULO v. 35, JANEIRO - JUNHO 2015 meio ambiente e o patrimônio histórico e cultural.27 As águas integram o meio ambiente e são inalienáveis (Lei 9.433/1997, art. 18). O patrimônio público é também denominado bem público pertencente às Pessoas Jurídicas de Direito Público, nesse caso, a União e os Estados-membros. “O conjunto de bens públicos forma ‘domínio público’”28, que inclui tanto os bens imóveis como móveis e cujo direito de propriedade se exerce “sobre todas as coisas de interesse público”29. Nesse diapasão, a água é “um bem de domínio público, recurso natural limitado e dotado de valor econômico”30. Inclui-se no complexo de direitos sobre bens materiais corpóreos, oponível erga omnes, do gênero propriedade, pertencente ao patrimônio público da entidade jurídica de direito público (União/Estados-membros) que se destinam ao uso comum do povo31. Trata-se de um bem de domínio público, que integra o patrimônio público da União, dos Estados-membros e do Distrito Federal. Como qualquer propriedade deve cumprir sua função social. 4. Cabe aqui tecer breves considerações acerca do instituto da propriedade, tal como garantido na Constituição Federal, (CF, art. 5º, XXII). Trata-se do direito de, nos exatos limites normativos, “usar, gozar e dispor de um bem, corpóreo ou incorpóreo, bem como de reivindicá-lo de quem injustamente o detenha”32. 27. A definição ora utilizada encontra fundamento no § 1º do art. 1º da Lei nº 4.717/65, c/c o inciso LXXIII do art. 5º da Constituição Federal. Em sentido idêntico: MAZZILLI, Hugo Nigro. A defesa dos interesses difusos em juízo: meio ambiente, consumidor, patrimônio cultural, patrimônio público e outros interesses. 25. ed. rev., ampl. e atual. São Paulo: Saraiva, 2012, p. 191. 28. BANDEIRA DE MELLO, Celso Antônio. Curso de direito administrativo. 29.ed. rev. e atual. São Paulo: Malheiros, 2012, p. 929. 29. O conceito de domínio público não é uniforme na doutrina. Hely Lopes Meirelles ao tratar o tema, conceitua “o domínio público em sentido amplo e em seus desdobramentos político (domínio eminente) e jurídico (domínio patrimonial); (MEIRELLES, Hely Lopes; ALEIXO, Délcio Balestero; BURLE FILHO, José Emmanuel. Direito administrativo brasileiro. 38.ed. atual. São Paulo: Malheiros, 2012, p. 573-574). 30. MEIRELLES, Hely Lopes; ALEIXO, Délcio Balestero; BURLE FILHO, José Emmanuel. Direito administrativo brasileiro. 38.ed. atual. São Paulo: Malheiros, 2012, p. 618. 31. Ainda, no que concerne à definição de domínio público: SILVA, De Plácido e. Vocabulário jurídico. 28.ed. Atualizadores: Nagib Slaibi Filho e Glaucia Carvalho. Rio de Janeiro: Forense, 2010, p. 504; GUIMARÃES, Deocleciano Torrieri. Dicionário técnico jurídico. 8.ed. São Paulo: Rideel, 2006, p. 248. 32. DINIZ, Maria Helena. Curso de direito civil brasileiro: direito das coisas. 22.ed. São Paulo: Saraiva, 2007. vol. 4, p. 126. DOUTRINA . DIREITO PÚBLICO A DESAPROPRIAÇÃO DA ÁGUA 323 Não obstante, deve-se frisar que toda propriedade “atenderá a sua função social”33 (CF, art. 5º, XXIII), segundo a qual o direito de propriedade será “condicionado ao bem-estar social”34. Trata-se de um “fundamento político e jurídico” 35 que justifica a intervenção do Estado na propriedade. A função social da propriedade diz respeito à própria estrutura do direito de propriedade. O núcleo fundamental do conceito de preenchimento da função social da propriedade “é dado pela sua eficácia atual quanto à geração de riqueza”36. Destarte, a Constituição Federal relativizou o significado de propriedade37. Desta forma, a teor da Constituição Federal, a propriedade tem como princípiovetor o cumprimento de sua função social na extensão de todo o território nacional. Em caso de descumprimento desse princípio, a Carta autoriza, excepcionalmente, sua expropriação (art. 5º, XXIV). O Texto também determina que haverá uma justa e prévia indenização38, a qual deve ser feita nos moldes da lei que regulamenta o procedimento para desapropriação – Decreto-Lei nº 3.365/41 e Lei nº 4.132/62 –, sob o fundamento da necessidade ou utilidade pública, ou do interesse social (art. 5º, XXIV). Portanto, com base na Constituição Federal e na legislação especial pertinente, pode se afirmar que o regime jurídico aplicável às águas no Brasil é de direito público. As águas são de domínio público e integram o patrimônio público da União, dos Estados-membros e do Distrito Federal. Como qualquer propriedade deve cumprir sua função social. Em caso de não cumprimento da sua função social, são passíveis de desapropriação pela União, frente aos Estados-membros sob o fundamento da necessidade ou utilidade pública, ou do interesse social, cujo procedimento para sua desapropriação será tratado na próxima parte deste artigo. 33. A Constituição Federal não define o que seja “função social”, mas fornece, em diversas passagens, parâmetros que permitem inferir se a propriedade está ou não a cumprir sua destinação social. Nesse mesmo sentido: MEDINA, José Miguel Garcia. Constituição Federal comentada. São Paulo: Editora Revista dos Tribunais, 2012, p. 83. 34. NOHARA, Irene Patrícia. Direito administrativo. 3.ed. São Paulo: Atlas, 2013, p. 715. 35. CARVALHO FILHO, José dos Santos Direito administrativo. 23.ed. Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2010, p. 845. 36. BASTOS, Celso Ribeiro. Curso de Direito Constitucional. São Paulo: Celso Bastos, 2002, p. 366. 37. No mesmo sentido: SILVA, José Afonso da. Curso de direito constitucional positivo. 35 ed. São Paulo: Malheiros, 2012, p. 281. 38. NAKAMURA, André Luiz dos Santos. A justa e prévia indenização na desapropriação. Rio de Janeiro: Lumen Juris. 2013. 324 REVISTA DO INSTITUTO DOS ADVOGADOS DE SÃO PAULO v. 35, JANEIRO - JUNHO 2015 3. DESAPROPRIAÇÃO DA ÁGUA POR NECESSIDADE OU UTILIDADE PÚBLICA, OU POR INTERESSE SOCIAL Nesta sessão será abordada a desapropriação da água por necessidade ou utilidade pública, ou por interesse social. A principal norma que regula a desapropriação é o Decreto-Lei nº 3.365/41 – Lei de desapropriação por utilidade pública, que merecerá guarida destacada nesta parte do trabalho, sem se descuidar, entretanto, das ilações necessárias à Lei nº 4.132/62 – Lei de desapropriação por interesse social.39 1. Inicialmente, cabe tecer considerações sobre os fundamentos denominados necessidade ou utilidade pública, ou interesse social –, que norteiam o processo judicial expropriatório. De fato, a justificativa da desapropriação é a “existência de um interesse público concretamente verificado, configurado pelos fundamentos utilidade/necessidade pública ou interesse social”40. Tais permissivos constitucionais retiram o domínio sobre determinado bem. A existência de qualquer um desses pressupostos permite que o interesse coletivo prevaleça, despojando o titular do direito fundamental de propriedade. Não é a obtenção de lucro, pelo Poder Expropriante, que justifica a desapropriação, mas sim, a presença da necessidade ou utilidade pública, ou do interesse social. Na desapropriação por necessidade pública, a Administração Pública enfrenta “situações de emergência”41, estando diante de “um problema inadiável e premente”42, decorrente de situações “anormais e que obrigam o Estado inevitavelmente a transferir bens de terceiros para o seu domínio e uso imediato”43, ou seja, mediante a desapropriação. 39. GARCIA, José Ailton. Desapropriação: comentários ao Decreto-Lei nº 3.365/41 e à Lei nº 4.132/62. São Paulo: Atlas, 2015. 40. ARAÚJO, Edmir Netto de. Curso de direito administrativo. 5. ed. rev. e atual. São Paulo: Saraiva, 2010, p. 1080. 41. TAVARES, André Ramos. Curso de direito constitucional. São Paulo: Saraiva, 2002, p. 470. 42. SILVA NETO, Manoel Jorge e. Curso de direito constitucional. 6.ed. Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2010, p. 866. 43. SANTOS, Adair Loredo Santos; INGLESI, Carlos Eduardo. Direito administrativo: interpretação doutrinária, legislação prática, jurisprudência comentada. São Paulo: Primeira Impressão, 2008, p. 114. DOUTRINA . DIREITO PÚBLICO A DESAPROPRIAÇÃO DA ÁGUA 325 Vislumbram-se de forma exaustiva44, as hipóteses práticas de necessidade pública nas quatro primeiras alíneas do art. 5º do Decreto-Lei nº 3.365/41: por exemplo, a expropriação de determinada área particular para realizações de obras de contenção de enchentes. Nesse caso, os bens que podem ser desapropriados são os imóveis e os móveis. Porém, como não há no Decreto-Lei nº 3.365/41 uma rubrica específica que contenha as hipóteses casuísticas da necessidade pública, estas estão incluídas no rol das hipóteses de utilidade pública (art. 5º). Na desapropriação por utilidade pública, propriamente dita, o Poder Público expropriante enfrenta “situações normais”45, previsíveis, e, para atendê-las, transfere para o seu domínio e uso bens de terceiros. Em regra, “não exige a transferência urgente de bens para o domínio estatal”46, todavia, “ao ver do Estado, tal ato expropriatório consulta ao interesse público”47. A utilidade pública está evidenciada quando a incorporação da propriedade privada ao domínio estatal atende ao interesse coletivo, que, encampado pelo poder político, “converte-se em interesse público a ser satisfeito pelo regime da despesa pública”48. Essa modalidade expropriativa tem cabimento quando a expropriação, “embora não seja imprescindível”49, é conveniente para o Poder Público. As hipóteses capazes de sustentar a desapropriação com base na utilidade pública estão elencadas numerus clausus, ou seja, de forma taxativa50 -51 e exaustiva, no art. 5º e 44. Em sentido diverso, José Carlos de Moraes Salles entende que ocorrendo uma causa de necessidade ou utilidade pública, ou de interesse social, caberá a expropriação, ainda que não prevista em lei, porque “a Constituição Federal em vigor não determinou que os casos de desapropriação fossem fixados em lei” (SALLES, José Carlos de Moraes. A Desapropriação à luz da doutrina e da jurisprudência. 6.ed. rev. atual. e ampl. São Paulo: Editora Revista dos Tribunais, 2009, p. 86). 45. SANTOS, Adair Loredo Santos; INGLESI, Carlos Eduardo. Direito administrativo: interpretação doutrinária, legislação prática, jurisprudência comentada. São Paulo: Primeira Impressão, 2008, p. 114. 46. BULOS, Uadi Lammêgo. Curso de direito constitucional. São Paulo: Saraiva, 2007, p. 471. 47. MANCUSO, Rodolfo de Camargo. Interesses difusos: conceito e legitimação para agir. 7. ed. rev. atual. e ampl. São Paulo: RT, 2011, p. 35. 48. HARADA, Kiyoshi. Desapropriação: doutrina e prática. 9.ed. São Paulo: Atlas, 2012, p. 18. 49. TAVARES, André Ramos. Curso de direito constitucional. São Paulo: Saraiva, 2002, p. 470. 50. ARAÚJO, Edmir Netto de. Curso de direito administrativo. 5. ed. rev. e atual. São Paulo: Saraiva, 2010, p. 1073. 51. De modo diverso, José Carlos de Moraes Salles afirma que a “referida enumeração é meramente exemplificativa” (SALLES, José Carlos de Moraes. A Desapropriação à luz da doutrina e da jurisprudência. 5.ed. rev., atu. e ampl. São Paulo: 326 REVISTA DO INSTITUTO DOS ADVOGADOS DE SÃO PAULO v. 35, JANEIRO - JUNHO 2015 seus incisos do Decreto-Lei nº 3.365/41. Entende-se que as possiblidades de desapropriação da água, com apoio nos fundamentos da necessidade ou da utilidade pública, estão contempladas nas diversas alíneas do art. 5º do Decreto-Lei nº 3.365/41, v.g., c) socorro público em caso de calamidade; d) salubridade pública; e) criação e melhoramento de centros de população, seu abastecimento regular de meios de subsistência; e f) aproveitamento das águas. As hipóteses de desapropriação por interesse social estão elencadas na Lei nº 4.132/62, a qual fornece um rol taxativo52 das circunstâncias consideradas de interesse social, e que, portanto, servem de sustentação para a declaração de interesse social. O referido diploma prevê expressamente a desapropriação destinada a proteção do solo e a preservação de cursos e mananciais de água e de reservas florestais (art. 2º, VII). Além disso, no artigo 4º da Lei nº 4132/1962, encontra-se a previsão de que se deve dar aos bens desapropriados a sua destinação social prevista. Enquanto o vocábulo destinação corresponde à escolha da finalidade dada a um determinado bem, ou seja, “a aplicação da coisa a um certo fim”53, o adjetivo social indica o que tem em vista a sociedade, em suas estruturas54. Então, pode-se dizer que a destinação social referida na Lei da Desapropriação por Interesse Social significa a exigência de que o bem expropriado seja aplicado em melhor aproveitamento da sociedade. Somente aquele que estiver em condições de dar ao bem expropriado a destinação social prevista, ou seja, a correta e melhor aplicação do bem em benefício da sociedade, receberá, o bem objeto da desapropriação. 2. Já se afirmou que o procedimento judicial expropriatório encontra previsão, substancialmente, no Decreto-Lei nº 3.365/41 – Lei de desapropriação por utilidade Revista dos Tribunais, 2006, p.96). De fato, outrora a enumeração era exemplificativa, conforme verifica-se no texto do já revogado Decreto-Lei nº 1.283/1939, que dizia: “enumeração na lei é apenas exemplificativa” (art. 2º). 52. Em sentido contrário, José Carlos de Moraes Salles entende que ocorrendo uma causa de necessidade ou utilidade pública, ou de interesse social, caberá a expropriação, ainda que não prevista em lei porque “a Constituição Federal em vigor não determinou que os casos de desapropriação fossem fixados em lei” (SALLES, José Carlos de Moraes. A Desapropriação à luz da doutrina e da jurisprudência. 6.ed. rev. atual. e ampl. São Paulo: Editora Revista dos Tribunais, 2009, p. 86). 53. DINIZ, Maria Helena. Dicionário jurídico. São Paulo: Saraiva, 1998, v. 2, p. 113. 54.ABBAGNANO, Nicola (1901-). Dicionário de filosofia. Tradução da 1ª edição brasileira: Alfredo Bosi. Revisão da tradução e tradução dos novos textos: Ivone Castilho Benedetti. 4.ed. São Paulo: Martins Fontes, 2000, p. 912. DOUTRINA . DIREITO PÚBLICO A DESAPROPRIAÇÃO DA ÁGUA 327 pública e, em menor extensão, na Lei nº 4.132/62 – Lei de desapropriação por interesse social. O Decreto-Lei nº 3.365/41, na sua técnica legislativa própria55, regulamenta o processo judicial da ação de desapropriação. O Decreto-Lei nº 3.365/41 estabelece que mediante “declaração de utilidade pública”, todos os bens poderão ser desapropriados (art. 2º). A declaração de utilidade pública é o ato administrativo emanado pela chefia do Poder Executivo que exterioriza a vontade da Administração Pública de deflagrar o procedimento expropriatório, ou seja, de “exercer o poder de desapropriar”56. Tratase de um ato administrativo exclusivo do Poder Executivo Federal, que, ao reconhecer a existência do interesse público, com apoio constitucional e legal, determina a obtenção de um bem específico através da desapropriação. A “conduta declaratória do interesse público, lídimo ato administrativo, encerra a primeira fase do procedimento expropriatório”57. Uma vez verificada a hipótese de utilidade pública, será editada a competente declaração de utilidade pública, a qual “individuará o bem a ser desapropriado pelo Poder Público”58. O decreto declaratório da necessidade ou da utilidade pública ou do interesse social, deve necessariamente especificar a finalidade da desapropriação, sob pena de nulidade59. Porém, como já tratado no capítulo anterior deste trabalho, somente a União e os Estados-membros detêm o domínio da água. Mas, nesse caso, o único ente federativo que possui poder para desapropriar é a União, frente aos Estados-membros. Trata-se de uma desapropriação política, prevista no § 2º do art. 2º do Decreto-Lei nº 3.365/41. A desapropriação política confere às pessoas políticas de Direito Público interno, de grau superior, a competência para desapropriar bens das pessoas políticas de grau 55. Atualmente, a Lei Complementar nº 95/98 dispõe sobre a elaboração, redação, alteração e consolidação das leis. Essa conquista técnica legislativa resulta do estabelecido pelo legislador constitucional no parágrafo único do art. 59 da Constituição Federal. 56. HARADA, Kiyoshi. Desapropriação: doutrina e prática. 9.ed. São Paulo: Atlas, 2012, p. 67. 57. NOBRE JÚNIOR, Edilson Pereira. Desapropriação para fins de reforma agrária. 3.ed. Curitiba: Juruá, 2006, p. 118. 58.SALLES, José Carlos de Moraes. A Desapropriação à luz da doutrina e da jurisprudência. 5.ed. rev., atu. e ampl. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2006, p. 101. 59. Nesse sentido: STJ-RDA 200/190; JTJ 206/44; JTA 61/219. 328 REVISTA DO INSTITUTO DOS ADVOGADOS DE SÃO PAULO v. 35, JANEIRO - JUNHO 2015 inferior;60 - 61 levando-se em conta que o poder expropriante “se circunscreve ao território da entidade que o detêm”62. Na parte formal ou adjetiva, da Lei sobre desapropriações por utilidade pública estão agrupadas as “regras que definem os procedimentos a serem cumpridos no andamento das questões forenses”63. Tais normas processuais se enquadram nas disposições de ordem pública64. As questões relacionadas à competência, ao juízo privativo e ao foro da situação dos bens, estão no art. 11. A norma aponta os juízes que podem conhecer os processos de desapropriação no art. 12. Os requisitos específicos da petição inicial encontram-se descritos no art. 13. No art. 14, encontra-se a questão relacionada à formação dos autos suplementares. A designação de perito e assistente técnico, no art. 15 e parágrafo único. As questões relacionadas à urgência, imissão provisória da posse e depósito inicial da quantia arbitrada judicialmente, estão no art. 15, parágrafos e alíneas. Em razão da Medida Provisória nº 2-183-56, de 2001, foi incluído o art. 15-A e seus quatro parágrafos, a fim de abarcar a modalidade de desapropriação por necessidade ou utilidade pública ou por interesse social, e a regulação da incidência de juros compensatórios de até seis por cento ao ano, a contar da imissão prévia da posse. Parte desse dispositivo foi objeto da ADIN nº 2.332-2, cuja liminar foi deferida parcialmente, sendo que a ação ainda aguarda julgamento definitivo de mérito. A mesma Medida Provisória nº 2-183-56, de 2001 adicionou, também, o art. 15-B, para disciplinar o pagamento dos juros moratórios. As questões relacionadas à citação encontram-se nos arts. 16 a 18. O art. 19 prevê a mudança de rito especial para o ordinário, após a citação. O art. 20 prevê a matéria sobre a qual pode versar a contestação. Em razão da importância do feito expropriatório, a instância não se interrompe (art. 21). Há previsão de acordo e sua homologação por sentença (art. 22). As questões relacionadas à apresentação do laudo pericial, sua elaboração e pagamento de custas no art. 23 e parágrafos. A audiência de instrução 60. SANTOS, Adair Loredo Santos; INGLESI, Carlos Eduardo. Direito administrativo: interpretação doutrinária, legislação prática, jurisprudência comentada. São Paulo: Primeira Impressão, 2008, p. 120. 61. SALLES, José Carlos de Moraes. A Desapropriação à luz da doutrina e da jurisprudência. 5.ed. rev., atu. e ampl. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2006, p. 131. 62. GASPARINI, Diógenes. Direito administrativo. 14.ed. rev. São Paulo: Saraiva, 2009, p. 855. 63. NADER, Paulo. Introdução ao estudo do direito. Rio de Janeiro: Forense, 2004, p. 142. 64. MAXIMILIANO, Carlos. Hermenêutica e aplicação do direito. Rio de Janeiro: Forense, 2010, p. 176. DOUTRINA . DIREITO PÚBLICO A DESAPROPRIAÇÃO DA ÁGUA 329 e julgamento segue o rito do Código de Processo Civil (art. 24). A sentença que fixar a indenização (art. 24) deverá destacar o principal e os acessórios (art. 25) e, não incluirá os direitos de terceiro contra o expropriado (art. 27). A Medida Provisória nº 2-183-56, de 2001 incluiu, ainda, o § 1º ao art. 27 para estabelecer a fixação de meio e cinco por cento a título de honorários advocatícios, não podendo ultrapassar a R$ 151.000,00 (cento e cinquenta e um mil reais). A mesma ADIN nº 2.332-2, proposta pelo Conselho Federal da OAB, questionou esse dispositivo, tendo o STF, em decisão plenária da liminar, por maioria de votos, deferido em parte a medida liminar para suspender a eficácia da expressão “não podendo os honorários ultrapassar R$ 151.000,00 (cento e cinquenta e um mil reais)”. A decisão final da ação direta de inconstitucionalidade ainda aguarda julgamento. O § 2º do art. 27 determina, em conflito com outra norma especial, que a transmissão da propriedade, decorrente de desapropriação amigável não ficará sujeita ao imposto de lucro imobiliário. O caput do art. 28 regulamenta os efeitos em que a apelação será recebida o parágrafo único do mesmo artigo impõe o duplo grau de jurisdição à sentença que condenar a Fazenda Pública em quantia superior ao dobro do oferecido inicialmente. Por fim, encontram-se as questões relacionadas à expressão valor de alçada (art. 29, § 2º); à consignação em pagamento, mandado de imissão de posse e transcrição no registro de imóveis (art. 29) e a regulação quanto ao pagamento de custas processuais (art. 30). Portanto, como vimos, a desapropriação da água sob os fundamentos da necessidade ou utilidade pública, ou do interesse social está amparada na Constituição Federal, no Decreto-Lei nº 3.365/41 – Lei de desapropriação por utilidade pública e na Lei nº 4.132/62 – Lei de desapropriação por interesse social. O pressuposto fundamental da expropriação é a existência de um interesse público concretamente verificado. A existência de qualquer um dos permissivos constitucionais e legais legitima que o interesse público prevaleça, despojando o titular do domínio da água. Assim, tendo-se em conta que o domínio das águas brasileiras é da União e dos Estados-membros, somente a União poderá ingressar com a desapropriação política, frente a qualquer Estado-membro que não esteja promovendo a destinação social prevista para a água. É de rigor que as águas brasileiras sejam aplicadas no melhor aproveitamento possível, em benefício da sociedade. Na sessão seguinte será abordado o tema relacionado à justa e prévia indenização na hipótese de desapropriação da água. 330 REVISTA DO INSTITUTO DOS ADVOGADOS DE SÃO PAULO v. 35, JANEIRO - JUNHO 2015 4. A JUSTA E PRÉVIA INDENIZAÇÃO65 NA DESAPROPRIAÇÃO DA ÁGUA A justa indenização é um ponto central na desapropriação da água. Sem justa indenização há, na verdade, confisco. Conforme lição de Sylvio Pereira, “a indenização ou é justa ou não é indenização66”. Se a indenização não for justa, haverá uma ofensa grave ao princípio da igualdade 67, visto que, nesse caso, o interesse da coletividade seria satisfeito com o sacrifício somente de uma pessoa. A indenização justa é aquela que impede o empobrecimento e o enriquecimento do expropriado. O conceito de justa indenização deve representar uma retribuição que permite a reparação integral, traduzida exatamente na possibilidade imediata em que se encontra o expropriado, quando receba a indenização, de adquirir um bem do mesmo valor daquele que foi transferido coativamente ao Estado 68 . Justa indenização 69 é a indenização que permite ao expropriado adquirir um bem da mesma qualidade e/ou quantidade que o perdido para o Estado pelo processo de desapropriação70 . A justa indenização, em regra, corresponde ao valor que o particular obteria se o bem fosse vendido no mercado71, no momento em que é decretada a 65. Sobre a justa indenização, vide: NAKAMURA, André Luiz dos Santos. A justa e prévia indenização na desapropriação. Rio de Janeiro: Lumen Juris. 2013. 66. PEREIRA, Sylvio. O poder de desapropriar. Rio de Janeiro: A. Coelho Branco Filho, 1948, p. 31 67. FERRAZ, Sérgio. Justa indenização na desapropriação. In: Revista dos Tribunais, volume 502, agosto de 1977, p. 247-255. 68. “A justa indenização é aquela que, naquele momento do mercado em que a indenização é colocada na mão do expropriado, permite que, se ele desejar, possa adquirir outro imóvel da mesma natureza, características e atributos daquele que lhe fora subtraído por imposição” (FERRAZ, Sérgio. Justa indenização na desapropriação. In: Revista dos Tribunais, volume 502, agosto de 1977, p. 247-255). 69. “Justa indenização deverá ser a indenização, isto é, consistirá em quantia equivalente ao preço que a coisa alcançaria caso tivesse sido objeto de contrato normal (e não compulsório) de compra e venda” (CRETELLA JUNIOR, José. Tratado geral da desapropriação. Rio de Janeiro: Forense, 1980, vol. 2, p.123). 70. “O papel da indenização é, a nosso ver, fazer entrar no patrimônio do expropriado um valor exatamente equivalente ao que apresentado, pelo bem de que foi despojado” (FERRAZ, Sérgio. A justa indenização na desapropriação. In: Revista dos Tribunais, 1978, p. 13). 71. JUSTEN FILHO, Marçal. Curso de direito administrativo. Belo Horizonte: Fórum, 6.ed., 2010, p. 639. DOUTRINA . DIREITO PÚBLICO A DESAPROPRIAÇÃO DA ÁGUA 331 utilidade pública ou o interesse social, não abrangendo, assim, a valorização decorrente da própria desapropriação72 . A indenização somente será justa se por ela se puder deixar o expropriado na situação econômica que desfrutava antes da expropriação73. O critério de justiça há de ser encarado considerando o bem e o que ele representa na economia do proprietário74 . A indenização na desapropriação é decorrente de um ato lícito, exercido no exercício regular de um direito que decorre da Constituição Federal; assim, não se confunde com a reparação pelo ato ilícito75. Indenização é a compensação de um prejuízo76 . Este é a diminuição do patrimônio ocasionada por ato de terceiro. A desapropriação é a causa de diminuição do patrimônio do expropriado. A indenização é a reposição do patrimônio do expropriado do prejuízo causado pelo expropriante77. Não somente o valor do bem entra na indenização. Esta compreende a recomposição de todos os prejuízos atuais e imediatos decorrentes da desapropriação e margem de lucros que a coisa expropriada efetivamente já assegurava projetar no futuro78 . Entretanto, não 72. “Outro aspecto dessa reflexão que também deve ser considerado é de que a indexação deve ser calculada com base no valor do imóvel no momento da declaração da intenção do poder público, excluindo assim quaisquer incrementos de valor posteriores à declaração da utilidade/necessidade pública ou de interesse social para fins de desapropriação” (FERNANDES, Edésio; ALFONSIN, Betânia. Revisitando o instituto da desapropriação: uma agenda de temas para reflexão. In: FERNANDES, Edésio; ALFONSIN, Betânia (Coord.). Revisitando o instituto da desapropriação. Belo Horizonte: Fórum, 2009, p. 21-37). 73. “Ou seja, a indenização havida como justa, pela sentença, segue-se que o quantum respectivo não pode sofrer diminuição, evitando-se que por esse motivo e na medida dessa diminuição, viesse a indenização deixar de ser justa” (ALVIM, Arruda. Desapropriação e valor no direito e na jurisprudência. In: Revista de Direito Administrativo nº 102, outubro/dezembro 1970, p. 42-70). 74. FAGUNDES, M. Seabra. Da desapropriação no direito brasileiro. Rio de Janeiro: Freitas Bastos, 1949, p. 343. 75. PONTES DE MIRANDA, Francisco Cavalcanti. Comentários à Constituição de 1967. Tomo V. São Paulo: RT, 1968, p. 437. 76. “O pagamento de importância inferior ao preço da cousa desapropriada jamais se poderia chamar de indenização, eis que ela deve compensar, por inteiro, o prejuízo sofrido pelo expropriado” (PEREIRA, Sylvio. O poder de desapropriar. Rio de Janeiro: A. Coelho Branco filho, 1948, p. 31). 77. CRETELLA JUNIOR, José. Tratado geral da desapropriação. Rio de Janeiro: Forense, 1980, vol. 2, p.118/119. 78. FERRAZ, Sérgio. A justa indenização na desapropriação. São Paulo: RT, 1978, p. 19. 332 REVISTA DO INSTITUTO DOS ADVOGADOS DE SÃO PAULO v. 35, JANEIRO - JUNHO 2015 se admite o pagamento de lucros presumidos79, hipotéticos e de afeição80 . A garantia da propriedade compreende somente a existência de valores patrimoniais concretamente existentes, não abrangendo oportunidade de aquisição, possibilidades de ganho e esperança de lucro81. Segundo Seabra Fagundes82, “os lucros cessantes devem ser sempre indenizados... mas para tal, é preciso que sejam efetivos e não prováveis, problemáticos, apenas possíveis”. Na desapropriação, não pode haver o enriquecimento sem causa. Este consiste na obtenção de uma vantagem de caráter patrimonial sem qualquer causa justa para tanto. O enriquecimento não se verifica apenas mediante um aumento no ativo patrimonial de uma pessoa, podendo ocorrer também por uma diminuição do passivo. Deve o enriquecimento dar-se à custa de outrem, porém, não se exige o empobrecimento da outra parte. Para se configurar o enriquecimento sem causa basta que a vantagem adquirida por uma pessoa não resulte de um correspondente sacrifício econômico83. A justa indenização visa a preservar o patrimônio do particular, garantindo a este a reposição integral84 do bem perdido, como também é uma garantia ao Estado expropriante85 de que este não poderá pagar mais do que efetivamente vale o imóvel86 . O enriquecimento 79. Segundo Fernando Logón, “quando uma coisa é suscetível de produzir algo, ou tem em si mesma um valor potencial, guarda uma energia positiva de valor. Ao contrário, quando se trata de uma mera possibilidade, não se pode falar em nenhuma computação, porque se trata de algo constitucionalmente negativo ao objeto. Em outros termos, deve reintegrar-se o valor dinâmico da coisa, não o estático; a qualidade natural e não a artificiosamente provocada”. In: FAGUNDES, M. Seabra. Da desapropriação no direito brasileiro. Rio de Janeiro: Freitas Bastos, 1949, p. 345. 80. “De todo o afirmado referentemente à compreensão dos lucros cessantes na fixação do montante da indenização decorre em contrapartida, a assertiva da inindenizabilidade de prejuízos meramente hipotéticos, simplesmente passiveis ou não passiveis de aferição patrimonial. Não há, pois, como se considerar o reflexo patrimonial estimado pelo proprietário em razão de uma especial afeição, que não está contemplado no direito positivo brasileiro (FERRAZ, Sérgio. A justa indenização na desapropriação. São Paulo: RT, 1978, p. 23). 81. MAURER, Hartmut. Direito administrativo geral. São Paulo: Manole, 2006, tradução de Luiz Afonso Heck, p. 805. 82. FAGUNDES, M. Seabra. Da desapropriação no direito brasileiro. Rio de Janeiro: Freitas Bastos, 1949, p. 344. 83. TEPEDINO, Gustavo; BARBOZA, Heloisa Helena; MORAES, Maria Celina Bodin. Código Civil interpretado conforme a Constituição da República. Vol. II. Rio de Janeiro: Renovar, 2006, p. 753. 84. “Indenização justa é a que tem por finalidade apagar qualquer dano ou gravame. O proprietário deve ficar indene” (FIGUEIREDO, Lúcia Valle. Curso de Direito Administrativo. São Paulo: Malheiros: 8.ed., 2006, p. 336). 85. “Justo preço é o preço adequado na técnica e terminologia do direito vigente e não do excesso individualista da corrente proprietarista; a preponderância do interesse público é norma a obedecer com rigor” (RDA, vol. I, fasc. I, pág. 277). 86. “O que se busca é o justo valor do bem, e não qualquer valor oferecido ou contraposto, tabelado ou meramente indexado. Nem seria, de outra parte, coerente com o princípio da legalidade da Administração Pública admitir DOUTRINA . DIREITO PÚBLICO A DESAPROPRIAÇÃO DA ÁGUA 333 sem causa do expropriante ou do expropriado afronta o princípio da moralidade administrativa. A vedação ao enriquecimento sem causa é aplicável ao regime jurídico administrativo e, pois, ao instituto da desapropriação87. Não pode ser a desapropriação nem causa nem de empobrecimento e nem de enriquecimento do expropriado88 . Digna de menção é a posição de Sérgio Ferraz89 no sentido de que “a desapropriação não pode servir de fundamento para o enriquecimento de alguns em detrimento de outros”. A justa indenização não se coaduna com o enriquecimento sem causa do expropriado90 . A indenização paga na desapropriação não pode representar um ganho patrimonial indevido, quer para a Administração, quer para o particular. Conforme lição de Pontes de Miranda91, “a indenização destina-se a evitar a diferença de nível entre o patrimônio do desapropriado antes da desapropriação e após a desapropriação”. Caso a expropriante acabe pagando por um bem expropriado mais do que o valor estritamente necessário para repor o patrimônio do particular, há enriquecimento sem causa deste. Da mesma forma, se o expropriado receber um valor que não lhe permita sair do processo expropriatório com o patrimônio incólume, há enriquecimento sem causa do Estado92. como aceitável um preço superior ao justo, exigível pela coisa expropriada” (FERRAZ, Sérgio. A justa indenização na desapropriação. São Paulo: RT, 1978, p. 151). 87. UELZE, Hugo Barrozo. Desapropriação. In: Revista dos Tribunais, volume 851, setembro de 2006, p. 697-735. 88. “A indenização deve ser justa e compreensiva do direito de todos os prejudicados, não sendo lícito ampliá-la de modo a sobrecarregar o desapropriante. A desapropriação não é meio de enriquecimento ilícito, como também não deve ser causa de forçado empobrecimento” (WHITAKER, F. Desapropriação. São Paulo: Atlas, 3.ed., 1946, p. 30). 89. FERRAZ, Sérgio. A justa indenização na desapropriação. São Paulo: RT, 1978, p. 27. 90. “Aparentemente, a garantia da justa e prévia indenização poderia parecer destinada com exclusividade ao resguardo do direito de propriedade e, portanto, configurar-se apenas como uma proteção endereçada aos particulares em face do Estado, sem ter também este como destinatário. Essa insinuação vem não só da topologia da garantia, situada no capítulo dos direitos e garantias individuais e coletivos, mas também de sua própria redação. Os precedentes jurisprudenciais que se formaram a esse respeito, todavia, apoiam-se, ainda que não tão explicitamente, em uma visão bipolar da garantia expressa pelo inc. XXIV do art. 5º constitucional. Nessa perspectiva, o preço justo figura como uma garantia com que ao mesmo tempo a Constituição Federal quer proteger a efetividade do direito de propriedade e também resguardar o Estado contra excessos indenizatórios. Nem haveria como entender de modo diferente o emprego do adjetivo justo, dado que a própria justiça é em si mesma um conceito bilateral, não se concebendo que algo seja “justo” para um sujeito sem sê-lo para outro. Não se faz “justiça” à custa de uma injustiça” (DINAMARCO. Cândido Rangel. Nova Era do Processo Civil. 3.ed. São Paulo: Malheiros, 2009, p. 249). 91. PONTES DE MIRANDA, Francisco Cavalcanti. Comentários à Constituição de 1967. Tomo V. São Paulo: RT, 1968, p. 478. 92. Não se deverá atribuir ao desapropriado nem mais nem menos do que se lhe subtraiu, porque a expropriação não deve ser instrumento de enriquecimento nem de empobrecimento do expropriante ou do expropriado. A 334 REVISTA DO INSTITUTO DOS ADVOGADOS DE SÃO PAULO v. 35, JANEIRO - JUNHO 2015 A justa indenização não é compatível com indenizações para prejuízos não existentes. Não é admissível indenizar o que nunca existiu por mera presunção de que seria possível existir. Não é lógico e nem razoável pagar um preço por um imóvel considerando o seu potencial de aproveitamento, que depende de circunstâncias adversas e imprevisíveis. É totalmente injusto pagar pela desapropriação de um terreno vazio o preço equivalente a um loteamento imobiliário porque seria possível, em tese, realizar um loteamento no mesmo, que dependeria, dentre outros critérios aleatórios e que nunca poderiam acontecer, do interesse do mercado em fazer um empreendimento no local93. Da mesma forma, não pode ser incluída no valor da indenização a valorização decorrente da atividade do Poder Público após a imissão na posse, por ser decorrente exclusivamente de benfeitorias que não foram causadas pelo expropriado, que, assim, não pode se aproveitar delas94 . Assim, não pode a desapropriação ocasionar um enriquecimento sem causa nem do expropriante e nem do expropriado, sob pena de violação do preceito constitucional que assegura a justa indenização. Por outro lado, a indenização deverá ser prévia. Porém, cabe indagar: prévia a que? Pontes de Miranda responde: indenização deve, portanto, ser exata, no sentido de que ao expropriado há de se dar precisamente o equivalente ao que lhe foi tomado pelo expropriante (STJ - REsp 510.438/PR, Rel. Ministro FRANCIULLI NETTO, SEGUNDA TURMA, julgado em 22/02/2005, DJ 09/05/2005, p. 331). 93. “A fixação do preço justo não pode embasar-se em mera hipótese de aproveitamento do imóvel, jamais cogitada pelos expropriados antes do procedimento expropriatório. Vale dizer, não se pode levar em conta a possibilidade de implantação de loteamento em um imóvel que, antes da intervenção do Poder Público, sempre foi utilizado para a atividade agropecuária. O interesse auferido pelo proprietário do imóvel expropriado, mencionado no art. 27 do Dec. Lei 3.365/41, refere-se às eventuais atividades praticadas no momento da declaração de utilidade pública” (STJ - 1ª T., REsp 986.471, Min. Denise Arruda, j. 13.5.08, DJU 30.6.08. In: NEGRÃO, Theotonio. Código de Processo Civil e legislação processual em vigor. 41.ed. São Paulo: Saraiva, 2009, p. 1425/1426). 94. Em casos tais, a regra do art. 26 do Decreto-Lei nº 3.365/41 não pode ser aplicada cega e impositivamente, sob pena de se comprometer o preceito constitucional da justa indenização. No interregno, geralmente longo, entre a data da ocupação do bem pelo Estado e a sua avaliação no âmbito da ação de desapropriação indireta, é possível que ocorram mudanças substantivas no bem, que podem levar ou à sua valorização ou, ao contrário, à sua depreciação. Não será justo, em nome do art. 26, reconhecer ao proprietário o direito de ser indenizado pela valorização decorrente de ato estatal superveniente à perda da posse. É indispensável, sempre, levar em consideração o preceito constitucional que impõe o justo preço. 3. Recurso especial não provido (STJ - REsp 912.778/RS, Rel. Ministra DENISE ARRUDA, Rel. p/ Acórdão Ministro JOSÉ DELGADO, PRIMEIRA TURMA, julgado em 03/05/2007, DJ 31/05/2007, p. 403). DOUTRINA . DIREITO PÚBLICO A DESAPROPRIAÇÃO DA ÁGUA 335 “Não à sentença que fixe a quantia da indenização: não se sabe de quanto é. Se há recurso, não cabe exigir-se ou pagar-se, ou o depositar-se. Portanto, a previedade é em relação à transcrição do título, que é a sentença (somente a transcrição opera a perda da propriedade, tratando-se de bens registrados) e em relação ao mandado de imissão, que o juiz não deve expedir antes de efetuado o pagamento ou depositada a quantia. No direito brasileiro, a indenização tem que ser prévia. De maneira que não se pode dizer que seja efeito da desapropriação; é meio para se obter a desapropriação. Ainda para a posse provisória, é preciso que se deposite o valor dela. A indenização há de ser justa.” 95 O patrimônio do indivíduo forçado a sofrer uma desapropriação é segurado com o antecipado pagamento. Evitam-se, destarte, os transtornos que à economia individual poderiam acarretar as delongas da Administração no pagamento do preço96. A prévia indenização97 resulta da necessidade de repor o patrimônio do expropriado antes da perda definitiva da propriedade, como forma de evitar que o cidadão fique por algum lapso temporal privado da propriedade e da indenização98 . A precedência temporal coloca a indenização como um pressuposto da desapropriação99. 95. PONTES DE MIRANDA, Francisco Cavalcanti. Comentários à Constituição de 1967, com a emenda n. 1 de 1969. 2.ed. São Paulo: RT, 1971, p. 486. 96. FAGUNDES, Miguel Seabra. O controle dos atos administrativos pelo Poder Judiciário. 8.ed. Rio de Janeiro: Forense, 2010, p. 408/409. 97. “Para cercar da maior eficácia a proteção do patrimônio particular, em face desse excepcional direito do Estado, a Constituição condicionou o expropriamento à prévia indenização. O patrimônio do indivíduo, forçado a sofrer uma desincorporação de valor em atenção ao interesse público antes que ela se efetive, é segurado do ônus que lhe vai pesar com o pagamento, em dinheiro, de valor correspondente” (FAGUNDES, M. Seabra. Da desapropriação no direito brasileiro. Rio de Janeiro: Freitas Bastos, 1949, p. 24). 98. “Indenização prévia significa que deve ser ultimada antes da consumação da transferência do bem. Todavia o advérbio “antes” tem o sentido de uma verdadeira fração de segundo. Na prática, o pagamento da indenização e a transferência do bem se dão, como vimos, no mesmo momento. Só por mera questão de causa e efeito se pode dizer que aquele se operou antes desta. De qualquer forma, deve entender-se o requisito como significando que não se poderá considerar transferida a propriedade antes de ser paga a indenização” (CARVALHO SANTOS, José dos Santos. Manual de direito administrativo. 22.ed. Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2009, p. 808). 99. “Uma das condições da desapropriação é causar o mínimo de prejuízo ao desapropriado; é evitar que, mesmo transitoriamente, seja o proprietário privado do que lhe pertence” (PEREIRA, Sylvio. O poder de desapropriar. Rio de Janeiro: A. Coelho Branco Filho, 1948, p. 110). 336 REVISTA DO INSTITUTO DOS ADVOGADOS DE SÃO PAULO v. 35, JANEIRO - JUNHO 2015 Conforme lição de Cretella Junior100, “trata-se de um prius ou pressuposto necessário”. E continua o autor, concluindo que “não se desapropria para depois indenizar. Indenizase para desapropriar”. Segundo lição de Pontes de Miranda101, “indeniza-se antes de se desapropriar, para que, ao acontecer a perda, já esteja no patrimônio do desapropriando, fundado em causa futura, o quanto indenizatório”. A prévia indenização é estabelecida com base na perda que irá ocorrer. Não se presta a indenização porque se tirou de alguém o bem e sim porque se lhe vai tirar. Para que incida a norma constitucional que permite a desapropriação, deve haver uma indenização já paga e incorporada ao patrimônio do expropriado no momento em que ocorre a transferência coativa da propriedade102. Dessa forma, a previedade é em relação à transcrição do título e em relação ao mandado de imissão, provisória ou definitiva, que o juiz não deve expedir antes de efetivado o pagamento ou depositada a quantia. Traçadas as linhas gerais e específicas no que tange à justa e prévia indenização no processo expropriatório, resta ponderar acerca da “justa indenização” na desapropriação das águas. Toma-se como fundamento que o regime jurídico aplicável às águas no Brasil é de direito público. Sendo assim, as águas são de domínio público e integram o patrimônio público da União, dos Estados-membros e do Distrito Federal. A atual Carta Política da nação brasileira não mais contempla as denominadas águas particulares. Reza a Constituição do Estado de São Paulo, em seu artigo 8º: “...incluem-se entre os bens do Estado os terrenos reservados às margens dos rios e lagos de seu domínio”. Também a Lei nº 9.433/1997, regulamentando o inciso XIX do artigo 21 da Constituição Federal, passou a considerar a água um bem de domínio público, recurso natural e limitado, dotado de valor econômico. Dessa forma, toda água é de domínio público. A 100. CRETELLA JUNIOR, José. Tratado geral da desapropriação. Rio de Janeiro: Forense, 1980, vol. 2, p.121. 101. PONTES DE MIRANDA, Francisco Cavalcanti. Comentários à Constituição de 1967. Tomo V. São Paulo: RT, 1968, p. 436. 102. PONTES DE MIRANDA, Francisco Cavalcanti. Comentários à Constituição de 1967. Tomo V. São Paulo: RT, 1968, p. 440. DOUTRINA . DIREITO PÚBLICO A DESAPROPRIAÇÃO DA ÁGUA 337 Constituição Federal, em seu artigo 20, II, estatui que são bens da União os lagos, rios e quaisquer correntes de água em terrenos de seu domínio, ou que banhem mais de um Estado, sirvam de limites com outros países, ou se estendam a território estrangeiro ou dele provenham, bem como os terrenos marginais e as praias fluviais. Por sua vez o artigo 26, I, da Carta Magna estatui que se incluem entre os bens dos Estados as águas superficiais ou subterrâneas, fluentes, emergente e em depósito. Das disposições legais acima, percebe-se que as margens dos rios pertencem ao seu respectivo titular, sendo, assim, terras públicas, insuscetíveis de usucapião. Sobre o assunto, assim manifestou-se a doutrina103: “Os rios públicos, na partilha constitucional, desde 1946, ficaram repartidos entre a União e os Estados-membros, sem se atribuir qualquer domínio fluvial ou lacustre aos Municípios, o que já importava derrogação do artigo 29 do Código de Águas, que os distribuía entre as três entidades estatais. Outra observação que se impõe é a de que na distribuição das águas internas foi abandonado o critério tradicional da navegabilidade ou flutuabilidade, só se levando em conta a condição territorial das correntes ou lagos. No atual sistema constitucional os rios e lagos públicos ou pertencem à União ou ao Estado-membro, conforme o território que cubram”. No mesmo sentido, o entendimento editado na Súmula 479 do Supremo Tribunal Federal: “as margens dos rios navegáveis são de domínio público, insuscetíveis de expropriação e, por isso mesmo, excluídas de indenização”. Assim, não devem ser indenizadas as margens dos rios, ou seja, a área de terreno reservado prevista nos artigos 11 a 14 do Código de Águas104. Portanto, sob a responsabilidade da União, dos Estados-membros e do Distrito Federal, as águas devem cumprir sua função social, sob pena de desapropriação sob o fundamento da necessidade ou utilidade pública ou do interesse social (CF, art. 5º, XXIV). 103. MEIRELLES, Hely Lopes; ALEIXO, Délcio Balestero; BURLE FILHO, José Emmanuel. Direito administrativo brasileiro. 38.ed. atual. São Paulo: Malheiros, 2012, p. 620. 104. STF – Súmula nº 479. EMENTA Desapropriação. Terreno reservado. 1. A área de terreno reservado, como assentado pela Suprema Corte na Súmula nº 479, é insuscetível de indenização. 2. Recurso extraordinário conhecido e provido (RE 331086, Relator: Min. MENEZES DIREITO, Primeira Turma, julgado em 02/09/2008, DJe206 DIVULG 30-10-2008 PUBLIC 31-10-2008 EMENT VOL-02339-05 PP-01033 RTJ VOL-00207-03 PP-01199 LEXSTF v. 31, n. 361, 2009, p. 176-181). 338 REVISTA DO INSTITUTO DOS ADVOGADOS DE SÃO PAULO v. 35, JANEIRO - JUNHO 2015 Em sendo expropriadas, não há que se falar em indenização, justamente por serem de domínio público e integrarem o patrimônio público. Apenas os terrenos necessários ao acesso e armazenamento da água é que devem ser indenizados. 5. CONCLUSÃO Já é tempo de finalizar. Não se alimenta a veleidade de haver produzido uma abordagem completa sobre o assunto. Ainda há muito que se tratar. Todavia, tem-se a convicção de que o texto foi elaborado de forma científica, com o objetivo de elucidar as questões mais intrincadas relacionadas ao regime jurídico, ao processo expropriatório e à indenização decorrente da desapropriação água. Apresenta-se, aqui, o desfecho deste artigo na forma consolidada, conforme síntese a seguir. Com base na Constituição Federal e na legislação especial pertinente, pode se afirmar que o regime jurídico aplicável às águas no Brasil é de direito público. As águas são de domínio público e integram o patrimônio público da União, dos Estados-membros e do Distrito Federal. Como toda propriedade, sob a ótica do direito constitucional contemporâneo, os titulares do domínio das águas devem promover o cumprimento da função social desse bem essencial à existência humana individual e coletiva. Caso contrário, as águas são passíveis de desapropriação. A desapropriação da água sob os fundamentos da necessidade ou utilidade pública, ou do interesse social está amparada na Constituição Federal, no Decreto-Lei nº 3.365/41 – Lei de desapropriação por utilidade pública e na Lei nº 4.132/62 – Lei de desapropriação por interesse social. A existência de um interesse público concretamente verificado, aliado a qualquer um dos permissivos constitucionais e legais legitima que o interesse público prevaleça, despojando o titular do domínio da água. Tendo-se em conta que o domínio das águas brasileiras é da União e dos Estadosmembros, somente a União poderá ingressar com a denominada desapropriação política, frente a qualquer Estado-membro que não esteja promovendo a destinação social prevista para a água. Hirta a rigorosa previsão constitucional e legal, de que as águas brasileiras sejam aplicadas no melhor aproveitamento de toda a sociedade. DOUTRINA . DIREITO PÚBLICO A DESAPROPRIAÇÃO DA ÁGUA 339 Ponto relevante na desapropriação da água é a justa e prévia indenização. Entendese que, sendo as águas do domínio da União, dos Estados-membros e do Distrito Federal, elas devem cumprir sua função social, sob pena de desapropriação. O fundamento para a declaração de desapropriação será a necessidade ou utilidade pública ou o interesse social (CF, art. 5º, XXIV). Havendo desapropriação, não há que se falar em indenização, em razão de as águas serem de domínio público e integrarem o patrimônio público dos entes federados. Apenas os terrenos necessários ao acesso e armazenamento da água é que devem ser indenizados. 6. REFERÊNCIAS ABBAGNANO, Nicola (1901-). Dicionário de filosofia. Tradução da 1ª edição brasileira: Alfredo Bosi. Revisão da tradução e tradução dos novos textos: Ivone Castilho Benedetti. 4.ed. São Paulo: Martins Fontes, 2000. ALVIM, Arruda. Desapropriação e valowr no direito e na jurisprudência. In: Revista de Direito Administrativo nº 102, outubro/dezembro 1970, p. 42-70. ARAÚJO, Edmir Netto de. Curso de direito administrativo. 5. ed. rev. e atual. São Paulo: Saraiva, 2010. BANDEIRA DE MELLO, Celso Antônio. Curso de direito administrativo. 29.ed. rev. e atual. São Paulo: Malheiros, 2012. 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DIREITO PÚBLICO LEI FEDERAL DAS NORMAS GERAIS PARA LICENCIAMENTO E COMPARTILHAMENTO DE INFRAESTRUTURA DE REDE DE TELECOMUNICAÇÕES ERICSON SCORSIM Advogado, em Curitiba, sócio fundador do escritório Meister Scorsim Advocacia, especializado no Direito das Comunicações, Doutor em Direito pela USP. Mestre em Direito pela UFPR. RESUMO ABSTRACT O presente artigo analisa Lei Federal que estabelece Normas Gerais para Licenciamento, Instalação e Compartilhamento de Redes de Telecomunicações. Trata-se da Lei nº 13.116/2015, conhecida como Lei das Antenas, que tem impacto sobre as empresas de telecomunicações, os consumidores dos respectivos serviços, os municípios e os estados-membros da federação. As infraestruturas de telecomunicações são essenciais à prestação dos serviços de telefonia celular (serviço móvel pessoal) e o serviço de conexão à internet (serviços de comunicação multimídia). Compete à Anatel regulamentar vários dispositivos legais relacionados à implantação, instalação e compartilhamento das redes de telecomunicações. This article analyzes federal law that contains General Rules for Licensing, Installation and Telecommunications Network Sharing. This is the Law no. 13116/2015, known as the Antennas Act, whose impacts are on telecommunications companies, consumers of their services, Municipalities and States. The telecommunications infrastructure is essential to provide cellular services (personal mobile service) and the Internet connection service (multimedia communication services). ANATEL (National Agency of Telecommunications) has the power to regulate several legal provisions related to implementation, installation and sharing of telecommunications networks. PAVRAS-CHAVE KEYWORDS Lei. Normas gerais. Infraestrutura de telecomunicações. Licenciamento e compartilhamento. Law. General Rules. Telecommunications. Infrastructure. Licensing and sharing 348 REVISTA DO INSTITUTO DOS ADVOGADOS DE SÃO PAULO v. 35, JANEIRO - JUNHO 2015 1. APRESENTAÇÃO Os serviços de comunicações nas modalidades ”telefonia móvel”1 e acesso à internet2 móvel são prestados por empresas privadas para milhões de consumidores. O acesso dos consumidores aos serviços de telecomunicações depende das infraestruturas organizadas em redes de telecomunicações. Os consumidores, na posse de tecnologias representadas pelos terminais de acesso (aparelhos celulares, notebooks, tablets, etc), podem utilizar os serviços de telefonia móvel e internet, mediante a rede de antenas distribuídas em diversos bairros da cidade.3 O consumo destes serviços possibilita a comunicação de voz, textos, imagens, dados pessoais, fotos, vídeos, que trafegam pelas redes de antenas situadas em terrenos e edifícios comerciais e residenciais.4 Ou seja, mais e melhores redes de telecomunicações tem o potencial de ampliar o acesso e qualidade dos serviços de comunicação móvel: telefonia e internet. Estes serviços de comunicações criam imenso valor, pois tem a capacidade de unir pessoas, na sua vida privada, nos negócios e diante dos governos. A criação de valor ocorre em diversos âmbitos: informação, comunicação, comércio tradicional e eletrônico, cultura, saúde, entretenimento (vídeos/redes sociais), acesso aos serviços de televisão e rádio, entre outras atividades econômicas relevantes para o Brasil e para os brasileiros.5 Principalmente, destaque-se que a maior vantagem dos serviços de comunicação móvel consiste na mobilidade, isto é, a sua utilização em estações de radiocomunicação móveis. Ou seja, a capacidade de utilização dos serviços de telefonia e internet móvel, dentro de carros, ônibus, táxis, etc. 1. Do ponto de vista da classificação jurídica, o serviço de telefonia celular é uma espécie de serviço móvel pessoal, algo detalhado adiante. 2. Do ponto de vista da classificação jurídica, o serviço de acesso à internet é uma espécie de serviço de comunicação multimídia (serviço de valor adicionado à rede de telecomunicações), o que será detalhado à frente. 3. Os consumidores dos serviços de telecomunicações, nas modalidades de telefonia celular e acesso à internet móvel, são pessoas físicas e pessoas jurídicas. Aliás, o Regulamento da Anatel dos Direitos dos Consumidores nos Serviços de Telecomunicações, aprovado pela Resolução n. 632/2014, reconhece diversos direitos para pessoas físicas e jurídicas. 4. As estações de radiocomunicação integram a infraestrutura terrestre, sendo que o sinal de radicomunicação é propagado pela a utilização de frequências do espaço aéreo eletromagnético. 5. Segundo dados atualizados até dezembro de 2014, na telefonia móvel foi registrado 281,7 milhões de acessos por terminais dos usuários. Na internet banda larga móvel: 162,9 milhões de acessos por terminais dos usuários. Dados conforme relatório da Telecom: www.telecom.com.br/3G_brasil.asp e da Anatel. DOUTRINA . DIREITO PÚBLICO LEI FEDERAL DAS NORMAS GERAIS PARA LICENCIAMENTO E COMPARTILHAMENTO DE INFRAESTRUTURA DE REDE DE TELECOMUNICAÇÕES 349 Neste contexto, as infraestruturas de redes de telecomunicações são essenciais à prestação de serviços de “telefonia celular” e conexão à internet móvel. A ausência de infraestrutura adequada à prestação dos serviços de telecomunicações ou a existência de danos em sua configuração são causas que tem repercussão direta na esfera da vida dos consumidores.6 Daí a razão para o estudo sistemático da nova lei sobre as infraestruturas de redes de telecomunicações, a seguir visto. O tema envolve o Direito, as Infraestruturas e as novas Tecnologias de Comunicação. A Lei federal n. 13.116, de 20 de abril de 2015, aprova normas gerais para o licenciamento, a instalação e o compartilhamento da infraestrutura de telecomunicações.7 Estas infraestruturas de telecomunicações destinam-se à execução dos serviços de telefonia móvel8 e acesso à internet.9 As infraestruturas de telecomunicações são as estações 6. A título ilustrativo, o rompimento da rede de cabos de fibra ótica causa grave lesão aos consumidores dos serviços de telefonia celular e internet móvel. Este dano na infraestrutura de rede tem intensa repercussao no funcionamento de serviços bancários, comércio, serviços, etc. 7. A Lei n. 13.116/2015 é conhecida popularmente como Lei Geral das Antenas. Na justificativa do projeto de lei das normas gerais da infraestrutura telecomunicações alega-se a existência de leis estaduais e municipais que colocam restrições à instalação de torres e antenas. Na justificativa do projeto de lei, cita-se, como exemplos, leis estaduais municipais que estabelecem exigências de distanciamento mínimo entre antenas e outras edificações, para fins de proteção às pessoas diante de campos eletromagnéticos, sendo que a Lei federal n. 11.934/2009 estabelece critérios de controle da exposição das pessoas a irradiações nos serviços de telecomunicações e energia. Também, na justificativa do projeto de lei, é citada a exigência por municípios da apresentação do Estudo de Impacto Ambiental (EIA), como condição para a outorga das licenças para instalação de novas antenas do serviço móvel pessoal, muito embora a Lei federal n. 6.938/81 que trata das normas para o licenciamento de atividades efetiva ou potencialmente poluidoras não estabeleça esta exigência para os serviços de radiocomunicação. Em síntese, segundo a justificação do projeto do Senador Vital do Rêgo: “a presente iniciativa servirá de regra orientadora a ser seguida pelos Municípios na formulação de suas legislações relativas à ocupação do solo urbano, bem como pelos órgãos públicos, nas diferentes esferas, para a autorização e licenciamento das redes de telecomunicações”. 8. Do ponto de vista da classificação jurídica, o serviço móvel pessoal (SMP) designa o serviço de telecomunicações de interesse coletivo que possibilita a prestação do serviço de telefonia celular e o serviço de acesso à internet por banda larga móvel. Trata-se de um serviço de telecomunicações entre estações de radiocomunicação e os terminais móveis dos usuários dos respectivos serviços. O regime jurídico da telefonia celular é privado, sob a outorga de autorização da Anatel. Sua prestação depende da utilização de frequência do espectro eletromagnético. O serviço móvel pessoal não é, portanto, uma atividade submetida ao clássico regime de serviço público. Trata-se de uma atividade econômica regulada sob o interesse público. 9. O serviço de conexão à internet e classificado como espécie de serviço de comunicação multimídia (SCM), um serviço de valor adicionado ao serviço de telecomunicações. O fundamento para sua regulação encontra-se no art. 60, §1, da Lei Geral de Telecomunicações. O Serviço de Comunicação Multimídia é objeto da Resolução n. 614/2013, da Anatel. Sua prestação ocorre no regime privado, sob a autorização da Anatel. Conforme o Marco 350 REVISTA DO INSTITUTO DOS ADVOGADOS DE SÃO PAULO v. 35, JANEIRO - JUNHO 2015 de radiocomunicação10, antenas, postes11, torres, armários, estruturas de superfície e estruturas suspensas.12 A referida Lei federal exemplifica as hipóteses de sua não incidência a determinados serviços de telecomunicações.13 A Lei das Normas Gerais da Infraestrutura de Telecomunicações cria modificações na Lei Geral de Telecomunicações, Estatuto da Cidade e da Lei da Proteção à Pessoa diante de campos de energia elétrica e eletromagnética.14 Destaque-se que alguns dos dispositivos da Lei 13.116/2015 foram vetados, sob diversos motivos.15 Civil da Internet (Lei n. 12.965/2014, conforme art. 5, inc. III), o serviço de conexão à internet consiste na habilitacão de um terminal para envio e recebimento de pacotes de dados pela internet, mediante a atribuição ou autentição de um endereço IP. 10. Segundo a Lei n. 13.116/15, estação transmissora de radiocomunicação é o conjunto de equipamentos ou aparelhos, dispositivos e demais meios necessários à realização de comunicação, incluindo seus acessórios e periféricos, que emitem radiofrequências, possibilitando a prestação de serviços de telecomunicações, conforme art. 3, inc. V. Ainda nos termos da referida Lei, a radiocomunicação é telecomunicação que utiliza frequências radioelétricas não confinadas a fios, cabos e outros meios físicos, conforme art. 3, inc. IX. 11. A infraestrutura de postes é de propriedade, via de regra, das empresas de distribuição de energia elétrica. Estas empresas, mediante acordos comerciais, alugam os postes paras as empresas de telecomunicações, colocarem seus cabos e fibras óticas. Há regulamentação do compartilhamento destas infraestruturas e preços praticados no mercado pelas respectivas agências reguladoras do setor. A título ilustrativo, noticiou-se a realização de uma parceira público-privada (PPP) entre a Copel Telecom e TIM, para aproveitamento da infraestrutura de postes para a oferta de serviços de internet sem fio sem alta velocidade, nas tecnologias 3G e 4G. 12. Ressalte-se que há diversos casos de cessão onerosa de infraestrutura de telecomunicações (antenas e torres) pelas prestadoras dos serviços de telecomunicações às empresas especializadas na gestão dessas infraestruturas. 13. A Lei n. 13.116/2015 prevê as hipóteses de sua não incidência: ii) às infraestruturas de telecomunicações utilizadas para serviços de interesse restrito em plataformas off-shore de exploração de petróleo; ii) radares militares e civis utilizados na defesa ou controle de tráfego aéreo; iii) infraestruturas de radionavegação aeronáutica e as telecomunicações aeronáuticas, em seu art. 1, §2, incisos I, II e III. 14. A Lei n. 11.934/2009 trata dos limites à exposição humana a campos elétricos, magnéticos e eletromagnéticos, associados ao funcionamento de estações transmissoras de radiocomunicação, de terminais de usuário e sistemas de energia elétrica nas faixas de frequências de até 300 GHz (trezentos gigahertz), para fins de proteção da saúde e do meio ambiente. A Lei n. 11.934/2009 cria obrigações para as prestadoras de serviço de telecomunicaçõpes que utilizem estações transmissoras de radiocomunicação, aos fornecedores de terminais de usuários permissionárias e autorizadas de serviços de energia elétrica. Em seu art. 3, da mesma lei, há a consideração da área crítica como sendo aquela localizada até 50 (cinquenta) metros de hospitais, clínicas, escolas, creches e asilos. 15. Entre os vetos ao projeto de lei das infraestruturas de telecomunicações: i) a regra que obriga o poder público promover investimentos necessários na ampliação e capacidade das redes de telecomunicações (inc. III do art. 4). A razão do veto foi preservação da lógica regulatória de investimentos privados no setor de telecomunicações. Outro veto foi à regra (inciso II do art. 13) que estipula a transferência da competência para DOUTRINA . DIREITO PÚBLICO LEI FEDERAL DAS NORMAS GERAIS PARA LICENCIAMENTO E COMPARTILHAMENTO DE INFRAESTRUTURA DE REDE DE TELECOMUNICAÇÕES 351 O presente artigo tem como foco a apresentação da repercussão da lei federal sobre os municípios, estados, as empresas de telecomunicações e os consumidores dos serviços de telecomunicações.16 2. OBJETIVOS DA LEI DAS NORMAS GERAIS SOBRE A INFRAESTRUTURA DE TELECOMUNICAÇÕES O objetivo da Lei n. 13.116/15 é a promoção e o fomento dos investimentos em infraestruturas de redes de telecomunicações, para compatibilizá-lo com o desenvolvimento socioeconômico do País.17 Conforme a Lei n. 13.116/15, em seu art. 1, §1,exige-se que a gestão da infraestrutura seja realizada de modo a atender às metas sociais, econômicas e tecnológicas estabelecidas pelos poderes públicos. Ocorre que a lei contém uma norma aberta e genérica sobre metas para a gestão da infraestrutura de redes de telecomunicações. Daí a dúvida, caberá a Anatel editar normas sobre estas metas sociais, econômicas e tecnológicas, impondo-as às empresas de gestão da infraestrutura de telecomunicações?18 Primeiro, a outorga do licenciamento da instalação de telecomunicações ao órgão regulador federal na hipótese de decurso do prazo de 60 (sessenta) dias para deliberação por órgão municipal. A razão do veto foi a preservação da competência municipal para tratar de assunto local. Outras regras (caput, §2 do art. 21 e arts. 22 e 23), objeto de veto presidencial, dizem respeito, no âmbito da regulamentação, da observância dos critérios de dinamicidade do uso das estações, mobilidade e variação de acordo com dia, horário e realização de eventos específicos, para fins de avaliação da qualidade dos serviços. Neste aspecto, segundo o veto, caberia ao poder público parte significativa das estratégias de investimento das prestadoras de serviços de telecomunicações. Ainda, segundo este veto (caput, §2 do art. 21 e arts. 22 e 23), o tratamento específico dos parâmetros de fiscalização, ao invés da fixação das metas de qualidades, poderia criar dificuldades na diferenciação e a inovação tecnológicas para melhoria dos serviços pelas prestadoras e, com isso, restringir a concorrência no setor de modo injustificado. 16. De fato, a Lei da Infraestrutura das Redes de Telecomunicações tem regras com efeitos sobre telecomunicações, meio ambiente, urbanismo, saúde pública e direitos do consumidores, entre outros temas relevantes. Quanto ao segmento da construção civil, a Lei da infraestrutura de redes de telecomunicações impacta o direito de passagem de cabos e fibras óticas dentro dos edifícios privados e públicos, algo visto mais à frente. Neste aspecto, a lei federal cria limites ao direito à propriedade privada, algo de certo modo já previsto no Código Civil.. 17. De fato, a expansão das infraestruturas redes de telecomunicações é essencial ao desenvolvimento do Brasil e serve diretamente aos consumidores dos respectivos serviços, os quais poderão acessar melhores serviços de telefonia celular e internet por banda larga móvel. 18. Cf. o art. 130 Lei Geral de Telecomunicações, a prestadora do serviço de telecomunicações, em regime privado, não tem direito adquirido à permanência das condições vigentes quando da expedição da autorização ou início das atividades, e deve observar os novos condicionamentos impostos por lei e pela regulamentação. E, ainda, no 352 REVISTA DO INSTITUTO DOS ADVOGADOS DE SÃO PAULO v. 35, JANEIRO - JUNHO 2015 gestão da infraestrutura de telecomunicações é uma tema no âmbito da autonomia das empresas privadas de telecomunicações.19 Segundo, qualquer restrição à autonomia empresarial de gestão sob o fundamento do interesse público há de ser suficientemente motivada.20 Com efeito, a edição de normas pela Anatel sobre a gestão da infraestrutura de telecomunicações deve observar os princípios da razoabilidade, proporcionalidade, devido processo legal, segurança jurídica, e economicidade, entre outros que vinculam a atuação da agência reguladora.21 Os objetivos específicos da Lei das Normas Gerais da Infraestrutura de Telecomunicações são: i) uniformizar, simplificar e acelerar os procedimentos e critérios para a outorga de licenças para órgãos competentes, ii) minimizar os impactos urbanísticos, paisagísticos e ambientais, iii) ampliar a capacidade instalada das redes de telecomunicações, com a atualização tecnológica e melhoria da cobertura e da qualidade dos serviços prestados, iv) precaver-se contra os efeitos da radiação não ionizante, conforme parâmetros legais; v) incentivar o compartilhamento de infraestrutura de redes de telecomunicações.22 3. DA COMPETÊNCIA DA UNIÃO PARA ESTABELECER NORMAS GERAIS SOBRE INFRAESTRUTURA DE TELECOMUNICAÇÕES Segundo a Lei federal n. 13.116/2015, compete exclusivamente à União a regulamentação e a fiscalização dos aspectos técnicos das redes e dos serviços de parágrafo único, o art. 130, da Lei Geral de Telecomunicações dispõe que será concedido prazo suficiente para adaptação aos novos condicionamentos impostos pela regulação. 19. Aqui, conforme art. 128, inc. I, da Lei Geral das Telecomunicações, ao dispor sobre condicionamentos administrativos ao direito de exploração das diversas modalidades de serviço no regime privado (limites, encargos ou sujeições), a Anatel deve observar a exigência de mínima intervenção na vida privada, considerando-se que a liberdade será a regra, sendo exceção as proibições, restrições e interferências do Poder Púlbico. 20. Cf. Art. 128, inc. III, da Lei Geral de Telecomunicações. 21. Cf. Art. 128, inc. IV, da LGT: “o proveito coletivo gerado pelo condicionamento deverá ser proporcional à privação que ele impuser”. E, ainda, conforme a mesma LGT: “haverá relação de equilíbrio entre os deveres impostos às prestadoras e os direitos a elas reconhecidos”, art. 128, inc. V. 22. Cf. Art. 2, da Lei nº 13.116/15. DOUTRINA . DIREITO PÚBLICO LEI FEDERAL DAS NORMAS GERAIS PARA LICENCIAMENTO E COMPARTILHAMENTO DE INFRAESTRUTURA DE REDE DE TELECOMUNICAÇÕES 353 telecomunicações.23 É vedado aos Estados, aos Municípios e ao Distrito Federal impor condicionamentos que possam afetar a seleção de tecnologia, a topologia das redes e a qualidade dos serviços prestados.24 E, ainda, a lei em análise expressamente dispõe que a atuação dos Estados, dos Municípios e do Distrito Federal não deve comprometer as condições e os prazos impostos ou contratados pela União em relação a qualquer serviço de telecomunicações de interesse coletivo.25 Este tema pode ser objeto de conflitos entre União, Estados e Municípios, com discussões a respeito das possibilidades, dos limites e da constitucionalidade da Lei n. 13.116/2015 (e, respectivamente, dos limites ao exercício da competência da União sobre telecomunicações), diante das competências constitucionais dos demais entes federativos.26 Em outras palavras, pode surgir o conflito 23. Cf. Art. 4, inc. II, da Lei nº 13.116/15. 24. Cf. Art. 4, inc. II, da Lei nº 13.116/15. 25. Cf. Art. 4, inc. VIII, da Lei nº 13.116/15 26. A título ilustrativo, cabe mencionar que no STF, na ADI n. 2902/SP, ainda pendente de julgamento até o momento da conclusão deste artigo, discute-se a constitucionalidade da Lei n. 10.995/2001 do Estado de São Paulo que trata da instalação de antenas transmissoras de telefonia celular, com a imposições de regras sobre a potência de radiação das antenas e as distâncias em relação aos imóveis aonde se situam as antenas. As teses que defendem a inconstitucionalidade da lei estadual estão baseadas nos seguintes argumentos: i) competência privativa da União para legislar sobre serviços de telecomunicações (art. 22, IV, CF), ii) violação à competência concorrente entre União e Estados, para legislar sobre direito urbanístico, sendo que a lei estadual não estabelece normas supletivas de caráter geral, mas sim normas específicas (art. 24, I, §1 e 3), iii) ofensa ao art. 25, 1, da CF, eis que os Estados podem legislar somente sobre matérias que não sejam proibidas pela Constituição; iv) afronta ao art. 30, I e VIII, da Constituição, pois matéria de interesse local, como ordenação do solo urbano é de competência do legislador municipal. Na defesa da constitucionalidade da lei estadual, alega-se: a) o objetivo da lei é proteger os cidadãos do Estado de São Paulo sobre os malefícios por aparelho de radiocomunicação que emitem radiação; b) a competência concorrente do Estado para legislar sobre defesa da saúde (art. 24, inc. XII, da CF), c) não aplicação da competência privativa da União para legislar sobre telecomunicações, mas de imposição de limites aceitáveis de emissão de radiodifusão em defesa da saúde pública; d) a lei estadual é compatível com a legislação federal sobre a matéria. Também, na ADI n. 3501/DF questiona-se a constitucionalidade da lei distrital n. 3.446/2004 que estabelece normas para instalação de torres destinadas a antenas de transmissão de sinais de telefonia, ainda pendente de julgamento pelo STF, até o momento da conclusão deste artigo. É possível que o tema constitucional relativo às regras para implantação das antenas de telefonia celular seja objeto de futuro enquadramento como de repercussão geral no STF. A Lei n. 10.995/2001 do Estado de São Paulo foi declarada inconstitucional pelo Tribunal de Justiça de São Paulo, na Arguição de Inconstitucionalidade n. 0265129-22.2010.26.0000, no Voto 21.379, sob o argumento da invasão da competência da União para explorar os serviços de telecomunicações (art. 21, inc. XI, da CF), bem como para legislar sobre telecomunicações (art. 22, inc. IV). Ressalta-se que esta decisão judicial sobre a inconstitucionalidade da lei estadual que trata da instalação de antenas celulares tem efeitos somente no caso concreto. 354 REVISTA DO INSTITUTO DOS ADVOGADOS DE SÃO PAULO v. 35, JANEIRO - JUNHO 2015 entre a lei federal e leis estaduais e municipais, havendo a necessidade de solução jurídica para precisar o sentido e o alcance das normas gerais sobre infraestrutura de telecomunicações, à luz do quadro de competências constitucional.27 4. DA APLICAÇÃO SUPLEMENTAR DAS LEGISLAÇÕES ESTADUAIS E DISTRITAL De acordo com a Lei das Normas Gerais da Infraestrutura de Telecomunicações, é aplicável de forma suplementar as legislações estaduais e distrital, no que tange à implantação e compartilhamento da infraestrutura de telecomunicações, com a salvaguarda da aplicabilidade do art. 24, §4, da Constituição.28 Trata-se de matéria sujeita à competência concorrente, isto é, compete a União estabelecer as normas gerais sobre o tema, e aos Estados a competência legislativa suplementar. Conforme determina a Constituição, a superveniência de lei federal contendo normas gerais suspende a eficácia da lei estadual no que lhe for contrário.29 Portanto, a Lei federal 13.116/15, que contempla as normas gerais sobre infraestrutura de telecomunicações, suspende a eficácia das leis estaduais que contenham regras com ela incompatíveis.30 Também, em outro caso, o Tribunal de Justiça de São Paulo, na ADI n. 0128923-93.2013.8.26.000, Relator Desembargador Antonio Luis Pires Neto, declarou a inconstitucionalidade parcial da Lei n. 13.756/2004, do Município de São Paulo, que trata da instalação e funcionamento de postes, torres, antenas, contêineres e demais equipamentos que compõem as Estações Rádio-Base, destinadas à operação dos serviços de telecomunicações. Ao final, julgou procedente a ação para declarar a inconstitucionalidade da expressão “e o funcionamento”, prevista no art. 1 e nos artigos 22, 23, 24, 27 e 28 da Lei n. 13.756/2004, do Município de São Paulo. Estas regras tratam da competência do Município de São Paulo para fiscalizar o funcionamento das estações rádio-base, criar um sistema de informação e localização e funcionamento das estações rádio-base, avaliar e controlar a densidade de potência das radiações das estações de radiocomunicação, a tipificação como crime ambiental a extrapolação do limite de radiação da estação de radiocomunicação. Segundo entendimento do Tribunal de São Paulo, a inconstitucionalidade dos dispositivos legais decorre da competência privativa da União para legislar sobre telecomunicações. 27. A solução definitiva da questão constitucional sobre a interpretação mais adequada ao texto da Lei n. 13.116/15 caberá ao STF. 28. Cf. Art. 1, § 3º, da Lei nº 13.116/15. 29. Cf. Art. 24, §4º, da CF. 30. Daí o conflito entre a Lei federal n. 13.116/15, que trata da instalação das infraestruturas de telecomunicações, e a Lei do Estado de São Paulo n. 10.995/01, que trata das instalações de antenas transmissoras de telefonia celular, com restrições às potência das estações de radiocomunicação e as respectivas distâncias em relação aos imóveis aonde se situam. Destaque-se que a Lei n. 10.995/01 de São Paulo é objeto de uma Ação Direta de DOUTRINA . DIREITO PÚBLICO LEI FEDERAL DAS NORMAS GERAIS PARA LICENCIAMENTO E COMPARTILHAMENTO DE INFRAESTRUTURA DE REDE DE TELECOMUNICAÇÕES 355 5. IMPACTO DA LEI SOBRE MUNICÍPIOS: O LICENCIAMENTO DAS ESTAÇÕES DE RADIOCOMUNICAÇÃO 5.1. PRINCÍPIOS NO PROCEDIMENTO DE OUTORGA DAS LICENÇAS O impacto da lei federal sobre os municípios ocorre no procedimento de licenciamento das estações de radiocomunicação. A lei federal estabelece os princípios para o licenciamento da infraestrutura e redes de telecomunicações, a saber: razoabilidade e proporcionalidade, eficiência e celeridade, integração e complementaridade entre as atividades de instalação de infraestrutura de suporte e de urbanização, e redução do impacto paisagístico da infraestrutura de telecomunicações, sempre que tecnicamente possível e economicamente viável. 31 5.2. DO PROCESSO ADMINISTRATIVO SIMPLIFICADO. Segundo a Lei da Infraestrutura de Telecomunicações deve ser adotado um procedimento administrativo simplificado para a outorga das licenças necessárias para instalação de infraestrutura de suporte de telecomunicações em área urbana, sem prejudicar a manifestação dos diversos órgãos competentes no decorrer da tramitação do processo administrativo.32 O processo de licenciamento ambiental, quando necessário, deve ocorrer de modo integrado ao procedimento de licenciamento simplificado.33 Compete ao Conselho Inconstitucionalidade n. 2902/SP, Rel. Min. Ricardo Lewandowski, perante o STF, ora pendente de julgamento, até a conclusão do presente artigo. Por outro lado, a título ilustrativo, sobre esta relação entre União e Estados, no campo das telecomunicações, o Estado do Paraná promulgou a Lei n. 18.297/2014 que obriga a instalação pelas empresas que prestam o serviço móvel pessoal, de tecnologias de identificação ou bloqueio de sinais de telecomunicações (ou) radiocomunicação nos estabelecimentos penais. Na hipótese de descumprimento da referida lei estadual, as prestadoras dos serviços estão sujeitas ao pagamento de multas entre R$ 50.000,00 (cinquenta mil reais) a R$ 1.000.000,00 (hum milhão de reais). A lei estadual foi fundamentada na competência constitucional do Estado para tratar de assuntos ligados à segurança pública. É possível a discussão sobre a constitucionalidade desta lei estadual à luz da competência privativa da União para legislar e explorar os serviços de telecomunicações. 31. Cf. Art. 5º, da Lei nº 13.116/15. 32. Cf. Art. 7º, da Lei nº 13.116/15. 33. Art. 7º, § 10, da Lei nº 13.116/15. 356 REVISTA DO INSTITUTO DOS ADVOGADOS DE SÃO PAULO v. 35, JANEIRO - JUNHO 2015 Nacional do Meio Ambiente estabelecer as regras do procedimento do licenciamento ambiental.34 Neste contexto, a lei federal dispõe sobre a necessidade dos entes federados promoverem a conciliação entre as normas ambientais, de ordenamento territorial e de telecomunicações.35 Este é um ponto central: a necessidade de respeito ao equilíbrio federativo e da autonomia dos entes federativos e de suas respectivas competências constitucionais, em tema complexo que envolve aspectos de: i) infraestrutura e serviços de telecomunicações; ii) uso e ocupação do solo urbano; iii) meio ambiente. 36 5.3. DO PRAZO DE 10 (DEZ) ANOS DAS LICENÇAS DE INSTALAÇÃO DE INFRAESTRUTURA E REDES DE TELECOMUNICAÇÕES De acordo com a Lei, as licenças para instalação de infraestrutura e redes de telecomunicações em áreas urbanas terão prazo de vigência por, no mínimo 10 (dez) anos. É possível a renovação da licença por igual período.37 Destaque-se, aqui, que uma vez preenchidos os requisitos objetivos da legislação, surge para o requerente o direito à obtenção da licença de instalação da infraestrutura e rede de telecomunicações. Se negado este direito, é cabível a medida judicial adequada para a proteção do interesse da empresa prejudicada quanto à obtenção da licença. 5.4 DO PRAZO DE 60 (SESSENTA) DIAS PARA EMISSÃO DAS LICENÇAS A Lei n. 13.116/15 estabelece que o prazo para emissão de qualquer licença não pode ser superior a 60 (sessenta) dias, contados da data de apresentação do requerimento.38 Tal norma geral demanda, portanto, a adaptação das legislações municipais quanto ao procedimento administrativo de licenciamento das instalações de infraestrutura de rede de telecomunicações. Destaca a lei federal que os órgãos competentes não podem impor condições ou 34. Cf. Art. 9 º, da Lei nº 13.116/15. 35. Cf. Art. 4º, inc. VII, da Lei nº 13.116/15. 36. Como já referido, ao final, a solução definitiva para o tema constitucional em torno do sentido e do alcance da Lei n. 13.116/2015 caberá ao STF. 37. Cf. Art. 7º, §7º, da Lei nº 13.116/15. 38. Cf. Art. 7º, §1º, da Lei nº 13.116/15. DOUTRINA . DIREITO PÚBLICO LEI FEDERAL DAS NORMAS GERAIS PARA LICENCIAMENTO E COMPARTILHAMENTO DE INFRAESTRUTURA DE REDE DE TELECOMUNICAÇÕES 357 vedações que impeçam a prestação de serviços de telecomunicações de interesse coletivo, nos termos da legislação vigente. A mesma lei preceitua que eventuais condicionamentos impostos pelas autoridades competentes na instalação de infraestrutura de suporte não poderão provocar condições não isonômicas de competição e de prestação de serviços de telecomunicações. 39 De fato, um município não pode criar privilégios para uma determinada empresa de telecomunicações em detrimento de outra empresa concorrente. Também, um município não pode prejudicar uma determinada empresa de telecomunicações, a fim de beneficiar a empresa concorrente. Trata-se de uma norma geral que objetiva preservar a concorrência leal no mercado de infraestruturas de telecomunicações. 5.5. CONSULTA E AUDIÊNCIAS PÚBLICAS Nos processos administrativos de licenciamento de infraestrutura e redes de telecomunicações que utilizar mecanismos de consulta ou audiência pública, o prazo para emissão das respectivas licenças não poderá ser postergado por mais de 15 (quinze) dias.40 Ou seja, o prazo é 60 (sessenta) dias, com a postergação, motivada pela audiência e consulta pública, de no máximo 15 (quinze) dias. 6. DESNECESSIDADE DE LICENCIAMENTO DE INFRAESTRUTURA DE REDES DE TELECOMUNICAÇÕES DE PEQUENO PORTE A lei dispõe que em área urbana não é necessária a emissão de licença para infraestrutura de redes de telecomunicações de pequeno porte, conforme regulamentação específica.41 Daí surge a seguinte dúvida: qual é a autoridade competente para regulamentar este dispositivo legal ? Ao que parece, cabe à Anatel a regulamentação dos critérios para a classificação da infraestrutura de rede de telecomunicações de pequeno porte. 39. Cf. Art. 8º, parágrafo único, da Lei nº 13.116/15. 40. Cf. Art. 7, §6, da Lei n. 13.116/2015. 41. Cf. Art. 10, da Lei nº 13.116/15. 358 REVISTA DO INSTITUTO DOS ADVOGADOS DE SÃO PAULO v. 35, JANEIRO - JUNHO 2015 7. REGRA SOBRE A INSTALAÇÃO DO COMITÊ CONSULTIVO NOS MUNICÍPIOS Outra regra legal para os municípios com população superior a 300.000 (trezentos mil) habitantes, diz que o poder público municipal deverá instituir de comissão de natureza consultiva, com representantes da sociedade civil e das prestadoras dos serviços de telecomunicações, para contribuir com a aplicação da lei em análise.42 Tratase de aplicação da lei federal que assegura a participação social, evidentemente com respeitada a competência da auto-organização dos municípios quanto à estruturação do referido órgão consultivo. 8. IMPACTO DAS NORMAS GERAIS DE INFRAESTRUTURA SOBRE AS EMPRESAS DE TELECOMUNICAÇÕES A) COMPARTILHAMENTO DE INFRAESTRUTURA DE SUPORTE DE TELECOMUNICAÇÕES O impacto das normas gerais sobre as empresas de telecomunicações, para além do aspecto do licenciamento, ocorre no âmbito do compartilhamento de infraestrutura de telecomunicações. Assim, cria-se a obrigatoriedade do compartilhamento da capacidade excedente de infraestrutura de suporte telecomunicações, excetuada a hipótese de justificado motivo técnico.43 O compartilhamento da infraestrutura de telecomunicações deve ocorrer de modo a respeitar o patrimônio urbanístico, histórico, cultural e paisagístico.44 Exige-se, no planejamento da construção e ocupação da infraestrutura de suporte, a consideração do compartilhamento pelo maior número possível de prestadoras dos serviços de telecomunicações. O compartilhamento de infraestrutura deve ser realizado com a observância do tratamento não discriminatório e a preço em condições justas e razoáveis. As empresas detentoras das infraestruturas de suporte são obrigadas a informar as condições de compartilhamento, inclusive 42. Cf. Art. 24, da Lei nº 13.116/15. 43. Cf. Art. 14 da Lei nº 13.116/15. Segundo a Lei, capacidade excedente é a infraestrutura de suporte instalada e não utilizada, total ou parcialmente, disponível para compartilhamento. 44. A duplicação das infraestruturas de redes (antenas) compromete a paisagem urbana, bem como o patrimômio histórico e cultural. Daí o incentivo do poder público ao compartilhamento das infraestruturas de redes de telecomunicações, para evitar sua desnecessária multiplicação. DOUTRINA . DIREITO PÚBLICO LEI FEDERAL DAS NORMAS GERAIS PARA LICENCIAMENTO E COMPARTILHAMENTO DE INFRAESTRUTURA DE REDE DE TELECOMUNICAÇÕES 359 apresentar informações técnicas georreferenciadas da infraestrutura disponível e os preços e prazos aplicáveis, conforme regulamentação da Anatel.45 Também, as empresas, no mapeamento e georreferenciamento das redes, devem garantir ao poder público informações sobre a localização, dimensão e capacidade disponível das infraestruturas de redes de telecomunicações.46 B) LIMITES DA EXPOSIÇÃO DAS PESSOAS A CAMPOS ELÉTRICOS E MAGNÉTICOS Há regras para as estações transmissoras de radiocomunicação, bem como os terminais de acesso dos usuários dos serviços de telecomunicações, quanto aos limites de exposição das pessoas aos campos elétricos, magnéticos e eletromagnéticos. 47 Trata-se de uma norma relevante para a proteção da saúde das pessoas, diante dos campos de energia dos produtos e redes de telecomunicações, cuja fiscalização de sua aplicação está sob a responsabilidade da Anatel.48 Daí a responsabilidade quanto à avaliação das estações de radiocomunicação, com a imposição da lavratura de laudo técnico sobre sua conformidade à legislação. Segundo a lei, as estações de radiocomunicação devidamente licenciadas pela Anatel, que possuam relatório de conformidade à legislação, não podem ter suas instalações impedidas de funcionar por razões referentes à exposição humana a radiação não ionizante.49 Além disto, a lei em análise impõe a obrigação para as prestadoras dos serviços de telecomunicações 45. Cf. Art. 26, da Lei nº 13.116/15. 46. Cf. Art. 4º, inc. V, da Lei nº 13.116/15. Neste aspecto, cabe esclarecer que o georreferenciamento é uma técnica para encontrar pessoas, locais e objetos na terra, mediante a obtenção de informações e dados geográficos a partir de coordenadas existentes em imagens ou mapas, mediante GPS (sistema de posicionamento global). Esta técnica já é adotada no georreferenciamento de imóveis rurais, conforme exigência da Lei nº 10.267/01. 47. Cf. Art. 18, da Lei nº 13.116/15. 48. A Resolução n. 303/202 da Anatel trata do regulamento sobre limitação da exposição a campos elétricos, magnéticos e eletromagnéticos na faixa de frequências entre 9 KHz e 300 GHz, afetos ao licenciamento das estações de radiocomunicação. 49. Cf. 19, §2, da Lei n. 13.116/15. Por sua vez, no contexto da Lei n. 11.934/2009, que trata dos limites à exposição humana a campos elétricos, magnéticos e eletromagnéticos, dispõe o dever das prestadoras de serviços de telecomunicações da realização de medições dos níveis de campo elétrico, magnético e eletromagnético de radiofrequência, em suas estações transmissoras de radiocomunicação, conforme seu art. 13. As emissoras de radiodifusão comercial não enquadradas na Classe Especial, as emissoras de radiodifusão educativa e de radiodifusão comunitária não são obrigadas a realizar as referidas medições, segundo o §1, do art. 13 da Lei n. 11.934/2009. 360 REVISTA DO INSTITUTO DOS ADVOGADOS DE SÃO PAULO v. 35, JANEIRO - JUNHO 2015 e os poderes públicos federal, estadual, distrital e municipal, informar a sociedade sobre os limites de exposição humana aos campos elétricos, magnéticos e eletromagnéticos.50 C) AUTORIZAÇÃO DO PROPRIETÁRIO OU POSSUIDOR DO IMÓVEL PARA A INSTALAÇÃO DA ESTAÇÃO DE RADIOCOMUNICAÇÃO Também, a nova Lei das infraestruturas de telecomunicaçoes permite a instalação e o funcionamento das estações de radiocomunicação e de infraestrutura de suporte em bens privados ou públicos, com a necessária autorização do proprietário ou, quando não for possível, do possuidor do imóvel.51 Portanto, a empresa gestora das estações de radiocomunicação deve providenciar esta autorização do proprietário ou possuidor do imóvel, para instalar as respectivas antenas e equipamentos de radiocomunicações. Quanto aos condomínios, a regra da obrigatoriedade do compartilhamento da infraestrutura de rede não se aplica à utilização das antenas fixadas sobre estruturas dos prédios, das harmonizadas à paisagem e as estações de radiocomunicação já instaladas até 5 de maio de 2009.52 D) DIREITO DE PASSAGEM EM VIAS PÚBLICAS, FAIXAS DE DOMÍNIO E BENS PÚBLICOS É assegurado às empresas de telecomunicações o direito de passagem em vias 50. Art. 20, da Lei n. 13.116/15. Aqui, cumpre destacar a plenitude do direito fundamental à informação dos cidadãos e consumidores a respeito do potencial de riscos causados pelos produtos e serviços de telecomunicações, em relação à sua saúde e respectivo corpo. Daí a necessidade das empresas prestadoras dos serviços de telecomunicações, bem como dos fabricantes de aparelhos celulares, notebooks, tablets, etc, informarem adequadamente sobre os limites de exposição das pessoas aos campos de energia. Em síntese, é obrigação das empresas que prestam serviços de telecomunicações e dos fabricantes de aparelhos celular informar sobre os riscos à saúde das pessoas causados pela proximidades aos campos magnéticos das estações de radiocomunicação e dos aparelhos celulares. Aqui, a plena incidência do princípio da precaução, o que integra o regime jurídico de atuação das referidas empresas. A título ilustrativo, no RE n. 627.189/SP, Rel. Min. Dias Toffoli, em trâmite no STF, discute-se a questão constitucional sobre os limites do campo eletromagnético das linhas das redes de transmissão de energia elétrica, com a realização inclusive de audiência pública, em razão do risco à saúde das pessoas decorrentes da exposição a estes campos de energia. Basicamente, a questão constitucional envolve a aplicação do art. 225 da Constituição, isto é, saber se o princípio da precaução é aplicável às novas tecnologias no setor da energia elétrica que causam impacto no meio ambiente. 51. Conforme modificação do art. 6, § 2º, da Lei n. 11.934/2009. 52. Conforme modificação do art. 10, § 1º, da Lei n. 11.934/2009. DOUTRINA . DIREITO PÚBLICO LEI FEDERAL DAS NORMAS GERAIS PARA LICENCIAMENTO E COMPARTILHAMENTO DE INFRAESTRUTURA DE REDE DE TELECOMUNICAÇÕES 361 públicas, em faixas de domínio e em outros bens públicos de uso comum do povo.53 Nesta hipótese, veda-se a exigência de contraprestação pelo exercício do direito de passagem. Ressalta-se que os custos de instalação, operação, manutenção e remoção de infraestrutura e equipamentos devem ser suportados pela entidade interessada. A proibição da contraprestação em razão do exercício do direito de passagem não afeta as obrigações indenizatórias decorrentes de eventual dano efetivo ou restrição de uso significativa.54 Ou seja, na hipótese do exercício do direito de passagem afetar o direito de uso da propriedade privada haverá a obrigação de indenizar o seu respectivo proprietário. E) RESPONSABILIDADE EM RELAÇÃO À SEGURANÇA DOS USUÁRIOS DOS SERVIÇOS DE TELECOMUNICAÇÕES. De acordo com a Lei das Normas Gerais sobre Infraestrutura de Telecomunicações, as prestadoras de telecomunicações devem cumprir integralmente as disposições legais e regulamentares incidentes sobre sua atividade econômica, especialmente aquelas relacionadas à segurança dos usuários dos serviços, sob pena de responsabilização civil e penal na hipótese de descumprimento da legislação.55 9. REPERCUSSÃO DA LEI FEDERAL SOBRE OS CONSUMIDORES: OS TERMINAIS DE ACESSO AOS SERVIÇOS DE TELECOMUNICAÇÕES A Lei das Normas Gerais sobre Infraestrutura de Telecomuunicações tem reflexos para os consumidores. Há regra que dispõe sobre a comercialização de terminais de usuários dos serviços de telecomunicações. Nesta hipótese, a lei federal preceitua que não serão exigidas por Estados, Distrito Federal e Municípios condições distintas daquelas integrantes na regulamentação da Anatel, e no Código de Defesa do Consumidor, e das demais normas federais relativas às relações de consumidor, inclusive quanto ao conteúdo e forma disponibilização de informações ao usuário.56 53. Cf. Art. 12, da Lei nº 13.116/15. 54. Cf. Art. 12, § 1º, da Lei nº 13.116/15. 55. Cf. Art. 4º, inc. IV, da Lei nº 13.116/15. 56. Conforme art. 28 da Lei 13.116/2015, que altera o art. 14, §3º, da Lei n. 11.934/2009. A interpretação do art. 28 da Lei n. 13.116/15 que trata da proibição para Estados, Distrito Federal e Municípios, de 362 REVISTA DO INSTITUTO DOS ADVOGADOS DE SÃO PAULO v. 35, JANEIRO - JUNHO 2015 10. IMPACTO DAS NORMAS GERAIS DE INFRAESTRUTURA DE TELECOMUNICAÇÕES SOBRE O SETOR DA CONSTRUÇÃO CIVIL. Ao modificar a Lei Geral de Telecomunicações (art. 74), a Lei das Normas Gerais da Infraestrutura de Telecomunicações estabelece que a concessão, permissão ou autorização do serviço de telecomunicações não isenta a prestadora do atendimento às normas de engenharia e às leis municipais, estaduais e distritais relativas à construção civil. 57 A lei em análise dispõe que a construção de edifício público ou privado destinado ao uso coletivo deve ser executada de modo a dispor de dutos, condutos, caixas de passagem e outras infraestruturas que permitam a passagem de cabos ou fibras óticas para instalação de redes de telecomunicações, conforme as normas técnicas de edificações. Esta norma geral sobre o direito de passagem trata do ponto de conexão entre as redes internas de telecomunicações dentro dos edifícios com as redes externas de telecomunicações, presentes nas ruas e avenidas das cidades. Por fim, ao modificar o Estatuto da Cidade, a Lei nº 13.116/15 estabelece como diretriz geral da política urbana o tratamento prioritário às obras e edificações de infraestrutura de energia, telecomunicações, abastecimento de água e saneamento.58 E, a referida impor exigências relacionadas ao conteúdo e à forma de informar os consumidores, quanto à comercialização de terminais de acesso aos serviços de telecomunicações, há de ser realizada com certa cautela. É que a Constituição, em seu art. 24, inc. VIII, dispõe sobre a competência concorrente da União, Estados e Distrito Federal para legislar sobre responsabilidade por dano ao meio ambiente e ao consumidor. O exercício da competência concorrente pela União, com a edição de normas gerais, não pode excluir a competência dos Estados para suplementar a lei federal. Daí porque a regra contida no art. 28 da Lei n. 13.116/2015 não pode esvaziar o espaço para atuação suplementar os Estados, no que tange ao direito fundamental à informação do consumidor em relação aos terminais de acesso aos serviços de telecomunicações. A princípio, na visão pessoal do autor do presente artigo, o exercício da competência federal não pode excluir a hipótese de maior proteção ao consumidor, seja por estados, seja pelos municípios. 57. Conforme art. 27 da Lei n. 13.116/15, que modifica o art. 74 da Lei 9.472/1997. 58. Conforme art. 30, da Lei n. 13.116/2015, que modifica o art. 2º, inc. XVIII, do Estatuto da Cidade. Neste contexto, destacam-se as leis municipais que tratam da instalação de redes subterrâneas de cabos de energia e de telecomunicações. Um tema de convergência entre as infraestruturas de redes de energia e de telecomunicações que desafia o enfrentamento da constitucionalidade destas leis municipais, diante da competência da União para legislar sobre infraestruturas de redes e serviços de energia e telecomunicações. Sobre o assunto, destaquese que tema constitucional encontra-se em análise pelo STF. Na Ação Cautelar n. 3420 MC/RJ, no Recurso Extraordinário com Agravo n. 764.029/RJ (ação cautelar para atribuir efeito suspensivo a agravo), Rel. Min. Carmén DOUTRINA . DIREITO PÚBLICO LEI FEDERAL DAS NORMAS GERAIS PARA LICENCIAMENTO E COMPARTILHAMENTO DE INFRAESTRUTURA DE REDE DE TELECOMUNICAÇÕES 363 lei reafirma a competência da União para instituir diretrizes para o desenvolvimento urbano, inclusive infraestrutura de energia e telecomunicações.59 Evidentemente, o estabelecimento destas diretrizes federais deve ser em conformidade com a preservação da autonomia constitucional dos municípios para tratar de assuntos de interesse local dos seus cidadãos. A concretização do direito à infraestrutura urbana adequada60 para coletividade dos cidadãos demanda, portanto, o tratamento prioritário, seja pelo Poder Executivo, seja Poder Legislativo local, das obras e instalações de infraestrutura de energia e telecomunicações. Ou seja, cria o dever de adoção de regras, ações, e procedimentos administrativos e legislativos, de modo suficiente, à concretização do direito à infraestrutura urbana adequada para seus respectivos cidadãos. 11. DA COMPETÊNCIA DA ANATEL Cabe à Anatel estabelecer os parâmetros técnicos para instalação, operações, manutenção e remoção das redes de telecomunicações, inclusive infraestrutura de suporte.61 Também, a princípio, compete a Anatel o estabelecimento das metas sociais, econômicas e tecnológicas para a gestão das infraestruturas de telecomunicações. Evidentemente, que o estabelecimento de uma política regulatória nesta direção pode ser examinada judicialmente sob a perspectiva de sua constitucionalidade e legalidade. Compete, também, à Anatel a edição das normas sobre os critérios para classificação de uma estação de radiocomunicação de pequeno de porte, e, assim, para afastar a exigência do licenciamento.62 Por fim, compete a Anatel fiscalizar o respeito aos limites legais impostos às estações transmissoras de radiocomunicação e os terminais de acesso dos usuários dos serviços, em relação à exposição das pessoas aos campos elétricos, magnéticos Lúcia, discute-se a inconstitucionalidade da lei do Município do Rio de Janeiro que obriga a substituição de rede elétrica aérea por rede subterrânea. A título ilustrativo, o Município de Curitiba aprovou a Lei n. 14.593/2015 para a substituição da rede aérea de cabos por uma rede subterrânea, com repercussão sobre as empresas de distribuição de energia elétrica e de telecomunicações. 59. Conforme art. 30, da Lei n. 13.116/2015, que modifica o art. 2º, inc. IV, do Estatuto da Cidade 60. O direito à infraestrutura urbana é uma diretriz geral da política urbana previsto no Estatuto da Cidade em seu art. 2, inc. I. 61. Cf. Art. 13, inc. I, da Lei n. 13.116/2015. 62. Art. 10 da Lei n. 13.116/2015. 364 REVISTA DO INSTITUTO DOS ADVOGADOS DE SÃO PAULO v. 35, JANEIRO - JUNHO 2015 e eletromagnéticos.63 Uma questão que surge em decorrência da Lei n. 13.116/2015 consiste na competência da Anatel para tratar de assuntos referentes às infraestruturas de redes de telecomunicações. É que a competência originária da Anatel incide, de modo predominante, sobre os serviços de telecomunicações e, respectivamente, sobre as empresas prestadoras de serviços telecomunicações. Daí a questão sobre os limites da competência da Anatel para a criação de obrigações vinculantes para empresas especializadas na gestão da infraestrutura de redes de telecomunicações.64 Ou seja, há discussões sobre os limites à competência da Anatel sobre o setor de infraestrutura, em decorrência da interpretação dos dispositivos da Lei em análise.65 12. CONCLUSÕES: Diante do exposto, a partir da análise da Lei n. 13.116/2015 das Normas Gerais para Implantação e Compartilhamento da Infraestrutura de Telecomunicações, apresenta-se as seguintes conclusões: O acesso dos consumidores aos serviços de telecomunicações depende das infraestruturas organizadas em redes de telecomunicações. Os consumidores, na posse de terminais de acesso (aparelhos celulares, notebooks, tablets, etc), podem utilizar os serviços de telefonia móvel e internet, mediante a rede de antenas distribuídas em diversos bairros da cidade.66 63. Art. 18, §1, da Lei 13.116/2015. 64. Pela Lei Geral de Telecomunicações, há a competência da Anatel para disciplinar as redes de telecomunicações, sejam aquelas do regime público ou sejam aquelas do regime privado, especialmente quanto à normatização técnica para fins de interconexão entre as redes. 65. A título ilustrativo, o novo Código de Processo Civil contém dispositivos que afetam a Anatel. Por exemplo, as decisões em incidente de resolução de demandas repetitivas que envolvam questão sobre a prestação de serviço concedido, permitido ou autorizado, o resultado do julgamento deve ser comunicado à agência reguladora competente para fiscalizar a efetiva aplicação, pelos entes sujetitos à regulação, da tese jurídica adotada pelo tribunal, conforme dispõe o art. 985, §2, do novo CPC. 66. Os consumidores dos serviços de telecomunicações, nas modalidades de telefonia celular e acesso à internet móvel, são pessoas físicas e pessoas jurídicas. Aliás, o Regulamento da Anatel dos Direitos dos Consumidores nos Serviços de Telecomunicações, aprovado pela Resolução n. 632/2014, reconhece diversos direitos para pessoas físicas e jurídicas. Este foi abordado pelo autor do presente artigo no estudo: Direito dos Consumidores nos Serviços de Telefonia Fixa, Móvel Pessoal, TV por assinatura, conexão à internet: aproximações entre o Direito do Consumidor e o Direito Regulatório das Comunicações (Telecomunicações e Internet), a ser publicado na Coletânea Repensando os Direitos do Consumidor, pela OAB/PR, trabalho ainda no prelo. DOUTRINA . DIREITO PÚBLICO LEI FEDERAL DAS NORMAS GERAIS PARA LICENCIAMENTO E COMPARTILHAMENTO DE INFRAESTRUTURA DE REDE DE TELECOMUNICAÇÕES 365 Estes serviços de comunicações criam imenso valor para as pessoas, os negócios, cidades e os governos. A criação de valor ocorre em diversos âmbitos: informação, comunicação, comércio tradicional e eletrônico, entretenimento (vídeos/redes sociais), entre outras atividades econômicas relevantes para o Brasil e para os brasileiros.67 As infraestruturas de telecomunicações são essenciais para a prestação dos serviços móvel pessoal e conexão à internet. A falta de infraestrutura adequada de telecomunicações ou danos à infraestruturas repercutem intensamente na vida das pessoas, dos negócios (comércio, indústria e serviços) e dos governos. Vale dizer, mais e melhores redes de telecomunicações tem o potencial de ampliar o acesso e qualidade dos serviços de comunicação móvel para os consumidores. A Lei n. 13.116/2015, que trata das infraestruturas de telecomunicações, foi editada com fundamento na competência privativa da União para legislar sobre telecomunicações, daí a razão para o estabelecimento de normas gerais sobre infraestrutura de telecomunicações, com o enquadramento constitucional no art. 22, inc. IV, da Constituição do Brasil. Em que pese a competência federal para legislar sobre telecomunicações, destaquese a competência concorrente legislativa da União e do Estado para legislar sobre direito urbanístico, previsto no art. 24, 1, inc. I, da Constituição. Também, saliente-se a competência municipal para tratar de matéria de interesse local, como é o caso do uso e ocupação do solo urbano e de regras para a autoorganização da administração pública. Daí na hipótese de eventual conflito em torno da constitucionalidade de algumas das regras da Lei n. 13.116/2015, especialmente dos limites à competência federal, diante das competências dos Estados e Municípios. Caberá ao STF firmar o entendimento sobre sentido e o alcance das lei com as normas gerais sobre as infraestruturas de telecomunicações, na hipótese de o tema constitucional ser discutido. A Lei das Normas Gerais da Infraestrutura de Telecomunicações modifica a Lei Geral de Telecomunicações, Estatuto da Cidade e Lei da Proteção à Pessoa diante campos de energia elétrica e eletromagnética. A referida Lei contém regras sobre aspectos de 67. Segundo dados atualizados até dezembro de 2014, na telefonia móvel foi registrado 281,7 milhões de acessos por terminais dos usuários. Na internet banda larga móvel: 162,9 milhões de acessos por terminais dos usuários. Dados conforme relatório da Telecom: www.telecom.com.br/3G_brasil.asp e da Anatel. REVISTA DO INSTITUTO DOS ADVOGADOS DE SÃO PAULO v. 35, JANEIRO - JUNHO 2015 366 telecomunicações, meio ambiente, urbanismo e saúde pública. A Lei das Normas Gerais da Infraestrutura de Telecomunicações tem repercussão no âmbito dos municípios na medida em que contém princípios para o processo administrativo de outorga do licenciamento da instalação de infraestrutura e redes de telecomunicações, a saber: i) razoabilidade e proporcionalidade; ii) eficiência e celeridade; iii) integração e complementaridade entre as atividades de instalação de infraestrutura de suporte e de urbanização; iv) redução do impacto paisagístico da infraestrutura de telecomunicação. A Lei das Normas Gerais sobre a Infraestrutura de Telecomunicações contém norma geral para o licenciamento das estações de radiocomunicações pelos municípios, especificamente estabelece o prazo de 60 (sessenta) dias para emissão da licença de operação da referida estação de radiocomunicação, contados a partir da data de apresentação do requerimento; A referida Lei das Normas Gerais sobre a Infraestrutura de Telecomunicações impacta as empresas com autorização, permissão e concessão dos serviços de telecomunicações, ao aprovar normas gerais sobre: i. metas sociais, econômicas e tecnológicas a serem estabelecidas pelo poder público quanto à gestão da infraestrutura de telecomunicações. Neste aspecto, o art. 1, §1, da Lei n. 13.116/2015 há de ser interpretado, em conformidade com os artigos 128 e 130 da Lei Geral de Telecomunicações, os quais se referem aos condicionamentos regulatórios à atuação empresarial e respectivos limites legais à atuação da agência reguladora; ii. o compartilhamento da capacidade excedente da infraestrutura de suporte dos serviços de telecomunicações; iii. os limites da exposição das pessoas ao campo elétrico e magnético das estações de radiocomunicação, com a responsabilização das empresas de telecomunicações quanto à segurança dos usuários dos respectivos serviços; iv. exigência de autorização do proprietário ou possuidor do imóvel para a instalação de estação de radiocomunicação; Conforme a Lei em análise, compete à Anatel: i) estabelecer parâmetros técnicos para instalação, operações, manutenção e re- DOUTRINA . DIREITO PÚBLICO LEI FEDERAL DAS NORMAS GERAIS PARA LICENCIAMENTO E COMPARTILHAMENTO DE INFRAESTRUTURA DE REDE DE TELECOMUNICAÇÕES 367 moção redes de telecomunicações, inclusive infraestrutura de suporte; ii) estabelecer metas sociais, econômicas, tecnológicas para a gestão das infraestruturas de telecomunicações; iii) editar normas sobre os critérios para classificação de uma estação de radiocomunicação de pequeno porte, para fins de dispensa de licenciamento; iv) fiscalizar os limites de exposição humana aos campos magnéticos das estações de radiocomunicações e os terminais de acessos dos usuários aos respectivos serviços. A Lei n. 13.116/15 tem repercussão no âmbito do Direito do consumidor, especialmente sobre o direito de informação dos consumidores a respeito dos limites de exposição das pessoas aos campos de energia dos produtos/terminais de acesso aos serviços de telecomunicações (celulares, notebooks, tablets, etc), com a exclusão da incidência de normas estaduais e municipais sobre conteúdo e forma de disponibilizar estas informações aos consumidores. As empresas do setor da construção são impactadas pela Lei das Normas Gerais de Infraestrutura de Telecomunicações. Garante-se o direito de passagem de cabos e fibras óticas, dentro dos edifícios privados e públicos. É aprovada como diretriz geral da política urbana, no âmbito do Estatuto da Cidade, o tratamento prioritário às obras e edificações de infraestrutura de energia e telecomunicações, reafirmando-se a competência da União para o estabelecimento das diretrizes para o desenvolvimento urbano. Em síntese, o direito à infraestrutura urbana adequada requer o tratamento prioritário do Poderes Executivo e Legislativo, mediante ações e procedimentos efetivos, sobre as instalações de rede de telecomunicações. A Lei n. 13.116/2015 define o regime jurídico da infraestrutura de telecomunicações, em reforço à regulação federal do tema. Esta lei federal representa um passo de centralização normativa, com a finalidade de preservar a unidade regulatória sobre o tema das antenas de celulares, sobre todo o território nacional, com o estabelecimento dos critérios para o licenciamento das estações de radiocomunicação e o compartilhamento obrigatório da capacidade excedente das redes de telecomunicações. Em síntese, a Lei das Normas Gerais da Infraestrutura de Telecomunicações contém regras relevantes no âmbito do Direito das Comunicações, com repercussão nos interesses das empresas de telecomunicações e de infraestrutura, consumidores dos serviços de telefonia e internet móvel, estados e municípios. Daí a necessidade de seu conhecimento adequado para buscar a interpretação e orientação mais adequada à defesa da realização dos seus objetivos práticos. DIREITO PÚBLICO APLICAÇÃO DA TEORIA DO FACTA CONCLUDENTIA E SUA REÇÃO COM A REVOGAÇÃO DE ATOS ADMINISTRATIVOS DE FORMA IMPLÍCITA POR PARTE DA ADMINISTRAÇÃO LUÍS ALBERTO DE FISCHER AWAZU Advogado. Graduado pela Universidade Presbiteriana Mackenzie. Especialista em direito empresarial na GV LAW/ FGV. Mestre em direito pela da USP. Doutorando em direito constitucional pela PUC-SP. SUMÁRIO 1.Introdução; 2.Aplicação do facta concludentia no Direito Administrativo. 2.1 Da Possibilidade de Revogação do Ato Administrativo com Base no Facta Concludentia; 3.Conclusão; 4. Referências Bibliográficas. RESUMO ABSTRACT O chamado facta concludentia, aplicado aos atos administrativos, implica a possibilidade de revogação de atos administrativos por outros, supervenientes, que implicitamente revogariam os atos anteriores com eles incompatíveis, operando-se a chamada revogação tácita. Aplicando-se o princípio da boa-fé objetiva, tem-se que é negado à Administração a adoção de comportamentos contraditórios, ainda que implícitos, em face do princípio da confiança. Assim, o segundo ato administrativo, que contradiz o primeiro ato concedente de direitos ao interessado, deve ser, em princípio, considerado inválido. The so called facta concludentia, applied to administrative acts, implies the possibility of revocation of administrative acts by other acts, supervening, which implicitly repeal the earlier acts with them incompatible, operating the tacit revocation. Applying the principle of objective good faith, that denies the power to he Administration for adoption of contradictory behavior, even if implicit, given the principle of trust . Thus, the second administrative act, which contradicts the first act – this one granting rights to the person concerned - should be considered invalid. PAVRAS-CHAVE Facta Concludentia – ato administrativo revogação tácita – boa-fé objetiva REVISTA DO INSTITUTO DOS ADVOGADOS DE SÃO PAULO v. 35, JANEIRO - JUNHO 2015 372 1.INTRODUÇÃO O presente artigo tem por objetivo colher elementos acerca da teoria do chamado facta concludentia, e sua aplicação no direito administrativo, em especial sobre a possibilidade de revogação de atos administrativos por outros, supervenientes, que implicitamente revogariam os atos anteriores com eles incompatíveis. Assim, cabe estreitarmos o conceito de facta concludentia que será utilizado para os fins deste trabalho. De acordo com a Enciclopédia Saraiva do Direito: “Fatos dos quais se pode concluir algo. Traduz-se literalmente: fatos concludentes. Fatos que se deduzem ou se podem concluir da própria manifestação da vontade. Constituem uma declaração implícita de vontade geradora de um negócio jurídico. Por exemplo, o herdeiro que paga uma dívida dá a entender que aceitou a herança (v. Abstenção).1” O facta concludentia é um instituto aplicado em muitos ramos do direito, especialmente no direito civil e processo civil, para representar, de modo geral, a prática de atos posteriores, incompatíveis com os anteriores praticados na mesma relação jurídica. Em geral, o facta concludentia acaba por revelar uma vontade implícita diversa do agente quando pratica o segundo ato, como por exemplo, quando em um processo uma parte recorre da sentença e imediatamente após assina acordo para quitação da dívida. Nesta hipótese, o recurso estará prejudicado, ainda que o acordo nada fale a respeito. O segundo ato, sendo incompatível com o primeiro, e tendo ambos partidos da mesma pessoa, prejudica o primeiro, pois de alguma forma, está se atacando seu conteúdo – ainda que implicitamente. 2. APLICAÇÃO DO FACTA CONCLUDENTIA NO DIREITO ADMINISTRATIVO No campo do direito administrativo, o facta concludentia tem sido aplicado no 1. Enciclopédia Saraiva do Direito / coordenação do Prof, R. Limongi E46 França. — São Paulo: Saraiva, 1977.vol. XI.p.42 DOUTRINA . DIREITO PÚBLICO APLICAÇÃO DA TEORIA DO FACTACONCLUDENTIA E SUA RELAÇÃO COM A REVOGAÇÃO DE ATOS ADMINISTRATIVOS DE FORMA IMPLÍCITA POR PARTE DA ADMINISTRAÇÃO 373 campo do silêncio administrativo, ou seja, a não resposta da Administração a um pleito individual, ou simples inação do Estado diante de uma situação concreta. Tem-se ainda este sido associado com os chamados atos administrativos tácitos e/ ou implícito2. Vale destacar que a doutrina pátria de maneira majoritária não considera o silêncio administrativo como ato administrativo, mas sim, um fato administrativo. Este porém, não é o enfoque do presente trabalho, que é, ao contrário a prática de atos administrativos concretos no tempo. Citando o autor português André Gonçalves Pereira, Estrela esclarece que o ato implícito é o que “que resulta necessariamente de uma consulta destinada a fim diverso, inferindo-se sem possibilidade de dúvida dos facta concludentia.3” Por sua vez o mesmo autor conceitua o ato tácito o qual pode ser: (a) interno, quando resulta da omissão de órgão administrativo controlador em manifestar tempestivamente a sua aquiescência ou desacordo em relação a ato de outro órgão que deva ser objeto de seu controle. Se não o fizer em determinado prazo, a lei o considera aprovado; e (b) externo, resultantes da omissão administrativa em apreciar, em dado tempo legalmente pré-fixado, uma pretensão do administrado. Não o fazendo, considera-se rejeitada a pretensão que lhe fora submetida4. Pode-se notar das classificações acima transcritas, que de acordo com o autor citado, tanto o ato tácito quanto o implícito se referem a omissões da Administração. Para os fins desta pesquisa, melhor resultado alcançou Celso Antônio Bandeira de Mello, que escorado na doutrina italiana, assim define o ato administrativo implícito: 58. No Direito Português ambas as hipóteses são denominadas “atos tácitos”. Já, no Direito italiano a omissão administrativa em manifestar-se perante pretensão do administrado sobre a qual deva pronunciar-se é conhecida simplesmente como silêncio, ao passo que a expressão “ato tácito” ou declaração tácita é, algumas vezes, utilizada para referir outra situação: aquela reveladora do que mais propriamente 2. SANTOS, Felipe Estrela de los Santos. O valor do Silêncio da Administração Pública na Hipótese de Ausência de Pronúncia em Face do Reclamo do Administrado. In: RGPE, Porto Alegre, v.33. n.69, p.89-124. P.100 3. PEREIRA, André Gonçalves. Erro e Ilegalidade no Acto Administrativo, Lisboa, 1962. 86 apud Estrela.p.100 4. Ob.cit.p.100-grifo nosso 374 REVISTA DO INSTITUTO DOS ADVOGADOS DE SÃO PAULO v. 35, JANEIRO - JUNHO 2015 se denominaria “ato implícito”.51 A saber: os casos em que a Administração não se manifesta explicitamente ante uma dada situação, entretanto, através de outro comportamento seu, pode-se deduzir, inequivocamente, uma decisão implícita, decorrente de algum ato explícito ou mesmo de um fato (facta concludentia). Sirva de exemplo um pedido de permissão de uso em relação a dado bem imóvel efetuado por mais de um sujeito. Deferida a um, está implicitamente indeferida a outro.5 Interessante notar do trecho destacado em negrito, que a decisão da Administração pode se dar por um fato administrativo ou ato explícito. Isto implica tecer alguns comentários acerca da estrutura da manifestação de vontade do agente público. Oswaldo Aranha Bandeira de Mello assim anota: Quanto à estrutura, distingue-se em expressa e tácita. Expressa, quando a fórmula de manifestação da vontade é feita diretamente com referência ao próprio ato jurídico em consideração. Tácita, quando a fórmula de manifestação da vontade resulta indiretamente com referência a dado assunto, pela prática de outro ato jurídico ou ato material, ou mesmo pela falta de qualquer exteriorização de manifestação de vontade6. Entretanto, neste ponto do trabalho cabe questionar até que ponto a manifestação tácita da Administração, em ato ou fato posterior, pode implicar a retirada do ato contrariado do ordenamento jurídico? 2.1. DA POSSIBILIDADE DE REVOGAÇÃO DO ATO ADMINISTRATIVO COM BASE NO FACTA CONCLUDENTIA A retirada do mundo jurídico dos atos jurídicos por vontade própria da Administração é um dos temas mais polêmicos no direito administrativo. A retirada da vigência do ato administrativo por vontade posterior da Administração, pode se dar por meio da revogação, não anulação, pois não se trata da discussão de vícios na vigência ou eficácia dos atos administrativos em comparação, mas simples alteração de vontade por parte da Administração que alterou a situação fática praticada no primeiro ato. 5. MELLO, Celso Antônio Bandeira de. Curso de Direito Administrativo. 30ª. ed. rev. e atual. São Paulo: Malheiros, 2014.p.418-grifo nosso 6. MELLO, Oswaldo Aranha Bandeira de. Princípios Gerais do Direito Administrativo. 3.ed. Vol I. São Paulo: Malheiros, 2007.p.508-grifo nosso DOUTRINA . DIREITO PÚBLICO APLICAÇÃO DA TEORIA DO FACTACONCLUDENTIA E SUA RELAÇÃO COM A REVOGAÇÃO DE ATOS ADMINISTRATIVOS DE FORMA IMPLÍCITA POR PARTE DA ADMINISTRAÇÃO 375 À medida em que a Administração emana comportamentos contraditórios, ainda que tácitos entre duas manifestações, surge a discussão sobre se isto pode ser ou não causa da derrubada do ato administrativo (em especial o ato administrativo primário confrontado com o segundo ato, este sim objeto do comportamento contraditório). Assim, caso haja no curso da vigência de um ato administrativo a alteração de um pressuposto de direito indispensável à sua existência estaremos diante do fenômeno do decaimento. Sobre este fenômeno assim anota Márcio Cammarosano: Assim considerado, o decaimento é conseqüência do desaparecimento quer de um pressuposto de fato, quer de um pressuposto de direito indispensável à existência de um ato administrativo, ou à sua validade, ou à sua eficácia, ou à manutenção do seu efeito. De nossa parte, aceitamos o decaimento não como modalidade de extinção do ato administrativo ou de seus efeitos, mas como a invalidade superveniente, que dará ensejo à extinção do ato ou de seus efeitos mediante a emanação de outro ato. Restringimos, destarte, o conceito de decaimento, de sorte a compreender apenas o fenômeno da invalidade superveniente de um ato ou relação jurídica, em virtude de modificação da ordem legal que fundamentava sua validade.7 Logo, a discussão quanto à revogação do ato administrativo com base no facta concludentia não se dá, aparentemente, pelo decaimento, pois não há invalidade superveniente, mas uma alteração da vontade da Administração. Sobre a possibilidade de revogação tácita dos atos administrativos Celso Antônio Bandeira de Mello anota: 111. A revogação pode ser explícita ou implícita. É explícita quando a autoridade simplesmente declara revogado o ato anterior. É implícita quando, ao dispor sobre certa situação, emite um ato incompatível com o anterior. Em um e outro caso a revogação pode ser total ou parcial, conforme a amplitude com que afeta a situação precedente8. 7. CAMMAROSANO, Márcio. Decaimento e extinção dos atos administrativos. Revista de Direito Público, v. 13, n. 53/54, p. 161-172, jan./jun. 1980.p.169 8. Ob.cit.p.458-grifo nosso 376 REVISTA DO INSTITUTO DOS ADVOGADOS DE SÃO PAULO v. 35, JANEIRO - JUNHO 2015 O autor citado considera ser possível a revogação de ato administrativo de modo implícito, total ou parcialmente. Em outras palavras, isto significa o facta concludentia. Entretanto, observamos na doutrina tradicional, que a revogação deve ocorrer de modo explícito, ou seja, expressamente, por ato secundário que revogue ato anterior. Neste sentido anota Manoel Ribeiro, em parecer datado de 1961: VII - O silêncio da autoridade que substituiu a que emitiu o ato não tem qualquer sentido. Não produz efeito jurídico. O ato foi emitido por escrito. A decretação de sua nulidade (sempre expressa) e a revogação (expressa ou implícita) deverão ser escritas. A manifestação da vontade deverá concretizar-se pela mesma forma por que foi realizado o ato que se pretendia decretar nulo ou revogar. Mesmo aquêles que mandam apenas observar, estritamente, o princípio da similitude da forma para os atos de revogação, não podem negar que a decretação da nulidade deve ser expressa, clara e inequívoca. Não se pode argüir que a manifestação tácita revelada pelo comportamento da nova autoridade denotasse repulsa, revogação ou decretação de nulidade do ato praticado pela autoridade antecessora. Não serve a manifestação tácita, para desfazer ou afastar um ato administrativo. Está em pleno, desacôrdo com o principio da similitude da forma, que é principio geral de direito. Na verdade, a autoridade dos princípios gerais de direito aparece na jurisprudência, ora igual à lei, ora superior, ora inferior, é o que escreve Rivero (“apud” Benoit Jeanneau, “Les príncipes généraux du Droit dans la Jurisprudence Administrative” edition Recueil Sirey, Paris, 1954, pág. 169). Benoit Jeanneau na ob. cit., pág. 171, declara que, de um ponto-de-vista material, os princípios gerais de direito aparecem, com efeito, como superiores à lei9. A revogação tácita, aqui tratada como sinônimo do facta concludentia, ainda é matéria polêmica. Para tentar ilucidar a questão devemos recorrer, inevitavelmente, à Lei 9.784/99 que trata do processo administrativo na esfera federal. Em seu art.3º, III dispõe que é direito do administrado: “formular alegações e apresentar documentos antes da decisão, os quais serão objeto de consideração pelo órgão competente.” 9. RIBEIRO, Manuel. Perfeição e Validade do Ato Administrativo. Revogação e nulidade – O Princípio da Similitude da Forma. In: Di Pietro, Maria Zenella, Sundfeld, Carlos Ari (orgs). Direito Administrativo. São Paulo: Ed. RT, 2012 (Doutrinas Essenciais, vol. 2, p.952-grifo nosso ). DOUTRINA . DIREITO PÚBLICO APLICAÇÃO DA TEORIA DO FACTACONCLUDENTIA E SUA RELAÇÃO COM A REVOGAÇÃO DE ATOS ADMINISTRATIVOS DE FORMA IMPLÍCITA POR PARTE DA ADMINISTRAÇÃO 377 Por sua vez o art.48 dispõe que é dever da Administração decidir as questões que lhe são propostas pelos administrados tendo o “dever de explicitamente emitir decisão nos processos administrativos e sobre solicitações ou reclamações, em matéria de sua competência.” Deste modo, concluímos que a legislação, ao menos no plano federal, não trata claramente do silêncio da Administração, ao contrário, imprime o dever de decidir ao Poder Público, o que contrario sensu, implica na vedação ao silêncio administrativo. Neste sentido, não podemos ignorar manifestações absolutamente díspares por parte da Administração, que devem ser consideradas num contexto mais amplo. Ou seja, deve-se analisar a estrutura das relações jurídicas dos atos administrativos alvo das contradições. Explique-se. Se em um ato a Administração manifesta uma vontade, concedendo um determinado direito ao interessado, concretiza-se uma relação jurídica perante à Administração: S1 r1 - S2 (r1: relação jurídica) Se posteriormente, em um segundo ato, a Administração expede ato no sentido de alterar substancialmente a essência da r1, de modo implícito, estará a revogar o ato anterior, resguardada a possibilidade de este ser ato jurídico perfeito, conferindo direito adquirido ao seu titular ou mesmo o prazo decadencial de anulação dos atos administrativos previstos no art.54 da Lei 9.784/99. Observando este panorama, Carlos Ari Sundfeld anota: Se, de um lado, os atos administrativos gozam de presunção de legitimidade, de outro, aquele que se conformar com a decisão estatal, e cumpri-la, tem em seu favor a presunção de que agiu de boa-fé e, como tal, será protegido. Essa é a contrapartida ao poder de impor unilateralmente obrigações exigíveis. O particular que, em conformidade com ato administrativo, constitui situação concreta, recebe especial amparo do Direito. Essa proteção se justifica, principalmente, nas situações em que a decisão administrativa, em virtude de ilegalidade (invalidação) ou por conveniência e oportunidade da Administração (revogação), vem a ser posteriormente extinta ou reformada. Mesmo após sua extinção, os efeitos do ato administrativo 378 REVISTA DO INSTITUTO DOS ADVOGADOS DE SÃO PAULO v. 35, JANEIRO - JUNHO 2015 merecem tratamento especial, de modo a serem preservados os interesses dos particulares atingidos. Assim é que, nos casos de revogação, tem-se como assente o dever de a Administração respeitar os direitos constituídos a partir do ato revogado. Ou seja, há o reconhecimento inconteste de que tais atos produzem direitos adquiridos; direitos esses que, mesmo após a extinção do ato que os sustentava, merecem proteção. Até mesmo quando se trata de ato administrativo com vício de legalidade, não fica desamparado o particular que, de boa-fé, tiver sido atingido pelo ato inválido. Atualmente, essa situação tem reconhecimento legislativo, por meio da Lei de Processo Administrativo Federal, que estabeleceu o prazo máximo de 5 anos para a Administração anular atos viciados que tenham ampliado a esfera de direitos de particulares de boa-fé10. Neste sentido, a doutrina moderna passou a analisar o comportamento da Administração sob o ponto de vista da boa-fé objetiva, incorporada a tempos ao direito civil. O princípio da boa-fé objetiva reflete o comportamento das partes antes, durante e após a celebração do contrato. Uma das aplicações consagradas deste princípio é o chamado venire contra factum proprium, ou seja, a vedação de comportamento contraditório das partes no curso da execução de um contrato, por exemplo. Flavio Tartuce comenta sobre a aplicação do venire contra factum proprium: Pela máxima venire contra factum proprium non potest, determinada pessoa não pode exercer um direito próprio contrariando um comportamento anterior, devendo ser mantida a confiança e o dever de lealdade, decorrentes da boa-fé objetiva.11 Aplicando o princípio da boa-fé objetiva ao processo administrativo, Egon Bockman anota: 10. SUNDFELD, Carlos Ari. “Nova Orientação do CADE Sobre o Cumprimento de Compromisso de Cessação Não Pode ter Efeitos Para o Passado” in: Direito administrativo econômico, coleção pareceres vol. I, São Paulo, Revista dos Tribunais, 2013, pp.616-grifo nosso 11. TARTUCE, Flavio. Manual de direito civil: volume único. 3ª ed. Rio de Janeiro: Forense, 2013.p.561 DOUTRINA . DIREITO PÚBLICO APLICAÇÃO DA TEORIA DO FACTACONCLUDENTIA E SUA RELAÇÃO COM A REVOGAÇÃO DE ATOS ADMINISTRATIVOS DE FORMA IMPLÍCITA POR PARTE DA ADMINISTRAÇÃO 379 45. Quanto ao princípio da boa-fé, o art.2º da Lei 9.784/99 prevê expressamente sua incidência, no inciso IV de seu parágrafo único, que exige a “atuação segundo padrões éticos de probidade, decoro e boa-fé”. O inciso I do art. 3º celebra que é direito do cidadão “ser tratado com respeito pelas autoridades e servidores, que deverão facilitar o exercício de seus direitos e o cumprimento de suas obrigações”. E, em seguida, o art. 4a impõe os deveres de o particular “proceder com lealdade, urbanidade e boa-fé” e “não agir de modo temerário” (incisos II e III). A Lei 9.784/1999 positivou a boa-fé como dever para a Administração e para as pessoas privadas que com ela interagem. Relacionam-se à boa-fé processual o dispositivo legal que decreta a inadmissibilidade das provas obtidas por meio ilícito (art. 30) e aquele que veda a produção de provas “ilícitas, impertinentes, desnecessárias ou protelatórias” (art. 38, § 2a). Ou seja, a Lei 9.784/1999 é rica em disposições que positivam e enaltecem este aspecto do princípio da moralidade12. O STJ também vem aplicando o princípio do venire contra factum proprium nos atos administrativos: DIREITO ADMINISTRATIVO E PROCESSUAL CIVIL – EMBARGOS DE DECLARAÇÃO – CONSTATAÇÃO DE ERRO DE PREMISSA FÁTICA – EMBARGOS ACOLHIDOS – POLICIAL FEDERAL “SUB-JUDICE” – APOSTILAMENTO – ATENDIMENTO DOS REQUISITOS DO DESPACHO MINISTERIAL Nº 312/2003 – PRINCÍPIOS DA RAZOABILIDADE E DA BOA-FÉ – “VENIRE CONTRA FACTUM PROPRIUM” – SEGURANÇA CONCEDIDA. 1. Constatado que o julgado embargado adotou premissa fática equivocada, configurado está o erro de fato a justificar o acolhimento dos aclaratórios. 2. Os impetrantes, na qualidade de policiais federais “sub-judice”, atenderam todos os requisitos do Despacho Ministerial nº 312/2003, fazendo jus ao apostilamento. 3. A Administração Pública fere os Princípios da Razoabilidade e da Boa-fé quando exije a desistência de todas as ações promovidas contra a União ao 12.BOCKMANN, Egon Moreira. Processo Administrativo: Princípios Constitucionais e a Lei 9.784/99. 4ªed.São Paulo: Malheiros, p.126 380 REVISTA DO INSTITUTO DOS ADVOGADOS DE SÃO PAULO v. 35, JANEIRO - JUNHO 2015 mesmo tempo em que estabelece exigências não previstas expressamente no Despacho Ministerial nº 312/2003, regulamentado pela Portaria nº 2.369/2003DGP/DPF para a concessão do apostilamento. 4. “Nemo potest venire contra factum proprium”. 5. Embargos de declaração acolhidos para, reconhecendo o erro de premissa fática, conceder a segurança para os fins especificados13. Entretanto, qual seria a relação entre o princípio da boa-fé objetiva (teoria dos atos próprios ou venire contra factum proprium) e o facta concludentia? O vínculo está que atualmente se exige um comportamento probo da Administração, sendo que em seus atos não pode agir contraditoriamente, ou seja, de modo a quebrar a confiança do administrado, o que está plasmado no art.2º, inciso IV da Lei 9.784/99. Sobre este tema anota Luís Manoel Fonseca Pires: Uma vez mais, a confiança. A confiança que se produz junto ao administrado como expectativa legítima pelo contexto fático que se circunstancia. Se a Administração, por exemplo, concede uma permissão de uso de bem público para um administrado, sorteado entre outros interessados, instalar-se com uma banca de jornal em uma praça pública, provoca a expectativa de que os seus investimentos não podem destinar-se a que se mantenha em funcionamento por apenas um mês. A segurança jurídica — da qual emana a confiança do administrado — é fundamento bastante a impedir a revogação da permissão se não houver fundamentação congruente, exata, suficiente e clara, e mesmo que se atenda a estes requisitos (cogite-se da superveniente necessidade de expandir a área de segurança de um prédio público), a despeito de a revogação tomar-se possível, há direito à indenização ao permissionário porque de todo modo a confiança que lhe foi estimulada em virtude do comportamento e dos atos da Administração inegavelmente se rompeu14. 13. EDcl no Mandado de Segurança Nº 14.649 - DF (2009/0184092-2), STJ, RELATOR : MINISTRO MOURA RIBEIRO, 26/02/14-grifo nosso 14. PIRES, Luis Manoel Fonseca. A Estabilidade como Atributo do Ato Administrativo. In: Tratado Sobre o Princípio da Segurança Jurídica no Direito Administrativo. Coordenadores: Rafael Valim, José Roberto Pimenta Oliveira, Augusto Neves Dal Pozzo. Belo Horizonte: Fórum, 2013.p.308-grifo nosso DOUTRINA . DIREITO PÚBLICO APLICAÇÃO DA TEORIA DO FACTACONCLUDENTIA E SUA RELAÇÃO COM A REVOGAÇÃO DE ATOS ADMINISTRATIVOS DE FORMA IMPLÍCITA POR PARTE DA ADMINISTRAÇÃO 381 A vedação ao agir de modo contraditório da Administração, em tese, também é a proibição ao facta concludentia, ou seja, a adoção de uma manifestação contrária incompatível com ato anterior. O princípio da confiança deve ser levado em consideração quando ocorrem alterações de regimes jurídicos regulamentadores de determinada atividade econômica, por exemplo, como regra de concessões de serviços públicos, analisando-se assim como ficam as relações jurídicas em relação ao regime normativo modificado. O princípio da proteção da confiança encontra-se na constituição federal de 1988 por meio de alguns dispositivos constitucionais, principalmente o art.5º caput e o art.37 caput. Tal princípio traduz-se na ideia de que deve haver um limite para o exercício do poder pelo Estado Administração, de forma a considerar não apenas as razões de interesse público, mas também um limite à modificação de situações jurídicas resultantes dos atos administrativos, ex.: prescrição, preclusão, decadência do direito anular, etc. O Estado, atuando através de seus agentes, deve se pautar pela probidade, transparência e boafé nas relações jurídicas privadas, visando unicamente atender ao interesse público e estabelecer um equilíbrio nas relações com os que se relacionam com o Estado15. A segurança jurídica é um princípio que visa proteger a manutenção de situações jurídicas constituídas validamente, como também situações nas quais houve a falta de algum dos requisitos de validade, mas que pela boa-fé e decurso do tempo ganharam proteção pelo ordenamento jurídico. A rigor, a segurança jurídica admite dois sentidos distintos: um objetivo e outro subjetivo. Sob uma ótica objetiva, podemos entender como sendo a garantia de previsibilidade da conduta estatal e irretroatividade de seus efeitos e, subjetivamente, resulta na proteção da confiança dos cidadãos em relação a toda ação administrativa, com o foco de limitar a prerrogativa da Administração de mudar sua conduta em relação a seus destinatários, assim como determinar a responsabilidade do poder público quando assim proceder. Desta forma, o princípio da confiança possui estreita relação com o princípio da segurança jurídica. Conforme anota Rafael Valim, a confiança legítima “impõe o já aludido dever de adoção de disposições transitórias para mudanças de regimes jurídicos, 15. MIRAGEM, Bruno. A Nova Administração Pública e o Direito Administrativo. São Paulo: 2011, Editora Revista dos Tribunais, p.248. 382 REVISTA DO INSTITUTO DOS ADVOGADOS DE SÃO PAULO v. 35, JANEIRO - JUNHO 2015 ressalvada eventual situação em que o interesse público perseguido pelo regime jurídico seja incompatível com um regime transitório.16” Nestes momentos é que se costumam adotar regras de transição, visando adequar as normas do regime revogado ao novo regime. As regras de transição, quando existentes e suficientes, constituem verdadeiros elementos de segurança jurídico. Ocorre que muitas vezes em nosso ordenamento jurídico tais regras não se encontram presentes. Por vezes as alterações de regimes jurídicos ocorrem por medidas provisórias, que por já nascerem com força de lei, acabam por encurralar o Congresso Nacional, dado que pode ocorrer o trancamento da pauta caso a Medida Provisória não seja apreciada em 45 dias após a sua publicação (art.62, §6º CF). Foi o que quase ocorreu com a Medida Provisória nº 595/12, atual Lei nº12.815/13 (Lei dos Portos). Aprovada no último dia de vigência, a referida Medida Provisória revogou a Lei nº 8.630/93, e sua conversão em lei se deu com vários vetos presidenciais, prejudicando ainda mais a clareza do texto normativo. As normas de transição são elementos confirmadores do princípio da confiança e, em alguns setores, como no de infraestrutura, são essenciais. Ocorre que, devido ao longo prazo de maturação dos investimentos, mudanças bruscas nos regimes jurídicos da infraestrutura delegada aos particulares (portos, rodovias, aeroportos etc.) podem afetar a composição dos planos de negócios. Adotadas regras de transição claras e que protejam os investimentos já realizados ou em curso, o investidor – principalmente o estrangeiro – terá mais confiança para investir ou, no mínimo, para avaliar melhor as premissas do investimento. Caso não sejam adotadas regras claras de transição, o próprio Estado se torna refém, pois, não sendo possível a viabilização dos investimentos, o Estado terá que assumir a concessão ou aditar o contrato administrativo inicial. Haveria algum critério de aferição da confiança diante de uma alteração no regime jurídico? Rafael Valim aponta duas perguntas para solução da referida pergunta17: 1- Há a confiança legítima do administrado a ser tutelada? (b) Há um interesse público no novo regramento que justifique a preterição da confiança legítima? 16. VALIM, Rafael. Princípio da Segurança Jurídica no Direito Administrativo Brasileiro. São Paulo: Malheiros, 2010. p.124 17. Ob.cit.p.126 DOUTRINA . DIREITO PÚBLICO APLICAÇÃO DA TEORIA DO FACTACONCLUDENTIA E SUA RELAÇÃO COM A REVOGAÇÃO DE ATOS ADMINISTRATIVOS DE FORMA IMPLÍCITA POR PARTE DA ADMINISTRAÇÃO 383 Aponta o autor que a confiança legítima deve significar uma expectativa real com a mudança. De qualquer forma, não se tira a legitimidade do Estado em alterar as regras, por ser sua prerrogativa, ainda mais no que tange a normas administrativas. A aferição do interesse público deve se dar de modo proporcional ao direito protegido, isto é, uma mudança radical no regime jurídico em vigor e que não haja nenhuma proteção por uma regra de transição poderia potencialmente ofender a legítima expectativa do interessado. Há várias situações em que podem ocorrer alterações no regime jurídico vigente da regulação de diversos setores, e o que vai variar é o momento em que se dá a alteração e o momento em que se avalia a legítima expectativa. Muito embora não haja direitos adquiridos sobre institutos ou regimes jurídicos em si, mas sim aos efeitos por eles produzidos, a teoria aqui esposada busca se aplicar aos diversos casos em diversos momentos, refletindo maior ou menor eficácia. Por exemplo, caso em um determinado processo administrativo em curso perante determinada agência regulatória ou autarquia, e no meio do processo haja uma mudança legislativa - extinguindo o instituto jurídico no qual era baseado o direito pleiteado – sem haver qualquer norma transitória, deve ser considerada se havia neste momento a plena materialização do direito requerido. Em outras palavras, se o requerente já preenchia todos os requisitos para a materialização do direito pleiteado, faltando apenas um ato decisório final para a plena materialização do direito, ainda não seria possível se falar em direito plenamente adquirido, mas é possível se falar, em tese, em legitima expectativa – ainda mais se a demora para a conclusão do direito não se der por conta do interessado, mas do órgão onde tramita o processo administrativo. Por outro lado, caso sequer tenha sido iniciado o processo administrativo para este fim, a alegação de legítima expectativa fica um tanto prejudicada. Por fim, caso já tenha sido assinado o contrato e iniciado os atos concretos da autorização ou concessão, a expectativa é, aparentemente, mais do que legítima, havendo fortes sinais de direito adquirido. De qualquer forma, a quebra da confiança em face da Administração pode caminhar para uma tentativa de adequação da situação fática do novo regime jurídico ou a REVISTA DO INSTITUTO DOS ADVOGADOS DE SÃO PAULO v. 35, JANEIRO - JUNHO 2015 384 intervenção judicial, via de regra com a fixação de indenização por perdas e danos. Portanto, a legítima expectativa de direito em face de alteração de regime jurídico é corolário do Estado de direito, pois materializa o princípio da confiança, este derivado da segurança jurídica. A alteração de regime jurídico de determinado setor regulado da economia, deve, em tese, conter regras de transição, a fim de que se proteja as relações jurídicas que estão em andamento e que possam se consolidar no curso do processo administrativo. A sua não observação acaba por ferir a confiança na Administração, gerar conflitos e, por consequência, pode gerar um potencial atraso ou redução de investimentos privados em infraestrutura. A jurisprudência, como visto, vem fulminando o segundo ato (aquele que contradiz o primeiro), por ofender à boa-fé objetiva. Sendo assim, o facta concludentia por implicar uma vontade implícita, implica a revogação do primeiro ato, fazendo entender que prevalece a vontade posterior da Administração, operando-se a revogação tácita, salvo os atos jurídicos perfeitos. Entendemos que a melhor interpretação é a conciliação das duas teorias, pois ambas vêm a proteger a boa-fé objetiva do Administrado. A vedação ao comportamento contraditório da Administração implica também a proteção a comportamentos implícitos contraditórios. Neste caso, defendemos a prevalência da manutenção do primeiro ato administrativo, este que concedeu os direitos (atacados num segundo momento) ao interessado, limitando desta forma a revogação implícita. 3.CONCLUSÃO 1. O chamado facta concludentia, aplicado aos atos administrativos, implica a possibilidade de revogação de atos administrativos por outros, supervenientes, que implicitamente revogariam os atos anteriores com eles incompatíveis, operando-se a chamada revogação tácita. 2. Tem-se associado o facta concludentia com os chamados atos administrativos tácitos e/ou implícitos, oriundos de uma omissão/silêncio da Administração. O silêncio administrativo não constitui ato administrativo, mas sim, um fato administrativo. 3. Consideramos correta a posição de Celso Antônio Bandeira de Mello, o qual considera o facta concludentia como ato implícito, pelo qual a decisão da DOUTRINA . DIREITO PÚBLICO APLICAÇÃO DA TEORIA DO FACTACONCLUDENTIA E SUA RELAÇÃO COM A REVOGAÇÃO DE ATOS ADMINISTRATIVOS DE FORMA IMPLÍCITA POR PARTE DA ADMINISTRAÇÃO 385 Administração não é expressa em determinado ato, mas age contrariamente com manifestação exarada anteriormente, o que pode se dar por um fato administrativo ou ato explícito ou mesmo implícito. 4. Quanto aos efeitos da ocorrência do facta concludentia, tendo em vista que a Administração emana comportamentos contraditórios, ainda que tácitos entre duas manifestações, surge a discussão sobre se, tal fenômeno, pode ser ou não causa da derrubada do ato administrativo (em especial o ato administrativo primário confrontado com o segundo ato, este sim objeto do comportamento contraditório). Em outras palavras, estamos tratando da revogação tácita. 5. Quando a Administração expede ato posterior que contraria ato anterior – o qual conferiu direitos ao interessado – alterando substancialmente a relação jurídica criada pelo primeiro ato, estará, implicitamente revogando o primeiro ato, resguardada a possibilidade de este ser ato jurídico perfeito, conferindo direito adquirido ao seu titular ou mesmo o prazo decadencial de anulação dos atos administrativos previstos no art.54 da Lei 9.784/99. 6. O princípio da boa-fé objetiva reflete o comportamento das partes antes, durante e após a celebração de um contrato. Uma das aplicações consagradas deste princípio é o chamado venire contra factum proprium, ou seja, a vedação de comportamento contraditório das partes no curso da execução de um contrato, por exemplo. A vedação ao agir de modo contraditório da Administração, em tese, também é a proibição ao facta concludentia, ou seja, a adoção de uma manifestação contrária incompatível com ato anterior. 7. A vedação ao comportamento contraditório da Administração implica a proteção a comportamentos implícitos contraditórios, em face do princípio da confiança na Administração. Neste caso, defendemos a prevalência da manutenção do primeiro ato administrativo, este que concedeu os direitos (atacados num segundo momento) ao interessado, limitando desta forma a revogação implícita. 8. Por fim, cabe-nos destacar que não se deve confundir revogação, implícita ou não, com revisão interpretativa dos fatos que fundamentaram determinado ato administrativo, a fim de, com isso, pretender a Administração rever ou anular atos que gerem direitos legítimos aos seus titulares, o que é vedado pela Lei 9784/99, art.2º, inciso XIII. 386 REVISTA DO INSTITUTO DOS ADVOGADOS DE SÃO PAULO v. 35, JANEIRO - JUNHO 2015 4. REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS BOCKMANN, Egon Moreira. Processo Administrativo: Princípios Constitucionais e a Lei 9.784/99. 4ªed.São Paulo: Malheiros. CAMMAROSANO, Márcio. Decaimento e extinção dos atos administrativos. Revista de Direito Público, v. 13, n. 53/54, p. 161-172, jan./jun. 1980 Enciclopédia Saraiva do Direito / coordenação do Prof, R. Limongi E46 — São Paulo : Saraiva, 1977.vol.XI. Fr a n ç a . MELLO, Celso Antônio Bandeira de. Curso de Direito Administrativo. 30ª. ed. rev. e atual. São Paulo: Malheiros, 2014. MELLO, Oswaldo Aranha Bandeira de. Princípios Gerais do Direito Administrativo. 3. ed. Vol I. São Paulo: Malheiros, 2007 PEREIRA, André Gonçalves. Erro e Ilegalidade no Acto Administrativo, Lisboa, 1962. 86 apud Estrela. PIRES, Luis Manoel Fonseca. A Estabilidade como Atributo do Ato Administrativo. In: Tratado Sobre o Princípio da Segurança Jurídica no Direito Administrativo. Coordenadores: Rafael Valim, José Roberto Pimenta Oliveira, Augusto Neves Dal Pozzo. Belo Horizonte: Fórum, 2013. RIBEIRO, Manuel. Perfeição e Validade do Ato Administrativo. Reogação e nulidade – O Princípio da Similitude da Forma. In: Di Pietro, Maria Zenella, Sundfeld, Carlos Ari (orgs). Direito Administrativo. São Paulo: Ed. RT, 2012 (Doutrinas Essenciais, vol. 2, SANTOS, Felipe Estrela de los Santos. O valor do Silêncio da Administração Pública na Hipótese de Ausência de Pronúncia em Face do Reclamo do Administrado. In: RGPE, Porto Alegre, v.33. n.69. SUNDFELD, Carlos Ari. “Nova Orientação do CADE Sobre o Cumprimento de Compromisso de Cessação Não Pode ter Efeitos Para o Passado” in: Direito administrativo econômico, coleção pareceres vol. I, São Paulo, Revista dos Tribunais, 2013 TARTUCE, Flavio. Manual de direito civil: volume único. 3ª ed. Rio de Janeiro: Forense, 2013 DOUTRINA . DIREITO PÚBLICO APLICAÇÃO DA TEORIA DO FACTACONCLUDENTIA E SUA RELAÇÃO COM A REVOGAÇÃO DE ATOS ADMINISTRATIVOS DE FORMA IMPLÍCITA POR PARTE DA ADMINISTRAÇÃO 387 VALIM, Rafael. Princípio da Segurança Jurídica no Direito Administrativo Brasileiro. São Paulo: Malheiros, 2010. DIREITO AMBIENTAL QUESTÕES CONTEMPORÂNEAS ENVOLVENTES DA CSSIFICAÇÃO DOS BENS JURÍDICOS TRAZIDA NO CÓDIGO CIVIL E DO CONCEITO ABRANGENTE DO BEM AMBIENTAL REGINA VERA VILS BÔAS Pós-Doutora em Democracia e Direitos Humanos pela Universidade de Coimbra - Ius Gentium Conimbrigae. Graduada, Mestre Doutora em Direito Civil e Doutora em Direitos Difusos e Coletivos, todos pela PUC/SP. JOSÉ ÂNGELO REMÉDIO Procurador do Estado de São Paulo. Mestre em Direito Difusos e doutorando em Direitos Difusos e Coletivos pela PUC-SP. MARLENE DOS SANTOS VILHENA Mestra e doutoranda em Direito Difusos e Coletivos pela PUC-SP. Como qualquer outra produção cultural, os direitos humanos têm uma origem histórica resultante do processo cultural de reação que os seres humanos colocam em funcionamento em suas constantes relações com outros seres humanos, com a natureza e com eles mesmos. (...) o que caracteriza os direitos humanos é serem “uma” entre essa grande quantidade de lutas que o Ocidente propôs quando se encontrou, a partir dos séculos XV e XVI, com outros povos tão ou mais avançados do que aquilo que se considerava civilização (p. IX). Devemos, portanto, ir de novo aos conceitos e aos fundamentos dos direitos, escrevendo e investigando sobre eles, mas sempre e a todo o momento trabalhando em atenção às vítimas das injustiças e opressões e com o objetivo genérico de reinventar a vida de todas e de todos em função da dignidade, e não da mera coerência formal ou lógica dos textos” (Joaquín Herrera Flores. Teoria Crítica dos Direitos Humanos: os Direitos Humanos como Produtos Culturais. Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2009, pp. IX e 48). SUMÁRIO 1. Introdução; 2. Dos bens considerados em si mesmos, 2.1. Dos bens imóveis, 2.2. Dos bens móveis, 2.3. Dos bens fungíveis e consumíveis, 2.4. Dos bens divisíveis, 2.5. Dos bens singulares e coletivos; 3. Dos bens reciprocamente considerados; 4. Bens Públicos; 5. Bem de Família; 6. Bem Ambiental; 7. Considerações Finais; 8. Referências. RESUMO ABSTRACT A presente pesquisa objetivou refletir sobre os conceitos dos bens protegidos pelo direito, à luz da classificação trazida na parte geral do Código Civil vigente, apurando a existência de outros bens, dispostos no mesmo Código, além daqueles indicados na parte geral, trazendo à baila discussões sobre o objetivo da sistematização ínsito à codificação. Referida insuficiência foi ilustrada com o bem de família e o próprio bem ambiental, evidenciando que este último exorbita o regime jurídico do direito privado e do direito público. A par disso, empregando a clássica lição de Alf Ross, utilizou-se do conceito de “tûtû” para demonstrar a ausência de utilidade de alguns conceitos de bem jurídico, acolhidos pela codificação do direito civil. It is study that aimed to assert the goods in the Civil Code of 2002 , showing that there are other goods set out in the Code itself apart from those indicated in the general part , putting in check in order to systematize ínsito codification. Illustrated is this failure with the family well and the very environmental well , the latter exceeds the legal framework for private law and public law. Alongside this , using the classic lesson of Alf Ross , we used the concept of “ tu-tu “ to demonstrate the futility of various concepts of good legal welcomed the codification of civil law. PAVRAS-CHAVE KEYWORDS Código Civil; bens jurídicos; bem ambiental. Civil Code; property; and environmental . 392 REVISTA DO INSTITUTO DOS ADVOGADOS DE SÃO PAULO v. 35, JANEIRO - JUNHO 2015 1. INTRODUÇÃO Inicia-se o enfrentamento do tema constatando que o bem jurídico é o elemento chave para a operacionalização do sistema jurídico, eis que é o próprio objeto da relação jurídica e de tutela da norma jurídica. Melhor esclarecendo, o sistema jurídico tem por especificidade funcional assegurar o cumprimento das expectativas normativas mediante a qualificação da licitude ou ilicitude da conduta humana. O bem jurídico é o objeto da tutela inserto nesta aferição de licitude ou ilicitude, não se confundindo com a modal deôntica da norma que prescreve que o comportamento pode ser permitido, proibido ou obrigatório. Apreciar o bem jurídico era muito mais simples durante o primado da sociedade individualista, pois refletia esta realidade, polarizando a clássica relação entre Tício e Caio ou, posteriormente, particular e Estado. Deve-se relembrar que desde o século XIX o direito civil era o direito comum, a própria base da construção da teoria do direito, papel esse que foi, em grande parte, avocado atualmente pelo direito constitucional, a partir da segunda metade do século XX, após a Segunda Guerra Mundial e a revisitação da ciência jurídica. É sabido que o direito civil tem inspiração direta no direito romano, que vigorou há mais de dois mil anos, dada a recepção de muitos dos seus institutos jurídicos, especialmente, na seara do direito obrigacional. Observa-se que no direito romano inexistia o instituto do bem jurídico utilizado na acepção atual, porquanto era utilizada a “coisa” - res - com diversas acepções: a) em sentido mais restrito, a coisa corporal, individual, juridicamente autônoma; b) em sentido mais amplo, qualquer objeto de um direito privado ou de um processo civil, ou ainda, o patrimônio1. Assim, no direito romano as relações jurídicas tinham por objeto as coisas como fruto de pretensões individuais, tornando-se incomparável com o bem jurídico hodierno. Ou seja, o instituto jurídico “coisa” atendia aos reclamos daquela sociedade da antiguidade. No Brasil, o Código Civil de 1916 trouxe o instituto “Bens” dentro de um capítulo próprio. A inserção do capítulo “Bens” dentro da parte geral do Código Civil de 1916, ensejou questionamentos doutrinários sobre a abrangência das “coisas” pelos “bens” ou a abrangência dos “bens” pelas “coisas” e, também, sobre a situação de serem ambos constituídos, exclusivamente, de valores econômicos. 1. KASER, Max. Direito privado romano. Trad. Samuel Rodrigues e Ferdinand Hämmerle. Lisboa: Fundação Calouste Gulbenkian, 1999, p. 121. DOUTRINA . DIREITO AMBIENTAL QUESTÕES CONTEMPORÂNEAS ENVOLVENTES DA CLASSIFICAÇÃO DOS BENS JURÍDICOS TRAZIDA NO CÓDIGO CIVIL E DO CONCEITO ABRANGENTE DO BEM AMBIENTAL 393 Silvio Rodrigues2, doutrinador e intérprete do Código Civil de 1916, explana que o direito só vai disciplinar as coisas com valor econômico, excluindo-se, assim, aquelas abundantes da natureza, como o ar atmosférico. Prossegue, acentuando que há diferença entre coisas - que é tudo o que não é humano -, e bens jurídicos que são as “coisas que, por serem úteis e raras, são suscetíveis de apropriação e contém valor econômico”. Ainda, na égide do Codex revogado, Washington de Barros Monteiro, civilista brasileiro da segunda metade do século XX, leciona que bens são os valores materiais ou imateriais que podem ser objeto de relação jurídica, enquanto que coisas pode se referir tanto à espécie quanto ao gênero de bens. O conceito de coisa para o direito é dado pela economia, e, por isso, “o ar atmosférico, a luz solar, e a água dos oceanos deixam de ser bens em sentido jurídico”. Os únicos bens não econômicos que o civilista admite são as emanações da personalidade natural, tais como a vida, a honra, a liberdade, a defesa e o nome. Destaca-se a lição de Pontes de Miranda3, considerado pela doutrina contemporânea como um dos maiores tratadistas (brasileiro) do século XX, que leciona que são coisas em sentido estrito os objetos corpóreos que podem ser objeto do direito. O conceito de bem jurídico, por sua vez, é de objeto de direito. O âmago da lição do jurista advém da constatação de que o “que não tem valor pode ser objeto de direito, inclusive de direito das coisas (coisa em senso estrito)”, eis que afasta o critério do valor econômico para a incorporação de bem no sistema jurídico. Exposto, anteriormente pela coautora 4: “Bens no sentido jurídico são as coisas materiais ou imateriais, apreciáveis sob o ponto de vista econômico e que podem ser objetos de uma relação ou situação jurídica; ou ainda, as coisas passíveis de avaliação pecuniárias (uma peça de roupa, um carro, um ônibus, uma linha de telefone, um pouco comercial), podendo compor este rol, interesses protegidos juridicamente”. No entender de Nelson Nery Jr. e Rosa Maria de Andrade Nery5: “Bem é tudo quanto possa ser desejado e cobiçado pelos homens e protegido e tutelado pelo direito, quer 2. RODRIGUES, Silvio. Direito civil. 26. ed. São Paulo: Saraiva, 1996, p. 109-110, v. 1. 3. PONTES DE MIRANDA. Tratado de direito privado. 2. ed. Campinas: Bookseller, 2000, p. 38-52, v. 2. 4.VILLAS BÔAS, Regina Vera, Perfis dos conceitos de Bens Jurídicos. (In) Revista do Direito Privado. RDPriv 37/2009 ·jan. – mar./2009. p. 1314. 5. NERY JR., Nelson. NERY, Rosa Maria de Andrade. Código Civil comentado. 6.ed. São Paulo: RT, 2008, p.223. 394 REVISTA DO INSTITUTO DOS ADVOGADOS DE SÃO PAULO v. 35, JANEIRO - JUNHO 2015 se tratem de coisas materiais, quer de bens imateriais, quer componham aquilo que a linguagem coloquial se usa explicar como patrimônio de alguém”. À luz do Código Civil de 2002 - CC, Maria Helena Diniz6, citando ensinamento de Agostinho Alvim, afirma que bens são as coisas matérias ou imateriais com valor econômico, podendo ser objeto de relação jurídica, excluindo-se do direito as coisas como “a luz solar, o ar atmosférico, a água do mar etc.”, “porque não há nenhum interesse econômico em controlá-lo”. As coisas, segundo a autora, são o gênero de tudo que não seja o homem, enquanto os bens são coisas úteis e suscetíveis de apropriação. Mais recentemente, para demonstrar a época de modificação de paradigmas, especialmente no tocante a antiga afirmação de que somente o interesse econômico era critério de incorporação de bens jurídicos, quiçá, correto para o direito civil, transcreve-se lição de Maria Helena Diniz7, in verbis: “Fácil é perceber que o bem ambiental não é res nullius, por ser, diante do comando constitucional, uma res communiomnium. A sua titularidade é do povo. O meio ambiente sadio e ecologicamente equilibrado é bem de uso comum do povo, não integrando o patrimônio particular de qualquer pessoa física ou jurídica”. Pablo Stolze Gagliano e Rodolfo Pamplona Filho8averbam que bem jurídico é o objeto de direitos subjetivos, com ou sem valor econômico. Coisa, por sua vez, são os objetos corpóreos, na mesma senda da doutrina alemã, obtemperam os referidos juristas. Flávio Tartuce9 averba que coisa seria o gênero que abarcaria tudo que não é humano, enquanto que os bens seriam espécie de coisas com interesse econômico ou jurídico, passíveis de apropriação. Segundo afirma Francisco Amaral10 finalidade de qualquer classificação é separar em grupos e espécies a que se aplicam as mesmas regras jurídicas, admitida a possibilidade de cada espécie ter sua própria disciplina legal. 6. DINIZ, Maria Helena. Curso de direito civil. 27. ed. São Paulo: Saraiva, 2010, p. 2010, p. 337, v. 1. 7. DINIZ, Maria Helena. O estado atual do biodireito. 6. ed. São Paulo: Saraiva, 2009, p. 723. 8. GAGLIANO, Pablo Stolze. PAMPLONA FILHO, Rodolfo. Novo curso de direito civil. 2. ed. São Paulo: Saraiva, 2002, p. 258-261, v. 1. 9.TARTUCE, Flávio. Direito civil. 3. ed. São Paulo: Método, 2007, p. 262, v. 1. 10. AMARAL, Francisco. Direito civil. 7 . ed. Rio de Janeiro: Renovar. 2008. p.349, v. 1. DOUTRINA . DIREITO AMBIENTAL QUESTÕES CONTEMPORÂNEAS ENVOLVENTES DA CLASSIFICAÇÃO DOS BENS JURÍDICOS TRAZIDA NO CÓDIGO CIVIL E DO CONCEITO ABRANGENTE DO BEM AMBIENTAL 395 Já afirmado, anteriormente pela coautora11 que a doutrina cuida, inicialmente, das coisas gerais, das coisas e dos bens (bens corpóreos e incorpóreos; coisas materiais e imateriais), tendo em mira a revelação de perfis adequados à satisfação dos interesses jurídicos das sociedades contemporâneas. Bens corpóreos ou coisas são os valores materiais, assim entendidos, aqueles que são dotados de existência física. São aqueles considerados tangíveis, porque podem ser perceptível pelos sentidos do homem. Exemplos: gás, eletricidade, uma máquina fotografia. Bens incorpóreos são os valores imateriais, que só podem ser compreendidos pelo intelecto do homem. São os que têm existência abstrata. Exemplos: liberdade, honra, direitos da personalidade, da propriedade intelectual entre outros que, apesar de não possuírem existência material podem ser objeto de direito, numa relação ou situação jurídica estabelecida. Vale esclarecer que a diferença entre bens corpóreos e incorpóreos reside no fato de que alguns institutos só se aplicam aos primeiros. Regra geral, os direitos reais têm por objetivo bens corpóreos. E quanto à transferência, os corpóreos são objeto de compra e venda, doação ou troca, enquanto que os incorpóreos, no caso, os direitos, apenas de cessão. É imperioso notar que persiste em menor intensidade a visão eminentemente econômica dos bens e coisas no direito privado. Entendemos como bem jurídico o objeto do direito, não se confundindo com as coisas, que são bens corpóreos. Evidencia-se, de imediato, que o Código Civil vigente, no capítulo dos bens, perdeu a oportunidade ímpar de adequar as normas privadas à modernidade (e a pós-modernidade), inclusive, para concretizar com exatidão a Constituição Federal. Os avanços foram extremamente tímidos em relação ao Código Civil de 1916. O exemplo mais emblemático foi ignorar os animais tratando-os no contexto das “coisas móveis” (semoventes), enquanto que nos países com o direito civil mais avançado, os animais vêm elencados fora do contexto dos móveis. Ao lado deste aspecto, não é possível olvidar o célebre livro de Alf Ross12 “Tû-tû”, no qual o jurista dinamarquês utiliza da expressão “tû-tû” como referência à conduta ilícita praticada por qualquer dos membros de uma tribo primitiva de uma ilha remota. Para qualquer ato ilícito, os indígenas diziam que o infrator estava impregnado pela transgressão, utilizando a palavra “tû-tû” para tal fim. Alf Ross, no final do interessantíssimo estudo, explica que a tese antropolológica 11. VILLAS BÔAS, Regina Vera. Op. cit., p.1315. 12. ROSS, Alf. Tû-tû. Trad. Edson Bini. São Paulo: Quartier Latin, 2004. 396 REVISTA DO INSTITUTO DOS ADVOGADOS DE SÃO PAULO v. 35, JANEIRO - JUNHO 2015 citada como fonte de pesquisa da tribo primitiva é fictícia, servindo para ilustrar que no Direito muitas vezes são utilizados conceitos e institutos inúteis. A crítica de Ross era direcionada mais precisamente contra o conceito de direito subjetivo, por entendê-lo prescindível ao funcionamento do sistema jurídico. O pensamento de Ross serve de advertência prévia ao estudo dos bens no Código Civil, pois, parece-nos, que por amor à tradição, abrigou-se certo institutos à moda “tû-tû” no novel Código Civil. A título de ilustração, cita-se a distinção prevista no artigo 89 do Código Civil entre bens singulares e coletivos que não revela interesse prático, inexistindo previsões semelhantes no direito comparado, tendo sido afastada intencionalmente a inclusão desta norma, desde o projeto de Clóvis Beviláqua que resultou no Código Civil de 191613 A seguir, apresenta-se uma breve exposição sobre as diversas categorias de bens previstos no Código Civil, bem como sobre o bem de família, não inserto na parte geral do Código Civil e que tem previsão em legislação extravagante, e sobre o bem ambiental, que não tem previsão expressa no Código Civil, apesar de ser tutelado em diversas normas, como é o caso, por exemplo, do art. 1.228 do CC14. 2. DOS BENS CONSIDERADOS EM SI MESMOS Os bens considerados em si mesmos são aqueles examinados individualmente, observados “per se”. São eles: imóveis e móveis; fungíveis e infungíveis; consumíveis e inconsumíveis; divisíveis e coletivos. 2.1. DOS BENS IMÓVEIS Não é exagero dizer que os bens imóveis são o centro da atenção das normas do Código Civil em comparação com os bens móveis, dada às peculiaridades necessárias a esta categoria de bens. Por exemplo: a transmissão da propriedade imóvel é formal; as ações relacionadas a imóveis têm competência processual no local da coisa; prazos mais 13. TEPEDINO, Gustavo. BARBOZA, Heloisa Helena. MORAES, Maria Celina Bodin. Código Civil interpretado conforme a Constituição da República. 2. ed. Rio de Janeiro: Renovar, 2007, p. 189, v. 1. 14. Código Civil. Art. 1.228. O proprietário tem a faculdade de usar, gozar e dispor da coisa, e o direito de reavê-la do poder de quem quer que injustamente a possua ou detenha. § 1o O direito de propriedade deve ser exercido em consonância com as suas finalidades econômicas e sociais e de modo que sejam preservados, de conformidade com o estabelecido em lei especial, a flora, a fauna, as belezas naturais, o equilíbrio ecológico e o patrimônio histórico e artístico, bem como evitada a poluição do ar e das águas. DOUTRINA . DIREITO AMBIENTAL QUESTÕES CONTEMPORÂNEAS ENVOLVENTES DA CLASSIFICAÇÃO DOS BENS JURÍDICOS TRAZIDA NO CÓDIGO CIVIL E DO CONCEITO ABRANGENTE DO BEM AMBIENTAL 397 dilatados para a ação de usucapião; etc. Bens imóveis abrangem o solo e sua superfície, acessórios e adjacências naturais, além de tudo quanto lhes incorporar naturalmente, e também, os que a lei considerar. Não há dificuldade em nenhuma pessoa em dizer o que é um bem imóvel previsto no artigo 79 do CC. A questão fica mais intrincada quando o Código Civil prescreve que também são bens imóveis tudo o que for incorporado “natural ou artificialmente”. Um exemplo que esclarece a disposição normativa: incorpora-se natural ou artificialmente as árvores, plantas, etc que estiverem presas por raízes, plantadas pelo ser humano ou não, que ao serem removidas sofrem destruição. Uma questão polêmica a ser apreciada diz respeito à classificação e localização jurídica do espaço aéreo e do subsolo, qual seja: ambos fazem parte do bem imóvel? 1) Corrente favorável: Flávio Tartuce15 afirma que: “Os bens imóveis por natureza abrangem o solo com sua superfície, o subsolo e o espaço aéreo”. 2) Corrente desfavorável: Gustavo Tepedino, acompanhado por outros doutrinadores, leciona que: “Abandonou o legislador a menção ao espaço aéreo, bem como ao subsolo, que no regime anterior já fora objeto de numerosas restrições”16. A respeito da questão colocada, entende-se que o bem imóvel implica uma autorização do uso do espaço aéreo e do subsolo, desde que não haja norma que traga vedação. Exemplo: proibição de construção de prédios à beira mar em ilhas em razão de norma municipal vedando a obra; proibição de construção a determinada profundida de garagem no subsolo em razão da presença de lençol freático ou aquífero. Sobre a questão, não se pode perder de vista os artigos 1228 e 1229 do CC. Dispõe o art. 1.229, que “a propriedade do solo abrange a do espaço aéreo e subsolo correspondentes, em altura e profundidade úteis ao seu exercício, não podendo o proprietário opor-se às atividades que sejam realizadas, por terceiros, a uma altura ou profundidade tais, que não tenha ele interesse legítimo em impedi-las”. Sobre os recursos minerais: art. 20, inciso IX e artigo 176 da CF dispõem que são de propriedade da União, o solo ou subsolo. Não bastasse, o artigo 80 do CC assegura que tanto as ações relacionadas com 15. TARTUCE, Flávio. Direito civil. 3. ed. São Paulo: Método, 2007, p. 263, v. 1. 16. TEPEDINO, Gustavo. BARBOZA, Heloisa Helena. MORAES, Maria Celina Bodin. Código Civil interpretado conforme a Constituição da República. 2. ed. Rio de Janeiro: Renovar, 2007, p. 178, v. 1 398 REVISTA DO INSTITUTO DOS ADVOGADOS DE SÃO PAULO v. 35, JANEIRO - JUNHO 2015 imóveis quanto a sucessão aberta (inventário ou arrolamento) sejam considerados bens imóveis, para garantir maior segurança jurídica. Lembra-se, ainda, que a sucessão pode ser aberta extrajudicialmente, sem prejuízo de caracterizar-se bem imóvel. Por derradeiro, o artigo 81 do CC diz que não perde a característica de imóvel as edificações que separadas do solo conservem esta sua natureza. É o exemplo das casas pré-construídas que removidas do solo permanecem hábeis para serem recolocadas em outro local. Ou, ainda, os materiais extraídos da reforma de propriedade imóvel, desde que sejam reutilizados na propriedade, estes não perdem a característica de bem imóvel. 2.2. DOS BENS MÓVEIS Os móveis suscetíveis de movimento próprio abrangem os semoventes (animais) e objetos inanimados que podem locomover-se sem prejuízo da sua essência ou do seu valor econômico e coletivo. A novidade contida no texto do artigo 82 diz respeito à expressão “sem alteração da substância ou da destinação econômica – social” do bem. O artigo 83 do CC, inciso I - por opção da decisão política, que resultou o texto de referida norma jurídica -, insere a energia, que possui valor econômico, no rol dos bens móveis. Os incisos II e II do artigo 83, por sua vez, mantém regra já consagrada no Código Civil de 1916. O artigo 84 do CC mantém a mesma lógica do artigo 81 do CC, pois enquanto os materiais para a construção não forem utilizados permanecem na situação de bens móveis. Já afirmado pela coautora17 que a doutrina reconhece a qualidade de imóvel ao bem, enquanto não for empregado na construção, admitindo inclusive que pode ser utilizado na construção de outro prédio, extraindo-se, a contrario sensu, que a separação em caráter permanente dos materiais, relativamente ao prédio, assegura-lhe a mobilidade. A respeito do material proveniente de demolição que tenha por destinação a construção de outro prédio, entende o Superior Tribunal de Justiça que o material conservará a qualidade de bem móvel, enquanto não utilizado (STJ – RESP 327.562 – Rel. Min, Humberto Gomes de Barros, DJ 11.09.2001). 2.3. DOS BENS FUNGÍVEIS E CONSUMÍVEIS A definição de bens fungíveis do Código Civil é de uma clareza meridiana, vindo de 17. VILLAS BÔAS. Regina Vera. Op.cit., p.1321. DOUTRINA . DIREITO AMBIENTAL QUESTÕES CONTEMPORÂNEAS ENVOLVENTES DA CLASSIFICAÇÃO DOS BENS JURÍDICOS TRAZIDA NO CÓDIGO CIVIL E DO CONCEITO ABRANGENTE DO BEM AMBIENTAL 399 uma tradição que tem origem no direito romano. É relevante nos dias atuais, pois viabiliza a formação de regimes jurídicos diversos para os bens fungíveis em contraposição aos infungíveis. Note-se que o Código Civil não esclarece o que são os bens infungíveis, que podem ser inferidos pela interpretação contrario sensu. Maria Helena Diniz18 define os bens infungíveis como “os que, pela sua qualidade individual, têm um valor especial, não podendo, por este motivo, ser substituídos sem que isso acarrete a alteração do seu conteúdo”. Já trazido pela coautora Regina Vera Villas Bôas19 acrescenta que a “fungibilidade se refere aos móveis que podem ser substituídos por outro da mesma espécie, qualidade e quantidade, o que resulta da qualidade física das coisas que se contam, medem ou se pesam”. Exemplos de bens fungíveis: compra de determinados quilos de arroz ou café, ou cabeças de gado, sem fazer exigências específicas. Quando o Poder Público nas diversas unidades da federação necessitam licitar (procedimento administrativo para o Poder Público realizar a aquisição ou venda de bens) busca o melhor preço do arroz, café ou carne, mas, não vai se preocupar se é o produto X ou Y, demonstrando a fungibilidade do bem. O dinheiro é o bem fungível por excelência, o mais constante objeto das obrigações de dar coisa incerta. Denomina-se quantia a coisa incerta (fungível) que for qualidade de moeda corrente20. Constata-se, conforme já demonstrado no capítulo 2.1, que os bens imóveis, por sua natureza, são infungíveis, devido às peculiaridades do regime jurídico destes bens. Nelson Nery Jr.21 leciona que o “as coisas infungíveis são as coisas que em determinada relação jurídica são consideradas tendo em vista sua específica individualidade”. Na prestação de serviços, há gritante diferença entre o serviço prestado como infungível ou fungível. A título de ilustração, se for contratado um espetáculo musical para um aniversário, sem identificar o cantor, poderá o serviço ser prestado por qualquer artista. Mas, se ficar convencionado que será o artista X o serviço passa a ser infungível. É interessante observar que na seara das relações trabalhistas o assunto está em voga 18. DINIZ, Maria Helena. Curso de direito civil. 27. ed. São Paulo: Saraiva, 2010, p. 2010, p. 351, v. 1. 19. VILLAS BÔAS. Regina Vera. op.cit.p.1322. 20.NERY JUNIOR, Nelson. NERY, Rosa Maria de Andrade. Código civil comentado. 10 ed. São Paulo: RT, 2013, p.343. 21. NERY JR., Nelson. NERY, Rosa Maria de Andrade. Op. cit. 400 REVISTA DO INSTITUTO DOS ADVOGADOS DE SÃO PAULO v. 35, JANEIRO - JUNHO 2015 com a legislação sobre terceirização. O Código Civil entende que bem consumível é o bem móvel, cujo uso implica a destruição da própria substância. Ressalte-se que o bem consumível é para a norma jurídica, podendo o mundo do direito considerar consumíveis inúmeros bens, antes não consumíveis. Exemplo: tanto um alimento é bem consumível, quanto um livro exposto à venda em uma livraria. Por fim, não se pode olvidar que os bens consumíveis não são necessariamente fungíveis. Exemplo: uma obra de arte rara colocada a venda é consumível, mas não é fungível. 2.4. DOS BENS DIVISÍVEIS O legislador definiu os bens divisíveis, vinculando a matéria à destinação do bem e ao valor econômico. Exemplificam essa categoria de bens: uma saca de milho, arroz, algodão; um lote de terreno; um sitio; uma pedra preciosa. Prescreve o Código Civil, no artigo 87: “Bens divisíveis são os que se podem fracionar sem alteração na sua substância, diminuição considerável de valor, ou prejuízo do uso a que se destinam”, no artigo88 “Os bens naturalmente divisíveis podem tornar-se indivisíveis por determinação da lei ou por vontade das partes”. O critério acolhido pelo Código Civil para dizer quais são os bens divisíveis é eminentemente econômico e busca à sua destinação. Pode abranger bens corpóreos e incorpóreos (artigo 258 do CC). A indivisibilidade pode decorrer de determinação da lei ou da vontade das partes. Questão polêmica: na hipótese da lei municipal proibir o parcelamento do solo, ou seja, a divisão de bem imóvel em propriedades menores, pode haver usucapião tornando o bem menor, violando a indivisibilidade legal? A decisão ainda não está definitivamente solidificada pelo Supremo Tribunal Federal22, embora os votos prolatados pelos senhores Ministros sejam favoráveis à tese da possibilidade da usucapião, conforme INFORMATIVO Nº 782: “ Título Usucapião de imóvel urbano e norma municipal de parcelamento do solo – 3 PROCESSO RE - 422349 - ARTIGO O Tribunal retomou julgamento de recurso extraordinário, afetado pela 1ª Turma, em que se discute a possibilidade de usucapião de imóvel urbano em município que estabelece lote mínimo de 360 m2 para o parcelamento do solo. No caso, os 22. Extraído da internet, no sítio: www.stf.jus.br. Acesso em 12 maio 2015. DOUTRINA . DIREITO AMBIENTAL QUESTÕES CONTEMPORÂNEAS ENVOLVENTES DA CLASSIFICAÇÃO DOS BENS JURÍDICOS TRAZIDA NO CÓDIGO CIVIL E DO CONCEITO ABRANGENTE DO BEM AMBIENTAL 401 recorrentes exercem, desde 1991, a posse mansa e pacífica de imóvel urbano onde edificaram casa, na qual residem. Contudo, o pedido declaratório, com fundamento no art. 183 da CF (“Aquele que possuir como sua área urbana de até duzentos e cinquenta metros quadrados, por cinco anos, ininterruptamente e sem oposição, utilizando-a para sua moradia ou de sua família, adquirir-lhe-á o domínio, desde que não seja proprietário de outro imóvel urbano ou rural”), para que lhes fosse reconhecido o domínio, fora rejeitado pelo tribunal de origem. A corte local entende que o aludido imóvel teria área inferior ao módulo mínimo definido pelo Plano Diretor do respectivo município para os lotes urbanos. Consigna não obstante que os recorrentes preencheriam os requisitos legais impostos pela norma constitucional instituidora da denominada “usucapião especial urbana” - Informativo 772. Em voto-vista, o Ministro Luiz Fux acompanha o Ministro Dias Toffoli (relator), para prover o recurso, afirmando que o recorrente preencheria todos os requisitos constitucionais para obter o direito pretendido. O relator, por sua vez, reafirma a tese anteriormente proferida, com alterações, para assentar o seguinte: “preenchidos os requisitos do art. 183 da Constituição Federal, o reconhecimento do direito à usucapião especial urbana não pode ser obstado por legislação infraconstitucional que estabeleça módulos urbanos na respectiva área, nem pela existência de irregularidades no loteamento em que situado o imóvel”. Em seguida, pediu vista o Ministro Marco Aurélio. RE 422349/RS, rel. Min. Dias Toffoli, 22.4.2015. (RE-422349)”. 2.5. DOS BENS SINGULARES E COLETIVOS Nas palavras da coautora23 exibida anteriormente coisas (ou bens) singulares são aquelas consideradas separadamente em sua individualidade, embora reunidas; são passiveis de separação, porque podem se apresentar de maneira independente, são autônomas em relação às outras coisas da reunião. A crítica aos bens singulares foi feita na introdução deste, em razão da ausência de utilidade prática. A marca característica da universalidade de fato é a visão conjunta dos bens. Exemplo: um navio é um bem singular, enquanto que uma frota é uma universalidade de fato; uma árvore é um bem singular, enquanto que uma floresta é uma universalidade de fato. Os requisitos da universalidade de fato consistem na pertinência à mesma pessoa e na destinação unitária. Explica Nelson Nery Jr. e Rosa Maria de Andrade Nery universalidade é a pluralidade 23. VILLAS BÔAS, Regina Vera. Op.cit.,p.1325. 402 REVISTA DO INSTITUTO DOS ADVOGADOS DE SÃO PAULO v. 35, JANEIRO - JUNHO 2015 de coisas autônomas – ainda que somente – duas que, nada obstante conservarem sua identidade são unificadas com vistas a cumprir destinação em favor de interesses dos sujeitos que exercem titularidade de direitos sobre as coisas que a compõem. Acrescentam, ainda, que a universalidade é também de coisas coletivas chamadas pelos romanos corpora ex distantibus, distinguindo-se das coisas compostas. Um aspecto relevante da universalidade de fato advém do fato de se tratar de uma categoria lógica, pois os bens que a formam podem ser objeto de relações jurídicas próprias. A universalidade direito consiste no complexo de relações jurídicas, de uma pessoa, com valor econômico, corpóreas ou incorpóreas. A ideia central é a do conjunto e não das coisas que a formam. Exemplo: STJ – “O FGTS é uma universalidade de direito (CC, art. 54, II) constituída pela agregação dos saldos em contas vinculadas. Tais saldos, uma vez agregados, perdem a individualidade, tornando-se cota ou frações ideais. Os trabalhadores donos das contas agregadas, são cotistas (condôminos) do fundo”. (STJ – ERESP 286.020, Rel. Min. Humberto Gomes de Barros, DJ 09.05.2002). 3. DOS BENS RECIPROCAMENTE CONSIDERADOS São examinados, uns em face de outros bens. Podem ser principais ou acessórios e se referem às coisas corpóreas ou incorpóreas. Principal é aquele bem que preenche, per se, seus fins e suas funções econômicas, o que implica ele existir sobre si, abstrata e concretamente, enquanto que bem acessório exerce uma função e realiza um fim, atrelado ao bem principal. Coisa principal nas palavras de Nelson Nery Júnior e Rosa Maria de Andrade Nery24: “são aquelas cuja existência ou sorte jurídica não esta na dependência de outras coisas, ou seja, as coisas principais não estão vinculadas a outras por laços de ordem física, mecânica, econômica, jurídica ou estética, ou por qualquer outro liame que faça suportar sua dependência com outra”. Na doutrina da coautora, exibida anteriormente, acessório é o bem cuja existência é subordinada a existência do principal. Ele não possui valoração autônoma, como possui o bem principal. Observa-se, na presente situação, a aplicação do princípio da gravitação jurídica, ou seja, desde o direito romano vigora o princípio de que o acessório segue o principal, que informa a regra “accessorium sequitur principale”. É uma regra central de todo o Código 24. NERY JUNIOR, Nelson. Op. cit., p.346 DOUTRINA . DIREITO AMBIENTAL QUESTÕES CONTEMPORÂNEAS ENVOLVENTES DA CLASSIFICAÇÃO DOS BENS JURÍDICOS TRAZIDA NO CÓDIGO CIVIL E DO CONCEITO ABRANGENTE DO BEM AMBIENTAL 403 Civil. Exemplo: a nulidade de um contrato de locação implica a nulidade da fiança, pois é obrigação acessória da obrigação principal. O artigo 93 do CC traz o instituto das pertenças, uma espécie de bem acessório que tem especial destaque, como é o caso da escultura incorporada a um imóvel. O disposto no artigo 94 do CC rompe o princípio da gravitação jurídica, no que diz respeito às pertenças, salvo se o contrário resultar da lei, da manifestação da vontade ou das circunstâncias do caso. O artigo 95 do CC trata dos frutos e produtos ressaltando que podem ser objeto de negócio jurídico. Frutos são utilidades que se retiram do bem principal sem que diminuam a quantidade, pois são produzidos periodicamente; enquanto que os produtos são utilidades que se retiram do bem principal, diminuindo a quantidade. Exemplo de fruto: a colheita de plantação em imóvel; exemplo de produto: a extração de areia em propriedade imóvel. Os frutos podem ser classificados, ainda, como pendentes, percipiendos e percebidos ou colhidos. Esta última classificação tem grande relevância prática, no que diz respeito, por exemplo, à hipótese do possuidor de boa-fé. O artigo 96 do CC traz o instituto das benfeitorias que consistem nas obras ou gastos feitos no bem principal, voluptuárias, úteis ou necessárias. É interessante observar que as categorias voluptuárias, úteis ou necessárias devem ser apreciadas no caso concreto, porquanto uma piscina que pode ser considerada uma benfeitoria voluptuária em um loteamento fechado de alto padrão pode ser classificada com benfeitoria útil, quando obrigatória a obra, devido às normas da associação de moradores. Nesse sentido, lembra-se que há quarenta anos, a garagem de veículos era benfeitoria voluptuária, enquanto atualmente pode ser considera útil. A regra básica é que o possuidor de boa-fé tem direito à indenização das benfeitorias úteis e necessárias. O art. 97 do CC veda que sejam consideradas benfeitorias os melhoramentos feitos no bem principal sem anuência do proprietário, possuidor ou detentor. 4. BEM PÚBLICO Bens públicos, segundo Hely Lopes Meirelles25, são todas as coisas, corpóreas ou incorpóreas, que pertençam, a qualquer título, as pessoas jurídicas da Administração 25. MEIRELLES, Hely Lopes. Direito administrativo brasileiro. 24. ed. São Paulo: Malheiros, 1999, p. 459. 404 REVISTA DO INSTITUTO DOS ADVOGADOS DE SÃO PAULO v. 35, JANEIRO - JUNHO 2015 Direta ou Indireta. Obtempera Celso Antonio Bandeira de Mello26 que bens públicos são todos aqueles que pertencem as pessoas jurídicas de direito público ou estejam afetados ao serviço público. O Código Civil conceitua o bem público na seguinte disposição normativa: “Art. 98. São públicos os bens do domínio nacional pertencentes às pessoas jurídicas de direito público interno; todos os outros são particulares, seja qual for a pessoa a que pertencerem”. Evidencia-se que a utilização da expressão “pessoas jurídicos de direito público interno” abarca os entes públicos da Administração Público direta e não todos os entes da indireta, a saber: a) direta: União, Estados, Municípios e Distrito Federal; b) indireta: autarquia, fundação de direito público, empresa pública, sociedade de economia mista e consórcio, sendo que estes últimos entes estão submetidos ao regime jurídico de direito privado, afastando, a priori, a ideia de bem público. A distribuição dos bens públicos é feita pela Constituição Federal expressamente para a União (artigo 20) e Estados (art. 26). Não há previsão expressa de um rol de bens para os Municípios e Distrito Federal, o que não prejudica os bens públicos destes entes federativos. O artigo 100 do Código Civil, ao preceituar que os bens de uso comum e de uso especial são inalienáveis, enquanto conservarem a sua qualificação traz garantia da mantença do patrimônio público, indispensável ao cumprimento do interesse público da sociedade. É interessante observar que a proibição da usucapião do bem público – móvel ou imóvel – decorre de expresso mandamento da Constituição Federal previsto nos artigos 182 (imóvel urbano) e 184 (imóvel rural). Não bastasse, o corolário da vedação da usucapião implica que os esbulhos aos bens públicos obstaculizam a posse velha ou nova, pois a situação jurídica, independentemente do decurso de tempo, será de mera ocupação indevida. Há hipóteses como o direito de moradia que podem excepcionar esta regra em virtude de expressa autorização legal para a ocupação do imóvel, atendidos os requisitos legais. Salta aos olhos que, diferentemente dos doutrinadores civilistas, os publicitas 26. MELLO, Celso Antonio Bandeira de. Curso de direito administrativo. 15. ed. São Paulo: Malheiros, 2003, p. 779. DOUTRINA . DIREITO AMBIENTAL QUESTÕES CONTEMPORÂNEAS ENVOLVENTES DA CLASSIFICAÇÃO DOS BENS JURÍDICOS TRAZIDA NO CÓDIGO CIVIL E DO CONCEITO ABRANGENTE DO BEM AMBIENTAL 405 não se prendem nas nuances da separação entre bens e coisas, pois bem é um gênero que abarca as diversas modalidades do domínio público. A despeito de uma aproximação do bem ambiental com o bem público em diversos ordenamentos jurídicos, inclusive no direito pátrio, uma dissecação minuciosa demonstra que não há semelhança na identidade do titular do domínio com os titulares do bem ambiental. 6. BEM DE FAMÍLIA O CC inseriu o bem de família voluntário no capítulo relacionado ao direito de família (arts. 1.711 a 1.722). Além disso, existe o bem de família legal decorrente da Lei 8.009/90. Trata-se de instituto jurídico que resguarda o único imóvel familiar utilizada para moradia, tornando-o um bem inalienável para fins de adimplemento de dívidas, resguardando o direito fundamental de moradia da entidade familiar. As exceções estão previstas na Lei 8.009/90. O bem de família demonstra a insuficiência da classificação dos bens no Código Civil de 2002, pois, sem dúvida, seria oportuno uma categoria dos bens inalienáveis, dado a ideal de sistematização e racionalidade que percorre a ideia de codificação. 7. BEM AMBIENTAL27 O Código Civil vigente, apesar de implicitamente reconhecer os bens ambientais como uma nova categoria de bens jurídicos, a ignora totalmente no capítulo dos “Bens”. É incontestável, todavia, que essa nova categoria de bens não se amolda nos bens privados, assim como não se encaixam nos bens públicos. Trata-se de bens difusos, é uma categoria nova de bens, cuja construção da dogmática está, apenas, se iniciando. No direito pátrio há um notável avanço na positivação dos direitos difusos, coletivos e individuais homogêneos no Código de Defesa do Consumidor como categorias de direito material: Dispõe o artigo 81que :“ A defesa dos interesses e direitos dos consumidores e das vítimas poderá ser exercida em Juízo individualmente, ou a título coletivo. Parágrafo único. A defesa coletiva será exercida quando se tratar de: I - interesses ou direitos difusos, assim entendidos, para efeitos deste Código, os transindividuais, de natureza indivisível, de que sejam titulares pessoas indeterminadas e ligadas por 27. O presente capítulo foi elaborado com base no livro: REMÉDIO JÚNIOR, José Ângelo. Direito ambiental minerário. Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2013. 406 REVISTA DO INSTITUTO DOS ADVOGADOS DE SÃO PAULO v. 35, JANEIRO - JUNHO 2015 circunstâncias de fato; II - interesses ou direitos coletivos, assim entendidos, para efeitos deste Código, os transindividuais de natureza indivisível de que seja titular grupo, categoria ou classe de pessoas ligadas entre si ou com a parte contrária por uma relação jurídica-base; III - interesses ou direitos individuais homogêneos, assim entendidos os decorrentes de origem comum”. Não sem razão, o mais insigne representante desta categoria de bens é o bem ambiental, consoante preceitua o artigo 225 da Constituição Federal: “Art. 225. Todos têm direito ao meio ambiente ecologicamente equilibrado, bem de uso comum do povo e essencial à sadia qualidade de vida, impondo-se ao Poder Público e à coletividade o dever de defendê-lo e preservá-lo para as presentes e futuras gerações”. O estudo pioneiro responsável pela consagração do bem ambiental é da lavra de Massimo Severo Giannini28 intitulado “Ambiente: reflexão sobre seus diversos aspectos jurídicos” do ano de 1973. O âmago do escólio de Massimo Severo Giannini29ressalta que os traços comuns dos bens ambientais não dizem respeito à propriedade; isto, aliás, consiste em questão neutra, pois: “Bens de domínio estatal ou de outras entidades territoriais, do patrimônio indisponível de um ente público, ou privado, podem ser igualmente declarados bens ambientais culturais (por exemplo, respectivamente, a costa marinha do domínio militar, edifício histórico transformado em escritório, colina paisagística de propriedade privada; assim como o vínculo de florestal pode referirse à propriedade privada, os quais simultaneamente podem estar compreendidos no perímetro de um parque natural). Por tal razão, o elemento identificador do bem ambiental é o regime jurídico. Massimo Severo Giannini30 leciona: “Os traços comuns do bem ambiental advém do regime jurídico. Todos os bens ambientais revelaram-se com função conservativa; a função se manifesta, segundo a doutrina – em ponto pacífico – como um vínculo de conservação da substância do bem”. No Brasil, o direito fundamental ao meio ambiente ecologicamente equilibrado tem por objeto de tutela o bem ambiental, cujo fundamento primordial é o artigo 225 da 28. Ressalte-se que o artigo foi recentemente compilado com outros estudos e reeditado na monumental obra “Escritos” do jurista italiano: GIANNINI, Massimo Severo.<<Ambiente>>saggio sui diversi suoi aspetti giuridici. In: GIANNINI, Massimo Severo.Scritti. Milano: Giuffrè, 2005, p. 445, v. 6. Tradução livre. 29. GIANNINI, Massimo Severo.Op. cit. p. 458. 30. GIANNINI, Massimo Severo.Op. cit. p. 458. DOUTRINA . DIREITO AMBIENTAL QUESTÕES CONTEMPORÂNEAS ENVOLVENTES DA CLASSIFICAÇÃO DOS BENS JURÍDICOS TRAZIDA NO CÓDIGO CIVIL E DO CONCEITO ABRANGENTE DO BEM AMBIENTAL 407 Constituição Federal, e, por conseguinte, o bem ambiental consiste no próprio objeto tutelado pelo direito fundamental ao meio ambiente ecologicamente equilibrado e essencial à sadia qualidade de vida. O bem ambiental, assim, é o meio ambiente ecologicamente equilibrado e essencial à sadia qualidade de vida. É um bem fundamental, comum, de titularidade difusa, em prol das gerações presentes e futuras. Evidencia-se que o bem ambiental é uma categoria que engloba os bens ambientais em espécie e estes têm como componentes os recursos ambientais. Não se pode, assim, separar de um lado o bem ambiental (bem intangível) e, de outro, os recursos naturais (bens tangíveis). O bem ambiental é um instituto bastante abrangente que impõe exatamente o meio ambiente ecologicamente equilibrado ao prescrever uma gestão racional dos recursos ambientais, que são seus componentes. Dissociar do bem ambiental dos recursos naturais gera a perda da própria essencialidade do direito ambiental aos próprios componentes do meio ambiente. A par disso, é inegável que por se tratar o bem ambiental de uma categoria macro, existem suas especificações em bens ambientais, que não deixam de ser parte da categoria maior. O bem ambiental é complexo na sua composição, não sendo unitário na sua formação. É equivocado, outrossim, tentar adentrar na questão da titularidade do bem ambiental para excluir a titularidade do bem público ou privado, pois a perspectiva essencial do bem ambiental é função ecológica e não a exclusão da titularidade pública ou privada do bem. O cerne da questão é que o bem público ou privado pode estar vinculado à função ambiental, sem que exclua a titularidade pública ou privada deste bem, embora permitindo surgir uma nova categoria de titulares deste mesmo bem, sob prisma diverso, os titulares indeterminados e ligados por circunstâncias de fato do meio ambiente. Faz-se esta reflexão para admitir uma dupla titularidade do domínio público ou privado e deste mesmo bem que está gravado com a funcionalidade ambiental uma titularidade indeterminada e interligada por circunstância de fato. No sistema jurídico brasileiro, hodiernamente, há um direito ao meio ambiente ecologicamente equilibrado na Constituição Federal, no artigo 225, caput, e na década de 80, já existia na Lei da Política Nacional do Meio Ambiente a previsão do conceito jurídico de meio ambiente. Assim, admite-se três categorias distintas e indissociáveis, sendo que a relação de englobamento, do maior ao menor, pode ser exposta na seguinte sequência: bem ambiental -> bens ambientais -> recurso ambiental ou natural. 408 REVISTA DO INSTITUTO DOS ADVOGADOS DE SÃO PAULO v. 35, JANEIRO - JUNHO 2015 O bem ambiental, repise-se, é o objeto do direito fundamental ao meio ambiente sadio e ecologicamente equilibrado. É uma autorização do sistema jurídico para a existência de propriedade pública ou privada, embora vinculada a uma funcionalidade ambiental, em prol das presentes e futuras gerações, mas sempre condicionada a busca da mantença do meio ambiente ecologicamente equilibrado responsável pela sadia qualidade de vida. São regimes jurídicos diversos incidentes sobre uma mesma coisa. O bem ambiental, paradoxalmente, sempre é artificial, ou seja, é criado pelo direito, não nasce por si só na natureza. É o reconhecimento pelo direito de uma proteção especial gravando-o de bem ambiental por suas características próprias que lhe recomendam uma proteção especial no sistema jurídico. Por obviedade, são os elementos do ecossistema e o próprio ecossistema que são o aspecto material do bem ambiental, ressaltando-se sempre o parâmetro de meio ambiente ecologicamente equilibrado à sadia qualidade de vida, para evitar-se incorrer em abstração excessiva desfavorável à tutela jurídica do objeto em comento. Ou seja, é possível ser titular do domínio de bem e este estar limitado na sua utilização pública ou privada em prol de direito difuso, cujo titular é a humanidade e tem por objeto o meio ambiente elevado ao patamar de bem jurídico. Afirma-se, então, que é possível ser proprietário de bem, que também seja onerado como bem ambiental. A consequência de ser bem ambiental advém da limitação do seu uso a uma função ambiental. Exemplos concretos poderão afastar a aridez da teoria: uma floresta de mata atlântica localizada dentro de uma propriedade privada, faz com que esta última seja limitada no seu uso e gozo, não impedindo que o acessório (a floresta) tenha como titular o proprietário do imóvel, mas, obstando que seu gozo e uso sejam feitos de modo diverso do que autorizam as normas do direito ambiental. Por isso, jargões como a “floresta amazônica é patrimônio da humanidade”, ou, talvez ainda ocorra em um futuro não distante os “recursos minerais do Brasil são patrimônio da humanidade”, são equivocadas, pois o proprietário é quem a Constituição Federal do Estado Socioambiental brasileiro diz que é (pelo menos, em tese!). Assim, os olhares advindos do regime de direito administrativo/civil são diversos do olhar do direito ambiental sobre o mesmo bem, pois são prismas diversos de observação. A primeira consequência do nosso entendimento consiste na contrariedade da alegação de que o artigo 99, inciso I do Código Civil não poderia prever como bens públicos os bens de uso comum do povo tais como os rios e lagos. Afirma-se, ainda, em sentido contrário ao nosso pensamento, que a própria Constituição Federal, nos artigos DOUTRINA . DIREITO AMBIENTAL QUESTÕES CONTEMPORÂNEAS ENVOLVENTES DA CLASSIFICAÇÃO DOS BENS JURÍDICOS TRAZIDA NO CÓDIGO CIVIL E DO CONCEITO ABRANGENTE DO BEM AMBIENTAL 409 20 e 26, mereceria reparo ao elencar como bens de domínio público os rios, lagos, águas subterrâneas, recursos naturais da plataforma continental, e, especificamente, de propriedade da União os recursos minerais presentes no solo e subsolo, pois a União seria uma gestora dos referidos bens e não detentora da titularidade do bem. Não se compartilha da interpretação referida, porquanto: 1) o Código Civil, neste particular, não é inconstitucional, eis que se admite que o bem ambiental tenha titularidade pública ou privada, não se confundindo com a limitação ínsita ao bem por força da funcionalidade da proteção do meio ambiente; 2) a Constituição Federal não merece reparo na sua expressa letra da norma (verbi gratia, artigo 20, inciso IX), pelos mesmos motivos já declinados quanto a constitucionalidade do Código Civil, ou seja, admitese a titularidade dos bens naturais, sendo que o ônus oriundo do bem ambiental é de tornar obrigatório o atendimento da função ambiental do bem jurídico. Observe-se que a doutrina costuma qualificar o bem ambiental de indisponível, adéspota, unitário. Ressalvando a questão da característica da unidade do bem ambiental, que é um tema deveras polêmico, pode-se perfilhar o entendimento de que é indisponível e adéspota. Mas, a questão merece melhor aprofundamento, pois, como se pode admitir a exploração sustentável dos recursos ambientais não renováveis? De fato, o bem ambiental e sua especificação bem ambiental em espécie é indisponível e adéspota, pois significa o conjunto de componentes ambientais correlacionados necessários a garantia do meio ambiente ecologicamente equilibrado à sadia qualidade de vida. É a visão macro do bem ambiental. Não se pode comercializar o bem ambiental em espécie pois é parte integrante do bem ambiental. Mas, quando se olha apenas os componentes do bem ambiental em espécie, encontram-se os recursos ambientais, e, daí, a ideia da indisponibilidade e da adésposta muda de semblante, porquanto o próprio sistema normativo vai prever mecanismos procedimentais para permitir que o ser humano utilize e se aproprie destes recursos naturais. 8. CONSIDERAÇÕES FINAIS À guisa de finalizar, demonstrou-se ao longo do estudo que o capítulo dos “Bens” no Código Civil vigente nasceu apegada as longevas tradições do direito civil, mas, olvidou uma necessária atualização e sistematização dos institutos jurídicos dos “bens”, imprescindível a ideia de codificação. É certo, entrementes, que o instituto jurídico “bem ambiental” exorbita os limites dos regimes jurídicos do direito público e do direito privado, eis que inserto na categoria 410 REVISTA DO INSTITUTO DOS ADVOGADOS DE SÃO PAULO v. 35, JANEIRO - JUNHO 2015 dos bens difusos. De todo modo, seria oportuno, ao menos, a menção expressa entre os demais bens da parte geral do Código Civil, evitando equívocos recorrentes da doutrina e da jurisprudência que não conseguem concretizar uma visão horizontal e transversal imprescindível ao bem ambiental que percorre todo o sistema jurídico. Outro capítulo dos “Bens” no Código Civil vigente, que tem muito do “tû-tû” de Alf Ross e pouco do papel de diretriz para as condutas humanas que deveria nortear todo e qualquer sistema jurídico, é o capítulo sobre os “Bens públicos”, porque um tanto dissociado da realidade prática do regime jurídico de direito público. Estas foram as breves anotações sobre os “Bens” no Código Civil vigente, que tiveram o escopo de ensejar reflexões contínuas sobre a função do objeto da norma jurídica e a sua atualidade no contexto contemporâneo, a partir do novel direito comum da sociedade brasileira. 9. REFERÊNCIAS AMARAL, Francisco. Direito civil. 7 . ed. Rio de Janeiro: Renovar. 2008, v. 1. DINIZ, Maria Helena. Curso de direito civil. 27. ed. São Paulo: Saraiva, 2010, p. 2010, v. 1. DINIZ, Maria Helena. O estado atual do biodireito. 6. ed. São Paulo: Saraiva, 2009. GAGLIANO, Pablo Stolze. PAMPLONA FILHO, Rodolfo. Novo curso de direito civil. 2. ed. São Paulo: Saraiva, 2002, p. 258-261, v. 1. 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Violência Ética e Socioambiental: macula dignidade da condição humana e desafia a proteção dos interesses difusos e coletivos, in Obra Coletiva” Direito e a Dignidade Humana: Aspectos éticos e socioambientais” – Orgs: Consuelo Yoshida e Lino Rampazzo, Campinas, SP: Editora Alínea, 2012 (Cap. 3º - p. 101 a 122)– ISBN 978-85-7516-599-7 _____. Concretização dos postulados da Dignidade da Condição Humana e da Justiça – Revista de Direito Privado – Ed. Rev. dos Tribunais, coord. Nelson Nery Jr. e Rosa Maria Nery, SP: Ed. RT. Ano 12, nº 47 – jul-set/2011. _____. Perfis dos Conceitos de bens Jurídicos. Edições Especiais. RT. 100 anos. Org. Ministro Gilmar Mendes e Rui Stoco. Doutrinas Essenciais “Responsabilidade Civil, Penal, empresarial, Tributário, Ambiental, Consumidor, Constitucional, Obrigações e Contratos, Direito Penal Econômico, Família e Sucessões e Direitos Humanos”, Vol. IV. Capítulo 4, 1ª Tiragem, 2011, Ano 100 Junho de 2011. _____. Visão difusa do Direito: vieses da sua complexidade através de um olhar 412 REVISTA DO INSTITUTO DOS ADVOGADOS DE SÃO PAULO v. 35, JANEIRO - JUNHO 2015 sistêmico. Tese de 2º Doutorado defendida na PUC/SP, 2009. _____.Perfis dos conceitos de Bens Jurídicos. (In) Revista do Direito Privado. RDPriv (RT) nº 37/2009 ·jan. – mar./2009. VILLAS BÔAS, Regina Vera, e VIDRIH, Gabriel Luis Bonora. O dever de recuperar a área degradada e a responsabilidade civil ambiental na mineração in Obra Coletiva “Direito Ambiental no Século XXI: Efetividade e Desafios”, Coord. Cláudio Finkelstein e João Negrini Filho, Orgs: Lívia Gaigher Bósio Campello e Vanessa Hasson de Oliveira – RJ: Editora Clássica, 2012 (Cap. 8 p. 205 a 236) – ISBN 978-85-99651-54-4 TEORIA GERAL DO DIREITO HANS KELSEN E O POSITIVISMO JURÍDICO JOSÉ CARLOS FAGONI BARROS Doutorando em Direito pela FADISP. Mestre em Direito pela PUC/SP Diretor Jurídico da Advocacia Salomone. Associado Efetivo do IASP. SUMÁRIO 1. Breve contextualização histórica e o legado de Hans Kelsen; 2. Hans Kelsen e o Positivismo Jurídico; 3. O Positivismo e o Jusnaturalismo: tese e antítese reciprocamente [des] considerados; 4. Bibliografia. RESUMO ABSTRACT O contexto histórico em que viveu Hans Kelsen e breves considerações sobre sua Teoria Pura do Direito e o Jusnaturalismo. Reflexões sobre o Conceito de Direito e de Norma Jurídica. The historical context in which he lived Hans Kelsen and briefly consider his Pure Theory of Law and the Natural Law. Reflections on the Concept of Law and Legal Standard. PAVRAS-CHAVE Hans Kelsen; Positivismo e jusnaturalismo; Direito e Norma. 416 REVISTA DO INSTITUTO DOS ADVOGADOS DE SÃO PAULO v. 35, JANEIRO - JUNHO 2015 1. BREVE CONTEXTUALIZAÇÃO HISTÓRICA E O LEGADO DE HANS KELSEN. Heidelberg é uma cidadela medieval edificada às margens do Rio Neckar, na qual Ruperto I, Eleitor do Palatino fundou a respectiva Universidade em 1.386, tendo se tornado um importante centro de excelência na investigação e no desenvolvimento do conhecimento, do qual resultou a láurea para mais de 50 agraciados com o Prêmio Nóbel1. Graças a uma bolsa de estudos obtida em maio de 1908, outorgada pela Faculdade de Direito e Ciência Política da Real-Imperial Universidade de Viena, no importe de 1.200 coroas, Hans Kelsen2 pôde concluir seu trabalho de Livre-Docência nessa relevante Universidade Alemã, tendo freqüentado durante um semestre as aulas [não todas] de Georg Jellinek [1851-1911], considerado um dos mais renomados juristas de seu tempo, com destaque para pesquisas no campo do direito público e internacional3. Desse período Hans Kelsen recorda o seguinte: “logo descobri que tanto a pessoa de Jellinek quanto seu seminário não seriam de muita valia para o meu trabalho e concentrei-me inteiramente neste último. Por causa disso deixei de ter contato mais próximo com o círculo de Max Weber, que lecionava então com grande sucesso em Heidelberg e com cujos escritos só me familiarizaria muito tempo depois. Só cheguei a conhecer esse homem excepcional no curto período em que ele trabalhou em Viena após a Primeira Guerra Mundial”4. 1. Cf.: www.uni-heidelberg.de 2. A versão brasileira da Autobiografia de Hans Kelsen é composta por: [i] um estudo introdutório de autoria de José Antonio Dias Tóffoli e de Otavio Luiz Rodrigues Junior, intitulado Hans Kelsen, o jurista e suas circunstâncias, no qual é apresentado minuciosa contextualização história e síntese dos principais acontecimentos da vida do biografado e fatos de relevo verificados no panorama mundial do período; [ii] Introdução de autoria de Matthias Jestaedt, discípulo do Mestre de Viena e de [iii] duas “Autoapresentações”, uma de 1927 e a outra de 1947, mais [iv] um apêndice. A Autobiografia foi inicialmente organizada por Rudolf Aladár Métall em 1969, com base em depoimentos pessoais prestados pelo próprio Hans Kelsen, como também com base em diversos escritos deixados pelo biografado. Cf. Introdução à Autobiografia, p. 21, 4ª ed., tradução de Gabriel Nogueira Dias e de José Ignácio Coelho Mendes Neto. Rio de Janeiro: Forense, 2012. 3. Cf. Hans Kelsen, Autobiografia, p. 46, nota 39, 4ª ed., tradução de Gabriel Nogueira Dias e de José Ignácio Coleho Mendes Neto. Rio de Janeiro: Forense, 2012. 4. Cf. op. cit. supra, pp. 48-49. DOUTRINA . TEORIA GERAL DO DIREITO HANS KELSEN E O POSITIVISMO JURÍDICO 417 Ainda a propósito, rememora Kelsen: “não travei relações pessoais em Heidelberg. Tive algum contato apenas com Emil Lederer [1892-19395], que já conhecia de Viena e que vivia em Heidelber como assistente de Max Weber e redator do Archiv für Sozialwissenschaften [Arquivo de ciências sociais]. Minha única distração durante esse período era um passeio ocasional ao Molkenkur e uma caneca de cerveja preta à noite no Perkeo. Mas foi um período feliz. Depois de anos de dificuldades financeiras e grave aflição junto ao leito de meu pobre pai doente, eu podia dedicar-me de corpo e alma ao trabalho no meu livro, que eu esperava que me abrisse caminho para uma carreira científica”6. O Molkenkur7 é um bucólico hotel situado em ponto elevado enquanto o Perkeo é um simpático restaurante; da narrativa depreende-se a humanidade de uma pessoa preocupada com seus familiares e com seu trabalho; cônscia de sua realidade e desejosa de, ao mesmo tempo, “descobrir algo novo” e também obter um trabalho ou uma carreira que lhe propicie a felicidade de atuar na área de seu interesse e também lhe custeie as necessidades elementares da vida. Dificilmente Kelsen é apresentado com a franqueza e simplicidade da qual ele próprio se vale em sua “Autoapresentação” elaborada em 1927 para seu colega húngaro Juilus Moór [1888-1950], jusfilosofo que lecionou em Budapeste e em sua “Autobiografia”, escrita em 1947, a propósito das quais é possível perceber os fatos de relevo nos âmbito pessoal e social que o marcaram, bem como as personagens de expressão com quem travou contato, impondo destaque para Leon Duguit [1859-1928], professor da Universidade de Bordeaux, Max Weber [1864-1920], Hans Carl Nipperdey e Henrich Lehmann, ambos da Universidade de Colônia, Karl Popper [1902-1994]8, do London School of Economics e implacável opositor do totalitarismo político, Sigmund Freud [1856-1939], H. L. Hart9 [1907-1992] e Alf Ross10 [1899-1979]11. 5. Dirigiu juntamente com Alfred Weber o Instituto de Ciências Sociais e Políticas de Heidelberg entre 1923 e 1931, tendo, após, imigrado para os Estados Unidos. Cf. op. cit. supra, p. 49, nota 46. 6. Op. cit. supra, p. 49. 7. Cf. www.molkenkur.de e www.restaurant-perkeo-heidelberg.de 8. Cf. A Lógica da Pesquisa Científica, 1ª ed., tradução de Leonidas Hegenberg e de Octanny Silveira da Mota. São Paulo: Cultrix, 1972. 9. Cf. O Conceito de Direito, 1ª ed., tradução de A. Ribeiro Mendes. Lisboa: Fundação Calouste Gulbekian, 1961. 10. Cf. Direito e Justiça, 11. Cf. José Antonio Dias Toffoli e Otavio Luiz Rodrigues Junior. Hans Kelsen, o jurista e suas circunstâncias, in 418 REVISTA DO INSTITUTO DOS ADVOGADOS DE SÃO PAULO v. 35, JANEIRO - JUNHO 2015 A “Autobiografia” de Kelsen descreve a relação que teve com seus professores e alunos, um dos quais lhe acusou de plágio; a passagem pelo Exército Imperial, a idealização e sua integração à Corte Constitucional da Áustria Republicana e a controvérsia jurisdicional que lhe custou a magistratura; o magistério na Universidade de Colônia, da qual foi demitido em razão da ascensão do Nazismo; sua estada na Tchecoslováquia, na Suíça e depois no exílio forçado nos Estados Unidos, onde lecionou inicialmente na Universidade de Harvard, que lhe outorgara em 1936 o doutorado “honoris causa”, assentando-se definitivamente na Universidade da Califórnia, em Berkeley, “não na Faculdade de Direito, mas no Departamento de Ciência Política, no qual podia desenvolver seu trabalho científico sem inimizades pessoais e sem ameaça para sua subsistência econômica, bem como avançar em sua trajetória segura”12. Impossível, no meio jurídico este não limitado ao acadêmico, passar despercebido de Hans Kelsen, que provoca defesas apaixonadas de seus adeptos na mesma proporção das críticas de seus algozes, muitas vezes destituídas de fundamentação ou seriedade de lado a lado; apesar disso, é reconhecido o relevo de suas teorias, particularmente a “Teoria Pura do Direito”, fazendo-lhe merecer um bronze na Universidade de Heidelberg, curiosamente posicionado a poucos passos de outro, em memória de Georg Jellinek, de quem não foi aluno afeiçoado13. A respeito das críticas diz no prefácio à primeira edição de sua obra mestra: “a Teoria Pura do Direito não tem de forma alguma possibilidade de dar satisfação ao seu postulado metodológico fundamental e é mesmo tão-só a expressão de uma determinada atitude política. Mas qual das afirmações é verdadeira? Os fascistas declaram-na liberalismo democrático, os democratas liberais ou os sociais-democratas consideram-na um posto avançado do fascino. Do lado comunista é desclassificada como ideologia de um estatismo capitalista, do lado capitalista-nacionalista é desqualificada, já como bolchevismo crasso, já como anarquismo velado. O seu espírito é – asseguram muitos – aparentado com o da escolástica católica; ao passo que outros crêem reconhecer nela as características distintivas de uma teoria protestante do Estado e do Direito. E não faltam também quem a pretenda estigmatizar com a marca de ateísta. Em sua, não há qualquer orientação política de que a Teoria Pura do Direito se não tenha ainda tornado Autobiografia, p. XXXVI e ss. 12. Mathias Jestaedt. Introdução à Autobiografia, p. 19. 13. Cf. Autobiografia, pp. 46 e ss. DOUTRINA . TEORIA GERAL DO DIREITO HANS KELSEN E O POSITIVISMO JURÍDICO 419 suspeita. Mas isso precisamente demonstra, melhor do que ela própria poderia fazer, a sua pureza”14. Acrescenta, no prefácio à segunda edição, “o problema da Justiça, enquanto problema valorativo, situa-se fora de uma teoria do Direito que se limita à análise do Direito positivo como sendo a realidade jurídica”15. Hans Kelsen não é o instituidor do positivismo jurídico, modelo que, por sua vez, apesar de “explicar bem”, particularmente a estrutura fechada e hierárquica das normas, a partir da “norma fundamental” a atribuir validade e vigência as que lhe seguem, numa estrutura escalonada de normas superiores e normas inferiores, porém não é o único instrumental apto a permitir a compreensão do Direito; sua contribuição, contudo, alicerçada na eliminação de todo e qualquer elemento “não jurídico” para dar lastro à “Teoria Pura do Direito” impôs aos jus-filósofos que lhe seguiram a difícil tarefa de estruturar novas concepções, muitas vezes construídas com preocupação maior de criticar o Jurista de Viena do que formular teorias resistentes à prova da realidade. Desse debate emergem idéias de relativização dos conceitos jurídicos, de retorno ao jusnaturalismo, de sistema jurídico “aberto” e tantas outras que nada mais são do que mecanismos aptos a propiciar a discussão e a “evolução” da metodologia de formulação e de compreensão do Direito, com ou sem abandono de “valores” prezáveis à humanidade já reconhecidos no “Direito Romano” calcado no “neminem laedere”, “honeste vivere” e “suum cuique tribuere”. Quanto a suas origens, Hans Kelsen declara na sua “Autoapresentação”, utilizando a primeira pessoa: “nasci em 11 de outubro de 1881 em Praga. No meu terceiro ano de vida, meus pais se mudaram para Viena, onde cursei a escola pública, o ginásio da Faculdade de Direito. Depois de obter o doutorado (1906), estudei três semestre em Heidelberg e Berlim. Obtive em 1911 a livre-docência em direito público e filosofia do direito, em 1917 tornei-me professor extraordinário e em 1919, professor ordinário da Universidade de Viena”16. Filho de Adolf Kelsen e de Auguste Lowy, ele empresário que veio a falir e ela zelosa mãe. Sua família é judia oriunda do Leste do Império Austro-Húngaro, a respeito da qual 14. Teoria Pura do Direito, 6ª ed., pp. 9-10, tradução de João Baptista Machado. Coimbra: Armênio Amado Editor, 1984. 15. Op. cit., p. 14. 16. Op. cit., pp. 23-24. 420 REVISTA DO INSTITUTO DOS ADVOGADOS DE SÃO PAULO v. 35, JANEIRO - JUNHO 2015 anotam José Antonio Dias Toffoli e Otavio Luiz Rodrigues Junior que se tratava de uma “geração de judeus” que migraram para as regiões centrais [do Império], desejosos por libertarem-se “das amarras e dos controles de seus líderes religiosos” para “assumir uma postura laica perante a vida moderna, além de evidentemente subtraírem-se aos níveis mais elevados de preconceitos e obscurantismo de suas áreas de origem”17. Apesar de se considerar agnóstico, converteu-se em 10 de junho de 1905 ao Catolicismo Romano e, depois, em 1912 ao Protestantismo, condutas consideradas, então, como tentativa de melhor integração à sociedade Austro-Húngara, de acordo com relato de Benjamin Akzin18. Casou-se com Margarete Bondi [depois Kelsen] em 20 de maio de 1912, com quem teve as filhas Hanna Renate e Maria Beatrice. A esposa faleceu em 5 de janeiro, vindo o marido a partir logo depois, em 19 de abril de 1973. Foi súdito do Império Austro-Húngaro, servindo o Exército durante a I Grande Guerra, não combatendo no “front” por motivos de saúde, tendo, por outro lado, se destacado em função administrativa chegando a ocupar o posto de Consultor Jurídico do Ministério da Guerra, posição que lhe valeu distinto reconhecimento do último Ministro da Guerra da Casa do Habsburgos. Ainda nessa posição, envidou esforços para manutenção da Monarquia, já fragmentada por conta da improvável manutenção da convivência no Impérito pentacentenário de uma pluralidade de etnias e respectivos interesses conflitantes, situação agravada por uma sucessão regicida a começar pelo ocorrido em Saraievo quanto ao assassinato do Arquiduque Francisco Ferdinando, herdeiro do Imperador Francisco José I, fato estopim da beligerância em 1914 e, depois, em razão da morte do próprio Imperador em pleno foco das hostilidades em 1916, cujo sucessor foi um seu sobrinho-neto, Carlos I da Áustria e IV da Hungria19, que sequer chegou a concluir seu reinado, premido entre a ofensiva dos países integrantes da tríplice aliança de um lado, e a Revolução Bolchevista do outro, fatos [não exauridos apenas nesses aspectos] que resultaram o Tratado de Versalhes em 1918, cujos termos contribuíram para um 17. Op. cit., p. XXII. 18. Op. cit., p. XXII, nota 12 19. O Imperador Carlos I da Áustria IV da Hungria foi beatificado pelo Papa João Paulo II em 3 de outubro de 2004. Cf.: www.vatican.va/news_services/liturgy/saints/index_canoniz-beat_po.html DOUTRINA . TEORIA GERAL DO DIREITO HANS KELSEN E O POSITIVISMO JURÍDICO 421 período de crise e colapso financeiro para os “vencidos” e se transformaram em fonte quase inesgotável de um nacionalismo crescente do qual emergiram os regimes totalitários Nazi-Fascista na Alemanha e na Itália, com contraponto do Stalinismo na recém instituída União das Repúblicas Socialistas Soviéticas. Nesse contexto, apesar de Hans Kelsen ter origem judaica, e inicialmente se considerar agnóstico e, depois, sucessivamente “cristão” católico romano e protestante, bem com nas suas origens não possuir relação particular com a tradição, a cultura ou as aspirações da comunidade [judaica], retornou ao sionismo por conta da ascensão do nazismo20. Refere, em diversas oportunidades na sua Autobiografia, as sucessivas restrições de acesso ao ensino e de ascensão e permanência no meio acadêmico que sofreu, justamente em razão dessa origem judaica, culminando com seu afastamento da Universidade de Colônia, por imposição do Partido Nacional Socialista, apesar da corajosa oposição manifestada pelos professores Hans Carl Nipperdey e Heinrich Lehmann, coautores, junto com Ludwig Ennecerus, do sempre atual Tratado de Direito Civil Alemão21 e, ainda, dos professores Hans Planitz, Godehard Josef Ebers, Albert Aloysius Coenders e Gotthold Bohne22. Nipperdey, convém lembrar, foi o formulador da teoria da eficácia direta dos direitos fundamentais entre os particulares23. Entre idas e vindas por diversos países, é possível afirmar ser Hans Kelsen “cidadão do mundo”, Austro-Húngaro de nascimento, tendo se radicado na Alemanha, depois na Suíça, e na Tchecoeslováquia, país do qual obteve a cidadania em razão de ter assumido o cargo de professor na Universidade Alemã de Praga, o que lhe custou a cidadania Austríaca e Alemã24 por um lado e, por outro lhe trouxe certa tranqüilidade financeira25 e, finalmente, nos Estados Unidos da América, onde veio a falecer em Berkeley em 19.4.1973. 20. José Antonio Dias Toffoli e Otavio Luiz Rodrigues Junior, op. cit., p. XVIII. 21. Traduzido para o espanhol pelos professores Blas Pérez Gonzáles e José Alguer, da Universidade de Barcelona, publicado em 1951 por Bosch Casa Editorial. 22. Cf. op. cit., p. XLIV. 23. Cf., Virgílio Afonso da Silva. A Constitucionalização do Direito – Os direitos fundamentais nas relações entre particulares, p. 87. São Paulo: Malheiros, 2005. 24. Cf. Hans Kelsen, o jurista e suas circunstâncias, in Autobiografia, p. XLIX, p. 78. 25. Autobiografia, p. 18. 422 REVISTA DO INSTITUTO DOS ADVOGADOS DE SÃO PAULO v. 35, JANEIRO - JUNHO 2015 Essa aparente multe funcionalidade de Kelsen, por transitar em vários países e exercer magistério em diversas Universidades da Europa e dos Estados Unidos, mais a magistratura na Corte Constitucional durante a República Austríaca instituída logo após o término da I Guerra Mundial, é muito mais decorrência das circunstâncias históricas, políticas e econômicas da época em que viveu, do que conseqüência do desejo desse jurista, conforme aponta Matthias Jestaedt: “trata-se, na grande maioria, de eventos infelizes ou incompletos, dolorosos ou fracassados para Hans Kelsen. A fama e o sucesso, a felicidade e o reconhecimento surgem apenas marginalmente e mais para o fim da descrição. Predomina um tom elegíaco. A vida de Kelsen se deixa ler como a história do indesejado. Ele troca cinco vezes de emprego universitário, nenhuma delas por iniciativa própria”26. Somente em Berkeley pôde, então, encontrar “finalmente um final feliz”, aí falecendo aos 19 de abril de 1973, pouco mais de 2 meses após a partida de sua companheira de toda a vida, com quem esteve casado por mais de 60 anos. Hans Kelsen teve embates teóricos com os principais juristas do Século XX, com destaque para Carlos Cóssio, formulador da teoria egológica do direito; Herbert L. A Hart27 e Alf Ross28, sendo este último simultaneamente um crítico e expoente do magistério do primeiro. A respeito dessa influência, anota Alaôr Caffé Alves que “de Kelsen, Ross, apesar das críticas à teoria pura do direito, assimila importantes elementos de sua teoria, como, por exemplo, a distinção entre normas e proposições jurídicas (da ciência jurídica); a coerção física como nota de identificação do direito; a negação do conhecimento objetivo sobre as questões morais; a importância das normas para caracterizar o direito e os juízes como destinatários das normas jurídicas”29. O legado deixado por Hans Kelsen não se limita à sua mais conhecida obra, publicada inicialmente em 1934, – Reine Rechtslehe – Teoria Pura do Direito, cujo teor provoca a “ira” de integrantes representativos de todos os segmentos importantes da época e, nos parece, inicia o debate contemporâneo acerca das concepções de Direito enquanto 26. Introdução à Autobiografia, p. 18. 27. Cf. op. cit. supra. 28. Cf. op. cit. supra. 29. Cf. Direito e Justiça, 1ª ed., p. 10., tradução e notas de Edson Bini. São Paulo: Edipro, 2000. DOUTRINA . TEORIA GERAL DO DIREITO HANS KELSEN E O POSITIVISMO JURÍDICO 423 ciência distinto da virtude Justiça e de valores da moral e de outras ciências, conforme anota: “a ciência jurídica procura apreender o seu objecto ‘juridicamente’, isto é, do ponto de vista do Direito. Aprender algo juridicamente não pode, porém, significar senão aprender algo como Direito, o que quer dizer: como norma jurídica ou conteúdo de uma norma jurídica, como determinado através de uma norma jurídica”30. A esse aspecto acrescenta João Baptista Machado: “é esta a posição da Teoria Pura do Direto em face da chamada teoria ‘egológica’ do Direito, que afirma ser o objeto da ciência jurídica constituído não pelas normas, mas pela conduta humana e em face da teoria marxista, que considera o Direito como agregado das relações econômicas”31. Cabe referir, ainda, diversos escritos publicados postumamente, sem tal circunstância retirar o relevo do conteúdo, merecendo destaque – Allgemeine Theorie der Normem - a Teoria Geral das Normas, onde desenvolve conceitos laterais à Teoria Pura do Direito e, segundo o tradutor da versão brasileira, professor doutor José Florentino Duarte, “um dos pontos ratificados por Kelsen, e de grande repercussão, refere-se à norma fundamental, porque muito já se explicou sobre esta matéria, e tudo o que disseram está agora revogado. Assim, a norma fundamental, neste tratado, recebeu conceituação nova e definitiva, corrigindo, o autor mesmo, o que se escrevera anteriormente ao tratála como hipótese”32. Refere ao objeto de consideração adiante, quanto a desconcertante assertiva de Kelsen, após exercício tendente ao “ad infinitum” chegar ao que considerou a norma origem, após sucessão de substituições de normas fundamentos que se seguiram e constatar que esta seria “um dado da razão”, ou seja, uma ficção... Também merece referência A Ilusão da Justiça, na qual traz concepções extraídas de Platão, particularmente a noção deste de Justiça e sobre a qual formula suas convicções imbuídas de teor filosófico e psicológico até chegar ao capítulo final: “a apoteose do direito positivo no Críton”, convindo destacar o seguinte: “no Críton, ao contrário do que parece, a questão decisiva não é se as leis existentes servem ao bem comum, se são justas, mas se o cidadão a elas sujeito tem o direito de decidir sobre essa questão. Que ele não 30. Cf. Teoria Pura do Direito, p.109. 31. Cf. Teoria Pura do Direito, p. 109, nota 2. 32. Cf. Teoria Geral das Normas, 1ª ed., p. VIII tradução de José Florentino Duarte. Porto Alegre: Sergio Antonio Fabris Editor, 1986. 424 REVISTA DO INSTITUTO DOS ADVOGADOS DE SÃO PAULO v. 35, JANEIRO - JUNHO 2015 o tem e que, portanto, as leis do direito positivo podem exigir obediência em quaisquer circunstâncias, é a idéia central do diálogo que se dá entre as últimas obras de Platão”33. Enfim, qualquer que seja a posição adotada, a de partidário ou a de crítico dos postulados firmados por Hans Kelsen, particularmente os explicitados na Teoria Pura do Direito, é irremovível a análise desses elementos para uma tentativa de compreensão do Direito e concordar, ou não, com as considerações desse notável jurista. 2. HANS KELSEN E O POSITIVISMO JURÍDICO. Os juristas e, particularmente, os comentadores das leis partem da análise textual do comando objeto do estudo para, a par desse procedimento, discorrer sobre as causas, componentes e conseqüências do instituto abordado34. A respeito da “praticidade” propiciada pela redução do Direito à lei, ainda mais quando organizada em códigos ou consolidação de leis esparsas, anota Clovis Bevilaqua: “as codificações, além de corresponderem ás necessidades mentaes de clareza e systematização, constituem, do ponto de vista social, formações orgânicas do direito, que lhe augmentam o poder de precisão e segurança, estabelecendo harmonia e a recíproca elucidação dos dispositivos, fecundando princípios e institutos, que, no isolamento, se não desenvolveriam sufficientemente, conendo, canalizando e orientando energias, que se poderiam prejudicar, na sua acção dispersiva. Por isso apresentam-se na historia do direito, como phase normal da evolução, que, partindo da fluidez inicial das ordens mais ou menos arbitrarias, das sentenças de varia inspiração, e dos costumes, vae em busca de formas definidas, firmes e lúcidas, que traduzam, melhor, as exigências, cada vez mais apuradas, da consciência jurídica, e, melhor, disciplinem os interesses dos indivíduos e dos agrupamentos sociaes”.35 Essa orientação é resultante da tendência senão iniciada ao menos universalizada em razão do Código Civil Francês, ou Código Napoleão, acerca do qual o próprio Napoleão 33. A Ilusão da Justiça, 2ª ed., tradução de Sérgio Tellaroli, p. 512. São Paulo: Martins Fontes, 1998. 34. Cf. dentre vários: Francesco Messineo, Manuale di Diritto Civile e Commerciale, v. 1, p. 11, 9ª ed. Milano: Dott. A. Giuffrè Editore, 1957; Ludwig Enneccerus, Theodor Kipp, Martin Wolff e Hans Carl Nipperdey, Tratado de Derecho Civil Aleman, v. 1, t. 1, p. 29 e ss., 2ª ed. Barcelona: Bosch Casa Editorial, 1953; Clóvis Bevilaqua, Código dos Estados Unidos do Brasil, v. 1, p. 2, 2ª ed. São Paulo: Livraria Francisco Alves, 1921. 35. Cf. op. cit. e p. supra. DOUTRINA . TEORIA GERAL DO DIREITO HANS KELSEN E O POSITIVISMO JURÍDICO 425 asseverou se tratar de seu maior legado36, resultado de uma concepção racionalista, tornado realidade “precisamente porque as idéias iluministas se encarnaram em forças histórico-políticas, dando lugar à Revolução Francesa. É, de fato, propriamente durante o desenrolar da Revolução Francesa (entre 1790 e 1800) que a idéia de codificar o direito adquire consistência política”37. Inicialmente debatido a partir de conceitos extraídos do Jusnaturalismo propostos por Cambacérès em agosto de 1793, o projeto do Código Civil é conseqüência dos trabalhos desenvolvidos por uma comissão nomeada por Napoleão, composta por Tronchet, Maleville, Bigot-Prémeneau e, com destaque, Jean Etienne Marie Portalis, discutido em 102 sessões perante o Conselho de Estado, dentre as quais 57 presididas pelo próprio Napoleão, então Primeiro Cônsul e, após as aprovações de cada um dos Títulos, promulgados como leis separadas, foram compilados e promulgados como Código Civil dos Franceses em 21 de março de 1804, sob franca inspiração de outro jurista, Robert Joseph Pothier [1699-1772], particularmente seu Tratado de Direito Civil. A grande questão surgida a partir daí foi a de haver, ou não, resposta no Código Civil [e na lei de modo geral] para todas as questões de direito que lhe são pertinentes, isto por conta da redação de seu artigo 4º 38. Pragmaticamente significa ser vedado ao juiz proferir decisão “non liquet”, ou seja, deixar de julgar e entregar a prestação jurisdicional por falta de lei específica para o caso concreto. A partir desse contexto iniciou-se o debate de haver, ou não, lacuna na lei, estendendo-se para o de ser o Direito [normatizado] fechado, completo e acabado ou, ao contrário, aberto, incompleto e mutável, não apenas por força de normas [leis], como também por força de outros elementos [costumes, decisões judiciais e etc.]. O movimento “normativista” iniciado na Europa Continental mediante a Codificação, particularmente do Direito Civil, se estendeu e ganhou outra dimensão em razão da constitucionalização do direito, reflexo inicial também da Revolução Francesa com a Declaração dos Direitos do Homem e do Cidadão, aprovada em 26 de agosto de 1789, 36. Cf. Norberto Bobbio, O Positivismo Jurídico: Lições de Filosofia do Direito, p. 63 e ss., 1ª ed. São Paulo: Ícone Editora, 1999. 37. Cf. Op. cit., pp. 64 e ss. 38. “art. 4 – O juiz que se recuse a julgar sob pretexto de silêncio, de obscuridade ou de insuficiência da lei, poderá ser processado como responsável por denegação da justiça”. 426 REVISTA DO INSTITUTO DOS ADVOGADOS DE SÃO PAULO v. 35, JANEIRO - JUNHO 2015 ainda sob influência do Jusnaturalismo, e da anterior Declaração de Independência dos Estados Unidos, ratificada no Congresso Continental de 4 de julho de 1776. A concepção positivista adota a primeira posição, a da onipotência inicialmente do legislador [a mens legislatoris] e depois da lei [a mens legis] e da circunstância de o juiz “sempre” encontrar uma solução na norma para determinado caso concreto, diretamente ou por integração a partir da analogia, de modo a haver uma completude do ordenamento jurídico, sendo inadmissíveis os costumes contra legem e somente viável a modificação por força de uma nova lei de igual ou superior hierarquia. É esse o contexto da estruturação do positivismo jurídico iniciado no Século XIX e desenvolvido no Século XX, a partir de considerações sobre a natureza e função do Estado considerado em relação a si e quanto a outros Estados e o delineamento do Direito Internacional, a força vinculante e o destinatário da lei; o sistema hierarquizado da norma a partir da constituição; a inexistência de lacunas; a distinção e separação [absoluta] entre o Direito e os demais ramos do conhecimento [dentre os quais a psicologia, a economia e etc.], postulados que deram ensejo aos estudos iniciais até a formulação da Teoria Pura do Direito, por Hans Kelsen, a par de outros juristas que também se debruçaram sobre tais questões, sem o êxito da construção de um arcabouço teórico contendo praticamente a solução para todas essas questões e, de resto, suscetível de ser amoldado a qualquer sistema jurídico, quer o Continental Europeu quer o da Common Law, na medida em que os precedentes judiciais característicos deste também apresentam basicamente a mesma eficácia vinculante verificada no outro. Difícil criticar, e mais ainda abandonar, o positivismo jurídico insculpido na Teoria Pura do Direto por conta da “facilidade” oferecida para solução das questões postas em discussão, particularmente em função da estrutura hierarquizada e fechada das normas, cujo sistema é imune de lacuna, encontrando as inferiores fundamento de existência e validade nas superiores, valendo-se o esquema do modelo lógico-silogístico formulado por Aristóteles39, que, por sua vez, o considera a forma fundamental de todo raciocínio dedutivo. Relata Abbagnano que “nos Primeiros Analíticos o silogismo é caracterizado nos termos da dedução em geral, vale dizer, como ‘um discurso e que, postas algumas coisas, se seguem necessariamente outras. Um silogismo compõem-se de três enunciados, dois 39. Cf. Órganon, 2ª ed., tradução de Edson Bini. São Paulo: Edipro, 2010. DOUTRINA . TEORIA GERAL DO DIREITO HANS KELSEN E O POSITIVISMO JURÍDICO 427 dos quais são chamados de premissas e o terceiro de conclusão40 como instrumento de “solução”: se tal fato se encarta na regra “x” é inexorável a conclusão prevista, qual seja a sanção. Essa estrutura lógica se apresenta em quatro formas categóricas, que veio a ser conhecida posteriormente como “quadrado Aristotélico”. Convém lembrar, ainda, que Aristóteles formulou outro esquema de raciocínio diverso do dedutivo, qual seja a tópica, posteriormente apreendida por Immanuel Kant41 e depois considerada por Theodor Viehweg na sua Tópica e Jurisprudência42. Acresce o relevo considerado pelos pensadores contemporâneos de Kelsen acerca da necessidade de se impor ao “conhecimento” uma metodologia de obtenção e uma cientificidade de resultado, a ponto de se recusar conclusões fora desses parâmetros, emergindo daí a imposição praticamente absoluta de separação entre o científico e o não-científico e, no caso do Direito, a distinção entre este e a Justiça dentro das mais variadas acepções43. O “positivismo jurídico” de Hans Kelsen é inovador, uma vez que parte da abordagem da sistematização, ou seja, a construção do seu objeto no sentido de que não impõe à esfera jurídica, a partir do exterior, a coerência interna que lhe é necessária, tentando antes extrair dela matérias jurídicas e correndo assim o risco de, por vezes, ser levada a estabelecer por dedução, regras jurídicas não explicitamente formuladas nos textos normativos. Neste aspecto, considera Kelsen que ou os fatos são juridicamente relevantes e, por conseguinte, se constituem objeto de norma, ou são juridicamente indiferentes, resultando a parêmia válida para o direito privado: tudo o que não estiver expressamente 40. Nicola Abbagnano. Dicionário de Filosofia, tradução da 1ª ed. brasileira coordenada e revista por Alfredo Bosi, p. 1.065. São Paulo: Martins Fontes, 2007; Cf. Órganon, An. pr. I, 1, 24b 18; I, 32, 47ª 34 41. Cf. Crítica da Razão Pura, analítica transcedental, nota a anfibolia. 42. Tópica e Jurisprudência, 1ª ed., tradução de Tércio Sampaio Ferraz Jr. Brasília: Departamento de Imprensa Nacional, 1979. 43. Cf. dentre vários: André Franco Montoro, Introdução à Ciência do Direito, p. 58 e ss., 29ª ed. São Paulo: Editora RT, 2011; Miguel Reale, Filosofia do Direito, p. 497 e ss., 12ª ed. São Paulo: Editora Saraiva, 1999; Luis Recasens Siches, Tratado General de Filosofia del Derecho, p. 153 e ss., 18ª ed. Ciudad de Mexico, Editorial Porrúa, 2006; Giorgio Del Vecchio, Lições de Filosofia do Direito, p. 331 e ss., 5ª ed., tradução de Antonio José Brandão. Coimbra: Armênio Amado Editor, 1979; Rudolf Von Jhering, A Finalidade do Direito, v. 1, p. 213 e ss., 1ª ed., tradução de Heder K. Hoffman. Campinas: Bookseller, 2002; Andrei Marmor, Direito e Interpretação, p. 235 e ss., 1ª ed., tradução de Luís Carlos Borges. São Paulo: Martins Fontes, 2004. 428 REVISTA DO INSTITUTO DOS ADVOGADOS DE SÃO PAULO v. 35, JANEIRO - JUNHO 2015 proibido [ou normatizado] está implicitamente permitido44. Destaca, ainda, a autonomia do Direito, ou seja, pensar o jurídico a partir do próprio jurídico, sem levar em consideração aspectos éticos, políticos, sociológicos, econômicos, psicológicos e etc. 45. O direito é um sistema normativo hierarquizado fechado e autônomo, não se integrando ou exigindo “conhecimentos” externos para sua explicação e aplicação. Kelsen “imuniza” e exclui a importância de todo e qualquer elemento que não seja estritamente de Direito para a construção de uma “teoria geral” deste, o posicionando como ciência autônoma, independente e distinta de toda e qualquer outra, particularmente a psicologia e a sociologia, dentre outros, por serem “extrajurídicos”. Aponta: “a Teoria Pura do Direito é uma teoria do Direito Positivo – do Direito Positivo em geral, não de uma ordem jurídica especial. É teoria geral do Direito, não interpretação de particulares normas jurídicas nacionais ou internacionais. Contudo, fornece uma teoria da interpretação. Como teoria, quer única e exclusivamente conhecer o seu próprio objeto. Procura responder a esta questão: o que é e como é o Direito? Mas já lhe não importa a questão de saber como deve ser o Direito, ou como deve ele ser feito. É ciência jurídica e não política do Direito. Quando a si própria se designa como “pura” teoria do Direito, isto significa que ela se propõe garantir um conhecimento apenas dirigido ao Direito e excluir deste conhecimento tudo quanto não pertença ao seu objeto, tudo quanto se não possa, rigorosamente, determinar como Direito”46. 44. O mesmo pode ser dito em relação do Direito Público, mediante inversão da proposição: para a Administração Pública, tudo o que não estiver legal e expressamente permitido, é proibido. Ainda que se cogite referir o “poder discricionário” na Administração Pública, tal ocorre sempre a partir de uma norma que permita certa conduta, atribuindo ao exercente momentâneo do poder a “escolha” entre a adoção ou não da medida e os respectivos limites. Por outro lado, se não houver norma a delinear a atuação da Administração, a intervenção é ilegal. E há necessidade de incidir tal restrição para limitar e mesmo impedir uma atuação descontrolada da Administração Pública [leia-se do Estado] sobre a pessoa que sob sua soberania. Desse aspecto surgem questões cruciais: e se houver norma a permitir a intervenção absoluta do Estado acerca da vida e do patrimônio da pessoa, proposição amparada no sistema de validação entre normas inferiores e superiores, a ponto de encontrar respaldo o aspecto na norma fundamental? No sistema positivista, esse procedimento é legítimo, quer a partir do “modelo” romanogermânico, quer com base no da Common Law, como ocorre quanto a “legitimidade da pena de morte” adotada em diversas países, inclusive nos EEUU. Entretanto, a “manipulação” desse sistema de “legitimação” propicia resultados absolutamente iníquos, conforme corretamente demonstra Françoise Rigaux em A Lei dos Juízes, 1ª ed., tradução de Edmir Missio. São Paulo: Martins Fontes, 2000. 45. Jean-Cassien Billier e, Aglaé Maryioli. História da Filosofia do Direito, 1ª ed., p. 175, tradução de Pedro Henriques. Lisboa: Instituto Piaget, 2006 46. Teoria Pura do Direito, p. 17. DOUTRINA . TEORIA GERAL DO DIREITO HANS KELSEN E O POSITIVISMO JURÍDICO 429 E acrescenta: “de um modo inteiramente acrítico, a jurisprudência tem-se confundido com a psicologia e a sociologia, com a ética e a teoria política. Esta confusão pode porventura explicar-se pelo fato de estas ciências se referirem a objetos que indubitavelmente têm uma estreita conexão com o Direito”47. Estrutural e cientificamente a Teoria Pura do Direito de modo algum está limitada a formula “geral” de reunião de conceitos jurídicos dos diferentes ramos, concatenados sob a égide de premissas fundamentais capazes de “esgotar” o termo Direito e manifestar a unidade deste. Kelsen pretende muito mais: elimina toda e qualquer consideração ética, política ou pertinente a qualquer outro ramo do conhecimento – que não seja estritamente jurídico – para, formulação dessa Teoria toda ela calçada no normativismo, ou seja, a base da consideração é a norma jurídica. Nesse contexto, a Teoria Pura do Direito foi formulada com o objetivo de dimensionar “o que é o Direito” cognoscível em termos gerais ou universais, e não em relação a um ou a um grupo de sistemas de Direito, ou seja, deve ser suficiente tanto para a “Common Law” quanto para a “Civil Law” ou qualquer outro sistema, desde que seja pertinente ao “Direito”, de modo a valer também para sistemas desde os “teocráticos” até para os mais elementares utilizados por comunidades aborígenes sem contato com o “Mundo Civilizado”. E para tanto busca identificar os aspectos comuns em todos esses variados sistemas, elementos esses que devem ser estritamente jurídicos, identificando-os com “coerção”, no sentido de [possibilidade de] exercício de legítima força física despendida, ou imposição de “sanção”, por autoridade competente, contra alguém, com intuito de ser cumprido o comando de uma “norma jurídica”. O cumprimento da “norma” é atendido não porque seja justa, ou porque ajustarse ao “bem comum”, mas sim em razão da [possibilidade] de sanção ou “coerção” ao cumprimento. E essa estrutura baseia-se em uma escala ordenada de legitimação de normas, umas encontrando nas outras o fundamento de existência e validade, até se chegar à “norma fundamental” [Grundnorm], diferenciando-se a “coerção” de um fato [arbitrário e injusto] impositivo de força, em razão da legitimidade e competência da autoridade para exigir o cumprimento da “norma”. A respeito do que seja “norma”, afirma Kelsen: “quer-se significar que algo deve ser ou acontecer, especialmente que um homem se deve conduzir de determinada 47. Op. cit. supra. 430 REVISTA DO INSTITUTO DOS ADVOGADOS DE SÃO PAULO v. 35, JANEIRO - JUNHO 2015 maneira”48, sob pena de sofrer uma sanção, conforme mais adiante evidencia: “dizer que o Direito é uma ordem coativa significa que as suas normas estatuem atos de coação atribuíveis à comunidade jurídica. Isto não significa, porém, que em todos os casos da sua efetivação se tenha de empregar a coação física. Tal apenas terá de suceder quando essa efetivação encontre resistência, o que não é normalmente o caso”49. Acrescenta: “proposições jurídicas são juízos hipotéticos que enunciam ou traduzem que, de conformidade com o sentido de uma ordem jurídica – nacional ou internacional – dada ao conhecimento jurídico, sob certas condições ou pressupostos fixados por esse ordenamento, devem intervir certas condições pelo mesmo ordenamento determinadas. As normas jurídicas, por seu lado, não são juízos, isto é, enunciados sobre um objeto dado ao conhecimento. Elas são antes, de acordo com o seu sentido, mandamentos e, como tais, comandos imperativos. Mas não são apenas comandos, pois também são permissões e atribuições de poder ou competência. Em todo caso, não são – como, por vezes, identificado Direito como ciência jurídica, se afirma – instruções (ensinamentos). O Direito prescreve, permite, confere poder ou competência – não “ensina” nada”50 . Prossegue: “quando a proposição jurídica é aqui formulada com sentido de que, sob determinadas pressupostos, deve realizar-se uma determinada conseqüência, isto é, quando a ligação produzida por uma norma jurídica, dos fatos estabelecidos como pressuposto e conseqüência é expressa na proposição jurídica pela cópula “deve (-ser)” [sollen], esta palavra não é empregada no seu sentido usual”51, e destaca: “em especial, a ciência jurídica não pode afirmar que, de conformidade com uma determinada ordem jurídica, desde que se verifique um ilícito, se verifica efetivamente uma conseqüência do ilícito. Com uma tal afirmação colocar-se-ia em contradição com a realidade, na qual muito freqüentemente se comete um ilícito sem que intervenha a conseqüência do ilícito estatuída pela ordem jurídica”52 e conclui: “a Teoria Pura do Direito, como específica ciência do Direito, concentra, como já se mostrou – a sua visualização sobre as normas jurídicas e não sobre os fatos da ordem do ser [sein], quer dizer: não a dirige 48. Cf. Teoria Pura do Direito, p. 21. 49. Teoria Pura do Direito, p. 61. 50. Teoria Pura do Direito, p. 111. 51. Op. cit. 120. 52. Op. cit. 121. DOUTRINA . TEORIA GERAL DO DIREITO HANS KELSEN E O POSITIVISMO JURÍDICO 431 para o querer ou para o representar das normas jurídicas, mas para as normas jurídicas como conteúdo de sentido – querido ou representado”53. É facilmente perceptível o posicionamento “hermético” feito por Kelsen para delimitação da sua Teoria Pura do Direito e, por conseguinte, o expurgo de sua compreensão de tudo o quanto não seja “jurídico”, valendo, pois, o primado da norma jurídica assim considerada em dois aspectos: o estático e o dinâmico. A respeito da vigência e domínio de vigência da norma assevera: “[...] a vigência da norma pertence à ordem do “dever-ser” [sollen], e não a do ser [sein]”, por conseguinte, “deve [-se] também distinguir a vigência da norma da sua eficácia, isto é, do fato real de ela ser efetivamente aplicada e observada, da circunstância de uma conduta humana conforme à norma se verificar na ordem dos fatos. Dizer que uma norma vale (é vigente) traduz algo diferente do que se diz quando se afirma que ele é efetivamente aplicada e respeitada, se bem que entre a vigência e a eficácia possa existir uma certa conexão”54. Demais disso, é possível constatar engenhosa trama acerca da “liberdade humana”, considerando-a Kelsen como resultado da norma, ou seja, ao abordar a “regulamentação positiva e negativa” do Direito: “a conduta humana disciplinada por um ordenamento normativo ou é uma ação por esse ordenamento determinada, ou a omissão de tal ação. A regulamentação da conduta humana por um ordenamento normativo processa-se por uma forma positiva e por uma negativa. A conduta humana é regulada positivamente por um ordenamento positivo, desde logo, quando a um indivíduo é prescrita a realização ou a omissão de um determinado ato (quando é prescrita a omissão de um ato, esse ato é proibido)”. E logo a seguir acrescenta: “Num sentido muito amplo, toda conduta humana que é fixada num ordenamento normativo como pressuposto ou como conseqüência se pode considerar como autorizada por esse mesmo ordenamento e, neste sentido, como positivamente regulada. Negativamente regulada por um ordenamento jurídico é a conduta humana quando, não sendo proibida por aquele ordenamento, também não o é positivamente permitida por uma norma delimitadora do domínio de validade de uma outra norma proibitiva – sendo, assim, permitida num sentido meramente negativo”55. 53. Op. cit. 156. 54. Op. cit., p. 30. 55. Op. cit. p. 36. 432 REVISTA DO INSTITUTO DOS ADVOGADOS DE SÃO PAULO v. 35, JANEIRO - JUNHO 2015 Mais: “O Direito” [é uma] “ordem coercitiva de conduta humana”. “Dizer que o Direito é uma ordem coactiva significa que as suas normas estatuem atos de coação atribuíveis à comunidade jurídica. Isto não significa, porém, que em todos os casos da sua efetivação se tenha de empregar a coação física. Tal apenas terá de suceder quando essa efetivação encontre resistência, o que não é normalmente o caso”56. Prossegue adiante, ao se referir ao “mínimo de liberdade”: “uma conduta que não é juridicamente proibida é – neste sentido negativo – juridicamente permitida”57 e arremata: “por vezes não se nega que a vontade do homem seja efetivamente determinada por via causal, como todo o acontecer, mas afirma-se que, para tornar possível a imputação ético-jurídica, se deve considerar o homem como se a sua vontade fosse livre. Quer dizer: crê-se que se tem de manter a liberdade da vontade, a sua nãodeterminação causal, como uma ficção necessária”58. Este último conceito, “tudo o que não está expressamente proibido é implicitamente permitido” é valido tanto considerado o fundamento de Direito Privado como também, em ordem inversa, o Direito Público: “tudo o que não estiver expressamente permitido, é proibido para a Administração Pública”, dos quais é possível afirmar que, dentro desse escopo da Teoria Pura do Direito, a liberdade é uma ficção “necessária”, cuja realidade e limites decorrem da norma jurídica, e não da autodeterminação e governo das pessoas. Demais disso, o destinatário da norma não é o cidadão ou, mais genericamente, a pessoa, e sim os órgãos judiciários e, em geral os do Estado. Essa assertiva formulada por Kelsen, também sob o foco da coerção como elemento da norma, fora antes considerada por Rudolf Von Jhering [1818-1892]: “a organização da força social de coação constituise de dois aspectos: o estabelecimento do mecanismo externo da força e a fixação de princípios para regular o emprego dela. A forma pela qual é possível realizar a primeira tarefa, é o poder público, para a realização da segunda, o direito. Ambos os conceitos encontram-se em relação de condicionamento mútuo: o poder público necessita do direito, , e o direito não pode prescindir do poder público”59. 56. Op. cit. p. 61. 57. Op. cit. p. 72. 58. Op. cit. p. 143. 59. A Finalidade do Direito, v. 1, p. 213, 1ª ed., tradução de Helder K. Hoffmann. Campinas: Bookseller, 2002. DOUTRINA . TEORIA GERAL DO DIREITO HANS KELSEN E O POSITIVISMO JURÍDICO 433 Ainda a respeito da coação, Kelsen destaca: “uma regra é uma regra jurídica não porque sua eficácia é assegurada por uma outra regra que dispõe uma sanção; uma regra é uma regra jurídica porque dispõe uma sanção. O problema a coerção (coação, sanção) não é o problema de assegurar a eficácia das regras, mas sim o problema do conteúdo das regras”60. Resulta dessa assertiva a consideração de que norma desprovida de sanção ou de coação é uma “não-norma”. Alf Ross, ex-aluno de Hans Kelsen e dos mais respeitáveis expoentes da escola realista do direito, observa, ainda a respeito da coação: “devemos insistir no fato de que a relação entre as normas jurídicas e a força consiste em que tais normas dizem respeito à aplicação da força e não que são protegidas por meio a força. [...] Um sistema jurídico nacional é um sistema de normas que se referem ao exercício da força física”61 Norberto Bobbio anota, também sobre esse aspecto: “segundo a moderna formulação da teoria da coação, o direito é, por conseguinte, um conjunto de regras que têm por objeto a regulamentação do exercício da força numa sociedade”62. Entretanto, a partir da “positivação” de princípios, ou seja, desde a inserção na Constituição de princípios jurídicos que, normalmente, se apresentam como postulados ou premissas, sem a “indicação” de sanção, essa situação de modo algum lhes retira a natureza “normativa”, uma vez que o desrespeito a esses postulados passa a ser considerado, ou ao menos é possível considerar como causa de inconstitucionalidade. Basta considerar, por exemplo, uma norma afirmativa de que “A República [...] tem como fundamento [...] a dignidade da pessoa humana; os valores sociais do trabalho e da livre iniciativa”; cujos objetivos fundamentais sejam “constituir uma sociedade livre, justa e solidária” e “promover o bem de todos, sem preconceitos de origem, raça, sexo, cor, idade e quaisquer outras formas de discriminação”, segundo a qual toda e qualquer decisão judicial ou medida administrativa ou, por fim, proposição legislativa deve ser norteada, sob pena de vir a ser reconhecida a “inconstitucionalidade”. Tal assertiva normativa poderia ser objetada sob o argumento de que se constitui “norma programática”, ou seja, um ideal a ser atingido, sem eficácia vinculativa. Entretanto, ainda que assim se considere, o ranço de inconstitucionalidade subsiste, uma vez que 60. Cf. Teoria Geral do Direito e do Estado, p. 28. 61. Cf. Direito e Justiça, pp. 52 e ss. 1ª ed., tradução e notas de Edson Bini. São Paulo: EDIPRO, 2000. 62. Cf. O Positivismo Jurídico, p. 157. 434 REVISTA DO INSTITUTO DOS ADVOGADOS DE SÃO PAULO v. 35, JANEIRO - JUNHO 2015 se é “ideal”, nenhuma medida ou decisão pode ser adotada que venha a deslocar esse marco para um ponto mais distante do que aquele no qual já esteja situado. Em outros termos, é possível a eleição de variados critérios de acordo com a política legislativa para ser construída e alcançada a finalidade da norma, o defeso é a definição de critérios em desatenção ao comando constitucional, ainda que seja um principio. O intrigante é identificar se o princípio é ou não constitucional, como ocorre em relação ao Preâmbulo da Constituição Federal de 1988. Quanto à sanção, esta deve ser considerada como inerente ao sistema normativo, de modo que o desrespeito a uma norma constitucional é a inconstitucionalidade do ato desconforme, por decorrência normal da estrutura hierarquizada das normas, ainda que essa conseqüência não seja expressa. Kelsen apresenta duas vertentes para abordagem universal do Direito, a partir das teorias jurídicas estática e dinâmica da norma: a primeira tem por objeto o Direito como um sistema de normas em vigor, o Direito no seu momento estático; a outra tem por objeto o processo jurídico em que o Direito é produzido e aplicado, o Direito em movimento. Deve, no entanto, observar-se, a propósito, que este mesmo processo é, por sua vez, regulado pelo Direito. As normas, por sua vez, se apresentam a partir de uma estrutura escalonada dentro da ordem jurídica, de modo que a norma superior é fundamento de existência e validade para uma norma inferior, conforme considera “[...] uma norma somente é válida porque e na medida em que foi produzida por uma determinada maneira, isto é, pela maneira determinada por uma outra norma, esta outra norma representa o fundamento imediato de validade daquela. A relação entre a norma que regula a produção de uma outra norma e a norma assim regularmente produzida pode ser figurada pela imagem espacial da suprainfra-ordenação. A norma que regula a produção é a norma superior, a norma produzida segundo as determinações daquela é a norma inferior. A ordem jurídica não é um sistema de normas jurídicas ordenadas no mesmo plano, situadas umas ao lado das outras, mas é uma construção escalonada de diferentes camadas ou níveis de normas jurídicas. A sua unidade é produto da conexão de dependência que resulta do fato de a validade de uma norma, que foi produzida de acordo com outra norma, se apoiar sobre esta outra norma, cuja produção, por seu turno, é determinada por outra; e assim por diante, até abicar finalmente na norma fundamental – hipotética, nestes termos – é, portanto, o fundamento de validade último que constitui a unidade deste interconexão criadora”63. 63. Op. cit. p. 309. DOUTRINA . TEORIA GERAL DO DIREITO HANS KELSEN E O POSITIVISMO JURÍDICO 435 Tal norma hipotética é, então, uma “ficção” ou um dado da razão humana... Essa constatação acaba por, senão infirmar, ao menos apresentar relevante objeto de questionamento da unicidade e universalidade da Teoria Pura do Direito, na medida em que acaba por se fundar em um elemento absolutamente desprovido de “consistência jurídica”, qual seja em uma hipótese ou abstração decorrente da Vontade humana, aspecto que pode suscitar uma certa proximidade justamente com o Direito Natural, categoricamente recusado por Kelsen em razão de estar desprovido de todos os elementos para justificar uma Teoria fundada em aspectos “exclusivamente jurídicos”. Ainda que seja considerada a obra póstuma Teoria Geral das Normas [Allgemeine Theorie der Normen], da qual cabe inicialmente destacar a anotação do tradutor, José Florentino Duarte, quanto a “um dos pontos retificados por Kelsen, e de grande repercussão, refere-se à norma fundamental, porque muito já se explicou sobre esta matéria, e tudo o quanto disseram está, agora, revogado. Assim, a norma fundamental, neste tratado, recebeu conceituação nova e definitiva, corrigindo o autor mesmo, o que escrevera anteriormente, ao tratá-la como hipótese” 64. Refere a seguinte assertiva: “a norma fundamental de uma ordem jurídica ou moral positivas – como evidente do que precedeu – não é positiva, mas meramente pensada, e isto significa uma norma fictícia, não o sentido de um real ato de vontade, mas sim de um ato meramente pensado. Como tal, ela é uma pura ou ‘verdadeira’ ficção no sentido da vaihingeriana Filosofia do Como-Se, que é caracterizada pelo fato de que ela não somente contradiz a realidade, como também é contraditória em si mesma”65 e acrescenta: “segundo Vaihinger, uma ficção é um recurso do pensamento, do qual se serve se não se pode alcançar o fim do pensamento com o material existente”66. Conclui: “o fim do pensamento da norma fundamental é: o fundamento de validade das normas instituintes de uma ordem jurídica ou moral positiva, é a interpretação do sentido subjetivo dos atos ponentes dessas normas como de seu sentido objetivo; isto significa, porém, como normas válidas, e dos respectivos atos como atos ponentes da norma. Este fim é atingível apenas pela via de uma ficção”67. 64. Cf. a Introdução do tradutor, José Florentino Duarte, p. VIII, 1ª ed. Porto Alegre: Sergio Antonio Fabris Editor, 1986. 65. Teoria Geral das Normas, p. 328. 66. Op. cit. p. 329. 67. Op. cit. supra. 436 REVISTA DO INSTITUTO DOS ADVOGADOS DE SÃO PAULO v. 35, JANEIRO - JUNHO 2015 Ocorre que a norma fundamental, a partir de uma consideração hipotética, também evidencia a ausência de “pureza”, na medida em que se vale do elemento não-jurídico vontade, ou “criatividade” humana para escorar sua estrutura bem articulada sob o aspecto lógico-formal, porém questionável se considerado, em última análise e no maior grau de expurgo, o aspecto “não-jurídico” basilar no qual se sustenta. É o que sustenta Claus-Wilhelm Canaris: “são também impróprios para traduzir a unidade interior e a adequação de uma ordem jurídica, todos os sistemas de ‘puros’ conceitos fundamentais, tal como Stammer, Kelsen ou Nawiasky os desenvolveram. Trata-se, neles, de categorias puramente formais, que subjazem a qualquer ordem jurídica imaginável, ao passo que a unidade valorativa é sempre de tipo material e só pode realizar-se numa ordem jurídica historicamente determinada; sobre isso, porém, os sistemas de puros conceitos fundamentais, pela sua própria perspecção, não querem bem dizer nada”68. Apesar da estruturação lógica e da eliminação de toda e qualquer consideração “não-jurídica” para a formulação de uma “Teoria Pura”, a base desta, por ser uma “ficção”, acaba por lhe retirar a consistência justamente em razão dessa “falta de pureza”. Trata-se a “norma fundamental” de uma conjectura filosófica a propósito da qual é possível utilizar a articulação lógico-filosófica construída a partir das conclusões tecidas por Ludwig Wittgenstein: “6.522. Existe no entanto o inexprimível. É o que se revela, é o místico. 6.53. O método correcto da Filosofia seria o seguinte: só dizer o que pode ser dito, i.e, as proposições das ciências naturais – e portanto sem nada que ver com a Filosofia – e depois, quando alguém quisesse dizer algo metafísico, mostrar-lhe que nas suas proposições existem sinais aos quais não foram dados uma denotação. A esta pessoa o método pareceria ser frustrante – uma vez que não sentiria que lhe estávamos a ensinar Filosofia – mas este seria o único método estrictamente correto. 6.54. As minhas proposições são elucidativas pelo faço de que aquele que as compreende as reconhece afinal como falhas de sentido, quando por elas se elevou para lá delas. (Tem que, por assim dizer, deitar fora a escada, depois de ter subido por ela). Tem que transcender estas proposições; depois vê o mundo direito”69. 68. Cf. Pensamento Sistemático e Conceito de Sistema na ciência do Direito, p. 27, 4ª ed., tradução de A. Menezes Cordeiro. Lisboa: Fundação Calouste Gulbenkian, 2008. 69. Cf. Tratado Lógico-Filosófico, pp. 141-142, 2ª ed., tradução e prefácio de M. S. Lourenço. Lisboa: Fundação Calouste Gulbenkian, 1995. DOUTRINA . TEORIA GERAL DO DIREITO HANS KELSEN E O POSITIVISMO JURÍDICO 437 Tércio Sampaio Ferraz Junior traz o conceito de norma e elabora sua Teoria Geral a partir a partir de uma abordagem pragmática fundada na teoria comunicacional70, na qual demonstra haver uma aporia quanto a solução do enigma pertinente a “legitimidade dos sistemas normativos”, ao considerar que “o caráter dogmático do discurso normativo releva, portanto, um modo específico de racionalidade que consiste em não eliminar, ao contrário, assumir aporias como ponto de partida do seu discursar, estabelecendo premissas que apenas contornam a aporia, as quais se mantém na medida em que estão abertas a um confronto com outras possibilidades. Curiosamente, o discurso normativo, enquanto dogmático, é um discurso aberto no sentido da viabilidade das decisões, mas que, por isso mesmo, corre o risco de absolutizar-se. Toda vez que ele nega seu momento dialógico e vê apenas os seus valores materializados ideologicamente como os únicos prevalecentes, ele se exime de suas próprias regras e se torna irracional. Esta irracionalidade é o que o faz ilegítimo. A legitimidade do discurso normativo repousa, pois, não em premissas incontestáveis e absolutas, mas na garantia da posição de outras possibilidades, em confronto com as quais o dogma se sustenta”71. E conclui: “a impossibilidade de se sair dos limites ideológicos não deve ser entendida, porém, como a afirmação absoluta do relativismo. O que se diz, é que dentro dos discursos heterológicos ou de dentro deles, estamos sempre referidos a limites ideológicos, embora um discurso heterológico possa ser, como tal, objeto de um discurso homoloógico que terá condições, então de por o problema em termos de verdade”. Assim, qualquer que seja a formulação teórica acerca do Direito, quer enquanto teoria “geral” ou “da norma” ou do “Estado”, inexoravelmente haverá aspectos de sustentação e outros de fragilidade que, em algum momento, serão refutados com superação dessa [Teoria] por outra “Teoria” melhor estruturada em consonância com o contexto histórico em que estiver situada, sucessivamente. Isto não significa que seja “melhor” ou “pior” que as antecessoras, da mesma maneira que a “Civilização Antiga” não é “melhor” nem “pior” do que a atual, ou que a “Civilização Ocidental” possa ser objeto de comparativo com a do “Oriente Médio” e etc., pois cada qual com sua estrutura e maior ou menor [des] equilíbrio traça seus 70. Cf. Dentre vários: Paul Watzlawic, Janet Helmick Beavin e Don D. Jackson, Pragmática da Comunicação Humana: um estudo dos padrões, patologias e paradoxos da interação, 1ª ed., tradução de Álvaro Cabral. São Paulo: Editora Cultrix, 1967; Fernand de Saussure, 1ª ed., tradução de Antonio Chelini, José Paulo Paes e Izidoro Blikstein. São Paulo: Editora Cultrix, 2006. 71. Cf. Teoria Geral da Norma, pp. 179 e ss., 1ª ed. Rio de Janeiro: Forense, 1978. 438 REVISTA DO INSTITUTO DOS ADVOGADOS DE SÃO PAULO v. 35, JANEIRO - JUNHO 2015 contornos, particularmente quanto ao Direito, para justificar a própria organização social e, com isto, estabelecer um parâmetro mínimo de convivência. Talvez seja esse o aspecto norteador de uma “norma fundamental”, não uma “norma origem”, mas uma “norma equilíbrio”, no sentido de que enquanto houver insitamente uma harmonia social tendente a manutenção de um estado de “paz” entre as pessoas, o sistema jurídico no qual está alicerçada se mantém. Essa “norma equilíbrio” supõe uma “coerção” suficiente a impor o comportamento determinado e, por outro lado, quando deixa de incidir ou de ser oponível pela autoridade competente de forma sistêmica, provoca a fragmentação da própria “norma fundamental” da qual resultará outra, desde que e até que seja suficiente para restaurar o “equilíbrio” e a manutenção de um estado de “paz”. Isto não significa que a harmonia equivalha a felicidade ou a um “estado de bem estar”, desejável, porém somente alcançável se os diversos fatores de sustentação da “norma equilíbrio” forem suficientes para mantê-la e impô-la. Fica, de qualquer forma, a conclusão de Wittgenstein: “Acerca daquilo de que não se pode falar, tem que se ficar em silêncio”72 3. O POSITIVISMO E O JUSNATURALISMO: TESE E ANTÍTESE RECIPROCAMENTE [DES] CONSIDERADOS. Hans Kelsen não é o “fundador” do “positivismo jurídico”, cujas raízes filosóficas assentam em Saint-Simon, que utilizou “positivismo” para designar o “método exato das ciências e sua extensão para a filosofia (De La Religion Saint-Simonienne, 1830:3)” e “adotado por Augusto Comte para a sua filosofia e, graças a ele, passou a designar uma grande corrente filosófica”73. Ainda no campo estritamente filosófico, o “positivismo” apresenta duas correntes históricas, “a do “positivismo social” de Saint-Simon, Comte e John Stuart Mil, nascido da exigência de construir a ciência como fundamento de uma nova ordenação social e religiosa unitária, e o “positivismo evolucionista” de Herbert Spencer, que estende a todo o universo o conceito de progresso e procura impô-lo a todos os ramos da ciência”74. 72. Op. cit. supra. 73. Cf. Nicola Abbagnano, Op. cit., p. 909. 74. DOUTRINA . TEORIA GERAL DO DIREITO HANS KELSEN E O POSITIVISMO JURÍDICO 439 O positivismo pode ser resumido a três teses fundamentais: “[i] a ciência é o único conhecimento possível e o método da ciência é o único válido, de modo que o recurso a causas ou princípios não acessíveis ao método da ciência não dá origem a conhecimentos; a metafísica, que ocorre a tal método, não tem nenhum valor; [ii] o método da ciência é puramente descritivo, no sentido de descrever os fatos e mostrar as relações constantes entre os fatos expressos pelas leis, que permitem a previsão dos próprios fatos [cf. Augusto Comte75]; ou no sentido de mostrar a gênese evolutiva dos fatos mais complexos a partir dos mais simples [Spencer]; [iii] o método da ciência, por ser o único válido, deve ser estendido a todos os campos de indagação e da atividade humana; toda vida humana, individual ou social, deve ser guiada por ele”76. Narra nesse contexto Norberto Bobbio, ao observar a transposição do “positivismo filosófico” para o “positivismo jurídico” que este “nasce do esforço de transformar o estudo do direito numa verdadeira e adequada ciência que tivesse as mesmas características das ciências físico-matemáticas, naturais e sociais. Ora, a característica fundamental da ciência consiste em sua “avaloratividade”, isto é, na distinção entre juízos de fato e juízos de valor e na rigorosa exclusão destes últimos do campo científico: o juízo de fato representa uma tomada de conhecimento da realidade, visto que a formulação de tal juízo tem apenas a finalidade de informar, de comunicar a um outro a minha constatação; o juízo de valor representa, ao contrário, uma tomada de posição frente à realidade, visto que a sua formulação possui a finalidade não de informar, mas de influir sobre o outro, isto é, fazer com que o outro realize uma escolha igual a minha”77. Tanto assim que Kelsen aponta: “na afirmação evidente de que o objeto da ciência jurídica é o Direito, está contida a afirmação – menos evidente – de que são as normas jurídicas o objeto da ciência jurídica, e a conduta humana só o é na medida em que é determinada nas normas jurídicas como pressupostos ou conseqüência, ou – por outras palavras – na medida em que constitui conteúdo de normas jurídicas” e, a seguir, acrescenta: “a ciência jurídica procura apreender o seu objeto ‘juridicamente’, isto é, do ponto de vista do Direito. Apreender algo juridicamente não pode, porém, significar senão apreender algo como Direito, o que quer dizer: como norma jurídica ou conteúdo 75. In André Vergez, História dos Filósofos, p. 286 e ss., 2ª ed., tradução de Lélia de Almeida Gonzales. Rio de Janeiro: Livraria Freitas Bastos, 1972. 76. Op. cit. e p. supra. 77. O Positivismo Jurídico: Lições de Filosofia do Direito, 1ª ed., tradução de Márcio Pugliesi, p. 135. São Paulo: Ícone, 1999. 440 REVISTA DO INSTITUTO DOS ADVOGADOS DE SÃO PAULO v. 35, JANEIRO - JUNHO 2015 de uma norma jurídica como determinado através de uma norma jurídica”78. Por outro lado Kelsen rejeita veementemente as concepções formuladas por uma corrente de pensadores iniciada na Magna Grécia, tendo no Século XVII expoentes como Hugo Grócio [1583-1645], Thomas Hobbes [1588-1679] e John Locke [1632-1704] e designada por Direito Natural. Hobbes formula célebres expressões como “homo homini lupus”79 e “bellum omnium contra omnes”80, para quem o direito reduz-se à força, mas distingue dois momentos na história da humanidade: o estado natural e o estado político. No estado natural, o poder de cada um é medido por seu poder real; cada um tem exatamente tanto direito quanto de força e todos só pensam na própria conservação e nos interesses pessoais81. Tais assertivas soam familiares, ainda mais se consideradas as ponderações de Ferdnand de Lassalle na sua A Essência da Constituição82, ao tratar dos “fatores reais de poder” que diferenciam uma Carta Política Fundamento de um apanhado de “folhas de papel”. Entretanto o Direito Natural não se resume a essa aparente feição de brutalidade, da qual o ser humano se torna sociável “por acidente” na opinião de Hobbes83, ou por imperar interesses egoísticos intolerantes, conforme teceu John Locke considerações em sentido contrário, a propósito de quem, desde Voltaire84 até Bobbio, são desenvolvidos os mais variados e consistentes estudos sobre a tolerância, o governo civil e a distinção entre a teocracia e o pacto social, sendo este sim a origem do poder governamental85. Norberto Bobbio considera que “para compreender o que se quer dizer com a expressão direito natural, será preciso começar com o conceito de natureza. O direito 78. Cf. Teoria Pura do Direito, p. 109. 79. “O homem é o lobo do homem”. 80. “A guerra de todos contra todos”. 81. Cf. André Vergez. História dos Filósofos, 2ª ed., tradução de Lélia de Almeida Gonzalez, p. 217. Rio de Janeiro: Freitas Bastos, 1972. 82. 6ª ed., tradução de Aurélio Wander Bastos. São Paulo: Lumen Juris, 2001 83. Cf. op. cit supra, p. 217. 84. Cf. op. cit. supra, p. 218. 85. Cf. op. cit. supra, p. 219. Cf., ainda: Norberto Bobbio. Locke e o Direito Natural, 1ª ed., tradução de Sérgio Bath. Brasília: UnB, 1997. DOUTRINA . TEORIA GERAL DO DIREITO HANS KELSEN E O POSITIVISMO JURÍDICO 441 natural provém da natureza e se funda na natureza. Mas, o que é natureza? Trata-se de um conceito, entre muitos de caráter extremamente genérico, que recebemos dos gregos e, dois mil anos a fio, não cessa de atormentar os filósofos que procuram determinar o seu significado”86. Prossegue, mais adiante: “para entender o que os gregos queriam dizer com natureza é preciso remontar a Aristóteles, dedicado precisamente a explicar o sentido de natureza. Nele encontramos a conhecida definição: ‘no sentido primário e próprio, natureza é a substância dos seres que têm em si mesmos, enquanto tais, o princípio do seu movimento’”87. Após divisar “o que é” e “o que não é” próprio da Natureza, acrescenta: “certas regras derivam da natureza e, por isso, constituem o direito natural; outras derivam da arte ou da convenção – as do direito positivo. Dessa resposta dada pelos gregos ao problema do Direito, surgiu a dicotomia entre o direito natural versus direito positivo, que chegou até nós, depois de mil peripécias. A nós, hoje, pode parecer estranho que o direito pudesse ser considerado, pelo menos em parte, uma coisa natural, um produto da natureza. Se hoje propuséssemos a pergunta nos mesmos termos em que fora proposta pelos gregos, não hesitaríamos em responder que as regras que dirigem e controlam a vida social são um produto do fazer humano, entendido no duplo sentido aristotélico de ‘produzir’ e ‘agir’. A prova é a seguinte: se em vez de considerar as noções tipicamente gregas de arte ou convenção como antitéticas à natureza, tomássemos os outros termos da antítese, como sociedade, civilidade, história, espírito, só seria possível uma resposta: ‘o direito, todo ele – sem possibilidade de distinção – é produto da sociedade, ou da civilidade, ou da história, ou do espírito. É, contudo, preciso levar em conta que, nas sociedade antigas – inclusive na helênica – o direito era essencialmente consuetudinário: um conjunto de regras transmitidas de geração a geração, aplicadas pelos magistrados e seguidas espontaneamente pelos cidadãos. O direito legislativo, como o entendemos, ou seja, o direito proposto por uma vontade dominante, individual ou coletiva, era um fenômeno excepcional. Ora, a caracerísitca do direito consuetudinário é que ele é aceito como se sempre tivesse existido: são as regras cuja origem não conhecemos exatamente e com as quais nos conformamos por instinto, por imitação, por hábito; não porque nos curvamos, quem sabe a contra-gosto, à sua autoridade, mas porque todos 86. Cf. op. cit. supra, p. 27. 87. Idem. 442 REVISTA DO INSTITUTO DOS ADVOGADOS DE SÃO PAULO v. 35, JANEIRO - JUNHO 2015 os demais, antes de nós, e os que estão a nosso lado, se comportam assim, e parece que não poderiam conduzir-se de outra forma. A distinção entre natureza e norma proposta por uma vontade dominante é evidente, mas muito menos óbvia é a que existe entre natureza e costume”88. Na opinião de André Franco Montoro “o Direito positivo é constituído de normas elaboradas por uma sociedade determinada, para reger sua vida interna, com a proteção da força social. Direito natural significa coisa diferente. É constituído pelos princípios que servem de fundamento ao Direito positivo”89 e mais adiante acrescenta: “a palavra ‘direito’ indica realidades diferentes num e noutro caso. Inúmeras interpretações inexatas do Direito natural decorrem [...] do fato de se atribuir significação unívoca, isto é, uma única significação ao vocábulo ‘direito’ em ambos os casos” e arremata: “ o Direito natural, na sua formulação clássica, não é um conjunto de normas paralelas e semelhantes às de Direito positivo. Mas é o fundamento do Direito positivo. É constituído por aquelas normas que servem de fundamento a este, tais como: ‘deve se fazer o bem’, ‘dar a cada um o que lhe é devido’, ‘a vida social deve ser conservada’, ‘os contratos devem ser observados’ etc., normas essas que são de outra natureza e de estrutura diferente das do Direito positivo”90. A “generalidade” do que seja o Direito Natural, a partir dos primórdios da Civilização Ocidental fundada no “kalos kai agathos” (καλός καi αγαθός), ou seja, no Belo e Bom, ou nos fundamentos do Direito Romano, calcado no “honeste vivere”, “neminem laedere” e “suum cuique tribuere” dificultam, para não dizer praticamente impossibilitam a formulação de uma Teoria Geral do Direito “universal”, “fixa” e “invariável” com bases nesses parâmetros, dadas as oscilações compreensivas de tais elementos, dificuldade essa irresistível a redução e teste da formulação a critérios “científicos”, o que torna imbatível, sobre esse prisma “científico” a proposição de uma Teoria formulada a partir do Direito Positivo. Entretanto, é assente que o próprio Direito Positivo está fundamento na norma jurídica, que nada mais é do que produto da “vontade humana”, ainda que o processo de produção também seja definido por “determinada norma jurídica”, uma vez que qualquer que seja o mecanismo de “criação”, tal se dará porque dada coletividade de 88. Op. cit., p. 30. 89. Op. cit., p. 59. 90. Op. cit. supra. DOUTRINA . TEORIA GERAL DO DIREITO HANS KELSEN E O POSITIVISMO JURÍDICO 443 pessoas, organizada autonomamente e situada em certo território, assim entendeu. Essa “vontade humana” pode ser traduzida como a “vontade do legislador” e, mesmo que se considere o resultado [norma] destacado e desvinculado da ideologia ou outros fatores determinantes para a produção normativa, estará vinculada a uma “abstração“, ou a uma “conveniência social” ou a designação que queira dar, como, por exemplo, “norma fundamental”, cuja origem só pode ser determinada a partir da própria vontade humana, de modo que a tentativa de atribuir uma feição “pura” ou um critério de “cientificidade” a uma Teoria do Direito somente permite a aceitação geral, se considerada como uma das várias possível para compreensão do que seja o Direito e não a única. Quanto a intersecção entre o Direito e a Moral, Kelsen refere: “o Direito só pode ser distinguido essencialmente da Moral quando – como já mostramos – se concebe como uma ordem de coação, isto é, como uma ordem normativa que procura obter uma deerminada conduta humana ligando à conduta oposta um ato de coerção socialmente organizado, enquanto a Moral é uma ordem social que não estatui quaisquer sanções desse tipo, visto que suas sanções apenas consistem na aprovação da conduta conforme às normas e na desaprovação da conduta contrária às normas, nela não entrando sequer em linha de conta, portanto, o emprego da força física”91. Observam, a propósito, Jean-Cassien Billier e Aglaé Maryioli que “Segundo Kelsen, o dualismo direito positivo / direito natural é insustentável por uma razão simples, mas fundamental: fazer depender a validade de uma ordem jurídica da sua conformidade com preceitos de justiça exteriores à ordem jurídica positiva é pressupor uma ordem moral absoluta e única à qual se deve conformar o direito positivo. ‘Sublinhar a necessidade’, afirma Kelsen, ‘ de separar o direito da moral, e , conseqüentemente, da justiça, tendo como fundamento uma teoria relativista de valores’ não significa que ‘o direito na tem nada a ver com a moral. Significa tão-só que, quando se julga uma ordem jurídica moral ou imoral, justa ou injusta, se indica a relação que ela tem com um dos numerosos sistemas morais possíveis e não com a ‘moral’, pelo que a validade de uma ordem positiva é independente da sua conformidade ou inconformidade com um qualquer sistema moral’92. Afigura-se evidente que a posição de Kelsen se concebe unicamente na perspectiva de uma teoria universal do direito e, por acrescento, pura, 91. Op. cit. p. 99. 92. Cf. História da Filosofia do Direito, p. 183, nota 20, tradução Pedro Henriques, 1ª ed. Lisboa: Instituto Piaget, 2001. 444 REVISTA DO INSTITUTO DOS ADVOGADOS DE SÃO PAULO v. 35, JANEIRO - JUNHO 2015 ou seja, naquela em que a unidade, para não dizer a unicidade, de qualquer ordem jurídica positiva possível não pode advir do conteúdo de uma ordem jurídica, mas sim da sua forma, isto é, do modo de criação de normas jurídicas. Independente daquilo que diz Kelsen, o jusnaturalismo do conteúdo é assim substituído por um jusnaturalismo da forma. Seguindo as duas abordagens, que só aparentemente serão opostas, a validade do direito positivo deriva apenas de princípios universais válidos, referindo-se ao conteúdo (teorias substanciais do direito natural) e outros à forma (norma fundamental que habilita uma autoridade criadora as normas). O argumento de Kelsen responde, de forma relativamente satisfatória, às teorias do direito natural universalistas substanciais. Mas o seu argumento, que se pretende positivista, não responde em caso algum às teorias jusnaturalistas de conteúdo historicamente variável”93. O Direito enquanto “Ciência”, ou “Teoria Pura”, apesar de justificar-se dentro de uma proposta positivista, é insuficiente para evitar que, com base nessa estrutura, o lobo contido no homem devore seu semelhante, de modo que a dicotomia Direito Positivo e Direito Natural configuram uma aporia. Mais: a circunstância de o Direito positivo aparentemente não conviver e excluir o Direito natural e vice versa é muitas vezes contornada a partir de “regras de calibração” disfarçadas em suas respectivas estruturas como, por exemplo, ocorre com os chamados conceitos vagos94 ou os princípios jurídicos não positivados como ocorre, por exemplo, com o da proporcionalidade, da razoabilidade e da dignidade da pessoa humana. Demais, contexto histórico após a Segunda Guerra Mundial impõe novamente outras reflexões, a começar pela mudança de orientação pontuada por Gustav Radbruch [1878—1949], segundo o qual “há princípios que são mais fortes do que qualquer estatuto jurídico [...]. Esses princípios dão pelo nome de direito natural ou direito da razão. É certo que, se o analisarmos ao pormenor, não estão isentos de dúvidas, mas o trabalho de diversos séculos elaborou, não obstante, um número constante e reuniu-o nas ditas declarações dos direitos do homem e direitos cívicos, sendo o acordo tão geral que só um pretenso cepticismo poderá fazer duvidar deles”95. 93. Cf. op. cit. supra, p. 183-184. 94. Cf. a propósito: Karl Engish. Introdução ao Pensamento Jurídico, 6ª ed., tradução de João Baptista Machado p. 205 e ss. Lisboa: Fundação Calouste Gulbenkian, 1988. 95. Cf. Introdução à Ciência do Direito, p. 215 e ss., tradução de Vera Barkow. São Paulo: Martins Fontes, 1999; cf. ainda, Jean-Cassien Billier e Aglaé Maryioli, História da Filosofia do Direito, p. 316. DOUTRINA . TEORIA GERAL DO DIREITO HANS KELSEN E O POSITIVISMO JURÍDICO 445 Evidente a marcante estrutura positivista do Direito Brasileiro, cujas raízes remontam ao final do Segundo Império, a partir de movimentos republicanos liderados por Benjamin Constant Botelho de Magalhães, sob influência de Augusto Comte, resultantes na Proclamação da República e ainda visível no “lema” impresso na Bandeira Nacional. Essa estrutura positivista espraiou-se na organização do Estado, a partir da Primeira República e está nítida nos textos das Constituições que se seguiram até a de 1967, com a Emenda 1, de 1969, não sendo abandonada, porém “atenuada” na Carta e 1988, mediante a “constitucionalização” ou “normatização” de diversos princípios, agora alçados à condição de imperativos expressos e outros implícitos, porém francamente invocados como fundamento, dentre os quais o da “proporcionalidade”, da “razoabilidade” e “da dignidade da pessoa humana”. A singela, sem deixar de ser significativa, mudança de posição é reflexo das reflexões retomadas por Gustav Radbruch e desenvolvidas por Helmut Coing96, dentre vários, propiciou extraordinário debate sobre a “teoria da norma” e, mais ainda, sobre a legitimidade das autoridades quanto possibilidade, ou não, de formular normas consideradas iníquas. Novamente Radbruch desafia: “se houver leis que neguem intencionalmente o desejo de justiça, por exemplo... recusando ao homem os direitos o homem de uma forma arbitrária, essas leis carecem de validade, o povo não é obrigado a obedecer-lhes e os juristas devem ter a coragem de recusar o seu caráter jurídico”97. A questão de saber se as autoridades, e as pessoas em geral, destinatárias da norma podem ou não recusar-lhes eficácia [e não hipótese de ser contrária a valores fundamentais, particularmente se não expressos em norma constitucional ou, ainda que expressos, seja a própria norma constitucional “in”constitucional por ofender um “valor fundamental], é tema de acirrados debates. A partir de uma formulação positivista, nos moldes preconizados pela Teoria Pura do Direito, a resposta é negativa, ou seja, se houver uma norma fundamento que dê baliza para a norma inferior tida por iníqua, esta norma pode ser considerada “injusta” ou imoral, porém é válida e deve ser reconhecida; se, do mesmo modo, a norma constitucional tida por “in”constitucional, por exemplo em razão de ter sido inserida em razão de processo constituinte derivado sem respeito à formalidade, ou se vier a 96. Cf. Elementos Fundamentais da Filosofia do Direito, tradução da 5ª edição alemã or Elisente Antoniuk, p. 269 e ss. Porto Alegre: Sérgio Antonio Fabris Editor, 2002. 97. Cf. História da Filosofia do Direito, p. 316. 446 REVISTA DO INSTITUTO DOS ADVOGADOS DE SÃO PAULO v. 35, JANEIRO - JUNHO 2015 ofender “cláusula pétrea”, padecer de um desses, por exemplo, poderá ser reconhecida a inconstitucionalidade, caso contrário, permanece hígida. Esse mecanismo lógico-positivo é tema de crítica formulada, dentre vários, por Fançois Rigaux98, uma vez que faz preponderar uma “solução formal” em detrimento de outra consonante com princípios e valores jurídicos reconhecidos, porém não considerados por ausência de “previsão legal”. Apesar da justeza, a redução do Direto em uma categoria perfeita e acabada, contendo ou do qual é possível extrair “respostas” para todas as questões jurídicas expressas ou implícitas, atuais ou futuras, imunizada de toda e qualquer “influência externa”, ou seja, em se constituir em uma estrutura hermética à economia, à sociologia, à psicologia e à filosofia, dentre vários ramos do conhecimento humano e da tentativa de se constituir em uma forma expedita de afirmação científica [do próprio Direito], tal empreitada pode resultar na justificação de resultados formalmente corretos, porém inaceitáveis sob outros parâmetros. Por outro lado, o abandono justamente dessas premissas tomadas por dogma do Positivismo também pode levar a resultados nefastos, dentre os quais a discriminação fora do limite normativo, a fragmentação dos direitos e garantias individuais e coletivos em nome de um “Estado Forte” normalmente justificado pela preponderância do interesse público sobre o privado, ou por concepções teocráticas nos Estados fundados em ideologias religiosas. Nesses termos, é estarrecedor observar a conformação da Teoria Pura do Direito aos sistemas jurídicos de Estados democráticos, teocráticos e totalitários, justamente por expurgar os elementos não jurídicos e identificar os caracteres comuns a todos: “norma” e “coerção” emanada e exigível de uma autoridade competente. Assim, qualquer que seja a premissa, a “explicação” e a consistência do Direito depende do tênue, para não dizer frágil, ponto de equilíbrio entre esses diversos aspectos e, ainda assim, certamente é utilizada para justificação de determinado modelo de “Poder”. 4. BIBLIOGRAFIA. ABBAGNANO, Nicola. Dicionário de Filosofia, 5ª ed. revista e ampliada, tradução de 98. Cf. A Lei dos Juízes, p. 107 e ss., tradução de Edmir Missio. São Paulo: Martins Fontes, 2000. DOUTRINA . TEORIA GERAL DO DIREITO HANS KELSEN E O POSITIVISMO JURÍDICO 447 Alfredo Bosi. São Paulo: Martins Fontes, 2007. ALEXY, Robert. Teoria dos Direitos Fundamentais, 2ª ed., tradução de Virgílio Afonso da Silva. São Paulo: Malheiros, 2011. _____. Teoria da Argumentação Jurídica: a teoria do discurso racional como teoria da fundamentação jurídica, 3ª ed., tradução de Zilda Hutchinson Schild Silva. Rio de Janeiro: Editora Forense, 2011. BEVILAQUA, Clovis. Código Civil dos Estados Unidos do Brasil, 2ª ed. 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Amanhã, dia 29 de Novembro, o Instituto dos Advogados de São Paulo completará 140 anos de existência, sendo a instituição jurídica mais antiga do Estado de São Paulo. O Instituto se orgulha nessa historia de desde o seu nascimento, congregar todas as carreiras jurídicas, não somente os Advogados, os membros do Ministério Público, da Magistratura e ter uma capacidade especial de diálogo. Miguel Reale, na sua genialidade, escreveu que na realidade, um Juiz, todos sabem, é um ser humano que participa de todas as emoções, inclinações e tendências do meio social e é exatamente esse cenário é um cenário que deve servir de exame da sua atuação. Todos nós sabemos que a palavra sentença é uma palavra de origem latina, gerúndio do verbo sentir e que é nela, na sentença que o Juiz coloca o sentimento dele. O nosso homenageado de hoje, o Ministro Ricardo Lewandowski congrega vários ângulos desse sentimento especial. O primeiro deles, como ser humano, apoiado pela Doutora Iara que todos nós conhecemos, que tem dado o apoio incansável para a sua trajetória. Também como pai e aqui, nós temos presentes dois de seus filhos, o Ricardo e o Henrique, que estão ali, os dois também Advogados, um Advogado em Londres, um dos poucos Advogados habilitados em advogar em Londres, o Ricardo e o Henrique é Advogado em Nova York e também a Lívia, que não é da área do Direito. Também nessas facetas do sentimento, além de homem, além de pai, a faceta de professor. O nosso Ministro é professor titular na cadeira Direito de Estado na Faculdade de São Paulo, tendo feito uma carreira brilhante naquela faculdade, regresso da Faculdade de Direito de São Bernardo do Campo, que ainda hoje, forma brilhantes professores advogados de todas as carreiras jurídicas e exatamente, nessa qualidade de professor, o Ministro Lewandowski tem trabalhado no Supremo, tem advogado a tese que nós conversávamos com o Presidente do Conselho Federal que não se trata de ser garantia, mas trata-se de respeitar a Constituição Federal e as Leis [palmas]. E imprensa notificou hoje, exatamente no dia de hoje a divulgação… noticiou os pareceres do ministério Publico federal, que eu tive o cuidado de lê-los, onde lá está escrito que a prisão preventiva serve de incentivo para colaboração do processo, o que é um verdadeiro absurdo e o procurador, quando entrevistado pelo jornalista, disse: “É na gaiola que o passarinho canta”. Se nós, da área jurídica admitirmos ainda mais um professor de Direito, que defende o Direito de estado, situações dessa jaez que não se confundem de nenhuma forma com o com- REUNIÕES-ALMOÇO DO IASP DESAFIOS E PERSPECTIVAS DO JUDICIÁRIO - RICARDO LEWANDOWSKI 455 bate à corrupção, com a impunidade, na quadra mais negra que nós estamos vivendo no nosso (incompreendido). Este ângulo também decorre do fato do nosso homenageado ter sido Advogado. Foi conselheiro da Ordem dos Advogados de São Paulo, da Seccional de São Paulo. Em 1990, foi para o Tribunal pelo 5º Constitucional para o Tribunal de alçada criminal e tem a sensibilidade do Advogado, por isso que a comunidade jurídica agradece ao Ministro Lewandowski o fato dele apoiar a suspensão de prazos que os provimentos dos Tribunais de Justiça editaram, que são apenas mais 8 dias uteis, mas que somados ao recesso estabelecido pela Lei, garantem as férias dos Advogados [palmas]. Um agradecimento especial, Presidente, por essa sensibilidade fundamental, porque o Advogado não tem carteira de trabalho assinada, o Advogado é vinculado pelo mandato judicial e os processos que demoram cerca de 10 anos, nós simplesmente, não temos a menor condição de nos planejar e isso não é para nenhum dos senhores e das senhoras que estão aqui nessa sala, que não representam, de fato, hoje, os mais de 300 mil Advogados em São Paulo, os mais de 800 mil Advogados no país que trabalham sozinhos, sem nenhum tipo de apoio e que esse período é um período fundamental para que ele possa descansar, ter respeito à família, à saúde, como recentemente, no próprio seminário realizado em Florianópolis, também se buscou e lá estabeleceu-se como diretriz, o apoio aos magistrados servidores nas questões de saúde. A ninguém, de bem, interessa o Poder Judiciário fraco, nem a Advocacia. No angulo do sentimento, também, além do homem, do pai, do professor, do Advogado, o Magistrado. O Magistrado que tem a coragem, de agora, não só como Presidente do Supremo Tribunal Federal, mas também como Presidente do Conselho Nacional de Justiça, tratando de questões intrincadas, que às vezes, até extrapolam a própria alçada e a missão que a constituição Federal estabeleceu para o Conselho Nacional de Justiça vai nos dizer, hoje, sobre os desafios e as perspectivas que nós temos. Senhoras e senhores, o nosso associado honorário do Instituto de Advogados, homenageado, Ministro Ricardo Lewandowski. [Palmas] RICARDO LEWANDOWSKI PRESIDENTE DO SUPREMO TRIBUNAL FEDERAL Permitam-me quebrando um pouco o protocolo, porque acabo de saber que aqui neste venerando Instituto de Advogados de São Paulo não se faz menção à nomes para não permitir, eventualmente, o nome das inúmeras, de algumas… das inúmeras personalidades e autoridades que aqui se encontram, mas eu preciso até por um dever de amizade, fazer menção aqueles que me acompanham não diria na mesa principal, porque todas as mesas são principais, mas essa mesa que se encontra a minha frente. E desta forma, eu quero manifestar os meus profundos agradecimentos ao querido Presidente José Horácio Halfeld Re- 456 REVISTA DO INSTITUTO DOS ADVOGADOS DE SÃO PAULO v. 35, JANEIRO - JUNHO 2015 zende Ribeiro, que é o Presidente deste Instituto a oportunidade que me dá de usar da palavra nessa data extremamente significativa que é a data em que esse Instituto comemora 140 anos de existência, é, na verdade, mais do que uma associação que congrega Advogados, mais do que um grupo de pessoas que se dedicam ao estudo do Direito, é já na verdade, uma verdadeira instituição da Republica, permitam-me dizer. Quero cumprimentar meu ex-colega, Ministro de ontem e de sempre, Doutor Francisco Rezek, aliás, Professor Francisco Rezek; quero cumprimentar o Desembargador Fabio Prieto, que é Presidente do TRF da 3ª Região, o nosso iminente bâtonnier da Ordem dos Advogados do Brasil, Doutor Ministro Furtado Coelho, que muito tem contribuído para a garantia do estado de Direito em nosso país, cumprimentar Doutor Marcos Costa, Presidente da OAB, Seccional São Paulo, tive a honra de integrar como conselheiro; quero cumprimentar o Doutor Paulo Casseb, que é Presidente do Tribunal de Justiça Militar; o Desembargador Marco Antônio Marques da Silva, meu antigo colega, colega não apenas de judicatura, mas também de Magistério, portanto é Professor Titular da PUC, Direito Penal, acaba de nos dizer, também, da sua preocupação especial com as garantias constitucionais, tema ao qual se dedica há tanto tempo em seus estudos acadêmicos; cumprimentar o Doutor Sergio Rosenthal que esta presente aqui a nossa frente, que é o Presidente da Associação dos advogados, meu querido amigo de longa data, Mario Sergio, Soares Garcia; cumprimentar o Deputado Arnaldo faria de Sá, que é um defensor das nossas questões, e digo “nossas” porque são questões comuns da Advocacia do Ministério Publico e também, do Judiciário perante a Câmara dos Deputados, muito obrigado pela sua presença, que muito nos honra, aliás, presença constante em todos os eventos em que a família forense, como o Marcos Vinicius, Doutor Marcos Vinicius e eu gostamos de dizer, é uma antiga ideia, antigo conceito que precisa ser recuperado. Há alguns anos atrás, nós éramos uma família: Advogados, membros do Ministério Publico e Magistrados e convivíamos fraternalmente nas mais variadas ocasiões, tínhamos até a Páscoa da família forense que não sei se ainda se realiza, mas talvez, não com tanta intensidade, com tanto fervor, com tanta amizade como se fazia no passado, mas é preciso recuperar essa ideia. Eu queria, primeiramente, tranquilizá-los, porque não vou fazer uma palestra acadêmica, até porque o instituto que tem quase 150 anos tem a sabedoria de primeiramente, oferecer ao palestrante a entrada e depois, acenar com o segundo prato, se a palestra for longa, evidentemente, o segundo prato será cortado, portanto, tranquilize-se que eu quero trazer a senhoras e senhores apenas alguns números que hoje o Poder Judiciário Brasileiro, portanto, todos operadores do Direito enfrentam e devem enfrentar com bastante preocupação. Aquelas que tem me honrado com a presença em diferentes reuniões, as quais tenho comparecido e nas quais, me foi dado o usar da palavra, eu tenho expressado uma REUNIÕES-ALMOÇO DO IASP DESAFIOS E PERSPECTIVAS DO JUDICIÁRIO - RICARDO LEWANDOWSKI 457 preocupação com um fenômeno, e perdoem-se se repito esta figura para aqueles que já me ouviram, um fenômeno que o sociólogo português Boaventura Souza Santos chama de “Explosão de Litigiosidade”, é um fenômeno que se dá, não apenas no Brasil, mas em todos os países do mundo e ele, na verdade, ele tem duas raízes, dois vetores, duas causas, fundamentalmente. Em primeiro lugar, é o mundo plural urbano, o mundo cosmopolita, o mundo globalizado em que nós vivemos, em que os conflitos, evidentemente, que têm origem e interesses multifalhos eclodem a cada momento, a cada instante e que precisam ter uma solução adequada. Em segundo lugar, este fenômeno da “Explosão de Litigiosidade” tem uma outra etiologia que pode ser buscado naquilo que nos aponta o recentemente falecido, justo filosofo italiano, Norberto Bobbio, que dizia que no final do século XX, no começo do século XXI, nós ingressamos na era dos direitos. O momento que ele chama de avanço moral, avanço civilizatório da humanidade em que se passa não apenas a estudar os direitos fundamentais em tese, já escritos em tratados internacionais, em constituições, em leis especificas, mas se trata, efetivamente, de concretiza-los. Então, é o momento em que o homem comum descobre que tem direitos, bate às portas do judiciário e vai cobrá-los. Então, nós temos este fenômeno da “Explosão de Litigiosidade”, são milhões de conflitos, milhões de litígios que aportam ao Judiciário e que demandam uma solução. Eu trago, então, as senhoras e aos senhores, uma preocupação nossa, nossa porque digo que num primeiro momento é uma preocupação do Poder Judiciário e creio que deve ser, também, uma preocupação também de todos operadores do Direito que é uma preocupação no sentido de que nós vivemos, diria eu, uma superação, uma obsolescência desse tradicional sistema adversarial de solução de controvérsias. Por quê que eu digo isso? Eu digo isso porque o Conselho Nacional de Justiça que eu presido, durante alguns anos, vem fazendo uma pesquisa da Justiça em números, exatamente para cumprir a função precípua, a função principal que a Carta Magna assinala que é a de fazer o planejamento estratégico do Poder Judiciário. E na ultima pesquisa relativa ao ano de 2013, divulgada agora em 2014, pesquisa essa que preparou o encontro que tivemos, 8º Encontro nacional do Poder Judiciário em Florianópolis, revelou números bastante assustadores, números que nos diziam que em 2013 tramitavam no Brasil cerca de 95 milhões de Processos. Desse total de Processos, nós tivemos 28 milhões, aproximadamente, de casos novos, ou seja, mais de 1,2% do que aqueles que ingressaram no ano de 2012. Nós proferimos um total de 25,7 milhões de sentenças, ou seja, 3,5% a mais do que as sentenças proferidas em 2012. Houve um aumento, em média, de 1,8% de feitos em todo o país, isso resultou numa média de aproximadamente, 6 mil Processos para cada Juiz brasileiro, juiz estadual, juiz federal, juiz trabalhista, juiz eleitoral, juiz militar. Nós verificamos, também, que em média, o Juiz Brasileiro, nos últimos quatro anos, a pesquisa que fizemos retroagiu a esse quatriênio, ele proferiu cerca de 1400 458 REVISTA DO INSTITUTO DOS ADVOGADOS DE SÃO PAULO v. 35, JANEIRO - JUNHO 2015 a 1500 sentenças ou decisões por ano, que é um numero extraordinário, um aumento de 1,7% com relação ao ano de 2012. Nós baixamos, no ano de 2013, 27.700 mil processos, ou seja, 0,1% a mais do que 2013, apesar desse esforço inaudito que os magistrados brasileiros fizeram. Então, chegamos a uma conclusão que a nossa taxa de congestionamento em que pese esse esforço gigantesco, em que pese o aumento de 1,5% de investimento do poder judiciário, um aumento de 1,8% do numero de magistrados e que pese o aumento de 2% do numero de servidores, nós temos hoje 16.500 magistrados aproximadamente, cerca de 400 mil servidores, servidores efetivos, comissionados, terceirizados, colaboradores, leigos, conciliadores para esse imenso volume de processos, que não obstante, esse investimento, esse esforço, o crescimento da taxa de produtividade dos magistrados, a nossa taxa de congestionamento é de 70,1%, isto representa, essa taxa de congestionamento – é preciso dizer – representou um aumento de 1,3% com relação à taxa de congestionamento do ano de 2013. Isto significa o quê? Significa que de cada 100 processos que ingressaram no Poder Judiciário em 2013, apenas 30 deles foram efetivamente, resolvidos. Vejam então, as senhoras e senhores, que nós estamos com um problema serio em mãos, tendo em vista, o Brasil foi colhido em cheio por esse fenômeno da explosão de litigiosidade. Creio que hoje – não temos ainda dados precisos – creio que hoje nós temos cerca de 100 milhões de processos tramitando no Brasil, ou seja, dois processos para cada brasileiro. Evidentemente, essa é uma tarefa hercúlea, é uma tarefa de Sisyphus, personagem da Mitologia Grega, que empurrava eternamente uma pedra enorme montanha acima, quando chegava no cume dessa montanha, essa pedra rolava morro abaixo e novamente, durante séculos e séculos, esse trabalho era repetido. Evidentemente, temos que mudar o paradigma, nós temos que sair de uma cultura de c para uma cultura de pacificação. É preciso mudar a concepção como nós encaramos a solução dos litígios. Evidentemente, o Poder Judiciário não vai se furtar a cumprir a sua missão, que é a de prestar a mais eficiente jurisdição possível e para isso, estamos cuidando de implementar uma série de instrumentos, em primeiro lugar, o planejamento estratégico, que é missão, como disse, do Conselho Nacional de Justiça. Nós queremos mudar um pouco o viés desse importante conselho que foi9 criado pela Emenda 45 de 2004, que era um viés evidentemente convencional, para dar a ele um viés de planejamento estratégico para prestar maior eficiência ao Poder Judiciário como um todo. Nós estamos também, no Supremo Tribunal Federal, trabalhando com outros instrumentos que também foram criados nessa Emenda 45 de 2004 e são dois novos instrumentos bastante importantes, mas que ainda não despertaram o interesse necessário da comunidade jurídica. Houve até, no inicio, bastante resistência e eu, quando era Desembargador, aqui no egrégio Tribunal de Justiça, que Doutor Marco está representando aqui com tanta proficiência, REUNIÕES-ALMOÇO DO IASP DESAFIOS E PERSPECTIVAS DO JUDICIÁRIO - RICARDO LEWANDOWSKI 459 eu me lembro que tinha uma certa resistência às súmulas vinculante e ao instrumento de repercussão geral, mas eu vejo que hoje, com esse numero avassalador de Processos, nós temos que ter instrumentos alternativos para fazer com que o Juiz se debruce sobre questões que são realmente relevantes e não perca o seu tempo com matéria já resolvida pelas instâncias superiores, sobretudo pelo Supremos Tribunal Federal. Então, nós estamos dando ênfase ao julgamento das repercussões gerais, dos recursos extraordinários com repercussão geral e nós sabemos que quando o Supremo Tribunal reconhece que um determinado recurso extraordinário tem um interesse maior, um interesse que transcende o interesse subjetivo das partes, porque apresenta uma questão de relevância do ponto de vista econômico, social, politico, jurídico, então, ele é admitido pelo Supremo Tribunal Federal e nesse momento, todos os processos que tratam de temas semelhantes ficam sobrestados nos tribunais inferiores. E nós chegamos à conclusão que temos centenas de milhares de Processos sobrestados nos tribunais superiores aguardando uma decisão do Supremo Tribunal Federal, o Desembargador Nalini, meu grande amigo de longa data do Tribunal de Justiça diz que o Tribunal aqui de São Paulo e outros tribunais do pais já estavam, inclusive, obrigados a alugar prédios para arquivar os processos sobrestados que estavam aguardando o pronunciamento final da Suprema Corte do país. Então, estamos dando ênfase às repercussões gerais, porque ao Juiz interessa, realmente resolver questões novas e não antigas já discutidas e rediscutidas. Durante o meu mandato, embora tenha se iniciado formalmente, no dia 10 de setembro deste ano, começou tendo em vista a renuncia de meu antecessor, interinamente em agosto, desde então, nós já julgamos e ontem, tive a noticia de que a Ministra Carmem Lucia, presidindo a Sessão de ontem, porque fui homenageado para o meu gáudio pela querida Congregação da Faculdade São Francisco, ontem foi julgada mais uma repercussão geral que totaliza 45 repercussões gerais julgadas nesses quatro primeiros meses do segundo semestre de 2014, liberando quase 40 mil Processos sobrestados em primeira instância. Esses números ainda são imprecisos porque o Supremo Tribunal Federal não tem informações completas que estamos já requerendo com outros tribunais, mas me parece que além do planejamento estratégico, da utilização da repercussão geral e também das súmulas vinculantes, como todos nós sabemos, são pequenos enunciados sintéticos que resumem em poucas palavras o entendimento do Supremo tribunal Federal acerca da interpretação de certos temas constitucionais e que obrigam não apenas todo Poder Judiciário, mas também a administração publica essas súmulas vinculantes a partir da minha gestão serão editadas de forma regular, de maneira a permitir que os juízes tenham um norte em questões já decididas rapidamente e sem grandes consultas. Nós, nesse pequeno período de tempo em que assumimos a gestão da Suprema Corte, já aprovamos quatro súmulas vinculantes novas e temos 57 preparadas já em discussão, sobretudo na Comissão de Regimento e eu quero ver se até o final do meu mandato, vamos editar, pelo menos, de 50 460 REVISTA DO INSTITUTO DOS ADVOGADOS DE SÃO PAULO v. 35, JANEIRO - JUNHO 2015 a 100 súmulas [palmas]. Isso tudo auxilia o descongestionamento desse acumulo enorme de processos. Uma outra frente de ataque importante que nós queremos assumir é exatamente, a informatização do processo judicial no Brasil,. Nós sabemos que cada estado, cada Tribunal tem um sistema eletrônico, isso, evidentemente, dificulta a vida dos operadores do Direito. Mas é claro que isso não pode ser feito de acordo, segundo a imposição de cima para baixo, conversando com o Doutor Marcus Vinicius, conversando com o Presidente do tribunal de Justiça e outros colegas aqui, não apenas de São Paulo, mas de todo país, nós verificamos que alguns já desenvolveram alguns sistemas próprios, alguns advogados ainda estão um pouco, digamos assim, não tão avançados no conhecimento das minucias dessa nova técnica de manipulação dos Autos. Então, eu preciso ouvir todos os interessados e nós fizemos isso no oitavo encontro que tivemos agora, recentemente, algumas semanas atrás em Florianópolis, ouvindo todos os interessados, especialmente, representantes da Ordem e dos Tribunais e também, do próprio Ministério Publico para pouco a pouco, uniformizarmos esse universo importante, que é o universo da informatização do processo judicial. Mas tenham a certeza e tenham a tranquilidade de que isso não será feito de uma hora para outra, será feito de acordo com o esforço comum de todos . [palmas]. O Supremo também tem agilizado o julgamento de Processos. Nesses quatro meses que estivemos à testa do Supremo Tribunal Federal, já julgamos em nossa Presidência mais de 1.200 Processos, publicamos cerca de 500 acórdãos que estavam aguardando publicação, um acórdão, um HC determinado, estava parado há mais de 10 anos, aguardando exatamente, a ciência dos interessados, mediante a publicação devida, estamos colocando em dia, como também fizemos a distribuição de mais de 2 mil processos que estavam parados na Presidência, por razoes mais diversas possíveis. Mas o que eu queria dizer as senhoras e aos senhores, hoje, e esta é a grande mensagem que eu me permitiria transmitir a todos e que nós devemos, justamente, insisto nesse tema, mudar a nossa cultura, mudar o enfoque no sentido da solução de controvérsias, nós temos que sair, como eu disse, de uma cultura de litigiosidade para uma cultura de conciliação, de pacificação. E como é que nós fazemos isso? Nós fazemos isso utilizando meios alternativos, instrumentos alternativos de solução de controvérsias. E eu me refiro, exatamente, à conciliação, à mediação e também à arbitragem. O mundo moderno precisa desses instrumentos, porque como nós vimos, com esses números extraordinários aos quais eu me referi, não é mais possível que o Judiciário dê conta sozinho desses conflitos que existem na sociedade e que precisam ser resolvidos. Eu me permitiria, também aqui, fazer REUNIÕES-ALMOÇO DO IASP DESAFIOS E PERSPECTIVAS DO JUDICIÁRIO - RICARDO LEWANDOWSKI 461 uma rápida referência a um trabalho acadêmico que eu orientei no ano de 2005, portanto, há quase dez anos atrás, de um notável advogado chamado Roberto Ulhôa Cintra, essa Tese de Doutorado foi defendida com êxito na Universidade de São Paulo e resultou num livro publicado pelo Senado federal e chama-se “A Pirâmide da Solução de Conflitos”, e a tese tem mais um subtítulo que diz o seguinte: a contribuição da sociedade civil para a reforma do Poder Judiciário. E nessa Tese, o doutorando, então doutorando, defendia a ideia de que os conflitos numa sociedade se encerram dentro de uma pirâmide virtual. Quer dizer, ele dizia então, que os conflitos que se situam na base e na porção mediana desta pirâmide virtual devem ser resolvidos pela própria sociedade, devem ser resolvidos pela Associação… pela Sociedade Amigos de Bairro, pela Associação de Pais e Mestres, pelos clubes de serviço, pelo Rotary, pelo Lions, pelos conciliadores, pelos mediadores, pelos pastores, pelos padres, pelos sacerdotes, enfim, pela própria comunidade, porque todos eles, de modo geral, tratam de direitos disponíveis, ou seja, aqueles direitos que podem ser livremente transacionados e em linha de regra, dizem respeito a valores materiais. Apenas aqueles conflitos que se situam no ápice da pirâmide, que dizem respeito a valores que não podem sofrer qualquer tipo de intransigência, ou questões de estado é que devem aportar ao Judiciário. E também queria dizer e essa Tese que foi precursora, hoje, se revela uma realidade e se revela um caminho para a solução desses problemas que ousei apresentar a essa comunidade de doutos que aqui se reúne neste momento. Nós instauramos como uma politica permanente, uma meta permanente do Conselho Nacional de Justiça, justamente, a conciliação e ao longo de vários anos, estamos fazendo semanas de conciliação para incentivar esse tipo de solução de controvérsias alternativas com bastante sucesso. Hoje de manhã, acessei o sitio eletrônico do Conselho Nacional de Justiça e com muito agrado, com muita satisfação, eu vi que nessa nova semana que se inaugurou, agora, recentemente e terminou na sexta-feira… hoje, está terminando hoje, na sexta-feira, nós já tivemos 115 mil audiências de conciliação em todo país e nós já homologamos 1.300 milhões de reais em conciliações, efetivamente, realizadas, concretizadas. É um numero fantástico! Eu estive aqui na abertura da 9ª Semana de conciliação, aqui em São Paulo, estava presente o Doutor Nalini, Presidente, Doutor Fabio Prieto também, Presidente do STJ, Doutor Fabio Prieto, Presidente do TRF da 3ª Região e lá verifiquei que no Parque da Água Branca estavam programadas 5 mil audiências de conciliação, três mil na Justiça Estadual e duas mil na Justiça Federal, um numero enorme, que demonstra que a sociedade quer participar, realmente, desta forma alternativa de solução de controvérsias e eu mesmo tive a satisfação de presidir duas audiências de conciliação: uma na Justiça Federal, onde homologuei, assinei o termo de transação de uma Ação de danos morais que um cidadão 462 REVISTA DO INSTITUTO DOS ADVOGADOS DE SÃO PAULO v. 35, JANEIRO - JUNHO 2015 ajuizou contra a Caixa Econômica federal por uma questão enfim, que não vem ao caso aqui revelar em todos os seus detalhes. Mas depois de assinada a transação, eu verifiquei que ambas as partes saíram inteiramente satisfeitas, deram as mãos, olharam-se nos olhos e resolveram em poucos minutos a sua controvérsia. Na Justiça Estadual, é um caso um pouco mais complicado, trata-se de uma separação consensual, também, rapidamente, as partes chegaram num acordo, assinei o termo de conciliação e vi que as partes, embora sofridas, saíram também, satisfeitas pela solução rápida de seus problemas. O que eu quero dizer então, finalizando senhor Presidente, porque corro o risco de não ser agraciado com o segundo prato do almoço, que penso que nós temos que perseverar nesta forma ou nessas formas alternativas de solução de controvérsias: a mediação, a conciliação e a arbitragem, especialmente com relação à arbitragem, tive oportunidade de dizer também recentemente, creio que na FIESP, quando conversamos sobre esse tema, que o Brasil é hoje a 7ª economia do mundo e segundo alguns economistas, em breve, seremos a 5ª economia do mundo, oxalá isso ocorra de fato! E os grandes negócios hoje, sabemos, não podem se dar ao luxo, se houver eventual controvérsia ou litigio, não podem se dar ao luxo de aguardar a solução pela via judicial, busca-se então, a arbitragem. Nós temos aqui um eminente hábito que é o ex-Ministro Professor, sempre Ministro Professor Francisco Rezek que é uma das grandes soluções para esse mundo empresarial globalizado em que vivemos. Enfim, senhor Presidente do IASP, agradecendo muitíssimo a oportunidade que tive para compartilhar com todos alguns dos problemas que não são apenas do Judiciário, mas de toda sociedade brasileira, gostaria de terminar conclamando a todos que integram a família forense que nos ajudem a resolver este grande problema da solução dos litígios, dos conflitos no Brasil, que não é apenas nosso, do Poder Judiciário, mas que é de toda sociedade brasileira. Muito obrigado. PERSPECTIVAS ECONÔMICAS PARA O BRASIL GUSTAVO LOYO Economista e Ex-Presidente do Banco Central 464 REVISTA DO INSTITUTO DOS ADVOGADOS DE SÃO PAULO v. 35, JANEIRO - JUNHO 2015 REUNIÃO-ALMOÇO IASP GUSTAVO LOYOLA ECONOMISTA E EX-PRESIDENTE DO BANCO CENTRAL 20 DE MARÇO DE 2015 JOSÉ HORÁCIO HALFELD REZENDE RIBEIRO PRESIDENTE IASP Senhoras e senhores, muito boa tarde! É realmente com imensa alegria que o Instituto de Advogados de São Paulo realiza que esta é a primeira Reunião Almoço do ano de 2015 aqui numa nova casa acolhendo esse público, predominantemente, dos nossos associados e convidados para um tema que tem nos preocupado profundamente. A questão da Economia, ela efetivamente tá ligada não somente pelos fatores específicos que regem a atividade do mercado, mas sem dúvida, por conta das questões politicas. Eu recordava por conta dos 140 anos do instituto de advogados de São Paulo que o Instituto no ano de… no longínquo ano de 1892, editou pela primeira vez a sua revista e foi num cenário de absoluto turbilhão que me parece bastante apropriado recordar. À época, nós tínhamos a Constituição da República de 1891, que foi fruto também de muita reflexão e debate e colaboração do Instituto de Advogados de São Paulo que era uma carta muito clara que estabelecia os poderes do Executivo, do Legislativo e do Judiciário, mas existia uma crise politica muito grande, a conhecida Crise do Encilhamento, havia um processo inflacionário muito alto, havia um problema nas bolsas de valores e o Congresso, então, editou algumas leis, uma chamada Lei de Responsabilidade para limitar o poder do Presidente da época, que era Deodoro da Fonseca. O resultado todos nós sabemos, houve o fechamento do Congresso, a censura à imprensa, o que levou a uma ameaça de bombardeio da cidade do Rio de janeiro, que levou à renuncia do Presidente Deodoro da Fonseca e assumiu então à época, Floriano Peixoto, que governou institucionalmente até 1894, porque a Proclamação da República de 1891 não determinava que fossem chamadas novas eleições e isso não ocorreu. Um fato que marca a importância dos fatores econômicos para o próprio desenvolvimento do país. No dia de hoje, nós teremos a palestra do professor Gustavo Loyola. Professor Gustavo Loyola nasceu em Goiânia, tem uma carreira acadêmica brilhante e uma experiência também única. Por dois períodos, presidiu o Banco Central, antes de ter presidido, foi Diretor de Normas do Banco Central e foi o responsável pela estruturação do sistema bancário que nós temos no país. O ano passado, por muita justiça, pela Ordem dos Economistas, foi eleito o economista do ano e certamente nos trará hoje, se não alento, mas pelo menos, algumas diretrizes a cerca do cenário econômico que muito nos preocupa. Senhoras e senhores, o Professor Gustavo Loyola. REUNIÕES-ALMOÇO DO IASP PERSPECTIVAS ECONÔMICAS PARA O BRASIL - GUSTAVO LOYOLA 465 PROFESSOR GUSTAVO LOYOLA ECONOMISTA Senhoras e senhores, boa tarde! Meu caro José Horácio, gostaria de em primeiro lugar, agradecer o convite, a oportunidade para estar com as senhoras e senhores hoje, ilustres convidados que aqui estão, encontrar alguns amigos, conhecer outros amigos, também. É um prazer para mim, não digo nem em dobro, mas em triplo, talvez, estar aqui com os senhores e senhoras hoje, senão bastasse o prestigio, a tradição do IASP, eu quero dizer que eu me sinto sempre muito honrado, muito alegre de participar de um evento de advogados, de profissionais do Direito. Eu que fui criado neste ambiente, meu pai advogado, meu avo desembargador, também um tio desembargador, meu bisavô desembargador, um irmão juiz, cresci cercado de livros de Direito e de processos que o meu pai estudava em casa, sempre muito curioso, lia muito. Foi até uma decepção, de certa maneira, para o meu pai quando eu decidi fazer Engenharia Elétrica e não Direito, porque ele achava que eu faria Direito em função de toda essa influencia de casa, mas isso acabou ficando com o meu irmão do meio que fez curso de Direito, depois foi para o Ministério Público e agora, é juiz lá em Brasília. Tive a oportunidade de ser presenteado pelo José Horácio, com um belíssimo livro da história do IASP, ali encontrei um outro ponto de contato interessante, que vi lá que talvez o primeiro membro honorário do IASP foi Ruy Barbosa, Ruy que também foi Ministro da Fazenda, então temos aí uma ligação antiga entre as profissões de Direito e de Economia, naquela época não existia essa função, essa atividade, essa profissão de economista, os economistas eram os bacharéis de Direito que se dedicavam um pouco a chamada Economia Politica e evidentemente, isso é mais um aspecto importante para mim de ter tido essa oportunidade. Finalmente, do ponto de vista profissional, eu sócio lá da Tendências Consultoria, nossa empresa trabalha muito de perto com advogados, fazemos pareceres econômicos em ações para escritórios de advocacia e ações seja no âmbito judicial, seja arbitragem, então temos um contato muito próximo com a profissão e é sempre um prazer para mim trabalhar nessa fronteira que existe entre o Direito e a Economia, então com tudo isso, realmente, foi com grande satisfação que eu recebi o convite do IASP, essa homenagem e agradeço muito a oportunidade de estar aqui com os senhores e senhoras hoje. Eu vou falar rapidamente aqui como é que nós estamos vendo o cenário econômico brasileiro e quais são essas perspectivas para nossa economia ao longo dos próximos meses e anos. Vamos começar falando do cenário internacional, o cenário internacional que traz pelo menos três fatores de incertezas que nos afetam mais de perto: o primeiro é a chamada 466 REVISTA DO INSTITUTO DOS ADVOGADOS DE SÃO PAULO v. 35, JANEIRO - JUNHO 2015 normalização da politica monetária nos Estados Unidos. Depois da crise de 2008, a crise financeira muito severa de 2008 levou a uma reação também muito forte e até, de certo ponto, não usual do banco Central Americano, do Federal Reserve, reação essa que passou para uma queda… baixa dos juros, praticamente, os juros básicos nos estados Unidos estão a nível de zero e também, uma expansão da oferta de moeda através da compra de títulos pelo Banco Central Americano. Hoje, com a economia americana se recuperando, essa politica monetária está sendo revertida, o Banco Central, o FED já deixou de expandir a moeda, mas os juros continuam baixos e existe a perspectiva de aumento desses juros nos próximos meses e isso tem afetado muito os mercados financeiros, principalmente através da valorização da moeda americana em relação às moedas dos demais países, então há uma tendência global de valorização do dólar e nó estamos sentindo esse reflexo aqui, não é só por fatores internos que a moeda brasileira está se desvalorizando, mas também por fatores externos, por exemplo, hoje o euro tá valendo 1,05 dólares, há pouco tempo atrás era 1,30; 1,25 essa cotação, então isso mostra como o dólar se valorizou em relação ao euro e isso também é verdade em relação a maioria das moedas do mundo. Um outro fator que nos afeta também muito de perto é a desaceleração da economia chinesa, a China teve um papel fundamental no inicio dos anos 2000, principalmente no crescimento da economia global e na elevação dos preços dos produtos primários, minérios, produtos agrícolas em que o Brasil é um dos seus maiores produtores, o Brasil então, se beneficiou desse processo de crescimento acelerado chinês que aumentou a procura por esses produtos primários e elevou o seu preço, o preço das commodities. Na medida em que a China começa a ter a sua economia em desaceleração e esses preços de commodities começaram a cair e evidentemente, fica a grande dúvida sobre onde vai parar a desaceleração da economia chinesa. A China crescia em torno de 9 a 10% ao ano, hoje cresce em torno de 6,5% ao ano e como eu disse, há sempre a dúvida: vai parar aí nos 6,5 ou vai… ou essa taxa de crescimento cai ainda mais para 5, 4, 3, aí depende do grau de pessimismo do analista. Então, isso traz grandes dúvidas. De fato, essa pressão baixista no preço das commodities, que também é acentuada pela própria desvalorização do dólar, tem nos afetado. E o terceiro fator de incerteza externa, global, que afeta o Brasil são as dificuldades de recuperação da economia europeia, na chamada zona do euro, que usam o euro como moeda. Essa recuperação tem sido muito lenta, cheia de percalços políticos, existe aí uma dificuldade inerente ao fato de ser uma moeda para países, para entidades politicas autônomas, que são os países membros, a dificuldade de coordenação das politicas, principalmente no âmbito fiscal e a Europa teve muitos problemas para ajustar a sua trajetória de recuperação de uma crise que foi, realmente, muito forte. Diferentemente dos estados Unidos, em que a recuperação REUNIÕES-ALMOÇO DO IASP PERSPECTIVAS ECONÔMICAS PARA O BRASIL - GUSTAVO LOYOLA 467 foi mais rápida até em função dessa unidade politica, coincidente com a união monetária, mesma moeda. Além disso, sobre a Europa pairam algumas dúvidas de ordem geopolítica, principalmente, em função das ações da Rússia na Ucrânia, até que ponto há um potencial de desestabilização politica e econômica para Europa Central e Europa Ocidental em função desses eventos que estão acontecendo na fronteira sul ucraniana. Então, esses são assim, os principais fatores que ao meu ver, jogam aí um papel fundamental para a economia brasileira neste momento e nos meses e nos anos seguintes. Qual é a nossa visão, nossa tendência sobre esses fatores de incerteza? Nós acreditamos que num cenário mais provável, a recuperação da economia dos Estados Unidos se firma, ela de fato, ocorre, como de fato nós estamos vendo hoje pelos números e o Banco Central Americano começa a elevar os juros ainda este ano, mas de uma maneira muito cautelosa, muito lenta, tentando evitar turbulências no mercado, até porque há uma consciência no FED de que o dólar é uma moeda global e que um movimento mais abrupto nas taxas de cambio poderia causar um efeito boomerang sobre o próprio Estados Unidos, ou seja, na medida em que o resto do mundo fosse pior do ponto de vista econômico, isso poderia ter um efeito sobre a própria economia americana. Então, o FED vai se conduzir de uma maneira muito cautelosa, não é? Mas de todo modo, a tendência é de o dólar continuar apreciado, continuar valorizado em relação às moedas globais, então isso já tira aí do nosso cenário qualquer perspectiva de que o real se valorize em relação ao dólar, a perspectiva contraria é que a nossa moeda continue fraca perante ao dólar nos Estados Unidos. A Europa, a gente conta com a continuação dessa recuperação lenta, embora com uma expansão monetária muito forte por parte do Banco Central europeu que agora, de certa maneira, segue os passos do Banco Central americano, do FED, evidentemente, de uma maneira atrasada. A China, nós não acreditamos num cenário de desaceleração mais forte, acreditamos que as perspectivas de crescimento são moderadas, ou seja, a China pode ficar nos próximos anos com uma taxa de crescimento de 5 a 6%, que é suficiente para manter os preços dos produtos primários, as commodities em níveis historicamente altos, ou seja, não tão altos quanto foram no inicio dos anos 2000, mas historicamente, pegando uma perspectiva de longo prazo, em patamares razoavelmente altos. Acreditamos numa recuperação também muito lenta do Japão e América Latina com um menor crescimento, por força dessa queda dos preços dos produtos de commodities, a América Latina, grande parte dos países depende muito da trajetória desses preços. Bom, dado esse cenário internacional, como é que a gente vê a sua repercussão sobre o Brasil? Primeiro, a queda do… a primeira repercussão que a gente já sente e deve continuar sentindo nos próximos anos é a queda… a piora dos termos de troca do Brasil. Em outras palavras, os produtos que o Brasil exporta se tornam mais baratos vis-à-vis os preços dos 468 REVISTA DO INSTITUTO DOS ADVOGADOS DE SÃO PAULO v. 35, JANEIRO - JUNHO 2015 produtos que o Brasil importa. Então, o poder de compra do Brasil, vamos dizer assim, cai por causa do barateamento dos produtos que aqui são produzidos, né? Segunda repercussão sobre o Brasil é a continuidade de uma pressão para a depreciação, para a desvalorização da nossa moeda, isso em função justamente dessa mudança da politica monetária do FED. Aqui, além dessa pressão, deve-se dizer que não se espera uma trajetória linear de depreciação, uma trajetória muito calma de depreciação do real, mas sim, uma trajetória muito volátil em que as cotações da moeda americana tendem a flutuar muito, por exemplo, ontem o dólar chegou a 3,29 e agora, antes de vir para cá, eu tava olhando aí quanto que tava a cotação, tava 3,23; 3,22. Então, em um dia, poucas horas de pregão, uma volatilidade muito grande e assim, vai continuar a acontecer nos próximos meses. E aqui, nós temos um fator domestico também afetando, não é só o fator externo que vai desvalorizar o real, mas também, os fatores domésticos. Nós temos também um outro aspecto da repercussão sobre a economia brasileira que é de que o saldo da Balança Comercial Brasileira vai melhorar em função da desvalorização do real que favorece os nossos produtos do ponto de vista do preço em reais que o preço em dólar produzido em reais ficam mais baratos, mas por outro lado, essa recuperação da Balança Comercial Brasileira vai ser muito lenta, justamente em função da dificuldade que os principais parceiros comerciais brasileiros enfrentam. Então, nós não vamos conseguir abrir muitos mercados e nos aproveitarmos muito desta oportunidade que o real mais desvalorizado oferece em termos de expansão de exportação. Finalmente, o cenário então, internacional traz para o Brasil um contexto de maior aversão ao risco dos investidores. Os investidores estrangeiros se tornaram mais seletivos, eles tendem a procurar, vamos dizer assim, pelo em ovo, começam a selecionar, a se tornar mais reativos à situação domestica de cada país, mais reativo aos fatores idiossincráticos e isso vem num momento muito ruim para o Brasil, porque o Brasil tá se diferenciando dos demais países emergentes de uma maneira negativa em função do baixo crescimento, em função dos equívocos político-econômicos, em função da crise de politica. Então, nós temos aí um cenário internacional que não é dos mais favoráveis ao país, é um cenário difícil, porém não é um cenário de crise internacional, não é um cenário que nós enfrentamos por exemplo na crise da Ásia, na crise do México, na crise da Argentina, na crise da divida externa, é um cenário difícil mas que poderia muito bem ser ultrapassado se tivéssemos bons fundamentos econômicos aqui no Brasil, o que infelizmente, não é o caso, né? E aí, a gente chega no cenário domestico. Como estamos vendo o cenário domestico? Olhando primeiro de um lado político, nós não estamos considerando o impeachment da Presidente Dilma como um cenário mais provável, não quer dizer que não possa ocorrer, mas nós estamos afastando isso do nosso cenário mais provável, aquele cenário com REUNIÕES-ALMOÇO DO IASP PERSPECTIVAS ECONÔMICAS PARA O BRASIL - GUSTAVO LOYOLA 469 o qual nós trabalhamos e na realidade, estamos vendo do ponto de vista politico para os próximos anos, um governo fraco, um governo sujeito a ser desafiado sempre pelas forças politicas, um governo incapaz de ter uma agenda construtiva mais forte do ponto de vista de aperfeiçoamento das instituições, das reformas estruturais, enfim, um governo muito mais reativo às crises, reagindo muitas vezes de maneira atabalhoada, um governo que vai ser questionado desde o inicio, que está sendo questionado desde o inicio, aquilo que normalmente, ocorre em final do governo que é chamado de governo pato manco, o presidente pato manco, nós já temos uma pata manca, com todo respeito a presidente, desde agora, no inicio do governo. Então, isso traz de fato, deve trazer uma turbulência politica para os próximos anos, a não ser que ela consiga, de fato, ultrapassar todas essas dificuldades, tenha um novo pacto politico aí que certamente, passaria pelo PMDB, mas esse também não é o nosso cenário principal. Como, então, a gente tá vendo o cenário econômico? Aproveitando que a gente tá na hora do almoço, existe um ditado na Economia atribuído ao Premio Nobel Professor Milton Friedman que diz que em Economia não há almoço grátis. Evidentemente, se ele tivesse aqui, até ele poderia mudar essa coisa, pelo menos para os economistas, mas de todo modo, eu diria que não havendo almoço grátis, tá na hora de pagarmos pelos erros de politica econômica, é a hora de pagarmos a conta dos quatro, cinco, seis anos sucessivos e grosseiros, muitas vezes, da politica econômica e basicamente, nós estamos pagando isso com duas coisas: recessão e inflação. A pior situação possível que se pode ter em economia é recessão e inflação, a gente pode ter economia crescendo com inflação, ou uma economia que não cresce, mas sem inflação, mas nós estamos no pior dos mundos e isso significa o que no ponto de vista da Economia em 2015, aumento do desemprego e queda da renda das famílias, queda do lucro das empresas. E pela primeira vez, desde 2003, nós temos uma reinvenção da tendência de aumento do consumo das famílias brasileiras, pela primeira vez desde 2003. Não é a toa, tiradas as outras razoes, como o escândalo da corrupção, não é a toa que o nível de popularidade do governo caiu a patamares quase ao res do chão, estamos aí com uma popularidade muito baixa da Presidente e isso tem muito a ver com essa piora que nós estamos vendo da Economia, notadamente no emprego. O emprego vinha sendo o ultimo bastião aí de saúde na economia brasileira, mas já tem dado sinais aí ade enfraquecimento e infelizmente, nós vamos ver nos próximos meses, um aumento do desemprego. Também os salários reais estão caindo. Então, é um quadro desafiador para as empresas brasileiras e para as pessoas também, né, que a gente não via desde 2003, desde 2002, pelo menos. E não bastasse esse quadro aí muito ruim do ponto de vista de consumo, nós temos dois outros fatores que já afetam, que podem afetar até mais a Economia esse ano. O primeiro são os riscos de racionamento de energia elétrica e de água. De certa forma, já existe algum tipo de restrição 470 REVISTA DO INSTITUTO DOS ADVOGADOS DE SÃO PAULO v. 35, JANEIRO - JUNHO 2015 da oferta de água e ainda não estamos livres do risco de racionamento de energia elétrica, então basta dizer que se houver um racionamento de 10% do consumo de energia elétrica, o efeito sobre o PIB, sobre o crescimento do Produto Interno Bruto brasileiro, sobre a Economia brasileira é de 0,8%. Então, por exemplo, nós temos a tendência, uma estimativa de que o PIB brasileiro vai sofrer um decréscimo de 1,2% esse ano. Se houver racionamento, esse decréscimo seria de 2%, uma recessão realmente muito forte. Além disso, existem os desdobramentos do escândalo da Petrobras e da operação Lava Jato. Esses desdobramentos, eles vêm por dois canais, vamos dizer assim, o primeiro são os investimentos da própria Petrobrás, Petrobrás tem um papel importantíssimo no investimento do Brasil. A Petrobras, 10% mais ou menos da formação bruta de capital fixo, que é o termo economês para o investimento, cerca de 10% são investimentos diretos da Petrobrás, ora, se a gente por exemplo, uma hipótese, imaginar que a Petrobrás corte 30% deste investimento, vocês conseguem imaginar o impacto que isso pode ter sobre o investimento total no Brasil, sem contar os efeitos, vamos dizer assim, indiretos dessa retração do investimento da Petrobrás. E além disso, nós temos também, os efeitos que vêm das empresas que estão envolvidas nesse affair que terão maiores dificuldades para, vamos dizer assim, investir, elas são fortes investidoras em infraestrutura, as grandes consultoras brasileiras, grupos associados a elas e evidentemente, se elas não conseguem, vamos dizer assim, cumprir os seus cronogramas de investimento por questões financeiras ou legais, a gente vai ter também um outro fator aí que piora muito a perspectiva de PIB no curto prazo. Do lado um pouco mais positivo, eu diria que a politica econômica com o Ministro Levy, pelo menos, foi colocada no rumo certo, a saída do Guido Mantega e do seu fiel escudeiro, Arno Augustin trouxe, de fato, uma melhora qualitativa muito grande para gestão da politica macroeconômica, a gente já vê alguns resultados positivos disso na execução fiscal, mas a verdade é que existe ainda um ceticismo em relação à permanência dessa politica nos próximos meses e anos. De um lado, nós sabemos da necessidade que a Presidente tem de ajustar a Economia, porque caso não seja feito esse ajuste, ela se inviabiliza ainda muito mais na Presidência, mas por outro lado, nós sabemos que a cartilha do Ministro da Fazenda não é exatamente a cartilha da Presidente, a Presidente é economista, só que ela estudou com outros livros que felizmente, não foram os meus livros, os livros que eu estudei são outros, mas ela acredita em outras coisas e evidentemente, está tendo agora que ceder um pouco porque pelo estado de necessidade, mas nós não sabemos como é que isso vai desenvolver nos próximos meses. Nós tivemos aqui na semana passada uma manifestação a favor da Presidente, mas contra a político-econômica da Presidente, uma coisa meio estranha, então isso mostra que a própria base de apoio a Presidente é contraria a sua político-econômica. Enfim, então num quadro desse, o quê que a gente deve esperar REUNIÕES-ALMOÇO DO IASP PERSPECTIVAS ECONÔMICAS PARA O BRASIL - GUSTAVO LOYOLA 471 para 2015? Primeiro, o ajuste das contas públicas está sendo feito pelo Ministro Levy apesar de todas as dificuldades politicas, etc., nós achamos que um cenário mais provável vai ser capaz… esse ajuste vai levar ou vai evitar a perda do grau de investimento para o país, ou seja, nós conseguimos manter aí o grau de investimento, o que evita o pior em termos de crise para o país, como eu disse lá atrás, os mercados financeiros internacionais estão mais avessos ao risco. Se o Brasil é colocado numa categoria de país de alto risco, de elevado risco de inadimplência, de default, isso tem um efeito muito forte sobre os fluxos de capitais do Brasil e sobre a própria trajetória da moeda brasileira. Então, acreditamos que num cenário base isso será evitado pelas politicas do Ministro Levy, que evidentemente, penalizam muito a atividade econômica domestica, porque são baseadas principalmente em aumento de impostos e corte de investimentos do setor público. Acreditamos também num cenário de 2015, na continuidade da subida de juros pelo Banco Central, o Banco Central, embora preocupado com o crescimento da Economia, ele tem que evitar a inflação, porque a inflação desgarra e muito das projeções, a inflação já está projetada aí em torno de 8% esse ano, 7,9; 8% e qualquer descuido aqui poderia ser fatal e o Banco Central, então, tem que subir os juros, num contexto muito adverso de economia fraca, como suponho disse, essa situação de economia fraca com inflação é o pior dos mundos para quem está na politica econômica. O Banco Central sinaliza que vai deixar o cambio flutuar mais ainda, não vai intervir tanto no cambio como o fez no passado, o que gera maior volatilidade no mercado cambial, o governo já fez corretamente ao meu ver, os ajustes dos preços que estavam defasados, mas isso num curto prazo, trouxe todos os grandes prejuízos e grandes problemas. Nós estamos vendo aí, por exemplo, desequilíbrios econômicos… os desequilíbrios que foram introduzidos em muitos contratos na Economia por forca desse aumento espetacular da energia elétrica que nós tivemos esse ano, então é de fato, uma turbulência muito forte, embora, como eu disse, eu acho que não adianta ficar praticando preço irrealista, em algum momento, a coisa explode. E se a gente quer ser um pouquinho otimista, mas não dando uma de Cassandra, ou seja, de Cassandra não, de Poliana, eu diria o seguinte: a gente pode esperar aí uma… a politica do Ministro Levy mais uma atuação firme do Banco Central levem a reconstrução do chamado tripé macroeconômico que assegurou a estabilidade da Economia nos últimos ano, ou seja, um regime de cambio flutuante, uma situação fiscal melhor de superávit fiscais, que é o suficiente para gerar uma dinâmica favorável da divida interna e de outro lado, um Banco Central mais assertivo, mais afirmativo com relação à meta de inflação no Brasil, que é de 4,5. Essa reconstrução, no entanto, ela vai ser lenta e como eu disse, muito sujeita à chuvas e trovoadas em função do ambiente politico em que nos encontramos. Já se 472 REVISTA DO INSTITUTO DOS ADVOGADOS DE SÃO PAULO v. 35, JANEIRO - JUNHO 2015 nós olhamos um cenário mais negativo, ele seria deflagrado ao meu ver, pela saída do Levy, se houver por alguma razão, a saída do Ministro, isso seria de fato, uma ducha de água fria sobre aqueles que ainda têm alguma expectativa positiva e nós teríamos, de fato, o Brasil aí passando por uma crise econômica mais severa. De todo modo, mesmo num cenário mais negativo, eu acho que as nossas instituições são suficientemente fortes para evitar que o Brasil entre num cenário de descontrole tipo Venezuela, tipo Argentina, acho que as nossas instituições se encontrarão suficientemente fortes para aguentar um governo incompetente, porque as instituições, elas só se mostram fortes quando são testadas. Eu acho que as nossas instituições vão passar por um teste mesmo que se afigure uma situação de incompetência na área econômica. Enfim, para concluir então, o quê que a gente pode esperar? Um cenário externo desafiador, mas não se pode falar em crise, não é isso que o governo tá insistindo muito, de que o Brasil tá nessa situação por causa do cenário externo, não. Nós não temos mais aquele vento a favor que nos ajudava lá no passado, principalmente, nos dois primeiros mandatos… durante o primeiro mandato do Presidente Lula, não existe mais. O maior fator de incerteza domestico… o maior fator de incerteza econômico que nós temos hoje é a fraqueza politica da Presidente, onde isso vai nos levar e evidentemente, isso vai gerar uma grande turbulência no mercado nos próximos meses. Acreditamos que o Ministro Levy tenha o apoio politico minimamente suficiente para fazer algumas reformas, apoio este que é muito mais gerado por um certo instinto de sobrevivência do que pelo alinhamento de convicções. Se bem sucedido, esse ajuste que o Ministro Levy tá levando adiante pode levar a uma certa recuperação da Economia em 2016, mas nada de espetacular, quando a gente fala em recuperação da economia em 2016, nós estamos falando de sair de uma queda de 1,2 esse ano para um crescimento de 1,5 no ano que vem, muito longe das taxas médias de crescimento da economia que nós tivemos no inicio do ano 2000. E finalmente, eu acho que é uma constatação triste, eu acho que falta a Presidente Dilma tanto a vontade, quanto a capacidade politica para levar adiante as reformas necessárias para elevar a produtividade do investimento no Brasil, ou seja, somente com essas reformas é que nós poderíamos almejar trazer a taxa de crescimento de novo para patamares em torno de 3 a 4%, o modelo de crescimento do consumo que nós tivemos no inicio dos anos 2000, vamos dizer assim, potencializado por um cenário externo muito favorável, isso acabou, esse modelo não existe mais, esse, vamos dizer assim, nós precisamos substituir os motores de crescimento do Brasil e para isso, a gente precisa dessas reformas que ao meu ver, não serão feitas na gestão da Presidente Dilma. Oxalá, eu esteja errado. Muito obrigado. O QUE ESPERAR DO NOVO CÓDIGO DE PROCESSO CIVIL? TERESA ARRUDA ALVIM WAMBIER Relatora-Geral do Anteprojeto da Comissão de Juristas do Senado Federal. Professora. Associada Efetiva do IASP. 474 REVISTA DO INSTITUTO DOS ADVOGADOS DE SÃO PAULO v. 35, JANEIRO - JUNHO 2015 REUNIÃO-ALMOÇO IASP TERESA ARRUDA ALVIM WAMBIER RELATORA-GERAL DO ANTEPROJETO DA COMISSÃO DE JURISTAS DO SENADO FEDERAL 17 DE ABRIL DE 2015 JOSÉ HORÁCIO HALFELD REZENDE RIBEIRO PRESIDENTE IASP Senhoras e senhores, muito boa tarde! Tarefa muito difícil. O Processo Civil por muito tempo se tornou um vilão por conta da enorme quantidade dos mais de cem milhões de Processos que nós temos no país, e que, evidentemente, por conta da nossa estrutura fazem com que a resposta do cidadão, a resposta que o cidadão recebe do Poder Judiciário seja tardia. O Instituto de advogados de São Paulo tem no seu DNA a questão do Processo. O nosso primeiro presidente, um dos fundadores, o Barão de Ramalho, ele era professor da matéria no Largo de São Francisco. Lá, foi o seu terceiro diretor e tinha uma obra clássica que nós temos até um exemplar do nosso museu do Instituto que é a práxis brasileira. A tarefa é difícil porque nós nos sentimos, efetivamente, num quarto escuro. Os advogados não conhecem corretamente o posicionamento dos tribunais em determinados assuntos e além disso, muitas vezes, esses tribunais rapidamente, mudam as suas posições. Sem dúvida, acho que mais do que a questão da celeridade, o problema da insegurança jurídica talvez seja, realmente, o grande problema desse país. Não se pode responder para o investido, para o cidadão exatamente qual é a diretriz para inúmeros assuntos. Mas eu não estou aqui, evidentemente, para apenas passar uma mensagem de pessimismo em relação a esse quadro, mais do que isso, muito mais do que isso, uma mensagem de otimismo, porque o instituto escolheu, dentre os inúmeros e ilustres processualistas que nós temos no nosso quadro, a querida Professora Teresa Arruda Alvim Wambier para expor o que se pretende e o que se espera de um novo Código de Processo Civil. Eu conversava com a Professora muito mais por uma questão do cargo, mesmo ela tendo sido a relatora geral na Comissão de Juristas do Senado, mas sem dúvida é por conta da inteligência fulgurante dela, do berço que tem, do seu currículo como Bacharel, Mestre, Doutor e Livre Docente pela Pontifícia Universidade Católica de São Paulo, os seus trabalhos, os seus estudos que transcendem o nosso país, sem dúvida, nos dará hoje um alento em termos de instrumento para se ter uma Justiça mais efetiva no país. Senhoras e senhores, recebam a Professora Teresa Arruda Alvim Wambier. [Palmas] REUNIÕES-ALMOÇO DO IASP O QUE ESPERAR DO NOVO CÓDIGO DE PROCESSO CIVIL? - TERESA ARRUDA ALVIM WAMBIER 475 PROFESSORA TERESA ARRUDA ALVIM WAMBIER RELATORA-GERAL DO ANTEPROJETO DA COMISSÃO DE JURISTAS DO SENADO FEDERAL Boa tarde a todos vocês. Em primeiríssimo lugar, eu gostaria de agradecer o José Horácio pela gentileza de ter montado esse almoço, de ter me convidado. Quero agradecer a presença de todos, gente muito amiga, gente queridíssima, ex-alunos, alunos e quero dividir essa homenagem com o Paulo Lucon, porque na verdade, ele também trabalhou no Projeto e ele desempenhou uma função que eu seria incapaz de desempenhar que é a função politica. Eu sou tremendamente desajeitada politicamente e eu tenho certeza de que sob esse aspecto, eu não conseguiria fazer nem metade do que ele fez. Peço uma salva de palmas para ele. [palmas]. Bom, vou falar vinte minutos no máximo, vinte e cinco, não quero estragar o almoço de ninguém estou me sentindo extremamente inadequada por falar de Processo Civil num momento tão festivo, véspera de feriado, sexta-feira, mas enfim, ordens são ordens, nosso Presidente determinou e assim eu farei. Eu olhei para a Marcia agora e me lembrei de que quando eu era bem menina, como os meus pais são processualistas, eu cresci escutando conversas dos meus pais com Barbosa Moreira, Candido Dinamarco, Ada Grinover, etc., e uma coisa que sempre me invejou do Professor Dinamarco foi o fato de ele falar sem papel, ele chega, pega o microfone e fala uma hora, uma hora e meia sem olhar nem um esqueminha. Eu pensava com os meus botões: “Eu vou chegar lá um dia”, pois é, não cheguei e estou aqui com um pequeno rascunho, porque eu sem papel não consigo falar. Agora começa o meu tempo. Vou dizer para vocês rapidamente, algumas coisas sobre os quatro objetivos que nortearam as Comissões da Câmara e do Senado. Os objetivos foram fixados num primeiro momento pelo povo do Senado, que foram os primeiros que trabalharam com o texto e o primeiro deles, que seria no meu entender bastante importante, foi infelizmente abandonado pela Câmara, que foi o Projeto de simplificar o Processo, justamente o que o José Horácio estava dizendo, o Processo brasileiro é complicado, o que a gente pensou num primeiro momento, logo nas primeiras reuniões é: existe no Brasil uma deformação, o Processo é mais importante do que o direito material, muitas vezes, toda energia que o Juiz tem para gastar, ele gasta resolvendo o problema do Processo e não do mérito, quando na verdade isso é uma deformação que se percebe sempre porque há um Congresso de Direito Civil, aparecem 200 pessoas. Há um Congresso de Processo, graças a Deus, né, Lucon, aparecem mil pessoas, o que de alguma maneira, a gente percebe, que em alguma dimensão, isso não deveria ser assim, mas para nós que somos 476 REVISTA DO INSTITUTO DOS ADVOGADOS DE SÃO PAULO v. 35, JANEIRO - JUNHO 2015 processualistas é ótimo, sempre tem alguém que ganha com a desgraça dos outros, somos nós, os processualistas. Então, a primeira coisa que se pensou foi justamente em simplificar o sistema. Nós fizemos um Código mais enxuto, mais coeso que a gente imaginou, pudesse trazer alguma simplificação em termos de rito, mas a Câmara, infelizmente, tenho certeza de que não por culpa do professor Paulo Lucon, porque havia outros integrantes nesse grupo que trabalhou o Projeto na Câmara, ela tornou o Processo, enfim, não digo mais complexo, mas disciplinou de uma forma mais ampla situações que a gente tinha deixado para ser disciplinada por um dispositivo genérico, por exemplo. Não posso começar a dar exemplos, senão eu vou sair do meu tempo, mas esse exemplo é bom, Jurisprudência Defensiva, nós colocamos lá no Projeto um dispositivo que ficou, no sentido de que sempre que houver alguma causa que possa, eventualmente, gerar inadmissibilidade de um recurso especial extraordinário, ela deve ser, se não for considerada grave e se o recurso for tempestivo, ela deve ser ou afastada, ou corrigida. Nós achamos que com esse dispositivo genérico já estava claro que o Código pretende desestimular a Jurisprudência Defensiva e a Câmara, graças a Deus, deixou esse, mas colocou outros: carimbo borrado… carimbo borrado não tem, mas tem: recurso interposto antes do prazo não é intempestivo, guia mal preenchida deve gerar necessariamente a determinação do órgão jurisdicional, no sentido de dar um prazo para a parte consertar, etc., etc. então, foi nesse sentido, qual é o perigo que eu vejo nisso? Que eu espero em Deus que não aconteça, porque é lógico que eu não estou torcendo contra, estou torcendo a favor, mas o perigo que existe é que o texto tem que ser interpretado e na interpretação, surgem as dúvidas. Então, quem sabe, um Código com menos textos não geraria menos problemas? Não sei, espero que eu não esteja certa, porque por outro lado, essa ideia que houve na Câmara muito presente sempre no sentido de resolver todos os problemas, gera uma sensação de alívio quando a gente lê o Código e a gente fala: “Olha que interessante, esse problema está resolvido”, aí você começa assim: “Olha aqui, outro problema que está resolvido”, eu tenho a impressão de que isso pode ser positivo. Segundo objetivo das duas comissões, começou no Senado e foi aprimorado pela Câmara, realmente aprimorado: constitucionalizar o Código, quer dizer, hoje a leitura do Código deixa muito claro que ele, de fato, se insere num conjunto normativo maior em que a Constituição ocupa o papel de diploma jurídico principal, que enfim, a luz do qual todos os outros, devem ser compreendidos, interpretados, etc. e com isso, se colocaram alguns dispositivos que deixou evidente que princípios constitucionais estão visivelmente concretizados no Código. Vou dar dois exemplos, muito rapidamente, o primeiro, o contraditório; o contraditório é pleno, o contraditório se reflete nessa regra no sentido de REUNIÕES-ALMOÇO DO IASP O QUE ESPERAR DO NOVO CÓDIGO DE PROCESSO CIVIL? - TERESA ARRUDA ALVIM WAMBIER 477 que não pode haver decisões surpresa, mesmo em se tratando daqueles temas sobre os quais o Juiz pode decidir de oficio, deve decidir de oficio, ele deve proporcionar, às partes, a oportunidade de exercer o contraditório e mais, isso é uma coisa de que as pessoas não falam muito, mas eu acho tão interessante, aquele dispositivo que vocês, com certeza, já conhecem que está sendo bastante criticado, que determina ao Juiz como ele deve fundamentar a sua decisão, dizendo que o Juiz não deve colocar na sua decisão exclusivamente os elementos que seriam de base à conclusão, mas também os elementos que teriam servido de base à conclusão diferente, esse dispositivo é o contraditório para o Juiz, porque que sentido tem o contraditório se eu não suponho a existência de um observador neutro que vai avaliar o que as partes estão falando? É lógico! E isso está justamente nesse dispositivo que diz como tem que ser a fundamentação da sentença. Outro exemplo é o incidente de resoluções repetitivas, que, mais ou menos, na mesma linha do que já ocorre hoje com os artigos 543, B e C proporciona a aplicabilidade plena do princípio da isonomia, pessoas que têm problemas idênticos devem estar submetidos a uma decisão igual do Poder Judiciário e já vou chegar exatamente na observação que você fez na tua exposição. Também nós colocamos dispositivos no Código que têm por objetivo tornar o sistema mais eficiente, na medida em que, por exemplo, o Processo tem que andar para frente e não para trás, etimologicamente é isso: pro/cesso, movimento para frente, não retrocesso. Então, de fato, há algumas mudanças meramente procedimentais, mas elas são interessantes, que evitam que o Processo volte, por exemplo, quando se permite aos tribunais superiores julgarem as outras causas de impedir que não foram objeto do recurso, que não foram objeto do pré-questionamento, porque não foram, na verdade, nem objeto de decisão, então, imaginem, eu entro com mandado de segurança dizendo que eu não quero pagar determinado tributo porque ele é inconstitucional, aliás a alíquota está errada e, no meu caso, também houve prescrição. O Juiz de primeiro grau diz assim: “Não pague, seu tributo é inconstitucional”, o tribunal repete a decisão: “Não tem que pagar mesmo, o tributo é inconstitucional”, eu não posso recorrer, estou de mãos atadas, porque eu estou ganhando. Aí, o FISCO recorre e diz: “O tributo é constitucional”, e o STF diz: “É, o tributo é constitucional, sim”, mas isso não pode significar para a parte, então, pague, porque eu tenho outras duas outras causas de pedir que não foram examinadas, então nós acolhemos no Projeto, uma corrente doutrinaria, que na verdade, ela foi lançada pelo Ministro Eduardo Ribeiro, ele diz: “O tribunal pode, sim, decidir as outras causas de pedir. Porque isso é re-julgar a causa e isso é o que está na súmula 456 do STF. Esse é um exemplo que eu acho bom, porque hoje o que se faz? Hoje, se manda voltar o processo de segundo grau para ele examinar as demais causas de pedir, mas há outros, há também os embargos de declaração, se encampou no 478 REVISTA DO INSTITUTO DOS ADVOGADOS DE SÃO PAULO v. 35, JANEIRO - JUNHO 2015 Projeto, no Código a posição que prevalece maciçamente no STF no sentido de considerar que a parte, em termos de pré-questionamentos, fez o que lhe cabia quando entrou com o embargo de declaração, não precisa voltar para o Tribunal de segundo grau completar. Há outros exemplos, mas a ideia foi essa, fazer com que o Processo caminhe para frente e não volte para trás. Outra ideia que se procurou prestigiar no Código ainda, nesse contexto, em que se quis dar mais eficiência ao sistema, foi a necessidade de que o Juiz profira uma sentença de mérito, isso pode aparecer obvio, o Processo existe para que haja uma sentença de mérito, mas muito comumente, o Juiz brasileiro profere sentenças extinguindo Processos sem julgamento de mérito quando na verdade, não teria sido o caso. Isso é uma posição doutrinaria que o Bedaque sustenta, que eu sempre sustentei, as nulidades no Processo Civil assim como no Direito Publico em geral, são sempre sanáveis, então não é como no Direito Privado em que as nulidades absolutas são, por definição, insanáveis, não, as nulidades do Processo devem se sanar ou devem ser relevadas se o vicio não for grave, não gerar prejuízo, no caso concreto, embora seja um vicio teoricamente grave ou devem ser corrigidas. O Código está repleto de artigos em que ele recomenda no primeiro grau, no segundo grau, que os vícios sejam sanados, porque o que se quer do Processo é a prestação jurisdicional. Se vocês pensarem um pouquinho na verdade, a respeito desse assunto, que é um assunto que sempre chamou a minha atenção, os vícios do Processo, as nulidades, esse principio existe hoje, qual o vicio mais grave que pode padecer um Processo? A falta de citação, uns dizem que isso gera inexistência jurídica, outros dizem que gera nulidade absoluta, o fato é que apropria lei diz que se o réu padecer e contestar, o vício some, o vício se sana, ele pode ser concretamente consertado. O Código chega ao ponto de dizer, mesmo em relação as condições da ação, aos pressupostos processuais, se houver possibilidade de um Juiz mandar corrigir o vicio, ou relevá-lo, ele deve proferir a sentença de mérito, isso tem tudo a ver com a jurisprudência defensiva também. O que a parte quer? Quer o julgamento do mérito do recurso, não quer uma decisão de inadmissibilidade do recurso. O que a parte quer? Uma decisão que extingue o Processo com base no 267 sem julgar o mérito? Não, a parte quer uma decisão do 269, eu estou naquela fase que eu não consegui ainda decorar os artigos do Código novo, e já consegui esquecer alguns do Código em vigor, o que pode ser muito grave porque esse Código ainda está em vigor durante um ano. Bom, e se quer também que o Processo não volte para trás, se quer que o Processo gere condições para que o Juiz decida o mérito e se quer que o Processo gere condições para que o Juiz decida o mérito de vez e por isso que se criou a regra e não vou me aprofundar sobre ela, evidentemente, porque é uma regra complexa e nova, no sentido de que a autoridade de coisa julgada, a ação abarca não só REUNIÕES-ALMOÇO DO IASP O QUE ESPERAR DO NOVO CÓDIGO DE PROCESSO CIVIL? - TERESA ARRUDA ALVIM WAMBIER 479 o deciso mas também as prejudiciais, também o fundamento se a respeito do fundamento houver contraditório e decisão expressa. Isso de uma certa maneira, acaba evitando que aquela controvérsia sobre outra forma volte ao Judiciário para que ele decida de novo, no fundo, o mesmo problema e no direito brasileiro, a gente sabe, nós latinos, somos muito conceitualistas, estou sendo injusta porque os alemães também são, então nós falamos se a causa de pedir é outra, é outra ação, se o pedido é outro, mas no fundo, é o mesmo problema. E com essa regra no sentido de que a coisa julgada também estende a sua autoridade para as prejudiciais, aquilo também fica selado, congelado, não pode mais discutir. Então, se um contrato é considerado válido para fins de incidência de juros e se isso, problema da validade do contrato é amplamente discutido no Processo e o Juiz decide expressamente também essa questão, essa causa de pedir não pode ser mais usada em nenhum outro Processo para outro efeito, porque vai ficar acobertado pela coisa julgada tanto quanto o problema dos juros. O quarto objetivo que esteve presente de uma forma extremamente nítida, nesse primeiro momento em que se trabalhou no Projeto, foi o momento em que atuava a comissão de que eu fiz parte, embora eu também tenha participado das reuniões enquanto o Projeto estava na Câmara. Acho que fui a única sobrevivente da Comissão do Senado, mas o que sempre se entendeu, de uma forma quase unanime é que na verdade, o processo brasileiro é lento, moroso não em decorrência de algum efeito de rito, não há nada de errado com o procedimento no Brasil, porque não poderia ser mesmo muito diferente do que é. O quê que existe no Brasil, é uma versão inicial, uma contestação, provas, sentença e recursos, como é que o Processo pode ser diferente disso? Acho que nem na Arábia Saudita é muito diferente disso. Então, o que se pensou desde as primeiras reuniões foi que na verdade, algum outro tipo de alteração deveria ser feita no Código para que ele pudesse gerar esses efeitos relativos à celeridade dos feitos, porque a realidade é que os processos brasileiros não andam porque há Processo demais, então o rito pode ser uma maravilha, mas o Juiz pega no Processo hoje e vai pegar no mesmo Processo daqui a dois anos, quando der, quando tiver tempo. Então, não adianta… eu costumo usar uma comparação que não é jurídica, mas eu acho que é bastante expressiva, quando falo disso para os meus alunos, eu digo que o Processo brasileiro, em termos de procedimento, é como uma marginal, se você explica para um estrangeiro ou para alguém que não mora em São Paulo, não precisa ser estrangeiro que aqui no Brasil existe uma rua larga que não tem cruzamento, não tem farol, ele vai dizer: “Puxa, que beleza, então o transito flui que é uma maravilha, não tem porque parar”. Então por quê que para? Por quê que certos dias da semana, certas horas desses determinados dias, ninguém anda na marginal? A resposta 480 REVISTA DO INSTITUTO DOS ADVOGADOS DE SÃO PAULO v. 35, JANEIRO - JUNHO 2015 é simples, tem carro demais. Eu, às vezes, tenho vontade de pegar um helicóptero e olhar o que acontece que não anda se a rua é larga, se no tem cruzamento, por que não anda? É o mesmo problema do Poder Judiciário Brasileiro, não adianta fazer modificação no rito, no procedimento. Na verdade, as modificações necessárias naquilo, evidentemente, em que o Processo pode ajudar alguma coisa, porque os americanos dizem que o Brasil é uma litigious society, é uma sociedade briguenta, as pessoas brigam e tudo vai parar no Judiciário, as tais ADR estão começando aqui no Brasil, é algo que está ainda numa fase bastante, eu diria, embrionária e, de qualquer modo, eu tenho impressão de que isso no Brasil não vai servir para desafogar o Poder Judiciário. Mas enfim, essa é uma outra história, uma outra discussão. Mas o fato é que algo que evidentemente estimula a propositura de ações e torna inexorável a multiplicidade de recursos que se interpõem nos Processos todos os dias; é justamente a dispersão da Jurisprudência; então, no Brasil existe esse fenômeno, que eu acho que a gente não deve nem chamar de divergência jurisprudencial, porque não é que um Tribunal decida A e outro decida B, não! Um decida A, outro decide AX, outro decide B1, porque há variáveis. Eu acho que um exemplo bem expressivo dessa situação, em que não havia duas decisões sobre o mesmo problema, havia várias era a incidência de INSS sobre leasing: devolve o VRG, não devolve o VRG… então era uma bagunça nos Tribunais de segundo grau que só poderia se acalmar, só poderia deixar de ser tão expressiva como era, e é nociva, porque isso gera insegurança para o Juiz, para o jurisdicionado, para os próprios tribunais, para o Juiz de primeiro grau se houvesse estabilização da Jurisprudência nos tribunais superiores. Vamos pegar de novo esse exemplo do ISS, da incidência de ISS sobre leasing, o quê que aconteceu? O STJ entendia a situação de um jeito X, sumulou, a súmula não tinha nem dois anos, ele passou a decidir de um jeito diferente daquele que havia sumulado e no final lavou as mãos e falou: “Quer saber, não é comigo, é com o STF, esse assunto não é da nossa competência”, isso depois de muito, muito tempo decidindo de um jeito, depois de outro jeito, quer dizer, onde fica a segurança jurídica? Então na verdade, esses dois fenômenos são unanimemente considerados extremamente nocivos internamento e até externamente, porque há países que pensam duas vezes em investir no Brasil porque sabem que a Jurisprudência aqui é oscilante, principalmente, em matéria tributária, que é justamente um campo em que a Jurisprudência não poderia oscila, porque o Direito Tributário tem princípios que privilegiam de uma forma escancarada a segurança jurídica e a previsibilidade e se os Juízes decidem a respeito de Direi
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