Acesse aqui a versão completa em PDF

Transcrição

Acesse aqui a versão completa em PDF
VOLUME
NÚMERO
8
1
ISSN 1981-9862
*19819862*
www.revistaagendasocial.com.br
Encontro
Venho me encontrando com histórias como a do seu Sebastião desde 2010. Ele
foi um dos primeiros fotografados de uma série que em outubro completa 4 anos. Não
sei quando ϔindarei este trabalho, porque na verdade, ele foi tomando sua forma ao
longo do tempo; no começo, eu saia pra rua com a minha (na época) D90 e fotografava
tudo que era atrativo aos meus olhos. E com o tempo, fui me interessando mais pelas
histórias dos trabalhadores de rua. Hoje esta série já tem nome e até uma proposta
para ser exposta. Não sinto pressa para mostrar este trabalho às pessoas. Certo dia,
conversando com um amigo, ele disse que não adianta de nada produzir um material e
não expor, não trazer a arte à luz do dia. Concordo em termos. Estas fotos são pecinhas
de um caminho que trilhei e trilho em busca da minha essência como artista e fotógrafo,
nós eu e elas) já vimos sim a luz do dia, no nosso eterno namoro, nos nossos amorosos
reencontros das vezes que senti saudades daquela foto que ϔiz daquela pessoa “tal ano”
ou em “tal época”.
Com a maturidade batendo na porta, vejo que minha vida é uma experiência
visual e mais nada. Todas as outras experiências partem do meu desejo e até certa
obsessão por pelas formas e cores, principalmente aquelas que vêm das pessoas. Esta
série tem uma forte carga pra mim, pois me identiϔico muito com estes trabalhadores.
Qual ser humano com uma aptidão artística nunca se sentiu marginalizado ou invisível?
Com a sensação de que ninguém liga pra sua arte e que no ϔim das contas ela nem é
tão importante assim. Eu sinto que existe esta troca entre eu e eles e eu sinto que eles
na verdade, são os grandes artistas dessa nossa experiência visual: ver e ser visto como
nunca antes.
Júlio César Pires
(www.jcpires.com.br)
Sumário
DA NECESSIDADE DE UMA CIÊNCIA DO SOCIAL:
CONDIÇÕES E CIRCUNSTÂNCIAS
HISTÓRICO - SOCIAIS E
PERSPECTIVA HEGEMÔNICA DE ATUAÇÃO
SUSTENTABILIDADE EM EMPREENDIMENTOS
SOCIAIS: UM ENSAIO REFLEXIVO PARA UMA
ECONOMIA SOCIAL LOCAL
AMARAL, Odnélia Cristina S. de (UNA); MELLO,
Ediméia Maria Ribeiro (UNA).
SOUZA, Iael (UNESP)
TRABALHO E ECONOMIA CONTRA-HEGEMÔNICA: A CONTRIBUIÇÃO DO MST PARA REVOLUCIONAR
AS RELAÇÕES DE PRODUÇÃO O CAMPO E OS NOVOS
DESAFIOS
MELLO, Ediméia M. R. (UNA); ARAÚJO, Wânia Maria (UNA); SOUSA, Simone; CZYCZA, Cristiano;
RODRIGUES, Antônio José S (UNA); NASCIMENTO, Ana Isabel (UNA); ROMUALDO, Sandra (UNA).
ORIENTAÇÃO PROFISSIONAL DE JOVENS
DAS CAMADAS POPULARES BENEFICIÁRIOS DO
PROUNI COM FOCO NOS DESAFIOS DA TRANSIÇÃO
ESCOLA-TRABALHO
ANDRADE, Marco Túlio Carvalho de Souza (UNA);
MACHADO, Lucília R. de Souza (UNA).
ANÁLISE DA MERITOCRACIA NAS
RELAÇÕES DE PRODUÇÃO
DA EFICIÊNCIA PRODUTIVA À INSTABILIDADE
DA CLASSE TRABALHADORA
SILVA, Priscila Raposo (UNIMONTES);
RODRIGUES, Sílvia Gomes (UNIMONTES);
PEREIRA, Anete Marília (UNIMONTES).
ECONOMIA SOLIDÁRIA E EMPREENDEDORISMO
SOCIAL NO CERRADO NORTE MINEIRO
RODRIGUES, Luciene (UNIMONTES);
GONÇALVES, Maria Elizete (UNIMONTES);
BALSA, Casimiro (UNIMONTES).
VOIGT, Ana Clara C. M. (UNIMONTES);
OLIVEIRA, Simone M. (UNIMONTES)
AS NOVAS DINÂMICAS DE ORGANIZAÇÃO DO
TRABALHO ARTESANAL NO ATUAL CONTEXTO
ECONÔMICO BRASILEIRO.
SILVA, Flávia Leão Almeida (UFV-MG/Brasil);
BIFANO, Amelia Carla Sobrinho (UFV-MG/Brasil).
A REVOLUÇÃO TECNOLÓGICA,
REESTRUTURAÇÃO PRODUTIVA E A
PRECARIZAÇÃO DO CONTRATO DE TRABALHO
PAULINO, Alex Brant (UNIMONTES); FERREIRA,
Maria Da Luz Alves (UNIMONTES).
VISITAS TÉCNICAS COMO ATIVIDADE
FORMATIVA EM
CURSOS SUPERIORES DE TECNOLOGIA
RELAÇÕES RACIAIS E PLANEJAMENTO
URBANO: ALGUMAS CONSIDERAÇÕES
SILVA, Marcelo Martins da (UFABC)
MACHADO, Lucília Regina de Souza (UNA);
OLIVEIRA, Luiz Fabiano Miranda de (UNA).
A SIGNIFICAÇÃO DA PRÁTICA DO
BASQUETE PARA CADEIRANTES
ECONOMIA CRIATIVA NO BRASIL: TRAJETÓRIA,
BERLESE, Denise (FEEVALE); BASSO, Claudia
(FEEVALE); RENNER, Jacinta (FEEVALE);
SANFELICE, Gustavo (FEEVALE).
DEBATE E INSTITUCIONALIZAÇÃO DE UM
CONCEITO
LEITÃO, Andreza (UENF); GANTOS, Marcelo (UENF)
PROPOSTA DE GESTÃO DE PROJETOS APLICA À AVALIAÇÃO DE TÉCNICAS DE TRATAMENTO DE
ÁGUA PARA CONTROLE DE CIANOBACTÉRIAS NA BACIA HIDROGRÁFICA DO RIO DAS VELHAS,
MINAS GERAIS
THEODORO, Hildelano Delanusse (UFMG).
SOBRE A REVISTA
Revista semestral
interdisciplinar voltada
para a publicação de artigos
cientíϐicos que contemplem
as seguintes áreas:
1. Estado, Trabalho, Sociedade e Território;
2. Meio Ambiente, Estratégias de Apropriação e Con litos;
3. Política, Cultura e Conhecimento;
4. Educação, Política e Cidadania.
A EQUIPE
EDITOR-CHEFE
Prof. Dr. Geraldo Márcio Timóteo
EDITORES-JÚNIOR
MSc. Teó ilo Augusto da Silva
MSc. Cristiano Ferreira de Barros
MSc. Anna Esser
REVISÃO TEXTUAL
Prof. Dr. Geraldo Márcio Timóteo
DESIGN
MSc. Teó ilo Augusto da Silva
Carolina dos Santos Oliveira Viana
POLÍTICAS DE PUBLICAÇÃO
A Agenda Social publica artigos nos idiomas Português, Espanhol, Inglês e Francês. Os
artigos em português deverão vir acompanhados de um resumo em português e de um
abstract. O artigo submetido em qualquer outro idioma deverá apresentar um resumo
na língua original e outro em português.
• Preparação dos originais - Os artigos deverão ter, no máximo, 20 páginas em formato
A4, incluindo desenhos, ϔiguras, tabelas, fotos, notas e referências bibliográϔicas. Figuras,
desenhos, tabelas e fotos deverão inserir cabeçalho (se for o caso), créditos e legendas. Se
as ilustrações enviadas já tiverem sido publicadas, mencionar a fonte e a permissão para
reprodução. Se forem utilizadas fotos com pessoas, mesmo não identiϔicadas, devem vir
acompanhadas da permissão por escrito das pessoas fotografadas. No caso de crianças
ou adolescentes, suas fotos deverão estar acompanhadas da autorização dos pais ou
responsáveis. As resenhas críticas e entrevistas deverão ter, no máximo, cinco páginas
em formato A-4. Os trabalhos enviados deverão estar rigorosamente revisados, conforme
as normas gramaticais vigentes. O parecer sobre a aceitação ou não dos artigos será
comunicado aos autores. Excepcionalmente serão aceitos trabalhos já publicados (seja
em versão impressa ou virtual), desde que devidamente autorizados pelo autor e pelo
Conselho Diretor do veículo em que o trabalho tenha sido originalmente publicado.
As opiniões e conceitos emitidos nos artigos, bem como a exatidão, adequação e
procedência das citações e referências, são de exclusiva responsabilidade dos/as
autores/as, não reϔletindo necessariamente a posição do Conselho Editorial Executivo.
A Agenda Social não remunera os(as) autores(as) que tenham seus artigos nela
publicados. Agenda Social utiliza-se da avaliação do tipo Duplo Cego.
Padrão de apresentação: Os trabalhos devem seguir os critérios da Associação Brasileira
de Normas Técnicas-ABNT, que, durante a editoração, serão adaptados ao projeto e ao
formato editorial do periódico Agenda Social. Para autores estrangeiros é permitido o
uso das normas da American Psychological Association-APA, que, na editoração, serão
convertidas à ABNT. Os trabalhos devem ser, exclusivamente, enviados por meio do
site: www.revistaagendasocial.com.br. Deve ser utilizado o Editor Word for Windows,
seguindo a conϔiguração: fonte Times New Roman tamanho 12, papel tamanho A-4,
espaço interlinear de 1,5 cm, margens esquerda e superior de 3 cm e direita e inferior
de 2 cm. Todas as folhas devem ser numeradas na margem superior direita, excetuando
a primeira página embora esta deva ser contabilizada como página nº 1.
Licença Creative Commons
Este trabalho está licenciado sob uma Licença Creative
Commons Attribution 3.0 .
Todos os artigos publicados nesta revista foram enviados por seus autores que
concordaram com os termos e os adequaram as normas da publicação. Todos
os textos foram avaliados por membros da comissão da revista e entendidos
como aptos à publicação. Toda a cópia do material deve ter como referência o
conteúdo desta publicação.
INSTITUIÇÕES ENVOLVIDAS
Programas de Pós Graduação em Políticas
Sociais da Universidade Estadual do Norte
Fluminense Darcy Ribeiro (UENF)
Programa de Pós-Graduação em Ciências
Humanas e Sociais da Universidade
Federal do ABC (UFABC)
Programa
de
Pós-Graduação
em
Desenvolvimento, Sociedade e Cooperação
Internacional da Universidade Nacional de
Brasília (UNB).
Programa de Pós-graduação em Desenho:
Mestrado em Desenho, Cultura e
Interatividade, da Universidade Estadual
de Feira de Santana-BA (UEFS)
ABOUT THE JOURNAL
Interdisciplinary and
semestral journal that aims
the publication of scientiϐic
articles in the following
areas:
1. State, Work, Society and Landmarks;
2. Environment, Con lict and Appropriation Strategies;
3. Policys, Culture e Knowledge;
4. Education, Politics e Citizenship.
THE STAFF
CHIEF-EDITOR
Prof. Dr. Geraldo Márcio Timóteo
JUNIOR-EDITORS
MSc. Teó ilo Augusto da Silva
MSc. Cristiano Ferreira de Barros
MSc. Anna Esser
TEXTUAL REVISION
Prof. Dr. Geraldo Márcio Timóteo
DESIGN
MSc. Teó ilo Augusto da Silva
Carolina dos Santos Oliveira Viana
PUBLICATION POLITICS
Agenda Social publishes articles in Portuguese, Spanish, English and French. Articles in
Portuguese should be accompanied by an abstract in Portuguese and English. The article
submitted in any other language must present an abstract in the original language and
in Portuguese.
• Preparation of documents - Articles should be no more than 20 pages in a format A4,
including drawings, ϔigures, tables, photos, notes and references. Figures, drawings,
tables and photographs should insert a running head (if it is the case), credits and
captions. If illustrations submitted have been already published, it’s important to
mention the source and permission for reproduction. If photos with people, even if not
identiϔied are used, they must be accompanied by the written permission of the people
photographed. In the case of children or teenagers, your photos should be accompanied
by parents or guardians permission. The critical reviews and interviews should take no
more than ϔive pages in A4 format. The articles submitted must be rigorously reviewed,
according to current grammatical rules. The acceptance or rejection of articles will be
communicated to authors. Exceptionally will be accepted articles already published
(whether printed or virtual version), duly authorized by the author and by the board of
the institution in which the work was originally published. The opinions and concepts
expressed in the articles, as well as the accuracy, adequacy and correctness of quotes
and citations are the sole responsibility of the authors and do not n reϔlect the position
of the Executive Editorial Board of Agenda Social. Agenda Social does not pay the
authors that have their articles published. Agenda Social uses Double-Blind evaluation.
Standard for submission: Papers must follow the criteria of Associação Brasileira de
Normas Técnicas-ABNT, that during editing, will be adapted to the design and editorial
format of Agenda Social. Foreign authors are authorized to use the standards of the
American Psychological Association-APA, that in publishing, will be converted to ABNT.
Entries must be exclusively sent by the website: www.revistaagendasocial.com.br. It
must be in Word for Windows, with the following conϔiguration: Times New Roman
size 12, A4 size paper, interlinear space of 1.5 cm, left and top margins of 3 cm and
inferior and tight margins of 2 cm. All sheets must be numbered in the upper right
margin, except the ϔirst page, but this should be counted as page number 1.
Creative Commons License
This work is licensed under a Creative Commons License
Attribution 3.0.
All articles published in this journal were sent by their authors who agreed
with the terms and have adapted them to the standards of publication. All texts
were evaluated by members of the committee of the journal and understood as
suitable for publication. All copy of the material must have as a reference the
contents of this publication.
STAKEHOLDERS INSTITUCIONS
Programas de Pós Graduação em Políticas
Sociais da Universidade Estadual do Norte
Fluminense Darcy Ribeiro (UENF)
Programa de Pós-Graduação em Ciências
Humanas e Sociais da Universidade
Federal do ABC (UFABC)
Programa
de
Pós-Graduação
em
Desenvolvimento, Sociedade e Cooperação
Internacional da Universidade Nacional de
Brasília (UNB).
Programa de Pós-graduação em Desenho:
Mestrado em Desenho, Cultura e
Interatividade, da Universidade Estadual
de Feira de Santana-BA (UEFS)
Agenda
Social
ELETRONIC JOURNAL
VOLUME
NÚMERO
8
1
ISSN 1981-9862
www.revistaagendasocial.com.br
EDITORIAL
TIMÓTEO, Geraldo Márcio; SILVA, Teóϐilo Augusto da
Na abertura desta edição, gostaríamos de chamar-lhes a atenção,
primeiramente, para a própria capa. Ela traz uma foto de “Seu Sebastião”, foto
do publicitário Júlio César Pires. Sua escolha deu-se, claramente, pelo elemento
teórico que predomina nessa edição, que é a questão do Trabalho. “Seu Sebastião”
é a representação dos vários trabalhadores e trabalhadoras espalhados pelo Brasil
e o Mundo. Seu semblante e sua altivez é uma representação de todos aqueles que
construíram este país, com sangue, suor e lágrimas, mas, também, com a esperança de
um futuro melhor.
Nesta nova edição, primeira do oitavo ano, trazemos quatorze artigos. Doze
deles tendo a categoria trabalho como elemento central das discussões. São observadas
todas as suas riquezas de manifestações e implicações na realidade social desde,
ainda, início de século, em suas transformações performáticas e tragédias anunciadas.
Assim, podemos iniciar esse nosso percurso pela realidade analítica pelo que escreve
Iael Souza, que nos demonstra a necessidade atual da Ciência do Social, como foi
criada e de que forma foi imaginada. “Quem são, portanto, os sociólogos e seus objetos
de pesquisa?” esta é a pergunta que Iael parece pretender responder no artigo “Da
Necessidade de Uma Ciência Do Social: Condições e Circunstâncias Histórico-Sociais e
Perspectiva Hegemônica de Atuação”.
Em “Visitas Técnicas como Atividade Formativa em Cursos Superiores de
Tecnologia” Lucília Machado e Luiz Fabiano de Oliveira promovem uma discussão
acerca das visitas técnicas como recurso pedagógico em cursos de formação superior
técnica.
Odnélia Amaral e Edméia Mello em “Sustentabilidade em empreendimentos
sociais: um ensaio reϔlexivo para uma Economia Social local” trazem uma reϔlexão
“sobre gestão social para o desenvolvimento local, autogestão para o desenvolvimento
de negócios e responsabilidade social de iniciativas privadas, a partir de experiências
vivenciadas em empreendimento social”.
Já em “Trabalho e economia contra-hegemônica: a contribuição do MST
para revolucionar as relações de produção no campo e os novos desaϔios” um esforço
coletivo formado por Flávia Silva, Amelia Bifano, Ediméia Mello, Wânia Maria Araújo,
Simone Sousa, Cristiano Czycza, Antônio José Rodrigues, Ana Isabel Nascimento e
Sandra Marta Romualdo, analisa as relações de trabalho dentro dos campos do MST e
sua contribuição para o movimento agrário brasileiro.
Com o incentivo do governo federal para o ingresso das diversas camadas
sociais aos cursos superiores, diversos atores que antigamente não tinham este
acesso passam a considerar e tornar real esta possiblidade, contudo, como orientá-los
proϔissionalmente, esta é a problemática levantada por Marco Túlio Andrade e Lucília
Machado em “Orientação proϔissional de jovens das camadas populares beneϔiciários
do PROUNI com foco nos desaϔios da transição escola-trabalho”.
Transformações subjetivas nos trabalhadores e possíveis reϔlexos nas
transformações no mundo do trabalho é o tema de “Da eϔiciência produtiva à
instabilidade da classe trabalhadora” escrito por Priscila Silva, Silvia Raposo e Anete
Pereira.
Ainda no tema da importância do trabalhador para o capitalismo
contemporâneo, segue o artigo “Análise da meritocracia nas relações de produção” de
Ana Clara Voigt e Simone de Oliveira.
Retomando o objeto “empreendimentos sociais”, Luciene Rodrigues, Maria
Elizete Gonçalves e Casimiro Balsa apresentam-nos o artigo “Economia solidária e
empreendedorismo social no Cerrado norte mineiro”.
Em “Relações Raciais e Planejamento Urbano: Algumas considerações” o
autor, Marcelo da Silva, investiga a segregação racial na disposição urbana, em que as
condições culturais e históricas levaram os negros a serem minoria nas regiões mais
valorizadas urbanisticamente falando.
No artigo “As novas dinâmicas de organização do trabalho artesanal no atual
contexto econômico brasileiro”, Flavia Silva e Amelia Bifano apresentam um estudo
sobre dados coletados junto ao SEBRAE do trabalho artesanal comparando-o com o
mesmo ramo de trabalho ao longo da história.
E, ϔinalmente, completando nosso percurso, claramente interdisciplinar, temo
o artigo “A signiϔicação da prática do basquete para cadeirantes” de Denise Berlese,
Claudia Rafaela Basso, Jacinta Renner e Gustavo Sanfelice reproduz a discussão em
cima de uma entrevista semi-estruturada sobre a importância do esporte, no caso o
basquete, para o bem-estar de um cadeirante; “Proposta de Gestão de projetos aplica
à avaliação de técnicas de tratamento de água para controle de cianobactérias na
bacia hidrográϔica do Rio das Velhas, Minas Gerais” de Hildelano Theodoro traz um
estudo de gestão sobre um problema comum em bacias hidrográϔicas geridas pelo ser
humano; e “Economia criativa no brasil: trajetória, debate e institucionalização de
um conceito” desenvolve a absorção paulatina da ideia de Economia Criativa pelas
políticas públicas brasileiras, por meio da absorção do mesmo dentro do próprio
Ministério da Cultura.
Esperamos que vocês tenham uma ótima leitura.
Prof. Dr. Geraldo Márcio Timóteo
Editor-Chefe
MSc. Teóϔilo Augusto da Silva
Editor-Júnior
Agenda
Social
VOLUME
NÚMERO
ISSN 1981-9862
ELETRONIC JOURNAL
www.revistaagendasocial.com.br
DA NECESSIDADE DE UMA CIÊNCIA DO SOCIAL:
CONDIÇÕES E CIRCUNSTÂNCIAS HISTÓRICOǧSOCIAIS E
PERSPECTIVA HEGEMÔNICA DE ATUAÇÃO
From the need for a social-oriented science: social-historical
conditions and circumstances and the hegemonic perspective scope
1. SOUZA, Iael.
1. Professora da Universidade Federal do Piauí. Mestre em Ciências Sociais pela UNESPMarília. Depto de Ciências Humanas e Educação. E-mail: [email protected].
RESUMO
12
8
1
ABSTRACT
A sociabilidade capitalista é uma construção
social. Logo, re lete as contradições postas
pelas relações de poder e força entre as
classes sociais em luta. A compreensão
das condições e circunstâncias históricosociais que produzem essas contradições e
exigem a criação de uma ciência do social,
bem como a perspectiva hegemônica de
atuação da sociologia na sociabilidade
do capital, torna-se essencial para um
posicionamento e leitura de mundo
consciente, consequente e mais aproximada
possível da objetividade processual do
real, principalmente para os estudantes
egressos aos cursos de licenciatura,
in luenciando e condicionando sua atuação
social, ideocultural.
The capitalist sociability is a social construct.
Therefore, it reϔlects the contradictions
established by the power and strength
interplay between social groups in their
ongoing clash. The comprehension of socialhistorical conditions and circumstances
which breed such contradictions and demand
the development of a social-oriented science,
along with the hegemonic perspective
within the scope of sociology in capital
sociability, becomes imperative to reach a
cognizant and consequential considered
opinion and assessment of world as close
as possible to the procedural objectivity of
actuality, especially to students enrolled
for undergraduate courses, by inϔluencing
and conditioning their social ideocultural
interaction.
PALAVRAS-CHAVE
Sociologia, História, Ideologia.
KEY-WORDS
Sociology, History, Ideology.
I. Introdução
Todas as ciências criadas e sistematizadas pelos seres humanos são respostas
a determinadas necessidades surgidas em momentos histórico-sociais específicos,
produto da complexificação das sociabilidades humanas, dos novos problemas
sociais postos que exigem soluções para a produção e reprodução das condições
materiais e espirituais de existência organizadas pelos homens.
É assim que nasce a ciência do social, daí a necessidade de demonstrar as
condições e circunstâncias que condicionam seu surgimento, evidenciando seus
determinantes causais.
O objetivo é auxiliar os estudantes egressos aos cursos de licenciatura na
compreensão das razões, condições e circunstâncias que propiciaram o surgimento
da sociologia – ciência do social –, bem como as leituras e posicionamentos de
mundo possíveis a partir do posicionamento ontológico, científico, filosófico, político e
de classe feito por cada um de nós.
II. Para começo de conversa
Antes de adentrarmos na contextualização histórico-social do surgimento
da sociologia, é imprescindível definir seu significado etimológico, embora seja
importante lembrar que todas as palavras (logos) – escritas ou faladas –, e suas
correspondentes definições, sofrem mudanças conforme o acúmulo do conhecimento
humano e complexificação do seu desenvolvimento, devido às transformações nas
relações socioculturais e de produção e também à autoconstrução humana.
A palavra sociologia é composta por uma palavra em latim (socius = socio) e
outra em grego (logos = logia). Consultando os dicionários de latim, socius é traduzida
como companheiro, camarada e logos como fala, palavra. Porém, como dissemos
acima, os significados originais vão sofrendo modificações, são constantemente
ampliados e aperfeiçoados, acompanhando o devir humano em sua autoconstrução
racional, acumulativa, consciente.
É assim que logos passa a ser compreendido como razão (dado que a palavra
é sua expressão), capacidade de raciocinar, refletir sobre algo ou alguma coisa.
Reflexão que se externaliza pela fala, palavra escrita ou verbal, dando voz ao mundo,
que é mudo, tornando-o inteligível e permitindo sua manipulação pelo ser social.
O logos, enquanto capacidade de refletir e ir além da pseudoconcreticidade
(KOSIK, 1976) do real, atualiza a potencialidade do ser social desinverter o que foi
propositalmente invertido através da reflexão crítica-analítica-dialética.
Portanto, logos não significa estudo, posto que este é um desdobramento
daquele, pois a reflexão exige o esforço de se debruçar sobre a realidade para
observá-la, registrá-la, classifica-la, realizar comparações, construir análises, fazer
experimentos, criar definições a fim de poder estabelecer as generalizações possíveis
e os conceitos e categorias de representação da realidade.
Por sua vez, a sistematização do conhecimento sobre a realidade é a
apropriação consciente e racional dela, daí dizermos ciência. Veremos, então, ao
analisar a palavra socius e relacioná-la com logos, porque é possível traduzi-las
como: ciência do social.
Socius é entendido como social. Na tradução do latim, companheiro (cum
13
panis): aquele com quem dividimos o pão. Só se divide o pão, só o partilhamos com
quem conhecemos, estabelecemos uma determinada interação, relação social. São
as relações sociais, o modo como elas são estruturadas e organizadas, que definem
a vida social e a dinâmica das sociabilidades humanas ao longo do desenvolvimento
processual, histórico-social do ser social.
Assim, desconstruindo o que (des)aprendemos no ensino fundamental e
médio, sociologia não significa o estudo da sociedade, dado que o estudo, como
vimos, é o desdobramento do logos. A definição inapropriada de socio (também
derivada do latim, socius) como sociedade ainda tem um agravante: ao longo de
seu desenvolvimento processual histórico-social, os seres humanos estruturaram
diferentes formas de organização social, ou seja, sociedades e não sociedade. Logo,
aceitar a definição no singular é negligenciar a diversidade e riqueza de organização
e estruturação das relações sociais e de produção no tempo-espaço.
Esclarecidos estes aspectos essenciais, vejamos como nasce a ciência do
social.
III. As condições e circunstâncias histórico-sociais
Dissemos anteriormente que toda ciência é uma tentativa racional, consciente,
finalística de sistematização da realidade pelos seres sociais a fim de resolver ou
enfrentar de modo mais eficaz os problemas experimentados. Sendo assim, cabenos perguntar sobre as condições e circunstâncias histórico-sociais insurgentes que
impuseram a necessidade de fundar uma ciência do social.
Também pontuamos que o desenvolvimento da história humana é cumulativo,
processual, tendendo à complexificação das relações sociais e de produção devido
o progresso técnico-tecnológico e científico das forças produtivas, revolucionando a
base técnico material da produção, alterando a divisão social do trabalho e as relações
que os homens estabelecem com os meios de produção (relações de produção), com
a propriedade (relações de propriedade) e entre si (relações de trabalho). Portanto, o
questionamento que devemos fazer é o seguinte: em que momento desse processo os
homens tomaram consciência que a desigualdade entre eles era social e não natural,
transformando-a em um problema/questão social que passa a exigir equacionamento?
Aqui é importante destacarmos as contribuições de Quintaneiro, Barbosa e
Oliveira (2009). As autoras elencam três fatores cruciais que contribuíram para essa
mudança de posicionamento do ser social em relação ao mundo e a si mesmo: a) o
racionalismo; b) o empirismo e c) o Iluminismo. Expliquemos o por quê.
Na transição do modo de produção feudal ao modo de produção capitalista
a crença na razão é revitalizada, pois a nova classe social emergente, a burguesia,
necessitava fundamentar e justificar a morte e superação do antigo regime, firmandose enquanto classe social, defendendo seus interesses políticos e econômicos.
Para alcançar seu objetivo, não poupou esforços, afirmando o homem
como sujeito da história, criador, interventor, produtor e capaz de compreender e
explicar os fenômenos naturais, controlando-os e manipulando-os em seu benefício,
desmistificando (visão de mundo teológica) a lógica de organização do mundo físiconatural e, por consequência, do mundo social, buscando desvendar as leis imanentes,
próprias e internas as coisas (visão de mundo antropológica, racional). No dizer de
Montesquieu, “relações necessárias que derivam da natureza das coisas” (1991, p.
14
121).
A ideia do homem como sujeito da história é uma contribuição do filósofo
Giambattista Vico, posteriormente desenvolvida e maturada por Hegel e Marx. Através
dela, Vico compreendia que as diferentes sociabilidades humanas eram fruto da ação
racional dos homens e, portanto, podiam ser compreendidas e transformadas por
eles. O desdobramento dessa constatação resulta na ideia de desenvolvimento e
progresso, entendidos como inerentes à ação racional humana, parte do processo da
evolução (influência da teoria evolucionista das ciências naturais) social, construindo
as condições para a realização da felicidade humana.
Note-se que a felicidade decorre do uso da razão, posto que somente ela é
capaz de tirar os homens do estado de ignorância (miséria moral) que se encontram,
elevando-os a um conhecimento necessariamente holístico, enciclopédico,
recompondo a totalidade social. Afinal, as mudanças em curso afetavam o todo da
estrutura social, exigindo o estabelecimento das mediações e conexões causais
entre os fatos e fenômenos aparentemente isolados, explicando as relações entre a
totalidade do sistema complexo das instituições e dos grupos sociais, criando os meios
e condições necessários para a ruptura com o antigo regime em prol da reconstrução
das bases para a efetivação da felicidade humana.
A afirmação da centralidade da razão, do homem como sujeito da história,
proporcionará a valorização das ideias de liberdade individual e da igualdade entre
os homens. Isto porque a razão é comum entre todos os seres humanos, o que
significa dizer que cada um não só pode como deve pensar com sua própria cabeça,
estimulando o desenvolvimento da individualidade e da noção de indivíduo, alterando
as relações sociais entre os homens, então pautadas nos laços comunitários e nos
valores da coletividade, orientados pela tradição e pelos costumes, substituindo-os
pelo contrato social, substrato dos interesses individuais e egoísticos, das convenções,
artificialismos e do valor de troca que embasam a sociedade moderna.
Por outro lado, se a razão é um atributo de todos os homens, evidencia que
todos os seres humanos são iguais entre si, natural e essencialmente iguais. E se o
destino dos homens não mais está predestinado (visão teológica de mundo, essência
divina), mas é obra de suas mãos e da sua consciência racional, finalística e criadora,
os privilégios e as desigualdades entre os homens não são naturais, vontade de Deus,
muito menos revelação de uma lógica divina, ao contrário, são resultado do modo
como os homens organizam e produzem suas condições materiais de existência, são
um produto social, ou seja, criação humana – embora tentem justificar esse modo
de vida (criação das ideologias) como o único possível para conseguir a legitimação
e aceitação dos demais, garantindo as condições subjetivas para a manutenção e
reprodução objetivas da estrutura social pautada na desigualdade2.
Num primeiro momento, a (re)valorização da razão atua como força
revolucionária, e o grupo social que faz sua defesa e propagação também torna-se
uma força revolucionária, pois posiciona-se política, econômica e socialmente por
um outro mundo, afirmando que um outro mundo é não só possível, mas emergente
e necessário, uma vez que só assim a humanidade poderia se desenvolver,
progredir, ser livre, viver a igualdade e ser feliz. Nesse momento, a razão aproxima2. Ver SAVIANI, Dermeval. Escola e Democracia – teorias da educação, curvatura da vara, onze teses sobre a educação
política. 39 ed. Campinas, SP: Autores Associados, 2007. (Coleção Polêmicas do Nosso Tempo; vol. 5, p. 38 e 39)
3. Ver, REIS, José Carlos. Escola dos Annales – a inovação em História. São Paulo: Paz e Terra, 2000, p. 39 – 43.
15
se do significado ontológico que os gregos lhe atribuíam, ou seja, a busca pelos
fundamentos do ser, a essência última das coisas. Algo muito distinto do que ela
se transformaria após o período da era das revoluções burguesas, quando aquele
grupo se estabelece, efetivamente, como classe social, e sua razão de ser passa do
fundamento para a explicação das coisas, da filosofia da essência para a filosofia da
existência, instrumentalizando a razão (razão instrumental, pragmática), preocupada
em explicar os fatos e seu funcionamento através da descoberta de sua regularidade
matemática.
Porém, em sua fase revolucionária, a razão questiona os princípios filosóficos
metafísicos que sustentavam o modo de vida medievo. A dedução perde a primazia
para a indução, embasada na observação do mundo objetivo (empirismo), positivo (do
latim, positum, o que está posto, o que é, o que existe) e também na experimentação
(método experimental), permitindo as comprovações, as comparações, as
classificações, o estabelecimento de similitudes e especificidades, produzindo o
conhecimento científico, sistematizando o mundo para os homens, preparando as
condições para o próximo passo: o conhecimento dos homens no mundo, onde o
homem (sujeito da história) passa a ser também objeto de estudo, assim como a
dinâmica e a vida social criadas por ele3.
A explicação científica do mundo natural, o método das ciências naturais,
com destaque para a Biologia (Charles Darwin e o evolucionismo) e a Física (Isaac
Newton e a lei do movimento – dinâmica – e repouso – estática), será o esteio para
elaboração e desenvolvimento do método das ciências sociais e da procura das leis
da história humana, permitindo aos homens o planejamento, a previsão a precaução
e a intervenção intencional na realidade. É assim que podemos entender a assertiva
de Saint-Simon, o primeiro a intuir a necessidade de uma ciência do social:
todas as ciências, que ‘começaram sendo conjecturais /.../, estão
destinadas a se tornarem positivas’ (1813). A ciência do homem
– ou fisiologia aplicada ao melhoramento das instituições sociais
– não foge, portanto, à regra comum que reza que, para se tornar
positiva, ela deve apoiar-se em ‘fatos observados e discutidos’. [...]
pelo conhecimento de si que elas (ciências sociais) permitem, o
homem pode elevar-se a uma visão diferente de si mesmo e de seu
modo de intervenção na natureza. (CUIN; GRESLE, 1994, p.27).
IV. O surgimento da ciência do social
A crise do antigo regime, as novas relações sociais e de produção, bem
como a nova ideologia política-filosófica (iluminismo), contagiaram a massa do povo,
desde os pobres aos miseráveis, os trabalhadores e os desempregados, enfim,
todos os excluídos das benesses do desenvolvimento da razão, da ciência e das
forças produtivas, que passaram a se identificar com o novo projeto político-social
de mundo plasmado pelo grupo social emergente dos comerciantes, financistas e
industriosos, lutando e colocando em risco a própria vida para poder realiza-lo. Eram
guiados pela crença na realização da promessa de um mundo justo, sem exploração,
onde a igualdade social seria pressuposta como condição para uma existência digna,
4. Ver, MARTINS, Carlos Benedito. O que é Sociologia? 38ª ed. São Paulo: Brasiliense, 1994, p. 7 – 33. (Coleção Primeiros
Passos: 57)
16
5. Ver, BOTTOMORE, Thomas Burton. Introdução à Sociologia. 3ª ed. Rio de Janeiro: Zahar Editores, 1970, p. 16 e 17.
concretizando a felicidade e liberdade humanas4.
No entanto, a promessa seria frustrada. A era das revoluções foi abortada,
ficou inconclusa, porque o processo revolucionário não foi levado até as últimas
consequências, sendo freado pela nova classe social emergente, a burguesia,
quando esta percebeu que significaria a perda da recém posição política e econômica
conquistada, perigo iminente que só seria neutralizado através da retomada da
ordem social, que deveria ser planejada e controlada por ela, embora parecesse a
todos se tratar de um planejamento em prol dos interesses e necessidades de toda
a sociedade, sem distinção, da res-pública (coisa pública), culminando no regime
político republicano-democrático (na verdade, na social-democracia burguesa e não
numa democracia social).
Mesmo sendo minoria, conseguiu se colocar como representante de toda
a humanidade, porta-voz dos direitos do homem e do cidadão, e a aceitação e
legitimação social do seu poder político-econômico foi possível porque passou a
deter o controle e propriedade privada sobre os meios de produção da vida material
(a ciência, as técnicas, as tecnologias e as forças produtivas em geral) e espiritual
(as ideias, as representações) da sociabilidade humana, demonstrando o verdadeiro
significado da palavra hegemonia, confirmado mais tarde por Marx e Engels em
sua obra A Ideologia Alemã, quando disseram que as ideias dominantes são as da
classe dominante, o que nos permite compreender porque a perspectiva de mundo
hegemônica é a conservadora-positivista-funcionalista, como será evidenciado.
O problema social5 que se colocava para retomar a ordem social e repor o
controle sobre o social, promovendo a reintegração social, era justificar a pobreza de
modo racional, persuasivo, contornando-a, principalmente para o movimento operário
e todos os pobres e miseráveis que engrossavam sua fileira, pois o novo mundo
nascente, o modo de produção capitalista, havia aprofundado e não eliminado – como
se esperava – as desigualdades sociais entre os homens, criando uma nova divisão
entre eles, cindidos entre proprietários e não-proprietários dos meios de produção/
reprodução da vida material e espiritual. Aqueles que não detêm o controle sobre tais
meios de produção são controlados pelos outros que os detêm e assim são criadas
as condições reais para a nova divisão social do trabalho e nascimento das duas
grandes classes sociais antagônicas e de interesses e necessidades irreconciliáveis
e irremediáveis: a) capitalistas e b) trabalhadores. Como conter o ânimo das massas,
do movimento operário?
Como restabelecer a ordem, a paz, a integração para a coesão social, para
o aperfeiçoamento, desenvolvimento e progresso socioeconômico? Essas foram as
preocupações iniciais daqueles que entendiam ser necessária a reorganização moral
e política da sociedade, como Saint-Simon e seu discípulo August Comte. O primeiro,
como dissemos anteriormente, intuiu a necessidade de criação de uma ciência do
mundo criado pelo homem, uma ciência do social, ideia apropriada e desenvolvida
pelo segundo, que a denominou, primeiramente, como Física Social (influência das
ciências naturais), alterando-a, algum tempo depois, para Sociologia. O problema
social da pobreza precisava ser explicado, enfrentado e equacionado de alguma
maneira, ainda que jamais fosse solucionado. Era importante criar e manter a ilusão
de pretensão de resolvê-lo, amenizando-o.
A pobreza generalizada contrastava com a concentração e centralização da
riqueza social e das forças produtivas restritas a uma minoria. A primeira tentativa de
justificar essa nova conjuntura da estrutura social foi explicar a lógica de organização
do mundo social através da lógica de organização do mundo natural, constatadas
empiricamente, positivamente, demonstrando que da mesma maneira que há leis na
natureza, também existem leis na evolução social (darwinismo social). Não se trata
de naturalização ou divinização das relações sociais, mas sim de provar que seu
17
funcionamento obedece a princípios imanentes ao desenvolvimento do progresso da
história humana. Ilustremos com Comte.
Através de seus estudos, Comte conclui que existe uma marcha evolutivaprogressiva inexorável do espírito humano em direção ao estado positivo, que
representa o grau mais elevado e complexo da vida social e do conhecimento
alcançados pelos homens. Essa marcha ocorre objetivamente, independente da
vontade dos indivíduos. Daí a necessidade de conhecer as leis do seu desenvolvimento
para que se possa prever e planejar as ações e reformas imprescindíveis ao progresso
social, ou seja, a mudança deve ocorrer, porém não de maneira revolucionária,
descontrolada, apaixonada, impulsiva, caótica, mas sim de forma estruturada. Em
outras palavras, deve-se estruturar a mudança, direcioná-la, pois é necessário ordem
para que haja progresso.
Comentando o pensamento de Comte, Benoit (1999) diz que o termo positivo
e positivismo, adotado por influência de Saint-Simon, remete à atividade prática
política, já que designa “toda ação social eficaz” que pretende dar “uma contribuição
real à atividade social” (1999, p. 42), demonstrando a preocupação e necessidade de
retomar e manter o controle sobre o social, redimensionando, através de reformas,
os conflitos sociais, tornando-os manipuláveis, refazendo o equilíbrio social para a
produção do consenso moral necessário a coesão social. O estudo das leis sociais
permite desenvolver políticas governamentais e os meios mais adequados e precisos
para a conservação e manutenção da ordem para o progresso e desenvolvimento
econômico-social.
Vemos, assim, como Comte, através do pensamento positivista, base do
conhecimento científico moderno, procura justificar a nova ordem social, principalmente
para a classe trabalhadora, que continua sendo explorada e agora, mais do que em
qualquer outro momento ou período histórico-social, está capacitada de enxergar
e compreender as origens de sua exploração. Por isso se preocupa em instruir o
povo de modo científico, positivo, demonstrando racional e objetivamente, através
de um curso de astronomia popular, um exemplo “de uma ‘ordem real’ que comanda
o universo” (PILETTI; PRAXEDES, 2010, p. 20), a fim de que não se opusessem e
resignassem “a existência de uma ordem social natural e invariável, que funciona
independente da intervenção humana”. (PILETTI; PRAXEDES, 2010, p. 20)
V. Perspectiva de atuação da ciência do social: a hegemonia conservadorapositivista-funcionalista
Ainda que a Sociologia positivista nascente tentasse construir uma
justificativa para os problemas sociais e, principalmente, para a desigualdade social
e para a pobreza, transformada em um fato social, as contradições tornaram-se
demasiadamente evidentes. O capital e o sistema capitalista são a própria contradição
viva. Embora a classe capitalista tenha a hegemonia nesse sistema, usando tanto da
força (aparelhos repressivos do Estado) como da persuasão (aparelhos ideológicos
de Estado), a contra-hegemonia está presente no seu contrário, a classe trabalhadora,
e o modo como se articula a luta de classes expressa o nível da correlação de forças
e da organização e mobilização política-social de cada uma delas.
Infelizmente, a desvantagem da perspectiva contra-hegemônica – que por isso
é transformadora (luta pela superação radical do capital e do sistema capitalista),
crítica (busca não a explicação das coisas, mas seu fundamento para a produção
e reprodução da vida social), de totalidade social (reconstrói as conexões causais
e determinações reflexivas-dialéticas das relações sociais e materiais de produção)
–, é colossal frente aos mecanismos desenvolvidos pela classe capitalista para a
18
coaptação, desorganização e desmobilização da classe trabalhadora, fragilizando-a,
dividindo-a e fazendo com que se digladie entre si, enfraquecendo-a para unir-se
e lutar por aquilo que realmente importa: o fim da propriedade privada dos meios
de produção/reprodução da vida material e espiritual, do Estado, das classes, da
exploração do homem pelo homem e pela emancipação humana.
Mesmo assim, “nada é impossível de mudar”, como diz o poeta e dramaturgo
Bertold Brecht, pois o ser social é vitalidade criadora e as “grandes proezas da história
foram conquistadas daquilo que parecia ser impossível”, como dizia Charles Chaplin.
Até mesmo Durkheim, conservador e positivista, reconheceu que
apesar da existência de dificuldades impostas por
um poder contrário de origem social, apresentamse comportamentos inovadores, e as instituições são
passíveis de mudança desde que ‘vários indivíduos
tenham, pelo menos, combinado a sua ação e que desta
combinação se tenha desprendido um produto novo’
que vem a constituir um fato social. (QUINTANEIRO,
BARBOSA, OLIVEIRA: 2009, p. 71)
A questão é que demanda tempo, reflexão, estudo, recolocar as mediações
no lugar das representações e luta permanente, o que, no contexto atual, parece
ser o principal problema: a permanência da e na luta, ainda mais com o discurso
da pluralidade cultural, do respeito às diferenças, da valorização das subjetividades;
do fim da história, das metas narrativas e dos discursos totalizantes, dentre outros
fatores, como demonstram Wood e Foster (1999).
É assim que aprendemos que o mundo sempre foi assim, sempre será e nunca
vai mudar; que outro mundo é uma utopia, entendida como o não lugar e não no seu
sentido ontológico de lugar possível, horizonte que nos ajuda a caminhar, como frisou
Eduardo Galeano repetindo as palavras de um amigo. Essa pretensa explicação
racional científica, baseia-se numa seleção da história humana, apagando da nossa
lembrança e memória os quase 12 mil anos de vida primitiva-comunal, onde não havia
exploração do homem pelo homem, desigualdade social, Estado, propriedade privada
dos meios de produção e reprodução da vida material. Os livros de história que são
utilizados no processo de escolarização condensam esses milhares de anos em um
capítulo, quando muito em dois, enquanto os demais são utilizados para inculcar e
internalizar uma determinada história, destacando os fatos considerados relevantes
para o patrimônio histórico-cultural da humanidade.
É interessante ressaltar que essa perspectiva, apesar de conservadora,
é progressista, pois pensa a mudança, a planeja, dado que necessita fabricar o
consenso moral para a coesão social, conseguindo o consentimento das pessoas
para legitimar a estrutural social criada, mantendo-a e perpetuando-a, aperfeiçoando
o existente. O que existe é o melhor para existir, porque resulta do desenvolvimento
e progresso da razão na história e se há problemas sociais, eles são entendidos
como disfunções, anomalias do organismo social (visão organicista da sociedade,
devido a influência da biologia no método das ciências sociais), que podem e devem
ser corrigidas, consertadas, remediadas, identificando as partes, ou a parte, que não
estão cumprindo com sua função social específica para o bom funcionamento do
todo, do corpo social.
6. Ver, DELLA FONTE, Sandra Soares. Fundamentos teóricos da pedagogia histórico-crítica, p. 30 e 31. In: MARSÍGLIA,
Ana Carolina Galvão (Org.). Pedagogia Histórico-Crítica: 30 anos. Campinas, SP: Autores Associados, 2011. (Coleção
memória da educação)
19
O funcionalismo é um desdobramento do positivismo. O que é, o que existe,
está posto, está fora, é exterior ao sujeito, é objetivo, por isso mesmo é possível
detectar as irregularidades sistêmicas do organismo social, pois o mundo social
também apresenta leis, as leis sociais, que são invariáveis, portanto, regulares, o
que permite explica-las, porque elas têm padrões que nos permitem entende-las. A
racionalidade é matemática.
Mas, afinal, qual o problema desse raciocínio? Primeiro, o objetivo para ser
compreendido, e não apenas entendido através de suas propriedades imanentes
(físico-naturais), exige o estabelecimento de relações com os demais objetos, porque
ele está no mundo, portanto, em relação com outros objetos, o que proporciona a
compreensão mediada das determinações reflexivas que compõem sua objetividade.
O que ele é depende dos condicionantes históricos-sociais em que ele está inserido
e com os quais se relaciona, ou seja, a historicidade do que existe, do que é, do
existente.
Outro aspecto, é que os problemas sociais não são disfunções, mas produto
do modo como os homens organizam a produção dos meios materiais e espirituais de
existência. Marx e Engels são enfáticos quanto a isso ao dizer:
O modo pelo qual os homens produzem seus meios de vida
depende, antes de tudo, da própria constituição dos meios
de vida já encontrados e que eles têm de reproduzir. Esse
modo de produção não deve ser considerado meramente
sob o aspecto de ser a reprodução da existência física dos
indivíduos. Ele é, muito mais, uma forma determinada de
sua atividade, uma forma determinada de exteriorizar sua
vida, um determinado modo de vida desses indivíduos. Tal
como os indivíduos exteriorizam sua vida, assim são eles. O
que eles são coincide, pois, com sua produção, tanto com o
que produzem como também com o modo como produzem.
O que os indivíduos são, portanto, depende das condições
materiais de sua produção. (MARX; ENGELS: 2007, p. 87)
Portanto, as contradições postas na realidade são inerentes de uma estrutura
social alicerçada nas classes sociais, na propriedade privada dos meios de produção,
na divisão social do trabalho, e uma compreensão mais aproximada e adequada
delas impõe a necessidade de se apropriar da historicidade e dos condicionantes
constitutivos de todo ser existente, reconstituindo a totalidade de suas relações sociais
(materiais/espirituais) e de produção, buscando seus fundamentos, suas conexões
causais, o que não se esgota no fato em si, que é apenas ponto de partida, pois o real
é o concreto pensado, isto é, desvelado pela construção da síntese de suas múltiplas
determinações.
Referências Bibliográficas
ARRAIS NETO, Enéas; SOBRAL, Erilênia. Políticas Educacionais e Sociais. In:
_____. Estado e políticas sociais e educacionais no Brasil: esclarecimentos acerca
do método e das teorias sociológicas. Fortaleza: Editora UVA, 2000, cap. 1, p. 9 - 42.
BENOIT, Lelita Oliveira. Sociologia comteana – Gênese e devir. São Paulo: Discurso
Editorial, 1999.
20
BOTTOMORE, Thomas Burton. Introdução à Sociologia. 3ª ed. Rio de Janeiro: Zahar
Editores, 1970.
CUIN, Charles Henry; GRESLE, François. História da Sociologia. Trad. Roberto Leal
Ferreira. São Paulo: Ensaio, 1994.
FOSTER, John Bellamy. “Em defesa da história – Posfácio”. In: WOOD, Ellen
Meiksins; FOSTER, John Bellamy (Orgs.). Em defesa da História – Marxismo e pósmodernismo. Trad. Ruy Jungmann. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Editor, 1999.
KOSIK, Karel. Dialética do concreto. Trad. Célia Neves e Alderico Toríbio. 2 ed. Rio
de Janeiro, Paz e Terra, 1976.
MARTINS, Carlos Benedito. O que é Sociologia? 38ª ed. São Paulo: Brasiliense,
1994, p. 7 – 33. (Coleção Primeiros Passos: 57)
MARX, Karl; ENGELS, Friedrich. A Ideologia Alemã: crítica da mais recente filosofia
alemã em seus representantes Feuerbach, B. Bauer e Strner, e do socialismo alemão
em seus deferentes profetas (1845-1846). Supervisão editorial, Leandro Konder;
tradução, Rubens Enderle, Nélio Schneider, Luciano Cavini Martorano. São Paulo:
Boitempo, 2007.
MONTESQUIEU. O espírito das leis, livro I, cap. I. In: WEFFORT, Francisco. Os
Clássicos da Política – Maquiavel, Hobbes, Locke, Montesquieu, Rousseau. v. I: O
Federalista. São Paulo: Ática, 1991.
PILETTI, Nelson; PRAXEDES, Walter. Sociologia da Educação – Do positivismo aos
estudos culturais. 1 ed. São Paulo: Ática, 2010, p. 27.
QUINTANEIRO, Tania; BARBOSA, Maria Lígia de Oliveira; OLIVEIRA, Márcia
Gardênia. Um Toque de Clássicos: Marx, Durkheim e Weber. 2 ed. rev. atual. Belo
Horizonte: Editora UFMG, 2009.
SAVIANI, Dermeval. Escola e Democracia – teorias da educação, curvatura da vara,
onze teses sobre a educação política. 39 ed. Campinas, SP: Autores Associados,
2007. (Coleção Polêmicas do Nosso Tempo; vol. 5, p. 38 e 39)
WOOD, Ellen Meiksins. “O que é a agenda ‘pós-moderna’?” In: WOOD, Ellen
Meiksins; FOSTER, John Bellamy (Orgs.). Em defesa da História – Marxismo e pósmodernismo. Trad. Ruy Jungmann. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Editor, 1999.
21
Agenda
Social
ELETRONIC JOURNAL
VOLUME
NÚMERO
ISSN 1981-9862
www.revistaagendasocial.com.br
VISITAS TÉCNICAS COMO ATIVIDADE FORMATIVA EM
CURSOS SUPERIORES DE TECNOLOGIA
Technical visits as formative activities in
technology undergraduate courses
1. MACHADO, Lucília Regina de Souza. 2. OLIVEIRA, Luiz Fabiano Miranda de.
1. Professora do Centro Universitário UNA, Doutora em Educação. 2. Bolsista IC do Centro
Universitário UNA, graduando em Ciências Biológicas.
RESUMO
22
8
1
ABSTRACT
O artigo discute resultados de pesquisa
sobre as bases de orientação para a
realização de visitas técnicas por alunos
de cursos superiores de tecnologia do
Instituto UNA de Tecnologia, sediado
em Belo Horizonte. O conceito base de
orientação da ação, de P. I. Galperin se
referencia na Teoria da Atividade de A.
N. Leontiev, autores da escola históricocultural fundada por L. S. Vigotski. Na
educação pro issional, as visitas técnicas
visam cumprir as inalidades de prover
informações a estudos e pesquisas
sobre o mundo do trabalho, servir à
ampliação e signi icação do processo de
ensino-aprendizagem, oferecer visão
complementar sobre o exercício futuro de
uma determinada ocupação ou pro issão.
Realizam a mediação entre o mundo
acadêmico e o universo pro issional real
numa determinada área de atuação.
Os resultados discutidos derivaram de
entrevistas semi-estruturadas realizadas
com diretora da instituição onde se
realizou a pesquisa e coordenadores e/
ou professores responsáveis pelas visitas
técnicas dos cursos investigados.
The article discusses the results of
research on the basis of guidance for the
technical visits by students from courses of
technological graduation offered by UNA
Institute of Technology, in Belo Horizonte.
The concept of base of orientation of the
action of P. I. Galperin has reference in the
Activity Theory of A. N. Leontiev, authors
of the cultural-historical school founded
by L. S. Vygotsky. In vocational education,
technical visits aim to fulϔill the purposes of
provide information for studies and research
on the world of work, serve the expansion
and signiϔicance of the teaching-learning
process, provide additional insight into the
future exercise of a particular occupation
or profession. They perform mediation
between the academic world and the real
professional world in a particular ϔield.
The results discussed were derived from
semi-structured interviews conducted with
the director of the institution where the
research was conducted and coordinators
and / or teachers responsibles for technical
visits of the courses investigated.
PALAVRAS-CHAVE
Educação pro issional e tecnológica.
Visitas técnicas. Graduação tecnológica.
KEY-WORDS
Vocational and technological education.
Technical visits. Technological Graduation.
1 INTRODUÇÃO
Este artigo apresenta resultados de pesquisa sobre bases de orientação
de ações em visitas técnicas (VTs), realizadas por alunos de cursos superiores de
tecnologia do Instituto Unatec de Tecnologia, sediado em Belo Horizonte, Minas
Gerais, e suas perspectivas para o desenvolvimento de habilidades profissionais.
Na educação profissional e tecnológica, as VTs contribuem para a realização
da mediação entre o mundo acadêmico e o universo profissional real numa
determinada área de atuação, para observar diversos aspectos envolvidos nos
processos de trabalho, para obter informações diversas sobre o mundo do trabalho
e visão complementar sobre o exercício futuro de uma determinada ocupação ou
profissão. Podem ampliar a significação do processo de ensino-aprendizagem e
permitir encontrar novos elementos para análises, avaliações e criações.
Ao discutir aspectos legais e conceituais sobre o profissional tecnólogo e sua
formação, Machado conclui que
É preciso considerar que a formação do Tecnólogo
também deverá ser direcionada para o campo da
pesquisa e de desenvolvimento de projetos e para
funções de direção, mais além que supervisão de setores
especializados. Fundamentada no desenvolvimento do
conhecimento tecnológico e em sintonia com a realidade
do mundo do trabalho, a oferta dos cursos precisa
articular as dimensões da ciência, natureza, cultura,
trabalho e tecnologia (MACHADO, 2008, p. 26).
A autora oferece elementos para esclarecer que os cursos superiores de
tecnologia não podem ser confundidos com cursos técnicos e com habilitações
intermediárias entre a de técnico e a de bacharelado. Questiona suas ofertas como
versões compactas e empobrecidas de bacharelados. Descarta a possibilidade de
defini-los como cursos de curta duração, pois há bacharelados e licenciaturas com
igual duração à de um curso superior de tecnologia. Argumenta que eles são um tipo
de graduação do mesmo nível de um bacharelado ou de uma licenciatura e que não
formam profissionais apenas para o trabalho de operação e gestão.
Machado (2008) lembra que à profissão de tecnólogo, na atual Classificação
Brasileira de Ocupações datada de 2002, são designadas atribuições de planejamento
de serviços e implementação de atividades; administração e gerenciamento de
recursos; promoção de mudanças tecnológicas; aprimoramento das condições
de segurança, qualidade, saúde e meio ambiente. Todas elas exigem formação
compatível com nível elevado de responsabilidade.
A pesquisa realizada considerou tais fundamentos conceituais e legais e teve
em perspectiva a geração de conhecimentos sobre bases de orientações de ações
em visitas técnicas realizadas por alunos de graduação tecnológica. Descritiva, expõe
os motivos, as ações e as situações de orientação, acompanhamento e avaliação de
alunos. É uma pesquisa qualitativa, por ter nas interpretações de coordenadores e/ou
professores dos cursos focalizados seu material empírico.
O Instituto UNA de Tecnologia – Unatec foi fundado em 2004, com nove cursos,
360 alunos e média de 20 professores. De 2004 a 2013, experimentou um grande
crescimento: multiplicou esse número de cursos por 2,7 chegando a 24; o de alunos
por 16,7 alcançando a casa dos 6000; e o de professores por 18 chegando atualmente
a 360.
As VTs são regulamentadas pela Unatec, para as quais se faz previsão
23
orçamentária. A pesquisa realizada focalizou três cursos, que tem na saúde uma
referência comum. O curso de Estética e Cosmética, que visa formar profissionais, que
de forma autônoma ou em equipe multidisciplinar, atende clientes encaminhados por
dermatologistas, cirurgiões plásticos, nutricionistas e outros profissionais da área de
saúde. O curso de Gestão Hospitalar destinado a formar gestores para instituições de
saúde tais como hospitais, policlínicas, clínicas, ambulatórios de pronto-atendimento e
programas de saúde pública. O curso de Gestão Ambiental, onde se faz a preparação
do aluno para atuar como gestor de questões ambientais relativas a ecossistemas,
biodiversidades, poluição do solo, águas e atmosfera, manejo de recursos naturais e
recursos energéticos.
Foram realizadas entrevistas semi-estruturadas com a diretora do Instituto
UNA de Tecnologia e coordenadores de cada um desses três cursos. No caso do
curso de Estética e Cosmética, entrevistou-se também uma professora para fins de
complementação de informações. As entrevistas tiveram a duração média de uma
hora e meia, foram gravadas com autorização dos entrevistados e, posteriormente,
transcritas.
O roteiro que orientou as entrevistas consistia dos seguintes tópicos: a) motivos
para a realização de VTs; b) ações dos alunos nas VTs; c) operações dos alunos nas
ações em VTs; d) condições de realização das ações e operações; e) orientação dos
alunos em VTs; f) acompanhamento e avaliação de discentes; g) reflexões dos alunos
sobre VTs.
2 REFERENCIAL TEÓRICO
O conceito de base de orientação da ação - BOA, que fundamenta a pesquisa
realizada, foi elaborado por P. I. Galperin (1902-88) , discípulo de A. N. Leontiev
(1903-79), autor da Teoria da Atividade – TA (Leontiev, 1983). Ambos desenvolveram
estudos na perspectiva histórico-cultural em continuidade aos trabalhos de L. S.
Vigotski (1896-34).
O conceito de BOA decorre da teoria da formação por etapas das ações mentais
de Galperin (Talízina, 1985; 1988). Ele entendia o estudo como um sistema formado
por diversos tipos de atividade. No presente artigo, a VT é considerada como um dos
tipos de atividade de estudo. Referenciado na TA de Leontiev, Galperin considerava
que cada atividade pressupõe motivo(s) e se desdobra num conjunto de ações e seus
respectivos objetivos. Para a realização das ações, elas precisam ter da parte dos
sujeitos que as executam uma determinada representação. Eles também precisam
ter uma representação das condições necessárias para realizá-las. Tais condições
envolvem as operações que precisam ser cumpridas em conformidade com as regras
que constituem o processo da ação. Galperin dá o nome de base orientadora da ação
à unidade estrutural formada por essas duas representações: a imagem da ação e
a do meio em que esta se realiza. Este último se refere ao sistema de condições da
ação e depende das peculiaridades do objetivo e objeto da ação; do caráter e ordem
das operações que entram na ação; das características especiais dos instrumentos
utilizados. São condições que exercem influência sobre o resultado da ação (Talízina,
1985; 1988).
Além da parte orientadora da ação, há, segundo Galperin, a parte de execução
da ação e a que diz respeito ao seu controle mediante a comparação entre o previsto
e o realizado. Mas, segundo ele, o que é decisivo na ação é a base representacional
para a primeira parte, a orientadora, pois dela origina sua direção para a execução e
controle.
24
Segundo Talízina (1985; 1988) foi possível encontrar, teoricamente, oito tipos
de BOA a partir de combinações das suas características: grau de generalização
(ser aplicável não apenas a um caso concreto, mas servir a vários), plenitude (ser
completa, incompleta ou mais do que suficiente) ou modo como é obtida (dada
pelo professor ao aluno ou por este elaborada de forma autônoma). A elaboração
da BOA de forma independente pelo aluno pode resultar de ensaios e erros ou da
aplicação consciente de algum método. É importante destacar, porém, que a eficácia
da formação da ação depende também de como o aluno recebe do professor esta
base orientadora. Talízina (1988) descreve três tipos de BOA.
No primeiro tipo, a BOA se mostra incompleta, é aplicável apenas a casos
particulares, a obtenção dela se dá por meio do ensaio e erro, a formação da ação
ocorre de forma muito lenta, sofre influências de pequenas mudanças nas condições
para sua execução e o aluno comete muitos erros. No segundo tipo, a BOA se mostra
completa, foi preparada pelo professor que a entrega ao aluno para execução, é
aplicável apenas a casos particulares, permite que o aluno forme rapidamente a ação
e sem erros, é mais estável em relação à variação das condições, mas é limitada, pois
só é transferível às situações muito similares àquela para qual foi elaborada. Esse
segundo tipo de BOA forma o pensamento empírico. O terceiro tipo de BOA é mais
eficaz e forma o pensamento teórico, pois preenche todos os requisitos do processo
de formação da ação pelo aluno: tem composição completa, é generalizável a uma
classe de eventos ou fenômenos, foi elaborada pelo aluno de forma independente por
meio do método da generalização, permite execução rápida e sem erros, é estável
frente à variação das condições existentes, sua transferência para diferentes casos é
realizável amplamente.
Segundo Talízina, as investigações realizadas com base na teoria de formação
das ações mentais desenvolvida por Galperin,
[...] mostraram que o enfoque do caráter ativo do processo
de estudo permite abordar de maneira construtiva a
solução do problema “ensinar a estudar”. Resultou que
para isto é necessário dar a orientação não só no sistema
estrutural-funcional da atividade, como também na lógica
da formação dos novos tipos de atividade cognoscitiva.
(TALÍZINA, 1988, p. 107)
Com base no conhecimento da estrutura, funções e características fundamentais
da ação, Galperin desenvolveu cinco etapas para a formação das ações mentais. Além
delas, em certos casos, há necessidade de uma etapa prévia destinada à criação da
motivação positiva e necessária para que o aluno adote e cumpra a atividade do
estudo.
A primeira etapa do processo de assimilação (ou de formação das ações
mentais) visa à elaboração do esquema da BOA e é constituída pelo conhecimento
prévio da ação e das condições para sua realização. Para tanto, o professor explica
aos alunos o objetivo da ação, seu objeto (que é o objeto de estudo), o sistema de
pontos de referência para cumpri-la, os três tipos de operações (as orientadoras,
as executoras e as de controle) que formam parte da ação. Chama a atenção para
fenômenos particulares ou singularidades de eventos. Todos esses aspectos são
1.
Ver: VIGOTSKI – BRASIL. Galperin, Piotr Iakovlevitch. Disponível em: <http://www.vigotski.net/nomes.
html#galperin>. [Acesso: 13 jul. 2013].
25
explicados aos alunos utilizando-se formas materiais ou materializadas. Com base no
que o professor explicou, os alunos elaboram a BOA que lhes foi demandada, pois o
que lhe foi apresentado constitui-se apenas de um sistema de indicadores de como
tem que ser realizada a ação. Depois desta primeira etapa, as quatro seguintes são
constituídas pelo próprio aluno.
A segunda etapa corresponde à formação da ação em forma material
ou materializada. Para realizá-la, o aluno deve considerar as três partes da ação
(orientadora, executora e de controle), todas as operações no seu detalhamento
e o caráter generalizado. Ao expressar com a palavra as operações que realiza
materialmente, o aluno faz a passagem para a terceira etapa de formação da ação, a
verbal externa. A quarta etapa refere-se à formação da linguagem externa “para si”,
não difere muito da anterior, mas começa a ser reduzida e automatizada. Na etapa
final, a quinta, o aluno passa para a formação da ação na linguagem interna. Nesta,
já não é possível acessar diretamente a ação do aluno por ela se dar no nível do
pensamento, a não ser a partir da observação e análise dos seus resultados.
3. RESULTADOS
3.1 Motivos para realização da atividade (visitas técnicas - VTs)
Segundo a diretora da instituição, as VTs são uma premissa político-pedagógica
da graduação tecnológica e respondem à necessidade de gerar no aluno o sentimento
e a visão ampliada de sala de aula, a relação da sala de aula com o mundo exterior,
tornando-a viva e, com isso, trazer o prazer para a atividade de estudo do aluno e
para o professor. Elas respondem também à necessidade da instituição de trabalhar
a visão de mundo que quer desenvolver no aluno. E, por fim, à necessidade de levar
o aluno a praticar o conhecimento, trabalhando a teoria que ele vê em sala de aula,
fazendo com que ele observe como ela acontece na prática dentro de uma empresa
ou outro ambiente. As VTs atenderiam, portanto, ao interesse de fomentar nos alunos
significados, aprendizados, experiência. Ela mencionou também a finalidade das
VTs de gerar estágio para o aluno, aproximando a instituição ao mundo do trabalho,
possibilitando à empresa reconhecer a qualidade dos alunos.
No curso de Estética e Cosmética, pratica-se VT somente na disciplina de
Legislação Sanitária e na área de Estética. Essa atividade seria motivada pela
necessidade de mostrar aos alunos como funciona o mercado, pois muitos deles têm
interesse de montar uma clínica de estética e necessitam saber o que determinam as
legislações. Para tanto, precisariam desenvolver conhecimento sobre estrutura física
para instalação de clínica de estética e entender quais requisitos deve atender um
imóvel onde esta clínica pode ser instalada. A VT mostraria ao aluno a importância da
legislação sanitária na prática clínica ou no laboratório de estética, observando o que
está correto e o que está errado nos ambientes visitados. Visa, assim, desenvolver
senso crítico sobre normas da vigilância sanitária, mudar a postura e fazer com que o
aluno perca o medo da fiscalização, visualizando o que é visto na teoria.
No curso de Gestão Hospitalar, os motivos para realizar as VTs seriam quatro.
Primeiro, desenvolver o olhar da gestão no aluno, despertando-o para conhecimentos
e práticas de um mundo mais amplo do que está acostumado a ver na área da saúde.
Segundo, mostrar-lhe o que é considerado referência em hotelaria hospitalar para
ambiente de gestão, condições de trabalho e equipamentos. Terceiro, complementar
o aprendizado, oferecendo oportunidades de contato com outras pessoas (hospitais
de referência, UPAs, exposições e feiras), que possam ampliar sua visão, responder
perguntas sobre questões de seu interesse e fazê-lo perceber a aplicação daquilo
26
que está aprendendo no curso. Quarto, realizar o conceito de sala de aula expandida.
O curso de Gestão Ambiental apresentou diversos motivos para a realização de
VTs. Primeiro, permitir ao aluno sair do abstrato para o concreto, correlacionando o
que viu em livros e em sala de aula com o que vê na natureza e em atividades de
mineração, aterro sanitário, estação de tratamento de água e esgoto, empresas de
grande porte, entendendo que a ciência funciona. Segundo, desenvolver reflexões
dentro do conceito de cidadania, de educação ambiental e de diversidade. Terceiro,
desenvolver conhecimentos sobre a profissão, que ainda carece de identidade, e
sobre normas, recomendações, macetes, tornando palatáveis termos muito técnicos.
Quarto, desenvolver atitudes de confiança, disciplina, de ajuda recíproca, escuta e
aceitação do outro, de trabalho em equipe. Quinto, habituar-se ao trabalho de campo.
Sexto, favorecer o desenvolvimento dos professores como educadores, puxá-los para
o diálogo indisciplinar. Sétimo, favorecer o desenvolvimento da coordenação do curso
nos aspectos da gestão.
3.2 Ações que os alunos devem realizar nas VTs
Para a diretora da instituição, as ações são de observar, correlacionar a
experiência da sala de aula com a experiência externa, relacionar a prática com
a teoria, gerar conhecimento, cumprir as competências de módulos curriculares e
praticar as habilidades que a disciplina deve desenvolver.
No curso de Estética e Cosmética, as ações dos alunos na realização de
VTs começam com a escolha por eles da clínica a ser visitada, pelo agendamento
da visita com a clínica escolhida e pela articulação do grupo para fazer a atividade.
Ao realizá-la eles devem entrevistar, observar a adequação do local e da estrutura,
fazer levantamento métrico, fotografar. Devem observar como os profissionais estão
trabalhando, os procedimentos, os equipamentos utilizados nos procedimentos,
o trânsito dos profissionais e o gerenciamento da clínica. Devem fazer registros,
elaborar relatório comparando o observado com o que a legislação preconiza e fazer
uma proposta de adequação da clínica visitada à legislação.
No curso de Gestão Hospitalar, as ações nas VTs compreendem: ver numa
unidade de referência o que está acontecendo no ambiente, condições de trabalho e
equipamentos; formular perguntas, entrevistar, buscar esclarecimentos e informação
sobre a serventia de equipamentos e aspectos de procedimentos; pesquisar e coletar
preços de equipamentos; verificar, constatar, comparar, analisar, refletir, discutir,
debater sobre o que observou; trocar experiências tendo a prática como referência.
No curso de Gestão Ambiental, as ações nas VTs envolvem: visualizar diferentes
grupos geológicos e localizar o que está sendo observado em mapas de geologia;
observar fenômenos da natureza e correlacionar com explicações científicas;
identificar aspectos sobre o histórico da área; fazer medidas; comparar diferenças de
formas e de posição na natureza; observar o funcionamento de equipamentos como
o pluviógrafo; realizar simulações; fazer anotações e relatórios.
3.3 Sistema de condições das ações nas VTs: peculiaridades do objetivo e
objeto da ação, caráter e ordem das operações e instrumentos utilizados
Segundo a diretora da instituição, são condições para a realização das VTs:
necessidade, clareza de objetivo, o que vai trazer ao aluno. Além disso, ser realizadas
com a cobertura de seguro a cada aluno e transporte, ambos fornecidos pela instituição.
As VTs devem ser definidas pelo coordenador e equipe de professores durante o
planejamento para o semestre, mas o coordenador tem autonomia para definir se
será feita ou não VT no semestre, pois elas não são obrigatórias. É preciso que
27
28
haja escolha das empresas e segmentos a serem visitados conforme o conteúdo de
alguma disciplina, projeto aplicado ou conceito interdisciplinar. As VTs são realizadas
no horário de aula ou aos sábados; nesse caso, os alunos deixam de ter aula num
dia da semana. Há dificuldades para conseguir locais para a realização das VTs,
pois os cursos em sua maioria são noturnos. Foram citados pela diretora aspectos
operacionais gerais, pois há peculiaridades de procedimentos conforme cada curso.
No curso de Estética e Cosmética, houve menção a dificuldades para a
realização das VTs causadas por disputas competitivas de mercado. Na área da
Cosmética, elas impedem a realização de VTs, pois as empresas não permitem a
entrada na área de formulação com o receio de que fórmulas sejam copiadas. Elas
divulgam a composição, mas não a concentração, fechando o acesso ao conhecimento.
Por outro lado, como o ambiente é de manipulação, impedem a entrada de pessoas
não paramentadas. Já na área da Estética, essas disputas mercadológicas também
dificultam a realização de VTs, chegam a impedi-las quando se trata de clínicas
maiores e mais conceituadas. Elas resistem às VTs por medo da concorrência;
relutam em expor o tratamento que estão fazendo e os aparelhos ou cosméticos
que estão usando. A solução encontrada tem sido realizar as VTs em clínicas de
pequeno porte. Inexiste um modelo de documento da instituição universitária para o
encaminhamento dos alunos esclarecendo o caráter didático das VTs, que poderia
diminuir essas dificuldades, pois além da situação da concorrência, as clínicas
receiam que as VTs estejam ligadas à vigilância sanitária. Assim, tais visitas são
feitas apenas na disciplina Legislação Sanitária, por alunos individualmente ou em
pequenos grupos e em clínicas selecionadas por eles mesmos conforme os seguintes
critérios: facilidade de acesso ao estabelecimento, proximidade da região onde está
a clínica, conhecimento que a clínica tem do aluno, possibilidade de retorno caso
seja necessário completar informações, clínicas menores. Os alunos fazem as VTs
sem acompanhamento docente, condição que foi justificada pelo grande tamanho
das turmas. Portanto, o professor não acessa as clínicas visitadas e não as conhece.
Ainda não se criou um protocolo de parceria da instituição universitária com clínicas
visando à realização de VTs. Os instrumentos utilizados pelos alunos nessas visitas
são simples: usam os próprios passos para medir o espaço quando o ideal seria a
trena, o próprio aparelho celular para fotografar, desenhos para descrever plantas
arquitetônicas e o Power-point para fazer as apresentações.
No curso de Gestão Hospitalar, as visitas técnicas não têm caráter obrigatório.
Quando em hospitais, são realizadas no horário de aula. Quando em outra cidade, são
feitas num fim de semana. Há uma preparação prévia. A programação e planejamento
são feitos pelo professor. Se em hospital, ele precisa ser de referência. O professor
precisa conhecer o local antes, para ver o que pode ou não ser feito. Geralmente, o
acesso é permitido a determinadas áreas hospitalares, as mais comuns. Quando são
feitas em feiras e eventos, há maior liberdade para visitar, entrevistar e fotografar. Não
há um roteiro. As visitas são realizadas com o acompanhamento de um professor.
Cobra-se disciplina do aluno e, depois da VT, um relatório ou uma discussão,
debate ou seminário em sala de aula sobre o que se sucedeu na VT. Conforme as
possibilidades do ambiente visitado, usa-se equipamento para fotografar, mas, por
vezes, a técnica off the record (à margem do protocolo). Há casos de se fornecer aos
alunos uma palestra antes da VT. Estimula-se a troca de informações com colegas e
com o professor durante a realização da visita.
No curso de Gestão Ambiental, as VTs são obrigatórias para os alunos e
são pontuadas por avaliação didática. A realização delas depende de uma série
de fatores e de situações. Em primeiro lugar, do professor que vai conduzir, da sua
disponibilidade, crença e conhecimento prático, pois ele não é remunerado por estas
atividades. Elas são realizadas aos sábados para que todos possam participar e
durante o dia porque é preciso ver a natureza, as plantas, os resíduos, os afluentes.
São duas visitas por módulo do curso e sempre relacionadas com conteúdos das
disciplinas que estão sendo realizadas. São previamente planejadas. No começo do
semestre, a coordenação do curso, junto com os professores, faz o planejamento
e o agendamento, define quem irá à visita, qual será o valor na avaliação do aluno,
o que o professor irá pedir como atividade correlata se algum aluno não tiver como
participar. Para visitar empresa é preciso cumprir um rol de condições previamente
estabelecidas. O problema é que nem sempre a empresa cumpre com o que foi
combinado. Há cobertura de dois seguros, um para o traslado com ônibus e outro
para situações que envolvem acidentes na exploração de terrenos extra-escolares,
agressões de animais peçonhentos e intoxicações. Os professores em campo
recebem o planejamento e folha de presença. Os alunos são separados em grupos e
recebem a descrição da atividade, como deve ser desenvolvida. São três atividades,
uma para cada grupo: de geologia, de águas e climas, de cartografia. Terminada uma
atividade, o grupo passa para outra, fazendo um rodízio. É preciso que todos tenham
em conta o conceito de trabalho em equipe e o papel da coordenação é considerado
decisivo. Quando a visita é realizada em parques, seguem-se normas fotográficas
mais gerais, tais como colocar legenda com fonte. Quando é em empresa, segue-se
o que a empresa determina. Em geral, escolhe-se empresa que permita fotografar
e filmar, pois tais documentos são fundamentais para fazer relatório. Os alunos são
orientados a usar bússolas, GPS, Google Earth, paquímetros, réguas milimétricas,
bioindicadores e equipamentos para fotografar, fazer gravações, filmagens. Eles
manuseiam documentos, plantas operacionais e equipamentos durante a VT e são
orientados a construir maquetes descritivas do que viram e observaram.
3.4 Orientação aos alunos para as VTs
Conforme a diretora da instituição, quem orienta os alunos à realização da
VT é o professor da disciplina no contexto da qual ela se realiza, as orientações
ocorrem antes da VT e trata do que vai ser observado e das regras a cumprir quanto
a comportamentos, ética e respeito, podendo, às vezes, ter um formulário sobre o que
observar, analisar e trazer para a sala de aula.
No curso de Estética e Cosmética, a professora de Legislação Sanitária
estabelece a data-limite para a realização da VT e determina tópicos ou itens a serem
observados. Esses seguem os aspectos que são verificados numa inspeção sanitária
real. Não há um questionário a ser seguido, mas um roteiro, pois dependendo da
resposta, outras vão ser necessárias ou não. O argumento é de que é muito difícil ter as
mesmas perguntas, porque depende da maior ou menor complexidade da clínica. Há
orientação para que os alunos observem bastante e falem pouco. E recomendações
para que as perguntas sejam feitas de forma bem direta tendo em vista extrair a
informação certa. Depois da VT, há orientação técnica sobre o que foi encontrado e
a professora estabelece a data para a apresentação em sala de aula.
No curso de Gestão Hospitalar, há uma preparação dos alunos antes das
visitas. Eles são informados sobre o que será visto, as áreas em que não se deve
entrar, se podem ou não tirar fotografia, o que devem ou não perguntar. Não há manual
ou roteiro de perguntas que o aluno deve fazer ou responder. Pede-se atenção para
aspectos de aplicação daquilo que eles estão aprendendo no semestre letivo. Orientase para o bom senso de como se faz uma pergunta. Eles são desafiados a utilizar a
experiência profissional que eles já possuem.
No curso de Gestão Ambiental, o processo de orientação é extensivo, é feito
por professores em sala de aula, envolve leituras básicas, direcionamentos sobre o
29
que vai ser visto, o que vai feito, uso da fotografia, atitudes, disciplina, material a ser
levado para anotações pessoais, uso de vestuário adequado e protetores solares.
3.5 Acompanhamento e avaliação dos alunos
Segundo a diretora do Instituto UNA de Tecnologia, o aluno é sempre
acompanhado pelo professor nas VTs, sendo o professor o responsável por gerar
as perguntas. Ela disse que cada curso tem autonomia para fazer a avaliação dos
alunos e para estabelecer o produto que o aluno irá gerar a partir da VT. Alguns
cursos pedem relatórios, outros solicitam artigos. Há cursos que se limitam à análise
da VT em sala de aula. Ela entende que cada sujeito vai ver a VT realizada de uma
forma e que cabe ao professor fazer a síntese. Avalia ser bom poder contar com um
formulário de avaliação das visitas técnicas, mas que a instituição ainda não dispõe
desse instrumento.
No curso de Estética e Cosmética, o professor não acompanha os alunos
na realização da VT. O acompanhamento é feito somente dentro de sala de aula.
A alegação é de que o acompanhamento docente na realização da VT é inviável
devido ao tamanho das turmas, em torno de 60 alunos, e que as VTs não podem
ser realizadas por grupos maiores porque o espaço das clínicas não comporta muita
gente. O professor avalia, então, o relatório da VT e a apresentação dos alunos em
sala de aula.
No curso de Gestão Hospitalar, é feita uma avaliação em sala de aula, mas não
há atribuição de nota. Avalia-se, na verdade, a qualidade da VT e não propriamente o
desempenho do aluno. Essa avaliação envolve o conteúdo aprendido, a metodologia
utilizada, pontos positivos e negativos, como se deu a recepção, o ambiente visitado,
como a gestão ocorre na instituição visitada. Tais informações entram no relatório do
professor, pois não há um instrumento para o aluno preencher.
No curso de Gestão Ambiental, há avaliação por aluno e é atribuída uma nota
dentro dos pontos que a disciplina destina a exercícios. Esse valor não é fixo, 50%
dele refere-se à presença e cumprimento das instruções pelo aluno e os outros 50%
à atividade que o aluno vai desenvolver: um relatório, que pode ser feito em dupla ou
por três, que pode ser uma descrição ou uma exposição de fotografia. Cada professor
tem autonomia quanto a isso. O aluno que não pode ir à VT precisa se justificar ao
colegiado do curso por escrito. Ele vai fazer uma atividade correlata que não é o
relatório valendo 50% da parte escrita, pois a vivência da VT ele não teve.
3.6 Contribuições vindas das reflexões de alunos sobre VTs
A diretora do Instituto UNA de Tecnologia considera que tais contribuições são
importantes porque às vezes se erra no planejamento de uma ou outra visita, mas
que não dispõe de informações a respeito.
Em relação ao curso de Estética e Cosmética, também não obteve informações
sobre as reflexões feitas pelos alunos sobre VTs, mas há percepção de que os alunos
desenvolveram o olhar crítico, de que os alunos se sentem mais seguros depois das
VTs, de que passaram a visualizar com mais facilidade o que se discute em sala de
aula e a assimilar com mais facilidade um grande número de informações.
Em relação ao curso de Gestão Hospitalar, a avaliação da qualidade técnica
da visita é feita pelo professor que prepara um relatório com fotografia e tudo que
é importante como documentação. Há o entendimento de que o aluno desse curso
é participativo, tem interesse em saber, é muito envolvido com o curso, mas tem
perfil mais operacional, menos aberto para o mundo acadêmico. É um aluno que está
30
voltando aos estudos, na idade adulta, e que apresenta dificuldades, timidez quando
o assunto não é da área deles.
No curso de Gestão Ambiental, valoriza-se a reflexão que o aluno pode dar
sobre como melhorar, mesmo que num primeiro momento seja difícil de entendê-la.
A preocupação revelada é de não transformar o curso superior de tecnologia em um
mini-bacharelado, mas capaz de trabalhar conceitos aplicados e aplicar conceitos.
4.
CONSIDERAÇÕES FINAIS
Algumas ponderações serão feitas sobre as bases de orientação - BOA para a
realização de visitas técnicas nos casos estudados. Para tanto, o referencial teórico
utilizado propõe três categorias de análise: grau de generalização, plenitude e modo
de obtenção.
Grau de generalização:
Diz respeito à aplicação das ações não apenas a um caso ou fenômeno
concreto e à possibilidade de sua ampla transferência para outros.
A percepção da diretora da instituição indica que as ações de VTs que
realizam têm esse potencial, pois desenvolvem visão de mundo, sentimento de sala
de aula ampliada, relacionamento com o mundo exterior, significados, aprendizados,
experiências, habilidades para observar, elaborar relatórios e redigir artigos.
Entretanto, correm o risco de serem limitadas à visão de mundo que a instituição quer
desenvolver no aluno, às habilidades específicas de disciplinas que as promovem e
às situações das empresas e segmentos eleitos para visitar.
As ações de VTs no curso de Estética e Cosmética se restringem à disciplina
de Legislação Sanitária, à área de Estética e a conhecimentos sobre o que é preciso
ter numa clínica de estética conforme normas estabelecidas. Além disso, ocorrem
somente em clínicas de pequeno porte, de menor complexidade e selecionadas pelos
próprios alunos. Porém, as ações de organizar, planejar, entrevistar, registrar, relatar
e analisar são potencialmente transferíveis.
As ações de VTs no curso de Gestão Hospitalar se atêm a determinadas
áreas hospitalares, as mais comuns. Centram-se em hospitais de referência, logo
podem ter pouco potencial de transferência para instituições não similares. Contudo,
incidem no desenvolvimento de habilidades básicas e gerais: observar, formular
perguntas próprias, entrevistar, buscar esclarecimentos e informação, comparar,
analisar, refletir, discutir, debater e trocar experiências. Além disso, colocam atenção
no desenvolvimento da disciplina do aluno, um requisito para a atividade de gestão
em geral.
As ações de VTs no curso de Gestão Ambiental se caracterizam pelo potencial
de grande generalização, pois abarcam diferentes contextos (parques, mineração,
aterro sanitário e de tratamento de água e esgoto), buscam desenvolver fundamentos
(compreensão do funcionamento da ciência, conceitos de cidadania, de educação
ambiental e de diversidade) e conhecimentos gerais (sobre a profissão e históricos
das áreas visitadas). Incidem, também, sobre práticas profissionais de base, tais como
o trabalho de campo, documentação e de uso de diferentes instrumentos (bússolas,
GPS, Google Earth, paquímetros, réguas milimétricas, bioindicadores e equipamentos
para fotografar, fazer gravações, filmagens). Valorizam o desenvolvimento de
habilidades comuns ao profissional, tais como as de observação, leitura de mapas,
medição, anotação e de realização de simulações e relatórios. Visam à formação
de atitudes requeridas aos profissionais em geral (de confiança, disciplina, ajuda
recíproca, trabalho em equipe e de escuta e aceitação do outro).
31
Plenitude:
Essa categoria de análise se refere à composição da BOA, se ela é completa,
incompleta ou mais do que suficiente.
A percepção da diretora da instituição sugere completude das bases de
orientação das VTs, admitindo ocorrer erro no planejamento de alguma. Disse
inexistir um formulário de avaliação das VTs, mas que elas precisam corresponder
à necessidade, ter clareza quanto ao objetivo e ao que trará ao aluno. Quanto à
composição das BOAs, esta variaria conforme peculiaridades dos cursos, mas que,
em geral, contém orientações sobre o que vai ser observado e regras a cumprir.
As ações de VTs no curso de Estética e Cosmética são orientadas por um
roteiro baseado nas normas da Vigilância Sanitária sobre estrutura física para
instalação de clínica de estética, procedimentos, equipamentos, trânsito dos
profissionais, gerenciamento de clínicas. Portanto, a BOA coincide com o que
determina a legislação vigente. Os alunos realizam as VTs sem acompanhamento
docente, recebem orientações para não serem confundidos com inspetores sanitários
e formas de perguntar. Os instrumentos que usam são bem elementares.
As ações de VTs no curso de Gestão Hospitalar são desenvolvidas
independentemente de roteiro pré-estabelecido. Os alunos recebem informação
prévia e são acompanhados por docentes, que privilegiam o que se considera
referência em gestão hospitalar, equipamentos (serventia e preços), procedimentos e
recomendações sobre onde não se deve entrar, se podem fotografar, o que devem ou
não perguntar.
As ações de VTs no curso de Gestão Ambiental são orientadas pela necessidade
de trabalhar conceitos aplicados e aplicar conceitos. Elas são diversas e requerem
detalhamentos variados sobre o que será observado, como será observado, como
utilizar uma plêiade de equipamentos e ferramentas, atitudes e habilidades requeridas.
Modo de obtenção:
Essa categoria contempla duas dimensões: se a BOA é dada pelo professor
ao aluno (no caso, a perspectiva é a formação do pensamento empírico) ou se ela é
elaborada de forma independente pelo discente, sendo que para formar o pensamento
teórico isso deve resultar da aplicação consciente de algum método.
O que a diretora da instituição deixou claro é que cabe ao coordenador do
curso e professores definir as VTs, a esses últimos a geração das perguntas que os
alunos deverão fazer nas visitas e a construção da síntese da atividade. Ou seja, o
modo de obtenção da BOA pelo aluno tem características mais passivas.
No curso de Estética e Cosmética, as BOAs provêm em parte da professora
de Legislação Sanitária, que determina os tópicos ou itens a serem observados e a
data-limite para a realização da VT. O restante é fruto da autonomia dos alunos, mas
não decorre da aplicação consciente de algum método. Eles se dirigem a clínicas
mais à mão, de menor porte e complexidade, cuidam do agendamento, se organizam
e realizam a VT sem o acompanhamento docente, que é feito somente dentro de sala
de aula.
No curso de Gestão Hospitalar, as BOAs são dadas pelo professor, encarregado
de programar e planejar as VTs, acompanhar o aluno nessa atividade, avaliar, ao seu
final, sua qualidade técnica e apresentar relatório. Isso é feito sem chegar a entregar
ao aluno um roteiro prévio ou um instrumento para preencher. Portanto, nesse curso,
o aluno não elabora as BOAs e é visto dotado de perfil com característica mais
operacional.
No curso de Gestão Ambiental, a orientação para as ações nas VTs é extensiva
32
e conta com o papel decisivo da coordenação do curso, inclusive no fornecimento de
BOAs aos professores. Quando em campo, eles recebem o planejamento das VTs
das mãos da coordenação. Esta também entrega a descrição da atividade e como
ela deve ser desenvolvida aos alunos. Alunos e professores precisam cumprir nas
VTs um rol de condições previamente acordadas com as empresas. As BOAs estão
relacionadas com conteúdos das disciplinas que os alunos estão realizando. Antes
de ir para o campo, eles recebem direcionamentos sobre o que vai ser visto, o que
vai feito, uso da fotografia, atitudes, disciplina, material a ser levado para anotações
pessoais, uso de vestuário adequado e protetores solares. Ou seja, uma BOA bem
detalhada, mas não obtida por eles de forma independente e a partir das orientações
recebidas. Portanto, com pouco potencial para a formação do pensamento teórico.
A pesquisa realizada permitiu, assim, identificar, de forma exploratória, algumas
possibilidades e limites das VTs no desenvolvimento de habilidades profissionais
dos estudantes nos cursos focalizados. São questões que levam à necessidade de
discuti-las e de mais investigações sobre aspectos que permitam aperfeiçoá-las como
atividade de estudo, especialmente as bases de orientação das ações dos estudantes.
Agradecimentos:
Ao Centro Universitário UNA pela concessão de bolsa de Iniciação Científica, à direção do
Instituto UNA de Tecnologia – Unatec e seus professores/coordenadores entrevistados
e ao Grupo de Pesquisa “A questão pedagógica na Educação Profissional” do Programa
de Mestrado Profissional em Gestão Social, Educação e Desenvolvimento Local pelas
contribuições no curso da realização da pesquisa.
REFERÊNCIAS
LEONTIEV, Alexis N.. Actividad, conciencia, personalidad. La Habana: Editorial Pueblo
y Educación, 1983.
MACHADO, Lucília. O profissional tecnólogo e sua formação. Estudos do Trabalho –
Revista da RET, ano II, nº 3, 2008. Disponível em: <http://www.estudosdotrabalho.org/
LuciliaMachado.pdf>. [Acesso: 21 abr. 2014].
TALÍZINA, Nina F.. Conferencias sobre “Los fundamentos de la Enseñaza en la
Educación Superior”. La Habana: Universidad de La Habana, 1985, 296p.
¬________. Psicología de la enseñanza. Moscu: Editorial Progreso, 1988, 366p.
VIGOTSKI–BRASIL. Nomes em psicologia histórico-cultural [e/ou em conexão com
esta perspectiva]. Galperin, Piotr Iakovlevitch. Disponível em: <http://www.vigotski.net/
nomes.html#galperin>. [Acesso: 13 jul. 2013].
33
Agenda
Social
ELETRONIC JOURNAL
VOLUME
NÚMERO
ISSN 1981-9862
www.revistaagendasocial.com.br
SUSTENTABILIDADE EM EMPREENDIMENTOS
SOCIAIS: UM ENSAIO REFLEXIVO PARA UMA
ECONOMIA SOCIAL LOCAL
SUSTAINABILITY IN SOCIAL ENTREPRENEURSHIP: A REFLECTIVE
ESSAY FOR A LOCAL SOCIAL ECONOMY
1. AMARAL, Odnélia Cristina S. de; 2. MELLO, Ediméia Maria Ribeiro.
1. Mestranda em Gestão Social, Educação e Desenvolvimento Local no Centro Universitário
UNA. E-mail: [email protected]. 2. Professora do Mestrado em Gestão Social, Educação e
Desenvolvimento local no Centro Universitário UNA. E-mail: [email protected]
RESUMO
34
8
1
ABSTRACT
Este artigo pretende suscitar algumas
re lexões, com base no arcabouço teórico
sobre gestão social para o desenvolvimento
local, autogestão para o desenvolvimento
de negócios e responsabilidade social de
iniciativas privadas, a partir de experiências
vivenciadas em empreendimento social.
A pesquisa à literatura disponível
possibilita aquilatar a capacidade e
as di iculdades de o empreendimento
social de proporcionar a emancipação e
o resgate de cidadania dos indivíduos,
avaliada no sucesso e na permanência
do negócio. A partir da re lexão teórica
desses conceitos, pretende-se exercitar o
olhar re lexivo, com base em uma prática
em empreendimento social, que busque
o alcance de sua sustentabilidade, no
âmbito de uma economia social local,
segundo parâmetros que considerem a
sua condição de iniciante num mundo de
competitividade exacerbada.
This article aims to raise some reϔlections
on the theoretical framework of social
management for local development, selfmanagement to business development and
social responsibility of private initiatives,
from experiences on social entrepreneurship.
A survey of available literature allows the
evaluation of the ability and the difϔiculties
of the social entrepreneurship to provide
the emancipation and recuperation of
citizenship of individuals, based on the
success and permanence of their business.
From the theoretical discussion of these
concepts it is intended to exercise a reϔlective
view, based on a practice in social enterprise,
which seeks to reach its sustainability
in the context of a local social economy,
according to the parameters that consider
their condition of beginners in a world of
heightened competitiveness.
PALAVRAS-CHAVE
Empreendimento Social. Sustentabilidade.
Responsabilidade Social. Tempo Social.
KEY-WORDS
Social Entrepreneurship. Sustainability.
Social Responsibility. Social Time.
1 INTRODUÇÃO
Este ensaio reflexivo é parte de uma agenda de pesquisa, cujo objetivo é
analisar o enfrentamento do desafio da sustentabilidade por empreendimentos sociais
de geração de renda, apoiados por instituições privadas.
Baseia-se inicialmente em pesquisa à literatura disponível sobre concepções e
conceitos que permeiam e são fundamentais quando se discute empreendimentos
sociais, a partir de uma visão da gestão social, do desenvolvimento local e da
responsabilidade social de instituições privadas. Este proporciona uma reflexão
teórica e adentra por vivências e práticas em empreendimentos sociais que lutam
pelo alcance de sustentabilidade.
O empreendimento social é uma das formas de realização da gestão social,
contraposta à gestão estratégica maximizadora de lucro (PEREIRA, 2013). Suas
metas são ser lucrativo (requisito da sustentabilidade econômica) e ser promotor
de ofertas sociais ou mantenedor de demandas de mesma natureza, além de ser
amigável com o meio ambiente. O lucro se submete à restrição de reinvestimento na
mesma atividade ou de redistribuição à comunidade que o sustenta.
O empreendimento social assume, também, outros conceitos proeminentes
da gestão social, quais sejam “[...] participação, diálogo e busca do bem comum”
(PEREIRA, 2013, p.1) e, em seus objetivos, encontra uma das grandes categorias
que fundamentam a gestão social, a da emancipação social, alcançada por meio da
autogestão, traduzida em “[...] tomada de decisão coletiva, sem coerção, baseada
na inteligibilidade da linguagem, na dialogicidade e entendimento esclarecido como
processo, na transparência como pressuposto e na emancipação enquanto fim último”
(CANÇADO, 2011, p.99).
Tais empreendimentos colaboram para o desenvolvimento local, enquanto
elementos de um conjunto de atividades sociais, intersetoriais e trans-escalares,
partes “[...] de um projeto de transformação consciente da realidade local” (MILANI,
2003, p. 1), que não exclui a integração ao mercado, mas que se entende “[...] fruto de
relações de conflito, competição, cooperação e reciprocidade entre atores, interesses
e projetos de natureza social, política e cultural” (MILANI, 2003, p. 2).
O acúmulo de experiência permitiu constatar a raridade das tentativas de
sucesso com empreendimentos sociais apoiados por instituições privadas, que
atingiram a sustentabilidade de forma emancipadora e autônoma e que de fato
mudaram a condição de vida de seus associados.
Acredita-se que as dificuldades associadas a estes resultados decorram das
diferentes lógicas que envolvem o empreendimento: por um lado, sua lógica social,
que se desenvolve a partir de uma gestão coletiva realizada por detentores da força de
trabalho e dos meios de produção, que são pessoas à margem do mercado de trabalho
e carentes do conhecimento de todas as fases de condução de um negócio. Por outro
lado, o apoiador privado, movido pela lógica capitalista, fundada na “expertise” do
desenvolvimento de seu negócio, cujo cronograma não prevê a necessidade de uma
qualificação completa de sua força de trabalho, espera o alcance de sustentabilidade
econômica do empreendimento social num prazo muito curto, relativamente às suas
carências iniciais.
Este fato influencia no desenvolvimento do empreendimento e requer a atenção
35
e o entendimento da lógica operativa do negócio inclusivo, por parte do associado e,
principalmente, pelo apoiador privado.
Diante do exposto, para um melhor entendimento sobre empreendimento
social, este ensaio apresenta a seguinte estrutura: primeiramente retrata a lógica
de um empreendimento social, com base em diversos conceitos e concepções;
posteriormente apresenta o empreendimento social dentro de um olhar sensibilizado
pela experiência. Em seguida, mostra as dimensões de um empreendimento e
os requisitos de sua sustentabilidade. Por último, realiza reflexões finais sobre a
importância de se conceituar um tempo social para o empreendimento, com base em
parâmetros, que considerem as suas fragilidades originais, para o seu monitoramento.
2.
Empreendimento social: visitando conceitos e concepções
Ao longo da história dos movimentos sociais no Brasil, conforme Gohn (2004),
a sociedade civil vai se configurando e avançando segundo novos formatos. A partir
dos anos 1980, destacam-se os movimentos de luta por direitos civis, políticos e
sociais, que garantem desdobramentos na efetivação das políticas públicas de cunho
social. Este foi um processo de amplas conquistas, mas, principalmente, desde a
última década do século XX, com o acirramento das políticas neoliberais, houve perda
de direitos conquistados, frente ao cenário de “desemprego, aumento da pobreza e
da violência urbana e rural” (GOHN, 2004, p. 25).
Forja-se, então, uma nova modelagem para os movimentos sociais, centrada
em articulações, construção de agendas políticas e em busca de uma readaptação
às mudanças decorrentes de tempos economicamente mais duros.
Nesta nova perspectiva, a escassez de recurso restringe a capacidade de
resposta do Estado às demandas sociais crescentes. Então, são buscadas “[...] novas
formas de articulação com a sociedade civil, envolvendo a participação de ONGs, da
comunidade organizada e do setor privado na provisão de serviços públicos” (FARAH,
1998, p. 383). Assim, as ONGs passam a ter um papel menos reivindicativo e mais
ativo, por meio da prestação de serviços, visto que a nova gestão pública passa a
delegar às empresas da sociedade civil a execução das políticas, mantendo-se nas
funções de financiamento e fiscalização. Estas ONGs apresentam um novo perfil...
[...] o perfil do novo associativismo civil dos anos
1990. Um perfil diferente das antigas ONG´s dos anos
1980, que tinham fortes características reivindicativas,
participativas e militantes. O novo perfil desenha um tipo
de entidade mais voltada para prestação de serviços,
atuando segundo projetos, dentro de planejamentos
estratégicos, buscando parcerias com o Estado e
empresas da sociedade civil (GOHN, 2004, p. 27).
Por outro lado, o poder público atua por meio do fomento e da garantia de
recursos e incentivos fiscais para que, cada vez mais, a sociedade civil assuma
a responsabilidade parceira na solução dos problemas sociais, acirrados pelo
neoliberalismo, contribuindo para a estratégia de redução da despesa pública.
36
Portanto, o Estado brasileiro tem procurado transferir
ao máximo a prestação de serviços sociais para a
sociedade civil, diminuindo seus custos administrativos.
Essa política abriu espaço para o crescimento das
organizações privadas de finalidade pública no país
(FISCHER; FALCONER, 1998, apud ALVES JUNIOR;
FONTENELE; FARIA, 2008, p. 3).
É neste novo cenário político-social se forma o tripé que permeia o
empreendimento social: o poder público, com sua regulamentação e financiamento;
o poder privado com sua disposição social e financiamento; e o associado com a sua
disposição para o desenvolvimento pessoal e local de caracteres social e econômico.
Figura 1: Tripé de apoio ao empreendimento social
PODER
PUBLICO
Governo
x
COMUNIDAD
E
Associado
PODER
PRIVADO
Mercado
Instituições
privadas
Ao mesmo tempo, dentro da complexidade desta realidade, cada elemento do
tripé assume sua função e busca, de forma articulada, tornar reais as oportunidades
alternativas de geração de renda, por meio do desenvolvimento do empreendimento
social, para a superação da condição de vulnerabilidade social da comunidade.
Os empreendimentos sociais são suportados no fortalecimento desta rede de
apoio e na concretização de parcerias intersetoriais, para o alcance da sustentabilidade.
Assim, eles se constituem em uma inovação que surge neste contexto político da
sociedade brasileira. Mas, não só neste contexto, pois estes empreendimentos são
negócios que vêm ganhando relevância no enfrentamento da pobreza em nível
mundial, apresentando-se como uma forma de reversão, em parte, dos resultados
pífios alcançados pela economia capitalista, sustentada em uma dinâmica produtora
de exclusão, conforme os dados apresentados por Naigeborin (2010), comparados
• Mais de 2,5 bilhões de pessoas vivem com menos de dois dólares/dia (Banco
Mundial, 2007);
• 900 milhões de pessoas não têm acesso à água potável (OMS e UNICEF ,
2010);
• 2,6 bilhões de pessoas não têm saneamento básico (OMS e UNICEF, 2010);
37
• Mais de 1,8 milhões/ano de jovens (entre 15 e 24 anos) morrem por enfermidades
que poderiam ser prevenidas (OMS);
• 1,6 bilhões de pessoas não têm acesso à eletricidade (OCDE3 e IEA4, 2006).
• 5,4 bilhões não têm acesso à internet (ITU5, 2008).
com uma população mundial de 3,6 bilhões de pessoas, em 2010, segundo as fontes
relacionadas pela autora:
Este cenário fortalece as iniciativas sociais de empreendimentos, apoiados
por instituições públicas e privadas, que, na contemporaneidade, deram surgimento
ao novo conceito de negócios sociais. O Grameen Bank fundado, em 1976, por
Muhammad Yunus (economista, Prêmio Nobel da Paz em 2006) é uma importante
instituição de microcrédito, pioneira nesta modalidade (NAIGEBORIN, 2010).
As definições de negócios sociais, levantadas por Naigeborin (2010), podem
ser agregadas como economias rentáveis, que oferecem soluções para problemas
sociais e/ou ambientais, por meio de mecanismos de mercado (ARTEMISIA apud
NAIGEBORIN, 2010), que visem beneficiar setores excluídos (ASHOKA apud
NAIGEBORIN, 2010) e às comunidades de baixa renda (BID apud NAIGEBORIN,
2010), ao oferecerem serviços básicos essenciais a um preço menor (AVINA apud
NAIGEBORIN, 2010), capazes de gerar receita suficiente para cobrir os custos,
sem que, entretanto, sejam distribuídos lucros aos seus investidores (GRAMEEN
BANK apud NAIGEBORIN, 2010). Estes negócios incluem os pobres tanto do
lado da demanda quanto do lado da oferta (PNUD apud NAIGEBORIN, 2010),
adotam componentes de governança inclusiva, assim como, um sistema contábil
ético e transparente que prioriza a sustentabilidade ambiental, a distribuição justa
dos rendimentos por participação, destinando os lucros ao bem comum (FOURTH
SECTOR apud NAIGEBORIN, 2010).
Segundo Hervieux (2010) apud Vasconcelos e Lezana (2012), os
empreendimentos sociais são organizações que criam valor social através de inovação
e organização socioeconômica, fazendo uso do recurso financeiro como garantia de
sustentabilidade do empreendimento e de seus associados.
Nos países em desenvolvimento o termo mais utilizado para se referir a
estes negócios é negócios inclusivos, mas, segundo Comini (2011), no Brasil ainda
é predominante à terminologia negócio social onde “ambas as visões apontam os
negócios sociais ou inclusivos como decorrentes da forte preocupação com a redução
da pobreza e que sejam iniciativas que necessariamente tenham impacto social
positivo, efetivo e, sobretudo, de longo prazo” (COMINI, 2011, p.13).
Os empreendimentos sociais podem proporcionar a transformação social para
um coletivo de desfavorecidos, ao se organizarem segundo o formato cooperativo
e de gestão compartilhada do poder decisório. Este formato os caracteriza como
organizações autogestionadas e inclusivas, fundadas como alternativa para a
melhoria da condição de vida e para o resgate de sustentabilidade social e econômica
de indivíduos alijados do processo produtivo.
3. OCDE – Organização de Cooperação e de Desenvolvimento Económico.
4. IEA – Instituto de Estudos Avançados.
38
5. ITU – World Telecommunication.
Rossoni, Onozato e Horochovski (2006) atribuem o surgimento do
empreendedorismo social a uma evolução do setor filantrópico, considerado
insatisfatório do ponto de vista administrativo, de sustentabilidade econômica e de
resultados. Mswaka (2009) atesta que, no Reino Unido, enquanto as estruturas
filantrópicas de apoio à pobreza declinam, os empreendimentos sociais são estimulados
crescentemente, introduzindo um novo modelo de organização social: uma evolução
no âmbito da economia social e das organizações filantrópicas associadas.
Social enterprise is a result of the evolution of the social
economy and the philanthropic organizations associated
with it (Laville and Nyssens, 2001). These include earliest
forms of craft guilds, building societies and savings clubs
that became forerunners of the social enterprises that we
know today (Conaty and McGeehan, 2000). Therefore
social enterprises have gained prominence perhaps
because of their business-like nature in contrast to the
traditional non-profit organizations associated with the
social economy (Dart, 2002)6 . (MSWAKA, 2009, p. 4).
Desta forma, os empreendimentos sociais representam “fórmulas [alternativas]
de intervir na realidade dos pobres”, (DUARTE; TEODÓSIO, 2013, p. 10), ao
desenvolverem soluções de mercado para contribuir para a superação de alguns dos
grandes problemas sociais e ambientais mundiais. Este modelo de negócio tem o
lucro não como um fim em si mesmo, mas um meio para gerar soluções sustentáveis
que ajudem a reduzir a pobreza, a desigualdade social e a degradação ambiental.
De acordo com Duarte e Teodósio (2013), esse universo de novos negócios
possibilita o fortalecimento de uma nova economia, dotada de características similares
com a economia social, explicada pelos seguintes elementos-chave:
1. A autogestão para a solidariedade; 2. O fortalecimento
das iniciativas econômicas cooperativadas e associativas;
3. O desenvolvimento de rede de apoio mútuo, de
intercâmbios diversos; 4. A criação de formas alternativas
de credito e poupança; [...]. (SINGER, 2000, p.323 apud
BASTOS, TEODOSIO, 2013, p. 5).
Segundo Rossoni; Onozato e Horochovski (2006), diferentemente do
empreendimento privado tradicional, o empreendimento social é uma entidade que
se realiza no coletivo, privilegia a autogestão, a produção destinada a demandas da
comunidade, o foco na solução de problemas sociais, a aferição do desempenho com
base no impacto social e o objetivo de resgatar e promover sujeitos em situação de
risco social.
Duarte e Teodósio (2013) defendem que este modelo de empreendimento
“pode ser compreendido como uma nova tecnologia social, com imensa capacidade
de inovação no processo de empreender [em prol do social] já que não se pretende
6. “A empresa social resulta da evolução da economia social e as organizações ilantrópicas associadas (Laville e
Nyssens (2001). Estas incluem as primeiras formas de corporações de o ício, as sociedades de construção e clubes de
poupança, precursores das empresas sociais que conhecemos hoje (Conaty e McGeehan, 2000). Portanto, empresas
sociais ganharam destaque, talvez por causa de sua natureza parecida com negócios em contraste com as organizações
sem ins lucrativos tradicionais associadas com a economia social (Dart, 2002).” (Mswaka, 2009, p.4).
39
ser assistencialista e mantenedor, mas empreendedor, emancipador e transformador”
(BASTOS, TEODOSIO, 2013, p. 44). Este tipo de empreendedorismo é foco de
programas de responsabilidade social em empresas e demais instituições privadas.
A responsabilidade social de empresas consiste em sua “decisão de participar
mais diretamente das ações comunitárias na região em que está presente e
minorar possíveis danos ambientais decorrentes do tipo de atividade que exerce”
(D`AMBROSIO et al., 1998 apud MELO NETO e FROES, 1999, p. 78). Porém,
Melo Neto (1999) reforça que somente estas iniciativas não garantem o exercício
da responsabilidade social. A elas devem se somar ações de preservação do meio
ambiente, de investimento no bem estar dos funcionários e seus dependentes, de
promoção da transparência, assegurando satisfação e sinergia que alcancem os seus
”stakeholder”. Assim, Melo Neto e Froes (1999) relacionam os principais vetores da
responsabilidade social, quais sejam:
V1
apoio ao desenvolvimento da comunidade onde atua;
V2
preservação do meio ambiente;
V3
investimento no bem estar dos funcionários e seus dependentes em um
ambiente de trabalho agradável;
V4
comunicações transparentes;
V5
retorno aos acionistas;
V6
sinergia entre parceiros;
V7
satisfação dos clientes e/ou consumidores. (MELO NETO e FROES,
1999, p. 78).
40
Estes vetores aliam a gestão empresarial à dimensão social de uma
empresa, garantindo a responsabilidade social sob duas formas: interna, voltada
para os funcionários e seus dependentes; e externa voltada para a comunidade. Na
responsabilidade social externa, a empresa incorpora à comunidade, “os recursos
financeiros, produtos, serviços e Know-How da empresa e de seus funcionários”
(MELO NETO e FROES, 1999, p. 79). Neste flanco se enquadra o apoio aos
empreendimentos sociais, entretanto, permeado pela lógica do capital, na promoção
da realização de negócios que possam transformar a condição social da comunidade.
Neste engajamento social, no contexto de sua dimensão externa, a empresa
busca demonstrar seu compromisso ético com a sociedade, dando-lhe um retorno
pelo uso e exploração dos recursos naturais. Desta forma se garante a realização de
um balanço social, proporcionando uma imagem positiva diante do mercado mundial
que propaga e vincula a comercialização de produtos às práticas sociais justas e à
solução de problemas sociais pelas empresas. De acordo com Melo Neto e Froes
(1999) “é um mecanismo de compensação das perdas da sociedade em termos de
concessão de recursos para serem utilizados pela empresa” (MELO NETO e FROES,
1999, p. 84-85).
Com o tempo, são incorporadas ao conceito de responsabilidade social, novas
práticas. Uma delas refere-se ao desenvolvimento sustentável em sua dimensão
social, que “compreende os direitos humanos, dos empregados, dos consumidores, o
envolvimento comunitário, a relação com fornecedores, o monitoramento e a avaliação
do desempenho e os direitos dos grupos de interesse” (MELO NETO; FROES, 1999,
p. 90). Esta dimensão, em conjunto com as dimensões econômica e ambiental,
compõem os pilares da sustentabilidade.
Assim, se de fato assumida a responsabilidade social pela empresa, esta
poderá contribuir tanto para a sustentabilidade e o desempenho empresarial quanto
para o desenvolvimento da sociedade e do seu entorno, proporcionando mudança
na realidade local e um exercício pleno de sua cidadania empresarial e de sua
responsabilidade social.
É dentro desse exercício de responsabilidade social que muitas empresas
e suas fundações/ institutos desenvolvem projetos dentro da linha de atuação do
empreendedorismo social com o fomento e o fortalecimento de empreendimento
social como alternativa de renda para a população desfavorecida ou vulnerável do seu
entorno. Deste modo, os empreendimentos sociais são uma forma de enfrentamento
dos problemas sociais, onde a economia está a serviço da comunidade.
Segundo Melo Neto e Froes (2002) o empreendedorismo social difere do
empreendedorismo privado. O segundo tipo tem um foco individual e é centrado no
mercado e tem uma busca incessante no lucro. Já o empreendedorismo social tem
o foco nas pessoas, o intuito é utilizar a economia para possibilitar a solução de
problemas sociais e proporcionar a melhoria da qualidade de vida das comunidades.
Para ilustrar melhor tal distinção copia-se, a seguir, o quadro de Melo Neto e Froes
(2002).
Quadro 1: Diferenças entre Empreendedorismo
EMPRENDEDORISMO PRIVADO
EMPREENDEDORISMO SOCIAL

É individual

É coletivo

Produz bens e serviços para o mercado

Produz bens e serviços para a comunidade

Tem foco no mercado

Tem foco na busca de soluções para os
problemas sociais.

Sua medida de desempenho é o lucro

Sua medida de desempenho é o impacto
social

Visa satisfazer necessidades dos clientes e 
ampliar as potencialidades do negocio
Visa resgatar pessoas da situação de risco
social e promovê-las.
Fonte: MELO NETO e FROES, 2002, p. 11.
Portanto, incorporar e efetivar essa nova forma de exercitar a responsabilidade
social é fazer do empreendedorismo social um grande desafio para empresas
e demais instituições privadas, que por meio da geração de renda, possibilite um
olhar diferenciado para a comunidade, com vistas na contribuição para a mudança,
decorrente do empoderamento das pessoas e de sua ação.
E como forma de melhorar o seu campo de atuação social, as empresas estão
recorrendo a parcerias com o próprio governo, ONG´s, entidades da sociedade civil,
entre outros, para a execução de seus programas de responsabilidade social, visto
o know how que o terceiro setor vem adquirindo no desenvolvimento de projetos de
combate a pobreza e em especial, no acompanhamento de negócios sociais e/ou
empreendimento sociais.
O quadro abaixo de Melo Neto e Froes (1999) demonstram como essas
empresas estão desenvolvendo suas parcerias:
41
Quadro 2: Parcerias entre empresas, terceiro setor e governo.
PARCERIA
DESCRIÇÃO
Governo e Empresa
A empresa privada fornece recursos para o governo desenvolver os seus projetos
sociais.
Empresa e ONG
A empresa contrata o serviço de uma ONG para desenvolver seus projetos
sociais.
Empresa, ONG e sociedade civil.
A empresa desenvolve seus projetos sociais com o apoio de uma ou mais ONG’s
e demais entidades da sociedade civil.
Governo, Empresa, ONG e
sociedade civil.
O governo desenvolve seus projetos com recursos de empresas, com a
participação de uma ou mais ONG’s e da sociedade civil.
Empresa e sociedade civil
A empresa desenvolve seus projetos com a participação da sociedade civil.
Fonte: MELO NETO e FROES, 1999, p.24.
Neste contexto da responsabilidade social, este ensaio passa a registrar, a seguir,
as experiências práticas, a vivência e as lições aprendidas junto a empreendimentos
sociais acompanhados no Pará.
3.
42
Empreendimento social: um olhar a partir da experiência
A imersão na experiência prática, dedicada a programas de responsabilidade
social no Pará, proporcionou a percepção das fragilidades dos sujeitos que se associam
em empreendimentos sociais, decorrentes de suas inexperiências em aspectos da
gestão empreendedora, o que se traduz em grandes dificuldades para o alcance das
condições de sustentabilidade econômica exigidas pelos apoiadores externos.
Naquela oportunidade, observou-se desde empreendimentos que tiveram
em sua formação uma estrutura de base de formação consistente e consciente das
pessoas partícipes do coletivo, até aqueles que apresentaram profundas fragilidades,
percebidas já na fase inicial do empreendimento social. As fragilidades referiamse, especialmente, à preparação e à formação da base dos associados nos valores
solidários e participativos, com consequências negativas sobre o desenvolvimento
da associação e da gestão social do empreendimento. Além disto, as dificuldades
se aprofundavam em virtude da não familiaridade previsível dos associados com a
gestão empreendedora e/ou ramo de negocio proposto, bem como com a elaboração
de planejamento inadequado realizado pelos apoiadores externos.
As ações dos programas de responsabilidade social se concretizavam por
meio da disponibilização de recursos financeiros para garantir o fortalecimento
organizacional e da busca da sustentabilidade de empreendimentos produtores de
artefatos em madeira, bijuterias com sementes nativas, costura em geral, ou extração
da castanha, jaborandi entre outros, bem como para fortalecer as iniciativas locais que
valorizavam os recursos locais, as pessoas e o valor social nos produtos produzidos.
As instituições privadas comprometiam ainda outras parcerias com os projetos,
como órgãos dos governos federal e estadual, cujas finalidades eram incentivar a
geração de renda, a partir da exploração de recursos naturais ou das potencialidades
locais, assim como, instituições de cooperação internacional focadas na Amazônia.
No sentido de demonstrar o movimento de desenvolvimento do potencial local, não
muito distante do Pará, cita-se aqui a importância dos empreendimentos artesanais
para o desenvolvimento na região nordeste do País, Passira-Pe, em que instituições
Apesar da maior parte da renda do município de
Passira [Pernambuco] ser da atividade agropecuária e
da pecuária, o município possui 1.200 artesãos que se
organizam individualmente, em parcerias e cooperação
com instituições e organizações. 48% da renda dos
trabalhadores que alternam entre a atividade artesanal
e outra está entre 1 e 2 salários mínimos”. (SILVA e
XAVIER, 2013, p.98).
investiram na capacidade de proporcionar renda incremental para os empreendedores,
conforme atesta a pesquisa de campo realizada por Silva e Xavier (2013) em 2011.
As iniciativas relacionadas ao artesanato em Passira-Pe estão vinculadas ao programa
de artesanato brasileiro (PAB), com o estabelecimento de parcerias “envolvendo
institutos da esfera federal, estadual, municipal e entidades privadas com ações que
valorizem o trabalho do artesão” (SILVA e XAVIER, 2013, p.98).
Diante da experiência acumulada junto à formação dos empreendimentos sociais
observaram-se alguns fatores potencializadores e dificultadores, tais como:
• Uma das instituições apoiadoras se orientava no âmbito de um planejamento
integrado, ao prever a formação de um grupo gestor, que era ativado
periodicamente desde a concepção dos empreendimentos. Esta estratégia
contribuía para melhorias nos resultados auferidos.
• Identificou-se cooperativa/associação, com quase 10 anos em atuação sob
o apoio institucional, com sérios problemas de estrutura organizacional e de
gestão financeira dos recursos.
• Houve empreendimentos constituídos sob uma estrutura de base formativa
no contexto de valores solidários, que avançaram no caminho para a
sustentabilidade.
• Houve, ainda, uma experiência de constituição de empreendimento em
associação, que, mesmo orientada por um plano de negócio pronto a
ser seguido, não conseguiu se implantar com base no plano, pois este
desconsiderou a realidade social local, ou seja, a sua “lógica peculiar”
(KRAYCHETE, 2006, p. 4). Neste caso, o plano havia sido elaborado por um
especialista, desconhecedor da realidade local, e de forma não participativa,
transformando-se “[...] em mais um documento a ser muito bem guardado e
esquecido em alguma prateleira” (KRAYCHETE, 2006, p. 4).
• Outra experiência presenciada não apresentou essa base preparatória
para os associados e, num processo avaliativo reflexivo, percebeu-se que
erros graves foram cometidos, quais sejam: (1) convocação aleatória de
“beneficiários” da comunidade para montar um negócio; (2) baixa escolaridade
dos associados; (3) desconhecimento ou falta de experiência prévia no
negócio proposto; (4) implantação de plano de negócio não participativo e
descolado da realidade do interior do estado; (5) investimento de recurso
financeiro inicial, prevendo contratação de encarregados na produção e/
ou administração, sem uma preparação educativa consistente para os
43
associados lidarem com questões econômicas e de gestão; (6) cronograma
irreal, baseado em um tempo empresarial normal, que não previu a condição
especial de um empreendimento social, cujo tempo de maturação deve
incluir o alcance da emancipação dos associados, o que se denomina, neste
ensaio, como tempo social.
• Ressalta-se em outra experiência, na qual se realizou um trabalho de base
para a transformação das pessoas em empreendedores, com valores
cooperativos e associativos em que no período de três anos, foram
desenvolvidas varias atividades, entre as quais: (1) preparação das pessoas
com valores solidários e cooperativos para uma formação empreendedora;
(2) preparação para o desenvolvimento do produto à sua gestão (individual
ou coletivo); (3) e posteriormente a esses ensinamentos, realização de
convite a pessoas para desenvolver e gerir um empreendimento social, à
livre escolha, com garantia de apoio técnico e financeiro. Nesse caso, mesmo
depois de longos processos de envolvimento com os sujeitos, a gestão do
empreendimento ainda apresentava dificuldades a serem superadas como,
por exemplo, resultados financeiros demorados ou apenas suficientes para
equilibrá-lo. Alguns associados desistiam do empreendimento, em virtude de
encontrarem trabalho assalariado. Em outros casos os sujeitos eram taxados
de “jovens preguiçosos” por parte do apoiador externo.
Estes casos relatados mostram a dificuldade do alcance de resultados
sustentáveis em empreendimentos sociais, mesmo aqueles beneficiados, com “[...]
apoio financeiro, muitos [...] apresentam resultados frustrantes - para si e para as
instituições financiadoras”, coincidentemente com as observações de Kraychete
(2006, p.4). Ainda, segundo este autor,...
Por um período, o empreendimento parece funcionar bem,
inclusive com resultados econômicos aparentemente
positivos. Enquanto dura o projeto, os recursos permitem
pagar as despesas e garantem uma remuneração aos
associados. Durante algum tempo, como usualmente
se diz, parece que “o projeto contribuiu para elevar a
autoestima do grupo”. A instituição financiadora publica
fotos e folders no seu site dos resultados alcançados.
(KRAYCHETE, 2006, p.4).
Nestas percepções tem origem à proposição da referida agenda de pesquisa,
que objetiva responder à questão: quais seriam os parâmetros para se aquilatar a
dimensão do tempo de amadurecimento – tempo social – dos empreendimentos
sociais, com vistas no alcance da autossustentabilidade, para orientar o apoio e o
investimento das instituições privadas que os suportam?
O próximo tópico introduz a discussão da sustentabilidade, com vistas em
orientar os parâmetros da pesquisa proposta.
4.
44
Sustentabilidade de um empreendimento social: dimensões e requisitos
Inicia-se essa discussão, trazendo o conceito de sustentabilidade, de caráter
ambiental/ecológico, publicado pela primeira vez pela ONU (Organização das Nações
Unidas) em 1987, qual seja: “conseguir prover as necessidades das gerações
presentes, sem comprometer a capacidade das gerações futuras em garantir suas
próprias necessidades”. Marcondes (2007) apud Alves Junior; Fontenele; Faria (2008)
incorporam outras dimensões à sustentabilidade, ao caracterizar uma organização
sustentável, conforme descrito a seguir:
Ser uma organização sustentável significa ser
economicamente lucrativa, ambientalmente correta
e socialmente responsável. Sendo assim, as ações
de sustentabilidade precisam atuar como suporte das
estruturas de gestão das organizações, e não apenas
como ações pontuais (ALVES JUNIOR, FONTENELE e
FARIA, 2008, p. 4).
A questão da sustentabilidade vai além do aspecto de garantir as fontes de
financiamento, ao quais a reduzem muitas organizações. De fato, “envolve, também,
um complexo conjunto de fatores que, por sua vez, reforçam a necessidade de
profissionalização dessas organizações” (ALVES JUNIOR, FONTENELE e FARIA,
2008, p. 5).
A este respeito, Alves Junior, Fontenele e Faria (2008) recomendam à
organização, como pré-condições para a sua sustentabilidade, as seguintes medidas:
(a) qualificar tecnicamente o trabalho; (b) compartilhar
o projeto político/missão; (c) promover uma cultura e
metodologia de planejamento e de monitoramento e
avaliação; (d) aperfeiçoar os mecanismo de gestão; e (e)
qualificar a participação interna e a democratização dos
processos decisórios (ALVES JUNIOR, FONTENELE e
FARIA, 2008, p. 5).
Estes pontos fundamentais não são diferentes para os empreendimentos
sociais, que devem garantir todos estes requisitos, dentro de uma visão de gestão
social, com um olhar focado no negócio, no sentido de custear o empreendimento
e gerar renda aos associados e sobras para o reinvestimento na atividade ou na
comunidade, bem como, a preservação do meio ambiente local.
Os dados apresentados por Kraychete (2006), baseados no levantamento
realizado, em 2004, pela Secretaria Nacional de Informações em Economia Solidária
(SENAES) do Ministério do Trabalho e Emprego (MTE), mostram a grande dificuldade
dos empreendimentos associativos alcançarem o equilíbrio financeiro.
[...] foram identificados quase 15 mil empreendimentos
em 2.274 municípios brasileiros (o que corresponde a
41% do total de municípios), envolvendo mais de 1,2
milhão de pessoas; [...] a maior parte dos grupos se
estruturou a partir dos anos 1990, tendo como principal
motivação a busca de uma alternativa de trabalho face
ao desemprego (citado 45% dos empreendimentos),
seguida pela busca de uma fonte complementar de
renda (44%) e pela possibilidade de obter maiores
ganhos através de um empreendimento associativo
(39%) [...] apenas 38% dos empreendimentos obtiveram
uma receita capaz de pagar as despesas e ter alguma
sobra. 33% conseguiram pagar as despesas sem obter
sobras e 16% não conseguiram pagar as despesas [...].
(KRAYCHETE, 2006, p. 5-6).
45
Para Kraychete (2006) a meta de equilíbrio financeiro em um empreendimento
associativo depende da habilidade dos associados frente às condições de
sustentabilidade, não somente de caráter econômico, mas também relacionadas a
processos de transformação social mais amplo.
[...] empreendimento associativo adquire condições
de sustentabilidade quando os seus associados se
encontram habilitados para assumir a sua condição. [...]
neste termo a sustentabilidade dos empreendimentos
econômicos não é um problema estritamente econômico,
nem se equaciona no curto prazo, mas pressupõe
ações políticas comprometidas com um processo de
transformação social (KRAYCHETE, 2006, p. 1).
Segundo Zwich, Pereira e Teixeira (2012), o empreendimento social, alicerçado
em seu tripé de apoio, sustenta-se em três dimensões operacionais, necessárias ao
seu desenvolvimento dentro de uma sociedade de mercado. Tais dimensões, úteis à
análise das organizações cooperativas são: a econômico-financeira, a institucionaladministrativa e a sociopolítica.
A gestão eficiente destas três dimensões é indispensável ao desenvolvimento de
um empreendimento social, segundo o seu formato jurídico – cooperativa, associação
ou outro. Por outro lado, elas são dinâmicas e atuam interdependentes e articuladas,
desenvolvendo-se de forma sistêmica dentro dos empreendimentos. Os formatos
como elas moldam os empreendimentos os assemelham, ou os diferenciam entre si,
de acordo com a realidade na qual estão inseridos, podendo confirmar um formato
voltado para a gestão social ou para a gestão estratégica tradicional, conforme será
refletido, a seguir.
A dimensão econômico-financeira visa o equilíbrio entre custos e rendimentos.
De acordo com Ventura et al. (2009) apud Zwich, Pereira e Teixeira (2012), contribuem
para esta dimensão as categorias “Governança corporativa, [que] trata do governo
estratégico da empresa, tendo em vista a distribuição de poder entre as partes,
tanto em relação à propriedade quanto às responsabilidades [e a] Governança
democrática”, (VENTURA et al., 2009 apud ZWICH, PEREIRA e TEIXEIRA, 2012,
p. 9-10), segundo a qual a participação constitui a base para a boa governança, no
primado da autogestão.
Agrega-se ainda a essa dimensão o exercício da transparência, do controle social,
também assumindo características de controle público, bem como da responsabilidade
social, no sentido de aliar seu processo às boas práticas e ao compromisso ético
com o bem estar da comunidade para a promoção do desenvolvimento local e da
sustentabilidade.
A dimensão institucional-administrativa, em um formato mais interno à
organização, é composta das categorias planejamento, organização, direção,
controle, habilidades gerenciais e técnicas. Estas categorias desencadeiam uma
forma de gestão, que tende ou para uma forma mais autogestionária, baseada na
gestão social que se liga ao trabalho autônomo associado com meios de produção
socializados, ou, para uma forma mais heterogestionária, que apresenta uma clara
relação de submissão hierárquica em que os meios de produção estão separados
da força de trabalho, efetivando um trabalho assalariado individual. Este segundo
formato é estranho aos empreendimentos sociais.
46
Por último, a dimensão sociopolítica está associada à forma de participação dos
membros, permeada nos valores que regem a organização, que fazem parte do processo
educativo e do desenvolvimento do sentimento de pertencimento à organização. A
propriedade coletiva, o exercício de participação democrática no processo decisório e
na divisão das sobras proporciona a emancipação individual e coletiva e asseguram à
autogestão. Contudo, o empreendimento que priorize a concentração da propriedade
em um ou poucos membros, a organização hierarquizada, o lucro, a competição e os
benefícios individuais, tende à dominação e ao exercício da heterogestão.
Duarte e Teodósio (2013) destacam que os sujeitos envolvidos nos
empreendimentos sociais são cidadãos submetidos à vulnerabilidade social, os quais
se pretende resgatar do ciclo vicioso da pobreza. Daí a importância de se buscar a
cooperação para que, fortalecidos no conjunto, tenham a capacidade de dinamizar
processos de inovação que proporcionem sustentabilidade ao empreendimento e
resultem em mudança social.
5.
Considerações finais: a proposição de um tempo social para o
empreendimento
Diante do exposto acima, verificou-se que os empreendimentos sociais são, em
sua grande maioria, apoiados por instituições públicas e/ou privadas, abrindo o leque
para o desenvolvimento de uma área de apoio à gestão pública das políticas sociais
por meio de iniciativas de geração de renda, contribuindo para a sua implementação,
quando apoiados por órgãos públicos. Quando apoiados por instituições privadas,
efetivam a sua área de responsabilidade social com o apoio a negócios locais e o
fortalecimento de organizações sociais.
A experiência vivenciada no estado do Pará, junto a ações de responsabilidade
social que contemplem empreendimentos sociais, abre caminho para a realização
de um estudo aprofundado, podendo melhor compreender a dinâmica deste tipo
de empreendimento em Minas Gerais, em especial, com respeito ao tempo de
amadurecimento requerido por estas organizações.
Apresenta-se um grande desafio e longo caminho a percorrer, visto que se
verificam raras experiências de sucesso, que tenham, de fato, mudado a condição
de vida de seus associados. Deste modo, ratificando Comini (2011): “é necessário
quebrar paradigmas presentes na forma tradicional de fazer negócios e de atuar no
social. Desde o momento zero do empreendimento, é fundamental inovar e viabilizar
novos arranjos institucionais” (COMINI, 2011, p.23), no sentido de oferecer a estas
instituições condições de sustentabilidade, quais sejam: formação para a gestão social,
desenvolvimento tecnológico, abertura de frentes de comercialização, possibilidades
de compras consorciadas, articulação em rede, etc.
Segundo Oliveira (2004) apud Alves Junior, Fontenele e Faria (2008, p.6), um
processo de gestão social dos empreendimentos em foco, apresenta “uma cadeia
sucessiva e ordenada de ações, que podem ser resumidas em três fases: a) concepção
da ideia b) a institucionalização e maturação da ideia e c) a multiplicação da ideia”.
É na fase de maturação da ideia de um empreendimento social que essa
pesquisa centrar-se-á e aprofundará seu constructo teórico, para obter dados que
subsidiem a busca de sua sustentabilidade, considerando o caminho trilhado pelo
empreendimento desde seu nascimento até sua maturidade.
As experiências relatadas demonstram claramente a necessidade do
47
reconhecimento de um tempo de maturação para empreendimentos desta natureza,
diferente do observado em empreendimentos tradicionais capitalistas, e denominado,
neste ensaio, tempo social.
O monitoramento deste tempo visa garantir a efetivação da implantação
do empreendimento e o alcance de sua sustentabilidade, apoiado no exercício
da autogestão, da cooperação, da preparação do produto com qualidade, do
enfrentamento do mercado com inovação e participação em arranjos institucionais e
em redes consorciadas de comercialização, para firmar seu espaço dentro de uma
economia local.
Este tempo social é o demandado para se preparar e emancipar pessoas em
condição de vulnerabilidade social, tendo em vista suas condições educacionais,
culturais e suas qualificações frágeis e destituídas de características empreendedoras,
necessitando se fortalecerem e encontrarem complementaridades no coletivo,
aprenderem a desempenhar seus papeis em processos autogestionários e realizarem
um processo decisório que as levem a alcançar a sustentabilidade de seus negócios.
Por fim, é um grande desafio tornar tais iniciativas sustentáveis e capazes de
mudar a realidade dos sujeitos envolvidos, pois se deve considerar um tempo, um
processo de introjetar valores solidários e cooperativos, além de estabelecer uma
cultura empreendedora, baseada em princípios da gestão social.
Isto demanda um processo educativo que opere em uma lógica de prazos mais
longos, no sentido de que, cada membro constate a sua importância individual no
processo e, no coletivo, constate a sua corresponsabilidade frente ao empreendimento,
além de promover e estabelecer articulação em rede com outros empreendimentos
sociais, sem perder de vista os requisitos dos investimentos “centrados em aspectos
sociopolíticos e técnicos e [nas] interações com o mercado”, (DIAS e SOUZA, 2012, p.
18), buscando sustentar a inovação em arranjos locais, sem deixar perder a essência
cooperativa dentro de uma cadeia de valor para uma economia social.
Referências
ALVES JUNIOR, Maisso Dias; FONTENELE, Raimundo Eduardo S.; FARIA, Maria
Vilma C. Moreira. Sustentabilidade na Gestão de Organizações do Terceiro Setor –
Um Estudo dos Empreendimentos Sociais apoiados pela Ashoka. Anais... V Simpósio,
A universidade frente aos desafios da sustentabilidade, 2008.
BASTOS, Maria Flavia. Educação e empreendedorismo social: um encontro que
(trans) forma cidadãos. Belo Horizonte, Mazza Edições, 2013.
CANÇADO, Airton. Cardoso. Fundamentos teóricos da gestão social. Tese (Doutorado
em Administração) – Universidade Federal de Lavras, Lavras, MG, 2011.
CAVALCANTI, Marly (organizadora). Gestão social, estratégias e parcerias:
redescobrindo a essência da administração brasileira de comunidades para o terceiro
setor. São Paulo, Saraiva, 2005.
COMINI, Graziella Maria. Negócios Sociais e Inclusivos: um panorama da diversidade
conceitual. In Instituto Walmart e Ashoka: Mapa de Soluções Inovadoras: Tendências
48
de empreendedores na construção de negócios sociais e inclusivos. Instituto Walmart,
em parceria com a Ashoka, junho 2011.
COMINI, Graziella Maria; TEODÓSIO, Armindo dos Santos. Responsabilidade social
empresarial no combate a pobreza: perspectivas e desafios dos Negócios Inclusivos
no contexto brasileiro. Anais... VI Encontro Nacional de Pesquisadores em Gestão
Social – ENAPEGS, São Paulo, maio de 2012.
DIAS, T. F., SOUZA, W. J de. Gestão Social em empreendimentos Econômicos
Solidários: o caso da Associação dos Produtores e Produtoras Rurais da Feira
Agroecológica de Mossoró – APROFAM, Mossoró-RN. Anais... VI Encontro Nacional
de Pesquisadores em Gestão Social, 2012, p.1-20.
DUARTE, Maria Flavia Bastos; TEODÓSIO, Armindo Santos. Redes e Negócios
Inclusivos: em busca de um modelo compreensivo dos desafios no combate à pobreza.
Anais... VII Encontro Nacional de Pesquisadores em Gestão Social, 2013, p. 1-14.
FRANÇA, Júnia Lessa et al. Manual para normalização de publicações técnicocientíficas. 8. ed. revista. Belo Horizonte: Editora UFMG, 2009.
FREITAS, Alan Ferreira de; FREITAS, Alair Ferreira de; DIAS, Marcelo Miná. O
colegiado de desenvolvimento territorial e a gestão social de políticas publicas: o caso
do Território Serra do Brigadeiro, Minas Gerais. Revista Administração Pública 46 (5):
1201-1223, Rio de Janeiro, set/out, 2012.
GOHN, Maria da Glória. Empoderamento e participação da comunidade em políticas
sociais. Revista Saúde e Sociedade, v. 13, n.2, p.20-31, 2004.
HUDSON, Mike. Administrando Organizações do Terceiro Setor: o desafio de
administrar sem receita. São Paulo: Makron Books do Brasil Editora, 1999.
KRAYCHETE, Gabriel. Economia popular solidária: sustentabilidade e transformação
social, 2006. Disponível: http://www.capina.org.br/download/pub/gkrtxtsemi.pdf >.
Acesso em 11 julho 2013.
MARTINS, Rafael D’Almeida; VAZ, José Carlos; CALDAS, Eduardo de Lima. A
gestão do desenvolvimento local no Brasil: (des)articulação de atores, instrumentos
e território. Revista de Administração Pública. Rio de Janeiro, 44(3):559-90, Maio/
jun, 2010. Disponível em: http://www.scielo.br/pdf/rap/v44n3/02.pdf>. Acesso em 13
novembro 2013.
MELO NETO, Francisco de Paulo; FROES, César. Responsabilidade Social &
Cidadania Empresarial: A Administração do Terceiro Setor. Rio de Janeiro: Qualitymark,
1999.
MELO NETO, Francisco de Paulo & FROES, César. Empreendedorismo Social: a
transição para a sociedade sustentável. Rio de Janeiro: Qualitymark , 2002.
49
MILANI, Carlos. Teorias do capital social e desenvolvimento local: lições a partir da
experiência de Pintadas (Bahia, Brasil). Anais... IV Conferência Regional ISTR-LAC,
2003.
MSWAKA, Walter. Wither social enterprise? A typology of social enterprises in South
Yorkshire. In: 2nd Emes International Conference on Social Enterprises (Unpublished),
2009. Disponível: <http://eprints.hud.ac.uk/10903/ >. Acesso 12 novembro 2013.
NAIGEBORIN, Vivianne. Negócios Sociais: um modelo em evolução. Artemisia, 2010.
PEREIRA, José Roberto Abordagens teóricas da gestão social: uma análise de
citações exploratória. Anais... VII Encontro Nacional de Pesquisadores em Gestão
Social, 2013.
ROSSONI, Luciano; ONOZATO, Erika; HOROCHOVSKI, Rodrigo Rossi. A Criação de
Empreendimentos Sociais Reflete a Atividade Empreendedora Nacional? Explorando
as Relações entre Empreendedorismo Convencional e Social no Brasil. Anais... XXIV
Simpósio de Gestão da Inovação Tecnológica. ANPAD, 2006.
SCHUMPETER, Joseph Alois. Teoria do Desenvolvimento Econômico: uma
investigação sobre lucros, capital, credito, juro e o ciclo econômico. São Paulo, Abril
Cultural – coleção Os economistas, 1982.
SILVA, Gleiciane Teodoro da; XAVIER, Maria Gilca Pinto. Inovação e estrutura de
governança em aglomerado territorial: o caso da produção artesanal de bordado em
Passira - PE. Revista Agenda Social, v. 7, n.2, 2013, p. 92-103. Disponível: www.
revistaagendasocial.com.br.
SOUZA, Eda Castro Lucas de. Empreendedorismo além do plano de negócio. São
Paulo, Atlas, 2005.
VASCONCELOS, Alexandre Meira de; LEZANA, Álvaro Guillermo Rojas. Modelo de
ciclo de vida de empreendimentos sociais. Revista Administração Pública, 46 (4):
1037-58, Rio de Janeiro, jul/ago, 2012, p. 1037-1058.
ZWICK, E; PEREIRA, R. J; TEIXEIRA, M. P.R. Gestão de Cooperativas: uma Analise a
partir das Derivações Teóricas do Pensamento Utópico. Anais... VI Encontro Nacional
de Pesquisadores em Gestão Social, 2012, p.1-21.
50
51
Agenda
Social
ELETRONIC JOURNAL
VOLUME
NÚMERO
ISSN 1981-9862
www.revistaagendasocial.com.br
ORIENTAÇÃO PROFISSIONAL DE JOVENS DAS CAMADAS
POPULARES BENEFICIÁRIOS DO PROUNI COM FOCO
NOS DESAFIOS DA TRANSIÇÃO ESCOLAǧTRABALHO
Professional guidance for youth from popular beneϔiciary segments
of PROUNI with focus on challenges of school-work transitions
1. ANDRADE, Marco Túlio Carvalho de Souza; 2. MACHADO, Lucília R. de Souza.
1. Centro Universitário Una - [email protected]; 2. Centro Universitário Una –
[email protected]
RESUMO
52
8
1
ABSTRACT
Investigam-se os processos de orientação pro issional
que precisam ser promovidos pelo Núcleo de Carreira
do Centro Universitário UNA, no município de Belo
Horizonte - MG, com foco no jovem das camadas populares
e bene iciário do ProUni – Programa Universidade para
Todos –, visando ao seu desenvolvimento como sujeito
autônomo e emancipado na transição do Ensino Superior
para o mundo do trabalho. A investigação se orienta
por esta questão central: que elementos e dimensões
precisam ser considerados na intervenção social e
pedagógica da orientação pro issional, direcionada aos
jovens oriundos das camadas populares e bene iciários
do ProUni, para caracterizá-la como uma inovação social
com pertinência educacional e em consonância com os
requerimentos do desenvolvimento local? Inicialmente
são apresentados elementos da revisão teórica que
deram suporte à investigação e que tratam do processo
de transição escola-trabalho e dos desa ios da orientação
pro issional considerando-se tais circunstâncias. Em
seguida, apresentam-se os resultados da pesquisa de
campo, realizada no Centro Universitário UNA, por
meio de três grupos focais: o primeiro, constituído por
pro issionais do Núcleo de Carreira dessa instituição;
o segundo, por discentes bene iciários do ProUni; e,
o terceiro, por membros do corpo docente e gestores
acadêmicos do Centro Universitário UNA. Os dados
obtidos evidenciam a necessidade de um novo olhar para
a orientação pro issional realizada pela instituição, que
considere as especi icidades do alunado do ProUni e sua
efetiva e quali icada inserção pro issional. Propõe-se,
então, um protocolo ou metodologia sobre orientação
pro issional dirigida aos jovens universitários do ProUni.
Trata-se de proposta de intervenção que visa promover
inovação social e pedagógica na implementação dessa
política de ação a irmativa e a concretização do seu
potencial de contribuição para o desenvolvimento local.
Research on the professional orientation that need to be
promoted by the Career Center at Centro Universitário
UNA, in the city of Belo Horizonte, Minas Gerais, Brazil,
focusing on the low income young people who are
beneϔiciaries of ProUni – Programa Universidade para
Todos –, aiming at their development as an autonomous
and emancipated individual in the transition from higher
education to the work world. The research is based on this
central question: what elements and dimensions need to be
considered in the social and pedagogical intervention of
the professional orientation directed to young people from
lower social stratum who beneϔit from ProUni, in order
to characterize it as a social innovation with educational
effect and in accordance with the requirements for local
development? The ϔirst chapter presents the theoretic
review elements which supported the research, as
follows:the transition from higher education to work
market and the professional orientation challenges, taking
these circumstances into account. Following, this article
presents the results of the ϔield research carried out at
Centro Universitário UNA, through three focal groups: the
ϔirst one with the institution Career Center professionals;
the second one, composed by students who beneϔit from
ProUni; and, the third one, with professors and academic
management professionals of Centro Universitário UNA.
The collected data evidence the need of a new look towards
the institution’s professional orientation that considers
ProUni students speciϔic realities and their effective and
qualiϔied employability. Therefore, this research proposes
a professional orientation protocol or methodology
addressed to ProUni young university students. It is an
intervention proposal that seeks to promote social and
pedagogical innovation with the implementation of this
afϔirmative politic action and achievement of its potential
contribution to local development.
PALAVRAS-CHAVE
ProUni. Orientação Pro issional. Juventude.
Educação Superior. Desenvolvimento
Local.
KEY-WORDS
ProUni.
Professional
Orientation.
Young people. Higher Education. Local
Development
INTRODUÇÃO
O tema deste trabalho foi definido como a orientação profissional aos jovens das
camadas populares e com acesso ao Ensino Superior por meio do ProUni – Programa
Universidade Para Todos com vistas à sua efetiva e qualificada inserção no mundo do
trabalho.
O problema foi circunscrito à formação dos jovens universitários das camadas
populares e beneficiários do ProUni que, para garantir uma qualificada e efetiva
transição escola-trabalho, requer que se considere a oferta de um determinado
tipo de orientação profissional fundamentado nas origens, condições e identidades
socioculturais desses jovens.
Entretanto, percebeu-se que essa questão ainda se mostrava pouco esclarecida;
especialmente, em relação à intervenção social e pedagógica que poderia ser ofertada
aos jovens. A dúvida que surgiu se referiu à especificidade da orientação profissional
a ser desenvolvida. Dessa forma, a investigação se orientou por uma questão
central que indagou os elementos e dimensões que precisam ser considerados na
intervenção social e pedagógica da orientação profissional aos jovens oriundos das
camadas populares beneficiários do ProUni, que possam se caracterizar como uma
inovação social com pertinência educacional e em consonância com os requerimentos
do desenvolvimento local.
O estudo foi motivado pela necessidade de uma intervenção voltada para melhoria
dos processos educacionais e dos percursos formativo e profissional dos jovens
universitários oriundos das camadas populares, visando garantir melhoria da qualidade
de vida e reflexos positivos no desenvolvimento local.
Na realização dessa investigação, buscou-se, inicialmente, descrever e analisar o
ProUni e seus efeitos como política pública de inclusão no Ensino Superior, a partir
de dados primários e secundários, referentes às pesquisas e aos censos do INEP
realizados de 2005 a 2012, bem como descrever e discutir as atividades de orientação
profissional voltadas aos jovens universitários, realizadas pelo Núcleo de Carreira do
Centro Universitário UNA, no município de Belo Horizonte - MG.
Em seguida, descreveu-se o processo de transição escola-mercado de trabalho entre
os jovens oriundos das camadas populares e, a partir desse estudo, elaborou-se
uma proposta de intervenção relativa à orientação profissional dos jovens oriundos
do ProUni matriculados no Centro Universitário UNA, visando ao desenvolvimento
autônomo, emancipado e segundo os interesses desses sujeitos, com foco na
transição da educação superior para o mercado de trabalho.
A TRANSIÇÃO ESCOLA-TRABALHO
O mercado de trabalho espera e exige, cada vez mais, que os jovens egressos da
educação superior tragam em sua formação um acervo de vivências e um amplo
repertório cultural e comportamental. As empresas exigem, portanto, que o universitário
esteja inserido na discussão sobre os atuais requisitos de qualificação profissional
e demonstre ter informações, conhecimentos, competências, habilidades, atitudes e
valores ligados a uma vivência e visão ampla do mundo das empresas, das relações
interprofissionais e do mercado. Essas exigências ficam evidentes na condução das
entrevistas e dinâmicas realizadas com os candidatos a vagas em processos seletivos
de estágios em diversas organizações.
53
Por carência desse repertório e por não estarem devidamente orientados a
explorar as potencialidades culturais e pessoais que possuem, os jovens oriundos das
camadas populares têm mais dificuldade de aprovação nesses processos seletivos
de estágios, que são, via de regra, a porta de entrada para o mercado de trabalho.
Por outro lado, alunos provenientes de camadas sociais mais favorecidas por bens
culturais de acesso mais restrito, com viagens e visão globalizada do mundo do
trabalho, destacam-se mais nos processos seletivos. São jovens que, embora vivam
localmente, estão conectados a informações e valores mais próximos das relações
ditadas pelo mundo capitalista globalizado, o que lhes dá um diferencial, em termos de
vantagem competitiva, em relação ao universitário oriundo das camadas populares.
Ora, os alunos oriundos do ProUni não são capazes de concorrer em igualdade
de condições com alunos não-bolsistas para as vagas de estágio nas organizações?
Tal questionamento coloca em debate a noção de falsa democratização do acesso
à educação superior e de reforço das estratégias de ação afirmativa em face da
reposição dos pressupostos da estratificação social. Afinal de contas, além de ser
uma política pública do campo educacional, o ProUni também pode ser visto como
política pública para o jovem brasileiro. Entre os desafios do Governo Federal, inclusive
dentro da Política Nacional de Juventude1, estão o preparo para o mundo do trabalho
e a geração de trabalho e renda para os jovens. E os jovens oriundos das camadas
populares não podem ser colocados à margem desse processo.
Portanto, para garantir o que preconiza o Governo Federal e os anseios de
famílias e dos jovens das camadas populares, o significado do ProUni assume novos
contornos e inaugura um novo dilema: deixar os egressos desse Programa à própria
sorte ou lhes oferecer atenção específica ainda como estudantes e condições para que
desenvolvam percepções mais ampliadas do mundo do trabalho e de seus desafios.
Constata-se, assim, que mudanças nas abordagens educacionais aos universitários
beneficiários do ProUni precisam ser feitas, que reflitam positivamente em seus
desempenhos em processos seletivos das organizações. Percebe-se, por outro lado,
a importância da promoção de uma educação superior que também não dê as costas
aos conhecimentos e valores que os jovens das camadas populares trazem e que
lhes despertam sentimentos de pertencimento e de afirmação sociocultural.
Vale salientar que a estratégia de criação de cotas para estagiários ProUni,
como tem ocorrido em alguns casos, por si, não é capaz de lhes dar autonomia para
prosseguir nas suas carreiras profissionais. A estratégia mais consistente remete a
intervenções na formação e orientação desses jovens com sentido de fortalecimento
dos seus potenciais e valores e de redução das suas vulnerabilidades.
A realização profissional desses jovens se reflete na sua qualidade de vida,
e na de suas famílias, e, consequentemente, no desenvolvimento local, e isso
pode ser feito ou requer ser feito articulando-se os requisitos do agir localmente,
considerando-se suas determinações particulares, com as exigências do pensamento
mais universalizado, mais global, que o mundo do trabalho hoje apresenta.
A realidade dos jovens das classes sociais menos favorecidas é, muitas vezes,
de uma trajetória marcada por sofrimento e, em geral, por escassez de recursos.
Desde a infância, a desigualdade social interfere no percurso educacional desses
jovens. Trazem, quase sempre, um histórico de acesso ao ensino da rede pública, por
54
1. http://www.juventude.gov.br/politica.
vezes precário, ou, então, de passagens por instituições educacionais particulares
noturnas frequentadas depois de jornadas cansativas de trabalho, perfilando um
itinerário de formação, via de regra, descontínuo e limitado, quanto aos recursos
encontrados. A baixa escolarização dos pais e a frágil imersão na cultura letrada
reforçam as debilidades desse percurso formativo.
Essa realidade diferenciada e caracterizada por negatividades, mas, também, por
positividades, não pode ser esquecida, quando se busca compreender e intervir no
processo de transição escola-trabalho dos jovens oriundos das camadas populares
A ORIENTAÇÃO PROFISSIONAL
As expectativas por parte do mundo do trabalho, a baixa qualidade na formação
básica e o repertório cultural diferenciado e distante do que tende a ser considerado
modelar, deixam os jovens pobres em situação de desvantagem.
Nesse contexto, a orientação profissional surge como elemento essencial
nessa construção, especialmente para jovens oriundos das camadas populares
que, após a implementação do ProUni em 2005, passaram a ter acesso à educação
superior em maior escala e que pouco ou nenhum contato tiveram com programas
de orientação profissional ao longo de suas vidas. Isso se deve ao fato de esses
jovens, ao pleitearem vagas no mercado de trabalho, serem submetidos a testes,
dinâmicas de grupo e entrevistas, sendo avaliados e selecionados a partir de vieses
pouco favoráveis aos seus perfis socioculturais.
É o que pode estar acontecendo com grande parte dos beneficiários do ProUni
nas instituições brasileiras de educação superior.
Atualmente, o termo orientação profissional convive com diversos outros
termos recorrentes nas organizações e na literatura, tais como mentoring, coaching
e counseling. São iniciativas que embora estejam em consonância com práticas da
Psicologia, da Pedagogia e da Administração, propõem intervenções muitas vezes
sem levar em consideração os objetivos a serem alcançados e somente reforçam
jargões ditados pelas organizações (SILVA, 2010). Em muitos casos são iniciativas,
que seguem um padrão, que se esquecem de considerar o indivíduo, sua história,
seus registros, sua vida, suas vantagens socioculturais específicas. Essa proposta
homogeneizante de orientação profissional deixa de levar em consideração a
diversidade sociocultural dos sujeitos e, por causa desse olhar, não dá conta de
perceber que há diferenças entre os jovens das camadas populares e aqueles dos
estratos sociais mais elevados, que podem ser de valor fundamental. Nas palavras de
Bello (2008), verifica-se
[...] la debilidad de una Orientación homogeneizante,
frente a la realidad de un mundo global, diverso y
multicultural. Atender la diversidad es el desafío que la
orientación aún no ha resuelto, ya que ésta plantea una
multiplicidad de conflictos y paradojas para las cuales no
son válidas recetas específicas. (BELLO, 2008, p. 3)
Os modelos tradicionais e padronizados de orientação profissional podem ser
reducionistas, se confrontados com o processo de globalização e com a diversidade
humana em todas as suas dimensões. Podem, ainda, condicionar e limitar o
desenvolvimento e a criatividade individuais e, consequentemente, “delimitar o papel
55
que cada indivíduo deve assumir na construção do bem-colectivo” (DUARTE, 2011,
p. 145).
Essa limitação pode ficar evidente no caso dos jovens das camadas populares,
que apresentam um extenso repertório de vida, habilidades e potencialidades,
que podem ser positivamente relevantes para as organizações do setor produtivo,
mas possivelmente desconhecidas pelos próprios sujeitos e pelos profissionais
de recrutamento e seleção, cujas atuações ainda seguem modelos de inclusão
tradicionalmente estabelecidos. Tais padrões tendem a ser replicados nos programas
de orientação profissional, em geral alicerçados em análises de perfil e mapeamento
de competências, realizados por meio de testes psicológicos. Tendem a repetir o
modelo de recrutamento e seleção conformado pela lógica dominante no mercado de
trabalho. E este modelo pode não atender os anseios e as necessidades dos jovens
das camadas populares que carregam registros de vida muito distintos dos padrões
pré-estabelecidos. De acordo com Machado (2009),
[...] o campo da Orientação Profissional se voltou, então,
para a Psicologia Diferencial e a Psicometria, e até hoje,
parte significativa dos seus esforços se centra no debate
sobre concepções e aplicações de testes construídos
especialmente para aferir atributos como inteligência,
aptidões, habilidades, interesses e personalidade.
(MACHADO, 2009, p. 90)
Para Machado (2009), as pessoas precisam, hoje, gerenciar não somente
suas escolhas profissionais, mas também o uso de suas capacidades e saberes.
Na perspectiva da autora, as pessoas são motivadas por interesses diversos, seus
próprios, das organizações e da sociedade em geral. Além disso, se encontram, muitas
vezes, em momentos de tensão e contradições e precisam, portanto, compreender
melhor o mundo do trabalho em que atuam e o meio social em que vivem para que
possam estar envolvidas numa atividade laboral decente (MACHADO, 2009).
Dessa forma, faz-se necessário um novo olhar para a orientação profissional.
Será necessário mudar a forma de desenhar e executar a prática de OP, bem como
repensar seus objetivos e enfoques (DURANT, 2004, p. 21 apud BELLO, 2008). Duarte
(2011) propõe que seja uma “tentativa de encontrar e desenhar outras formas de
reflectir sobre a orientação enquanto processo de autoconstrução” (DUARTE, 2011,
p. 143). Enquanto processo de construção, a orientação pode tirar partido de cada um
individualmente, de acordo com suas experiências e história de vida. Duarte (2011)
propõe
[...] lançar um olhar para a orientação considerando as
características e as capacidades de cada um para, não
perdendo a sua condição de elemento activo e solidário
numa cadeia histórica de onde emerge, nela se alimentar
para depois, com o conhecimento assim obtido, e
integrando as suas próprias experiências e as leituras
que delas faz. Em síntese, dar continuidade à mesma
cadeia, projectando-a para o futuro. Continuando a
mesma linha de pensamento, procurando reflectir sobre
a orientação enquanto processo de construção, procurese agora entender como a orientação pode ajudar a tirar
partido da experiência de cada um. (DUARTE, 2011, p.
147)
56
Trata-se, portanto, de potencializar o que os jovens já trazem de suas
experiências de vida (DAYRELL et al., 2003, p. 43). Pelo mesmo autor, o pleno
desenvolvimento ou não das potencialidades que caracterizam o ser humano vai
depender da qualidade das relações sociais com o meio no qual se insere e se as
relações sociais entre os jovens das camadas populares e o mundo do trabalho não
considerarem os registros de vida desses jovens, suas potencialidades que podem
passar invisíveis ou não apresentarem uma evolução no ambiente laboral.
Surge, então, a perspectiva de um novo olhar também para a orientação
profissional dos jovens oriundos das classes menos favorecidas. Machado (2009)
propõe no artigo “Orientação Profissional: a necessária renovação conceitual e
reorganização política” uma nova visão dos processos de orientação profissional.
Segundo a autora
A Orientação Profissional, atualmente, se depara, assim,
com a necessidade urgente de buscar referências fora do
seu contexto tradicional de atuação e de si mesma como
um campo de linguagem e testes que, muitas vezes,
são tomados como universais, para interagir com outros
campos, pensar junto e ser referenciada por pactos e
alianças. (MACHADO, 2009, p. 91)
Este novo modelo de OP precisa considerar os contextos existentes, as
culturas locais, tendo sempre o sujeito no centro (DUARTE, 2011, p. 150). Nessa
vertente, não se pode desconsiderar, no trabalho de orientação profissional, a
realidade socioeconômica e sociocultural dos jovens das camadas populares e suas
vulnerabilidades (VALORE et al., 2012, p. 358). Na pesquisa realizada por Valore et
al. (2012) com jovens oriundos das camadas populares, constatou-se
[...] a relevância da orientação profissional na formação
cidadã dos jovens, pois independente das restrições
impostas pelas condições socioeconômicas desses
jovens na construção de seus projetos de vida e carreira,
a realização de uma escolha consciente, autônoma,
emancipada, apresentou-se comum a todos os jovens
participantes da pesquisa. (VALORE et al., 2012, p. 361)
Afinal de contas, é próprio da natureza humana o desejo por escolhas
conscientes e que levem à auto-realização e, para os jovens oriundos das camadas
populares, isso não é diferente. Esses jovens também buscam a realização de projetos
de vida e de carreira e têm desejos de mobilidade social.
Todas essas reflexões fazem sentido quando confrontadas com o projeto
institucional do Centro Universitário UNA, que se propõe a ter foco na formação
integral de seus alunos em suas diversas dimensões, como indivíduo, como cidadão
e como profissional. Isso é importante para que cada um encontre seu caminho,
construa suas trajetórias de vida pessoal e profissional, sem perder sua identidade e
o sentido de si próprio (DUARTE, 2011). Além disso, como bem afirma Valore (2012),
a OP não pode ser uma intervenção isolada, por iniciativa apenas de psicólogos em
escolas e consultórios, mas deve estar articulada em rede com as práticas sociais
do corpo docente e dos profissionais em geral das instituições de educação superior.
Para Valore, “[…] tal premissa parte do pressuposto de que a transição para o
57
mundo do trabalho não é tema exclusivo da OP, posto que configura um trabalho
mais abrangente que, em outros países, vem sendo denominado de Educação para
a Carreira” (VALORE et al., 2012, p. 414).
Esse papel de educação para a carreira pode ser também o papel da instituição
de educação superior como provedora de apoio ao jovem em transição para o mundo
do trabalho. Para Gazo-Figuera (1996 apud MELO, 2007) tal instituição precisa
assumir um papel de apoio ao estudante para facilitar a inserção no mercado de
trabalho. Sugere, ainda, que, como política educacional, ela deve criar uma estrutura
informacional sobre a operação do mercado de trabalho que possa ser utilizada
tanto para decisões institucionais como também como referência para os projetos
profissionais dos estudantes. No âmbito da orientação universitária, Gazo-Figuera
(1996) sugere que
[...] o desenvolvimento de programas de orientação e
de intervenção, durante a fase de transição ao mercado
de trabalho, que sigam as seguintes recomendações:
(a) aplicação em contextos próximos do aluno; (b)
treinamento em habilidades de tomada de decisão e
busca de emprego; (c) desmitificação de percepções
e de conceitos que reforcem a conduta passiva frente
ao mercado de trabalho; (d) construção de programas
de desenvolvimento pessoal para estudantes com
problemáticas específicas; (e) integração a uma política de
emprego que facilite a atuação em nível microcontextual.
(GAZO-FIGUERA, 1996 apud MELO, 2007, p. 387)
São iniciativas que podem garantir ao jovem uma passagem mais amena para
a vida adulta, fazendo com que ele consiga ultrapassar, com maior apoio social, os
obstáculos inerentes ao período de transição universidade-mercado de trabalho e com
que tenha mais oportunidades para alcançar seus objetivos de vida. Quando a autora
cita a necessidade de cuidado com jovens que tragam problemáticas específicas,
pode-se considerar, dentre eles, o jovem de baixa renda como aquele que precisa de
uma orientação que leve em conta suas vulnerabilidades.
Nesse contexto, a instituição de educação superior precisa repensar o seu
papel diante das transformações no mundo do trabalho, no sentido de levar em conta
questões relevantes enfrentadas pelos jovens no mercado de trabalho atual, que
necessitam ser refletidas criticamente, durante o seu processo de formação, e incluir,
em suas atividades acadêmicas, projetos voltados para a inserção do graduando no
mercado de trabalho, considerando-se as vivências dos jovens nesse período de
transição. Um programa de orientação profissional que leve em conta todas essas
questões e as particularidades do jovem de baixa renda pode não só oferecer maior
suporte institucional a esse jovem, mas, efetivamente, colocá-lo em uma posição mais
favorável e competitiva em relação às demandas do mundo do trabalho (MELO et al.,
2007, p. 388).
Na ótica de uma orientação profissional ofertada pela instituição de ensino,
essa responsabilidade individual pode ser trabalhada de forma que o jovem encontre
seu próprio caminho e mostre seu potencial ao mundo do trabalho, especialmente aos
recrutadores em processos seletivos das organizações em geral.
58
Embora o foco da orientação profissional individual seja um dos caminhos, a
instituição de ensino poderia também desenvolver projetos de extensão e pesquisa
mais coerentes com as necessidades do mercado de trabalho, introduzindo o jovem
mais cedo no contexto em que irá atuar como profissional, preparando-o em aspectos
psicossociais (identidade profissional, imagem pessoal, socialização organizacional,
etc.), que interferem no projeto da carreira. Assim, a Universidade poderia oferecer
um programa de orientação profissional e de preparo para o trabalho, uma vez que
muitos jovens mudam de curso ou pela falta de maturidade para a escolha da profissão
ou pelas oportunidades que vão aparecendo na sua vida.
Portanto, é fundamental olhar para os jovens oriundos das camadas populares
no momento de transição da educação superior para o mundo do trabalho com outra
proposta de orientação profissional, conduzida e apoiada pela instituição universitária
e que leve em conta o preparo para essa transição, alicerçado em suas habilidades e
saberes, e que se proponha a realizar a conscientização de profissionais de recursos
humanos das organizações. Trata-se de buscar referências e de realizar reflexões
sobre como dar mais um passo importante para a verdadeira inclusão social dos
jovens das camadas populares e beneficiários do ProUni.
PESQUISA COM ESTUDANTES, PROFISSIONAIS DE ORIENTAÇÃO
PROFISSIONAL, PROFESSORES E GESTORES DO CENTRO UNIVERSITÁRIO
UNA.
A pesquisa de campo teve como referência as atividades de OP realizadas pelo
Núcleo de Carreira junto aos alunos de graduação do Centro Universitário UNA. Essas
atividades são conduzidas por um grupo de profissionais da Psicologia Organizacional
que atendem, em média, 700 (setecentos) alunos por ano, promovendo uma série de
encontros e análises de perfil profissional e comportamental desses discentes.
A partir desses dados, foram discutidos os impactos e a pertinência desse
programa de orientação profissional na transição escola-mundo do trabalho, com
recorte específico aos alunos beneficiários do ProUni e oriundos das classes populares.
Nessa etapa, foram consideradas as particularidades socioculturais desses sujeitos
no que diz respeito à transição para o mundo de trabalho como egressos da educação
superior.
Essas discussões foram conduzidas por meio da realização de três grupos
focais. O primeiro grupo (GF1) foi composto pela equipe responsável pela OP no
Centro Universitário UNA, atualmente composta por cinco profissionais. O segundo
grupo (GF2) foi composto por quatro discentes beneficiários do ProUni, representando
quatro diferentes cursos e campi do Centro Universitário UNA. O terceiro grupo (GF3)
foi composto por sete participantes acadêmicos, representando os cinco institutos do
Centro Universitário UNA e sua coordenação acadêmica: cinco diretores de institutos,
um coordenador acadêmico e um docente.
Pretendeu-se, por meio dos grupos focais, promover discussões e conhecer
a opinião dos seus integrantes sobre a inserção dos jovens beneficiários do ProUni
no mundo do trabalho. A proposta foi conhecer as experiências vividas pelos sujeitos
participantes e sua percepção acerca do tema, identificando elementos novos ou
divergentes com relação às assertivas que balizaram o desenvolvimento do projeto
desta pesquisa.
59
A partir do próprio roteiro estabelecido e das respostas fornecidas pelos grupos
focais, foi possível categorizar grandes áreas, quais sejam: o perfil do aluno ProUni
e uma análise comparativa com os alunos não beneficiários do ProUni; o processo
de transição escola-trabalho; o processo de escolha e a orientação profissional e a
orientação profissional voltada ao aluno ProUni.
Inicialmente, estamparam-se nesse trabalho o entendimento do cenário
educacional brasileiro na criação do ProUni – Programa Universidade para Todos – e
sua evolução, o ProUni e o Centro Universitário UNA e, finalmente, o cenário atual e
a legitimidade do ProUni como política pública.
Em seguida, abordaram-se questões relativas à juventude e ao jovem
das camadas populares, ao processo de transição escola-trabalho e à orientação
profissional voltada para esses jovens. Nessa abordagem concluiu-se sobre
diversos conceitos de juventude e a necessidade de se considerar as histórias de
vida e particularidades dos jovens oriundos das camadas populares nos processos
de orientação profissional e de transição para o mundo do trabalho. Argumentouse que processos padronizados de avaliação de competências consideradas como
as exigidas pelo mundo do trabalho nem sempre refletem os saberes dos jovens
“proUnistas”.
Ao longo dos grupos focais, registrou-se que, embora elevado desempenho
acadêmico dos bolsistas seja relatado por todos os participantes, isso não garante a
efetiva transição escola-trabalho. Há um padrão, em algum nível, de expectativas das
organizações em relação ao aos perfis dos candidatos participantes de processos
seletivos e que não corresponde, necessariamente, aos da maioria dos jovens de
baixa renda. Por outro lado, esses mesmos jovens apresentam características que
podem, embora de forma atualmente não legitimada, contribuir para o sucesso das
organizações.
Finalmente, propôs-se um novo olhar institucional para a orientação profissional;
isto é: uma proposta de intervenção social e pedagógica que considerasse a
necessidade do reconhecimento e da legitimação dos saberes e experiências de
jovens oriundos dos segmentos sociais populares.
É essa a essência da proposta de intervenção que, a seguir, se apresenta.
Entende-se que iniciativas dessa natureza podem garantir ao jovem uma passagem
mais amena para a vida adulta, fazendo com que ele consiga ultrapassar, com maior
apoio social, os obstáculos inerentes ao período de transição universidade-mercado
de trabalho e com que tenha mais oportunidades de alcançar seus objetivos de vida. E
os jovens oriundos dos estratos sociais mais baixos, com problemáticas específicas,
precisam de cuidado, de uma orientação que leve em conta suas vulnerabilidades e
que mostre seu potencial frente às exigências do mundo do trabalho.
UM NOVO OLHAR INSTITUCIONAL PARA A ORIENTAÇÃO PROFISSIONAL:
PROPOSTA DE INTERVENÇÃO SOCIAL E PEDAGÓGICA.
A proposta da referida intervenção propõe um novo olhar para a questão
da orientação profissional a partir do tema da investigação, assim delineado: a
orientação profissional de jovens das camadas populares beneficiários do ProUni
com foco nos desafios da transição escola-trabalho. Ela trata de princípios, diretrizes,
60
ações e aspectos das estruturas física, institucional e social para uma concepção de
programa de orientação profissional fundamentado nas identidades socioculturais e
necessidades dos jovens beneficiários do ProUni, visando à sua exitosa transição
escola-mundo do trabalho.
Buscou-se desenvolver um instrumental técnico considerando-se a atividade
de orientação profissional como um processo educacional e a perspectiva de se inoválo, contemplando seu sentido social e sua importância para o desenvolvimento local.
Em outras palavras: a intenção foi elaborar uma proposta de intervenção relativa
à orientação profissional de jovens oriundos do ProUni no Centro Universitário
UNA, visando ao desenvolvimento pessoal autônomo e emancipado e em atenção
às identidades socioculturais desses sujeitos, com foco na transição da Educação
Superior para o mundo do trabalho.
Apoiada nos dados e referenciais obtidos com a revisão teórica e pesquisa
de campo, esta proposta centrou-se nos elementos considerados essenciais para
uma orientação profissional inovadora do ponto de vista social e pedagógico e
comprometida com o fortalecimento do ProUni como política pública de fundamental
importância para o desenvolvimento local.
Identificada como Protocolo de Orientação Profissional - ProUni, esta proposta
de intervenção foi construída a partir das seguintes interlocuções: a) com a produção
acadêmica expressa na revisão teórica sobre o tema; b) com os dados sobre a
evolução do ProUni no País e no Centro Universitário UNA; c) com o contexto e
práticas do Centro Universitário UNA de relacionamento com os jovens do ProUni; d)
com a realidade sociocultural e educacional desses jovens.
Algumas premissas oriundas dos grupos focais mereceram destaque como
norteadoras dessa proposta de intervenção. Entre elas, está a necessidade de que o
aluno “ProUnista” compreenda o cenário do mundo do trabalho atual, reconheça suas
demandas e deseje sair do lugar de poucas oportunidades onde se encontra. Mas
acima de tudo, compreender que embora seu repertório de vida possa não atender
as demandas pré-estabelecidas pelas organizações e traduzidas nos processos
seletivos, sua história de vida permitiu e permite desenvolver outros saberes e formas
de agir também importantes para a sociedade e para o mundo do trabalho, inclusive
o das organizações.
Ou seja: é fundamental resgatar o que o pedagogo e cientista da educação
francês Georges Snyders (1917-2011) chama de “dupla face do proletariado” (1977),
compreender a positividade do que é visto como negativo nas crianças e jovens das
camadas trabalhadoras. Esse outro lado precisa ser considerado, ganhar visibilidade
e, sobretudo, não ser motivo de autocomiseração dessas crianças e jovens. Nesta
proposta de intervenção, busca-se afirmar a importância do reconhecimento e da
legitimação dos saberes e expertises desenvolvidos pelos jovens ao longo de seus
percursos de vida e de trabalho, que se constituir em diferencial afirmativo dos seus
valores nas relações sociais e no contexto das organizações.
No contexto da intervenção aqui proposta, o que se pretende é trazer à tona,
destacar e valorizar as diferenças que o jovem do ProUni carrega em seu repertório
de vida e como essas diferenças podem se constituir em diferencial positivo para si
próprios, para a sociedade e o mundo do trabalho.
Uma vez dentro da educação superior, percebeu-se, especialmente nas colocações
61
dos educadores, um [entre]cruzamento de culturas entre os bolsistas e alunos de
estratos sociais mais elevados. Tal fato remete à perspectiva da “sociologia das
diferenças”, objeto das pesquisas de Bernard Charlot (2000, 2004, 2011, 2013); isto
é: que as diferenças se produzem em função da inserção do aluno na estrutura de
classes da sociedade e das experiências que ele vive e interpreta, diferenças que, na
maioria das vezes, são vistas como “falta” ou “carência”; em especial, pelo mundo do
trabalho. Os jovens “proUnistas”, de fato, dificilmente acessam as experiências que
estão disponíveis para aqueles das classes mais altas e isso entra como um fator que
dificulta suas transições escola-trabalho, uma vez que o mercado do trabalho segue
um padrão de recrutamento e de seleção pautado em competências predeterminas
e padronizadas não correspondentes, em geral, com o histórico de vida do jovem
oriundo das camadas populares.
Por outro lado, esses jovens são portadores de histórias de vida, subjetividades
e singularidades que lhes permitiram construir patrimônios cultural, intelectual e social
com significados importantes que, muitas vezes não são percebidos e/ou valorizados
pelos recrutadores. Embora diferentes ou não legitimados pelo mundo do trabalho,
esses são atributos socioculturais que precisam ser valorizados e que muito podem
contribuir para a sociedade e, inclusive, para as organizações. Afinal de contas,
cada pessoa se constrói no social, como sujeito ativo e consciente, por meio de
singularidades próprias de suas histórias. Ele, portanto, projeta-se não somente pelo
que determina o mercado do trabalho ou um perfil profissional padronizado, mas por
quem ele é e pelo que viveu e como reagiu a imposições de modelos prefigurados.
Nesse contexto, a proposta de intervenção por meio da orientação profissional
diferenciada, que a investigação realizada permitiu elaborar, pretende inovar
socialmente e pedagogicamente o trabalho educacional realizado em favor da
emancipação do aluno ProUni, mostrando e valorizando seus atributos, com base
em suas vivências e repertórios de vida. Pretende-se, assim, favorecer uma leitura
abrangente e não restritiva de suas vivências e de seus diferenciais, tendo em vista a
inserção qualificada desses jovens no mundo do trabalho, e sua permanência exitosa
nele.
Ocorre que, em geral, os modelos tradicionais de orientação profissional se
pautam por conceitos e procedimentos padronizados que nem sempre consideraram
as singularidades das pessoas e seus contextos de vida, suas histórias, seus registros,
suas características socioculturais específicas. Esses modelos homogeneizantes de
orientação profissional não levam em consideração a diversidade sociocultural dos
sujeitos e, por isso, não dão conta de perceber que há diferenças importantes, mas
nem sempre piores ou melhores, entre os jovens das camadas populares e aqueles
dos estratos sociais mais elevados. Com isso, corre-se o risco de se adotar modelos
tradicionais e padronizados de orientação profissional reducionistas, que, inclusive,
colocam-se na contramão da flexibilidade e da abertura que o processo de globalização
tem requerido das organizações e, consequentemente, de seus profissionais. Esses
modelos podem, ainda, condicionar e/ou limitar o desenvolvimento e a criatividade
individuais e, consequentemente, predeterminar papéis que o jovem profissional
deverá assumir no mundo do trabalho.
Essa limitação pode ficar evidente no caso dos jovens das camadas populares,
que apresentam extensos repertórios de vida, habilidades e potencialidades, que
62
podem ser relevantes para suas comunidades, para sociedade e, inclusive, para as
organizações, mas, possivelmente, são desconhecidas pelos próprios sujeitos e pelos
profissionais de recrutamento e seleção, cujas atuações ainda seguem modelos de
seleção tradicionalmente estabelecidos, com padrões que tendem a ser replicados
nos programas de orientação profissional que são, geralmente, alicerçados em
análises de perfis e mapeamento de competências, realizados(as) por meio de testes
psicológicos, e tendem a repetir o modelo de recrutamento e seleção conformado pela
lógica dominante no mercado de trabalho; um modelo pode não atender os anseios e
as necessidades dos jovens das camadas populares que carregam registros de vida
muito distintos dos padrões pré-estabelecidos.
É mister ressaltar que, esse processo de intervenção, no âmbito de uma
orientação profissional inovadora, cumpre considerar, também, que as “juventudes”
são muitas, que não há uma definição única do que é ser jovem. São muitas as
juventudes e todas carregam, ancoradas em suas histórias de vida, sonhos, desejos
e expectativas em relação à sua transição da educação superior para o mundo
do trabalho. Esse arcabouço de sentimentos também precisa ser considerado no
processo de orientação profissional direcionada ao jovem de baixa renda do ProUni.
Como política pública o ProUni pode promover a qualidade da inclusão na Educação
Superior, mas o olhar inovador para uma orientação profissional que atenda aos
anseios desse jovem pode promover efetiva qualidade de participação do mesmo
nos processos sociais.
Esta proposta de intervenção surgiu de uma experiência prévia com o
programa de orientação profissional desenvolvido pela equipe do Núcleo de Carreira
do Centro Universitário UNA. Ao perceber que não é possível replicar procedimentos
e orientações padronizados para utilização em larga escala, inclusive para jovens
do ProUni, surgiu a oportunidade de se pensar algo novo a partir da investigação
realizada.
Inicialmente, foi pensada na inovação como incremento; isto é: inovar a partir
de um modelo já pronto e aplicado. No entanto, o desafio mostrou outra perspectiva:
conseguir atender um número grande de jovens “proUnistas” sem perder o olhar
para a pessoa. No modelo em vigor, isso se mostra impossível. O desafio exigiu
descolamento dos modelos padronizados, pautados em análise de perfis, mapeamento
de competências por meios de ferramentas que rotulam e pré-estabelecem padrões
comportamentais.
Surgiu, assim, a oportunidade para se pensar na promoção da inovação, o que
requer ruptura. Assim, esta proposta de intervenção se constitui modelo inédito, na
instituição, de orientação profissional, distante do modelo psicológico pautado na lógica
das competências e do ajustamento do indivíduo a padrões ditados pelo mercado
de trabalho. Em parceria do Núcleo de Carreira com a área de ensino a distância
do grupo Anima2, esta nova proposta de orientação profissional prevê momentos
coletivos, bem como momentos individuais, presenciais e virtuais, o que dará escala
e a garantia de que todos os alunos “proUnistas” terão acesso ao programa proposto.
Além disso, ela considera a importância da análise do contexto dos estudantes e de
suas decisões, enxergando a orientação profissional como um processo formativo
para o desenvolvimento pessoal e social e uma intervenção que deve ter caráter
emancipatório, e não meramente compensatório.
2. http://www.animaeducacao.com.br/
63
A proposta de intervenção precisa da parceria do NAP – Núcleo de Apoio
Psicopedagógico – do Centro Universitário UNA. Entre os objetivos do escopo de
trabalho do NAP estão: diagnosticar, preventivamente, dificuldades comportamentais
de alunos do Ensino Superior e a adaptação e acompanhamento aos alunos
com realidades específicas; orientar sobre hábitos de estudo e relacionamentos
interpessoais - individual ou em sala de aula. A proposta dessa parceria é deslocar
de um campo único de linguagem e testes que, muitas vezes, são tomados como
universais, para interagir com outros campos. Pretende-se, também, interagir com
atividades extensionistas da instituição, por meio de projetos que envolvam os alunos
bolsistas e que reforcem seus atributos e saberes.
Portanto, a abordagem da proposta de intervenção se propõe a ser educativa,
dialógica, processual e integrada com a vivência escolar, inclusive com diferentes
áreas de apoio ao aluno.
CONSIDERAÇÕES FINAIS
Os percursos da investigação, incluindo revisão teórica, análises documentais
e de dados empíricos, ofereceram os elementos necessários para se entender a
importância do debate sobre a transição de concluintes da educação superior para
o mundo do trabalho quando esses são jovens de baixa renda e beneficiários do
ProUni.
A pesquisa realizada se insere nesse processo de busca de promoção de
inclusão social na educação superior, sabendo que ela não garante uma efetiva
transição para o mundo do trabalho que atenda os anseios dos jovens “proUnistas”.
O ProUni, como política pública de inclusão educacional, pode ser efetivo, mas não
se propõe a responder ao processo de inserção qualificada dos estudantes no mundo
do trabalho.
Percebeu-se que existem progressos sociais com relação à inclusão na
educação superior, que há uma política pública inclusiva representada pelo ProUni,
mas, ao mesmo tempo, verificou-se que pouco se fala sobre a transição dos
concluintes para o mundo do trabalho e sobre a qualidade das conquistas dos jovens
beneficiários com relação às suas trajetórias profissionais. Os grupos focais com
estudantes e educadores mostraram que nem sempre a escolha por determinado
curso ou profissão está alinhada com os anseios e sonhos desses jovens, ocorrendo,
em muitos casos, em função do curso para o qual foi possível conquistar a bolsa.
Há, portanto, indícios de qualidade do acesso, mas não necessariamente de
qualidade de participação no mundo do trabalho com vistas a atender as expectativas
dos jovens; ou seja: o jovem pode conquistar um espaço na instituições particulares de
educação superior, obter um bom desempenho acadêmico, o que inclusive constatouse durante a investigação em relação aos “proUnistas”, mas, ainda assim, esse
resultado não é garantia de uma transição que satisfaça seus desejos e expectativas
quanto à oportunidade de se emancipar socialmente. Embora as juventudes sejam
muitas, os jovens carregam, em geral, sonhos, desejos, anseios de realização pessoal
e profissional e buscam na educação superior uma oportunidade para realizá-los.
A partir dos resultados da pesquisa realizada, chegou-se ao modelo que propõe
um novo olhar para a orientação profissional. Esse modelo é inovador, por propor
mudar a forma de desenhar e executar a prática de OP, bem como por repensar seus
64
objetivos e enfoques. Nessa proposta, o jovem é considerado o protagonista principal
dos processos do seu autorreconhecimento e autoconstrução. Ela busca tirar partido
de cada participante da OP, individualmente, de acordo com suas experiências e
história de vida. O que se pretende é que o jovem, como protagonista, seja capaz de
conhecer a dinâmica do mundo do trabalho, conhecer a si mesmo, refletir sobre seus
saberes por meio do inventário de saberes (CHARLOT, 2000) e, a partir daí, construir
seu percurso profissional de modo que possa se apresentar ao mundo do trabalho
valorizando seus atributos. O que se propõe, portanto, é que os bolsistas entendam
que precisam participar ativamente do processo de suas escolhas profissionais; que
caminhem além, gerenciando, também, o uso de suas capacidades, competências,
habilidades e saberes, de modo que sejam os primeiros a valorizar seus interesses e
a se colocar com dignidade e autoconfiança frente às exigências das organizações e
da sociedade em geral.
Pautado nessa perspectiva é que esta proposta de OP contempla, de forma
inovadora, a combinação de atividades em grupo e individuais, presenciais e a
distância, com o propósito de municiar o jovem com informações e orientações sobre
o mundo do trabalho e suas peculiaridades, mas, acima de tudo, visando contribuir
para o seu “empoderamento” para o uso de suas capacidades e saberes a partir das
análises do seu inventário de saberes. Significa franquear a esses jovens não somente
a oportunidade de acesso ao Ensino Superior, mas, também, a de dar continuidade
ao seu desenvolvimento como indivíduo, cidadão e profissional, proporcionandolhes uma transição para o mundo do trabalho de forma autônoma e emancipada,
valorizadora de seus atributos socioculturais, promovendo melhoria da sua qualidade
de vida e, consequentemente, desenvolvimento local.
Inspirado em Abade (2005, p. 143), acredita-se que o papel da OP “[…] não
é prescrever um modelo de sociedade e de homem, mas construir propostas que
possam convergir para a transformação de nossas condições de existência, no
sentido de uma sociedade mais democrática e menos desigual”.
Finalmente, esta investigação não tem a pretensão de encerrar a discussão
sobre o tema e o problema selecionados para estudo, mas a de contribuir para o
alargamento do espaço para novas reflexões e a de provocar interesse por novas
pesquisas sobre as condições e situações de estudantes de instituições de ensino
onde os contrastes sociais são ainda muito nítidos e sobre as mudanças que se
fazem necessárias nas políticas e práticas de recrutadores para o mundo do trabalho.
REFERÊNCIAS
ABADE, F. L. Orientação Profissional no Brasil: Uma Revisão Histórica da Produção
Científica. Revista Brasileira de Orientação Profissional, v. 6, n. 1, p. 15-24, 2005.
Disponível em: <http://pepsic.bvsalud.org/pdf/rbop/v6n1/v6n1a03.pdf>. Acesso em:
08 dez. 2012.
AGULLÓ-TOMÁS, E. Jóvenes, Trabajo e Identidad. Oviedo: Universidad de Oviedo,
1997.
ALMEIDA, S. C. O avanço da privatização na educação brasileira: o ProUni como
uma nova estratégia para a transferência de recursos públicos para o setor privado.
65
Dissertação (mestrado em educação). Universidade Federal Fluminense. Niterói, Rio
de Janeiro. 2006. Disponível em: <http://www.uff.br/pos_educacao/joomla/images/
stories/Teses/almeidad2006.pdf>. Acesso em: 20 jul 2013.
BELLO, J. G. Reconceptualización de la Orientación Educativa en los tiempos actuales.
Revista Brasileira de Orientação Profissional, v. 9, n. 2, p. 1-8, 2008. Disponível em:
<http://pepsic.bvsalud.org/pdf/rbop/v9n2/v9n2a02.pdf>. Acesso em: 01 dez. 2012.
CARRANO, Paulo C. R. Juventudes: as identidades são múltiplas. Movimento:
Revista da Faculdade de Educação da Universidade Federal Fluminense, Niterói-RJ,
n. 1, p. 11-27, mai. 2000. Disponível em: <http://www.revistamovimento.uff.br/index.
php/revistamovimento/article/view/189>. Acesso em: 10 set. 2013.
CARVALHO, C. H. A. O PROUNI no governo Lula e o jogo político em torno do acesso
ao ensino superior. Educ. Soc. [online], v. 27, n. 96, p. 979-1000, 2006. Disponível em:
<http://www.scielo.br/pdf/es/v27n96/a16v2796.pdf>. Acesso em: 11 ago. 2012.
CATANI, A. M.; HEY, A. P.; GILIOLI, R. S. P. PROUNI: democratização do acesso às
Instituições de Ensino Superior? Educar [online], Curitiba, n. 28, p. 125-140, 2006.
Disponível em: <http://www.scielo.br/pdf/er/n28/a09n28.pdf>. Acesso em: 06 ago.
2012.
CHARLOT, Bernard. Da relação com o saber: elementos para uma teoria. Tradução
de Bruno Magne. Porto Alegre, RS: Artes Médicas Sul, 2000.
CHARLOT, Bernard. Da relação com o saber e com a escola entre estudantes de
periferia. Tradução de Neide Luzia de Rezende. Cad. Pesq., São Paulo, n. 97, p.
47-63, mai. 1996. Disponível em: <Http://www.fcc.org.br/pesquisa/publicacoes/cp/
arquivos/373.pdf>. Acesso em: 20 dez. 2013.
CHARLOT, Bernard. Da relação com o saber às práticas educativas. São Paulo:
Cortez, 2013. v. 1. (Coleção Docência em Formação)
CHARLOT, Bernard (Org.). Juventude popular e Universidade: acesso e permanência.
São Cristóvão, SE: Editora UFS, 2011.
CHARLOT, Bernard. Bernard Charlot: uma relação com o saber (entrevista). Espaço
Pedagógico, v. 10, n. 2, p. 159-178, 2003.
CHARLOT, Bernard. Educação, Trabalho: problemáticas contemporâneas que
convergem. Educação, Sociedade & Culturas, Universidade de Porto, Portugal, v. 22,
p. 9-25, 2004.
COIMBRA, J. L.; VIEIRA, D. Sucesso na Transição Escola-Trabalho: A Percepção de
Finalistas do Ensino Superior Português. Revista Brasileira de Orientação Profissional,
v. 7, n. 1, p. 1-10, 2006. Disponível em: <http://pepsic.bvsalud.org/pdf/rbop/v7n1/
66
v7n1a02.pdf>. Acesso em: 05 dez. 2012.
COSTA, F. ProUni: o olhar dos estudantes beneficiários. Rio de Janeiro: Michelotto,
2012.
COSTA, F. O ProUni e seus egressos: uma articulação entre educação, trabalho e
juventude. 2012. Disponível em: <http://www.sapientia.pucsp.br//tde_busca/arquivo.
php?codArquivo=15286>. Acesso em: 04 fev. 2014.
DAYRELL, J.; CARRANO, P. C. Jovens no Brasil: difíceis travessias de fim de século
e promessas de um outro mundo. 2003. Disponível em: <http://www.uff.br/obsjovem/
mambo/images/stories/Documentos/JOVENS_BRASIL_MEXICO.pdf>. Acesso em:
17 dez. 2013.
DAYRELL, Juarez. O jovem como sujeito social. Rev. Bras. Educ. [online], n. 24, p.
40-52, set./dez. 2003. Disponível em: <http://www.scielo.br/scielo.php?pid=S141324782003000300004&script=sci_arttext>. Acesso em: 08 dez. 2013.
DONAS, S. (Org.). Adolescencia y Juventud en América Latina. Cartago: Libro
Universitario Regional, 2001.
DUARTE, M. E. Desaprender para ensinar os princípios (ou um outro modo de
enfrentar a orientação). Revista Brasileira de Orientação Profissional, v. 12, n. 2, p.
143-151, jul./dez. 2011. Disponível em <http://pepsic.bvsalud.org/pdf/rbop/v12n2/02.
pdf>. Acesso em: 08 dez. 2012.
GAZO-FIGUERA, P. La Inserción del Universitario en el Mercado de Trabajo.
Barcelona: EUB, 1996.
INEP. Censo da Educação Superior no Brasil. Brasília, 2010. Disponível em: <http://
download.inep.gov.br/educacao_superior/censo_superior/resumo_tecnico/resumo_
tecnico_censo_educacao_superior_2010.pdf>. Acesso em: 05 jul. 2012.
MACHADO, Lucília. Orientação Profissional: a necessária renovação conceitual e
reorganização política. In: BLAS, F. A.; PLANELLS, J. Desafios atuais da educação
técnico-profissional. Madri: OEI; Fundação Santillana, 2009. p. 89-100.
MARGULIS, M. Juventud: una aproximación conceptual. In: DONAS, S. (Org.).
Adolescencia y Juventud en América Latina. Cartago: Libro Universitario Regional,
2001. p. 41-56.
MEC. Prouni – Programa Universidade para Todos. Programa. Portal do Ministério
da Educação. Disponível em: <http://siteProuni.mec.gov.br/index.php?option=com_
content&view=article&id=124&Itemid=140>. Acesso em: 16 jul. 2012.
MELO, S. L.; BORGES, L. O. A Transição da Universidade ao Mercado de Trabalho na
Ótica do Jovem. Psicologia Ciência e Profissão, v. 27, n. 3, p. 376-3952007 Disponível
67
em: <http://www.scielo.br/pdf/pcp/v27n3/v27n3a02.pdf>. Acesso em: 20 ago. 2013.
SILVA, C. R. E. Orientação Profissional, mentoring, coaching e counseling: algumas
desigualdades e similaridades práticas. Revista Brasileira de Orientação Profissional,
v. 11, n. 2, p. 299-309, jul.-dez. 2010. Disponível em: <http://pepsic.bvsalud.org/pdf/
rbop/v11n2/v11n2a14.pdf>. Acesso em: 27 dez. 2012.
SNYDERS, G. Escola, classe e luta de classes. Tradução de Maria Helena Albarrán.
Lisboa: Moraes Editores, 1977.
SPÓSITO, M. P. Juventude e Educação: interações entre a educação escolar e a
educação não-formal. Revista Educação e Realidade, v. 33, n. 2, p. 83-98, jul./dez. 2008.
Disponível em: <http://seer.ufrgs.br/educacaoerealidade/article/viewFile/7065/4381>.
Acesso em: 11 dez. 2012.
VALORE, L. A.; CAVALLET, L. H. R. Escolha e orientação profissional de estudantes
de curso pré-vestibular popular. Psicologia & Sociedade, Belo Horizonte, v. 24, n. 2, p.
354-363, mai./ago. 2012. Disponível em: < http://www.scielo.br/scielo.php?script=sci_
arttext&pid=S0102-71822012000200013&lng=en&nrm=iso&tlng=pt>. Acesso em: 10
dez. 2013.
68
69
Agenda
Social
VOLUME
NÚMERO
ISSN 1981-9862
ELETRONIC JOURNAL
www.revistaagendasocial.com.br
DA EFICIÊNCIA PRODUTIVA À INSTABILIDADE DA
CLASSE TRABALHADORA1
Of the productive efϔiciency to the instability of the working class
1. SILVA, Priscila Raposo. 2. RODRIGUES, Sílvia Gomes. 3. PEREIRA, Anete Marília.
1. UNIMONTES. Programa de Pós Graduação em Desenvolvimento Social.
E-mail: [email protected] 2. E-mail: [email protected];
3. E-mail: [email protected].
RESUMO
70
8
1
ABSTRACT
As transformações no mundo do trabalho, ligadas
à reestruturação produtiva, têm sido signi icativas
e veri icáveis em países de capitalismo avançado,
com repercussões não homogêneas, em áreas
industrializadas do Terceiro Mundo. As novas
tecnologias foram inserindo e se desenvolvendo
cada vez mais nos processos de produção,
onde emergiram novos padrões de busca
por maior e iciência na produtividade, como
também formas de ajustar a produção à lógica
do mercado mais competitivo e instável. Essas
transformações afetaram a classe trabalhadora em
escala global. O objetivo deste estudo é analisar
essas transformações e o seu impacto sob a
classe trabalhadora. À luz dos autores, Antunes
(1999), Cattani (1997) e Harvey (2005), foram
tratadas as transições no mundo do trabalho e
os contrastes entre modelos de produção. Novas
formas produtivas começaram a superar o padrão
fordista, dentre elas, emergiram o conceito de
especialização lexível. Mas, foi o toyotismo, ou
modelo japonês, que provocou maior impacto.
O que se pode considerar é que os trabalhadores
permanecem como os principais protagonistas
das transformações, sendo que foram duramente
atingidos em sua subjetividade e em sua
materialidade. Assim, estes passaram a icar sem
estabilidade, na igura de trabalhadores atípicos, ou
seja, executavam trabalhos temporários, parciais,
em domicílios, informais, entre outros.
The changes in the working world, linked to the
restructuring process, have been signiϔicant and
veriϔiable in the advanced capitalist countries, with
inhomogeneous impact in industrialized areas of the
Third World. New technologies were entering and
developing more and more in production processes,
where new patterns emerged search for greater
efϔiciency in productivity, as well as ways to adjust
production to the logic of competitive and ϔickle
market. These changes affected the working class on
a global scale. The objective of this study is to analyze
these changes and their impact on the working class.
In light of the authors, Antunes (1999), Cattani (
1997) and Harvey (2005 ) , were handled transitions
in work and contrasts between production models.
New productive forms began to overcome the
Fordist pattern, among them emerged the concept of
ϔlexible specialization. But was Toyotism or Japanese
model, which caused greater impact. What you
might consider is that workers remain as the main
protagonists of change, and have been hit hard
in their subjectivity and their materiality. So they
started to run out of stability, in the ϔigure of atypical
workers, or temporary work performed, partial, in
households, informal, among others.
PALAVRAS-CHAVE
Reestruturação produtiva; instabilidade
trabalhista; capitalismo.
KEY-WORDS
Economic restructuring;
capitalism.
1. Artigo publicado no II CONINTER, Belo Horizonte, Minas Gerais, 2013.
labor
unrest;
1. Introdução
Profundas foram as mudanças no mundo do trabalho, na década de 1980, nos
países capitalistas. Essas afetaram tanto a estrutura produtiva, quanto a classe dos
trabalhadores. Novas tecnologias, a globalização, foram inserindo e desenvolvendo
nos processos de produção, onde emergiram assim, novos padrões de busca de
produtividade, novas formas de adequar a produção à lógica do mercado, cada vez
mais competitivo e instável. Estas mudanças, no entanto, não romperam com o
sistema produtivo em questão. A “essência” do capitalismo ainda permanece figurada
no lucro e na competição.
Os autores Antunes (1999), Cattani (1997) e Harvey (2005), tratam dessas
transições no mundo do trabalho e fazem, principalmente, um contraste entre estes
modelos. Neste sentido, o fordismo caracteriza-se como prática de gestão na qual se
observa a radical separação entre concepção e execução baseando-se no trabalho
fragmentado, repetitivo, parcelado, monótono e simplificado, com ciclos operatórios
muito curtos requerendo pouco tempo para formação e treinamento dos trabalhadores.
Os antigos processos de trabalho como a produção em massa, constituídos
pelo padrão fordista de produção foram substituídos pela flexibilização da produção.
O conceito de especialização flexível definiu-se como modelo alternativo apresentado
e consagrado por Sabel e Piore para a produção capitalista. Mas, foi o toyotismo,
ou modelo japonês, que provocou maior impacto, já que apresentava um processo
produtivo mais flexível, no qual permite um operário trabalhar com várias máquinas e
atender o mercado com melhor qualidade e num melhor tempo.
Em decorrência do surgimento de novas formas produtivas, da reestruturação
produtiva, para atender as exigências do mercado, várias foram as mudanças ocorridas
no mundo do trabalho que afetaram principalmente a classe trabalhadora, seu modo de
vida e de trabalho. Com estas mutações ocorridas na classe trabalhadora, nasceram
assim outras formas de trabalho marcadas pela desqualificação e pouco custo.
Desse modo, o presente trabalho busca analisar essas transformações e o seu
impacto sob a classe trabalhadora. Pois, os trabalhadores ficaram sem estabilidade na
figura de trabalhadores atípicos, ou seja, executavam trabalhos temporários, parciais,
em domicílios, informais, entre outros.
2. Do fordismo à especialização flexível
Após a Segunda Guerra Mundial, os países centrais estavam sob o sistema
fordista de produção, todavia, nos anos 1960, este modelo apontou os primeiros sinais
de sua crise, e assim surgiram formas mais flexíveis de organização da produção.
Para entender as transições ocorridas é preciso destacar a origem e o significado de
tais mudanças nas ordens produtivas.
Segundo Antunes (1999), Cattani (1997) e Harvey (2005), o fordismo, sistema
de produção empregado por Henri Ford em 1914, foi um modelo de produção baseado
em inovações técnicas e organizacionais que se mesclavam. Para Harvey (2005),
este modelo iniciou quando o seu criador reduziu a jornada de trabalho (encurtando
para 8 horas uma jornada que eram de 9 horas) e aumentou para U$ 5,00 (enquanto
a média nas indústrias automobilísticas era de U$2,34) – o que ficou conhecido como
The Five Dollars Day. A visão de Ford, ainda segundo Harvey (2005, p.121), “seu
71
72
reconhecimento explícito de que produção de massa significava consumo de massa,
um novo sistema de reprodução da força de trabalho, uma nova política de controle e
gerência do trabalho (...)”, iria diferenciar o fordismo do taylorismo.
Com este modelo, Henri Ford racionalizou velhas tecnologias, tendo em vista a
produção e o consumo em massa. Essa nova forma inovou a indústria de automóvel
quando introduziu e aperfeiçoou a linha de montagem. Caracterizava-se por fábricas
verticalizadas, o qual se observava a separação entre elaboração e execução no
processo de trabalho com produtos mais homogêneos, em que o trabalhador
ocupava um posto do qual evitava seu deslocamento, pois a linha de montagem se
encontrava conectada à esteira rolante. Eram as peças que se movimentavam, e cada
trabalhador efetuava uma operação. Era essa relação, um homem/uma máquina, em
que se fundamentava o fordismo. Nessas condições, o trabalho se tornava repetitivo,
parcelado e monótono, ou seja, o trabalhador tinha como função repetir movimentos
padronizados, desprovidos de qualquer conhecimento profissional, vendo desta forma
a sua iniciativa e autonomia extremamente reduzidas.
O fordismo alcançou um significativo crescimento na produtividade e apresentou
um bom desempenho. Um fator importante surgido nesta fase foi à conquista dos
direitos trabalhistas, em que houve uma redução da jornada de trabalho e um aumento
relativo nos salários, sendo que, este último, funcionava como um incentivo para
melhores rendimentos no trabalho. Porém este modelo enfrentou dificuldades em se
propagar, tanto nos Estados Unidos quanto na Europa, principalmente.
O benefício conhecido como, The Five Dollars Day, não funcionou apenas como
incentivo, bem como forma de manter uma linha de comportamento disciplinado, como
um meio de adestramento para com os trabalhadores. Visava entre outros objetivos,
funcionar como forma de renda e lazer para que os trabalhadores consumissem dos
produtos comercializados, consequentemente, assegurava o mercado, as fábricas e
o aumento da produção. Contudo, esta experiência não perdurou e a sua existência
demonstra os problemas nos quais o fordismo iria enfrentar. O aumento nos salários
também não continuou, visto que, houve um corte dos mesmos, acompanhados de
demissão dos trabalhadores, já que o mercado competitivo se fortalecia cada vez
mais.
As dificuldades de propagação do fordismo se deram por diversos fatores.
Primeiramente, devido à resistência por parte dos trabalhadores em aceitar um sistema
de produção fundamentado em um trabalho fragmentado, repetitivo e monótono, ou
seja, em aceitar a rotinização e a monotonia do trabalho, pois o empregado perdia
suas qualificações, as quais eram incorporadas as máquinas, e também no elevado
grau de rotatividade da força de trabalho. Outra dificuldade, apresentada por Harvey
(2005), é concernente à limitação dos modos e mecanismos de intervenção estatal
na economia. Fez-se necessário obter um novo modo de regulamentação para
atender aos requisitos da produção fordista. Foi preciso também, o quase colapso do
capitalismo nos anos trinta, que promoveu de um lado o esfriamento da resistência dos
operários, ameaçado pelos elevados índices de desemprego e, por outro, verificou a
necessidade de uma nova postura e papel do Estado.
Nem todos eram gratificados pelos benefícios do fordismo gerando
insatisfações, pois este modelo apresentou desigualdades. A raça, o gênero e a etnia,
determinavam quem tinha ou não acesso ao emprego privilegiado, sendo que amplos
segmentos da força de trabalho não tinham acesso aos privilégios da produção em
massa e do consumo de massa. Com isto, essas desigualdades resultaram em fortes
movimentos sociais e tensões sociais por parte dos “excluídos”.
Em meados a década de 1970, este modelo, até então predominante, entra em
declínio, logo depois da aguda recessão instalada a partir de 1973. Com o aumento da
concorrência internacional e a globalização da economia, este padrão entra em crise.
A competição pressionou as empresas a adotarem novos processos de reestruturação
produtiva, visando adequá-los às novas exigências do mercado, fazendo surgir um
rápido processo de transição do regime.
Outros modelos, novas formas produtivas começaram a superar o padrão
fordista, os quais se operavam na flexibilidade dos processos de trabalho, dos
mercados, dos produtos e padrões de consumo. Neste sentido, emerge o conceito
de especialização flexível, a saber, foi um modelo alternativo apresentado por Sabel
e Piore para a produção capitalista que,
(...) articula, de um lado, um significativo desenvolvimento
tecnológico e, de outro, uma desconcentração produtiva
baseada em empresas médias e pequenas, “artesanais”.
(...) Um processo “artesanal”, mais desconcentrado e
tecnologicamente desenvolvido, produzindo para um
mercado mais localizado e regional, que extingue a
produção em série, (...) (ANTUNES, 1999, p.17).
É inegável que Sabel e Piore se opõem ao fordismo e sua produção em massa,
pois defendem o trabalho flexível, a mão-de-obra qualificada e polivalente, ou seja,
para essa nova forma produtiva havia um significativo desenvolvimento tecnológico e
uma descentralização produtiva para médias e pequenas empresas. Segundo estes
autores, o elemento que causaria a crise capitalista, seriam os excessos do fordismo
e a produção em massa, que suprimiam a dimensão criativa do trabalhador, mas nem
todos concordavam com esta tese defendida por Sabel e Piore, sofrendo assim várias
críticas e algumas considerações. Coriat (1992) criticava esta tese afirmando que
a substituição da produção em massa e a sua generalização eram irrealizáveis na
prática. Já para Clarke (1991), a tese não era universalmente aplicável, com diversas
incoerências e também enfatizava que o fordismo já havia sido aplicado em diversas
situações e que a razão da sua crise era pura conseqüência da crise do capitalismo
(apud ANTUNES, 1999).
Frank Annunziato (1989) desenvolveu pontos críticos sobre essa nova
formulação, em que criticava, dizendo que Sabel e Piore entendiam que a produção
artesanal era um meio necessário para a preservação do capitalismo, mas para ele
o fordismo como é, dominava a economia dos EUA na época. O autor Fergus Murray
(1983) concordava com Sabel e Piore ao dizer que a descentralização produtiva,
a fragmentação do trabalho, se, unida com o avanço tecnológico, garantia maior
exploração e maior controle sobre a força de trabalho. Enquanto Harvey (1992)
reconhecia que podiam coexistir diferentes processos produtivos, integrando o
fordismo aos processos flexíveis, tradicionais, “artesanais”. (apud ANTUNES, 1999).
O autor Harvey (2005), faz um esboço analítico sobre o significado e os contornos
das transformações vividas pelo capitalismo. Para ele, com a crise no início dos anos
de 1970 marcou-se um período de transição de um padrão de acumulação capitalista
rígido (o fordismo e suas forças produtivas) aos novos modos de acumulação do
capital (a “acumulação flexível”). Sobre a acumulação flexível, este autor marca esta
73
fase da produção como um confronto direto com a rigidez do fordismo apoiado na
flexibilidade dos processos de trabalho, dos mercados de trabalho, dos produtos e
padrões de consumo.
Caracteriza-se pelo surgimento de setores de
produção inteiramente novos, novas maneiras de
fornecimento de serviços financeiro, novos mercados e,
sobretudo, taxas altamente intensificadas de inovação
comercial, tecnológica e organizacional. A acumulação
flexível envolve rápidas mudanças dos padrões do
desenvolvimento desigual, tanto entre setores como
entre regiões geográficas, criando, por exemplo, um vasto
movimento no emprego no chamado “setor de serviços”,
bem como conjuntos industriais completamente novos
em regiões até então subdesenvolvidas (...) (HARVEY,
1992 apud ANTUNES, 1999, p.21).
Outras características sobre a acumulação flexível são elucidadas por Harvey
(1992, apud ANTUNES, 1999). Primeiramente estão voltadas ao crescimento,
este que se apóia na exploração do trabalho vivo no universo da produção, e, por
último, se referem ao capitalismo, que possui uma intrínseca dinâmica tecnológica e
organizacional.
Apesar das várias formulações e experiências sobre esta tese, foi o toyotismo
ou modelo japonês que provocou maior impacto, “tanto pela revolução técnica que
operou na indústria japonesa, quanto pela potencialidade de propagação que alguns
dos pontos básicos têm demonstrado (...)” (ANTUNES, 1999, p.23).
O toyotismo originou-se na fábrica da Toyota no Japão e foi um modo de
organização produtiva que em várias partes do capitalismo globalizado mescla ou
substitui o fordismo. Podem-se elucidar, segundo Coriat (1992), quatro fases que
contribuíram para a ascensão desde modelo:
Primeira: a introdução, na indústria automobilística
japonesa, da experiência do ramo têxtil, dada
especialmente pela necessidade de o trabalhador operar
simultaneamente com várias máquinas. Segunda: a
necessidade de a empresa responder à crise financeira,
aumentando a produção sem aumentar o número de
trabalhadores. Terceira: a importação das técnicas de
gestão dos supermercados dos EUA, que deram origem
ao kaban (...). Quarta fase: a expansão do método
kaban para as empresas subcontratadas e fornecedoras
(CORIAT, 1992 apud ANTUNES, 1999, p.23).
Deste modo, percebe-se que os traços constitutivos do toyotismo se diferem
bastante do fordismo. No primeiro, a produção se baseia num processo mais flexível
onde permite o trabalhador operar com várias máquinas, tornando o empregado mais
polivalente. O trabalho não segue uma dinâmica parcelar, se realiza em equipe, nos
quais operam um sistema de máquinas automatizadas.
Outro fator importante, é que não se segue com a produção de massa e em
série do fordismo. O consumo aparece como determinante do que será produzido,
com isto se baseiam em um estoque mínimo, ou seja, produzem somente o necessário
seguindo o modelo dos supermercados, de reposição dos produtos somente após os
74
mesmos serem vendidos.
O termo associado a este modo de funcionamento é o kaban, que indica a
quantidade necessária de peças a serem produzidas pelas unidades anteriores,
resultando no acionamento da produção do fim para o início, ou seja, após a venda
que se inicia a reposição do estoque. Outra forma de administração da produção
usada é o just in time, este garante o melhor aproveitamento do tempo da produção,
pois tanto os estoques quanto a matéria-prima necessária no processo produtivo são
abastecidos no tempo certo e na quantidade exata.
Neste sentido, o toyotismo apresentava um processo produtivo mais flexível,
no qual permite um operário trabalhar com várias máquinas e atender o mercado
com melhor qualidade e num melhor tempo, sendo que a empresa tem grandes
investimentos, no que diz respeito aos treinamentos, sugestões, controle de qualidade
dos produtos, entre outros. Uma diferença compreendida entre o indivíduo que trabalha
no fordismo e no toyotismo é que neste último, o trabalho parece mais envolvente,
participativo e mais livre. Com relação à classe trabalhadora, os autores Coriat (1992)
e Gounet (1992) apud Antunes (2007), fazem algumas considerações. Para Gounet
(1992) apud Antunes (2007), no toyotismo, houve uma intensificação da exploração
do trabalho, já que o trabalhador passa a ser polivalente, trabalhando com diversas
máquinas e Coriat (1992) apud Antunes (2007), vê isso como uma desespecialização
dos profissionais, transformando-os em multifuncionais.
Assim, ocorre também uma flexibilização dos trabalhadores, em que esse
sistema estrutura-se a partir de um número mínimo de funcionários, ocorrendo a
realização de horas extras, para ampliá-las desta forma. A flexibilização do trabalho fez
com que aumentasse o trabalho ilegal. Nesta época, denominavam-se trabalhadores
temporários ou subcontratação, empregos vitalícios, terceirização, entre outros. Cabe
salientar, que neste modelo é que houve a desregulação dos direitos trabalhistas,
havendo também vários movimentos grevistas, contra a racionalização do trabalho
e em prol do aumento salarial, momento em que as empresas empreenderam uma
repressão contra o movimento dos trabalhadores.
Neste sentido, percebem-se as transições ocorridas no mundo do trabalho, para,
principalmente, enfrentar a crise econômica e a saturação do mercado, adaptando-se
assim, às mudanças tecnológicas com maior flexibilidade e integração no sistema de
produção, mas o que se pode considerar é que os trabalhadores permanecem como
os principais protagonistas das transformações, sendo que foram duramente atingidos
em sua subjetividade e em sua materialidade. No fordismo, o operário sofria com o
trabalho repetitivo, massificado, intenso, etc., e, no toyotismo, o mesmo passava pela
exploração, a intensificação e a precarização do trabalho, visto que neste último,
pregavam pela valorização do trabalho em equipe, da flexibilização e da qualificação
do trabalhador. Estes sistemas vigentes em questão focam-se somente na busca
desenfreada pelo lucro, em uma sociedade capitalista caracterizada por um mercado
competitivo e instável.
Em suma, elucidando o tema tratado e demonstrando detalhes (os quais
alguns não foram expostos) sobre a transição do fordismo à especialização flexível,
Harvey (2005) usa como artifício, um relato de Swyngedouw (1986), que fornece
mais especificações sobre as transformações no campo da tecnologia e do processo
de trabalho, e, também como o regime de acumulação e suas modalidades de
regulamentação se transformam, dando destaques aos processos de produção, ao
75
trabalho, o espaço, o estado e a ideologia.
3. Formas de trabalho atípico
Segundo Antunes (1999), o mundo do trabalho passou por várias metamorfoses,
nas quais alteraram de alguma forma a classe trabalhadora e os modos de trabalho.
Quando ocorreu a reestruturação produtiva do capital, houve uma diminuição da
classe operária industrial tradicional, onde verificou algumas mudanças.
O mais brutal resultado dessas transformações é
a expansão, sem precedentes na era moderna, do
desemprego estrutural, que atinge o mundo em escala
global. Pode-se dizer, de maneira sintética, que há uma
processualidade contraditória que, de um lado, reduz
o operariado industrial e fabril; de outro, aumenta o
subproletariado, o trabalho precário e o assalariamento
no setor de serviços. Incorpora o trabalho feminino e
exclui os mais jovens e os mais velhos. Há, portanto,
um processo de maior heterogeneização, fragmentação
e complexificação da classe trabalhadora. (ANTUNES,
1999, p. 41 e 42)
Percebe-se que ocorreu uma heterogeneização, traço marcante das
transformações no interior da classe trabalhadora, em que houve a incorporação
da mão-de-obra feminina no mundo operário e subentende-se que, ao excluir os
jovens e os mais velhos do trabalho, aumentam substantivamente os contingentes
dos trabalhos informal e voluntário. Também ocorreu a uma diminuição no número
de trabalhadores industriais e um aumento dos assalariados no setor de serviços. A
automação é pautada como um dos grandes causadores do desemprego estrutural
nas fábricas.
Este proletariado vinculado aos ramos mais tradicionais vem dando lugar a
formas mais desregulamentadas de trabalho, reduzindo fortemente o conjunto de
trabalhadores estáveis que se estruturavam através de empregos formais. Porém, a
tendência a ser seguida com estas mudanças é a redução do número de trabalhadores
centrais e o emprego de uma força de trabalho que entra e sai rapidamente sem
custos. Assim, viram surgir os mais diversos tipos de subempregos. Pode-se dizer
que esta idéia esta ligada, a subproletarização do trabalho,
(...) presente nas formas de trabalho precário, parcial,
temporário, subcontratado, “terceirizado”, vinculados à
“economia informal”, entre tantas modalidades existentes.
(...) essas diversas categorias de trabalhadores têm em
comum a precariedade do emprego e da remuneração;
a desregulamentação das condições de trabalho em
relação às normas legais vigentes ou acordadas e
a conseqüente regressão dos direitos sociais, bem
como a ausência de proteção e expressão sindicais,
configurando uma tendência à individualização extrema
da relação salarial. (ALAIN BIHR, 1991 apud ANTUNES,
1999, p.44).
76
QUADRO 1: CONTRASTE ENTRE O FORDISMO E A ACUMULAÇÃO FLEXÍVEL
Produção Fordista
Produção just-in-time
(baseada em economia de escala)
(baseada em economias de escopo)
A- O PROCESSO DE PRODUÇÃO
Produção em massa de bens homogêneos
Produção em pequenos lotes
Uniformidade e padronização
Produção flexível e em pequenos lotes de uma variedade de
tipo de produto
Testes de qualidade ex-post (detecção tardia de erros e Controle de qualidade integrado ao processo (detecção
produtos defeituosos)
imediata de erros)
Produtos defeituosos ficam ocultados nos estoques
Rejeição imediata de peças com defeito
Perda de tempo de produção por causa de longos tempos de Redução do tempo perdido, reduzindo-se “a porosidade do
preparados, peças com defeito, pontos de estrangulamento dia de trabalho”
nos estoques, etc.
Voltada para os recursos
Integração vertical e (em alguns casos) horizontal
Redução de custos através do controle dos salários
Realização de uma única tarefa pelo trabalhador
Voltada para a demanda
Integração (quase-) vertical, subcontratação
Aprendizagem na prática integrada ao planejamento a longo
prazo
B- TRABALHO
Múltiplas tarefas
Pagamento pro rata (baseado em critérios da definição do Pagamento pessoal (sistema detalhado de bonificações)
emprego)
Alto grau de especialização de tarefas
Eliminação da demarcação de tarefas
Pouco ou nenhum treinamento de trabalho
Longo treinamento no trabalho
Organização vertical do trabalho
Organização mais horizontal do trabalho
Nenhuma experiência de aprendizagem
Aprendizagem no trabalho
Ênfase na redução da responsabilidade do trabalhador
Ênfase na co-responsabilidade do trabalhador
Nenhuma segurança no trabalho
Grande segurança no emprego para trabalhadores centrais
(emprego perpétuo). Nenhuma segurança no trabalho e
condições de trabalho ruins para trabalhadores temporários
C- ESPAÇO
Especialização espacial funcional (centralização/descentralização) Agregação e aglomeração espaciais
Divisão espacial do trabalho
Integração espacial
Homogeneização dos mercados regionais de trabalho (mercados Diversificação do mercado de trabalho (segmentação
de trabalho espacialmente segmentados)
interna do mercado de trabalho)
Distribuição em
subcontratantes
escala
mundial
de
componentes
e Proximidade espacial de firmas verticalmente quase
integradas
D- ESTADO
Regulamentação
Desregulamentação/re-regulamentação
Rigidez
Flexibilidade
Negociação coletiva
Divisão/individualização, negociações locais ou por
empresas
Socialização do bem-estar social (o Estado do bem-estar social)
Privatização das necessidades coletivas e da seguridade
social
Estabilidade internacional através de acordos multilaterais
Desestabilização internacional, crescentes tensões
geopolíticas
Centralização
Descentralização e agudização da competição interregional/interurbana
O Estado/cidade “subsidiador”
O estado/cidade “empreendedor”
Intervenção indireta em mercados através de políticas re renda e Intervenção estatal direta em mercados através de
de preços
aquisição
Políticas regionais nacionais
Políticas regionais “territoriais” (na forma de uma terceira
parte)
Pesquisa e desenvolvimento financiados pelas firmas
Pesquisa e desenvolvimento financiados pelo Estado
Inovação liderada pela indústria
Inovação liderada pelo Estado
E- IDEOLOGIA
Consumo de massas de bens duráveis: a sociedade de consumo
Consumo individualizado: cultura “yuppie”
Modernismo
Totalidade/reforma estrutural
Socialização
Pós-modernismo
Especificidade/adaptação
Individualização; a sociedade do “espetáculo”
Fonte: Swyngedouw (1986 apud HARVEY, 2005, p.169)
77
Com estas mutações ocorridas na classe trabalhadora, nasceram outras formas
de trabalho marcadas pela desqualificação. Criou-se uma massa de trabalhadores
atípicos na forma de trabalhadores temporários que não possuem garantia de
emprego; trabalhadores parciais, integrados precariamente as empresas e que não
efetuam um ofício a tempo inteiro e de maneira permanente; aos subcontratados,
terceirizados, trabalhadores informais, desempregados, etc., ou seja, trabalhadores
sem estabilidade. As mulheres também não ficaram isentas das mudanças na estrutura
produtiva e no mercado, já que possibilitou a exploração da mão-de-obra em ofícios
de tempo parcial em trabalhos domésticos, etc.
Conforme Cappelin (2004), “o que se verifica é a presença maciça de
mulheres em trabalhos atípicos” (apud FERREIRA, 2007, p. 61 ). Neste sentido, foi
empregado o trabalho a domicílio, que de acordo Cattani (1997), podia ser executado
por conta própria, no qual é destinado o produto diretamente ao consumidor; ou por
contratação, visto que se produzia, recebendo determinações externas, como: prazo,
quantidade, remuneração, entre outros. Desta maneira, pode ser chamado também
de trabalho industrial a domicílio, sendo que Cattani(1997), assinalou um conjunto de
características:
(...)sonegação dos benefícios e direitos assegurados
pela legislação aos trabalhadores; b) baixa remuneração;
c) intensificação do trabalho e extensão da jornada
de trabalho para que se possam cumprir os prazos
contratados; d) irregularidade dos rendimentos devido
à demanda variável de trabalho; e) pequena ou nula
capacidade de negocição com os contratantes em
decorrência da dispersão e inexistência de contatos entre
trabalhadores contratados, tornando difícil ou inviável
qualquer forma de organização e atuação coletiva; f)
difícil registro fidedigno de sua magnitude devido a seu
caráter oculto ou invisível; g) utilizaação predominate de
mão-de-obra feminina. (CATTANI, 1997, p.276 e 277)
Com isto, o trabalho torna-se cada vez mais marcado pela precariedade e pela
desregulamentação. Esse processo precariza todo o modo de vida do trabalhador,
fazendo com que se distanciem dos direitos trabalhistas e fiquem à margem do setor
formal. Alguns viam a flexibilização do trabalho como alternativa para combater o
desemprego, mas ao invés disso, fez com que aumentasse o trabalho ilegal. Esta
tendência de flexibilização do trabalho resultou no crescente número de trabalhadores
desempregados, compostos pelos operários demitidos e pelos recém-chegados ao
mercado de trabalho ou que não encontraram emprego. Consequentemente, esta
situação os obriga a ocuparem atividades precárias e de baixa produtividade, já que,
segundo Noronha (2003), a urbanização e a industrialização ampliaram também
a massa de trabalhadores subempregados e/ou mal incorporados ao mercado de
trabalho.
Ao mesmo tempo em que elucida uma alteração em quantidade no trabalho
industrial, como foi dito anteriormente, percebe-se uma alteração na forma de
ser do trabalhador, este se torna mais autônomo, ocorrendo também uma grande
desespecialização do mesmo. De acordo com Cappelin (2004), essas formas atípicas
de trabalho resultam nos baixos salários, na falta de garantia de direitos de proteção
social e, por consequência, na limitação de investimentos em qualificação profissional.
78
4. Considerações Finais
O mundo do trabalho tem passado por diversas transformações, no que
compete ao melhor modelo adaptado ao tempo e espaço específico. Mostrando que
as formas de auferir lucros no regime capitalista são altamente mutáveis. No entanto,
nesse jogo repentino de mudanças na gestão e organização da firma, o trabalhador
também tende a se tornar mutável.
É perceptível que do fordismo à reestruturação produtiva, o trabalhador nunca
foi tão necessário, isto é, a figura dele aparece como essencial, na medida em que a
forma de produzir se torna mais complexa e flexível. Até mesmo termos que poderia
definir a melhor formação escolhida para o trato daqueles que agora ocupam postos
flexíveis, tende a se tornarem insuficientes. O trabalhador tem que ser qualificado,
polivalente, tem que buscar meios que o possibilitem a entrada e permanência no
mundo do trabalho, que continuamente alteram seu modo de vida.
Cabe salientar que as consequências dessas mutações desembocam também
na subcontratação, terceirização, contratos de trabalho temporários em diversos
setores produtivos, pois parte do trabalho passa a ser considerada pouco relevante.
Redução do setor industrial comparado ao setor de serviços, aumento do desemprego
e informalização, debilidade sindical.
REFERÊNCIAS
ANTUNES, Ricardo. Adeus ao trabalho? Ensaio sobre as metamorfoses e a
centralidade do mundo do trabalho. 6ed. São Paulo: Cortez, 1999.
CATTANI, Antonio David(org). Trabalho e Tecnologia: Dicionário Crítico. 4ed.
Petrópolis: Vozes, 1997.
FERREIRA, Maria da Luz Alves. Trabalho informal e cidadania: heterogeneidade
social e relações de gênero. Tese de doutorado apresentada a Universidade Federal
de Minas Gerais, 2007.
HARVEY, David. Condição Pós-Moderna – Uma Pesquisa sobre as Origens da
Mudança Cultural. 14ed. São Paulo: Edições Loyola, 2005.
NORONHA, Eduardo G. “Informal”, ilegal, injusto: percepções do mercado de trabalho
no Brasil. In RBCS v.18, n.53, 2003. Acesso em: 04 de setembro de 2011.
79
Agenda
Social
ELETRONIC JOURNAL
VOLUME
NÚMERO
8
1
ISSN 1981-9862
www.revistaagendasocial.com.br
ANÁLISE DA MERITOCRACIA NAS RELAÇÕES DE PRODUÇÃO
Meritocracy in production´s relations review.
1. VOIGT, Ana Clara Carvalho Machuca; 2. OLIVEIRA, Simone Mendes de
1. Universidade Estadual de Montes Claros - UNIMONTES. Programa de Pós Graduação em
Desenvolvimento Social - PPGDS. E-mail: [email protected]. 2. Universidade Estadual
de Montes Claros - UNIMONTES. Programa de Pós Graduação em Desenvolvimento Social - PPGDS.
Email: [email protected].
RESUMO
80
ABSTRACT
Este artigo visa analisar a estratégia capitalista
da meritocracia nas relações de produção
como forma de manipulação populacional
e como esta estratégia reforça o avanço do
poder econômico. Pretendeu-se veri icar se as
bases das principais formas de desigualdade
são decorrentes das relações de trabalho e
se a organização da sociedade salarial foi
responsável por grandes transformações
sociais. Os impactos de sua in luência sobre
o sistema produtivo e sob o comportamento
social moderno também serão checados, para
ao inal ser capaz de perceber se o trabalho é
um fator libertador ou opressor dos indivíduos
e se as chamadas novas elites (a nova classe
emergente) são produto da meritocracia. A
exploração do conceito de trabalho e o retorno
da discussão acerca das classes sociais se
izeram necessárias, apresentando processos
históricos para a compreensão de classe do
início da modernidade e para a compreensão
contemporânea. O artigo, estruturado em linha
argumentativa, expõe resultantes obtidas a
partir de pesquisa bibliográ ica.
This article aims to analyze the capitalist
strategy of meritocracy in production relations
as a form of population manipulation and how
this strategy reinforces the advancement of
economic power. It was intended to verify that
the foundations of the main forms of inequality
are the result of labor relations and the
organization of wage society was responsible
for major social transformations. The impacts
of its inϔluence on the production system and
under the modern social behavior will also
be checked to eventually be able to notice if
the work is a liberating or oppressive factor
of individuals and calls new elites (the new
emerging class) are product of meritocracy.
The exploration of the concept of work and
the return of the discussion about the social
classes were necessary presenting historical
processes for understanding class early modern
and contemporary understanding. The article
is structured in argumentative line, resulting
exposes obtained from literature.
PALAVRAS-CHAVE
Meritocracia; Relações
Classe Social.
KEY-WORDS
Meritocracy; Production Relations; Social
Class.
de
Produção;
INTRODUÇÃO
Em termos iniciais, é necessária a investigação do termo “meritocracia”, eis
que é o conceito chave para o vislumbre da análise que se pretende. Sua atuação
se reproduz de forma invisível para os atores sociais, e pode-se aduzir que, nas
sociedades modernas, os indivíduos estão constantemente sendo compelidos a
competir e a qualificarem-se, sob o argumento falacioso de que estão sob o pálio da
equidade e da igualdade, desenvolvendo um sentimento de esforço pessoal, para
alcançar o que se almeja de forma que conseguirão seus méritos e recompensas
por seus próprios esforços. Retoma-se desta forma a articulação da mais valia,
demonstrando claramente as manifestações de dominação do mundo num contexto
de globalização, onde quem possui mais qualidades terá mais recompensas (DUBET,
2000).
O autor francês François Dubet (2000) delineou este pensamento e esse
processo em seu livro As desigualdades multiplicadas, mais especificamente no
capítulo “As desigualdades Multiplicadas ou as vicissitudes da Igualdade”. Tendo
desenvolvido sua investigação com a sociedade francesa, contribuiu com dados e
conceitos universais, de modo a aplicarem-se nas sociedades modernas de forma
geral. Para este autor, quem inicialmente relatou a modernidade foi Tocqueville, que
identificou o próprio sentido da história com o “triunfo obstinado da igualdade” (DUBET,
2000, pág.24) e Rousseau no sentido político de sua teoria do contrato social. Neste
contexto, Dubet propôs que:
Praticamente, esta interpretação da modernidade significa
que as desigualdades justas provêm do achievment,
da conquista de status, e não mais da herança e das
estruturas sociais desiguais em seu princípio. Isto
significa também que, tendencialmente, os indivíduos
consideram-se como fundamentalmente iguais e que
eles podem legitimamente reivindicar a igualdade de
oportunidades e de direitos, reivindicações capazes de
reduzir as desigualdades reais. Aliás, todas as teorias
do contrato social, tanto político como em Rousseau ou
econômico como em Smith, colocam o princípio de uma
igualdade inicial à partir da qual será possível discriminar
entre as desigualdades justas e as desigualdades
injustas. Deste ponto de vista, a igualdade é um valor e
as desigualdades injustas...
... É evidente que o cenário de Tocqueville foi amplamente
confirmado: as sociedades modernas são igualitárias
na medida em que elas estendem o direito à igualdade,
especialmente à igualdade de oportunidades, em que,
em termos normativos, jurídicos e políticos, elas aceitam
as desigualdades desde que elas não impeçam os
indivíduos de concorrer nos desafios que concernem
à igualdade de oportunidades nas suas dimensões
econômicas, políticas, jurídicas e escolares...
...O self made man só triunfa realmente nas sociedades
igualitárias, da mesma forma que façanhas esportivas
supõem uma perfeita igualdade entre os competidores
(DUBET, 2000, pág.25).
81
Miguel G. Arroyo, em Políticas Educacionais e Desigualdades: à procura de
novos significados (ARROYO, 2010), empreendeu seus esforços em investigar esta
existência da característica meritocrática que persiste nas sociedades modernas:
Por aí passa uma das mediações mais destacadas na
relação entre educação e superação das desigualdades:
capacitar para a empregabilidade, para a disputa
menos desigual dos postos de trabalho. “Estude e terás
emprego”. “Tire o diploma de ensino fundamental, médio
e terás trabalho”. O acesso ao trabalho como redutor
das desigualdades. A inserção social pela educação tem
como mediação a inserção no trabalho. Quando essa
mediação do trabalho entra em crise, as desigualdades se
aprofundam e as políticas educativas perdem significado,
entram em crise de legitimação social entre os coletivos
desiguais...
...A articulação tão mecânica nas políticas de acesso
e permanência, ou de currículos por competências,
tendo como mediação o acesso ao trabalho, expõe
essas políticas e sua relação com a diminuição das
desigualdades ao enfraquecimento a até ao fracasso,
sempre que o trabalho entra em crise (ARROYO, 2010,
pág.1398).
82
Os indivíduos estão condicionados a uma incessante busca por qualificação
em razão de se enquadrarem à competitividade do mercado de trabalho que se
apresenta. A eles é incutida a idéia de “qualificar” na expectativa de fazerem frente
aos demais vistos como concorrentes.
Ainda explorando a questão dos indivíduos nunca estarem prontos para o
mercado de trabalho, Pascale Molinari (2011) abordou este pensamento capitalista
sobre um viés sociológico - psicológico e desenvolveu seu próprio conceito, o qual
chamou de “Homem Superformático”. Segundo Molinari (2011), os investimentos,
desde o ano de 1980 (Séc.XX), foram acompanhados de uma nova prioridade nos
seios das organizações, que é a busca da super performance. Segundo ela, a lógica
capitalista é a de que o indivíduo não deve simplesmente ser bom no que faz, mas
estar em permanente motivação. A cultura da excelência é a ordem empresarial, e nela
ao homem não é demandado fazer somente seu trabalho, mas fazer mais, melhor, e
com um sorriso no rosto. Ainda segundo a autora, essa máxima se instrumentaliza no
mercado de trabalho através da fixação dos objetivos, metas, na majoração automática
dos resultados anteriores etc, denunciando a grande causa de problemas de saúde,
stress e suicídios que acometem trabalhadores. A vulnerabilidade do homem num
contexto meritocrático, perpassa a integridade emocional, a intelectual, atingindo
mesmo o bem estar físico.
Na obra As metamorfoses da questão social: uma crônica do salário, no
capítulo intitulado “A nova questão social”, o autor social Robert Castel explora o
sentido da qualificação sob a ótica democrática, e traz à discussão, o ataque ao
subdesenvolvimento cultural através da eliminação das baixas qualificações como
pensamento legitimado. Mas faz um alerta sobre uma situação na qual as pessoas
podem estar inseridas sem se dar conta; a de que a simples qualificação, a elevação
do nível de escolaridade, não significa emprego garantido diante das constantes
transformações que a relação formação-emprego vem sofrendo, sejam elas temporais
ou de contexto. Castel alerta para um problema iminente e que pode estar no campo
da invisibilidade, e trata-se da possibilidade de não haver emprego para todos os
qualificados, em razão da oferta de mão-de-obra e da busca incessante da qualificação
como imperativo democrático (CASTEL, 1998, Cáp.VIII).
É possível que a meritocracia impulsione o mercado de trabalho, por ser este
beneficiado com a disputa criada nas sociedades salariais. Castel aponta que pessoas
com alto nível de qualificação estão trabalhando em subempregos dada a grande
oferta de qualificados, e pessoas sem qualificação, estão completamente vulneráveis,
afinal não tem acesso a recursos que lhes permitam concorrer.
Ainda segundo Castel, a inacessibilidade ao trabalho dos indivíduos excluídos
– população inativa - desencadeia uma série de outros problemas, como por exemplo,
a dependência do Estado para que se tenha acesso aos recursos básicos além da
instabilidade da seguridade social. Castel propõe aqui uma redistribuição do trabalho,
com redução da carga horária para que mais pessoas possam ter acesso aos
empregos, e conseqüentemente, aos bens primários (CASTEL, 1998, Cáp.VIII).
A meritocracia está naturalizada nas relações de produção, sendo prática
corriqueira na sociedade salarial, e perpetrada pelos próprios atores, eis que o
poder manipulatório do capitalismo conseguiu transpor para os próprios indivíduos a
obrigação de concorrerem entre si, diminuindo desta forma, até mesmo custos com os
outrora conhecidos “olheiros” da era industrial, que controlavam a cadeia de produção
e os funcionários das fábricas. Diante destas colocações iniciais, cabe questionar: o
trabalho seria, portanto, um fator libertador ou opressor dos indivíduos? Ou ainda: as
chamadas novas elites (a nova classe emergente) são produto da meritocracia?
NOÇÕES DE TRABALHO:
Autores clássicos empreenderam esforços no sentido de analisar, compreender
e conceituar “trabalho”, dadas as peculiaridades das relações que o envolvem. Seja
relacionando-o com o sistema capitalista, com as sociedades modernas, ou com
as formas de produção e divisão do trabalho do início dos tempos, certo é que o
trabalho faz parte da história do homem, e envolve pragmática e ideologicamente
os campos econômicos, políticos sociais, culturais, e adentra até mesmo nas mais
íntimas relações humanas, como as familiares.
Para Émile Durkheim, a divisão social do trabalho era pautada no conceito de
solidariedade mecânica e orgânica. A mecânica era predominante nas sociedades
pré-capitalistas, onde os indivíduos permaneciam independentes e autônomos em
relação à divisão do trabalho social, partilhando de uma consciência coletiva comum.
Já na orgânica, em sociedades capitalistas, o individuo é socializado porque embora
tenha uma esfera própria de ação, depende dos demais, e, por conseguinte, da
sociedade resultante dessa união. Durkheim percebe a solidariedade social como o
processo de aceleração da divisão social do trabalho, sendo este processo um novo
mecanismo de integração social, eis que os indivíduos se tornam interdependentes e
suas funções são vitais para o funcionamento do sistema social (DURKHEIM, 2004).
Karl Marx concebe a idéia de que a sociedade está dividida em classes, mas
mesmo com suas próprias leis e regras, estão inseridos em um único sistema que é o
modo de produção capitalista. Os homens se organizam socialmente e estabelecem
83
relações sociais de produção. Assim a divisão do trabalho inclui a divisão de tarefas
entre os indivíduos e ainda nas relações de propriedade, ou seja, divisão entre os meios
de produção e a força de trabalho. A divisão do trabalho surge com o excedente da
produção e a apropriação privada das condições de produção. Portanto, a divisão do
trabalho para Marx existe desde sociedades tradicionais, onde os homens constroem
a si mesmos na persecução dos seus meios de vida (MARX, 2004). Neste sentido:
...a produção da vida, tanto a própria através do trabalho
como a alheia através da procriação, surge-nos agora
como uma relação dupla: por um lado, como uma relação
natural, e, por outro, como uma relação social no sentido
de ação conjugada de vários indivíduos, não importa
em que condições, de que maneira e com que objetivo.
Segue-se que um determinado modo de produção ou
estádio de desenvolvimento industrial se encontram
permanentemente ligados a um modo de cooperação ou
a um estado social determinado, e que esse modo de
cooperação é ele mesmo uma força produtiva. (MARX;
ENGELS, 1976, p.35).
Outro autor clássico que desenvolveu importante teoria acerca do trabalho
foi Max Weber. Para Weber, a religião seria responsável pelo amadurecimento do
capitalismo no Ocidente, pois teria a função de solidificar e enaltecer o trabalho,
dimensionando-o como um ato vocacional. Ulteriores elementos importantes na
formatação do capitalismo foram as condições econômicas, a organização racional
do trabalho e por fim a cultura. Em sua obra A Ética protestante e o espírito do
capitalismo, Max Weber observa que o trabalho adquire uma nova dimensão com
Lutero e Calvino, que antes visto como um castigo passa a ser uma vocação, um
chamado divino (WEBER, 1999).
A QUESTÃO DAS CLASSES SOCIAIS:
Neste ponto é crucial a retomada da discussão acerca das “classes sociais”,
para que se tenha uma idéia da importância do trabalho no processo histórico das
desigualdades.
As primeiras tentativas sociológicas de tradução de sociedades democráticas e
concomitantemente capitalistas se deram na modernidade. O pioneiro dos estudiosos,
segundo Dubet, foi Tocqueville que cuidou de verificar o sentido da igualdade como
extensão de um princípio, muito além da igualdade empírica, para concluir que na
modernidade os indivíduos são considerados iguais e suas desigualdades reais deixam
de embasarem-se em fatores tais quais: tradição ou nascimento (DUBET, 2000). Ou
seja, perde-se o sentido da desigualdade decorrente de castas e ordens e transferese para o indivíduo a obrigação de se realizar sozinho: “as classes impõem-se como
um critério de desigualdade produzido pela própria ação dos indivíduos no mercado.
As desigualdades jurídicas entre os grupos são substituídas por desigualdades
referentes à atividade e ao sucesso dos atores” (DUBET, 2000, pág.24).
Neste período, a discussão acerca de “igualdade” foi preponderante, posto que
até o momento, o discurso para fomentar o avanço capitalista e para incentivar cada
84
vez mais a competição entre os indivíduos, continua se baseando na falsa idéia de
igualdade de oportunidades.
Para Dubet (2000) existe ainda uma multiplicidade de funções, as ações vão
se particularizando e a partir daí surge a necessidade de estratificar. Assim, a origem
dos conflitos são os interesses divergentes, e esses conflitos estão associados às
mudanças.
Karl Marx, segundo Dubet (2000), também empreendeu esforços na tentativa
de explicar as desigualdades de classes nas sociedades modernas, concluindo que
tais desigualdades não se tratavam de herança, mas verdadeiramente de elemento
estrutural e fundamental das sociedades capitalistas. Aqui o relacional entre trabalho
e capital ganha contornos mais visíveis, eis que na concepção de Marx, o capitalismo
se baseia de uma extração máxima do trabalho e, à partir daí, surgiriam relações
tais quais a oposição da força de trabalho à exploração, o investimento de parte das
riquezas produzidas e a oposição dos donos de investimentos. Enfim, a oposição das
classes sociais.
Neste momento histórico, as atenções estavam bastante voltadas para a
compreensão da situação de classes e as conseqüentes desigualdades decorrentes
destas, pois explicavam, como comenta Dubet, “a maioria das condutas sociais e
culturais” (DUBET, 2000, pág.26).
Dubet também bebe da fonte de Castel (1995) para afirmar uma das grandes
imputações a que se deve atribuir ao trabalho: é o gerador das principais desigualdades
existentes. Neste sentido:
Em outras palavras, o encontro da igualdade democrática
e das desigualdades capitalistas gera a formação do
Estado – providência e de um sistema de proteções e
de direitos sociais. Sendo as principais desigualdades
provenientes do trabalho, a sociedade salarial organiza
a coesão e a integração sociais à partir do trabalho que
opõe e une ao mesmo tempo os indivíduos. (DUBET,
2000, pág.28).
E diante da meritocracia subjacente, associada às desigualdades observadas
nas relações de trabalho, outro não poderia ser o resultado: os indivíduos estão
divididos entre três mundos – o dos competitivos, o dos protegidos e o dos fatalmente
excluídos.
Atualmente, alguns autores contemporâneos têm retomado a discussão acerca
das classes sociais, tendo vista o imperativo da formação de um novo coletivo no
meio social: a chamada “nova classe social”.
Para Castel (2006), o termo “classe social” quando refutado, é situação
de despolitização. Classe social, para este autor, pode ser entendida como uma
categoria mais ampla, enquanto classe trabalhadora inclui lógicas corporativas e
conflitos corporativos, visto que no mundo contemporâneo há uma pulverização e
fragmentação das atividades profissionais, ocasionando diversidade de categorias
profissionais.
De acordo com Castel (2006), a partir do momento que se negligencia
a questão da classe, naturaliza-se as desigualdades. Em sua visão, classe é
perspectiva de mundo, apresentando dicotomia entre desigualdade econômica
material e desigualdade moral. Assim se faz necessário, redefinir a questão de classe
85
no processo de mundialização, uma vez que há uma certa ocultação da exclusão
sob a ótica de classes sociais, quando se permite utilizar a expressão “pertencer ao
coletivo”.
Jessé Souza, em sua recente pesquisa “Os Batalhadores Brasileiros: nova
classe média ou nova classe trabalhadora?”, publicada no ano de 2010 e após
empreender esforços na tentativa de compreender aqueles a quem denominou de
“ralé brasileira”, procurou penetrar no drama humano, para compreender de que
forma o neoliberalismo efetivamente modificou as vivências dos indivíduos e como
a partir daí surgiu esta nova classe de emergentes: quem são, como se portam, em
quais postos de trabalho estão (SOUZA, 2010, pág.19-57).
Jessé Souza constatou que, no Brasil, esta nova classe média representa pelo
menos 30 milhões de pessoas que tem acesso ao mercado de consumo e que são
destacados pelos dominantes como sendo aqueles que ajudaram a mudar a economia
e a sociedade brasileira recentes. São ainda apontados como os responsáveis
pela transformação do Brasil de país subdesenvolvido para país moderno e de
primeiro mundo, e tudo através de esforço próprio (SOUZA, 2010, pág.19-57). Todo
este discurso, entretanto, nada mais é do que uma violência simbólica. Tratam-se,
conforme Jessé, de meias verdades que se referem a mudanças reais distorcidas em
interpretação. Mais uma vez, a “nova classe média” e sua ideologia capitalista estão
naturalizadas na sociedade, de forma a perpetrar a reprodução do controle por parte
do poder dominante.
É possível extrair ainda do pensamento crítico de Jessé Souza, uma censura
ao Marxista enrijecido e ao Liberalismo econômico dominante no que tange o
enfrentamento das classes sociais: ambas as teorias não enxergam as mudanças do
mundo novo, ou seja, não condizem com a realidade vivenciada associando classes
apenas ao poder econômico. Enquanto um vincula as classes ao lugar ocupado na
produção exclusivamente, o outro apenas diz que existem as classes, mas nega sua
existência quando vincula classe à renda, numa contradição em si mesma (SOUZA,
2010, pág.19-57). As classes sociais para o liberalismo estão intimamente relacionadas
ao poder de consumo, que decorre da capacidade financeira dos indivíduos.
A crítica está no fato destas linhas de pensamento analisarem superficialmente
as desigualdades, em detrimento da apreciação das questões reais, acobertando
problemas não econômicos, como os de ordem cultural, moral e emocional. Afinal,
a classe de trabalhadores brasileiros que se verifica atualmente, têm vida, emoções,
anseios e desejos, não se tratando de indivíduos enrijecidos que se resumem à mão
de obra trabalhadora para o neoliberalismo.
CONSTATAÇÕES:
Uma das transformações diretamente ligadas às inovações do mercado de
trabalho no contexto neoliberalista e que demonstram a meritocracia no sentido
da qualificação para atender a este mercado, está no surgimento de carreiras que
requerem capacitação rápida. Alguns dados são apontados por Armando Alcántara
e Mônica Aparecida da Rocha Silva in “Semejanzas y Diferencias em lãs Políticas
de Educación Superior em La América Latina: Cambios Recientes em Brasil, Chile y
México” (ALCÁNTARA; SILVA, 2006). Haja vista a reforma universitária brasileira que
86
ocorreu no Governo FHC, a diversificação institucional acarretou a criação de carreiras
ligadas à tecnologia com fins de atender o mercado de trabalho, com duração curta
de dois a três anos. Os autores apontam, segundo dados emitidos no ano de 2004
e colhidos do Instituto Nacional de Estudos e Pesquisas (INEP), que as carreiras
ligadas à tecnologia passaram de 364 no ano de 2000 para 636 no ano de 2002, o
que representa um aumento de 74,7 por cento.
Ainda neste contexto, tomando o Brasil como referência, pesquisadores do
Instituto de Pesquisa Econômica Aplicada (IPEA) evidenciaram a ocorrência de uma
diminuição dos índices de população com nível educacional baixo. A baixa qualificação
no estudo foi considerada até a quarta série completa, a semiqualificação considerada
da quinta série incompleta até o segundo grau completo e alta qualificação considerada
o ensino superior incompleto ou completo. Para tanto, Bahia et al. (2011) verificaram
a “composição educacional dos trabalhadores do setor formal entre os anos de 19962005” e chegaram a conclusão de que a circunstância provia de três fatores, senão a
melhoria do sistema educacional, com aumento de cobertura e redução das taxes de
repetência; o fato dos últimos 20 anos perfazerem o pico da janela de oportunidade
demográfica educacional e finalmente o aumento da exigência do mercado de
trabalho na qualificação formal. No último caso, os autores afirmam que a situação
exclui trabalhadores do setor formal, que são deslocados para a informalidade, sem
garantias e proteções legislativas e fora da População Economicamente Ativa (PEA).
Júnior e Ribeiro (2011), ao analisarem estatisticamente a criação e a destruição de
emprego para o período compreendido entre 1998 e 2005, concluíram que houve
um aumento significativo do emprego qualificado em relação ao índice de emprego
total. Contudo, tal situação não teria sido ocasionada, segundo os autores, pelo
fechamento de locais/estabelecimentos onde os empregados possuíam grau de
qualificação inferior e abertura de novos locais/estabelecimentos com empregados
mais qualificados, mas sim com a substituição, nos mesmos locais/estabelecimentos,
dos empregados menos qualificados por outros mais qualificados. Os autores
perceberam que as empresas empregadoras preferiram transformações incisivas
em seu quadro de trabalhadores em detrimento de alterações estruturais de seus
estabelecimentos.
CONCLUSÕES FINAIS
As situações sociais, culturais e políticas inovadoras experimentadas no
período de transição para a modernidade são infindáveis. E com as mudanças, novas
formas de desigualdades foram verificadas, demonstrando uma capacidade enorme
de mutabilidade e adaptação.
Dentre as muitas desigualdades existentes, uma a que podemos destacar, é
a existência da meritocracia nas relações de produção, inobstante também esteja
presente na educação, na política, e até nas casas dos indivíduos, sendo cultivadas de
pai para filho sob a penumbra que paira do discurso do poder dominante da igualdade
de oportunidades para todos. Aos filhos da modernidade é ensinado que o trabalho
duro, o esforço individual e a qualificação são as únicas saídas para se atingir o bem
estar: diga-se maior poder aquisitivo na utopia de um dia se tornarem burguesia. O
sentido da “igualdade” iluminista, enquanto princípio, fora completamente deturpado,
87
88
não se respeitando as capacidades e potencialidade individuais de cada um, mas
enaltecendo o “esforço” particular de cada um, que nunca se esgota.
A vida boa pretendida pelos indivíduos, na atual conjuntura, e suas realizações,
confunde-se com desejos materiais, sob o argumento capitalista da acumulação de
bens pela simples acumulação.
O trabalho, na tangente da mão de obra, à medida que proporciona ao indivíduo
acesso a recursos primários tais quais: alimentação, moradia, educação de melhor
qualidade, saúde, previdência social, aos prazeres individuais, e a verdadeira vida
boa – aquela que permite ao indivíduo exercer sua autonomia, noutro giro proporciona
acesso a bens e produtos gerados pelo capitalismo e pela globalização, numa cadeia
cíclica infindável de renovação de oferta, principalmente de ordem tecnológica.
Ou seja, os indivíduos estão se prendendo e se tornando cada vez mais reféns do
consumo e das facilidades mascaradas que o capitalismo proporciona.
O indivíduo que pertence à sociedade salarial está “integrado”, mas o que não
pertence à sociedade salarial fica excluído. Mas integrado a quê? Provavelmente à
massa que detém poder de consumo, mas nenhuma consciência de sua real condição
e de que tem se tornado vítima em face de uma nova estratificação social que se
apresenta.
As modalidades de trabalho, a mão de obra, têm se voltado para atender o
mercado, demandando a criação de novos setores. Com isso, os indivíduos nunca
estão “prontos” para a concorrência do mercado, sempre alternando de emprego,
e empregos cada vez mais instáveis. A própria existência da nova classe social ou
da nova classe trabalhadora no Brasil, como bem observou Jessé Souza (2010),
é a prova concreta de que há uma nova formação de mão de obra, acima da ralé
brasileira, mas que somente se distancia diante do fato de terem acesso a bens de
consumo.
Esta “nova classe social” que se formou, é quem verdadeiramente sustenta
o poder dominante, posto que é a força de trabalho atual e que está à mercê das
“maravilhas” do capitalismo. São os empregados indiretos, ou com contratos de
trabalho por tempo determinado, que empreendem esforços para complementar a
renda e geram pouquíssimas despesas para os empregadores. Como conseqüência
disso, há uma enorme demanda de pessoas qualificadas para atuarem nos mercados
informais, e as pessoas desqualificadas ficam cada vez mais vulneráveis e dependentes
do Estado, tido como benevolente e salvador.
Estes novos emergentes representam a nova elite social, e possivelmente,
são produto da meritocracia, uma vez que os discursos que impulsionam estes
indivíduos é o de alcançar status e recursos econômicos como forma de realização
pessoal e que o meio para que isso ocorra é através do desempenho pessoal. Os
indivíduos, segundo Castel (1998), tem se tornado cada vez mais individualistas,
perdendo a noção de solidariedade e compreensão. Competem entre si ao contrário
de se ajudarem mutuamente, o que também contribui deveras para a invisibilidade
das desigualdades sociais.
Outras conseqüências importantes também são verificadas, como a incidência
disso sobre a previdência social. Com o mercado informal, um menor número de
pessoas é arrecadador, e, portanto, surgem os grupos privilegiados dentro de um
mesmo coletivo que é feito desigual, como é o caso da licença maternidade para
mulheres gestantes. Ainda, se um menor número de pessoas arrecada, um menor
número de pessoas é assistido, não se fazendo valer para todos.
Assim, é possível concluir que, persiste uma dicotomia à partir da análise
feita: a de que, o trabalho, ao mesmo passo em que pode proporcionar ao indivíduo
autonomia e acesso a recursos importantes para seu bem estar, também aprisiona
os indivíduos que pretendem através dele, ter acesso a bens de consumo, produtos
diretos do capitalismo; sempre impulsionados pela mais valia e pela meritocracia
excludente, de não terem a consciência de que não têm liberdade, não têm livre
arbítrio e de que sua força de trabalho, verdadeiramente, mantêm o poder dominante
e a roda do capitalismo girando.
REFERENCIAL TEÓRICO
ALCÁNTARA, A.; SILVA, M. A. R. (2006). Semejanzas y Diferencias en las Políticas
de Educación Superior en América Latina: Cambios recientes en Argentina, Brasil,
Chile y México” in “Reforma Universitária: dimensões e perspectivas. Campinas, SP:
Editora Alínea, (Coleção políticas universitárias).
ARROYO, M. G. (2010). Políticas educacionais e desigualdades: à procura de novos
significados.Educ. Soc., Campinas, v.31, n.113, p.1381 – 1416, out.-dez. Disponível
em http.\\www.cedes.unicamp.br.
BAHIA, L.D., COELHO, D., SILVA, A.M.P.& SOARES, S. (2011). A evolução da
segregação educacional nas firmas brasileiras in Impactos Tecnológicos sobre a
Demanda por Trabalho no Brasil.Instituto de Pesquisa Econômica Aplicada. Brasília:
SAE :IPEA. Págs.205-220.
CASTEL, R. (1998). As metamorfoses da questão social: uma crônica do salário. Rio
de Janeiro.Ed.Vozes, Cap.VIII.
___________ (2006). Classes sociais, desigualdades sociais, exclusão social. Casimiro
Marques Balsa,Lindomar Wessler Boneti, Marc-Henry Soulet. (org.).Conceitos e
Dimensões da pobreza e da exclusão social:uma abordagem transnacional. Ijuí:
Ed.Unijuí.
DUBET, F. (2000). Les inégalités multipliées. (As Desigualdades Multiplicadas). La
tour d’Aigues: Ed.Del’Aube, (Traduzido para o português).
DURKHEIM, É. (2004). Da divisão do trabalho social. 2ª ed. São Paulo: Martins Fontes.
JÚNIOR, G. G. S.; RIBEIRO, E. P. (2011). Criação e destruição de emprego formal
por qualificação no setor privado brasileiro: características e assimetrias in Impactos
Tecnológicos sobre a Demanda por Trabalho no Brasil. Instituto de Pesquisa
Econômica Aplicada. Brasília: SAE :IPEA.Págs.13-44.
MARX, K. (2004). O Capital: crítica da economia política. 22ª ed., Rio de Janeiro:
Civilização Brasileira, 2 volumes.
89
MARX, K; ENGELS, F. (1976). A ideologia alemã. Tradução de Conceição Jardim e
Eduardo Nogueira. Lisboa: Presença/Martins Fontes, 2 Volumes.
MOLINIER, Pascale. Les écuries d’Augias: mythe de la performance et déni de
vulnerabilité in Raison Publique, nº17, avril 2011.
SEN, A. (2008). Desigualdade Reexaminada. Rio de Janeiro: Record, 2ª edição.
SOUZA, J. (2010). (Org.) Os Batalhadores Brasileiros – Nova classe média ou nova
classe trabalhadora? Belo Horizonte: UFMG. Introdução, p.19-57.
WEBER, M. (1999). A ética protestante e o espírito do capitalismo. São Paulo: Pioneira,
p.75.
90
91
Agenda
Social
ELETRONIC JOURNAL
VOLUME
NÚMERO
8
1
ISSN 1981-9862
www.revistaagendasocial.com.br
ECONOMIA SOLIDÁRIA E EMPREENDEDORISMO SOCIAL NO
CERRADO NORTE MINEIRO
Solidarity economy and social entrepreneurship
in the northen Minas Gerais Cerrado
1. RODRIGUES, Luciene. 2. GONÇALVES, Maria Elizete. 3. BALSA, Casimiro.
1. PPGDS/UNIMONTES / CesNova-UNL, E-mail: [email protected] 2. PPGDS/
UNIMONTES, E-mail: Maria.Gonç[email protected] 3. Universidade Nova de Lisboa/CesNova,
E-mail.: [email protected]
RESUMO
92
ABSTRACT
O conceito de Empreendedorismo Social surge diante de
um contexto de redução dos investimentos públicos na área
social e da expansão das estruturas econômicas pertencentes
à economia social e solidária. Diante da crescente di iculdade
de geração de renda a partir dos modelos tradicionais de
crescimento da economia, têm surgido redes de solidariedade
perceptíveis no campo da economia social e também o
desenvolvimento do empreendedorismo social. Em situações
de exclusão, di iculdades e provação, muitas pessoas decidem
unir-se aos seus pares para juntas formarem estratégias de
manutenção da vida, do trabalho e emprego. O que se observa
é o desenvolvimento de diversas atividades econômicas que
desconectadas do grande capital passam a ser exercidas por
trabalhadores autônomos, famílias, associações e cooperativas
de produção. Nesse contexto, o desenvolvimento da economia
solidária e do empreendedorismo social, a partir do capital social
local, da formação de grupos de produção e da participação
da população contribuem para ampliar o “espaço público” de
indivíduos/famílias/grupos em situação de vulnerabilidade
socioeconômica. Uma das motivações para a existência de
redes de solidariedade dos setores populares na economia é a
exclusão do emprego, dos processos de desenvolvimento, da
distribuição de renda e do sistema econômico o icial. O processo
de incorporação da solidariedade na economia é multifacetado
e, portanto, várias são as situações e motivos pelos quais
diversas pessoas têm acesso ou se aproximam para procurar
alguma participação na economia social. Nesse sentido, a
proposta do estudo é fazer uma análise das experiências
econômicas de modo a observar seus aspectos econômicos,
organizativos e sociais que apontam para outras formas de
gerir o desenvolvimento social e territorial. Para desenvolver
o estudo, elegemos algumas iniciativas de geração de trabalho
e renda que se desenvolvem no âmbito das redes expressas na
economia popular composta por famílias que criam diversas
estratégias econômicas coletivas para manutenção da vida
material e simbólica no Cerrado Norte Mineiro - Brasil.
The concept of Social Entrepreneurship emerges in a context of
reduction of public investment in the social area and the expansion
of economic structures that belong to the social and solidarity
economy. Given the increasing difϔiculty of generating income from
the traditional models of economy growth, noticeable solidarity
networks have emerged in the ϔield of social economy and also the
development of social entrepreneurship. In exclusion, difϔiculty and
trial situations, many people decide to join their peers together to
form strategies for sustaining life, work and employment. What
is observed is the development of many economic activities that
when disconnected from big business, start to be carried out by
self-employed individuals, families, associations and cooperatives
of production. In this context, the development of solidary economy
and social entrepreneurship, with the local social local capital,
the formation of production groups and people’s participation
contribute to expand the “public space” of individuals/ families/
groups in situations of socioeconomic vulnerability. One of the
motivations for the existence of solidarity networks of the popular
sectors in the economy is the exclusion of employment, processes of
development, the distribution of income and the ofϔicial economic
system. The process of incorporating the solidarity in economy is
diverse and therefore, there are several situations and reasons
why many people have access or get close to search for some
involvement in social economy. In that way, the purpose of this
study is to analyze the economic experiences in order to observe
its economic, organizational and social aspects that point to other
ways of managing social and territorial development. To develop
the study, we chose some initiatives of employment and income
creation that develop within the networks expressed in popular
economy composed by families that create several collective
economic strategies to maintain the symbolic and material life in
Cerrado Norte Mineiro - Brazil.
PALAVRAS-CHAVE
Palavras chave:
Economia
Social,
Economia Solidária, Empreendedorismo
Social, Brasil, Norte de Minas.
KEY-WORDS
Social Economy, Solidarity Economy, Social
Entrepreneurship, Brazil, North of Minas
Gerais.
Introdução
Empreender significa mudar uma realidade em que se está inserido. O
empreendedorismo social é uma forma de buscar resolver os problemas sociais, com
imaginação e criatividade. Constitui uma inovação social, um meio de avançar nas
causas sociais, de ampliar o espaço público por meio da autogestão. É um conceito
que permite apreender o setor da economia social e solidária, das iniciativas coletivas
de geração de renda e trabalho sob o enfoque empreendedor. É um conceito que
ganha relevância sob o espectro da crise econômica e do desemprego, da contração
do Estado Social, e da difusão da cultura empreendedora. Trata-se da criatividade
social, da mobilização de sinergias coletivas à luz de valores como solidariedade,
entreajuda, autogestão.
O empreendedorismo social designa uma gama ampla de iniciativas coletivas,
socialmente inovadoras da economia social e solidária. Segundo HUYBRECHTS &
NICHOLLS (2012) para os atores da sociedade civil, o empreendedorismo social
pode representar um fator de mudança social sistêmica, um espaço para parcerias
híbridas, ou um modelo de transformação política e de empoderamento. Para os
autores, a despeito da diversidade de definições de empreendedorismo social, elas
apresenta ao menos três pontos comuns com relação ao caráter social, à inovação
organizacional e quanto à orientação para o mercado. O primeiro aspecto, o foco
central sobre os resultados sociais ou ambientais tem primazia sobre o retorno
financeiro; o segundo, a definição de inovação, que tem haver com novos modelos
e processos organizacionais, novos produtos e serviços, ou por intermédio de novas
formas de pensar/ enfrentar os desafios sociais. Em terceiro lugar, a variedade de
formas que a orientação para o mercado pode assumir, em contextos marcados por
alianças e parcerias, com a ideia de alcançar resultados multidimensionais.
No intuido de melhor delimitar as fronteiras do que é empreendedorismo social,
com relação a outros conceitos correlatos, HUYBRECHTS & NICHOLLS (2012)
procuram especificar o conceito pela sua negação, pelo que não é empreendedorismo
social. Para eles, o empreendedorismo social não é um setor discreto, circunspecto
a uma forma. Ao contrapor empreendedorismo social ao conceito de economia
social, percebe-se que este é mais amplo e, ao mesmo tempo, mais restrito que o
primeiro. De um lado, é mais amplo porque inclui organizações não necessariamente
empreendedoras e que não necessariamente dependem do recurso mercado. De
outro lado, economia social é um conceito mais restrito do que empreendedorismo
social porque inclui apenas empreendimentos com formas jurídicas específicas:
cooperativas, mutualidades, fundações e associações. Os níveis de análise também
são diferentes, porque Economia social é um setor e o empreendedorismo é uma
capacidade, é um conjunto híbrido de organização e processos, que pode ter
lugar em diferentes espaços institucionais e em diferentes setores. Desse modo,
empreendedorismo social não é um setor, nem tampouco sinônimo de negócio social;
ou uma nova forma de responsabilidade social das empresas, ou um modelo único
de inovação social. O empreendedorismo social é uma inovação de base coletiva,
associativista voltada para o enfrentamento de problemas sociais como desemprego,
exclusão social, questões ambientais, entre outras.
Diante da crescente dificuldade de geração de renda a partir dos modelos
93
tradicionais de crescimento da economia, têm surgido redes de solidariedade
perceptíveis no campo da Economia Solidária e do empreendedorismo social. Em
situações de exclusão, dificuldades e provação, muitas pessoas decidem unir-se aos
seus pares para juntas formarem estratégias de manutenção da vida, do trabalho e
emprego. O que se observa é o desenvolvimento de diversas atividades econômicas
que desconectadas do grande capital passam a ser exercidas por trabalhadores
autônomos, famílias, associações e cooperativas de produção. Nesse contexto, o
desenvolvimento da economia solidária e do empreendedorismo social, a partir do
capital social local, da formação de grupos de produção e da participação da população
contribuem para ampliar o “espaço público” de indivíduos/famílias/grupos em situação
de vulnerabilidade socioeconômica. Uma das motivações para a existência de redes
de solidariedade dos setores populares na economia é a exclusão do emprego, dos
processos de desenvolvimento, da distribuição de renda e do sistema econômico
oficial. O processo de incorporação da solidariedade na economia é multifacetado e,
portanto, várias são as situações e motivos pelos quais diversas pessoas têm acesso
ou se aproximam para procurar alguma participação na Economia Solidária. Nesse
sentido, a proposta do estudo é fazer uma análise das experiências econômicas de
modo a observar seus aspectos econômicos, organizativos e sociais que apontam
para outras formas de gerir o desenvolvimento social e territorial.
Para desenvolver o estudo, elegemos algumas iniciativas de geração de
trabalho e renda que se desenvolvem no âmbito das redes expressas na economia
popular solidária composta por famílias que criam diversas estratégias econômicas
coletivas para manutenção da vida material e simbólica no Cerrado Norte Mineiro Brasil.
No território de análise – o Cerrado norte mineiro, elegemos especialmente
famílias e grupos da cidade de Montes Claros, embora alguns estejam em municípios
vizinhos. Cerrado é o nome regional dado às savanas brasileiras, que abrange cerca
de 23% do território brasileiro. É a segunda maior formação vegetal da América do Sul,
depois do conjunto florestal amazônico. Além das particularidades do ecossistema, o
Cerrado tem em uma sociedade e cultura próprias cujas economias e reprodução
social dos grupos tradicionais encontram-se ameaçadas com o crescimento das
grandes lavouras comerciais e de outras atividades do grande capital. As promessas
da sociedade salarial, avivadas aqui e ali por conjunturas desenvolvimentistas, não
se cumpriram na medida das expectativas que ela criou, sejam porque uma parte
importante das populações que dela poderiam potencialmente beneficiar, são
excedentárias em relação às suas necessidades ou não têm as competências ajustadas
aos requisitos da produção. As cidades, sobretudo aquelas que, como Montes Claros,
devem o seu crescimento exponencial aos movimentos de desagregação do mundo
rural / crescimento urbano, concentram e têm de gerir estas populações e constituem
territórios privilegiados para estudar os problemas socioeconômicos que as afetam.
Os entrevistados foram escolhidos aleatoriamente quando no desenvolvimento
das suas atividades econômicas e em ocasiões de participações em feiras de
artesanato. No cômputo dos casos significativos (56 entre os 62 questionários
aplicados), propôs-se com as informações fornecidas pelos sujeitos pesquisados
fazer um analise estrutural do contexto social dos pesquisados. Mais do que uma
amostra representativa do universo, esta se constituiu em etapa privilegiada para
94
explorar o objeto, levantar questões e propor orientações metodológicas.
A intenção residiu em observar as características ou performance dos
indivíduos/famílias ou grupos nos seus espaços que aqui denominamos de espaços
de atributos dos sujeitos. Os dados fornecidos possibilitaram compreender alguns
dos fatores, motivos ou razões das quais partem as ações dos sujeitos.
1. Construção conceitual empírica
No plano empírico, a nossa pesquisa é pautada por uma abordagem
exploratória e compreensiva. A orientação exploratória justifica-se pela extensão do
território visado – a região do cerrado norte mineiro, que apontamos como quadro
sócio histórico, complexo geopolítico e meio sócio ecológico de referência do nosso
estudo. Os determinantes estruturais que resultam deste enquadramento e que serão
considerados sempre que possível, não podem levar a ocultar a grande diversidade
das situações que aí podem ser vivenciadas nas áreas temáticas que nos interessam.
Mais do que procurar, neste momento, a representatividade de posições no interior
do território de referência, interessa-nos a sua significatividade, isto é, as formas (no
sentido simmeliano) em torno das quais os atores tecem o seu labor quotidiano com
vista à geração de renda.
A maior parte dos Empreendimentos Solidários encontra-se na informalidade.
O GRAF. 1, mostra que ¾ dos empreendimentos estão na informalidade contrapondo
apenas1/4 que se encontram em situação formal.
Gráϐico
1:
Situação
dos
Empreendimentos
Gráϐico 2: Tipos de Empreendimentos Solidários1
Solidários quanto à Formalização1
A solidariedade nos Empreendimentos nem sempre é comunitária, constituída
por um grupo de pessoas que vivem próximas e se juntam para desenvolver
uma dada atividade. Em muitos casos, a atividade é desenvolvida no âmbito das
famílias, conforme mostram os dados do GRAF. 2, em que 72% das atividades dos
empreendimentos são comunitárias e 28% familiar.
O GRAF. 3 se refere à composição dos grupos com relação ao gênero e geração.
Os dados mostram que 54% dos Empreendimentos são compostos por mulheres;
37% são mistos, isto é, contam com mulheres e homens; 7% são compostos apenas
por homens; e 2% são compostos por pessoas da terceira idade.
1. Fonte: dados da pesquisa de Campo.
95
Gráfico 3: Composição dos Empreendimentos com relação a gênero e geração
Os Empreendimentos Solidários nem sempre contam com um local próprio
de funcionamento. Há uma diversidade de situações solidárias inclusive na própria
localização. Alguns funcionam em locais cedidos pelas Associações de Moradores,
outros em casas dos associados, em galpões de Igrejas e Organizações, em locais
próprios ou alugados, entre outras situações. Dos grupos pesquisados, verificouse que 51% dos empreendimentos se localizam na própria casa dos componentes
do grupo; 9% dos empreendimentos são ambulantes; 11% possuem imóvel próprio;
4% dos empreendimentos se situam apenas em feiras; 8% se localizam em imóvel
alugado; e, 17% possuem outros tipos de localização dos seus empreendimentos.
No que refere à corresponsabilidade e apoio do Estado e da Sociedade
Civil para com as iniciativas de Economia Solidária, verifica-se que a maioria dos
Empreendimentos Pesquisados não recebem apoios. Segundo seus informantes,
74% não recebem nenhum tipo de ajuda governamental. Apenas 26% informaram
receber algum tipo ajuda do governo. GRAF. 4.
Segundo os entrevistados, o apoio da Sociedade Civil ainda é pequeno,
embora um pouco maior que o do Estado. Os dados do GRAF. 5 mostram que 30%
dos informantes dos Empreendimentos afirmaram receber algum tipo de ajuda da
sociedade civil; 70% não recebem nenhum tipo de ajuda da sociedade civil.
Com relação às Redes e parcerias estabelecidas entre os pares de
Empreendimentos Solidários, nota-se que é mais elevada: cerca de 73% dos
Empreendimentos tem algum tipo de parceria com outros empreendimentos; 27%
não possuem nenhum tipo de parceria com outros empreendimentos, como mostra o
GRAF. 6.
Inquiridos sobre as principais dificuldades enfrentadas pelos Empreendimentos,
a maioria afirma ser de natureza econômica, relacionadas com recursos para
a produção e acesso a mercados, como aponta o GRAF. 7. Todavia, mesmo com
dificuldades, sejam elas econômicas ou relacionadas a outros aspectos, nota-se uma
determinação muito grande dos associados em seguir em frente com o desenvolvimento
das atividades associativas, em que 91% dos entrevistados afirmam que pretendem
continuar as atividades.
96
Gráϐico 4: Proporção de Empreendimentos que recebem apoio do Estado
Gráϐico 5: Proporção de Empreendimentos que recebem apoios da sociedade civil
Gráϐico 6: Empreendimentos que têm parceria com outros empreendimentos
Gráϐico 7: Principais diϐiculdades enfrentadas pelos Empreendimentos
Para grande parte dos Empreendimentos Solidários, as Feiras constituem
uma oportunidade importante para a realização da venda de seus produtos, sendo
o principal meio de acesso ao mercado. Além da venda dos produtos, as Feiras
constituem um momento de socialização, interação entre associados de diferentes
Empreendimentos, trocas, encontros e lazer. É um momento de ver o que os outros
grupos estão produzindo, ter ideias para inovar a produção, fazer contatos, deixar
seus produtos serem conhecidos pelo público.
Os recursos monetários para o desenvolvimento das atividades dos
Empreendimentos são de natureza diversa, desde os recursos próprios, a ajudas
de ONGs e do próprio Governo. O GRAF. 8 mostra que 71% dos empreendimentos
funcionam com recursos dos próprios associados; 12% contam com ajuda do governo
federal; outros 12% contam com o apoio de organizações da sociedade civil; 5%
contam com o apoio de governos municipais.
Gráϐico 8: Origem dos recursos dos Empreendimentos Solidários
97
3. Proposta metodológica para um modelo analítico das diversas iniciativas de
Economia Solidária
Após apresentação de alguns dados empíricos, buscamos sistematizar os
materiais coletados. Para além das suas orientações específicas, que distinguem
os Empreendimentos no seio do movimento social, elas se diferenciam umas das
outras pela forma como elas se posicionam face às múltiplas formas como a ação se
apresenta no terreno.
A vertente institucional permite definir as orientações que caracterizam os
dispositivos de intervenção e os distinguem de outros investimentos similares. As
propostas de criação de oportunidades de emprego e de renda podem ter motivações
diversas:
1)
Finalidades políticas, sociais e econômicas. A este nível podem ser distinguidos
os programas orientados pelo objetivo de integração dos empreendimentos na
racionalidade econômica instrumental (maximização do lucro), daqueles que, não
descurando a rentabilidade econômica dos empreendimentos, procuram, no essencial,
maximizar os seus benefícios sociais (criação e repartição de emprego sustentada –
econômica, cultural e ecologicamente - num território de referência)
2)
Enquadramento ideológico, político, jurídico ou financeiro significativo para
definir as orientações que regulam o programa de trabalho;
3)
Nível de alcance territorial (local / comunitário / nacional / internacional)
4)
Funções assumidas (técnicas ligadas a fatores de produção / sociais
visando, por exemplo, o estabelecimento de relações sociais de solidariedade,
de responsabilidades / simbólicas ou culturais, na medida em que é visada, por
exemplo, a proteção de identidades, de práticas culturais específicas associadas a
patrimônios que se querem preservar / pedagógicas, quando a função é de socializar
os destinatários aos valores inscritos na missão do dispositivo ou a determinados
padrões de comportamento ou de representações, à utilização de determinados
recursos, etc.). Claro que estas funções não se exercem, geralmente de forma isolada,
mas combinam-se em estratégias de ação que são moduladas, provavelmente, pelas
características das populações associadas ou pelas fases de amadurecimento do
movimento social que é promovido.
Na base da sua organização prática, podemos considerar os critérios que permitem
identificar o perfil do Empreendimento e a sua relação com o contexto significativo
para a atividade desenvolvida (comunidade ou mercado).
98
1)
Relação do Empreendimento à iniciativa que os integra no movimento
da economia solidária. Na medida em que o objeto da pesquisa se concentra em
empreendimentos de economia solidária, não faz sentido considerar projetos isolados,
qualquer que sejam as modalidades de organização. Tampouco pertencem à economia
solidária projetos cuja única característica é de se apresentarem agrupados. O único
critério que nos parece adequado para considerar um empreendimento dentro da
“economia solidária” é a inscrição de alguma das dimensões da sua atividade neste
movimento, quaisquer que sejam, aliás, os conteúdos mais ou menos solidários das
suas práticas. No essencial, podemos distinguir associações que se constituíram
horizontalmente, a partir da vontade dos seus membros, daquelas que aderiram a um
programa institucional de economia solidária que se oferece como um molde específico
de enquadramento da ação. Podemos ainda considerar uma situação intermédia,
quando a mobilização se faz de forma vertical, partindo do centro de iniciativa de
uma associação para os empreendimentos ou investimentos singulares, mas que
adotam um regime de cooptação dos seus membros, com base nos membros que,
entretanto aderiram. Esta relação à iniciativa distingue, em princípio, os níveis de
autonomia que os associados têm em relação aos projetos, podendo considerar-se,
por hipótese, que uma associação cooperativa deterá um maior controle e capacidade
de iniciativa sobre a produção das suas orientações e modos de funcionamento do
que os empreendimentos que são pautados por modelos definidos fora dos grupos.
Esta relação de autonomia/dependência pode ser detalhada por meio da distinção dos
diferentes momentos do ciclo produtivo (financiamento, produção e comercialização),
que podem ser objeto de tratamentos diferentes.
2)
Tipo de bens produzidos (materiais / serviços /simbólicos ou culturais)
3)
Setor(es) privilegiados das atividades desenvolvidas
4)
Posição na repartição técnica da produção (promoção ou financiamento /
organização / comercialização / produção)
Na relação das iniciativas com os contextos significativos para a atividade desenvolvida
(comunidade ou mercado), podemos considerar:
1)
Sustentabilidade do Programa. Neste plano, consideramos os níveis de
interdependência existentes entre as atividades singulares que constituem uma
associação ou empreendimento específicos. Esta interdependência pode ser
considerada no plano interno da associação: os investimentos singulares dos membros
podem estar funcionalmente integrados entre si ou, pelo contrário, apresentarem
se forma atomizada (cada um desenvolve a sua atividade independentemente dos
outros, mesmo se podem existir mecanismos de solidariedade, por exemplo, no plano
do financiamento – bancos populares). No plano externo, podemos considerar modos
ou níveis de integração dos projetos de um grupo com outras atividades que se
desenvolvem fora do grupo (em princípio, na economia “tradicional”). Considerando
estes dois tipos de integração, distinguimos três posições modais que podem marcar
a sustentabilidade dos empreendimentos: i) A interdependência verifica-se no interior
e no exterior do grupo; ii) A interdependência ocorre no interior, mas não com o
exterior e iii) A interdependência não se verifica a nenhum dos níveis. (Excluímos a
possibilidade em que haveria integração no exterior sem haver integração no interior,
na medida em que nesta posição a sustentabilidade não é controlada pelo grupo,
podendo sê-lo por uma das unidades que lhes estão agregadas).
2)
Âmbito territorial do empreendimento: local / itinerante / internacional)
3)
Tipo de clientes (individuais / institucionais)
99
4. Efeitos tipológicos e grelhas de análise
As dimensões anteriormente elencadas não têm a mesma importância quando
consideramos a sua capacidade para diferenciar os empreendimentos. Com efeito,
determinados tipos de projetos são marcados por uma ou outra dessas dimensões
que lhes delimitam os seus significados essenciais. Considerando a generalidade das
iniciativas, que nos interessa apreender, parece-nos importante proceder a um esforço
de hierarquização, que poderá sempre ser reformulado, para que possamos produzir
efeitos tipológicos ou grelhas de análise susceptíveis de orientar o nosso olhar e
ajudar na interpretação da grande variedade das situações empíricas encontradas.
Neste sentido, vamos considerar que três das dimensões apresentadas – uma em
cada um dos grupos delimitados – podem produzir efeitos de classificação mais
discriminantes e permitir, assim, construir espaços de atributos onde poderá entrar
a extrema diversidade das experiências empíricas com as quais os terrenos da ação
nos confrontam.
No plano da sua ancoragem institucional, vamos considerar como determinantes
as finalidades dos programas de trabalho ou projetos associativos, distinguindo,
como o fizemos acima, duas orientações modais: os programas são movidos, em
primeira instância, por uma racionalidade instrumental e econômica ou eles visam, em
primeiro lugar, produzir efeitos sociais ou culturais, mesmo se através de atividades
susceptíveis de aceder ao emprego e renda.
No plano da caracterização dos empreendimentos singulares, consideraremos
que a relação à iniciativa e ao controle das diferentes fases de concretização do
projeto (financiamento, produção e comercialização) são determinantes, distinguindo,
aqui, uma posição de autonomia ou ao contrário de dependência dos produtores em
relação aos elementos necessários à concretização dos processos nos quais eles
estão implicados.
Finalmente, no que respeita à relação das iniciativas com os contextos
significativos para a atividade desenvolvida (comunidade ou mercado) consideramos
mais importante a sustentabilidade das iniciativas quer no plano interno, quer no plano
externo.
Numa primeira aproximação, vamos construir uma substrução a partir das
duas primeiras dimensões consideradas, esperando poder beneficiar dos efeitos
tipológicos assim produzidos conforme TAB. 1.
É claro que cada tipo direciona para orientações modais, possíveis de se
associarem nas experiências empíricas concretas. A este nível, tratar-se-ia, sobretudo,
de identificar o locus da iniciativa e o sentido modal da ação, para perceber, em
seguida, como as diferentes orientações se podem associar ao nível de estratégias
específicas de ação.
A outro nível, para tornar mais operante este esforço de classificação,
é importante considerar que a ação, e a ação de projetos que visam a promoção
de indivíduos e comunidades através do emprego e da melhoria da renda, não é
monolítica. Quer dizer que podemos decompor as diferentes fases de uma intervenção,
que pode ser um processo produtivo, para distinguir as orientações que as marcam.
Por exemplo, um empreendimento individual pode estabelecer uma relação de
dependência com uma Instituição de apoio, mas conduzir de forma completamente
100
Tabela 1: Efeitos tipológicos considerando as Finalidades dos Programas (em coluna) e a relação
à Iniciativa (em linha)
Efeitos tipológicos considerando as Finalidades dos
Programas e a Relação à iniciativa
Finalidades dos Programas
Instrumental
Social
3- Autogestão de iniciativas
1- Autogestão de iniciativas
orientadas, em ordem
orientadas, em ordem
principal, para a promoção
principal, para fins
global de grupos ou
instrumentais
comunidades
Associação de
Programas sociais (ação
atividades/processos
comunitária) ou econômicos
singulares, organizadas pelos (cooperativas) que visam, em
Autonomia
próprios, que visam, em
primeira instância, produzir
primeira instância, manter ou
efeitos sociais, apoiando-se
criar emprego e/ou
em atividade de promoção
determinados níveis de
emprego/renda.
renda, para eles mesmos.
Relação à iniciativa
(Projetos de promoção local
(Cooperativas econômicas)
de grupos ou de
comunidades)
2- Relação Instituição/
beneficiário através de ação
condicionada limitada e
seletiva
Intervenção especializada e
condicionada, operando no
âmbito ou na dependência de
Dependência
programas oficiais de apoio à
entrada no mercado de
trabalho e/ou à obtenção ou
melhoria de renda.
(Programas oficiais ou 3º
setor)
4- Relação Instituição/
beneficiário através de ação
multidimensional não
condicionada e não seletiva
Intervenção de grupos do
movimento social instituído
com o objetivo de apoiar
iniciativas de criação de
emprego e obtenção de
renda.
(Programas oficiais ou 3º
setor)
Fonte: Elaboração nossa.
101
independente o processo de produção e de comercialização. Na TAB. 2, sugerimos
o quadro analítico de referência que pode ser considerado para analisar as situações
concretas:
Tabela 2: Desenvolvimentos empíricos da tipologia resultante dos efeitos tipológicos
apresentados na tabela 15.
Fases
do
processo
consideradas
Financiamento
Produção
Tipo 1
Tipo 2
Tipo 3
Tipo 4
Recursos próprios
Políticas Públicas
3º Setor
Comunitário
Autonomia
Dependência
Dependência
Dependência
Material/
Material/
Material/
Social/ simbólica
simbólica
Comercialização
Local
Financiamento
simbólica
cultural
Itinerante
Internacional
Plural
+ Isolado
Rede
Cooperativa
Associação
+ Isolado
Rede
Cooperativa
Associação
+ Isolado
Rede
Cooperativa
Associação
Financiamento
+ Isolado
Rede
Cooperativa
Associação
Produção
+
Produção
Financiamento
Comercialização
Produção
Comercialização
Comercialização
Fonte: Elaboração nossa.
Numa segunda aproximação do nosso esforço de classificação das atividades,
podemos sistematizar a relação das iniciativas com os contextos significativos para
a atividade desenvolvida (condições de sustentabilidade) dicotomizando, para
simplificar o raciocínio, as posições que podem assumir a integração das atividades
entre si e a relação das atividades com o exterior (TAB. 3).
Tabela 3: Orientações da Sustentabilidade.
Orientações da sustentabilidade
Integração das
Sim
atividades com
atividades externas
Integração interna dos projetos
Sim
Sustentabilidade
interna e externa
Sustentabilidade
Não
interna mas não
externa
102
Fonte: Elaboração nossa.
Não
(Não considerada)
Sem
sustentabilidade
Obtemos, assim, um novo efeito tipológico que permite distinguir 1) os
empreendimentos que têm a sua sustentabilidade interna e externa asseguradas;
2) os que conseguem assegurar uma sustentabilidade interna mas não externa
e, finalmente, os que não asseguram nenhum dos níveis de sustentabilidade
(desprezamos a quarta posição por considerarmos que os empreendimentos que
não asseguram a sua sustentabilidade interna, se o conseguem no exterior, isso não
poderá ser creditado ao grupo em que está inserido e que nos interessa aqui melhor
conhecer).
Conclusão
Em situações de dificuldades e provação, muitas pessoas decidem unir-se aos
seus pares, talvez movidas pelas memórias do agir coletivo do mundo rural ou de
seus ancestrais, para juntas formarem estratégias de manutenção da vida. Seja pela
motivação da tradição do mundo rural, pelas dificuldades de ingresso no mercado de
trabalho formal, ou por outros motivos que explicam o porquê de diversas pessoas se
aproximam para procurar alguma participação na Economia Solidária, o processo de
incorporação da solidariedade nas práticas econômicas é multifacetado.
A maior parte dos Empreendimentos Solidários encontram-se na informalidade
(cerca de 75%) e nem sempre contam com local próprio para funcionamento. Há uma
diversidade de situações solidárias inclusive na própria localização. No que refere à
corresponsabilidade e apoios do Estado e da Sociedade Civil para com as iniciativas
de Economia Solidária, verifica-se que a maioria dos Empreendimentos Pesquisados
não recebe apoio. Segundo os entrevistados, o apoio da Sociedade Civil ainda é
pequeno, embora um pouco maior que o do Estado. Com relação às Redes e parcerias
estabelecidas entre os pares de Empreendimentos Solidários, nota-se que é mais
elevada: cerca de 73% dos Empreendimentos têm algum tipo de parceria com outros
empreendimentos.
No estudo exploratório dos processos de trabalho dos indivíduos/famílias/
grupos ligados à Economia Solidária, encontramos recursos que as diferenciam, como
também recursos que são similares. O estudo apresentou uma proposta metodológica
de modo a olhar o conjunto dos Empreendimentos considerando critérios que permitem
identificar o perfil do projeto ou atividade singular e a relação das iniciativas com os
contextos significativos para a atividade desenvolvida (comunidade ou mercado). O
perfil do projeto ou atividade singular pode ser considerado a partir da: (i) relação dos
Empreendimentos à iniciativa que os integra no movimento da economia solidária; (ii)
Tipo de bens produzidos (materiais / serviços / simbólicos ou culturais); (iii) Setor(es)
privilegiados das atividades desenvolvidas; (iv) Posição na repartição técnica da
produção (promoção ou financiamento / organização / comercialização / produção).
A relação das iniciativas com os contextos significativos para a atividade
desenvolvida (comunidade ou mercado), podem ser avaliadas com base na
(i) Sustentabilidade do Programa. Neste plano, consideramos os níveis de
interdependência existentes entre as atividades singulares que constituem uma
associação ou empreendimento específicos. Esta interdependência pode ser
considerada no plano interno da Associação: os investimentos singulares dos membros
podem estar funcionalmente integrados entre si ou, pelo contrário, apresentarem
se forma atomizada (cada um desenvolve a sua atividade independentemente dos
103
outros, mesmo se podem existir mecanismos de solidariedade, por exemplo, no plano
do financiamento – Bancos Comunitários). No plano externo, podemos considerar
modos ou níveis de integração dos projetos de um grupo com outras atividades que se
desenvolvem fora do grupo (em princípio, na economia “tradicional”). Considerando
estes dois tipos de integração, distinguimos três posições modais que podem marcar a
sustentabilidade dos empreendimentos: a) A interdependência verifica-se no interior e
no exterior do grupo; b) A interdependência ocorre no interior, mas não com o exterior
e c) A interdependência não se verifica a nenhum dos níveis. (ii) Âmbito territorial do
empreendimento: local / itinerante / internacional); (iii) Tipo de clientes (individuais /
institucionais), entre outras variáveis.
Referências e Bibliografia
Araújo, Yara Mendes Cordeiro; Rodrigues, L.(2008). Uma outra racionalidade
econômica acontece em Montes Claros-MG: A solidariedade através do fator
trabalho nos Bancos Comunitários. In: XIII seminário sobre economia mineira, 2008,
Diamantina, MG. Brasil. XII Seminário sobre a Economia Mineira.
Balsa, Casimiro. (org.) (2006). Confiança e Laço Social. Lisboa, ed, Colibri / CEOS
Investigações Sociológicas.
Bourdieu, P. (2006). As estruturas sociais da economia. Lisboa, Campo das Letras.
Castel, R. (1998). As metamorfoses da questão Social. Uma crônica do salário.
Petrópolis, Vozes, 5ª, ed. Original: Les métamorfhoses de la question sociale: une
chronique du salariat. Paris, Ed. Fayard (1995).
Castel, R. (2006). Classes sociais, desigualdades sociais, exclusão social. In: Casimiro
Balsa, Lindomar Wessler Boneti & Marc-Henry Soulet (Org.). Conceitos e Dimensões
da Pobreza e da Exclusão Social: Uma abordagem transnacional. Ijuí, Ed. da Unijuí.
Castells, M. (1999). A sociedade em redes. São Paulo, Paz e Terra.
Hespanha, P. & Santos, A.M. (org.) (2011) Economia Solidária: Questões teóricas e
Epistemológicas. Coimbra, Almedina.
Huybrechts, B. & Nicholls, A.S. (2012). Social entrepreneurship: definitions, drivers
and challenges. In: Volkmann, Christine K., Tokarski, Kim Oliver & Ernst, Kati. Social
Entrepreneurship and Social Business: An Introduction and Discussion With Case
Studies, Springer-Gabler, pp. 31-48
Laville, Jean Louis. Economia Plural (2009). In: PEDRO, Hespanha et al. Dicionário
internacional da outra economia. Centro de Estudos Sociais. Portugal/Coimbra, G.C.,
Gráfica de Coimbra.
Mauss, Marcel (2001). Ensaio sobre a dádiva: Introdução de Claude Levi Strauss.
Perspectivas do homem. Lisboa Portugal.
104
Pinto, J. R. L (2006). Economia Solidária: De volta à arte da associação. Porto Alegre,
Ed, da UFRGS.
Pochmann, Márcio (2006). Desempregados do Brasil. In: ANTUNES, Ricardo (org.).
Riqueza e Miséria do Trabalho no Brasil. São Paulo: Baitempo.
Polany, Karl (2000). A grande transformação: as origens da nossa época. Rio de
Janeiro: Campus.
Razeto, Luis (1997). O papel central do trabalho e a economia de solidariedade.
Revista proposta. Nº 75.
Rosanvallon, P. (1995). La nouvelle question sociale – repenser l’Etat Providence.
Paris, Seuil.
Rosanvallon, Pierre (1997). A crise do Estado Providência. Goiânia: UnB/UFG.
Santos, Milton (1979). O espaço dividido: os dois circuitos da economia urbana dos
países subdesenvolvidos. Rio de Janeiro: Coleção Ciências Sociais, 1979.
SIES, Sistema Nacional de Informações de Economia Solidária: 2005/2007; 2013.
Singer, Paul (2005). A recente ressurreição da economia solidária no Brasil. In:
SANTOS, Boaventura de Souza (org.) Produzir para viver: os caminhos da produção
não capitalista. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira.
Singer, P. (2003). Economia solidária: um modo de produção e distribuição. In:
SINGER, Paul; Souza, André Ricardo de (orgs.). A Economia Solidária no Brasil: a
autogestão como resposta ao desemprego. São Paulo: Contexto.
Souza, Jessé (2009). A ralé brasileira: quem e como vive. SOUZA, Jessé (org.). Belo
Horizonte: UFMH.
105
Agenda
Social
ELETRONIC JOURNAL
VOLUME
NÚMERO
8
1
ISSN 1981-9862
www.revistaagendasocial.com.br
A REVOLUÇÃO TECNOLÓGICA, REESTRUTURAÇÃO PRODUTIVA
E A PRECARIZAÇÃO DO CONTRATO DE TRABALHO
Technological revolution, productive restrutctuization and the
precarious of the employment contract
1. PAULINO, Alex Brant. 2. FERREIRA, Maria Da Luz Alves.
1. Mestrando em Desenvolvimento Social pela Universidade Estadual de Montes Claros-UNIMONTES,
Professor das Faculdades Santo Agostinho / Montes Claros/MG. 2. Professor da Universidade Estadual
de Montes Claros, Departamento de Ciências Sociais.
RESUMO
As inovações tecnológicas empreendidas no
inal do século XX e intensi icadas no início
do século XXI e a mudança no processo
de organização produtiva alteraram a
estrutura social, notadamente nas relações
de trabalho. A globalização intensi ica o nível
de competitividade entre empresas, levandoas à uma diminuição de custos. No mesmo
passo surge o modelo político neoliberal, que
visa o afastamento do estado imprimindo a
lexibilização trabalhista. O trabalho, elevado
pelo Estado do Bem-Estar Social como fonte
de a irmação, tanto no aspecto social (inserção
familiar e econômica) como no desenvolvimento
das potencialidades individuais, sofre com
o novo modelo. A precarização do trabalho
intensi ica, especialmente após a década
de 1970, abalando as bases do primado do
trabalho, tal como posto nas normas jurídicas
de proteção. Os sindicatos, fragmentados, já
não fazem uma contraposição ao novo modelo.
O trabalho informal cresce, sem garantias
sociais necessárias a uma vida digna. Portanto,
necessária uma maior re lexão, que é a proposta
do presente texto, para contextualizar o novo
modelo e os rumos do trabalho na sociedade
contemporânea, a irmando a luta pela sua
valorização com foco na dignidade do ser
humano, que dever ser o desiderato de todo
progresso.
106
PALAVRAS-CHAVE
Revolução
Tecnológica.
Trabalho.
Precarização. Reestruturação Produtiva.
ABSTRACT
Technological innovations undertaken in the
late twentieth century and intensiϔied in the
early twenty-ϔirst century and the change in
the productive organization process altered the
social structure, especially in labor relations.
Globalization intensiϔies the level of competition
between ϔirms, leading them to a cost reduction.
In the same step the neoliberal political model,
which aims to expulsion from the state printing
the labor ϔlexibility arises. The work, elevated
by the State Social Welfare as a source of
afϔirmation, both social (family and economic
integration) as the development of individual
potential, suffers from the new model. The
casualization of labor intensiϔies, especially
after the 1970s, shaking the foundations of the
primacy of work, as set in the legal standard of
protection. Unions, fragmented, no longer form
an opposition to the new model. Informal work
grows without social guarantees necessary
for a digniϔied life. Therefore required further
reϔlection, that is the purpose of this text, to
contextualize the new model and the directions
of work in contemporary society, saying the ϔight
for its recovery with a focus on human dignity,
which should be the desideratum of all progress.
KEY-WORDS
Technological Revolution; Work
Precariousness; Productive Restructuring.
Introdução
O presente artigo tem por objetivo discutir a crise gerada pelo novo
sistema de produção capitalista, identificando as discussões acerca Revolução
Tecnológica e o que tem gerado de conflito social, com o foco nas relações de
trabalho. A quem aproveita e a quem prejudica. Esse é o interesse da discussão a fim
de localizar a estrutura na qual estamos inseridos e quais as tendências para o futuro.
Apesar de todos os argumentos e divulgação de um pensamento
cuja ótica (neo)liberal é hegemônica, buscaremos analisar se esta perspectiva de
desenvolvimento é real e favorece as relações de trabalho.
Buscaremos analisar a atual fase que nos encontramos, partindo desde
a Revolução Industrial até este início de século XXI, com a chamada Revolução
Tecnológica na tentativa de entendermos o contexto e propostas de tais modelos.
Posteriormente, buscaremos analisar a ideologia que acompanha esse
processo, identificando inclusive a ação social e política que as envolve, com o olhar
sobre o estado liberal, interventor (bem-estar social) e neoliberal.
Analisaremos ainda os modelos produtivos¬, (fordismo/taylorismo e
toyotismo ) implementados e sua busca pelo progresso, com as inovações tecnológicas
e seus impacto e abordagem sobre o que se concebe como desenvolvimento.
Buscaremos assim abordar a influência dos sistemas produtivos e ideológicos nas
relações de trabalho, na tentativa de apontar quais são os pontos que causam e
porque causam uma crise estrutural no trabalho e que prováveis enfrentamentos
poderá advir para a sociedade.
1. O novo mundo do trabalho: A Revolução Industrial e Tecnológica
A Revolução industrial foi um marco na formação de uma sociedade capitalista
que revolucionou o mundo, trazendo profundas modificações estruturais nas relações
entre os indivíduos, especialmente em decorrência da divisão social do trabalho.
Se de um lado hoje encontramos uma produção de bens de consumo como
jamais visto na história da humanidade, por outro lado também vimos agigantar
problemas de ordem social tais como desigualdade crescente, fome, desemprego,
exclusão social sob diversas perspectivas, que muitas vezes nos fogem do controle,
o que justifica uma reflexão para práticas visando um mundo justo e solidário.
Polanyi referindo-se a esse momento histórico vivido pela sociedade afirma:
[...] a gente do campo se desumanizava em habitantes
de favelas; a família estava no caminho da perdição e
grandes áreas do país desapareciam rapidamente sob
montes de escória e refugos vomitados pelos “moinhos
satânicos”. Escritores de todas as opiniões e partidos,
conservadores e liberais, capitalistas e socialistas,
referiam-se invariavelmente às condições sociais da
Revolução Industrial como um verdadeiro abismo de
degradação humana. (POLANYI, 2012, p.42)
1. Modelo também chamado de japonês, pós-fordista, da terceira revolução industrial, mas que nesse trabalho optamos
por utilizar a nomenclatura modelo Toyotista.
107
A ideologia liberal impregnada na sociedade de então, toma corpo para
concretizar o avanço para uma sociedade de consumo, numa busca desenfreada e
desorientada pela produção de bens e do lucro, este agora tido como valor moral a
configurar a motivação do homem.
Na tentativa de descobrir a origem das riquezas, economistas no fim do século
XVIII descrevem as condições da acumulação do capital, baseando-se quase sempre
no ideologia liberal (BEAUD, 1999, p.122). Polanyi salienta que um dos grandes
problemas desse pensamento foi que “O liberalismo econômico interpretou mal a
história da Revolução Industrial porque insistiu em julgar os acontecimentos sociais a
partir de um ponto de vista econômico.” (POLANYI, 2012, p.36)
Tratando ainda da revolução industrial, temos a afirmação de que “Através dela
é introduzida e ampliada a lógica capitalista de produção: exploração de um número
crescente de trabalhadores e produção de uma massa sempre maior de mercadorias;
acumulação vertiginosa de riquezas, num pólo, ampliação e agravamento da miséria,
no outro”. (BEAUD,1999, p.123)
A análise feita por Polanyi(2012) em sua obra “A Grande Transformação”
demonstra o curso percorrido pelo capitalismo que engendrou a ruína na sociedade,
especialmente da sua relação com o trabalho e o aumento das desigualdades. Ponto
crucial da análise do autor é a sustentação de sua tese de que a atividade econômica
estava incrustada nas relações sociais no período anterior ao da revolução industrial
e que a concepção de um mercado autorregulável, com a ideologia liberal, retirou a
economia de sua base social, daí advindo uma série de problemas, dentre eles este
da precarização do trabalho que ora analisaremos.
A Revolução Industrial que desencadeou as mudanças no mundo do trabalho
é apontada como sendo um complexo de reestruturação produtiva, que passou por
algumas fases, também denominadas de primeira, segunda e terceira revolução
industrial, sempre visando contornar as crises cíclicas e/ou estruturais do capitalismo
e sua expansão pelo mundo.
Nesse sentido:
[...] A primeira Revolução Industrial começou em fins
do século XVIII e caracterizou-se pela substituição
das ferramentas manuais por máquinas e pelas novas
tecnologias como a máquina a vapor e a fiadeira. A segunda
Revolução Industrial, em fins do século XIX, destacou-se
pela produção da eletricidade; pelo desenvolvimento do
motor de combustão interna, de produtos químicos com
bases científicas e da fundição eficiente do aço; e pela
invenção do telégrafo e da telefonia. A terceira Revolução
Industrial iniciou-se durante a Segunda Guerra Mundial,
com o desenvolvimento da eletrônica e, em meados
da década de 1970, com a revolução da tecnologia
da informação, tendo por base o desenvolvimento da
microeletrônica, computadores e telecomunicações.
(ALVES, 2011, p.16-17)
Sobre esta Terceira Revolução Industrial, afirma ainda Alves(2011) que ela se
distingue das anteriores, contendo em si duas revoluções tecnológicas que foram a
causa de uma alteração da atividade industrial.
108
[...] A Terceira Revolução Tecnológica, usualmente
identificada com a Terceira Revolução Industrial
propriamente dita, se baseia no chamado “binômio
informática/robótica”, sendo portanto o que Adam Schaft
denominou de “revolução informática’; e a Quarta
Revolução Tecnológica é a que identificamos com a
constituição das redes informacionais (ciberespaço) a
partir dos novos avanços das telecomunicações, sendo
portanto a “revolução informacional”. (ALVES, 2011, p.
17).
No mesmo sentido:
A primeira revolução industrial aconteceu na Inglaterra
ente 1770 e 1860. A segunda, aconteceu por volta de
1880 no novos países industrializados de então (EUA,
Alemanha, Itália, França, entre outros). A terceira, data
da crise dos anos 70, com novo paradigma tecnológicocientífico. Aí se produziu um novo e intenso ciclo de
mundialização do capital. Neste sentido, a mundialização
do capital consiste na nova configuração do capitalismo
mundial, com extrema centralização de gigantes capitais
financeiros, que comandam a repartição social da
riqueza. A esfera financeira cresce em ritmo superior
aos índices de crescimento do investimento (PIB) ou do
comércio exterior. (Oliveira; 1999, p. 57).
Não obstante relevantes observações sobre o impacto desse processo no meio
ambiente, as implicações da revolução tecnológica sobre o primado do trabalho e seu
valor social é que buscamos analisar, dentro de um modelo de acumulação flexível.
Tal modelo veio fazer frente ao conjunto de proteção social até então vigente, visando
a maximização do lucro mesmo que às custas de males sociais profundos.
2. O Estado liberal, intervencionista e neoliberal e a reestruturação produtiva.
A ideologia liberal que transformou a sociedade moderna, imprimiu ao
capitalismo um ritmo acelerado de acumulação de riqueza e produção de bens
visando sua expansão e criando novos padrões de comportamento.
O capitalismo com sua saga em busca de expansão de mercados teve que
se rearranjar, se remodelar para enfrentar suas crises. A reestruturação produtiva ao
longo desse processo foi primordial para o ideal capitalista, com instauração desde o
modelo taylorista/fordista e o toyotista com uma acumulação flexível.
Os sistemas ideológicos que permearam a sociedade nessa época é também
de fundamental importância, pois forjaram valores na sociedade, ora com mais ora
com menos força de resistência.
O liberalismo econômico evoluiu “como uma fé verdadeira na salvação
do homem através de um mercado autorregulável” (POLANYI, 2012, p. 151), que
prega a não intervenção do estado. Aponta o autor que no ano de 1830 o liberalismo
econômico ‘explodiu com uma cruzada apaixonante”, e o laissez-faire se tornou um
credo militante.
109
O Estado para os liberais deveria se afastar de interferências, a não ser para
garantir a propriedade de bens, o livre mercado, o mercado de trabalho etc. Polanyi
assim se manifesta:
[...] Todos esses baluartes da interferência governamental,
no entanto, foram criados com a finalidade de organizar
uma simples liberdade – a da terra, do trabalho e da
administração municipal. Assim como, contrariando
expectativas, a invenção da maquinaria que
economizaria trabalho não diminuíra, mas, na verdade,
aumentara a utilização do trabalho humano, a introdução
de mercados livres, longe de abolir a necessidade de
controle, regulamentação e intervenção, incrementou
enormemente seu alcance. Os administradores tinham
de estar sempre alertas para garantir o funcionamento
livre do sistema. Assim, mesmo aqueles que desejavam
ardentemente liberar o estado de todos os deveres
desnecessários, e cuja filosofia global exigia a restrição
das atividades do estado, não tinham outra alternativa
senão confiar a esse mesmo estado os novos poderes,
órgãos e instrumentos exigidos para o estabelecimento
do laissez-faire[...]. (POLANYI 2012, p.157)
Esse sistema liberal tem hegemonia na história capitalista desde o século XVIII,
permanecendo incólume durante o século XIX, não obstante o surgimento de algumas
críticas cada vez mais consistentes. “O surgimento do Direito do Trabalho, aliás,
nesse período final do século XIX, já traduzia um revés imposto à plena dominância
do liberalismo radical”. (DELGADO, 2006, p. 73).
Em razão da destruição operada pelo movimento liberal e mercado
autorregulável, surgiu de forma natural e espontânea um contramovimento, coletivista
e universal:
Achamos, assim, que a evidência comprova a
interpretação que damos ao duplo movimento. Se
a economia de mercado foi uma ameaça para os
componentes humanos e natural do tecido social, como
insistimos, o que mais poderia esperar senão que uma
ampla gama de pessoas exercesse a maior pressão no
sentido de obter alguma espécie de proteção? Foi isto o
que encontramos (POLANYI, 2012, p.167).
Nega referido autor que esse contramovimento intevencionista seja algo de
caráter ideológico e uma conspiração contrária ao liberalismo econômico e ao laissezfaire e que não foi nenhuma preferência pelo nacionalismo ou socialismo, aduzindo
que na verdade ele teve todas as características de uma reação espontânea ao caos
que se apresentava.
O sistema de proteção, advindo de estratos sociais definidos, direcionam no
sentido de resguardar a terra, o trabalho e o dinheiro.
110
Como último recurso, a autorregulação imperfeita
do mercado levou a uma intervenção política. Os
governos tiveram de responder às pressões quando o
ciclo comercial deixou de corresponder e restaurar o
emprego, quando as importações deixaram de produzir
exportações, quando as regulamentações da reserva
bancária ameaçaram os negócios com o pânico, quando
devedores estrangeiros recusaram-se a pagar. Numa
emergência, a unidade da sociedade afirmou-se por
meio da intervenção (POLANYI, 2012, p. 229).
Oliveira(1999) enfatiza que “[...] o liberalismo que conheceu seu apogeu
durante a fase concorrencial, é substituído pelo Keynesianismo, ou Estado Interventor
(Regulador), mais adaptado à nova fase monopolista do sistema” e arremata
A solução foi o New Deal do Presidente Roosevelt
(que governou de 1933 a 1945) com seu programa
de Auxílio, Recuperação e Reforma. Em suma, este
programa, através da intervenção do Estado, ajudou os
setores econômicos (Bancos, Agricultura e Indústria)
a sair da crise, fez programas de auxílio aos carentes:
idosos, deficientes e grupos marginalizados, iniciou
um programa de seguro-desemprego e previdência e
estimulou a economia através da realização de obras
públicas (Oliveira, 1999, p.38-39)
No mesmo sentido:
O Welfare State foi, em grande parte, uma resultante do
embate entre capitalismo liberal e os “conflitos sociais”.
A ação do Estado tendeu a regular a ordem econômica
e social, com um controle consciente do gasto público
e mecanismos de controle econômico. A órbita do
trabalho deixou de ser ditada exclusivamente pelas
leis do mercado, assim como as questões sociais. O
conceito de Estado de bem-estar social foi ampliando-se
gradativamente, bem como a ideia de que as situações
de risco contra o trabalhador são produzidas socialmente
(CAVALCANTE, et al, 2008, p.750).
Analisando essa fase do sistema capitalista, temos que “No tocante ao
trabalho vivo, a constituição do Welfare State, no interior do próprio sistema produtor
de mercadorias nos países capitalistas centrais após a Segunda Guerra Mundial,
estabelece barreiras à usurpação capitalista e à superexploração da força de trabalho.”
(ALVES, 2011, p. 12).
Delgado enfatiza que o Estado do Bem-Estar Social tinha como fundamento o
primado do trabalho na sociedade capitalista tornando-se o epicentro da vida social
e econômica. “Percebe tal matriz a essencialidade da conduta laborativa como um
dos instrumentos mais relevantes de afirmação do ser humano, quer no plano de sua
própria individualidade, quer no plano de sua inserção familiar, social e econômica”
(DELGADO, 2006, p.29).
Para enfrentamento de uma crise, uma solução do capitalismo foi a introdução
111
do sistema fordista de produção, como veremos mais adiante, que visou modificação
na produção e no salário dos trabalhadores.
Antes dessa análise, necessário apontar ainda a fase ideológica que desponta
no sistema mundial, em contraponto ao então sistema do Walfare State, que perde
credibilidade com o aparelhamento do estado de forma gigantesca, uma burocracia
engessadora e uma crise fiscal enorme. Com a derrocada da URSS sai de cena
o mais forte contraponto capitalista do século XX, ensejando a retomada de uma
ideologia que volta a ser hegemônica e faz novamente ruir as bases do coletivismo
(DELGADO, 2006).
Surge então o modelo globalizante, despontado no último quartel do século XX,
tendo como um de seus pilares o neoliberalismo, também chamado de ultraliberalismo.
Este liberalismo readaptado – neoliberalismo ou
ultraliberalismo – corresponde a um conjunto orgânico
de idéias, que se fortaleceu política e economicamente
a contar dos anos de 1970 nos países capitalistas
desenvolvidos, dirigidas à estruturação do Estado e
sociedade no sistema capitalista, em anteposição à
matriz do Estado de Bem-Estar Social, hegemônica no
pós-2ªGuerra Mundial nos EUA e, principalmente, Europa
Ocidental. (DELGADO, 2006, p.21).
Referindo-se à essa internalização do pensamento liberal, afirma Delgado(2006)
que a Argentina foi um exemplo dramático na gestão de Carlos Menem(1989-1999) e
revela:
[...] o novo governante promoveu a desconstrução
drástica da participação estatal na economia, com
privatizações generalizadas, a par de impor reforma
trabalhista célere por sua agressividade, com profunda
desregulamentação normativa. O resultado de tal
estratégia é por todos conhecido: poucos anos depois,
no final do século, mais de 50% da população do país
vivia abaixo da linha da pobreza, segundo o internacional
Índice de Desenvolvimento Humano (IDH), ao passo
que duas décadas antes apenas 5% dos argentinos
submetiam-se a tal condição; o desemprego, em 2002,
atingia cerca de 25% da força de trabalho do país; a
criminalidade elevou-se cerca de 290% em torno de 10
anos (DELGADO, 2006, p.26-27).
No Brasil este movimento teve seu ponto forte no governo Collor(1990-1992)
e mais acentuadamente no governo de Fernando Henrique Cardoso (1994-2002)
onde se percebeu além de abertura comercial, privatizações, a desregulamentação
e flexibilização trabalhista. “Se o processo de reestruturação produtiva no Brasil,
durante os anos 80, teve uma tendência limitada e seletiva, foi especialmente a partir
da década de 1990, inicialmente com Collor e depois com FHC, que ele se ampliou
sobremaneira. (ANTUNES, 2013, p.20)
112
3. Fordismo, Taylorismo e Toyotismo: modernidade e o impacto nas relações de
trabalho.
A reestruturação produtiva, com implementação de novas tecnologias e
nova organização do trabalho, ocorrida no curso do desenvolvimento capitalista,
forjou valores que ordenaram o mundo do trabalho, influenciando sobremaneira na
identidade da classe que vive do trabalho, sendo também fator fundamental para o
aumento das desigualdades sociais.
O desemprego estrutural que hoje se percebe no mundo é fruto desta política
organizacional capitalista e incremento da tecnologia.
O sistema de gestão empresarial que prevaleceu no século XX até a década
de 1970 foi conhecido como fordismo/taylorismo, com origem na economia Norte
Americana.
A racionalização norteia a atividade produtiva. O taylorismo surge como um
método de gerência científica, de organização do trabalho partindo do ponto de
vista capitalista. “Sua base inicial fundava-se, essencialmente, no método de gestão
trabalhista estruturado a partir de fins do século XIX pelo engenheiro norte-americano
Frederick Winslow Taylor(1856-1915)” (DELGADO, 2006, p. 45).
O taylorismo, aplicando análise sistemática ao exercício
prático do trabalho no estabelecimento capitalista,
viabilizou a simplificação e agilização do treinamento
da mão-de-obra, mesmo não qualificada, além de
potenciar, significativamente, a produtividade do
trabalho. Propondo a minuciosa separação de tarefas e
sua consequente rotinização no processo laborativo de
sofisticada especialização do trabalho, transformando-o
em uma sequência de atos basicamente simples. A partir
daí, esta gerência científica do trabalho multiplicava
a produtividade laborativa, viabilizando a explosão da
produção massiva característica do sistema capitalista”
(DELGADO,2006, p.46).
Carmo, citado por Cavalcante, Albuquerque e Jesus, caracteriza o sistema
taylorista:
O Taylorismo visa à racionalização da produção, a fim
de possibilitar o aumento da produtividade no trabalho,
evitando o desperdício de tempo, economizando
mão-de-obra, suprimindo gestos desnecessários e
comportamentos supérfluos no interior do processo
produtivo. Taylor concretizou de forma exemplar a noção
de “tempo útil”. A linha de montagem criada por Ford(18631947) na fabricação em massa de automóveis, seguiu a
trilha aberta por Taylor. Essa atividade em cadeia elevou
o grau de mecanização do trabalho, reduzindo ainda
mais a iniciativa e a autonomia dos operários. Ao ditar
a cadência do trabalho, a linha de montagem permite
um grau de padronização da mão-de-obra que elimina o
operário zeloso ou preguiçoso, pois ambos retardariam
a marcha da produção (CARMO, 1992: 20). (CARMO,
apud CAVALCANTE, et al, 2008, p. 87)
113
O fordismo, aliado ao taylorismo, provocou intensas mudanças no processo
de produção capitalista, como a massificação e elevada produtividade. Esse período
ocorrido após a Segunda Guerra Mundial foi o boom do capitalismo, os seus “anos
dourados”, a “era de ouro”, “os trinta anos gloriosos’. (HOBSBAWM, 2008).
Idealizado por Henri Ford(1863-1947), “[...] este método de trabalho veio trazer
inovações não só aos processos de produção, mas também à forma de organização
do trabalho dentro da empresa e ao padrão de consumo, e de vida, dos assalariados”.
(CARVALHO, 1999, p. 96).
Salienta o mesmo autor que a economia mundial cresceu a uma taxa
explosiva, ficando notório isso especialmente na década de 1960. “A produção mundial
de manufaturas quadruplicou entre o início da década de 1950 e o início da década
de 1970, e, o que é ainda mais impressionante, o comércio mundial de produtos
manufaturados aumentou dez vezes” (HOBSBAWM, 2008, p.257).
“O modelo de produção em massa de Henry Ford espalhou-se para
indústrias do outro lado dos oceanos, enquanto nos EUA o princípio fordista ampliavase para novos tipos de produção, da construção de habitações à chamada junk food (o
McDonald’s foi uma história de sucesso do pós-guerra). (HOBSBAWM, 2008, p.259).
Descrevendo a dinâmica do modelo proposto por Henry Ford, Beaud
demonstra que “Cada trabalhador ocupa um posto, do qual ele não se mexe, pois
“andar a pé, repetia Ford, não é uma atividade remuneradora”. São, portanto, as
peças que se movimentam numa correia transportadora; e cada trabalhador efetua
uma operação [...]’ (BEAUD, 1999, P.259).
Nesse sistema o crescimento do capitalismo foi gigantesco, especialmente nos
países desenvolvidos. Ocorre que a partir de 1970, mais uma mudança estrutural vai
balançar as bases da sociedade.
O capitalismo entra em uma crise estrutural que é marcada pela sobre
acumulação e intensa concorrência internacional, “Sob o impulso da mundialização
do capital, constituiu-se um novo complexo de reestruturação produtiva, buscando
instaurar e impor um novo padrão de acumulação capitalista em escala planetária e
que se impôs cada vez mais às corporações transnacionais[...]. (ALVES, 2011, p.1112).
Cita referido autor que essa reestruturação produtiva configura um processo
de acumulação flexível, que tende a debilitar o mundo do trabalho e diz que Harvey
ao propor o conceito de acumulação flexível “[...] o contrapõe à suposta acumulação
rígida do fordismo.” Faz no entanto a ressalva de que “[...] na verdade, o fordismo,
tanto quanto a acumulação flexível de Harvey, aumentou os poderes de flexibilidade
e mobilidade do capital” (ALVES, 2011, p.15).
O toyotismo é a ‘ideologia orgânica’ do novo complexo
de reestruturação produtiva do capital que encontra
nas novas tecnologias da informação e comunicação
e no sociometabolismo da barbárie, a materialidade
sociotécnica(e psicossocial) adequada à nova produção
de mercadorias. Existe uma intensa sinergia entre
inovações organizacionais, inovações tecnológicas
e inovações sociometabólicas, constituindo o novo
empreendimento capitalista que coloca novos elementos
para a luta de classes no século XXI. (ALVES, 2011,
p.43).
114
Delgado reforça:
No cenário da forte crise econômica então desencadeada
no Ocidente, com a exacerbação da concorrência
interempresarial e mundial, inclusive a célere invasão,
naqueles anos, do mercado econômico europeu e
norte-americano pelo novo concorrente japonês, tudo
associado ao desenvolvimento da chamada terceira
revolução tecnológica e das condições macropolíticas
desfavoráveis ao Estado do Bem-Estar Social, passa-se
a assistir à incorporação de novos sistemas de gestão
empresarial e laborativa. Entre estes, o que produz maior
impacto, sem dúvida, é aquele apelidado de toyotismo
ou ohnismo.
[...]
O toyotismo visa, em síntese, elevar a produtividade
do trabalho e a adaptabilidade da empresa a contextos
de alta competitividade no sistema econômico e de
insuficiente demanda no mercado consumidor (portanto
adaptar a empresa mesmo a contextos de crise).
Conforme indagava Taiichi Ohno em sua obra, O Espírito
Toyota; “o que fazer para elevar a produtividade quando
as quantidades não se elevam? (DELGADO, 2006, p.4647).
Alves expõe que “[...] a fábrica toyotista é uma fábrica enxuta” e afirma que
a produção flexível toyotista implica no engajamento do trabalhador, e tem uma
finalidade que é a “absoluta eliminação do desperdício”. (ALVES, 2011, p.49)
Salienta ainda que o Toyotismo não se constitui como “modelo puro” de
organização da produção capitalista. Pelo contrário, em seu desenvolvimento
complexo, tende a articular-se (e mesclar-se) com formas pretéritas de racionalização
do trabalho (como o fordismo-taylorismo) [...]” (ALVES, 2011, p.62).
Tratando da questão da subjetividade do trabalhador, demonstra:
A desespecialização (ou polivalência do trabalho) não quer
dizer que eles tenham se convertido em trabalhadores
qualificados, mas representam, como salientou Aglietta,
“o extremo da desqualificação, ou seja, seus trabalhos
foram despojados de qualquer conteúdo concreto”. que
o modelo toyotista capta a “subjetividade do trabalhador”
na medida em que
[...] Nesse sentido, o toyotismo articula um novo tipo de
operação de “captura” da subjetividade do trabalho ou
uma subjetividade às avessas capaz de gerir seus novos
dispositivos tecnológico-organizacionais. O espírito do
toyotismo irá impulsionar na linguagem do managering, os
apelos à administração participativa e ao “gerenciamento
moderno.”
[...] O cérebro dos operários e dos empregados, não está
mais livre, como no taylorismo-fordismo.”
[...] incentivam-se habilidades pró-ativas e propositivas
no sentido adaptativo aos constangimentos sistêmicos.
(ALVES 2011, p.64-65)
115
A exigência do empenho maior do trabalhador nessa fase modifica a dinâmica do
trabalho, com vistas à maior produtividade sem no entanto perceber que as condições
para o trabalhador o levam a problemas antes não diagnosticados, pelo menos não
na intensidade e forma que hoje se apresenta. Tanto a forma de organização do
trabalho quanto o surgimento de alta tecnologia e meios de comunicação captam
essa subjetividade do trabalhador, retirando-lhe valores humanos inalienáveis, como
por exemplo o direito ao descanso, ao lazer, à vida social e comunitária, dentre outros.
Linhart, tratando desta modernização nas relações de trabalho na
França sintetiza que;
As problemáticas avançam com freqüência, implícita
ou explicitamente, a noção de progresso: trabalho com
tendência mais abstrata, mais intelectual, apoiado em
competências maiores, papel decisivo da qualidade
da comunicação e das interações no trabalho, maior
engajamento da subjetividade, empresas com linhas
hierárquicas reduzidas, com estruturas menos pesadas,
dando mais espaço às instâncias transversais, ao
comportamento participativo, e trabalhando por uma
individualização das situações de trabalho e dos destinos
profissionais. Todos valores portadores, em si mesmos,
da idéia de uma melhora da vida no trabalho. (LINHART
2007, p.104)
Constatação interessante é feita por este autor, que apesar de referir-se à
analise num contexto específico das empresas na França, não é difícil a percebermos
em nossa realidade.
Fundamentalmente o que está em jogo é distanciar
o assalariado dos valores contestatórios, dos valores
autônomos ou particulares, combater sua inquietação
em relação ao futuro para incorporá-lo à racionalidade
escolhida pela empresa. Conduta acompanhada por
um discurso baseado na valorização da pessoa e que,
de certa maneira, entra em ressonância com algumas
expectativas dos assalariados, principalmente os mais
jovens.”
[...] Essas transformações, que visam a modernizar e
conquistar a confiança, desencadeiam uma apreensão
e, consequentemente, reações de autodefesa. Mais do
que cooperar lealmente e confiar em seus superiores,
cada um trata de se tornar indispensável, insubstituível,
tornando seu trabalho ainda mais opaco, ainda mais
inacessível.Cada um se debruça sobre sua tarefa, sobre
seu posto, investe na obscuridade e cava ainda mais
profundamente seu buraco. As pesquisas de campo
captam bem essas estratégias inscritas em uma lógica
individual de sobrevivência. (LINHART, 2007)
É nesse contexto que constatamos a perda da subjetividade, paulatinamente o
trabalhador se depara com a insegurança, aumentam-se os casos de assédio moral
no trabalho, o trabalhador não se identifica mais com seus pares e sequer consigo
mesmo. O valor social do trabalho é deixado de lado.
116
Sob o toyotismo, o homem produtivo é instigado a pensar
demais, mas de acordo com a racionalidade instrumental
do capital. O cérebro dos operários e dos empregados
não está livre, como no taylorismo-fordismo. Deve-se
combater nos locais de trabalho e nas instãncias da
reprodução social o pensamento crítico ou aquilo que
Gramsci tratou como “um curso de pensamentos pouco
conformistas”. Incentivam-se habilidades congnitivocomportamentais pró-ativas e propositivas no sentido
adaptativo aos constrangimentos sistêmicos.
[...] O toyotismo é, então, expressão de uma “racionalidade
cínica” que caracteriza as sociedades capitalistas na
etapa de crise estrutural do capital. Uma racionalidade
cínica que, como observou Safatle, visa a “estabilizar
uma situação que, em outras circunstâncias, seria uma
típica e insustentável situação de crise” (Safatle, 2004,
p.132). Na medida em que Ohno, por um lado, trata da
“harmonia entre operários”, por outro lado, proclama,
mais adiante, que “a produção pode ser feita com metade
dos operários”. Fica claro que o discurso de Ohno é um
discurso paradoxal: diz ter obsessão contra o desperdício,
mas é agente do capitalismo da superprodução. (ALVES,
2011, p.65-66)
Além de seguir desconstruindo o primado do trabalho como valor social
relevante, o novo modelo capitalista ainda deteriora as bases sindicais, com o seu
processo de fragmentação das plantas industriais e a terceirização. Ainda tratando
da questão social na França, mas sem se distanciar do que ocorre também no Brasil,
Linhart salienta que;
No fim do século XX, sacudido pela crise econômica, o
sindicalismo francês não convence. Não se impõe muito
no plano da luta pelo emprego, não chega a defender os
salários, não exerce influência efetiva sobre o conteúdo
da organização do trabalho. Tem poucos filiados e,
sobretudo, não atrai mais os jovens. (LINHART, 2007,
p.115)
Alves particulariza a situação no Brasil, sem deixar de reconhecer o valor
histórico do sindicato, mas acentua que:
A crise do mundo do trabalho não se resolve por meio de
qualquer reforma sindical. Na verdade, em si, ela tende
a iludir o movimento sindical sobre suas perspectivas
no contexto da crise do capital do século XXI. O que se
coloca hoje é a necessidade de uma intervenção global,
de que o sindicalismo demonstra ser incapaz, não
apenas no plano político-organizativo, mas também no
sociocultural. A instituição-sindicato tornou-se incapaz de
servir como centro de organização de classe. (ALVES,
2013, p.464)
Verifica-se pois que é estrutural a problemática desse modelo imprimido pelo
que chamamos da Terceira Revolução Industrial ou Revolução Tecnológica, sobretudo
pelo rompimento e desarticulação de um dos principais fatores que equilibravam e
117
garantiam melhores condições de trabalho, advindo da luta sindical e movimentos
operários. O desemprego estrutural, insegurança quanto ao futuro, o trabalho precário,
temporário e a terceirização que se vê surgindo por todos os lados em diversos
setores da economia, como salienta Ricardo(2013) geram insegurança quanto ao
futuro, atormentando o trabalhador que se vê numa verdadeira crise de identidade.
Singer, citado por Gonçalves(2003), salienta que:
[...] o final do século XX demonstra um claro mal-estar
social, nomeadamente no que tange ao crescente
universo de pessoas economicamente ativas e que não
encontram um ocupação remunerada. Argumenta que
dita situação denota traço inevitável de uma nova etapa
da evolução do sistema capitalista.
[...] O catedrático entende que o termo que melhor pode
refletir a situação do mercado de trabalho não é o verbete
“desemprego”, mas a expressão “precarização”, porque
os novos postos de serviços criados em virtude das
novas tecnologias não conseguem nem suprir a carência
de absorção de mão-de-obra, mas – principalmente –
não conferem aos seus ocupantes os mesmos direitos e
garantias que eram previstos legal ou convencionalmente
nos empregos tradicionais, sendo corriqueiras as relações
informais ou incompletas de emprego, o que se reverte
em sentido socialmente difundindo de insegurança no
emprego.(SINGER, 2000 apud GONÇALVES, 2003)
Na legislação brasileira se observa uma frequente onda flexibilizante, que
paulatinamente vai desconstruindo a rede de proteção das relações sociais. Exemplos
dessa flexibilização é a mitigação do princípio da continuidade da relação de emprego,
típica proteção justrabalhista que visa resguardar a segurança nas relações de
trabalho, com a edição das leis de trabalho temporário, tais como a Lei 6.019/74 que
introduziu a terceirização no ordenamento jurídico.
Também a Lei 9.601/98 abre espaço para a mitigação do referido princípio
da continuidade dentre diversas outras normas que vão afetando direitos antes já
garantidos e conquistados relativos à jornada de trabalho, aos salários, aos períodos
de descanso como muito bem explicitado por Gonçalves(2004) em sua obra
“Flexibilização Trabalhista”.
Cumpre lembrar ainda a denúncia da Convenção 158 da Organização
Internacional do Trabalho que trata do impedimento para despedida imotivada ou
sem justa causa do trabalhador. Tal Convenção internacional, que foi absorvida pelo
ordenamento jurídico brasileiro pelo Decreto de nº 1855, de 10 de abril de 1996
que no entanto logo foi denunciada mediante pressão da classe empresarial em 20
de novembro de 1996 pelo Decreto de nº2.100, retirando-lhe a eficácia normativa
(Gonçalves, 2004).
Na esteira desse pensamento, sobre os efeitos da tecnologia e da remodelagem
organizacional nas relações de trabalho Santos citado por Gonçalves(2003) ressalta:
118
A tecnologia informacional e a nova organização do
trabalho, sob a forma de capital-intensivo e de estrutura
enxuta, inerentes em um processo de globalização,
são causas do desemprego estrutural. A introdução de
dispositivos informatizados, robôs, micropocessadores,
etc. eliminam postos de trabalho, da mesma forma
que a reengenharia, o enxugamento, a reestruturação
organizacional. O fato é que seja por via da automação
eletrônica, seja por via da remodelagem do layout
organizativo da empresa – os empregos somem aos
milhares, enquanto aumenta a carga de trabalho sobre
aqueles que continuam empregados. (SANTOS, 1999,
p.81, apud GONÇALVES, 1999, p.130,)
Durkheim(1999), ao tratar da divisão social do trabalho, trata da solidariedade
forjada na formação da sociedade moderna, denotando que essa divisão cria uma
função ainda mais relevante que o mero serviço econômico, mas um efeito moral que
guia e torna coesa essa sociedade de indivíduos. É pois na perspectiva de Durkheim
fonte de solidariedade social esta divisão do trabalho.
Todavia, o que percebemos principalmente a partir do ano 1990 com esta
reestruturação produtiva e incremento tecnológico intenso, é uma desarticulação
social, a quebra de coesão social especialmente entre os trabalhadores, com uma
crise de identidade do trabalhador e negativação de um senso de coletividade. A
captura da subjetividade, como salientado por Alves(2011) tem trazido consequências
graves ao trabalhador, haja vista que a ótica implementada pelo processo capitalista
atual é a busca pelo aumento da produtividade, intensificação do trabalho sem geração
de emprego (redução de custos) com uma preocupação meramente econômica.
A saída para o avanço desses males que geram exclusão social não pode
ser outra senão aquela sempre apontada por Celso Furtado e Karl Polanyi, que é
a intervenção do Estado de forma planejada, estruturante, com liberdade e com
participação da sociedade, dos movimentos sociais, especialmente no caso específico
dos trabalhadores um fortalecimento e resgate da atuação sindical.
4. Considerações finais
A consolidação de um sistema produtivo implementado nos últimos
anos tem influenciado diretamente as relações sociais, especialmente no que toca
ao trabalho, gerando uma exclusão social cada vez mais crescente e uma perda do
sentido do trabalho, tido como valor preponderante na sociedade.
Este sistema que hoje intensifica o desemprego estrutural e
especialmente a precarização nas relações de trabalho, como vimos, advém da
lógica toyotista de produção capitalista, aliada a uma ideologia neoliberal e que tem
na revolução tecnológica uma força desestruturante que deve ser enfrentada após
reflexões importantes.
A preocupação com a superprodução, a luta das empresas pela
sobrevivência num mercado globalizado e altamente competitivo merecem uma
reflexão constante para implementação de uma política pública voltada para a
119
valorização social do trabalho, a fim de que aqueles valores morais que geram coesão
e solidariedade não sejam superados pela busca incessante do lucro.
Não se trata de esboçar uma intervenção do Estado para volta a períodos
passados, a um modelo fordista/taylorista ou que quer que seja, mas apontar uma
reforma que seja profunda e séria e que tenha como fim último a valorização do
homem, considerado em sua plenitude e não unicamente enquanto ser inserido em
camadas favorecidas. Tal reforma deve ser amplamente discutida, já que é certo que
ela precisa ocorrer no âmbito das coletividades. Uma conscientização das massas é
necessária para tal reforma porque sua participação é essencial, sobretudo se levarmos
em conta que a questão transita entre interesses de outros Estados nacionais, que,
em se tratando do processo de globalização, deve ser pensado como um todo.
Constatamos com a leitura que não se trata simplesmente de enfrentamento
da tecnologia que surge nas novas relações de trabalho, pois com a racionalidade e
as novas descobertas da ciência sempre mais estarão integradas nas relações de
trabalho. Trata-se de discutirmos a ideologia que está por traz desse momento, a fim
de que possamos descobrir caminhos para melhoria das condições sociais como um
todo, sem exclusão, com amparo social e preservação de valores morais importantes
para coesão social.
5. Referências bibliográficas
ALVES, Giovanni. Trabalho e Subjetividade: o espírito do toyotismo na era do
capitalismo manipulatório. São Paulo: Boitempo, 2011
ANTUNES, Ricardo(org). Riqueza e miséria do trabalho no Brasil. São Paulo:
Boitempo. 2013.
BEAUD, Michel. História do Capitalismo. São Paulo; Brasiliense. 1999.
CARVALHO, Marcelo Pereira de. “O fordismo no Brasil. Que fordismo é esse?”. In:
OLIVEIRA, Marcos Fábio Martins de; RODRIGUES, Luciene.(org.) “Capitalismo - Da
gênese à crise atual”. Montes Claros.Ed.Unimontes.1999.
CAVALCANTE, Alberto Rocha; ALBUQUERQUE, Antônio Carlos de; JESUS, Cláudio
Roberto de. Dilemas da Sociedade do Trabalho. Belo Horizonte: Argvmentvm, 2008.
DELGADO, Maurício Godinho. Capitalismo, Trabalho e Emprego: entre o paradigma
da destruição e os caminhos da reconstrução. São Paulo: LTR, 2006.
DURKHEIM, Emile. Métodos para determinar essa função. In: A divisão do trabalho
social. São Paulo: Martins Fontes, 1999.
GONÇALVES, Antônio Fabrício de Matos. “Flexibilização Trabalhista”. Belo Horizonte:
Mandamentos. 2004.
120
GONÇALVES, Rogério Magnus Varela. “Direito Constitucional do Trabalho: aspectos
controversos da automatização”. Porto Alegre: Livraria do Advogado. 2003.
HOBSBAWM, Eric. A era dos extremos; o breve século XX 1914-1991. 2ªed.São
Paulo: Companhia Das Letras. 2008.
LINHART, Danièle. A desmedida do capital. São Paulo: Boitempo. 2007.
OLIVEIRA, Marcus Fábio Martins de; RODRIGUES, Luciene.(org.) “Capitalismo - Da
gênese à crise atual”. Montes Claros.Ed.Unimontes.1999.
POLANYI, Karl. A Grande Transformação: as origens de nossa época. Rio de Janeiro:
Elsevier 2012.
121
Agenda
Social
VOLUME
NÚMERO
ISSN 1981-9862
ELETRONIC JOURNAL
www.revistaagendasocial.com.br
RELAÇÕES RACIAIS E PLANEJAMENTO
URBANO: ALGUMAS CONSIDERAÇÕES
Race relations and Urban Planning: some considerations.
1. SILVA, Marcelo Martins da
1.Mestrando Universidade Federal do ABC – UFABC, E-mail: [email protected]
RESUMO
122
8
1
ABSTRACT
Problemas urbanos e raciais no Brasil
têm sido estudados com profundidade
separadamente, porém, o nexo entre
ambos os processos sociais pouco tem
sido objeto de estudo, exceto no que tange
a segregação residencial entre negros e
brancos, provavelmente, seu principal
corolário. Não obstante, investigar a
gênese destes processos é fundamental
para compreendê-los, ou pelo menos,
ter indicações de possíveis tendências.
Este trabalho busca, apoiado em uma
literatura que trata do planejamento
urbano e das relações raciais, além de
dados demográ icos do IBGE, apontar
algumas especi icidades sócio-históricas e
socioespaciais que geraram o atual espaço
urbano brasileiro, do ponto de vista das
interações raciais no espaço, utilizando
como exemplo o caso da distribuição
espacial da população negra na região do
Grande ABC.
Urban and racial problems in Brazil have
been studied with shallow depth separately,
however, the connection between both
social processes have been little studied,
except with respect to residential
segregation between blacks and whites, its
main corollary. Nevertheless, to investigate
the genesis of these processes is essential to
understand them, or at least have indications
of possible trends. This work intends, based
on literature dealing with urban planning
and race relations, and statistical data of
IBGE, point out some socio-historical and
socio-spatial speciϔicities that generated
the current Brazilian urban space, from the
standpoint of racial interactions in space
using the example of the spatial distribution
of black people in the Great ABC.
PALAVRAS-CHAVE
Planejamento Urbano; Relações Raciais;
Região do Grande ABC.
KEY-WORDS
Urban Planning; Race Relations; Great ABC
Region.
Introdução
Os impasses para a superação das mazelas urbanas e raciais no Brasil, bem
como estas mesmas, são oriundos de uma determinada formação social que resultou
em um tipo específico de urbanização e industrialização (no que diz respeito aos
países do capitalismo periférico) baseada em baixos salários1 e na posse da terra
(apropriação privada e excludente), e que determinou muito o ambiente a ser construído
nas metrópoles, isto é, uma máquina de produzir favelas e agredir o meio ambiente.
Este ambiente construído reflete as relações e contradições sociais da sociedade
que o construiu sendo, “... impossível pensar que uma sociedade como a nossa,
radicalmente desigual e autoritária, baseada em relações de privilégio e arbitrariedade,
possa produzir cidades que não tenha estas características”. (MARICATO, 2011a,
p.51).
Esta sociedade e suas especificidades foram estudadas e interpretadas por
autores que viriam a ser parte das matrizes teóricas do pensamento e ação crítica
no planejamento urbano e das análises das relações raciais no Brasil. Este trabalho
busca: a) analisar de forma breve e a partir de alguns autores, o fio condutor societário
característico do Brasil que orientou o desenvolvimento, tanto do planejamento urbano
(urbanismo), quanto das relações raciais; e b) explicitar, ainda que parcialmente, a
relação entre espaço urbano e população negra na região do ABC. Argumentamos
que a questão racial, central na formação social brasileira, tem uma correlação direta,
ainda que latente, com as práticas de planejamento urbano e seus corolários, sendo
a favela a mais significativa expressão desta correlação.
Alguns aspectos metodológicos são importantes de serem esclarecidos nesta
introdução. Qualquer que seja a política adotada para combater desigualdades,
quando se trata da população negra, o elemento “racismo” influi na análise. Dadas
às peculiaridades da formação socioeconômica brasileira e das relações raciais
paradoxais desenvolvidas no Brasil denominadas por alguns autores de “racismo
à brasileira” (TELLES, 2004; DAMATTA, 1984; SILVA, 2009), o racismo e seus
corolários não são auto-evidentes. Faz-se necessário um estudo sistemático das
várias dimensões do racismo para combatê-lo. Para tanto a classificação racial e a
adoção de uma ideologia racialista que reconheça a “raça” como categoria social e
de análise definidora de uma sociabilidade empírica que impacta de maneira positiva
ou negativa as pessoas dependendo de sua posição econômica, no território, o status
atribuído e etc. (GUIMARÃES, 2009, p.11), é fundamental, com todos os problemas e
críticas devidas que as acompanham.
Portanto, o conceito de “raça” neste trabalho será utilizado conforme a definição
elaborada por Guimarães que entende raças como: “... construtos sociais, formas de
identidade baseadas em uma ideia biológica errônea, mas socialmente eficaz para
construir, manter e reproduzir diferenças e privilégios.” (ibidem, p.67). Sem considerar
a existência das raças no sentido apresentado fica impossível detectar os problemas
advindos do racismo.
Este trabalho está estruturado em cinco seções além desta introdução. A
primeira discorre de forma breve e sintética sobre conceitos importantes de alguns
1. A industrialização com baixos salários tinha como corolário o consumo da mercadoria habitação fora do mercado
marcado pelas relações capitalistas de produção, já que a maior parte dos trabalhadores não ganha o su iciente para
pagar o preço da moradia ixa pelo chamado mercado formal (MARICATO, 2012, p.155).
123
autores (dentre vários) que se esforçaram para conseguir apontar a especificidade
da formação social brasileira na sua concretude, utilizando conceitos e categorias
de análises oriundas ou não da tradição marxista, porém realizando as devidas e
necessárias mediações com o desenvolvimento e especificidade histórica brasileira.
A segunda analisa e correlaciona aspectos paralelos e convergentes do planejamento
urbano e das relações raciais como corolários das caracteristicas percebidas pelos
autores supracitados. A terceira busca compreender o resultado deste encontro
materializado na precariedade das sub-habitações e dos sublugares: favelas, malocas,
cortiços, palafitas e etc., sendo a população negra maioria nestes lugares. Na quarta
serão apresentados alguns dados da relação habitação/localização/população negra
na região do Grande ABC, utilizando como fonte de dados o Censo Demográfico do
IBGE (Resultados do Universo). Por fim, na última seção, serão explicitadas algumas
breves considerações e possíveis conclusões.
O pensamento social crítico brasileiro
O pensamento social crítico brasileiro que embasou a produção acadêmica
na área de planejamento urbano, em especial àquela que visava compreender a
especificidade da cidade periférica ou ainda o desenvolvimento urbano na periferia
do capitalismo, se pautou, principalmente, por duas vertentes analíticas: o marxismo
de inspiração francesa (escola francesa de sociologia urbana2) e pelos autores que
pensaram a sociedade brasileira (MARICATO, 2011b, p.12). A primeira vertente
buscava compreender a lógica de acumulação capitalista na sua relação com o
urbano para desnudar os processos de segregação socioespacial condicionados por
tal lógica (SOUZA, 2005, p.62). A segunda – e é desta que iremos nos ocupar –
buscou compreender a especificidade da formação social brasileira que balizou, e
continua sendo característico, dos processos sociais do Brasil republicano.
Caio Prado Júnior (2011), no livro “Formação do Brasil Contemporâneo”,
ocupava-se dos processos que condicionaram a transição colônia-república, ou seja,
preocupava-se com aquilo que, presente no Brasil colônia e na fase de transição do
Brasil império, caracterizava o Brasil república. O período de análise privilegiado pelo
autor, inicio do século XIX, foi decisivo para interpretar o processo histórico posterior
que viria resultar no que é o Brasil hoje, já que não houve rupturas significativas do
ponto de vista político, econômico e social. (ibidem, pp. 9-10).
Para o autor, a colonização brasileira foi parte de uma vasta empresa
comercial inserida no âmbito da acumulação de capital na Europa cujo único objetivo
era fornecer produtos primários de alto valor para o mercado externo. A sociedade
original que emergiu deste processo, baseada na produção agrícola e mineradora que
recrutava compulsoriamente trabalhadores negros africanos e indígenas do próprio
continente, caracterizava-se pela efemeridade dos ciclos econômicos aproveitando
conjunturas positivas sem constituir uma base econômica sólida para a satisfação
das necessidades materiais da população que nele habita (ibidem, p.75). Este
oportunismo produtivo que demandava uma exacerbada mobilidade da população
e, por isso mesmo, estruturou as desigualdades regionais, foi orientado sempre pela
2. Segundo Souza (2005) estes autores, Lefebvre, Castells, Boccara e Lojkine, dentre outros, promoveram uma verdadeira
124
reviravolta epistemológica no espaço citadino, tornando o debate francês referência obrigatória nos estudos urbanos.
e para a demanda externa e, conseqüentemente, criava um antagonismo entre o
desenvolvimento endógeno e a função exógena do sistema.
Csaba Deàk (2010), também se debruçando sobre a função exógena do
sistema colonial, entende que seu corolário principal é a sociedade de elite. Segundo
o autor, a sociedade de elite surge como expressão do modo de organização da
produção colonial, a saber, produção de excedente para o mercado externo e, mais
especificamente, para a metrópole. Deák observa que inicialmente, na economia
colonial, o excedente é constituído, ou por extração simples, ou por saque, porém,
na medida em que se complexifica e se amplia, há a necessidade de implantar um
processo de produção que demanda, inclusive, uma produção local para sobrevivência,
isto é, um pequeno mercado interno (ibidem, p.23).
A contradição é que a reprodução ampliada local e a conseqüentemente
formação de um mercado interno, principalmente do ponto de vista da produção de
mercadorias, ia de encontro com os interesses da metrópole de manter a hegemonia
sobre a produção/reprodução local, “... o principio da extração de excedente precisou
ser continuamente reimposto contra a tendência da ampliação da reprodução local
que, no entanto, é a própria fonte de ampliação do excedente retirável” (ibidem, p.26).
Tal reimposição do principio de extração, por ser antagônico aos interesses locais, se
dá na base da repressão militar ou redução da escala da produção local, ainda que
implicasse em perda de produtividade.
A sociedade de elite, portanto, é aquela que mantém o status quo da sociedade
colonial e de seu principio econômico. Uma sociedade autoritária com fortes traços
estamentais, em que é mantido a todo e qualquer custo o direito à propriedade,
inclusive na sua forma política, isto é, excluindo as classes trabalhadoras das
possíveis decisões sobre esta, retirando-lhe os direitos políticos. A sociedade de elite
difere-se da sociedade burguesa sem, no entanto, negá-la no discurso. Assume-se
um discurso liberal que esconde a dominação de classe e nega na prática, inclusive, o
mínimo de que precisa, ainda que no terreno das aparências, a sociedade burguesa,
a saber, práticas que na verdade são resquícios de uma igualdade formal (ibidem,
p.26).
No nível do discurso, Marilena Chauí (2000) aponta a existência de um
mito fundador da sociedade brasileira que resolve contradições reais por meio de
representações criadoras de uma auto-imagem positiva, ainda que se reconheçam
os problemas e que estes sejam insolúveis. É um passado glorioso fundado em uma
natureza benevolente; numa mistura de raças que criou um povo pacifico alegre,
sensual e, que mesmo nas maiores adversidades, feliz, sonhador “não desistindo
nunca”; um povo sem preconceitos e com grande contraste regional que diversifica sua
base cultural. O mito fundador é, nas palavras da autora, no seu sentido antropológico:
“... a solução imaginária para as tensões, conflitos e contradições que não encontram
caminhos para serem resolvidos no nível da realidade.” (ibidem, p.9), ou seja, atuando
fora da história, o mito se transmuta e se adapta às diversas roupagens históricas
para garantir o status quo com a mínima (ou nenhuma) tensão possível.
Portanto, a constatação de Caio Prado Júnior no tocante a formação social brasileira,
qual seja, “... incoerência e instabilidade no povoamento, pobreza e miséria na
economia; dissolução nos costumes, inércia e corrupção nos dirigentes leigos e
eclesiásticos.” (PRADO JR., 2011, p.378) é fundamental para interpretações futuras
125
sobre as especificidades e para a compreensão do legado colonial para a sociedade
brasileira contemporânea.
Clóvis Moura (1988), diferente da maioria das interpretações do Brasil (inclusive
de Caio Prado) identificava a questão racial como determinante daquilo que “é” o
Brasil, na perspectiva do negro como sujeito ativo na luta de classes e não como
mero instrumento de trabalho. Para o autor a escravidão tinha o caráter de luta de
classes e não de um choque entre padrões culturais africanos e europeus. Significa,
portanto, que a dinâmica social do escravismo era marcada pelo conflito entre classes
antagônicas, senhores e escravos, sendo que os últimos resistiram de forma ativa
à opressão e contribuíram para a destruição do sistema vigente. A noção do negro
escravizado como parte de uma classe social contradiz aquela que retira do negro
a condição de sujeito do processo histórico brasileiro, já que a escravização é uma
condição imposta.
Na perspectiva de Moura, assim como não houve uma democracia social3
fundamental, também não houve uma democracia racial, e os negros, libertos, ficaram
inertes ante aos mecanismos de seletividade estabelecidos pelas elites (ibidem,
p.9). Com o declínio da sociedade senhorial e o avanço das relações capitalistas, o
escravismo torna-se anacrônico no Brasil. A incipiente industrialização e a economia
cafeeira, ainda preponderante no final do século XIX, carecem de modernização para
qualitativamente caminhar em direção de um capitalismo autônomo. Como não houve
ruptura com a base social antiga:
Superpostas às relações de produção escravistas
implantam-se, do exterior, relações capitalistas
dependentes. O capitalismo monopolista cria um
complexo cerrado de dominação naquilo que a
economia brasileira deveria dinamizar se tivesse forças
econômicas internas capazes de efetivar uma mudança
qualitativa a fim de sair do escravismo e entrar na senda
do desenvolvimento do capitalismo autônomo. (ibidem,
p.237).
Neste sentido, a subalternização econômica fez com que não houvesse
ruptura com a estrutura escravista, mas um rearranjo interno que mantém as relações
patrimoniais racistas intactas. Era, portanto, um projeto de nação, elaborado pelas
elites que pretendia negar à grande parcela da população a condição de cidadão,
ainda que formalmente fingisse integrá-la.
Francisco de Oliveira em seus dois ensaios, “Crítica à razão dualista” de 1972
e “o ornitorrinco” de 2003, procura demonstrar os impasses do desenvolvimento
brasileiro e, no caso do segundo, a deriva de uma sociedade marcada por um lado
pela precarização, e por outro pela opulência. Confrontando tanto o pensamento
cepalino4, quanto as teorias da dependência, o autor vai pensar principalmente a
simbiose entre o arcaico e o moderno e como este último funcionaliza o atraso, criando
126
uma unidade contraditória, mas operacionalmente eficaz. Neste sentido, segundo
Francisco de Oliveira, não há antagonismo entre os pólos e sim complementaridade,
e esta se deve a estrutura social historicamente arranjada entre as elites arcaicas e
outras supostamente modernas (coronéis e empresários), que tornou harmonioso o
que deveria ser conflitante para possibilitar ruptura, a saber, a relação entre o moderno
e o arcaico. (OLIVEIRA, 2003, pp.44-45).
A desconstrução do conceito de dualidade, de que existiriam dois “Brasis”5,
leva o autor a detectar em várias dimensões da vida social brasileira este traço
característico. No trabalho, por exemplo, esta mesma estrutura social faz com que
o setor informal alimente a “superexploração” da força de trabalho assalariada,
portanto, informalidade e acumulação convergem e se dinamizam em períodos de
maior expansão da economia. O que Francisco de Oliveira pretendeu demonstrar é
o desmanche daqueles espaços sociais, que ainda resistiam como focos de projetos
e ambição de transformação, em função dos impasses estruturais da sociedade
brasileira.
As três particularidades que podem ser resgatadas dos autores, a saber,
ciclos de crescimento efêmeros, elitistas e sem substancialidade (Caio Prado Jr.);
perpetuação de uma sociedade racista e patrimonialista (Clóvis Moura); e a simbiose
“ornitorrinquica’, isto é, uma sociedade que não consegue superar as estruturas
do atraso e, por isso mesmo, não tem nem identidade e nem projeto (Francisco
de Oliveira), convergem e se alastram como uma epidemia, infectando todos os
processos sociais e alijando as possibilidades reais de desenvolvimento, seja urbano,
seja na superação das desigualdades raciais.
O legado da simbiose atraso/moderno para as relações raciais e o planejamento
urbano
Da breve exposição de uma pequena parcela daquilo que Maricato (2011b)
chamou de “interpretes da sociedade brasileira” (exceto Clóvis Moura de quem a autora
não trata), pode-se perceber a formação de um capitalismo dependente, desigual e
combinado – nos termos desenvolvidos por Trotsky e retomados por Francisco de
Oliveira – que tem na propriedade privada da terra sua principal manifestação. Decorre,
portanto, que os conflitos e a territorialização da população brasileira se dará a partir
deste traço específico. A urbanização e a industrialização no Brasil estão imbricadas
com a questão da terra e sua propriedade privada, ou seja, a urbanização brasileira
é marcada pelos privilégios de acesso a terra. Desde 1850 com a Lei de terras , o
latifúndio influi de maneira decisiva os rumos do país e a apropriação privada da terra
vai sendo recolocada e regulamentada para garantir as prerrogativas dos latifundiários,
agora renovados e atualizados para melhorar mascarar a concentração indevida de
terras. No começo do século XX já havia a tentativa de, através de decretos, resolver
os problemas de habitação, principalmente tentando criar um padrão satisfatório de
moradia sem levar em conta a realidade social. Em São Paulo, no início do século XX
ocorre, por exemplo, uma periferização, isto é:
5. Tese segundo a qual existiriam dois “Brasis” estruturalmente antagônicos, um moderno e rico e outro atrasado e
pobre. (MANTEGA, 1990
127
“... combinação do lote precário e irregular na periferia
urbana com a autoconstrução da moradia. Uma nova
alternativa de moradia popular é implementada pela
dinâmica pr6pria de produção da cidade e não pelas
propostas de regulação urbanística ou de política
habitacional, mostrando que, enquanto os projetos de
leis constituíam idéias fora do lugar, um lugar estava
sendo produzido sem que dele se ocupassem as idéias”.
(MARICATO, 2012, p.151).
A lei de terras, concomitante com a lei Eusébio de Queiroz – que proibia o
tráfico interatlântico de escravos – faziam parte de um “pacote” com a finalidade de
modernizar o Brasil sem romper com a lógica estamental e arcaica até então em voga.
Essas leis, ao mesmo tempo em que tornava mais caro o acesso e a manutenção
do escravo, já apontando para uma futura abolição, também criava uma legislação
que impedia o futuro escravo liberto, ou simplesmente negro livre, ter acesso à terra.
A estes obstáculos, somava-se a política de imigração, fruto do planejamento que
pretendia “embranquecer” a população com a falsa justificativa de suprir e qualificar
a mão-de-obra, reproduzindo a retórica eugenista européia assim como os planos
de embelezamento descritos por Flávio Villaça (1999) que privilegiavam a paisagem
urbana, sendo, pois, elitista e seletivo: apenas a classe dominante possuía e impunha
sua proposta urbana de caráter europeu.
A “europeização” e “embelezamento” no Brasil abrangiam tanto o território
quanto as pessoas; pois significava transformar a paisagem conforme os preceitos das
elites racistas ainda não preocupadas com a eficiência de um ambiente racionalizado
e voltado para a produção. Assim como neste momento histórico, o conflito advindo
do escravismo tardio era claro, isto é, a contradição senhor/escravo ainda não havia
perdido completamente seu caráter político (MOURA, 1988, p.240), na medida em
que se desenvolve, um incipiente operariado que impõe alguns limites às classes
dominantes, a estratégia de dominação deveria ser reelaborada de forma tal que
ficasse mais difícil ser caracterizada (VILLAÇA, 1999, p.199).
Com a decadência da sociedade agrária, principalmente por conta da crise
da economia cafeeira, uma nova sociedade racional e industrial urge a surgir. Sem
romper com o passado, a classe dominante passa do embelezamento para a eficiência
para o capital, isto é, para a “cidade produção” (VILLAÇA, 1999, p.193). Para tanto
era preciso negar o atraso, ainda que o absorvesse e funcionalizasse. Porém como
efetuar uma política tendo em vista o moderno sem romper com o atraso? Três
hipóteses parecem razoáveis no plano ideológico: i) importando teorias e planos
estrangeiros sem vínculos com a realidade brasileira; ii) através de uma “política do
esquecimento”, rompendo com o passado apenas do ponto de vista ideológico e; iii)
Criando elementos de integração nacional de maneira à despolitizar o debate em
torno das mazelas e conflitos sociais.
Em relação ao planejamento urbano que se desenvolve com a crise dos planos
de embelezamento, “as idéias fora do lugar” – isto é: “uma suposta regulação que se
6. A lei de terras era um obstáculo ao livre acesso da terra por parte da massa da população pobre, inclusive por parte
dos ex-escravos, daqueles que viessem ser libertados da escravidão. Em oposição à lei da colonização aprovada nos EUA
na mesma época (a reforma agrária norte-americana) em que as terras do oeste foram abertas à livre ocupação dos
128
colonos, mediante supervisão e controle do governo. (MARTINS, 1997).
quer universal, baseada em modelos exógenos e se nenhum vínculo com a realidade
é imposta a população como solução para problemas outros que não aqueles que
realmente a afligem” (MARICATO, 2012, p.122) não significa uma nova estratégia.
Ao contrário, repetem a mesma lógica de funcionar como um esquema de dominação
sem necessariamente vincularem-se às mudanças concretas. O modelo racionalistaprogressista cujo principal expoente é Le Corbusier, ditou o padrão de planejamento
urbano no começo do século e teve seu ápice com a construção de Brasília. Aos
racionalistas-progressistas se contrapunham os culturalistas, reacionários, que
propunham a volta aos valores pré-industriais. Roberto Monte-mór afirma que: “O
principal ponto em comum entre as duas correntes que se opõem, aliado à visão
de desordem e a busca do moderno, é a incapacidade de reconhecer na cidade
o espaço precípuo da luta de classes” (MONTE-MÓR, 2008, p.36). O que significa
um embate puramente conceitual e apolítico. Pensa-se em resolver os problemas
urbanos desconsiderando as forças que movem a sociedade.
Na medida em que a burguesia urbano-industrial assumia cada vez mais o
domínio da sociedade brasileira em substituição à aristocracia rural (VILLAÇA, 1999,
p.202) a cidade industrial necessita ser não só bela, mas eficiente. É neste sentido
que os planos ficam mais discursivos e menos reais porque se afastam dos interesses
imediatos e irrelevantes (do ponto de vista social e “público”, por assim dizer) das
classes dominantes. Segundo Monte-mór: “... à medida que as forças modernas
do capitalismo penetram os espaços econômicos subdesenvolvidos, vão sendo
buscadas, na experiência do mundo desenvolvido, as abordagens existentes para os
problemas errados” (MONTE-MÓR, 2008, p.34). Isto é, em países como o Brasil, a
urbanização é feita de fora para dentro, já que o que prevalece é a inserção submissa
no capital mundializado. Neste período, é o capital industrial que rege as relações
econômicas mundiais e o Brasil precisa dançar conforme a música. O urbanismo,
neste sentido, é mais um bailarino interpretando a sinfonia da ideologia dominante.
Quando transposta ao campo de análise das relações raciais, a ruptura é apenas
em parte epistêmica, já que o elemento racial, biológico e negativo – no que tange
à miscigenação – torna-se cultural e positivo, mas a ideia de “raça” não é superada.
A positividade da miscigenação é, portanto, cultural, mas não garante ao negro
o lugar de cidadão, além do que, esta positividade coaduna-se tanto ao ideal de
“embranquecimento”, agora pelo viés da mistura e não mais pela exclusão do negro e
importação do trabalhador europeu; quanto ao escamoteamento do conflito racial por
uma suposta ideia de fluidez entre as raças.
Neste sentido, as políticas do esquecimento, que negam o passado, nem tão
passado assim, cumprem a função de tornar a realidade perene, portanto, sem história
e nem devir; e redundam no esquecimento da política, ou seja, na privatização da vida,
como lembra Adauto Novaes: “... o esquecimento da coisa pública em proveito do
privado.” (NOVAES, 2006, p.15). São estas políticas que vão orientar a implementação
das “ideias fora do lugar” de que trata Ermínia Maricato, esquecem-se os processos
históricos reais que se desenvolveram no Brasil para viabilizar projetos que nada
tinham de real. Assim como nas relações raciais todo passado escravista cruel fica
esquecido ou é romantizado na tentativa de erigir o “Brasil moderno”, no planejamento
urbano as mazelas sociais historicamente construídas são desconsideradas e, quando
emergem no debate, os planos perdem importância e se transformam apenas em
discursos. A realidade local e os conflitos existentes passam a ser desconsiderados
129
em detrimento de uma planificação exógena e uma produção basicamente teórica
(MARICATO, 2012, p.173).
Já os elementos de integração nacional, dentro da estratégia funcionalista,
criam mecanismos simbólicos escamoteadores da realidade tendo em vistas um
pretenso projeto nacional. Se no planejamento urbano, a matriz modernista-funcional
e o racionalismo técnico que se pretendia universal em nome do “progresso” do povo
brasileiro, remetiam a um ambiente apolítico, autoritário e centralizado, nas relações
raciais gestava-se o conceitual teórico que redundaria no mito da democracia
racial7, fundante da moderna sociabilidade brasileira. Mesmo não citando o termo
propriamente, foi Gilberto Freyre seu principal articulador conceitual, em especial nas
obras Casa-grande & Senzala e Sobrados e Mocambos em que narra a decadência
da oligarquia nordestina e sua adaptação aos tempos mais modernos: “No contexto
da urbanização, a arquitetura colonial da casa-grande cedeu lugar aos sobrados
modernos e à falta de planejamento de políticas públicas nas cidades brasileiras,
determinando o novo lugar da população pobre, em sua maioria mestiça e negra:
as favelas, antes denominadas malocas ou mocambos.” (SANTOS, 2009, p.49). A
democracia racial serviu de bandeira dos governos autoritários como exemplo de
harmonia entre os povos fundadores em uma época de guerras étnicas pelo mundo
ao mesmo tempo em que despolitizava o debate sobre as desigualdades raciais,
subsumindo estas às desigualdades de classe.
Vimos, portanto, a importância de se pensar criticamente a realidade brasileira
como forma de se contrapor ao status quo e sua influência na análise dos processos
de planejamento urbano e das relações raciais, na próxima seção analisaremos as
convergências, rupturas e permanências destes processos com as relações raciais.
Convergências, rupturas e permanências.
Analisados em uma perspectiva não mais dual, como processos paralelos,
mas imbricados na atual configuração do espaço na sociedade brasileira, as relações
raciais e o planejamento urbano que emerge desta sociedade racista, resultam em
abissais desigualdades socioeconômicas e socioespaciais entre negros e brancos,
remetendo a população negra aos piores empregos e aos piores espaços urbanos.
Renato Emerson dos Santos buscando situar a dimensão espacial das relações raciais,
sustenta que mesmo havendo um a negação sistemática da dimensão biológica do
conceito de raça nas diferenças humanas, esta continua sendo um princípio regulador
de comportamentos e relações, produzindo desigualdades, portanto, “... reconhecer
a igualdade biológica não necessariamente impulsiona reconhecimento da igualdade
social.” (SANTOS, 2008, p.40).
Neste sentido, utilizando o conceito de colonialidade desenvolvido por outros
autores (Quijano e Grosfoguel), vai afirmar que a modernidade capitalista acontece
no mesmo tempo em que a colonialidade se impõe, isto é, um sistema de hierarquias
que vai regular as relações no capitalismo de tal forma que mantém as distinções
sociais (abstratas na forma, mas concretas na relação) operando ante uma aparente
igualdade formal. Quijano (2007, p.47) aponta que neste sistema de hierarquias,
7. A democracia racial teria como fundamento uma dialética entre senhor e escravo, braços e negros, que possibilitaria
a alteração da ordem social e a mudança de papéis, pelo menos no plano cultural (BRYM, 2009). A questão é que a
130
dialética, apenas no plano cultural, é absolutamente funcional à opressão.
“cor” é uma construção social mais antiga e mais concreta (do ponto de vista do
mundo físico) que a ideia de “raça”. A última se difunde como forma de dominação no
capitalismo e se relacionam diretamente com a divisão social do trabalho.
Ainda que haja diversas formas de hierarquias (de classe, sexual, racial,
geográfica e etc.) não há hierarquias entre hierarquias, resta então à compreensão dos
eixos e das múltiplas relações e manifestações destas hierarquias que se concretizam
em contextos diferentes. (ibidem, p.42). Isto significa que no caso especifico do Brasil
a relação classe/raça opera num contexto preciso, historicamente determinado,
cumprindo uma função hierárquica no estabelecimento de posições sociais.
Para o autor a regulação não é a mesma em todos os contextos nem obedece
a um padrão operante. Citando Grosfoguel o autor vai definir as “áreas duras” e “áreas
moles” das relações raciais. As áreas duras são aquelas em que o pertencimento
racial tem mais impacto, frequentemente mais negativo para os negros, como por
exemplo, no trabalho. Já as áreas moles são aquelas em que a cor/raça importa
menos e por isso, são mais valorizadas como no campo do lazer (música, futebol).
Afirma o autor:
“Esta coexistência de momentos e lugares onde há
posições distintas e padrões distintos de interação racial
é que permite que o mesmo indivíduo, que seleciona
narcisisticamente com base em pertencimento racial
no balcão de empregos, possa retornar para sua rua e
se encontrar com um amigo negro. A ambigüidade no
comportamento deste indivíduo revela uma construção
espacial que é resultante de um “aprendizado” social:
ainda que inconscientemente, ele “sabe” onde a raça, a
cor, o pertencimento racial é importante como critério (de
seleção) regulador das relações sociais e onde não é –
afinal, um erro no trabalho pode lhe custar seu emprego,
e um erro nas relações de amizade pode lhe custar o
reconhecimento e laços afetivos.” (ibidem, p.46).
Raça pode, para o autor, estar ou não entrelaçada com outras variáveis,
independente mesmo das relações de classe, neste sentido existem fronteiras
visíveis e invisíveis no espaço marcado pelas interações sociais que dão o tom
contextual da forma como se corporificará as relações raciais em determinado lugar.
Também aponta que há a presença marcante do passado das relações raciais no
espaço que permitem tanto a corroboração das desigualdades e das clivagens, como
uma resistência e luta antirracista. É importante, portanto, que busquemos formas
de compreender a espacialidade das relações raciais para situá-las no contexto dos
espaços e dos territórios, no caso aqui específico, a segregação socioespacial.
Sobre segregação socioespacial, analisando o caso de São Paulo, são
interessantes as observações de José Sette Whitaker Ferreira:
Se há como indica o professor Kabenguele Munanga, uma
espécie de “racismo à brasileira”, existente, porém não
confesso, é fácil supor que ele se expresse também na
configuração do espaço. Os pesquisadores Eduardo Rios
e Juliana Riani (2007), da UERJ, mostraram que em São
Paulo, no ano 2000, as áreas que concentram as camadas
mais ricas e cuja porcentagem de pobres varia (segundo
as áreas de ponderação) de 1,6% a 9,6% da população
131
são também aquelas onde a porcentagem de negros
está sempre abaixo de 13,7% dos habitantes, chegando
a 3,8% em algumas áreas. Os bairros periféricos, onde
se situa a maioria dos assentamentos precários, com
uma população de pobres que vai de 19,8% a 58,6%,
são também os bairros dos negros, que representam de
26% a 58% dos habitantes. Se considerarmos a origem
étnica e geográfica, e a segregação e o preconceito
para com a população migrante nordestina que fez a
cidade desde meados do século XX, a correlação entre
a segregação étnico-racial e a social fica ainda mais
evidente (FERREIRA, 2011, p.78).
Um dos corolários de tal exclusão social é a degradação territorial de uma
população que sobra, e por isso mesmo, se apropria como forma de sobrevivência
daquilo que sobra. Neste caso, sobram encostas de morro e áreas ambientalmente
sensíveis. Nestas áreas, transformadas em aglomerados de favelas, a violência
penaliza os jovens. Além do que todos os indicadores de qualidade de vida são mais
baixos. Essa realidade é mascarada em diversos níveis institucionais para dar lugar
uma cidade ideal, reconhecida como ideal e tratada como única. Há, portanto, um
vínculo indissociável entre o padrão de uso e ocupação do solo, caracterizado por
desigualdades socioespaciais e o desenvolvimento das relações raciais no Brasil,
caracterizadas por desigualdades socioeconômicas e socioculturais. A prevalência da
população negra em favelas segundo o IPEA (PINHEIRO, 2011) expõe esta realidade.
Trata-se de uma localidade mais precária carregada de estigmas que se torna única
opção para pessoas com baixa condição socioeconômica. Como afirmou Rolnik (2007,
p.87), “Como, no Brasil, a questão racial “não existe”, os conflitos aparecem mais
como tensões territoriais do que como tensões raciais”, e neste sentido, o estigma
recai, discursivamente sobre o lugar e não sobre as pessoas.
Do ponto de vista da ideologia da “cidade do pensamento único”, a
responsabilidade por tal degradação é a disfuncionalidade criada pelos movimentos
populares, porém, a invasão e ocupação de terras no Brasil não é fruto de movimentos
populares, é antes uma prerrogativa das elites e uma solução informal do mercado
imobiliário para as terras “fora” do lugar, isto é, fora da legislação. O crescimento da
ilegalidade encarnada nas favelas não pode, como salienta Maricato (2012), ser
remetida às lideranças populares taxadas como baderneiras e subversivas, mas fruto
de um desenvolvimento urbano seletivo e segregador, que não por acaso é funcional
ao capital. A convergência entre as relações raciais e o planejamento urbano, portanto,
remete à degradação relacional, social, urbana e ambiental; a permanência é de uma
sociedade que, mesmo quando olha pra frente, não consegue escapar do legado do
passado, porque nunca se estruturou de modo a romper de fato com este. Na próxima
seção discutiremos aquilo que entendemos ser o resultado desta convergência nas
desigualdades socioespaciais entre negros e brancos na região do ABC.
Segregação socioespacial na região do ABC
Como exemplo do acima exposto, a saber, a convergência das relações raciais com o
132
planejamento urbano e o espaço produzido/apropriado em territórios urbanos, iremos
demonstrar alguns aspectos da segregação socioespacial na região do Grande ABC
paulista. Para tanto utilizaremos dados do Censo Demográfico de 2010 do IBGE para
os chamados “aglomerados subnormais”.
A Região do Grande ABC situa-se na Região Metropolitana de São Paulo e é
composta por sete municípios: Diadema, Mauá, Ribeirão Pires, Rio Grande da Serra,
Santo André, São Bernardo do Campo e São Caetano do Sul. Segundo o sítio na
internet da Agência de desenvolvimento Econômico do Grande ABC, a região é o
berço da indústria automobilística no Brasil e o quinto mercado consumidor. Com
uma economia extremamente dinâmica, seja no setor de serviços, no comercial e,
principalmente, no setor industrial, o ABC tornou-se lugar privilegiado para análise de
processos de reestruturação produtiva e rearranjos econômicos. A região possuía,
em 2010, segundo o Censo Demográfico do IBGE, 2.551.328 habitantes em 827
Km², sendo 899.590 negros e 1.651.738 não negros. Se comparado aos resultados
nacionais, a população negra do ABC é menor que a mesma no Brasil, respectivamente
35,3 % e 50,7 % do total da população, talvez em razão da atração de imigrantes em
meados do século passado para o trabalho na indústria da região.
Quadro 1 - População relativa de negros e não negros (2000-2010) e incremento absoluto e
relativo da população negra entre 2000 e 2010 no Grande ABC
2000
Município
Diadema
Mauá
Ribeirão Pires
Rio Grande da
Serra
Santo André
São Bernardo
do Campo
São Caetano
do Sul
Total
2010
Incremento absoluto e
relativo da população
negra
Negros
Não
Negros
Negros
Não
Negros
40,9%
33,6%
28,4%
59,1%
66,4%
71,6%
50,1%
42,9%
34,9%
49,9%
57,1%
65,1%
47.358
56.503
9.840
32,5%
46,2%
33,2%
42,2%
57,8%
54,4%
45,6%
8.294
53,0%
20,3%
79,7%
27,5%
72,5%
54.198
41,1%
27,8%
72,2%
33,9%
66,1%
63.551
32,5%
10,7%
89,3%
12,7%
87,3%
3.960
26,5%
27,9%
72,1%
35,3%
64,7%
243.704
37,2%
Fonte: IBGE, Censos Demográ icos de 2000 e 2010 (Resultados Gerais da Amostra). Elaboração
própria. Nota: A categoria “não negros” abrange brancos, amarelos e indígenas, enquanto a
“negros” abrange pretos e pardos
Mesmo não sendo um percentual tão significativo quanto o nacional, observase um importante incremento na população negra no ABC no período 2000-2010,
243.704 pessoas que correspondem, em termos percentuais médios, a 37,2 %.
Incremento este que não pode ser explicado pelo crescimento vegetativo ou mesmo
por grandes migrações, mas que tem como principal fator um ambiente cultural e
institucional mais propício para a auto-afirmação racial/étnica. As políticas afirmativas
das duas últimas décadas e, com mais força na década passada, contribuíram, sem
dúvida, para algo mais próximo de uma sociedade multirracial de classes que muitos
defendem que já existe desde a abolição no país. Sem entrar neste debate, o fato é
que um melhor ambiente cultural ainda não é suficiente para mitigar significativamente
133
as desigualdades raciais. Os quadros abaixo demonstram a distribuição da população
negra tanto nos aglomerados subnormais8, quanto em regiões mais valorizadas
imobiliariamente.
Não obstante o crescimento nesta última década da população negra, esta
continua menor em relação à população não negra na região do ABC. Porém, quando
verificamos a ocorrência da população negra nos aglomerados subnormais nesta
região, constatamos sua prevalência.
Os gráficos acima demonstram que a população negra é maioria nos
aglomerados subnormais do ABC. A concentração maior da população negra nos
aglomerados subnormais, recorte territorial de características urbanísticas mais
precárias e com uma população com menor renda, denota uma pior condição
socioeconômica desta parcela da população, já que comparada à população total dos
municípios se encontra em menor número.
Conclusão
Aqueles traços históricos que caracterizam a sociedade brasileira estão, ainda
hoje, presentes. Não se trata de investigar o desenvolvimento histórico da sociedade
brasileira ou do planejamento urbano por simples “curiosidade’ histórica. Se trata, sim,
de tentar perceber aquela mesma desumanização que foi imposta aos trabalhadores
negros escravizados, aos trabalhadores negros livres com baixos salários e à grande
parcela da população negra moradora das cidades que penam no seu dia-a-dia pela falta
de condições urbanas básicas de vida (saneamento, mobilidade, trabalho, habitação e
etc.). Esta desumanização iniciada no passado embrutecia tanto os oprimidos quanto
os opressores, impedindo estes últimos de perceberem a prerrogativa ontológica do
ser social desenvolvida por Marx9 em que o livre desenvolvimento de cada um é
condição necessária para o desenvolvimento de todos e vice-versa, ou seja, a elite
brasileira não se humanizou ao ponto de – seja no planejamento urbano, nas relações
raciais ou em qualquer outro processo social – comandar um desenvolvimento ao
mesmo tempo endógeno e qualitativo.
A longa escravidão que perpassou a maior parte da história do território
brasileiro gerou uma problemática racial que, se bastante estudada nas ciências
8. O IBGE assim de iniu aglomerados subnormais para o Censo Demográ ico de 2010: “O setor especial de aglomerado
subnormal é um conjunto constituído de, no mínimo, 51 (cinqüenta e uma) unidades habitacionais (barracos, casas...)
carentes, em sua maioria de serviços públicos essenciais, ocupando ou tendo ocupado, até período recente, terreno de
propriedade alheia (pública ou particular) e estando dispostas, em geral, de forma desordenada e densa. A identi icação
dos Aglomerados Subnormais deve ser feita com base nos seguintes critérios: a) Ocupação ilegal da terra, ou seja,
construção em terrenos de propriedade alheia (pública ou particular) no momento atual ou em período recente
(obtenção do título de propriedade do terreno há dez anos ou menos); e b) Possuírem pelo menos uma das seguintes
características: urbanização fora dos padrões vigentes - re letido por vias de circulação estreitas e de alinhamento
irregular, lotes de tamanhos e formas desiguais e construções não regularizadas por órgãos públicos; e precariedade de
serviços públicos essenciais. Os Aglomerados Subnormais podem se enquadrar, observados os critérios de padrões de
urbanização e/ou de precariedade de serviços públicos essenciais, nas seguintes categorias: a) invasão; b) loteamento
irregular ou clandestino; e c) áreas invadidas e loteamentos irregulares e clandestinos regularizados em período
recente. (IBGE, 2011).
9. MARX, K.; ENGELS, F. O manifesto do partido comunista. Porto Alegre: L&PM, 2001. p.62.
134
Gráϐico 1 - População relativa (%) em aglomerados subnormais no ABC por cor ou raça (2010)
Fonte: IBGE, Censo Demográ ico de 2010 (Resultados do Universo). Elaboração própria. Notas: A
categoria “outros” abrange amarelos e indígenas, enquanto a “negros” abrange pretos e pardos.
Nos municípios de Rio Grande da Serra, Ribeirão Pires e São Caetano do Sul não foram de inidos
setores subnormais e, consequentemente, não foram veri icadas ocorrências de aglomerados
subnormais.
Gráϐico 2 - Percentual de brancos, negros e outros que residiam em aglomerados subnormais no
ABC em 2010 (em relação ao total da população de cada categoria)
Fonte: IBGE, Censo Demográ ico de 2010 (Resultados do Universo). Elaboração própria. Notas: A
categoria “outros” abrange amarelos e indígenas, enquanto a “negros” abrange pretos e pardos.
Nos municípios de Rio Grande da Serra, Ribeirão Pires e São Caetano do Sul não foram de inidos
setores subnormais e, consequentemente, não foram veri icadas ocorrências de aglomerados
subnormais.
135
sociais e na história, pouco tem sido considerada em outras áreas do conhecimento.
Na produção teórica do planejamento urbano, e principalmente nas práticas, este
tema, em geral, tem ficado à margem do debate. Desconhecer ou não considerar a
dimensão racial das mazelas urbanas brasileiras é de certa forma reproduzir “as idéias
fora do lugar”, pois aquela parcela da população mais afetada com os processos de
urbanização precária, no trabalho, na mobilidade, na habitação, no saneamento e
etc., não por acaso é negra. A discriminação e o racismo tão presentes e sutis no
urbano brasileiro, na medida em que não são devidamente reconhecidos como tal e
como tal combatidos (com políticas específicas e universais, respectivamente, ações
afirmativas no trabalho e na educação e políticas de habitação e urbanização de
favelas, por exemplo), a tendência é que a degradação urbana e o aprofundamento
das práticas discriminatórias se perpetuem.
Bibliografia
BRYM, Robert...[et al.] Sociologia: sua bússola para um novo mundo. São Paulo:
Cengage Learning, 2009.
CHAUÍ, Marilena. Brasil: mito fundador e sociedade autoritária. São Paulo: Fundação
Perseu Abramo, 2000.
DAMATTA, Roberto. “Digressão: a fábula das três raças, ou o problema do racismo
à brasileira”. In: DAMATTA, Roberto. Relativizando: uma introdução à antropologia
social. 4ª ed. Petrópolis: Vozes, 1984. pp. 58-85.
DEÁK, Csaba. “Acumulação entravada no Brasil e a crise dos anos de 1980”. In:
DEÁK, Csaba; SCHIFFER, Sueli R. (orgs.) O processo de urbanização no Brasil. 2ª
ed. São Paulo: EDUSP, 2010. pp. 19-48.
FERREIRA, João S. W. São Paulo: cidade da intolerância, ou o urbanismo “à brasileira”.
Estudos avançados, São Paulo, 2011, vol.25, n.71, pp. 73-88.
GUIMARÃES, Antonio S. A. Racismo e antirracismo no Brasil. 3ª ed. São Paulo:
Editora 34, 2009.
IBGE. Censo demográfico 2010: Aglomerados subnormais. Rio de Janeiro: IBGE,
2011.
MANTEGA, Guido. A economia política brasileira. 5ª Ed. Petrópolis: Vozes, 1990.
MARICATO, Ermínia. “As idéias fora do lugar e o lugar fora das idéias: planejamento
urbano no Brasil”. In: ARANTES, Otília; VAINER, Carlos; MARICATO, Ermínia. A
cidade do pensamento único: desmanchando consensos. 7ª Ed. Petrópolis: Vozes,
2012. pp. 121-192.
_________. Brasil, cidades: alternativas para a crise urbana. 5ª Ed. Petrópolis: Vozes,
2011a.
136
_________. O impasse da política urbana no Brasil. Petrópolis: Vozes, 2011b.
MARTINS, José de S. “A questão agrária brasileira e o papel do MST”. In: STÉDILE,
João P. (org.) A reforma agrária e a luta do MST. Petrópolis: Vozes, 1997. pp. 11-76.
MONTE-MOR, Roberto L. M. “Do urbanismo à política urbana: notas sobre a experiência
brasileira”. In COSTA, Geraldo M. & MENDONÇA, Jupira G. Planejamento urbano no
Brasil, trajetória, avanços e perspectivas. Belo Horizonte: C/ARTE, 2008. pp. 31-65.
MOURA, Clóvis. Sociologia do negro brasileiro. São Paulo: Ática, 1988.
NOVAES, Adauto. “Políticas do esquecimento”. In: NOVAES, Adauto (org.). O
esquecimento da política. Rio de Janeiro: Agir, 2007. p. 450.
OLIVEIRA, Francisco de. Crítica à razão dualista, o ornitorrinco. São Paulo: Boitempo,
2003.
PRADO JR., Caio. Formação do Brasil contemporâneo: colônia. São Paulo: Companhia
das Letras, 2011
PINHEIRO, Luana. (coord.) Retrato das desigualdades de gênero e raça. 4ª ed.
Brasília: IPEA, 2011.
QUIJANO, Aníbal. “O que é essa tal raça?” In. SANTOS, Renato E. (org.) Diversidade,
espaço e relações étnico-raciais: o negro na geografia do Brasil. Belo Horizonte:
Autêntica, 2007. pp.43-52.
ROLNIK, Raquel. “Territórios negros nas cidades brasileiras: etnicidade e cidade em
São Paulo e Rio de Janeiro”. In. SANTOS, Renato E. (org.) Diversidade, espaço e
relações étnico-raciais: o negro na geografia do Brasil. Belo Horizonte: Autêntica,
2007. pp.75-90.
SANTOS, Gevanilda. Relações raciais e desigualdade no Brasil. São Paulo: Selo
Negro, 2009.
SANTOS, Renato E. “Sobre a espacialidade das relações raciais: raça, racialidade
e racismo no espaço urbano”. In. SANTOS, Renato E. (org.) Questões urbanas e
racismo. Petrópolis: DP et alli; Brasília: ABPN, 2012. pp. 36-67.
SILVA, Martiniano J. Racismo à brasileira: raízes históricas: um novo nível de reflexão
sobre a história social do Brasil. 4ª Ed. São Paulo: Anita Garibaldi, 2009.
SOUZA, Perci C. Uma crítica francesa do espaço urbano. Ser social, Brasília, nº 17,
p. 59-12, jul./dez. 2005.
TELLES, Edward Racismo à brasileira: uma nova perspectiva sociológica. Tradução
137
Nadjeda Rodrigues Marquês, Camila Olsen. Rio de Janeiro, RJ. Relume-Dumará/
Fundação Ford, 2004.
VILLAÇA, Flávio. “Uma contribuição para a história do planejamento urbano no Brasil”.
IN: DEÁK, Csaba & SCHIFFER, Sueli R.(Orgs.) O processo de urbanização no Brasil.
São Paulo: Edusp, 2010. p. 170-243.
138
139
Agenda
Social
ELETRONIC JOURNAL
VOLUME
NÚMERO
ISSN 1981-9862
www.revistaagendasocial.com.br
AS NOVAS DINÂMICAS DE ORGANIZAÇÃO
DO TRABALHO ARTESANAL NO ATUAL
CONTEXTO ECONÔMICO BRASILEIRO.
New dynamics of handmade labour in the current brazilian
economic contex.
1. SILVA, Flávia Leão Almeida. 2. BIFANO, Amelia Carla Sobrinho
1. Bolsista FAPEMIG, Universidade Federal de Viçosa – MG/Brasil, E-mail: [email protected]; 2.
Professora Adjunta, Universidade Federal de Viçosa – MG/Brasil, E-mail: [email protected]
RESUMO
Este estudo buscou compreender as novas
dinâmicas de organização do trabalho
artesanal inseridas no contexto econômico
brasileiro
atual,
considerando
as
mudanças nas conformações desse tipo de
trabalho ao longo da história. Neste estudo,
propusemos uma análise da organização
do trabalho artesanal a partir de cinco
classi icações, a partir da adaptação
dos conceitos do SEBRAE, sendo elas:
artesãos individuais, grupos informais de
produção artesanal, núcleos de produção
artesanal familiar, empreendimentos
solidários, empresas artesanais. Pudemos
perceber que cada uma dessas formas de
organização apresenta peculiaridades,
como o envolvimento dos familiares e
interações entre os membros inseridos na
atividade, o local onde a mesma é realizada
(coincidindo ou não com o âmbito
doméstico) e o nível de “formalização”.
O aprofundamento teórico sobre o
funcionamento desses modelos permitiu o
início de um debate sobre a compreensão
das novas dinâmicas de organização
da atividade artesanal, contribuindo
futuramente para uma avaliação dos
programas e das políticas públicas que
envolvem esse tipo de trabalho.
140
PALAVRAS-CHAVE
Novas formas de organização do trabalho.
Trabalho artesanal. Informalidade.
8
1
ABSTRACT
This study sought to understand the new
dynamics of organization of craftsmanship
inserted in the current Brazilian economic
context, considering the changes in
the conformations of this type of work
throughout history. In this study, we
proposed an analysis of the organization of
craftsmanship from ϔive classiϔications, based
on the adaptation of the concepts of SEBRAE,
namely: individual artisans , informal
groups of artisanal production, family craft
production centers, solidarity enterprises
and craft enterprises. We realized that each
of these forms of organization presents
peculiarities, such as the involvement of
family members and interactions between
members inserted in the activity, the place
where it is performed (coinciding - or not
- with the domestic space) and the level of
“formalization”. The theoretical study on
the functioning of these models allowed the
start of a debate on the new understanding
of the dynamic organization of artisanal
activity, contributing to an assessment of
future programs and public policies that
involve this kind of work.
KEY-WORDS
Urban Planning; Race Relations; Great ABC
Region.
1.
INTRODUÇÃO
É difícil precisar a origem do trabalho artesanal, mas pode-se dizer que ele
sempre esteve ligado à habilidade do homem de transformar artefatos em objetos
carregados de aspectos sociais. Até a Idade Média, o trabalho artesanal foi marcado
por um tipo de produção familiar e residencial, uma vez que o local de trabalho coincidia
com o ambiente doméstico e as pessoas envolvidas na sua produção faziam parte
de um grupo que, apesar de não ser constituído apenas por membros de um mesmo
tipo sanguíneo, podia ser considerado familiar, já que dentro dele eram estabelecidas
relações de confiança, respeito e de socialização. As crianças eram enviadas por
seus pais a uma “oficina-residência”, organizada num sistema de guildas, na qual
havia basicamente três níveis hierárquicos: mestres, jornaleiros e aprendizes. O
mestre acompanhava de perto as atividades do aprendiz, mas não apenas aquelas
relacionadas à produção: ele representava também a figura paterna, se tornando
responsável pela socialização do iniciante (SENNET, 2009).
O trabalho artesanal sofreu mudanças em sua organização ao longo dos anos,
devido, principalmente, a dois grandes acontecimentos: a Revolução Industrial, ocorrida
no século XVIII, que ocasionou o deslocamento da atividade produtiva do ambiente
doméstico para um ambiente fabril/industrial, reforçando assim a divisão social do
trabalho (devido à simplificação dos processos, tornando-os, aparentemente, mais
independentes do trabalhador) e a divisão sexual do trabalho (devido ao homem “sair
de casa para trabalhar”, configurando-o como provedor da família, e à permanência da
mulher em casa, responsabilizando-a inteiramente pela organização do lar e cuidado
dos filhos); posteriormente, na década de 1970, a Revolução Tecnológica ocasionou
novas transformações no mundo do trabalho, sendo marcada pela reestruturação
produtiva e pela mudança no perfil da classe trabalhadora: houve uma redução do
proletariado fabril tradicional (devido à redução dos postos de trabalho diante da
substituição da mão-de-obra humana por mão-de-obra mecanizada) e a consequente
expansão do setor de serviços (ANTUNES, 2003; GRISCI; BESSI, 2004).
Apesar de o Brasil não ter vivenciado esses acontecimentos com a mesma
intensidade dos países europeus, as transformações ocorridas diante desses
acontecimentos históricos repercutiram no cenário econômico nacional e na forma de
organização do trabalho artesanal nesse país.
No início da nossa história, o trabalho artesanal brasileiro esteve inicialmente
associado ao trabalho escravo e indígena, sendo considerado degradante pela
sociedade em formação no período colonial. Porém, a partir dos anos 1990, diante
da intensificação das transformações no mundo do trabalho no país e de um cenário
econômico marcado pelo desemprego estrutural, ele passou a ser considerado
como possibilidade estratégica de empregabilidade e geração de renda, ganhando
a atenção de instituições governamentais e não governamentais. Desde os anos
2000, o trabalho artesanal tem sido uma atividade desenvolvida por diferentes grupos
em busca do aumento da visibilidade do pequeno trabalhador no cenário econômico
nacional por meio da efetivação de políticas públicas, entre as quais se destacam
o incentivo ao micro empreendedorismo, à agricultura familiar e às atividades não
formais baseadas em um a lógica diferente da produção capitalista, sendo estas
inseridas no setor de economia solidária.
Diante desse contexto, o objetivo desse estudo foi compreender as novas
141
dinâmicas de organização do trabalho artesanal inseridas no contexto econômico
brasileiro atual, procurando, especificamente, identificar como estariam estruturadas as
diferentes formas de organização do trabalho artesanal e comparar as especificidades
de cada uma delas.
2.
O TRABALHO ARTESANAL
O trabalho artesanal tem sido organizado de diversas formas ao longo da
história, assumindo características econômicas, sociais e políticas distintas, de
acordo com o contexto em que está inserido. Neste tópico, contextualizaremos essas
mudanças em nível global e nacional.
2.1
Contextualização global
Na Idade Média, a atividade artesanal era basicamente familiar e o local de
trabalho coincidia com o âmbito doméstico. A “oficina-residência” era organizada num
sistema de guildas1, baseadas basicamente em três níveis hierárquicos masculinos:
mestres, jornaleiros e aprendizes. O aprendiz era acompanhado de perto pelo mestre
na realização de suas atividades. Em um prazo de aproximadamente sete anos,
ele deveria apresentar o chef d’oeuvre, trabalho que demonstraria as habilidades
fundamentais absorvidas pelo aprendiz. Uma vez que obtivesse êxito, ele se tornaria
jornaleiro e trabalharia por mais cinco a dez anos, até que fosse capaz de demonstrar
que estava em condições de assumir o título de mestre. Para isso, era necessário
apresentar outro trabalho, dessa vez mais elaborado, o chef d’oeuvre élevé, por
meio do qual tinha de demonstrar competência gerencial e mostrar confiança como
futuro líder. A maior compreensão da atividade caracterizava o desenvolvimento de
capacitações e reafirmava a autoridade do mestre, cujo veredicto era definitivo e
raramente contestado (SENNET, 2009).
Com o advento da Revolução Industrial, houve um deslocamento do trabalho,
antes realizado no ambiente doméstico, para um ambiente fabril/industrial, provocando
assim mudanças tanto no sistema de produção artesanal, quanto no então universo
doméstico. Entre elas se destacam: a introdução de novas tecnologias, ligadas à
produção capitalista, que possibilitou a produção em massa facilitando a aquisição
de bens que antes seriam de difícil acesso para a “classe baixa”; a divisão social
do trabalho, por meio da qual os processos industriais simplificaram aparentemente
o trabalho operário tornando-o mais independente da habilidade do trabalhador,
ocasionando aumento do número de trabalhadores não-qualificados ou semiqualificados; a divisão sexual do trabalho, com a saída do homem da casa em
busca de sustento da família, e a mulher permanecendo no ambiente doméstico, se
responsabilizando pela organização do lar e pelo cuidado dos filhos (ALVES, 2011).
A partir da consolidação do sistema capitalista na Europa, devido à Revolução
Industrial, o trabalho passou a ser visto como o principal gerador de valor na sociedade,
sendo o único meio para obtenção de sucesso econômico, e começou a tomar forma
de emprego ou trabalho assalariado. De acordo com os estudos de Marx (1971), o
1. “Federação de o icinas autônomas, cujos proprietários (os mestres) geralmente tomavam as decisões e ixavam as
exigências de promoção das funções inferiores (jornaleiros, ajudantes temporários ou aprendizes).” (Lopez, 1971 apud
142 Sennet, 2009, p.71).
trabalho passa a ser entendido como mercadoria e o trabalhador, suprimido do seu
saber-fazer, explorado através do único valor que possuía: sua força de trabalho. O
trabalho, gradualmente, passou a ser criador de riquezas, e totalmente investido de
conotação econômica. Consequentemente, ele sofreu alterações no seu significado,
deixando de ser uma atividade de realização individual e um esforço que satisfaz,
para transformar-se em mercadoria no mercado universal criado pelo capitalismo
vigente (KRAWULSKI, 1998).
A partir dos anos 1980, os países de capitalismo avançado foram marcados
por profundas transformações no mundo do trabalho, ocorridas a partir da Revolução
Tecnológica, que compreenderam o desenvolvimento de alta tecnologia, da
automação, da robótica e da microeletrônica, cuja inserção nas fábricas ocasionou
mudanças relacionadas principalmente às relações de trabalho, entre elas a
diminuição do “proletariado industrial tradicional” e, consequentemente, aumento das
formas desregulamentadas de trabalho (ANTUNES, 2006; ANTUNES 2003; GRISCI
et al, 2004). Uma das características marcantes dessa reestruturação produtiva foi
a diminuição do proletariado industrial tradicional e, consequentemente, o aumento
de “formas desregulamentadas de trabalho, reduzindo fortemente o conjunto de
trabalhadores estáveis que se estruturavam através de empregos formais” (BIHR,
1998; BEYNON, 1998 apud ANTUNES, 2003, p. 55). A reestruturação produtiva
do trabalho, aliada à globalização e à introdução de novas tecnologias, colaborou
com o aumento do desemprego, o desaparecimento de empregos permanentes e,
consequentemente, com o aumento do número de excluídos do mercado de trabalho
(GRISCI et al, 2004).
2.2
O caso do trabalho artesanal no Brasil
Todos os acontecimentos apresentados acima repercutiram no cenário
brasileiro, a partir de 1970, com o aumento do desemprego, a degradação salarial e a
precarização do trabalho que se apresenta nas formas de trabalho informal, temporário
ou parcial, ocasionando o aumento das possibilidades de empregos sem registro
em carteira e criando assim condições de “instabilidade”, no que se refere à falta
de proteção e de cidadania plena devido à perda de direitos trabalhistas (MATSUO,
2011). Em resposta a essa situação, percebe-se uma movimentação dos indivíduos,
que tentam se reorganizar a fim de continuarem garantindo a sua renda, mesmo que
não seja no trabalho dito “formal”.
No Brasil dos anos de 1990, como consequência das transformações ocorridas
no mundo do trabalho e do esvaziamento rural e das cidades de pequeno porte, iniciouse um movimento de valorização do artesanato como forma alternativa de fixação
dos indivíduos por meio de estratégias de empregabilidade e geração de renda. A
partir de então surgiram iniciativas tanto governamentais quanto não governamentais
cujos discursos são de valorização da cultura local como forma de fortalecimento da
identidade regional, bem como a estruturação da atividade baseada na coletividade
e na participação ativa dos artesãos. Algumas iniciativas criadas nesse período têm
grande influência sobre o setor artesanal ainda hoje, dentre as quais se destacam: o
Programa Brasileiro de Artesanato (PAB) e o Programa SEBRAE de Artesanato (PSA),
em nível nacional; a EMATER-MG, a ONG Central Mãos de Minas e as Associações
de Circuitos Turísticos, em nível estadual.
143
Assim, estudos têm apontado o trabalho artesanal como uma atividade com forte
potencial econômico, cultural e social (SANTOS et al, 2010; SANTOS, 2010; VIEIRA
FILHO et al, 2006; RORIZ, 2010; MASCÊNE et al, 2010), e consequentemente
como possibilidade de contribuição para o desenvolvimento local. Por outro lado, a
partir de uma análise histórica brasileira, percebe-se a falta de estímulo à produção
artesanal no país desde o período colonial, época em que os portugueses estavam
voltados para a extração de ouro e diamantes, não demonstrando nenhum interesse
em estimular outro tipo de atividade econômica. O artesanato já era praticado pela
população indígena que aqui se encontrava, sendo considerado, portanto, “inferior”
à cultura dominante (no caso, a cultura portuguesa). Posteriormente, as atividades
artesanais passaram a ser praticadas por escravos de ganho que aprendiam ofícios
para atender às necessidades dos colonizadores, sendo vistas, então, como forma
de penitência (RUIZ, 2010).
No atual contexto econômico brasileiro, apesar dos incentivos em termos de
programas que buscam a valorização da cultura local e a geração de emprego e
renda, os artesãos têm se organizado em um mercado competitivo em busca de
lucros com base na produção em larga escala, ao mesmo tempo em que contam
com um mercado de trabalho em transformação, necessitando se reorganizarem para
que possam comercializar seus produtos, sem perder suas características peculiares.
Hirata (2001) apud Silva et al. (2010) aponta que essa realidade contribui para o
aumento de negócios informais realizados no próprio espaço doméstico, a fim de
que os trabalhadores consigam conciliar trabalho doméstico e trabalho remunerado.
Nesse cenário, a atividade artesanal pode ser interpretada erroneamente como
“refúgio dos desempregados” ao ser considerada uma possibilidade de geração de
renda momentânea (durante a espera pela entrada no setor formal, por exemplo). Isso
se deve ao fato de ela apresentar um baixo custo de investimento e uma aparente
flexibilidade tanto em questão de horários quanto de local de produção, podendo ser
então conciliada com outra fonte principal de renda.
A fim de entender como o trabalho artesanal tem se organizado no cenário
brasileiro atual, foi feito um levantamento bibliográfico referente às formas existes
de organização dessa atividade e seus resultados serão apresentados no tópico
seguinte.
3.
AS FORMAS DE ORGANIZAÇÃO DO TRABALHO ARTESANAL NO BRASIL
CONTEMPORÂNEO
A discussão teórica a respeito do trabalho artesanal é bastante complexa
visto que o termo apresenta diferentes conceituações que variam de acordo com
a perspectiva de cada autor. Ele pode ser definido pela natureza da produção (em
algumas definições o “feito à mão” é essencial, sendo considerado às vezes até como
“rudimentar”, em outras permitem o uso de equipamentos e instrumentos tecnológicos
desde que a atividade seja predominantemente manual), pelas características
(habilidade, destreza, qualidade e criatividade) inerentes a quem excuta a atividade,
pelos aspectos ambientais (a partir do momento que a escolha de matérias-primas
procede de recursos sustentáveis) e culturais (no sentido de que todo artesanato,
então, deveria expressar a cultura de onde é produzido), entre outras.
Neste estudo, o trabalho artesanal será considerado sob o ponto de vista
144
do trabalho, mais especificamente no que se refere à sua organização. Propomos,
portanto, a seguinte definição: o trabalho artesanal se refere ao processo de produção
de um determinado produto em que o(s) sujeito(s) envolvido (s) participa(m) das
etapas de produção, desde a escolha da matéria-prima até a comercialização do
produto final, em que haja conhecimento prático (expertise), o domínio, por parte
do(s) sujeito(s), englobando assim o trabalho. A partir desse conceito, buscamos
classifica-lo de acordo com as suas formas de organização. Para tanto, nos baseamos
na discussão apresentada pelo SEBRAE2 e propomos a seguinte categorização:
artesãos individuais, grupos informais de produção artesanal, núcleos de produção
artesanal familiar, empreendimentos artesanais solidários e empresas artesanais.
Cada um desses grupos será apresentado a seguir.
3.1
O artesão individual
Nessa classificação, englobamos os artesãos, artistas e trabalhadores manuais,
analisados separadamente pelo SEBRAE.
Neste estudo, entendemos por artesão todos aqueles indivíduos que participam
diretamente nas etapas de produção, independente do “nível de aprendizagem” (mestre
ou aprendiz) e do “nível de criatividade” (artista ou não). É essencial, entretanto, o
domínio das técnicas por parte do(s) sujeito(s) e o conhecimento prático (expertise).
Os artesãos individuais não necessariamente trabalham sozinhos, porém a ajuda de
outras pessoas que não estejam envolvidas na atividade não as torna necessariamente
um artesão. O artesão que trabalha em sua casa, por exemplo, concilia o local de
produção e o seu espaço doméstico podendo se deparar com situações em que a
atividade artesanal deverá ser interrompida para resolver atividades domésticas.
Geralmente, esse tipo de artesão trabalha no próprio ambiente doméstico, já
que sua produção é pequena (por ser feita por apenas uma pessoa), sendo possível
adequar os espaços.
Em relação à sua (in)formalidade, eles podem se organizar sem registros
formais3 (o que é bastante comum, principalmente no caso de aposentados ou pessoas
que possuem outros empregos), bem como se registrarem como autônomos ou como
empreendedores individuais. Esta última opção tem sido incentivada principalmente
pelo SEBRAE, por oferecer diversos tipos de benefícios, como será apresentado no
item 3.5 deste artigo. Porém, cada caso deve analisado considerando as necessidades
e especificidades de cada artesão para que se possa chegar a uma forma de registro
que melhor atenda seus objetivos. Um artesão cujo ofício não é a principal fonte
de renda muitas vezes prefere não “se formalizar” para evitar a burocracia. Outros,
porém, que têm suas atividades artesanais como principal fonte de renda, vêem a
2. O SEBRAE aborda o Artesanato a partir: das categorias dos produtos de acordo com seu processo de produção, sua
origem, uso e destino (arte popular, artesanato, trabalhos manuais, produtos alimentícios, produtos semi-industriais e
industriais, artesanato indígena, artesanato tradicional, artesanato de referência cultural, artesanato conceitual), dos
usos dos produtos artesanais (adornos e acessórios, decorativo, educativo, lúdico, religioso, utilitário), das tipologias
de acordo com as matérias-primas utilizadas (natural, processada, reciclável/reaproveitável), da organização do
trabalho (mestre artesão, artesão, aprendiz, artista, núcleo de produção familiar, grupo de produção artesanal, empresa
artesanal, associação, cooperativa).
3. Especi icamente neste trabalho, entende-se por registros formais aqueles relacionados à documentação jurídica,
como por exemplo, o cadastro nacional de pessoa jurídica (CNPJ).
145
“formalização” como um meio de expandir seu mercado consumidor uma vez que esta
possibilita a emissão de notas fiscais facilitando a comercialização para empresas,
instituições e organizações.
3.2
Grupos informais de produção artesanal
Um grupo informal de produção artesanal engloba artesãos que se amparam
em acordos informais, “como aquisição de matéria-prima e/ou de estratégias
promocionais conjuntas e produção coletiva” (MASCÊNE et al, 2010, p.18).
O termo “informal”, proposto para denominar este grupo, não está relacionado
nem ao cadastro jurídico, nem à classificação utilizada pelo IBGE (Instituto Brasileiro
de Geografia e Estatística)4 ou pela OIT (Organização Internacional do Trabalho)5. Ele
se relaciona apenas ao tipo de relação estabelecida entre os membros.
Também podem ser inseridos nesse grupo, artesãos individuais que eventualmente
se encontrem em um mesmo local para produzirem (como no caso de vizinhas que
se reúnem na casa de uma delas para bordar, ou grupos de indivíduos – geralmente,
jovens e/ou mulheres - que se reúnem para aprender um tipo de atividade artesanal
em espaço coletivo destinado à comunidade local. Em ambos os casos, o trabalho
artesanal apresenta mais um sentido de socialização do que necessariamente de
produção) ou na aquisição de matérias-primas (artesãos que utilizam a mesma
matéria-prima e realizam um pedido em quantidades maiores buscando a redução
dos preços, por exemplo), sem necessariamente participarem de uma cooperativa ou
associação.
O fato da relação entre os seus membros ser mais “informal” sugere que os
mesmos sejam mais próximos uns dos outros, priorizando a relação de confiança em
detrimento de acordos jurídicos e/ou documentos escritos.
3.3
Núcleos de Produção Artesanal Familiar
A força de trabalho do núcleo de produção familiar é composta por membros de
uma mesma família, alguns com dedicação integral e outros com dedicação parcial ou
esporádica (MASCÊNE et al, 2010). Os autores complementam que nesses casos:
A direção dos trabalhos é exercida pelo pai ou pela mãe
(dependendo do tipo de artesanato que se produza) que
organizam os trabalhos de filhos, sobrinhos e outros
parentes. Em geral não existe um sistema de pagamentos
prefixados, sendo as pessoas remuneradas de acordo
com suas necessidades e disponibilidade de um caixa
único (MASCÊNE et al, 2010, p.17).
4. “Pertencem, ao setor informal todas as unidades econômicas de propriedade de trabalhadores por conta própria
e de empregadores com até cinco empregados, moradores de áreas urbanas, sejam elas a atividade principal de seus
proprietários ou atividades secundárias” (IBGE, 2003, p.16).
5. De acordo com a classi icação da Organização Internacional do Trabalho (OIT), estão na categoria “trabalhos
informais” os autônomos, assalariados sem carteira, e as situações em que prevalece o trabalho familiar ou o domiciliar,
como nos pequenos negócios e nas pequenas empresas. Teoricamente, esses trabalhadores estariam expostos às
condições precárias de trabalho, no que se refere à falta de proteção e de cidadania plena (MATSUO, 2011), devido à
146 perda de direitos trabalhistas.
Os produtores e/ou agricultores familiares6 são bons exemplos para essa
discussão. Apesar dos núcleos familiares não estarem restritos à Zona Rural, é mais
comum encontrarmos esse tipo de conformação nesse local, principalmente devido
ao incentivo às atividades artesanais como forma de fixação da população nesse
meio e como forma alternativa de geração e complementação de renda.
Nesses núcleos, a mão-de-obra é essencialmente familiar podendo contar com
a contratação de trabalho assalariado desde que o número de membros da família
seja maior que o dos demais trabalhadores.
No que se refere à formalização de núcleos de produção familiar localizados
em área urbana, estes podem se organizar informalmente, (quando não há nenhum
tipo de registro jurídico) ou formalmente, podendo estar registrado como Empresário
Individual, conforme será apresentado no item 3.5 deste artigo. Entretanto, mesmo
quando se configuram como empreendimentos formais, os núcleos familiares
não devem ser confundidos com empresas familiares uma vez que a lógica de
funcionamento e as relações entre os membros em cada uma delas são diferentes.
Já na área rural, os núcleos familiares são amparados pela Lei nº 11.326, de 24
de julho de 2006 que estabelece as diretrizes para a formulação da Política Nacional
da Agricultura Familiar e Empreendimentos Familiares Rurais.
No que se refere à formalização de núcleos de produção familiar localizados
em área urbana, estes podem se organizar informalmente, (quando não há nenhum
tipo de registro jurídico) ou formalmente, podendo estar registrado como Empresário
Individual, conforme será apresentado no item 3.5 deste artigo. Entretanto, mesmo
quando se configuram como empreendimentos formais, os núcleos familiares
não devem ser confundidos com empresas familiares uma vez que a lógica de
funcionamento e as relações entre os membros em cada uma delas são diferentes.
Já na área rural, os núcleos familiares são amparados pela Lei nº 11.326, de 24 de
julho de 2006 que estabelece as diretrizes para a formulação da Política Nacional da
Agricultura Familiar e Empreendimentos Familiares Rurais.
3.4
Empreendimentos Artesanais Solidários
No início dos anos 2000, ganharam destaque propostas de geração de trabalho
e renda baseadas nas discussões sobre a possibilidade de uma “outra economia”7 a
partir dos setores populares em uma economia solidária. Desde então esse setor
vem se desenvolvendo no Brasil e se constituindo como uma forte alternativa de
trabalho e renda e inclusão social. Em 2003, durante o governo Lula, as iniciativas
solidárias foram elevadas à categoria de política pública pelo Ministério do Trabalho
e Emprego, conforme Lei nº 10.683/2003. No mesmo ano, foi criada a Secretaria
6. Neste trabalho usaremos o termo “produtor artesanal” em conformidade com o Decreto nº 44.133, de 19 de outubro
de 2005 (MG de 20/10/2005), Art 4ª, Inciso VIII, que assim o de ine: “Produtor Artesanal e ou Agricultor Familiar: é a
pessoa ísica que produza e ou manipule alimentos para ins de comercialização, e que esteja iliada a cooperativa ou
associação”. Já o termo “agricultor familiar” é utilizado de acordo o Decreto nº 44.133, de 19 de outubro de 2005 (MG
de 20/10/2005), Art 4ª, Inciso IX: “Agricultor familiar – além do disposto no inciso VIII: é a pessoa ísica que se dedica
à atividade agropecuária, e que processa alimentos como forma de agregação de valor à sua produção, em consonância
com os requisitos do Programa Nacional de Agricultura Familiar – PRONAF”.
7. Para maiores informações sobre este assunto, consultar as discussões sobre economia social (SACHS, 1986),
socioeconomia (ETZIONI, 1995), economia solidária (LISBOA, 2005), economia descalça (MAX-NEEF, 1986), economia
popular solidária (RAZETO, 1997) e economia solidária (SINGER, 2002) – leituras sugeridas por FELSKI et al (2010).
147
Nacional de Economia Solidária (SENAES) e, em 2006, o Conselho Nacional de
Economia Solidária com objetivo de impulsionar o tema Economia Solidária no âmbito
das políticas públicas federais (BARBOSA, 2008; SINGER, 2012).
Estas novas formas de organização têm sido vistas como possibilidades de
promoção do desenvolvimento não apenas no âmbito econômico, mas também social,
político, cultural e ambiental (SOUZA, 2003; CUNHA, 2003), tornando-se expressivas as
iniciativas econômicas solidárias ou populares solidárias (TIRIBA et al, 2004). Embora
não se possa generalizar, elas apresentam alguns pontos básicos em comum, como:
coletividade; solidariedade; democracia inclusiva e participativa; crescimento justo e
apropriado. Os empreendimentos solidários abrangem atividades que estão fora do
assalariamento formal, principalmente as experiências populares de pequeno porte,
de caráter informal e de baixa rentabilidade como comércio ambulante, pequenas
oficinas, serviços autônomos, o artesanato, entre outros (Cunha, 2003; Barbosa,
2008). Esse debate ganha importância no setor artesanal, uma vez que os artesãos
têm se organizado de forma “informal” segundo as classificações governamentais, por
exemplo, como autônomos, como microempresários (tanto de forma individual como
pela formação de microempresas), além de se encontrarem também organizados de
forma coletiva em setores que não são considerados nem formais, nem informais,
como é o caso do setor da economia popular solidária.
Destacam neste setor, as associações e cooperativas. A principal diferença
entre as duas é que a primeira tem por finalidade a organização de pessoas com
o intuito de desenvolver atividades de cunho cultural, político, esportivo, social,
educacional, filantrópicos, ou seja, não apresenta fins econômicos; enquanto a
segunda tem como principal objetivo viabilizar o negócio produtivo, ou seja, sua
finalidade é essencialmente econômica (SEBRAE, 2009).
Propomos o termo “empreendimentos artesanais solidários” para nos
referirmos aos grupos de artesãos inseridos dentro dos setores populares da
economia solidária e que consequentemente contribuem com aspectos culturais (por
meio da comercialização de produtos característicos da região em que é produzido
e/ou comercializado), sociais (por meio do reconhecimento dos seus produtos em
nível local e, em muitos casos, regional) e/ou econômicos (por meio da geração e
complementação de renda), por meio do trabalho artesanal.
3.5
Empresas artesanais
As empresas artesanais abrangem os “núcleos de produção que evoluíram
para a forma de micro ou pequenas empresas, com personalidade jurídica, regida por
um contrato social (...). Empregam artesãos e aprendizes encarregados da produção
e remunerados” (MASCÊNE et al, 2010, p.18).
Para ter registro de empresa e se tornar um Empresário Individual8, o artesão
pode se enquadrar como Micro Empreendedor Individual (MEI), Micro Empresa (ME)
ou Empresa de Pequeno Porte (EPP).
Micro Empreendedor Individual (MEI)
Para se cadastrar como MEI, é necessário que o artesão trabalhe por conta
própria, não participe de outra empresa como sócio ou titular e tenha faturamento
8. “O empresário individual (anteriormente chamado de irma individual) é aquele que exerce em nome próprio uma
148
atividade empresarial. É a pessoa ísica (natural) titular da empresa” (PORTAL DO EMPREENDEDOR, 2013a).
anual no máximo até R$60.000,00. Ele pode ter um empregado contratado que receba
o salário mínimo ou piso da categoria.
Entre as vantagens oferecidas pela Lei Complementar nº 128, de 19/08/2008,
está o Cadastro Nacional de Pessoas Jurídicas (CNPJ), que facilita a abertura de conta
bancária, o pedido de empréstimos e a emissão de notas fiscais, além da isenção
de tributos federais (Imposto de Renda, PIS, Cofins, IPI e CSLL), devendo pagar
apenas o valor fixo mensal9 de R$34,90 (comércio ou indústria), R$38,90 (prestação
de serviços) ou R$39,90 (comércio e serviços), que será destinado à Previdência
Social e ao ICMS ou ao ISS, garantindo assim o acesso a benefícios como auxílio
maternidade, auxílio doença, aposentadoria, entre outros (Portal do Empreendedor,
2013b).
Micro Empresa (ME) e Empresa de Pequeno Porte (EPP)
O artesão empresário poderá se enquadrar como MicroEmpresa ou Empresa
de Pequeno Porte, desde que atenda aos requisitos da Lei Complementar 123, de 14
de dezembro de 2006, que apresenta a seguinte definição:
Art. 3 º Para os efeitos desta Lei Complementar,
consideram-se microempresas ou empresas de pequeno
porte a sociedade empresária, a sociedade simples,
a empresa individual de responsabilidade limitada e o
empresário a que se refere o art. 966 da Lei n º 10.406,
de 10 de janeiro de 2002 (Código Civil), devidamente
registrados no Registro de Empresas Mercantis ou no
Registro Civil de Pessoas Jurídicas, conforme o caso,
desde que:
I - no caso da microempresa, aufira, em cada anocalendário, receita bruta igual ou inferior a R$ 360.000,00
(trezentos e sessenta mil reais); e
II - no caso da empresa de pequeno porte, aufira, em cada
ano-calendário, receita bruta superior a R$ 360.000,00
(trezentos e sessenta mil reais) e igual ou inferior a R$
3.600.000,00 (três milhões e seiscentos mil reais). (Lei
complementar 123, 2006)
4.
CONSIDERAÇÕES FINAIS
Foi possível perceber que a construção social do conceito de artesanato no
Brasil carregou um fardo de preconceito, de atividade menor e, desde então, de
pouco valor social, o que repercutiu tanto no valor econômico dos produtos originários
desta forma de produção quanto no lugar social ao qual os sujeitos envolvidos eram
destinados, agravado ainda pelo modelo de desenvolvimento econômico adotado,
que privilegiava o industrial e o urbano, em detrimento do feito a mão e do rural,
símbolos de atraso e subdesenvolvimento.
Somente a partir da crise estrutural do capital é que se começou a considerar
outras possibilidades de geração de emprego e renda para a população à margem
deste dito processo de desenvolvimento. Consequentemente, as outras formas
9. Os valores ixos mensais variam de acordo com o tipo de atividade exercida. Essas informações podem ser consultadas
na tabela de ocupação da Resolução CGSN nº58, de 27 de abril de 2009, do Comitê Gestor do Simples Nacional (CGSN)
que dispõe sobre o Microempreendedor Individual – MEI no âmbito do Simples Nacional. Disponível em: <http://www.
receita.fazenda.gov.br/Legislacao/Resolucao/2009/CGSN/Resol58.htm>.
149
de organização do trabalho passaram a fazer parte das temáticas importantes de
serem discutidas, como possibilidade concreta de inclusão de uma grande parte da
população brasileira posta à margem do processo.
O entendimento de como se organizam estas formas de trabalhar são
recentes, e pudemos, a partir dos estudos bibliográficos, propor cinco classificações
que levassem em consideração a contextualização do trabalho artesanal, bem como
dos conceitos e classificações a ele relacionados, de forma a organizar um conjunto
teórico que os situassem melhor nas discussões relativas aos aspectos sociais, de
produção e de organização relacionados ao mundo do trabalho. Foi possível também
estabelecer algumas considerações a respeito do modo como cada um desses grupos
se organizam.
O artesão individual, apesar de desenvolver sozinho o seu produto, conta
com ajuda de membros externos que o auxiliam indiretamente no seu trabalho: seja
auxiliando enventualmente em alguma das etapas de produção, seja realizando
atividades (principalmente domésticas) que evitam que a atividade artesanal seja
interrompida. Esse artesão pode estar inserido no mercado tanto formal quanto
informalmente, de acordo com os seus principais objetivos e com o significado da sua
atividade para si e para os demais membros da família.
Nos trabalhos coletivos também é possível perceber diferenças. Podemos
dizer que quanto mais próximo da caracterização de empresa, mais “rígido” deve ser
o comportamento dos membros.
No grupo de produção informal, por exemplo, os artesãos estabelecem acordos
verbais, priorizando a troca de saberes, o lazer, a companhia um do outro, mais do
que a produção em si.
No núcleo familiar, mesmo que haja maior preocupação com prazos e com a
qualidade final do produto, a função de cada membro não é extremamente rígida.
Mesmo quando há definição de funções e horários entre eles, é possível fazer
alterações de acordo com as contingências do cotidiano e com as necessidades
individuais.
Nas associações e cooperativas, existem acordos jurídicos pré-estabelecidos,
criando uma relação de discricionariedade uma vez que os artesãos geralmente têm
liberdade em relação à produção, mas por outro lado devem se sujeitar às exigências
e obrigações propostas pelo Estatuto do empreendimento. Já as empresas são ainda
mais inflexíveis uma vez que são regidas por estatutos, regimentos internos e manuais
que buscam estabelecer regras de conduta tanto da gestão quanto das operações.
As empresas analisadas neste artigo, justamente por serem artesanais, podem se
diferenciar das outras no sentido de que são compostas por artesãos, que dominam
as etapas de produção e possuem expertise, o que pode conferir maior liberdade na
produção, já que os seus membros têm condições de revezar funções.
Cada uma dessas formas de organização apresenta peculiaridades, como o
envolvimento dos familiares e interações entre os membros inseridos na atividade,
o local onde a mesma é realizada (coincidindo ou não com o âmbito doméstico) e o
nível de “formalização”.
No atual cenário político e econômico onde predominam organizações cujas
conformações produtivas são baseadas no capitalismo, os artesãos buscam a melhor
forma possível de se organizarem, de acordo com suas necessidades específicas.
A classificação das formas de organização do trabalho artesanal em cinco formas
150
distintas permitiu a compreensão das peculiaridades da atividade, bem como das
estratégias elaboradas por cada um dos grupos apresentados na tentativa de
inserirem a si mesmos e os seus produtos econômica e socialmente no mercado atual.
A partir dessa discussão será possível contribuir para a avaliação dos programas e
políticas públicas que envolvem esse tipo de atividade, considerando as constantes
transformações do mundo do trabalho.
REFENCIAL BIBLIOGRÁFICO
Antunes, Ricardo L.C. O caráter polissêmico e multifacetado do mundo do trabalho.
Revista Educação, Saúde e Trabalho, v.11, n.1, 2003, p.53-61.
ANTUNES, Ricardo L.C. Adeus ao Trabalho?: ensaio sobre as metamorfoses e a
centralidade do mundo do trabalho. São Paulo: Cortez; Campinas, SP: Editora da
Universidade Estadual de Campinas. 2006.
ALVES, Ana Elizabeth Santos. Fundamentos históricos da separação entre trabalho de
homem e trabalho de mulher: algumas notas. Revista HISTEDBR on-line [online], 41,
2011. Disponível em http://www.histedbr.fae.unicamp.br/revista/edicoes/41/art13_41.
pdf. Acesso em julho de 2013.
BARBOSA, Rosangela Nair de Carvalho. “Economia solidária: estratégias de governo
no contexto da desregulamentação social do trabalho”. In: SILVA, Maria Ozanira da
& YAZBEK Maria Carmelita (Orgs.). Políticas públicas de trabalho e renda no Brasil
contemporâneo. São Paulo: Cortez. São Luís, MA: FAPEMA, 2008.
CUNHA, Gabriela Cavalcanti. “Dimensões da luta política nas práticas de economia
solidária”. In: SOUZA, André Ricardo de; CUNHA, Gabriela Cavalcanti; DAKUZAKU,
Regina Yoneko (Orgs). Uma outra economia é possível: Paul Singer e a economia
solidária. São Paulo: Contexto. 2003.
GRISCI, Carmem Ligia Iochins; BESSI, Vânia Gisele. Modos de trabalhar e de ser na
reestruturação bancária. Sociologias, Porto Alegre. 2004.
IBGE. Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística. 2005. Economia Informal Urbana
[online]. Disponível em ibge.gov.br. Acesso em: julho de 2013.
KRAWULSKI, E. Construção da identidade profissional do psicólogo: vivendo
as metamorfoses do caminho no exercício cotidiano do trabalho. Florianópolis:
Universidade Federal de Santa Catarina, 2004. Dissertação (Doutorado em
Ergonomia).
MASCÊNE, Durcelice Cândida; TEDESCHI, Maurício. Programa Sebrae de
Artesanato. Termo de Referência. 2010. Disponível em http://www.biblioteca.sebrae.
com.br. Acesso em 2013.
MATSUO, Myrian. Desemprego e trabalho informal: desigualdades sociais. In: XI
151
CONGRESSO LUSO AFRO BRASILEIRO DE CIÊNCIAS SOCIAIS. DIVERSIDADES
E (DES)IGUALDADES. 2011. Disponível em http://www.xiconlab.eventos.dype.com.
br/resources/anais/3/1306355817_arquivo_trabalhocompletoconlabmaio2011.pdf.
Acesso em fevereiro 2012.
PORTAL do Empreendedor. O que é? Definição do que caracteriza o Empresário
Individual. 2013 a. Disponível em: http://www.portaldoempreendedor.gov.br Acesso
em: julho de 2013.
PORTAL do Empreendedor. O que é? Definição do Microempreendedor Individual.
2013 b. Disponível em: http://www.portaldoempreendedor.gov.br Acesso em: julho de
2013.
RORIZ, Priscilla Carvalho de Oliveira. O trabalho do artesão e suas interfaces culturaiseconômicas. 2010. Brasília: Universidade de Brasília. Dissertação (Pós-Graduação
em Psicologia Social, do Trabalho e das Organizações).
SANTOS, Thiago de Sousa; NASCIMENTO, João Paulo de Brito; BORGES, Guilherme
de Freitas; MORAES, Aline Freire de Oliveira; TEIXEIRA, Eliane. O Artesanato como
elemento impulsionador no Desenvolvimento Local. 2010. In: VII SEGET – SIMPÓSIO
DE EXCELÊNCIA EM GESTÃO E TECNOLOGIA.
SANTOS, Thiago de Sousa. O artesanato como elemento impulsionador no
desenvolvimento local em municípios brasileiros. 2010. In: XIX CONGRESSO DE
PÓS-GRADUAÇÃO DA UFLA.
SAVIANI, Dermeval. “Educação e Trabalho Artesanal”. In: SANTONI RUGIU, Antônio.
Nostalgia do mestre artesão. Tradução: Maria de Lourdes de Menon. – Campinas,
SP: Autores Associados. 1998.
SEBRAE. Entenda as diferenças entre associações e cooperativas. 2009. Disponível
em http://artesanatosebrae.blogspot.com.br/2009/07/entenda-as-diferencas-entreassociacoes.html. Acesso em: 10 de março de 2013.
SENNET, Richard. O artífice. Tradução de Clóvis Marques. Rio de Janeiro: Record.
2009.
SILVA, Flávia Leão Almeida; SOUZA, Cristiane Natalício de; BARTOLOMEU, Tereza
Angélica. Divisão sexual do trabalho e associação na perspectiva de artesãos do
município de Viçosa, MG. In: Revista OIKOS, v.21. 2009. p.53-73.
152
SINGER, Paul. Justificativa. In: MINISTERIO DO TRABALHO E EMPREGO. Edital de
Chamada Pública SENAES/TEM nº002/2012. Apoio ao Sistema Nacional de Comércio
Justo e Solidário por Meio do Reconhecimento de Práticas de Comércio Justo e
Solidário. 2012. Disponível em http://portal.mte.gov.br. Acessível em: setembro 2012.
SOUZA, André Ricardo de. “Economia Solidária: um movimento nascente da crise do
trabalho”. In: SOUZA, André Ricardo de; CUNHA, Gabriela Cavalcanti; DAKUZAKU,
Regina Yoneko (Orgs). Uma outra economia é possível: Paul Singer e a economia
solidária. São Paulo: Contexto. 2003.
TIRIBA, Lia; PICANÇO, Iracy. “O trabalho como princípio educativo no processo
de produção de uma “outra economia””. In: TIRIBA, Lia; PICANÇO, Iracy. (ORGs).
Trabalho e educação: arquitetos, abelhas e outros tecelões da economia popular
solidária. Aparecida, SP: Ideias & Letras. 2004.
VIEIRA FILHO, Nelson Antônio Quadros; DUARTE, Gabriela; SOUZA, Talita Rezende
de. Os impactos do turismo sobre a arte e o artesanato em Tiradentes, Minas Gerais.
IV SEMINÁRIO DE PESQUISA EM TURISMO DO MERCOSUL. 2006.
153
Agenda
Social
ELETRONIC JOURNAL
VOLUME
NÚMERO
8
1
ISSN 1981-9862
www.revistaagendasocial.com.br
TRABALHO E ECONOMIA CONTRAǧHEGEMÔNICA: A
CONTRIBUIÇÃO DO MST PARA REVOLUCIONAR AS RELAÇÕES
DE PRODUÇÃO NO CAMPO E OS NOVOS DESAFIOS
Work and economics counter-hegemonic: the contribution of mst to
revolutionize production relations in the ϔield and new challenges
1. SILVA, Flávia Leão Almeida. 2. BIFANO, Amelia Carla Sobrinho 1. MELLO, Ediméia Maria Ribeiro
de; 2. ARAÚJO, Wânia Maria; 3. SOUSA, Simone dos Santos; 4. CZYCZA, Cristiano; 5. RODRIGUES,
Antônio José Soares; 6. NASCIMENTO, Ana Isabel; 7. ROMUALDO, Sandra Marta Ferreira
1. Professora do Mestrado em Gestão Social, Educação e Desenvolvimento local no Centro Universitário
UNA. Belo Horizonte – MG/Brasil. E-mail: [email protected] 2. Professora do Mestrado em
Gestão Social, Educação e Desenvolvimento local no Centro Universitário UNA - Belo Horizonte – MG/
Brasil. E-mail: [email protected]. 3. Membro da Associação Estadual de Cooperação Agrícola no
Estado do Maranhão – AESCA – MA/Brasil, E-mail: [email protected]. 4. Membro da Cooperativa
de Produção agropecuária Vitória – COPAVI – ES/Brasil. E-mail: [email protected]. 5. Membro da
Associação de Cooperação Agricola do Estado De Ceará – ACACE – CE/Brasil. E-mail: [email protected].
br. 6. Membro do Núcleo de Extensão Sul do Piauí – PI/Brasil. E-mail: [email protected]. 7. Bolsista
de Iniciação Cientí ica do Centro Universitário UNA – MG/Brasil. E-mail: [email protected]
154
RESUMO
ABSTRACT
Este trabalho foca os assentamentos da Reforma
Agrária, geridos pelo MST. Visa ampliar o
conhecimento
das
organizações
coletivas,
orientadas por princípios de cooperação e
solidariedade, para a gestão das comunidades dos
sem terra. A estrutura institucional modelada pelo
MST prioriza relações autogestoras, democráticas e
igualitárias. A geração de excedentes e a implantação
de processos produtivos mais complexos impõem
novos desa ios, relativos à manutenção dos
princípios e valores originários e aos cuidados
com o meio ambiente, en im, para sustentar a
superioridade do político sobre o econômico,
frente às decisões comunitárias. Pergunta-se: quais
estratégias o MST adota para, frente a tais desa ios,
conservar os valores e princípios originais, assim
como, o seu compromisso com a construção
de uma sociedade sustentável? Esta re lexão
fundamenta-se na busca de referenciais teóricos
e na recuperação dos problemas levantados em
trabalhos de conclusão de curso em Administração
por alunos, membros do MST, co-autores deste
artigo.
This paper deals with the organization of settlements,
arising from agrarian reform, run by MST. It aims to
expand the knowledge of collective organizations,
under principles of cooperation and solidarity, for
the management of communities that bring together
landless and/or homelss people. In the management
of settlements, MST models an institutional structure
which prioritizes self-management, democratic and
egalitarian relationships. The increased generation
of surpluses and the implementation of more complex
processes pose new challenges to the movement,
when it comes to the maintenance of the originating
principles and values relating to collective
management, the egalitarian design and care for the
environment, in short, to sustain superiority of the
political over the economic regarding community
decisions. The question that guides this reϔlection:
which strategies does the MST adopt, facing such
challenges, in order to preserve original values and
principles, as well as its commitment to building a
sustainable society?
PALAVRAS-CHAVE
Novas formas de organização do trabalho.
Trabalho artesanal. Informalidade.
KEY-WORDS
Urban Planning; Race Relations; Great ABC
Region.
1. Introdução
Este artigo descreve o modelo adotado pelo Movimento dos Trabalhadores
Rurais Sem Terra (MST) na organização dos seus assentamentos, decorrentes
da Reforma Agrária no Brasil. Seu objetivo é contribuir para a ampliação do
conhecimento sobre uma forma de organização coletiva, baseada em princípios
de cooperação e solidariedade, para a gestão de comunidades formadas a partir
da reunião de pessoas desprovidas de terra e/ou de teto. Com o fim de orientar a
gestão dos seus assentamentos, o MST adota uma estrutura institucional fundadora
de uma organização social e política, cujas prioridades são relações autogestoras,
democráticas e igualitárias, às quais compreende-se contra-hegemônicas.
O entendimento deste conceito, parte da ideia da globalização hegemônica
neoliberal, caracterizada por um “[...] mesmo sistema de dominação e exclusão“, que faz
com que, em um processo dialético, movimentos contra-hegemônicos se apercebam
“[...] da existência de interesses comuns nas próprias diferenças [possibilitando a
convergência] em combates contra-hegemônicos consubstanciadores de projetos
sociais emancipatórios distintos, mas relacionados entre si”. (SOUZA SANTOS, 2003,
p.9).
Os princípios contemplados, nas iniciativas contra-hegemônicas, são:
igualdade, na forma de distribuição equitativa da produção e participação de
todos no processo decisório; solidariedade no usufruto, segundo as necessidades
das pessoas, e na participação do processo produtivo, segundo as capacidades
individuais; respeito à natureza, ao submeter as escalas produtivas e a tecnologia
aos imperativos ecológicos. (SOUZA SANTOS e RODRIGUES, 2002).
A luta política do MST visa, de fato, a construção de uma sociedade socialista,
ao apresentar, segundo Machado (2008), características identitárias que fazem
dos seus assentamentos “ilhas de resistência’ [ao neoliberalismo] espaços reais
de construção de novas relações sociais e de produção, mesmo sob a hegemonia
burguesa”. (MACHADO, 2008, p. 240). Isto os torna “redutos populares de contrahegemonia”, visto que, ao empunharem a bandeira da reforma agrária, seus membros
assumem a oposição à burguesia agrária, apontam...
[...] as contradições e limites do capitalismo [, sinalizam]
formas de produção anticapitalistas [e universalizam]
a luta como potencialmente pertencente a todos os
trabalhadores explorados e expropriados pelo capital. É
no marco contemporâneo dessas contradições e desafios
que se encontram os sem-terra. (idem, p. 240-241)
A evolução de vários assentamentos do MST, com o crescimento da produção,
a geração de excedentes e a implantação de processos produtivos mais complexos,
impõe novos desafios ao Movimento, com respeito à manutenção dos princípios e
valores originários, relativos à gestão coletiva, ao projeto igualitário e aos cuidados
com o meio ambiente. Enfim, que sigam considerando a superioridade do político
sobre o econômico, frente às decisões comunitárias e que os sustente enquanto
organizações contra-hegemônicas.
Este artigo introduz uma reflexão sobre a condição atual de vários assentamentos
da Reforma Agrária, geridos pelo MST, frente à inserção de sucesso no processo
155
produtivo e no mercado. Pergunta-se: quais estratégias os pensadores do MST
adotam para enfrentar os desafios postos pelo desenvolvimento dos assentamentos
a ele vinculados e para sustentar os valores e princípios originais, assim como o seu
compromisso com a construção de uma sociedade sustentável?
A sociedade sustentável, segundo Lester Brown do World Watch Institute
(1980), é aquela que supre as gerações atuais, sem prejudicar as futuras (TAUTZ
entrevista CAPRA, 2003). Contudo, esta definição não ensina o modo de alcança-la.
Segundo Capra (idem, 2003, s/p), “a questão moral está clara, mas não concordamos
com a questão operacional. Como saímos dessa alta atitude moral e chegamos ao
nível prático das políticas”?
Certamente que o consumismo, próprio ao sistema capitalista, não contribui
para o alcance desta meta, assim como, o “modus operandi” do mercado na alocação
dos recursos é contrário a soluções igualitárias. Por outro lado, os movimentos sociais,
que reforcem e reposicionem o poder local, buscam implantar alternativas econômicas
e sociais concretas “[...] emancipatórias e viáveis e que, por isso, deem conteúdo
específico às propostas por uma globalização contra-hegemônica”. (SOUZA SANTOS
e RODRIGUES, 2002, p. 23-24).
Souza Santos e Rodrigues (2002) descrevem inúmeras e diversificadas
práticas contra-hegemônicas, experimentadas no mundo todo, cujas viabilidades são
atribuídas ao fato de saberem sobreviver mesmo sob o domínio capitalista, entretanto,
preservando formas revolucionárias de conceber e organizar a vida econômica. A
observação dessas práticas amplia o espectro do possível por meio da experimentação
e da reflexão acerca de alternativas concretizadas em formas de sociedades mais
justas, que observem a ideia de Gandhi, denominada “swadeshi”:
[...] existe o suficiente para satisfazer a necessidade de
todos, mas não para satisfazer a ambição de todos, uma
alternativa ao desenvolvimento implica uma forma de ver
o mundo que privilegie a produção de bens para consumo
básico em vez da produção de novas necessidades e de
artigos para as satisfazer a troco de dinheiro. (GANDHI,
apud SOUZA SANTOS e RODRIGUES, 2002, p. 56).
A difusão das iniciativas bem-sucedidas amplia o espaço onde se realizam
formas de organização não capitalistas. (idem, 2002, p. 31). Estas alternativas
põem ênfase na escala local, onde os atores centrais do desenvolvimento são as
“comunidades organizadas que procuram seguir em frente”. O poder decisório
sustenta-se na sociedade civil e despreza formas de produção capitalistas, bem como
o controle do Estado (SOUZA SANTOS e RODRIGUES, 2002, p. 46-47).
A via do mercado não é totalmente rejeitada para o alcance de objetivos de
igualdade, liberdade e solidariedade. Souza Santos e Rodrigues (2002, p. 43) citam
Le Grand e Estrin (1989) que defendem a possibilidade de o mercado se tornar uma
forma de organização com objetivos socialistas. Certamente, os autores não se referem
ao mercado autorregulado com seu potencial de aniquilar a humanidade, por meio da
devastação da natureza e da destruição do ser humano. Mas, aquele submetido à
reforma no regime de propriedade e das instituições, que acolha a apropriação das
empresas pelos trabalhadores, transformando-as em cooperativas, sob novas formas
de coordenação, tanto entre si quanto em relação às entidades estatais.
156
As prescrições para se lidar com a crise contemporânea, que defendam
a maioria da população mundial, são conhecidas e dotadas até mesmo de certa
simplicidade. Na realidade, as dificuldades de implementação encontram-se no
caráter do homem, relacionadas a equívocos na escolha do caminho para o bem
estar. Capra (2003) propõe um esforço de eco-alfabetização, para construir novos
valores para a gestão dos recursos necessários à sobrevivência da humanidade,
compatível com a preservação da natureza, pois, como acreditava Marx, o homem e
a natureza compõem um todo indissociável.
Coraggio (1994) e Singer (1998) apresentam propostas contra-hegemônicas,
no ambiente urbano. Coraggio (1994) contempla a autoiniciativa das comunidades
e a gestão pelos governos locais das necessidades básicas da população local.
Além disso, recomenda o fortalecimento da economia popular urbana, teoricamente
compatível com a globalização do capital. Esta economia é formada por unidades
domésticas de trabalhadores em seus diversos tipos de organização, a partir da
utilização de seu fundo de trabalho para a reprodução intergeracional da vida de
seus membros – biológica e cultural – num crescente aprimoramento. (CORAGGIO,
1994, p. 237-38). Esta economia se fortaleceria sem desprezar as relações com
os outros setores componentes da sociedade (instituições privadas, organizações
não governamentais e Estado), bem como usufruiria das transferências financeiras
(subsídios, doações, etc.) do setor mais bem estruturado da economia capitalista.
Singer (1998) propõe a tomada de iniciativa pelo próprio desempregado,
cabendo ao Estado forjar um novo setor de reinserção produtiva, por meio da fundação
de cooperativas de produção e de consumo, nas quais se criariam oportunidades
de trabalho. (SINGER, 1998, p. 122-135). Esta solução não capitalista relacionase a uma economia de caráter solidário, cujo formato parte do reconhecimento de
que “a causa maior da debilidade da pequena empresa e do autônomo é o seu
isolamento... o pequeno só é pequeno porque está sozinho”. (idem, 1998, p. 125).
Os recursos potenciais para a realização deste modelo encontram-se junto à massa
de trabalhadores desempregados, onde há ampla disponibilidade de capital humano
com alto grau de diversificação. Esses trabalhadores oferecem a base gerencial e
técnica necessária às novas empresas edificadas em moldes cooperativos.
As manifestações contra-hegemônicas rurais capitaneadas pelo MST
representam a reação ao processo excludente capitalista na área rural. Este artigo
levanta as estratégias do Movimento para lidar com a evolução dos assentamentos
e com o aumento da complexidade de seus processos sociais e produtivos, sem se
afastar de seus valores e princípios originais. Para tanto, é realizada uma pesquisa
bibliográfica sobre o modo de organização recomendado pelo MST e seguido nos
assentamentos e extraída das monografias dos alunos do Curso de Administração,
membros do MST (co-autores deste artigo), os problemas que se constituem em
desafios de sua evolução, especialmente a produtiva. Este estudo demonstra que
a inevitável inserção ao mercado, dos assentamentos dotados de sustentabilidade
econômica, acontece com a fidelidade aos princípios originais, assegurada por um
processo formativo nos valores solidários e cooperativos, pela práxis da convivência
diária prévia à formação dos assentamentos e pela recitação frequente da “mística”,
que os mantém vivos assim como o respeito pelo meio ambiente.
157
2. A contribuição do MST para a organização social contra-hegemônica no
campo
O MST foi fundado no início da década de 1980, em Cascavel no Paraná, por
centenas de trabalhadores rurais, como um movimento social camponês autônomo
em prol da luta pela terra, da implementação da reforma agrária e de transformações
sociais mais abrangentes que contemplem todo o País. Seus fundadores são
posseiros, meeiros, parceiros, pequenos agricultores e atingidos pelas barragens,
trabalhadores “[...] desprovidos do seu direito de produzir alimentos [...]”. (MST, s/d,
s/p). Estes trabalhadores repudiam o projeto “modernizante” no campo, fundado
massivamente no uso de agrotóxicos, na mecanização, nos créditos rurais abundantes
para os grandes proprietários, e que fortaleçam o controle dos grandes conglomerados
agroindustriais sobre a agricultura brasileira.
Os assentamentos da reforma agrária vinculados ao MST se organizam de
modo a reverter o processo de aprofundamento da desigualdade no campo, decorrente
da forma prevalecente que orienta a expansão capitalista, (AZAR, 2005), e a buscar
uma forma de organização do processo produtivo adequada às realidades regionais.
(ELIAS, 2010). Os números do Movimento, ao final da década passada, registravam
350 mil famílias assentadas e ainda as seguintes realizações:
[...] mais de 400 associações e cooperativas que
trabalham de forma coletiva para produzir alimentos sem
transgênicos e sem agrotóxicos [,] 96 agroindústrias que
melhoram a renda e as condições do trabalho no campo
[e] oferecem alimentos de qualidade e baixo preço nas
cidades, 2 mil escolas públicas em acampamentos e
assentamentos que garantem o acesso à educação a
mais de 160 mil crianças e adolescentes Sem Terras [e]
que alfabetizaram 50 mil adultos e jovens nos últimos
anos [, a oferta de] mais de 100 cursos de graduação em
parceria com universidades por todo o Brasil (MST, s/d,
s/p).
Na organização dos seus assentamentos o MST adota o modelo cooperativo:
aquele decorrente da “[...] reação de trabalhadores assalariados, principalmente
operários industriais, à piora contínua das suas condições de existência, em contextos
de conflito político explícito com a classe capitalista, o que conferiu a estas cooperativas
nítido caráter militante”. (GERMER, 2010, p. 4). O tópico a seguir aprofundará neste
modelo.
3. Uma breve história do cooperativismo mundial e o modelo cooperativo do
MST
A origem do cooperativismo coincide com a Revolução Industrial. A estratégia
da cooperação foi adotada originalmente pela classe trabalhadora para agregar forças
em favor da superação das péssimas condições auferidas por ela na indústria. Segundo
Rios (2007), a primeira cooperativa (de consumo) foi organizada em 1844, por 28
tecelões pioneiros da cidade inglesa Rochdale. Esta iniciativa foi “[...] considerada a
fonte do cooperativismo”, (RIOS, 2007, p. 22), e sucedeu aos movimentos socialistas
158
que contribuíram para o estabelecimento dos princípios orientadores de seu formato.
Os principais foram o cartismo1 (1830/1840), responsável pelo caráter democrático da
cooperativa, e o owenismo2, pelos princípios do mutualismo cooperativista. A metade
dos fundadores da cooperativa de Rochdale teve origem no owenismo. (RIQUE, s./d.).
Os sete princípios originais que, ainda hoje, orientam o cooperativismo foram
introduzidos pela Cooperativa de Rochdalle, quais sejam: (1) governo democrático da
sociedade, sendo concedido a cada sócio o direito a um voto (herança do movimento
cartista); (2) sociedade aberta, com a participação societária condicionada somente
à integralização de uma quota de capital mínima e igual para todos (evita privilégios
para os sócios fundadores); (3) qualquer aporte incremental de capital, acima da
média, por um sócio dá direito somente a uma remuneração proporcional, calculada
com base em uma taxa de juros, sem aumentar a influência de seu proprietário no
processo decisório (fiel ao ideário owenista); (4) distribuição das sobras da receita
(deduzidas as despesas e os juros) entre os sócios, proporcional às compras feitas
na cooperativa; (5) vendas à vista (em virtude de falência anterior); (6) compromisso
de venda de produtos puros e de boa qualidade; (7) treinamento dos sócios nos
princípios do cooperativismo; e (8) neutralidade política e religiosa (evita posições
exacerbadas e contrárias dos sócios/trabalhadores com respeito a estes temas).
A evolução da pratica cooperativa culmina, em 1995, no Congresso Mundial
da Aliança Cooperativa Internacional, em Manchester, no qual se define o conceito
de cooperativa, como uma “[...] associação autônoma de pessoas que se unem,
voluntariamente, para satisfazer aspirações e necessidades econômicas, sociais e
culturais comuns a seus integrantes, e constitui-se numa empresa de propriedade
coletiva, a ser democraticamente gerida”. (OCB, 2009, p. 12).
Neste mesmo ano são definidos os valores cooperativistas, quais sejam:
ajuda mútua, democracia, igualdade, solidariedade, honestidade, transparência,
responsabilidade social e preocupação com o semelhante. Com vistas ao fortalecimento
da organização coletiva, o MST adota um modelo cooperativo próprio porque a ideia
da cooperação, que anima a organização dos assentamentos do MST, vai além do
benefício econômico que proporciona.
Cooperar é trabalhar de forma sincronizada em busca do
mesmo objetivo; sua prática, indubitavelmente, educa,
desenvolvendo nas pessoas um senso participativo,
humano e solidário [...] e se fundamenta nos valores
humanos e na dignidade pessoal; é, atualmente, meio de
adequação a um sistema econômico-social, que intenta,
na união de pessoas com objetivos semelhantes [...].
(LEOPOLDINO, 2008, p. 11).
Este cooperativismo é, em essência, um modelo de organização social, que
consiste em organizar pessoas em torno de interesses comuns, para realizarem
atividades de forma cooperada, com base na ajuda mutua, sejam elas de produção,
consumo, educação, vida doméstica etc., com vistas no desenvolvimento conjunto de
todos os atores participantes, observando os princípios democráticos.
1. Movimento social inglês da década de 30 do século XIX, que teve seu nome associado à Carta do Povo que pedia a
inclusão política da classe operária ao Parlamento.
2. Movimento socialista utópico inglês do início do século XIX baseado nas ideias de reforma social e nas práticas
ilantrópicas de Robert Owen.
159
O modelo cooperativo do MST busca ser fiel a duas questões centrais: a
promoção da consciência crítica e a resistência ao modelo capitalista. (ELIAS, 2010).
Para eleger seus princípios cooperativistas, o MST estudou experiências que se fundam
nestas premissas, tais como, o Kolkhoz soviético; a Zadruga Eslava; a Comuna Popular
Chinesa; a Ejido mexicana; as Cooperativas de Produção Agropecuárias cubanas e
o Kibutz israelense. (CONCRAB, 2001). Além destas experiências estrangeiras, o
MST se apropriou também do conhecimento gerado em experiências nos laboratórios
experimentais brasileiros, sendo que o de Clodomir Santos de Morais (1984) teve
grande influência nos estudos do Movimento. (AZAR, 2005).
O caráter político do cooperativismo defendido pelo MST o diferencia de outras
formas de organização do trabalho, cuja finalidade é enfrentar a crise no mercado
de trabalho, mas que, entretanto, mantêm prioridades tipicamente capitalistas,
relacionadas à perseguição de elevados índices de competitividade e priorizam a
maximização do lucro. Assim, a constituição de cooperativas também se presta aos
objetivos de fortalecer empreendedores de baixo poder de competição, plenamente
inseridos no modelo capitalista, para melhorar suas posições individuais no mercado,
ao realizarem conjuntamente operações específicas. Segundo Germer (2010, p. 4),
O cooperativismo formou-se a partir de duas diferentes
origens: por um lado, a partir da formação de associações
de pequenos capitalistas, que evoluiram para a forma
de cooperativas empresariais. Estas nunca foram
organizadas na esfera da produção, mas apenas para
a realização de operações complementares à produção,
principalmente na comercialização e no processamento
final de algumas matérias-primas, principalmente
agrícolas. A motivação da formação destas associações
é puramente comercial, com o objetivo de reduzir custos
individuais nas operações complementares realizadas
em grande escala.
Cerioli e Martins (1998) atestam que o MST constrói um cooperativismo novo,
de oposição, diferente e alternativo ao cooperativismo tradicional regido pela OCB.
Para Dal Chiavon (1999), a criação de um sistema cooperativista desvinculado da
OCB, permite a autonomia política dos assentados, em relação ao governo e às
grandes corporações cooperativistas.
Mas a cooperação não é só uma coalizão contrária ao
sistema. Dentro do espaço em que se realiza, é um
instrumento de enfrentamento de um modo de vida, em
que se acirram valores individuais, por meio da introdução
de novos valores e de novas relações de trabalho. Assim
como, a garantia de desenvolvimento igualitário e justo
para um coletivo de indivíduos, sujeitos deste processo.
(CZYCZA, 2011, p.14).
Na verdade, o MST adota a cooperação como a base de sustentação de
uma proposta de organização que extrapola a perspectiva econômica, alcançando
as perspectivas social e política. Cerioli e Martins (1998) destacam as diferenças
existentes entre o cooperativismo tradicional e aquele implantado pelo MST.
160
Especificamente para o MST, a produção cooperativada
é fundamental, sendo mesmo a base de sua proposta
social, econômica e política. Extrapola as dificuldades
conjunturais de desemprego para tornar-se uma das
alternativas ao processo capitalista de produção e gestão.
Neste sentido, aproxima-se das análises desenvolvidas
por Marx. Em O Capital, o autor afirma que as cooperativas
de trabalhadores seriam as primeiras formas de ruptura
com o capitalismo, pois suprime-se a oposição entre
capital e trabalho [...]. (MENEZES NETO, 2003, p. 78).
Dentre elas, as mais importantes referem-se aos seguintes aspectos: o caráter
político da sociedade em detrimento do econômico; a organização coletiva da gestão
e do trabalho; a priorização da inclusão dos associados; a restrição à entrada de
associados de grande porte; a distribuição das sobras; o incentivo ao conhecimento
dos assuntos pertinentes e participação dos associados nos processos decisórios; a
autonomia diretiva; e a descentralização administrativa de modo a funcionar de “baixo
para cima”. (CERIOLI e MARTINS, 1998, p. 57). Estas diferentes características,
entre outras, tornam o modelo MST alternativo, diferente e de oposição, em virtude
das seguintes constatações:
•
Possibilidade de organização econômica sobre outras bases e valores,
por meio da apropriação dos instrumentos de gestão pelos trabalhadores e da
construção de um mercado popular solidário, que articula campo e cidade.
•
Direção coletiva e distribuição das sobras, proporcionalmente à
participação do cooperado nas atividades.
•
Meta fundamental de resgate da dignidade dos sem-terra e do
trabalhador, frente à sociedade capitalista, excludente.
•
Conscientização de sua base para a edificação de uma sociedade
mais justa, ao demonstrar a possibilidade de novas relações sociais, baseadas no
companheirismo e na solidariedade.
Para fins de implantar seu modelo, o MST estrutura suas instituições próprias.
Os estudos realizados junto às cooperativas socialistas e os princípios de Rochdalle
fornecem o “modus operandi” para estas instituições. Assim, em 1989, surge o Sistema
Cooperativista dos Assentamentos (SCA), especializado em organizar a produção dos
assentamentos em todo o País, inicialmente para a sua autossuficiência, estimulando
e disseminando a cooperação agrícola.
Cabem, ao SCA, as seguintes responsabilidades: incentivar o desenvolvimento
tecnológico; implantar os processos de transformação industrial ou da agroindústria;
orientar a aplicação do crédito rural; assistir à comercialização. O SCA atua, também,
“na organização política dos assentamentos, na conscientização e politização da
base, [para] levar à mobilização social e articular lutas econômicas e políticas, bem
como [contribuir] com o setor de massa”. (CERIOLI e MARTINS, 1998, p. 11).
O cooperativismo estimulado pelo SCA prioriza o desenvolvimento do associado
para a intracooperação (entre os associados) e para a intercooperação (entre as
cooperativas), nas várias formas desenvolvidas por eles. As formas de cooperação
praticadas nos assentamentos do MST evoluíram de arranjos muito simples, de troca
161
de serviço entre vizinhos e parentes, para a formação de cooperativas de prestação
de serviços, ou de distribuição de linhas de crédito oficiais e de empréstimos das
poupanças geradas nos assentamentos, ou de produção, ou, ainda, de implantação
de unidades agroindustriais. (CERIOLI e MARTINS, 1998, p. 61). Os modos de
organização dos assentamentos e destas cooperativas observam os seguintes
principais aspectos:
(1) a terra é posse do coletivo e não é individualizada; (2) a
organização do trabalho se dá por setores, que fazem as
divisões de tarefas internamente no setor; (3) a moradia
das famílias é organizada em forma de agrovilas, ou seja,
as casas ficam próximas umas das outras, sem divisão
com cercas ou muros entre elas; (4) a distribuição de renda
deve ser feita da maneira mais igualitária e justa possível,
sem criar diferenças de renda entre os cooperados; (5)
todas as decisões que dizem respeito a investimentos
patrimoniais e sociais, planejamentos, mudanças, como
quaisquer outros assuntos são discutidos e decididos
pelo coletivo da cooperativa. (CZYCZA, 2011, p. 16)
Finalmente, o Sistema Cooperativista dos Assentamentos (SCA) evolui para
o Setor de Produção, Cooperação e Meio Ambiente (SPCMA) para assessorar
as famílias assentadas na organização da produção, inovando, ao incrementar
práticas comprometidas com a preservação do meio ambiente aos objetivos de
autossuficiência dos assentamentos e de resistência ao modelo capitalista. Neste ato,
o MST se compromete com a decisão de perseguir, na agricultura camponesa, além
da sustentabilidade econômica, cultural, política e social, a ambiental. (MST, s/d).
Este movimento é acompanhado de perto pela Confederação das Cooperativas de
Reforma Agrária do Brasil Ltda. (CONCRAB), fundada em 15 de agosto de 1992 pelo
MST para estreitar as relações institucionais com os assentados da reforma agrária,
posto que sua linha de atuação envolva a prestação de assessoria, assistência técnica
e acompanhamento dos processos de organização produtiva dos assentamentos,
atuando aos níveis local, regional e estadual. (VILELA, 2002, apud SOUSA, 2011).
4. Alguns problemas contemporâneos das cooperativas rurais apoiadas pelo
MST
Na introdução ao seu trabalho de conclusão de curso, Rodrigues (2011, p.
12) relata: “[...] muitos grupos se organizam porque seus componentes possuem
um alto nível de consciência, mas também é verdade que outros tantos se formam
simplesmente por influência das lideranças, sem o envolvimento verdadeiro de todos
os elementos”. Rodrigues (2011) refere-se à dificuldade de realizar plenamente nos
assentamentos o ideal cooperativista, conforme a síntese proposta pelo MST, em
virtude da falta de comprometimento de novos integrantes. O autor segue, afirmando:
162
Muito embora a organização cooperativista na
agricultura [familiar] seja considerada a “melhor forma”
para organizar a produção agrícola nas comunidades
rurais, esta convicção ainda está longe de ser a práxis
de todos os agricultores. Existe muita dificuldade de
compreenderem todos os aspectos da cooperação,
principalmente, os sociais e políticos. Neste contexto, se
a organização cooperativista se afasta dos cooperados,
ela restringe sua função a se ocupar de discussões
econômicas, deixando de contribuir para o avanço do
desenvolvimento mais amplo do modelo organizacional,
inibindo-o. (RODRIGUES, 2011, p. 12).
Com a introdução de processos agroindustriais e industriais de pequeno porte,
a cooperação nos assentamentos ganha complexidade, incrementando notavelmente
as oportunidades de divisão social do trabalho. Por outro lado, este avanço é
responsável pelo surgimento de conflitos entre prioridades políticas e econômicas na
organização social. A partir de 1989, Carvalho (1999) destaca uma ruptura do modelo
de cooperação, até então, baseado em pequenas equipes de cooperação, movidas
por objetivos diversos, alguns políticos.
Então, percebe-se um desequilíbrio na distribuição das importâncias relativas
dos temas constantes nos processos decisórios em favor dos objetivos econômicos,
submetendo a cooperativa aos mesmos problemas sofridos pelas cooperativas
tradicionais, o que dá origem a um a crise interna. Segundo Alencar, Grandi e
Andrade (2001), estes problemas relacionam-se a duas grandes áreas da gestão de
curto prazo: a operacional e a estratégica do planejamento, carentes de qualificações
profissionais específicas, que saibam preservar o lugar dos aspectos políticos da
cooperação nos processos decisórios, impedindo que as urgências econômicas os
destituam.
Apesar da natureza estrutural dos problemas
apresentados, eles também podem estar relacionados
com a tendência das cooperativas brasileiras de
enfatizarem mais a dimensão operacional do que
a dimensão estratégica do planejamento, na qual
tanto os aspectos organizacionais, financeiros, de
competitividade e a situação de integração da agricultura
aos complexos agroindustriais fossem considerados.
Para a análise de tais considerações, dois fatores podem
ser mencionados: o caráter instrumental imediatista
assumido pela cooperativa e a não profissionalização da
sua administração. (ALENCAR, GRANDI e ANDRADE et
al., 2001, p. 11).
Com o fim de enfrentar a crise de qualificação, o MST passa a oferecer, por
exemplo, os cursos de Técnico em Administração de Cooperativas (TAC), com os
objetivos de aprofundar a cooperação nos espaços de assentamentos de Reforma
Agrária e transformar os jovens assentados em gestores de cooperativas, qualificandoos política e tecnicamente e capacitando-os para intervenções bem embasadas nos
debates internos.
Por outro lado, nova inovação introduzida nos assentamentos do MST, os
processos agroindustriais, proporciona a redução da dependência dos produtos
163
alimentícios em estado primário, garantindo, por meio do processamento, o aumento
da diversidade e durabilidade, especialmente daqueles para o consumo familiar.
Esta é uma vantagem importante, mas gera o problema da comercialização. O
processamento agroindustrial, mesmo que em pequena escala, produz um excedente
que precisa ser comercializado pelo assentamento para não interromper a dinâmica
de produção, com o risco de perda de equipamentos, por desuso.
Lidar com as dificuldades da comercialização, ao recorrer ao instrumento
proporcionado pelo marketing, acessa os cooperados a recursos administrativos
próprios da economia capitalista. Assim, tal e qual em um empreendimento capitalista,
as cooperativas passam a considerar em suas análises para a comercialização do
excedente fora dos assentamentos, os conceitos típicos da gestão mercadológica,
quais sejam: potencial de mercado, pesquisa de mercado, viabilidade de mercado,
público-alvo, clientes, mudanças em preferências, tendências, metas etc. Um estudo
para uma cooperativa associada à produção agrícola em um assentamento do MST
apresenta a seguinte problemática:
[...] incapacidade de planejar a produção de forma
contínua, pouca experiência na gestão de negócio por
parte do grupo de mulheres, falta de conhecimentos
específicos para fazer a análise de viabilidade de um
produto no mercado, pouca experiência na área de
vendas, desconhecimento de pontos estratégicos para
comercialização dos produtos, ociosidade na capacidade
instalada, resultado deficitário em decorrência da
geração de receitas inferiores aos custos e às despesas.
(NASCIMENTO, 2011, p.15).
A geração de produção excedente, seja primária ou secundária, implica na
introdução da demanda por geração de valor de troca, visto que este não se destina
mais ao autoconsumo do assentamento – valor de uso –, mas sim à comercialização
no mercado externo capitalista. (MIOR, 2008).
Outro problema que aflige as cooperativas do MST, também decorrente do
aumento da complexidade estrutural delas, se encontra no estabelecimento de modelos
de remuneração dos cooperados aceitos como justos pelos seus beneficiários. Na
verdade, trata-se do estabelecimento de critérios para a distribuição das sobras
geradas pelas atividades produtivas desenvolvidas. O aumento da geração de
excedentes de produção associado à maior complexidade das funções e à demanda
por qualificações profissionais mais sofisticadas introduzem novos desafios para
assegurar a satisfação dos cooperados com os retornos advindos de seus esforços.
Por este motivo, os critérios de distribuição se alternam com o desenvolvimento
das cooperativas. Por exemplo, são adotados critérios específicos, mais ou menos
objetivos, relacionados à quantidade produzida, e/ou aos compromissos assumidos
com as cooperativas, e/ou proporcionais ao tamanho das jornadas de trabalho
e ao tempo de dedicação, e/ou referenciados na especialização e experiência do
cooperado e/ou, considerando o comprometimento deste com os princípios que
regem as cooperativas (naturismo, ecologismo e cooperativismo). (ESTIVALETE et
al., 2010; PERIUS, 2000).
164
A elevação da renda das famílias é realidade nos
assentamentos, principalmente onde as agroindústrias
estão desenvolvidas. Uma pesquisa da FAO (Organização
das Nações Unidas para Agricultura e Alimentação)
aponta que a média de renda nos assentamentos é de
3,7 salários mínimos mensais por família, e onde as
agroindústrias estão implantadas essa média sobe para
5,6 salários mensais por família. (MST, 2010, p.11).
Quando se implementa a cooperativa, a distribuição das sobras se realiza
de forma igualitária entre os produtores. Com a sua elevação acompanhada da
crescente complexidade das atividades, o MST começa a enfrentar a necessidade
de adequação do modelo de distribuição do excedente a uma condição de maior
desenvolvimento produtivo do assentamento, assim como de maior dificuldade de
satisfazer os diversos interesses e seus argumentos.
5. Considerações Finais
Schumacher, em Capra (1982, p. 183) compara dois sistemas econômicos
fundados em valores e metas diferentes: o sistema materialista ocidental mede o
“padrão de vida” com base no consumo, as sociedades buscam “alcançar o máximo
consumo associado a um padrão ótimo de produção”. Em oposição a esta ideia, o
sistema budista prioriza o modo de vida correto e o bom senso, o que leva o sistema
econômico a realizar o “máximo de bem estar humano com um padrão ótimo de
consumo”. Entretanto, fatalmente, a sociedade evolui com as mudanças ambientais,
e novos padrões culturais são introduzidos, afetando todo o processo social.
Marx atribui um papel importante à natureza no processo produtivo, enquanto
corpo inorgânico do homem. A existência humana acontece na e a partir da natureza,
portanto a natureza é seu corpo, com o qual ele deve permanecer em contínuo
intercurso se não quiser morrer. (CAPRA, 1982, p. 199).
Mas o meio ambiente reage aos excessos do capitalismo, cujas consequências
negativas atingem todos os setores da vivência humana, quais sejam: (1) desigualdade
econômica e de poder entre as classes sociais, em virtude da separação entre capital
e trabalho e da apropriação privada dos bens públicos; (2) formas de sociabilidade
empobrecidas, em virtude das relações de concorrência que inibem pactos de
solidariedade; (3) ameaça às condições físicas da terra, em virtude da exploração
crescente dos recursos naturais e do padrão de consumo crescente para sustentar o
sistema. (SOUZA SANTOS e RODRIGUES, 2002, p. 27).
Os movimentos sociais reagem aos desacertos do modelo capitalista e o MST
exemplifica, no campo, um modelo de organização social contra-hegemônico que
reproduz os princípios eleitos por Souza Santos e Rodrigues (2002) para caracterizar
estes tipos de iniciativas. Este, no Brasil, é um dos mais importantes movimentos
sociais, atuantes após a reabertura política, ocorrida na década de 1980. Conforme
demonstrado, em seus assentamentos, O MST prioriza a fidelidade à proposta original,
de se constituir enquanto um modelo de organização que submete as categorias
econômicas às políticas, no sentido de manter vivas as opções pela solidariedade,
165
cooperação, distribuição igualitária e produção ecológica.
Em suas ocupações, o MST realiza iniciativas que transformam o latifúndio
improdutivo, vazio da presença humana, em terra ocupada por pessoas que mudam
o panorama da localidade, por meio da constituição de um assentamento, cujo
caráter não é somente produtivo, e no qual se inicia uma dinâmica mobilizadora do
desenvolvimento local. Conforme estabelece o MST,
As áreas agrícolas reformadas não podem ser apenas
lugares de produção e trabalho. Assentamento é um
espaço para o conjunto de famílias camponesas viver,
morar, estudar e garantir um futuro melhor à população.
São conquistados direitos sociais que não são garantidos
a todo o povo brasileiro: trabalho, casa, escola e comida.
(MST, 2010, p.19).
Prevalece, entre muitos membros do Movimento, a ideia da comercialização
dos excedentes, também, comprometida com o modelo contra-hegemônico.
Potencialmente, o sucesso produtivo abala este modelo organizacional. A colocação
das sobras no ambiente externo ao assentamento pode implicar no estabelecimento
de relações comerciais com o mercado hegemônico, ideológica e politicamente
contrário aos princípios defendidos pelo Movimento.
Felizmente, existem possibilidades alternativas de dar destinação útil às
sobras, que evitem a submissão às leis do mercado não regulado e preservem as
características da organização contra-hegemônica, quais sejam: a colocação do
produto junto às prefeituras, às feirinhas solidárias e o estabelecimento de trocas em
rede entre organizações produtivas de mesmas características.
De qualquer forma, o MST se estrutura institucionalmente de modo a evitar na
edificação dos assentamentos que a grande preocupação com a autossustentabilidade,
afeta à seara econômica, submeta a importância da gestão política e do processo
decisório, com respeito às questões sociais. Para este fim, o Movimento realiza
práticas ritualísticas – “mística” – responsáveis por revigorar a identidade política que
mantém, em sua organização, a fidelidade aos princípios e valores originais.
A mística3 assegura a permanente recitação da ética que o torna organização
produtiva diferenciada do mercado hegemônico. Cooperação e solidariedade no
lugar da competição, valorização de todos os esforços individuais, gestão e trabalho
coletivos no lugar do individual, consumo necessário e possível no lugar do consumo
supérfluo, preservação do meio ambiente e vida saudável no lugar da devastação e
do uso desenfreado dos recursos.
Tais valores estão profundamente enraizados nas vidas dos assentados,
desde as experiências vivenciadas no período de ocupação prévia à constituição
dos assentamentos. Durante longos anos de convivência, sob condições de extrema
precariedade, mas determinados a lutar pela terra, no enfrentamento da fome, do
frio, da justiça, da polícia e dos jagunços, os sem-terra desenvolvem a pratica de
tomadas de decisão em assembleias, nas quais realizam debates e avaliações
3. Ritual que contribui para a “[...] formação da identidade política de sem-terra [...], expressão religiosa que toma
contornos políticos, chegando ao ponto de constituir-se num dos eixos que dão sustentação ao movimento na sua
trajetória. É um elemento do fazer-se classe, acontecendo como resultado das experiências, no sentir e na articulação
da identidade de seus interesses e contra outros homens cujos interesses se opõem aos seus”. (Thompson, 1987, apud
166
Vieira, 2008, p. 3).
políticas coletivas, de modo a assegurar o sucesso da ocupação. “Chegam a
viver [quatorze] anos embaixo da lona-preta e, sem dúvida alguma, é um exercício
‘pedagógico’ fundamental para a formação política de cada um. Nesse período,
crianças, adolescentes, homens, mulheres, idosos “fazem” política diuturnamente”.
(MACHADO, 2008, p.243).
Então, respondendo à questão que deu origem a este trabalho, acredita-se que
a luta por um modelo social contra-hegemônico, que privilegie condições de existência
compatíveis com a justiça social, tem no MST seu maior protagonista brasileiro. Muito
provavelmente, a inserção da produção de seus assentamentos no mercado mudará
o mercado e não o contrário. A maneira como as convicções político-ideológicas
estão arraigadas nos sem-terra conserva a autenticidade do movimento e viabiliza o
alcance das metas de construção de uma sociedade mais justa.
Referências
ALENCAR, Edgard; GRANDI, Daniela Silva; ANDRADE, Débora Mesquita. Complexos
agroindústrias, cooperativas e gestão [Online]. In: V Congresso de Ciências Humanas,
Letras e Artes. Organização, gestão e trabalho. Anais... Ouro Preto: UFMG, 2001.
Disponível: http://www.ichs.ufop.br/conifes/anais [Acesso em 1 abril 2011].
AZAR, Zaira Sabry. A organização da produção da Vila Diamante na luta pela terra no
Maranhão. 169 f. Dissertação (Mestrado em Políticas Públicas), Universidade Federal
do Maranhão, São Luís, 2005.
CAPRA, Fritjof. O ponto de mutação. São Paulo: Editora Cultrix, 1982.
CARVALHO, Horácio Martins. As contradições internas no esforço de cooperação
nos assentamentos de reforma agraria do MST. In: DAL CHIAVON, Francisco. (Org).
A evolução da concepção de cooperação agrícola do MST, Caderno de cooperação
agrícola, n. 08, São Paulo: CONCRAB, 1999. P. 27-38.
CERIOLI, Paulo; MARTINS, Adalberto (Orgs). Sistema Cooperativista dos Assentados.
Caderno de cooperação agrícola n. 5, São Paulo: CONCRAB, 1998.
CONCRAB. Caderno das Experiências Históricas da Cooperação, n. 3. São Paulo:
CONCRAB, 2001.
CORAGGIO, J. L. A construção de uma economia popular como horizonte para
cidades sem rumo. In: RIBEIRO, L. C. Q.; SANTOS, Jr. O. (Orgs.). Globalização,
fragmentação e reforma urbana: o futuro das cidades brasileiras na crise. Rio de
Janeiro: Civilização Brasileira, 1994.
CZYCZA, Cristiano. Avaliação do modelo de distribuição de renda da COPAVI.
Monografia (Graduação em Administração). Centro Universitário Metodista Izabela
Hendrix. Belo Horizonte, junho 2011.
167
DAL CHIAVON, Francisco (Org). A evolução da concepção de cooperação agrícola do
MST. Caderno de cooperação agrícola, n. 08. São Paulo: CONCRAB, 1999. P. 27-38.
ELIAS, Michely Ferreira Monteiro. A cooperação agrícola na organização política do
MST: um estudo sobre as experiências desenvolvidas no Maranhão. Simpósio Lutas
Sociais na América Latina. IV. Anais... Londrina: Grupo de estudos de politicas da
América Latina, 2010. P. 30-41. Disponível: http://www.uel.br/grupo-pesquisa/gepal
[Acesso 02 março 2011].
ESTIVALETE, Vânia de Fátima Barros et al. A gestão estratégica da remuneração:
estudo de caso de uma cooperativa. 2010. Disponível: http://www.fearp.usp.br/egna/
resumos/Estivalete.pdf [Acesso 3 novembro 2010].
FERNANDES, Bernardo Mançano. A formação do MST no Brasil. Petrópolis: Vozes,
2000.
GERMER, Claus M. A ‘economia solidária’: uma crítica com base em Marx.
2010. Disponível:
http://www.unicamp.br/cemarx/ANAIS%20IV%20COLOQUIO/
comunica%E7%F5es/GT4/gt4m2c5.PDF [Acesso 6 novembro 2010].
LEOPOLDINO, Cândida Joelma. A dupla qualidade dos cooperados: sócios e clientes
nas sociedades cooperativas. Dissertação (Mestrado em Direito), Universidade
Federal do Paraná, Curitiba, 2008. 151 f.
MACHADO, Eliel. MST e neoliberalismo: avanços, limites e contradições da luta pela
terra no Brasil. In: MAYA, Margarita López; CARRERA, Nicolás Iñigo; CALVEIRO,
Pilar (Org.). Luchas contrahegemónicas y cambios políticos recientes de América
Latina. (1a ed.). Buenos Aires: CLACSO, 2008.
MENEZES NETO, Antonio Julio de. Além da terra: cooperativismo e trabalho na
educação do MST. Rio de Janeiro: Quartet, 2003.
MIOR, Luís Carlos. Trajetórias das agroindústrias familiares rurais no estado de Santa
Catarina. 2008. Disponível: http://infoagro.net/shared/docs/a5/Trajet%C3%B3rias%20
das%20Agroind%C3%BAstrias%20Familiares%20Rurais%20-%20Brasil.
pdf
[Acesso 15 novembro 2010].
MORAIS, Clodomir Santos de. Elementos sobre a teoria da organização no campo.
Caderno de Formação, n. 11. São Paulo: MST/ Secretaria Nacional, 1986.
MST. Lutas e Conquistas. São Paulo: Secretaria Nacional do MST, 2010. Disponível
em: http://www.mst.org.br/sites/default/files/MST%20Lutas%20e%20Conquistas%20
PDF.pdf. [Acesso 24 abril 2014].
MST. Site disponível em http://www.mst.org.br/node/7702 [Acesso 29 dezembro
2012].
NASCIMENTO, A. I. Pesquisa de mercado e viabilidade de um empreendimento
168
de doces de frutas no município de São João do Piauí. Monografia (Graduação em
Administração) - Centro Universitário Metodista Izabela Hendrix. Belo Horizonte,
junho de 2011.
OCB (Organização das Cooperativas Brasileiras)/Departamento de Educação
Cooperativista. Cooperativismo Passo a Passo (8. Ed.). Goiânia: OCB, 2009.
(Apostila).
PERIUS, Vergílio. Cooperativas de Trabalho. Informativo do Cooperativismo de
trabalho no Rio Grande do Sul, n.1. 2000.
RIOS, Gilvando Sá Leitão. O que é o cooperativismo (2. Ed.). São Paulo: Brasiliense
S.A, 2007.
RIQUE, Mônica. Os Pioneiros de Rochdale e os Princípios do Cooperativismo. Portal
do Cooperativismo Popular. s/d. Disponível; http://www.cooperativismopopular.ufrj.br/
breve_hist_leia.php [Acesso 2 janeiro 2013].
RODRIGUES, A. J. S. Gestão participativa na perspectiva associativista e
cooperativista: a COPAGLAM. Monografia (Graduação em Administração) - Centro
Universitário Metodista Izabela Hendrix. Belo Horizonte, junho de 2011.
SINGER, P. Globalização e desemprego: diagnóstico e alternativas. São Paulo:
Contexto, 1998.
SOUZA SANTOS, Boaventura; RODRIGUES, César. Introdução para ampliar o
cânone da produção. In: SOUZA SANTOS, Boaventura. Produzir para viver. Rio de
Janeiro: Civilização Brasileira, 2002.
SOUZA SANTOS, Boaventura. Poderá o direito ser emancipatório? Revista Crítica de
Ciências Sociais, 65, maio, 2003. P. 3-76.
SOUSA, Simone Santos. Motivação: um estudo de caso em um assentamento da
reforma agrária. Monografia (Graduação em Administração) - Centro Universitário
Metodista Izabela Hendrix. Belo Horizonte, junho de 2011.
TAUTZ, Carlos. O ponto de mutação já passou - entrevista com Fritjof Capra, O
Pasquim/ EcoAgência. 2002. Disponível: http://www.ecoagencia.com.br/index.
php?open=noticias&id=VZlSXRVVONlYHZFWT1GeWJFbKVVVB1TP [Acesso 15
janeiro 2013].
VIEIRA, Luiz Carlos. A Mística no MST: um ritual político. XIII Encontro de História da
Anpuh-Rio. Identidade. Anais... 2008. Disponível: http://www.encontro2008.rj.anpuh.
org/resources/content/anais/1213630966_ARQUIVO_AMisticanoMST.pdf [Acesso 16
janeiro 2013].
169
Agenda
Social
ELETRONIC JOURNAL
VOLUME
NÚMERO
ISSN 1981-9862
www.revistaagendasocial.com.br
A SIGNIFICAÇÃO DA PRÁTICA DO BASQUETE PARA
CADEIRANTES
The meaning of basketball practice for people in wheelchairs.
1. BERLESE, Denise; 2 BASSO, Claudia Rafaela; 3. RENNER, Jacinta
Sidegum; 4. SANFELICE, Gustavo Roese.
1. Doutoranda do Programa de Pós-graduação em Diversidade e Inclusão – Universidade Feevale,
bolsista FAPERGS – CAPES. E-mail: [email protected]; 2. Bacharel em Design – FEEVALE.
E-mail: [email protected]; 3. Professora e Coordenadora do Programa de Pós-Graduação em
Diversidade e Inclusão na Universidade Feevale, avaliadora Ad Hoc do CYTED, E-mail: jacinta@feevale.
br; 4. Professor titular da Universidade Feevale, membro do comitê cientí ico do GT Comunicação e
Midía do Colégio Brasileiro de Ciências do Esporte desde 2003.
RESUMO
170
ABSTRACT
Esta pesquisa descritiva, com análise de dados
sob o paradigma qualitativo teve por objetivo
investigar a signi icação da prática do basquete
para cadeirantes. Participaram desse estudo
quatro praticantes de basquetebol em cadeira
de rodas. A coleta das informações foi realizada
por meio de entrevista semi-estruturada, que
utiliza para a análise dos resultados a técnica
de análise de conteúdo temática. A análise
permitiu a estruturação de quatro categorias.
Como resultados pode-se inferir que o
basquete acaba sendo um com¬plemento do
processo de reabilitação, como melhora do
condicionamento ísico motor. Em suma, o
basquete em cadeiras de rodas parece ter um
papel central na vida das pessoas.
This research is characterized as descriptive,
with data analysis under the qualitative
paradigm. The objective was focused on
investigating the signiϔicance of basketball
practice for wheelchair users. Four people with
physical disabilities participated of the group,
and all of them were practitioners of wheelchair
basketball. Data collection was conducted
through semi-structured interviews, for the
analysis of the results the technique of thematic
content analysis was used. The analysis allowed
the structuring of four categories. In short,
basketball in wheelchairs seems to have a
central role in people’s lives.
PALAVRAS-CHAVE
Cadeirantes, atividade
qualidade de vida.
KEY-WORDS
Wheelchair, physical activity sports, quality
of life.
ísico-esportiva,
8
1
INTRODUÇÃO
A Declaração Universal dos Direitos Humanos, aprovada pela ONU em
1948, afirma que os direitos humanos valem para todos. Entretanto, em virtude das
diferenças que apresentam em relação aos demais, as pessoas com deficiências
possuem necessidades específicas a serem satisfeitas. Assim, a ONU estabeleceu,
em 1975, a Declaração dos Direitos das Pessoas com Deficiências, o que se tornou
o ponto de partida para a defesa da cidadania e do bem-estar desses cidadãos.
Segundo relatório Mundial sobre Deficiência (2012), mais de um bilhão de
pessoas em todo o mundo convivem com alguma forma de deficiência, dentre os
quais cerca de 200 milhões experimentam dificuldades funcionais consideráveis.
Nos pró¬ximos anos, a deficiência será uma preocupação ainda maior porque a
incidência tem aumentado. De acordo com o IBGE – Instituto Brasileiro de Geografia
e Estatística (2010) no Brasil existem 46 milhões de brasileiros com algum tipo de
deficiência, o que significa que 24% da população brasileira apresentam alguma
deficiência física, mental ou dificuldade para enxergar, ouvir ou locomover-se. Os
dados do censo apontam ainda que 13.265.599 milhões de pessoas declararam ter
mobilidade reduzida, correspondendo a 6,95% da população brasileira, sendo que
destes, uma grande parcela é usuária de cadeiras de rodas.
Noce, Simim e Mello (2008) expõe que poucos estudos abordam o sentido e
significado da prática regular de atividades desportivas adaptadas, para indivíduos com
algum tipo de deficiência. Em termos de contextualização histórica, o esporte adaptado
surgiu no período pós-guerra como um serviço para reintegrar os mutilados e lesados
medulares com limitações e deficiência decorrentes dos combates. Nesse período,
foi de extrema importância à construção de centros de reabilitação e treinamento
vocacional em todo o mundo. Os programas de reabilitação destes diferentes centros
mostraram que os esportes auxiliavam na reabilitação dos veteranos de guerra que
adquiriram algum tipo de deficiência (ANDRADE e CASTRO, 2010).
No Brasil, a prática de atividade esportiva para pessoas com deficiência
aumentou significativamente nos últimos dez anos, impulsionada pela concepção
da inclusão social e pela maior popularidade e divulgação do desporto paraolímpico
(BOAS et al, 2003). Para MONTANDON (1992) através do esporte é possível quebrar
determinadas barreiras; proporcionar autonomia, independência e autoconfiança,
necessários para a vida em sociedade.
Considerando que cada modalidade esportiva tem um significado particular
para o praticante, há diferentes formas de compreensão que derivam da origem
cultural e das disposições dos indivíduos constituídas socialmente (BOURDIEU, 1990).
Nesse sentido, cada sujeito se apropria do esporte de acordo com sua perspectiva
e aspirações e transforma a sua prática a partir desse mesmo modelo (STIGGER;
SILVA, 2004).
Entretanto, é preciso ter claro também que o esporte se configura como um
universo único e próprio de características específicas, mas que se desmembra
em diversas formas de manifestação. Sendo assim, o esporte pode ter diversas
significações para o indivíduo, desde uma agradável atividade até um meio de vida.
As atividades esportivas, em sua essência, trabalham capacidades físicas como:
força, velocidade, resistência, habilidade, agilidade, bem como, atuam de maneira
positiva nas capacidades psíquicas. Toda prática esportiva é concebida na inter-
171
relação de um sentido (uma razão de ser, transmitindo valores) que se apresentam
num determinado ambiente social (MARQUES, 2007).
Tendo em vista a realidade da pessoa com deficiência, mais especificamente
dos Lesados Medulares que são usuários de cadeiras de rodas, a LEME - Associação
de Lesados medulares do Rio Grande do Sul, ao proporcionar o basquete em
cadeira de rodas para seus associados surge como promotora e difusora de ações
esportivas, auxiliando na reabilitação e na reinserção de sujeitos com lesão medular
na sociedade. Tendo em vista esta perspectiva, expõe-se o problema de pesquisa
que está fundamentado na seguinte questão: qual o sentido, significado da prática do
basquete para cadeirantes? Portanto, nesta perspectiva, os objetivos deste estudo
estão focados em compreender o significado da pratica do basquete para usuários de
cadeira de rodas que integram o time de basquetebol da LEME.
METODOLOGIA
Esta pesquisa caracterizou-se como um estudo de natureza descritiva, de
caráter qualitativo. Para Gonzáles (1997), o processo de investigação qualitativa é
algo dinâmico que se expressa de forma contínua, e não se esgota em nenhuma
forma de expressão. Implica que os sujeitos se relacionem neste processo dando
lugar a uma comunicação na qual podem aparecer indicadores relevantes para a
construção do conhecimento em quaisquer dos momentos concretos de investigação.
Os aspectos éticos da pesquisa relacionada a este artigo estão baseados na
resolução 466, de dezembro de 2012, do Conselho Nacional de Saúde. Esta proposta
de investigação integra uma pesquisa mais abrangente intitulada “Acessibilidade para
cadeirantes: da casa ao trabalho”, que obteve aprovação para sua execução pelo
Comitê de ética em Pesquisa da Universidade Feevale sob protocolo de número
6.12.01.10.1867.
O campo deste estudo foi a sede da LEME, localizada na cidade de Novo
Hamburgo. A respectiva associação civil tem caráter filantrópico, sem fins lucrativos,
de natureza assistencial às pessoas que foram acometidas de deficiência medular do
Estado do Rio Grande do Sul e Pessoas com Deficiência Física.
O grupo de colaboradores desta pesquisa foi integrado por quatro pessoas
com deficiência motora em membros inferiores, usuários de cadeira de rodas, todos
do sexo masculino, com idade superior a vinte anos, praticantes de basquetebol em
cadeira de rodas no time da LEME. A fim de preservar a identidade dos colaboradores
os mesmos terão um nome fictício. O principal instrumento para coleta de dados foi
uma entrevista semi-estruturada. A entrevista utilizada teve caráter focalizado com
um roteiro de tópicos relativos ao problema. Para Polit, Beck e Hungler (2004) nas
entrevistas semi-estruturadas ou enfocadas o pesquisador utiliza-se de tópicos para
que todas suas questões sejam respondidas, oportunizando ao participante liberdade
de falar sobre esses tópicos.
De acordo com Minayo (1992) durante as entrevistas o sujeito deve ter liberdade
total para abordar o assunto sob o seu ponto de vista, permitindo tanto a obtenção
de informações denominadas mais objetivas, como outras de caráter mais subjetivo,
referentes às atitudes, opiniões e valores dos indivíduos entrevistados. No processo
de produção do conhecimento, a entrevista deixa de ser uma técnica e convertese em um processo que dá sentido a unidade do todo o processo metodológico,
172
garantindo a continuidade das diferentes formas de expressão do sujeito perante
os instrumentos, dentro do qual algumas expressões adquirem sentido para a
interpretação (GONZÁLES, 1997).
Neste estudo, a análise das informações foi realizada, utilizando a técnica
de análise de conteúdo temática, proposta por Minayo (2004), que consiste em três
etapas distintas:
Pré–Análise: consiste na escolha do material analisado, realizando uma leitura
exaustiva para impregnar-se de seu conteúdo, retomando as hipóteses e
objetivos iniciais da pesquisa, no que diz respeito ao material qualitativo.
Exploração do material: consiste na transformação dos dados brutos para
a compreensão do texto, construindo índices para quantificação, classificando,
agregando e escolhendo categorias teóricas e empíricas que especificarão os temas.
Tratamento dos resultados obtidos e interpretação: os dados sofrerão operações
estatísticas simples ou complexas que permitam destacar as informações obtidas,
havendo variantes no tratamento dos resultados trabalhando com interpretação ao
invés de inferências estatísticas.
Minayo (2004) ainda afirma que fazer uma análise temática consiste em
descobrir os núcleos em uma comunicação que tenham algum significado para o
objetivo analítico visado.
O material coletado do roteiro de entrevista foi transcrito de maneira a dar
sentido à pesquisa, buscando respostas aos objetivos do estudo. Para analisar o
conteúdo das informações foi necessária a elaboração de indicadores que orientassem
a interpretação final. Este processo foi organizado no sistema de classificação de
categorias para posteriormente serem abordados e discutidos (MINAYO, 1994). Com
a análise dos resultados das entrevistas surgiram quatro categorias: identificação
com o tipo de esporte, o impacto nos aspectos físicos, impacto da prática do basquete
nos aspectos sociais, impacto do basquete na autonomia. Essas categorias serão
tratadas a seguir.
RESULTADOS E DISCUSSÃO
Apresenta-se os resultados relativos à caracterização da LEME (Associação
de Lesados Medulares - RS) tem por objetivo a promoção de ações de difusão e
desenvolvimento da assistência social, reabilitação na vida social e no mercado de
trabalho, promoção de atividades culturais, educacionais, culturais e recreativas e a
criação de um banco de dados dos lesados medulares do Rio Grande do Sul. Sua
missão é trabalhar na Reabilitação Física, Social e Emocional destas pessoas que se
encontram em situação de vulnerabilidade social.
Como campo deste estudo, o perfil dos colaboradores e os resultados oriundos
das expressões verbais dos entrevistados e das observações do diario de campo
originaram quatro categorias, sendo estas: identificação com o tipo de esporte, o
impacto nos aspectos físicos, impacto da prática do basquete nos aspectos sociais,
impacto do basquete na autonomia. Para preservar a identidade, os entrevistados estão
sendo mencionados com nomes fictícios. O primeiro colaborador foi denominado como
João, o segundo colaborador como Pedro, o terceiro colaborador será identificado
como Joaquim e o quarto, e último colaborador, será chamado de Carlos.
173
Caracterização dos Entrevistados
Os quatro cadeirantes que participaram da pesquisa são do sexo masculino.
A média de idade dos praticantes da modalidade de basquetebol sobre cadeiras de
rodas é de 35 anos e apenas um o cadeirante apresenta tetraplegia parcial, os demais
são paraplégicos. Carlos é o colaborador que faz uso da cadeira de rodas há mais
tempo (13 anos), e Pedro é o que há menos tempo pratica basquetebol (7 meses).
Em relação ao treino individual, observou-se que todos os entrevistados praticam
musculação além do basquete e Carlos pratica também a modalidade de natação. A
média de treino que realizam com a equipe de basquete é de 2,25 vezes na semana.
Apresentação das categorias
A partir dos resultados das entrevistas que aqui estão expostos de forma literal,
além das observações e informações coletadas junto aos entrevistados, foi possível
agrupar as respostas conforme afinidades, em quatro categorias: identificação com o
tipo de esporte, o impacto nos aspectos físicos, impacto da prática do basquete nos
aspectos sociais, impacto do basquete na autonomia.
Identificação com o tipo de esporte
Existem diversos modos de significar a prática de atividade física e desportiva
para pessoas com deficiência, o que nos reporta a dizer que deficiência, atividade
física e pratica desportiva são afetados por multifacetados sentidos, de acordo com
a ordem do discurso em que eles são significados. Nesse contexto, a relevância do
basquete é expressa por João da seguinte forma: “pra mim não tem outro esporte eu
sou muito esportista, mas não tenho acesso a outro esporte, pra mim então é tudo. O
meu esporte é esse hoje.” Ele ainda complementa: “Antes eu fazia ciclismo, era um
baita de um esporte, trabalha todo o meu corpo e tal. Hoje eu faço basquete e não deixo
de trabalhar todo o meu corpo”. Melo e Lopes (2002) relatam que oportunizar a prática
esportiva para pessoas com deficiência é de extrema eficácia para a promoção da
qualidade de vida, uma vez que o através do exercício físico é possível testar limites e
potencialidades, prevenir enfermidades secundárias decorrentes da deficiência, bem
como promove a interação social do indivíduo.
Tendo em vista que nem todas as pessoas tem acesso à pratica desportiva, por
diversas razões, esta questão para os cadeirantes pode ter um grau de complexidade
ainda maior. Neste sentido observa-se que João pratica o basquete, pois não teve
acesso a outra modalidade esportiva. Isto foi expresso da seguinte forma: “Eu gosto
muito de ciclismo, eu pretendo pedalar ainda, mas é muito valor agregado a bicicleta é
muito caro. Hoje em dia é muito dinheiro, deixa rolar mais um tempo”. Ao contextualizar
esta situação relatada por João percebe-se como um dos fatores limitantes a pratica
desportiva é a questão financeira, sendo que na maioria dos esportes há que se fazer
algumas adaptações que acabam por gerar um custo nem sempre compatível com as
possibilidades do cadeirante. Nestes casos, o individuo acaba se adaptando a uma
pratica desportiva que nem sempre é a mais prazerosa, no entanto, é a que está ao
alcance.
174
Marivoet (2002) expõe que um dos motivos que faz com que as pessoas se adaptem
a outras modalidades desportivas diz respeito à falta de apoio e condições adequadas
para a prática. Além disso, constata-se que há pouca oferta de modalidades desportivas
para cadeirantes e as que existem, algumas vezes, não atendem as necessidades e
ambições dos praticantes. Para caracterizar esta realidade, Fonseca e Maria (2002)
expuseram que ao investigar a os fatores motivacionais para a prática desportiva
constatou-se que os motivos apresentados para a prática da atividade física além dos
benefícios físicos, emocionais e sociais encontra-se a possibilidade de dar sequência
à prática de esportes. Nesse sentido, durante a entrevista, Joaquim fez a seguinte
comparação: “o basquete representa o futebol que a gente jogava antigamente”.
Pelo discurso de ambos os entrevistados identifica-se que existe uma carência de
oportunidade em desenvolver outras modalidades de desporto. Os colaboradores
dessa pesquisa procuram através do basquete em cadeiras de rodas, dar sequencia
a prática desportiva que já praticavam antes de se tornarem cadeirantes.
O impacto nos aspectos Físicos
O esporte e a atividade física chegaram ao século XIX acompanhando
as transformações políticas e sociais que começaram nos séculos anteriores,
demonstrando, desde então, uma tendência a servir como uma tela de projeção da
dinâmica social (RUBIO et al, 2006).
A atividade física, além dos benefícios físicos, parece ter um papel importante
na qualidade de vida, que engloba domínios como capacidade funcional, estado
emocional, interação social, atividade intelectual, autocuidado, suporte familiar,
estado de saúde, valores culturais, éticos, religiosos, estilo de vida, satisfação com o
emprego e/ou com atividades diárias e ambiente em que se vive. Está relacionada à
autoestima e ao bem-estar individual (VECCHIA et al, 2005).
Para Medola et al (2010) o esporte adaptado, como o Basquete em cadeira
de rodas possibilita do ponto de vista fisiológico melhora na condição orgânica e
funcional como aumento do consumo máximo de oxigênio, ganho na capacidade
aeróbica, redução do risco de doenças cardiovasculares e de infecções respiratórias,
diminuição na incidência de complicações médicas, redução de hospitalizações e
aumento da expectativa de vida.
A importância do esporte em relação à melhora fisiológica foi exemplificada
por Pedro que comentou: “o funcionamento do nosso corpo, o lado intestinal, o lado
do tronco, quadril melhora muito, porque é um esporte com grande mobilidade”. Ele
ainda acrescentou: “o esporte ajuda em todos os aspectos: físicos, emocionais e
fisiológicos” O esporte adaptado pode trazer inúmeros benefícios ao deficiente físico
tais como melhora na coordenação motora, equilíbrio de tronco, flexibilidade, força
muscular e função cardiopulmonar em comparação àqueles inativos (LIMA et al,
2002).
De acordo com Diehl (2006) a prática do esporte adaptado proporciona a
melhoria de algumas necessidades motoras básicas, tais como: equilíbrio, força,
agilidade, resistência muscular localizada, resistência cardiorespiratória e o repertório
de movimentos e a orientação espacial são estimulados, o que condiz com o relato
por Pedro: “Logo que eu me acidentei eu perdi boa parte da minha musculatura, eu
fiquei bem fraco. Eu ia me mexer na cama e me dava câimbra nos braços de fazer
175
força assim, de me puxar assim e não ter força pra se puxa, depois que eu comecei a
jogar basquete, minha força melhorou muito”.
Há efeitos incontestáveis dos exercícios para desenvolvimento de força
e resistência muscular, sendo uma das estratégias na promoção de saúde mais
recomendadas pelo American College of Sports Medicine. Eles são, também,
importantes pela redução na fragilidade do aparelho locomotor, acrescentandolhe força, ganho de massa muscular e diminuição de prováveis déficits (RAHAL e
SGUIZZATTO, 2005). Ainda de acordo com Kannus, Khan (2004), a prática regular de
exercício físico, de acordo pode melhorar o equilíbrio, a coordenação, a propriocepção,
reação de tempo e a força muscular.
Neste contexto de performance físico motora, Joaquim relata que houve
melhora em sua capacidade cardiorespiratória: “Fizemos uns testes aqui na LEME
e eu tinha uma respiração muito ruim, depois o basquete tu aprende, tu fica mais
ofegante, tu aprende a respirar mais”. Para Silva et al (2005) os benefícios da
prática esportiva para pessoas com deficiência são: melhora do consumo máximo
de oxigênio (VO2 máximo), ganho de capacidade aeróbica, redução do risco de
doenças cardiovasculares e de infecções respiratórias, diminuição na incidên¬cia
de complicações médicas (infecções urinárias, escaras e infecções renais), redução
de hospitalizações, aumento da expectativa de vida, aumento nos níveis de
integração comunitária, auxílio no enfrenta¬mento da deficiência, favorecimento da
independência.
Em relação às potencialidades que envolvem o movimento corporal, como
a consciência corporal, o repertório de movimentos e a orientação espacial, Carlos
comenta: “É um esporte bastante dinâmico daí a gente usa bastante os músculos,
bastante os braços, o quadril e membros superiores a gente usa bastante, agente
agacha toda a hora, a gente ergue a cabeça, a gente movimenta bastante os braços o
tempo todo.” A percepção das dimensões corporais para Barros (2005) está relacionada
com a integridade do sistema nervoso e do esquema corporal. Para Barros (2005),
Maravita e Irki, (2004) e Medina e Coslett (2010), este é um aspecto neurológico que
representa as relações espaciais do indivíduo entre as partes do corpo percebidas
cinestésica e proprioceptivamente. Caracteriza-se por uma interação neuromotora
que permite perceber o próprio corpo no espaço e desenvolver as ações de forma
adequada. Já o esquema corporal é dinâmico, ou seja, qualquer situação que participe
do movimento consciente do corpo é somada ao modelo corporal, tornando-se parte
desse esquema
Impacto da prática do basquete nos aspectos sociais
Pessoas com deficiência geralmente estão afastadas do convívio com a
sociedade, têm reduzido números de amigos e interação sociais, em função da falta
de entendimento e compreensão sobre suas possibilidades e de oportunidades
diferenciadas por parte da sociedade, porém através da prática desportiva é possível
proporcionar a integração da pessoa (CARDOSO, 2010). Em relação ao impacto na
sua vida social, Pedro relatou que “o basquete representa tudo porque é um estilo
de vida muito bom, a gente se aproxima um dos outros” revelando desta forma que
o esporte cria vínculos de amizade e companheirismo. O esporte tem um papel
fundamental na reabilitação, pois complementa e amplia as alternativas; estimula e
176
desenvolve os aspectos físicos, psi¬cológicos e sociais; e favorece a independência
(SILVA et al., 2005; ZUCHETTO e CASTRO, 2002; SOUZA, 1994).
No estudo de Medola et al (2011) observou-se melhora da qualidade de
vida dos cadeirantes antes e após o período de treinamento esportivo. Aspectos
como a capacidade funcional, a percepção do estado geral de saúde e os aspectos
emocionais apresentaram melhora significativa entre os participantes, o que podemos
interpretar como resultado direto do treinamento físico e esportivo, uma vez que estes
proporcionam melhora da condição física, interação social e o surgimento de novos
objetivos de vida.
Labronici et al (2000), em um estudo semelhante, ao investigar o efeito do
treinamento esportivo nos aspectos físicos, psicológicos e sociais, encontraram
melhora nos dois últimos as¬pectos, com os participantes apresentando alto vigor,
baixa depressão e melhora nos relacionamentos sociais, esses achados vem ao
encontro da expressão de Pedro que relata: “a gente trabalha bastante o nosso lado
psicológico e o lado emocional vem a tona, a gente fica feliz, a gente se diverte, a
gente brinca, a gente treina,a gente briga, a gente cai no chão, a gente se ergue.”
Ao buscar o entendimento do sentido, significado do esporte para os cadeirantes, a
partir da expressão de Pedro, percebe-se que o basquete desperta inúmeras facetas
positivas tanto no aspecto emocional como no âmbito do lúdico. Também fica claro
que para Pedro o basquete auxilia na melhora da mobilidade e na autonomia quando
ele relata que consegue cair e se erguer, sem que maiores prejuízos sejam causados.
Nahas (2006) afirma que as atividades físicas e desportivas regulares podem reduzir
os sintomas de ansiedade e depressão, promover a socialização e aumentar os níveis
e bem-estar geral das pessoas com deficiência.
Em suma, os entrevistados relataram que: “o basquete pra mim é tudo, eu não
viveria mais sem ele”. Lima et al (2002) justifica essa expressão afirmando que o
esporte pode aumentar a autoestima da pessoa com deficiência, bem como promover
a inclusão social. Com isso, é possível inferir que o basquete tem um significado
relevante na vida dos cadeirantes, uma vez que através de sua prática é possível
melhorar tantos as capacidades físicas, emocionais, cognitivas, bem como auxilia na
reinserção do cadeirante na sociedade.
Impacto do basquete na autonomia
A ideia de autonomia (auto= próprio, nomos=norma, regra, lei) conduz o
pensamento imediatamente à ideia de liberdade e de capacidade de exercício ativo
de si, da livre decisão dos indivíduos sobre suas próprias ações e às possibilidades
e capacidades para construírem sua trajetória na vida (Teixeira et al, 2008). Neste
sentido a autonomia surge como categoria para análise do discurso dos sujeitos que
praticam basquete em cadeiras de rodas. “Autonomia é tudo, tu poder chegar nos
lugares e fazer as coisas por conta”(Carlos).
Segundo Martinez (2000) o basquetebol em cadeira de rodas tem experimentado
uma metamorfose nos últimos quarenta anos. Isto tem sido demonstrado com relação
à sofisticação tecnológica e a um aumento da aceitação popular em considerá-lo
um esporte que gera esforço físico e consequentemente traz benefícios físicos e
psicológicos.
Entre estes benefícios podemos destacar, além da melhora geral da aptidão
177
física, um enorme ganho de independência, e autoconfiança para a realização das
atividades diárias, além de uma melhora do autoconceito e da autoestima como
relatou o João: “O basquete me auxilia em tudo eu dirijo meu carro e não preciso de
auxilio de ninguém eu boto minha cadeira no carro, saio sozinho, não dependo de
ninguém.” O mesmo colaborador ainda ressalta a ideia de autoconfiança através da
seguinte fala: “Se tem uma escada ali, eu subo, eu demoro um pouco mais que tu,
tu vai subir correndo, eu não eu vou subir degrau por degrau, bundinha num degrau,
bundinha no outro.” E acrescenta: “Não é porque minhas pernas não funcionam do
jeito que eu gostaria que funcionassem que eu vou deixar de fazer o que eu quero”.
Gonçalves (2008) coloca que a função neuromuscular é de grande importância
na autonomia, pois muitas das atividades diárias requerem força muscular. Para
tanto, entende-se que a Qualidade de vida tem grande relação com a independência
funcional e com a realização das atividades diárias com êxito.
Ainda sobre os benefícios do basquete para a melhora da autonomia, Carlos
relata: “Antes eu era bem debilitado e minha musculatura era bem fraca e após eu
começar a treinar minha vida mudou pra melhor. Eu consigo outras coisas que eu não
fazia antes. Como me movimentar sozinho, ir para a cadeira de banho sair dela, subir
no carro, descer do carro, atravessar a rua sozinho, subir e descer cordão.
Rezer et al (2009) ao analisar as contribuições do basquetebol em cadeiras de
rodas para praticantes com deficiências observou-se que a prática desta modalidade
oportuniza benefícios físicos e psicológicos tais como: ganho de independência para
atividades da vida diária, autoconfiança, melhora da aptidão física, do autoconceito e
autoestima, favorecendo desta forma a reconstrução de suas identidades.
Soler (2005) aborda que os esportes servem para aumentar o sentimento de
autonomia. Os jogos servem para explorar o mundo que os rodeia e permite um
alto grau de liberdade. Corroborando com o autor Joaquim comenta: “... e daí com
o basquete a gente aprende a se transportar na cadeira, tu aprende a ter agilidade
com a cadeira, não só com a tua cadeira do basquete, mas com tua cadeira do dia
a dia.” Para Gorgatti e Böhme (2002) ao praticar uma modalidade em cadeira de
rodas, o indivíduo torna-se mais independente para suas atividades diárias e obtém
um acréscimo significativo em várias capacidades motoras o que corrobora com a fala
de Carlos: “...dentro de casa mesmo, pra fazer as tarefas do dia a dia, tipo te auxilia
muito porque tu tem força no braço”.
Sobre a melhora da capacidade física força João aborda “...tu só andando
no dia a dia na cadeira tu não pega força nos braços, mas é bem pouco, ai com
o esporte tu pega muita força nos braços que querendo ou não os braços que me
conduzem por ai né.” Pedro também observa mudanças na autonomia devido a
melhora de aspectos específicos como equilíbrio e força: “Pra mim que tinha pouco
equilíbrio, me ajudou bastante no equilíbrio e também a própria força pra mim mover a
cadeira com mais firmeza e em uma distancia maior que eu movia antes de começar
no basquete”. Nesse sentido Labronici (2000) salienta que o esporte os contempla
inúmeros benefícios físicos como a melhora da motricidade, desenvolvimento das
potencialidades orgânico-funcionais, melhora da autonomia locomotora em cadeira
de rodas, estimulação e fortalecimento de grupos musculares, bem como benefícios
psicossociais também são importantes, como a socialização e a possibilidade de
sensação de movimentos que frequentemente são impossibilitados pelas barreiras
178
físicas, ambientais e sociais.
CONSIDERAÇÕES FINAIS
A presente pesquisa que teve por objetivo investigar a significação da prática
do basquete para cadeirantes pode constatar através do discurso dos colaboradores
entrevistados que o basquetebol em cadeira se roda, bem como o treinamento com
exercício resistido tem um significado positivo na melhora da qualidade de vida dos
mesmos. O desporto tem um significado de com¬plementar o processo de reabilitação
de pessoas que sofreram lesão da medula espinhal e com mobilidade restrita e
necessitam de cadeira de rodas para mobilidade. Por fim, o significado positivo da
prática do basquete pela pessoa com deficiência é facilmente perceptível uma vez
que os quatro indivíduos relatam melhorias em seu aspecto físico-motor, psicológico
e social e ressaltam que o basquete contribui para a melhora na qualidade de vida.
Contudo, apesar desses avanços e do significado benéfico da prática do
basquete, percebe-se que ainda existem lacunas a serem preenchidas principalmente
em relação à oportunidade de vivenciar outras modalidades desportivas. Por fim, o
basquete em cadeira de rodas ainda tem muito a proporcionar para pessoas com
deficiência.
REFERÊNCIAS
ADAMS R., et al. Jogos, esportes e exercícios para o deficiente físico. 3. ed. São
Paulo: Manole, 1985.
ANDRADE, C.C., CASTRO, T.G.. Epidemiologia das lesões traumato-ortopédicas
no esporte adaptado. (Trabalho de conclusão de curso) Curso Fisioterapia, nível de
Graduação da Escola de Educação Física, Fisioterapia e Terapia Ocupacional da
Universidade Federal de Minas Gerais, 2010.
BARROS, D.D. Imagem corporal: A descoberta de si mesmo. História, Ciência, Saúde.
12(2): 547-54, 2005.
BOURDIEU, P. Programa para uma sociologia do esporte. Coisas ditas. São Paulo:
brasiliense, p. 207-220,1990.
BOAS, M.S.V., BIM, R.H., BARIAN, S.H. Aspectos Motivacionais e Benefícios da
Prática do Basquetebol Sobre Rodas. Revista da Educação Física/UEM Maringá, v.
14, n. 2, p. 7-11, 2003.
CARDOSO, V. D. Avaliação da composição corporal e da aptidão física relacionada
ao desempenho de atletas de handebol em cadeiras de rodas. Faculdade de Desporto
da Universidade do Porto, 2010. (Dissertação) mestrado em ciência do desporto na
área de atividade física adaptada.
DIEHL, R.M. Jogando com as Diferenças. São Paulo: Phorte, 2006.
179
DILMARA, V.S., FABIOLA, Z. Novas perspectivas de análise em investigações
sobre meio ambiente: a teoria das representações sociais e a técnica qualitativa da
triangulação de dados. Saúde e Sociedade v.12, n.2, p.76-85, jul-dez, p. 76-85,2003.
FONSECA, M., MAIA, J. A motivação dos jovens para a prática desportiva federada.
Lisboa: CEFD, 2002.
GONÇALVES, V. Exercícios de forca para idosos, 1992. Disponível em:http://www.
educacaofisica.com.br/biblioteca_mostrar.asp?id=1992. Acesso: 20 de junho de 2013.
GORGATTI, M.G., BÖHME, M.T. Potencia de membros superiores e agilidade em
jogadores de basquetebol em cadeiras de rodas. Revista da Sobama. Vol7, n1; p9-14,
2002.
HARPER, D. Online etymology dictionary. Retirado em 07 de junho de 2013. Disponível
em: http://etymonline.com/?search=schala [ Links ] November,2001
INSTITUTO BRASILEIRO DE GEOGRAFIA E ESTATÍSTICA – IBGE, 2012. Disponível
em: http://www.ibge.gov.br/home/ Acessado em: 13 de junho de 2013.
KANNUS, P., KHAN, K.M. Prevention of Fall and Subsequent Injuries in Elderly People:
a long way to go in both research and pratice. CMAJ; 5:587-8,2001.
LABRONICI, R.H.D.D., CUNHA, M.C.B., OLIVEIRA, A.S.B., GABBAI, A.A.
Esporte como fator de integração do deficiente físico na sociedade. Arq.
Neuropsiquiatria;58:1092-9,2000.
LIMA, G., SOOG., VIEIRA, M.S. Lesões em atletas em cadeira de rodas: revisão
bibliográfica. Acta Fisisatr ;9(1):15, 2002
LOPES, R.L.F., MELO, A.C.R. O esporte adaptado. Revista Digital. Buenos Aires; n
51,2002.
MARAVITA, A., IRKI, A. Tools for The Body (Schema). Trends Cogn Sci Feb.; 8(2):7986,2004.
MARIVOET, S. Hábitos desportivos da população portuguesa. Lisboa: INFED, 2002.
MARQUES, R.F.R., ALMEIDA, M.A.B., GUTIERREZ, G.L. Esporte: um fenômeno
heterogêneo: estudo sobre o esporte e suas manifestações na sociedade
contemporânea. Movimento, Porto Alegre, v. 13, n. 3, p. 225-244, set./dez, 2007.
MEDINA, J., COSLETT, B.H. From maps to form to space: touch and the body schema.
Neuropsychologia.Feb.; 48(3): 645-54.6,2010.
MEDOLA,. et al. O Esporte na Qualidade de Vida de Indivíduos com Lesão da Medula
180
Espinhal: Série de Casos. Rev Bras Med Esporte – Vol. 17, No 4 – Jul/Ago,2011.
MEDOLA, F.O., ELUI, V.M.C., SANTANA, C.S. A lesão medular e o esporte adaptado
em cadeira de rodas. Disponível em: http://www.efdeportes.com/ Revista Digital –
Buenos Aires – Año 15 – Nº 143 – Abril, 2010.
MELO, A.C.R., LOPEZ, R.F.A. O esporte adaptado. Lecturas Educación física y
deportes, Buenos Aires, ano 8., n.51.julho, 2002. Consultado em 25 de julho de 2013.
Disponívem em: http://www.efdeportes.com/efd51/esporte.htm.
MINAYO, M.C.S., HARTZ, Z.M.A., BUSS, P.M. Qualidade de vida: um debate
necessário. Ciência e Saúde Coletiva, Rio de Janeiro, v. 5, no. 1, p.7-18,2000.
MONTANDON, I. Educação Física e Esportes nas Escolas de 1º e 2º graus. Vol. 2.
Belo Horizonte-Rio de Janeiro: Villa Rica,1992.
MOREIRA P., et al.. Prevalência de Lesões na Temporada 2002 da Seleção Brasileira
Masculina de Basquete. São Paulo: Revista Brasileira de Medicina do Esporte, v.9,
n.5, p.258-262, out,2003.
NAHAS, M.V. Atividade Física, Saúde e Qualidade de Vida: conceitos e sugestões
para um estilo de vida ativo. 4. ed., Londrina: Midiograf, 2006.
NOCE, F., SIMIM, M.A.M., MELLO, M.T. A percepção da qualidade de vida de pessoas
portadoras de deficiência física pode ser influenciada pela prática de atividade física?
Rev Bras Med Esporte – Vol. 15, No 3 – Mai/Jun,2009.
ORGANIZAÇÃO MUNDIAL DA SAÚDE (OMS). Disponível em: <http://www.who.int/
en/>, acesso em: 17/10/2010.
PEREIRA, L.C., GABRIEL, M.G. (2006). Incidência de lesões esportivas nos atletas em
cadeira de rodas. 46 f, 2006. (Monografia) Graduação em Fisioterapia- Universidade
da Amazônia, Belém – Pará.
POLIT, D.F., BECK, C.T., HUNGLER, B.P. Fundamentos de Enfermagem: métodos,
avaliação e utilização. 5.ed. Porto Alegre: Artmed. 487p,2004
RAHAL, M.A., SGUIZZATTO, G.T. Exercício Físico. In: Carvalho Filho ET, Papaleo
Netto M. Geriatria: fundamentos, clínica e terapêutica. 2a ed. São Paulo: Atheneu.
Cap. 64, p. 699-706,2005
RELATÓRIO MUNDIAL SOBRE A DEFICIÊNCIA / World Health Organization, The
World Bank ; tradução Lexicus Serviços Lingüísticos. - São Paulo :SEDPcD, 2012.334
p. disponível em: http://www.pessoacomdeficiencia.sp.gov.br/usr/share/documents/
RELATORIO_MUNDIAL_COMPLETO.pdf. Acessado em 07 de julho de 2013.
181
REZER, C.R., COSTA, E.L., BOHES, C. Uma análise das contribuições do basquetebol
em cadeiras de rodas para praticantes com deficiências. Anais do II Congresso
Internacional de Ciências do Esporte e XV Congresso Brasileiro de Ciências do
Esporte, Recife – PE,2007.
RUBIO K. Medalhistas olímpicos brasileiros: memórias, histórias e imaginário. São
Paulo: Casa do Psicólogo/FAPESP,2006.
SANTOS, S.R., SANTOS, I.B.C., FERNANDES, M.G.M., HENRIQUES, E.R.M.
Qualidade de vida do idoso na comunidade: aplicação da Escala de Flanagan.
Revista Latino-Americana de Enfermagem, Ribeirão Preto, v. 10, no. 6, p. 757-764,
nov./dez,2002.
SILVA, M.C.R., OLIVEIRA, R.J., CONCEIÇÃO, M.I.G. Efeitos da natação sobre
a independência funcional de pacientes com lesão medular. Revista Brasileira de
Medicina do Esporte; 11:4:251-4, 2005.
SOUZA, P. O Esporte na Paraplegia e Tetraplegia. Rio de Janeiro: Guanabara
Koogan,1994.
STIGGER, M.P., SILVA, R.A. A prática da “bocha” na SOERAL: entre o jogo e o
esporte. Movimento, Porto Alegre, v.10, n. 2, p. 37-53, maio/ago,2004 .
TEIXEIRA, A.M.F., RIBEIRO, S.M. Basquetebol em Cadeira de Rodas. Comitê
Paraolímpico Brasileiro. Brasília (DF),2006.
TEIXEIRA, P.F., et al.. Autonomia como categoria central no conceito de promoção de
saúde. Revista Ciência & Saúde Coletiva, 13(Sup 2):2115-2122,2008.
VECCHIA, R.D., RUIZ, T., BOCCHI, S.C.M., CORRENTE, J.E. Qualidade de vida na
terceira idade: um conceito subjetivo. Rev Bras Epidemiol; 8(3):246-52,2005.
ZUCHETTO, A., CASTRO, R. As contribuições das atividades físicas para a qualidade
de vida dos deficientes físicos. Kinesis;26:52-68,2002.
182
183
Agenda
Social
VOLUME
NÚMERO
8
1
ISSN 1981-9862
ELETRONIC JOURNAL
www.revistaagendasocial.com.br
PROPOSTA DE GESTÃO DE PROJETOS APLICADA À
AVALIAÇÃO DE TÉCNICAS DE TRATAMENTO DE ÁGUA PARA
CONTROLE DE CIANOBACTÉRIAS NA BACIA HIDROGRÁFICA
DO RIO DAS VELHAS, MINAS GERAIS
Techniques evaluation for cyanobacteria’s control in water
treatment in the basin of the Rio das Velhas - Minas Gerais
Management Projects Proposal
1. THEODORO, Hildelano Delanusse.
1. Doutorando em Saneamento, Meio Ambiente e Recursos Hídricos pela UFMG; Mestre em
Extensão Rural (UFV); Bacharel em Ciências Sociais (UFMG).
RESUMO
184
ABSTRACT
O artigo visa demonstrar a importância
da implementação da metodologia
de gestão de projetos para a temática
socioambiental de forma a se poder
gerar melhores processos de tomadas de
decisões. Para tanto, o trabalho parte de
um estudo de caso, que é o da problemática
crescente sobre o desenvolvimento
de cianobactérias na região da bacia
hidrográ ica do Rio das Velhas, que traz
inúmeros desa ios ao gerenciamento
público, principalmente em termos do
planejamento de ações para diminuição
de impactos ambientais e sociais. O mote
de discussão então é o da necessidade de
se estudar quais os melhores mecanismos
de controle de contaminantes, avaliação
de alternativas de ações e implementação
de políticas públicas, via metodologia de
projetos, para a área de recursos hídricos,
em geral, e para o Rio das Velhas, em
particular. E tais discussão são feitas a
partir da institucionalização envolvida na
temática, de forma a propiciar uma leitura
organizacional de como tais decisões
devem ser consideradas aos interessados
pelo assunto.
This article aims to demonstrate the
importance of project management
methodology for the environmental theme,
in order develop better decision making
processes. Thus, presents a case study, which
is related to the growing problem of the
cyanobacteria development in the Velhas
River´s watershed, which brings numerous
challenges to the public management,
especially in terms of planning actions
to decrease environmental and social
impacts. The discussion´s motto is the
need to study what the best mechanisms
to control contaminants, evaluation of
alternative actions and implementation of
public policies, for the water resources in
general and for Velhas River´s watershed,
in particular. And such discussion is made
from the institutionalization involved in the
issue, in order to provide an organizational
understanding of how such decisions should
be considered by the concerned subject.
PALAVRAS-CHAVE
Gestão de Projetos; Bacia Hidrográ ica;
Cianobactérias.
KEY-WORDS
Project management, Hidrograϔic Basin,
Cyanobacterias.
1.0 - INTRODUÇÃO
O presente trabalho é uma proposta de realização de um projeto de pesquisa
que leve em consideração uma avaliação dos principais aspectos relacionados à
determinação de uma técnica de tratamento de água para a bacia hidrográfica do Rio
das Velhas, que, além de conter a capital do Estado de Minas Gerais, Belo Horizonte,
estão outros 50 (cinquenta) municípios ao longo do território acima citado.
Tal deanda surgiu a partir da constatação do crescente desenvolvimento de
cianobactérias na região e que tem levado a um número cada vez maior também de
pesquisadores a tentar indicar e/ou determinar o tipo de técnica de tratamento de água
mais adequado ao fato. Isto se deve à realidade de que há um perigo exponencial da
presença das cianobactérias nos corpos d´água de algumas regiões (principalmente
na Região Metropolitana de Belo Horizonte). Consequentemente, há possibilidades
de impactos na saúde da população envolvida dada a diminuição da qualidade
hídrica e sanitária a ser disponibilizada. Isto leva a crer que há uma necessidade do
entendimento sobre a forma como o problema tem sido abordado na atualidade da
bacia, assim como a identificação de problemas direta ou indiretamente relacionados
com o controle das cianobactérias são posturas às quais o projeto pretende se
estabelecer.
Nesta direção também é válido salientar que a utilização de mecanismos de
controle e avaliação através da utilização de instrumentos de gestão de projetos poderá
salientar pontos de entraves ao melhor funcionamento de Estações de Tratamento
de Água (ETA) e Estações de Tratamento de Esgosto (ETE) para o controle das
cianobactérias. Assim, um planejamento de várias etapas de intervença sobre as
mesmas poderá ter um diferencial em termos de aplicação de recursos humanos e
matérias no médio e longo prazos.
Conta-se também nesta proposta a emergência de maior coleta e controle de
dados de fontes contaminantes
2.0 - Objetivos e metas a serem alcançados
2.1 - Objetivo Geral
Identificação, seleção e avaliação das principais técnicas de tratamento de água para
serem utilizadas na bacia hidrográfica do Rio das Velhas, Minas Gerais.
2.2 - Objetivos Específicos
- Geração de banco de dados sobre a atual situação de ocorrência das
cianobactérias dentre os 51 municípios componentes da bacia hidrográfica do
Rio das Velhas;
- Estabelecimento da melhor técnica por Unidade Territorial Estratégica, a
partir de suas constituições ambientais e institucionais a partir de parâmetros
definidos;
- Elaboração de relatório e resumo executivo que possam ser disseminados
entre os stakeholders envolvidos na gestão dos recursos hídricos, como
também possíveis parceiros.
- Adequação de proposta de projeto para estudo de interferência das
185
cianobactérias em relação à revisão do Plano Diretor da bacia hidrográfica do
Rio das Velhas de modo a possibilitar captação de recursos.
3.0 - Histórico
3.1- A Bacia Hidrográfica do Rio das Velhas
A pesquisa tem seu foco na bacia hidrográfica do Rio das Velhas, localizada
em Minas Gerais, bem no centro do Estado, entre as latitudes 17º 15’S e 20º25’S
e com longitude 43º25’W e 44º e 50W, com uma direção norte-sul de grande esta
extensão.
Esta possui comitês1 e sub-comitês, objeto de estudo na pesquisa, dada a
sua importância política, geográfica e populacional além do fato de que esta bacia é
um dos tributários da bacia hidrográfica do Rio São Francisco) dentro da divisão em
“Unidades de Planejamento e Gestão dos Recursos Hídricos (UPGRH)” efetivadas
pelo Instituto Mineiro de Gestão das Águas (IGAM).
A divisão interna por trechos entre Alto-Médio-Baixo Rio das Velhas que havia
anteriormente e, a partir de 2012 e ainda em implantação, a criação de Unidades
Territoriais Estratégicas (UTE´s), indica que cada qual possui características sociais,
econômicas e geográficas próprias. Na sua extensão de 753 km pertencentes à bacia,
localizam-se 51 municípios.
Estas unidades tem como objetivo:
1) Identificar áreas específicas para subsidiar a implantação dos
instrumentos da Política Estadual de Recursos Hídricos e a gestão
descentralizada dos recursos hídricos;
2) Orientar o planejamento de formação de comitês de bacia ou outras
formas de organização dos usuários da água;
3) Servir de referência para a elaboração de Planos Diretores e outros
estudos regionais;
4) Contribuir no planejamento de outras ações do Estado.
Vê-se aqui que a bacia hidrográfica do Rio das Velhas adquire também um
caráter ambiental importante, por ser parte do Rio São Francisco, de projeção e
integração nacional que identifica tanto seu caráter de meio de transporte no passado
até seu caráter simbólico-religioso em relação ao seu nome – o Estado de Minas
Gerais. Este abrange em seu território, quatro denominadas “Regiões Hidrográficas
Nacionais” (COSTA:2008): São Francisco (RHSF e 40% da área); Paraná (RHPR e
27% da área); Atlântico Leste (RHAL e 17% da área); Atlântico Sudeste (RHAS e 16%
da área).
Além do fato de apresentar-se como uma das principais bacias hidrográficas não
só de Minas Gerais como também do país, uma vez que integra a bacia hidrográfica
1. Segundo o IGAM, os comitês de bacia hidrográ ica “São órgãos normativos e deliberativos que têm por inalidade
promover o gerenciamento de recursos hídricos nas suas respectivas bacias hidrográ icas. São competências dos
comitês, entre outras: promover o debate sobre as questões hídricas; arbitrar, em primeira instância administrativa,
os con litos relacionados com o uso da água; aprovar e acompanhar a execução do plano de recursos hídricos da bacia,
bem como estabelecer mecanismos de cobrança pelo uso da água, sugerindo valores a serem cobrados e aprovando
planos de aplicação de recursos oriundos da cobrança. Os comitês são instituídos por ato do Governador do Estado e
são compostos por representantes do poder público municipal e estadual, dos usuários e de entidades da sociedade
186
civil ligadas a recursos hídricos.” - www.igam.gov.br (22/01/07).
do Rio São Francisco, a bacia hidrográfica do Rio das Velhas tem apresentado
constantes mudanças biológicas, químicas, antrópicas, dentre outras, que tem vindo
a demandar novos estudos sobre os impactos de variados fatores sobre sua estrutura
como corpo d´água.
/,/ZK'Z&/KZ/K^s>,^
ÈUHDWRWDOGDEDFLD
.P &RWDQDIR]
P
&RWDQDQDVFHQWH P
([WHQVmR
.P
/DUJXUDPpGLD
.P
2FXSDomR
PXQLFtSLRVQD50%+
3HUtPHWURGDEDFLD
NP
3RSXODomR,%*(
PLOK}HVQD50%+ 3ULQFLSDLVWULEXWiULRV
5LR 3DUD~QD 5LR ,WDELULWR 5LR 7DTXDUDoX 5LR
%LFXGR5LEHLUmRGD0DWD
%DL[R PXQLFtSLRV 0pGLR PXQLFtSLRV
'LYLVmRSRUWUHFKRV
'LYLVmR
SRU
8QLGDGHV
7HUULWRULDLV
$OWRPXQLFtSLRV
(VWUDWpJLFDVHVWiHPLPSODQWDomR
4XDGUR3HUILOGDEDFLDKLGURJUiILFDGR5LRGDV9HOKDV
)RQWH$GDSWDGRGH&$0$5*26
Com o decorrer das décadas ela se constituiu como uma bacia hidrográfica de
características muito variadas e com níveis muito distintos de acesso a saneamento
e esgotamento sanitário, como também em relação aos tipos de classes de seus
cursos de água em termos de enquadramento para utilização e, mais atualmente,
para cobrança por uso dos recursos hídricos. Estes dados mostram a amplitude da
bacia hidrográfica do Rio das Velhas e de como se mostra complexo o planejamento
da gestão de seus recursos hídricos e a articulação dos vários usuários que podem
potencializar conflitos institucionais na busca de soluções como, por exemplo, sobre
2 Existem várias nascentes vinculadas ao Rio das Velhas – como, por exemplo, as localizadas em São Bartolomeu,
distrito de Ouro Preto - porém aquela o icialmente considerada e que é aqui considerada, por seu caráter simbólico e
por ser a mais remota, é a localizada na região da Cachoeira das Andorinhas (em Ouro Preto, propriamente) e que se
tornou reserva municipal recentemente (2006) – “Área de Proteção Ambiental da Cachoeira das Andorinhas”.
3 Neste sentido vale destacar que há uma incongruência de exposição dos dados, visto que segundo o próprio
CAMARGOS (2005:24): “(...) estão localizados 51 municípios que abrigam uma população de aproximadamente 4,8
milhões de habitantes (destes, aproximadamente 89% residem em distritos e municípios integralmente inseridos nas
bacia), segundo os últimos dados estatísticos do (...) IBGE (2000).”
187
as fontes de contaminação hídrica existentes atualmente. Identifica-se, por exemplo,
que o trecho próximo à região metropolitana, apesar de possuir o menor número de
municípios, é a mais densamente povoada.
Além disso, há uma grande concentração de compostos químicos nos
corpos de água oriundo da RMBH (Região Metropolitana de Belo Horizonte) que,
consequentemente, determinam a perda de qualidade tanto dos próprios ribeirões
como de seu entorno, que tendem ao assoreamento constante. Tal acontece, a partir
dos dados coletados, pela grande presença de um circuito industrial que permanece
durante todo o curso dos rios e córregos da citação região, com suas largas escalas
de empresas e indústrias de metais, automotores, etc.
Mais ainda, dada a crescente expansão urbana da capital e adjacências,
este dado acaba por ser refletido na perda da qualidade e quantidade dos recursos
hídricos existentes na bacia do Rio das Velhas como um todo, o que, preliminarmente,
corrobora a noção do grande nível de polução que alcança este recurso hídrico ao se
aproximar da região da capital mineira, ao contrário de seus trechos anteriores.
Também deve se lembrar que os municípios que estão localizados nesta região
são diretamente responsáveis por mais de 42% do Produto Interno Bruto de Minas
Gerais, o que caracteriza a bacia como um espaço relevante de desenvolvimento
sócio-economico, onde se explicitam complexas relações de poder institucional e
regional do Estado4.
3.2 - As Unidades Territoriais Estratégicas (UTE`s)
Assim, uma das principais questões a ser estudada para que a proposta seja
colocada em ação se relaciona tanto com o momento pelo qual passam as políticas
públicas vinculadas à gestão dos recursos hídricos no Estado de Minas Gerais e,
em particular da bacia hidrográfica do Rio das Velhas, onde, inclusive, o seu Plano
Diretor está em processo de revisão (já com Termo De Referência – TDR proposto
para seleção da empresa que fará o Plano Diretor em si).
Concomitante a este novo momento, o território da bacia hidrográfica do Rio
das Velhas foi redefinido, a partir de articulações sociais e institucionais para um
modelo que se pretende mais aproximado da realidade das microrregiões, agora
denominadas de Unidades Territoriais Estratégicas (UTE´s). Isto significa, em termos
desta proposta, que a identificação de fatores de contaminação hídrica poderão ser
melhor identificados e trabalhados não apenas em termos de um curso de água, mas
integrados dentro da lógica de gestão de uma bacia hidrográfica, tal como orientam
as determinações técnicas e legais, principalmente a lei 9.433 de 1997.
E uma vez que se trabalha aqui sob o ponto de vista da gestão de projetos
aplicados em uma prosposta de avaliação para a seleção de técnicas de tratamento
de água, essa introdução anterior se tornou necessária de maneira a permitir se
entender, adiante, que cada UTE deverá ser entendida particular para o controle das
cianobactérias.
A causa de tal demanda se refere ao fato de que as cianobactérias só poderão
ser adequadamente combatidas se entendidas dentro de um arcabouço de decisões
políticas, administrativas e geográficas que demanda o conhecimento de técnicas
de projetos. Dessa forma, segue abaixo a atual composição de Unidades Territoriais
Estratégicas proposta para que o gerenciamento de problemas relacionados à bacia
hidrográfica do Rio das Velhas:
188
4 SITE: http://www.ufmg.br/diversa/1/manuelzao.htm
Figura 1 - UPGHs de MG
Fonte: www.igam.mg.gov.br/images/stories/mapoteca/upgrhs-minas-gerais
Figura 2 - Unidades Territoriais Estratégicas da Bacia Hidrográ ica do Rio das Velhas (CBH Rio
das Velhas, 2012)
189
7DEHOD0XQLFtSLRVGDV87(GDEDFLDGRULRGDV9HOKDV&%+5LRGDV9HOKDV
ƌĞĂ;ŬŵϮ Ϳ
hd
ϭ
EĂƐĐĞŶƚĞƐ
ϱϰϭ͘ϰ
DƵŶŝĐşƉŝŽƐ
/ƚĂďŝƌŝƚŽ
KƵƌŽWƌĞƚŽ
/ƚĂďŝƌŝƚŽΎ
EŽǀĂ>ŝŵĂ
Ϯ
ZŝŽ/ƚĂďŝƌŝƚŽ
ϱϰϴ͘ϯ
ZĂƉŽƐŽƐ
ZŝŽĐŝŵĂ
^ĂďĂƌĄ
ĂĞƚĠ
/ƚĂďŝƌŝƚŽ
ϯ
ŐƵĂƐĚŽ'ĂŶĚĂƌĞůĂ
ϯϮϯ͘ϳ
EŽǀĂ>ŝŵĂ
ZĂƉŽƐŽƐΎ
ZŝŽĐŝŵĂΎ
/ƚĂďŝƌŝƚŽ
EŽǀĂ>ŝŵĂΎ
ϰ
ŐƵĂƐĚĂDŽĞĚĂ
ϱϰϰ͘ϯ
ZĂƉŽƐŽƐ
ZŝŽĐŝŵĂ
^ĂďĂƌĄ
ĂĞƚĠΎ
ϱ
ZŝďĞŝƌĆŽĂĞƚĠͬ^ĂďĂƌĄ
ϯϯϭ͘ϯ
ZĂƉŽƐŽƐ
^ĂďĂƌĄΎ
^ĂŶƚĂ>ƵnjŝĂ
ĞůŽ,ŽƌŝnjŽŶƚĞΎ
ϲ
ZŝďĞŝƌĆŽƌƌƵĚĂƐ
ϮϮϴ͘ϯ
ŽŶƚĂŐĞŵΎ
^ĂďĂƌĄ
ϳ
ZŝďĞŝƌĆŽKŶĕĂ
ϮϮϭ͘ϰ
ĞůŽ,ŽƌŝnjŽŶƚĞ
ŽŶƚĂŐĞŵ
^ĂďĂƌĄ
ϴ
WŽĚĞƌŽƐŽsĞƌŵĞůŚŽ
ϯϲϬ͘ϱ
^ĂŶƚĂ>ƵnjŝĂΎ
dĂƋƵĂƌĂĕƵĚĞDŝŶĂƐ
ĂƉŝŵƌĂŶĐŽΎ
ŽŶĨŝŶƐΎ
ϵ
ZŝďĞŝƌĆŽĚĂDĂƚĂ
ϳϴϲ͘ϲ
ƐŵĞƌĂůĚĂƐ
>ĂŐŽĂ^ĂŶƚĂ
DĂƚŽnjŝŶŚŽƐΎ
190
ƌĞĂ;ŬŵϮ Ϳ
hd
DƵŶŝĐşƉŝŽƐ
WĞĚƌŽ>ĞŽƉŽůĚŽΎ
ϵ
ZŝďĞŝƌĆŽĚĂDĂƚĂ
;ĐŽŶƚŝŶƵĂĕĆŽͿ
ZŝďĞŝƌĆŽĚĂƐEĞǀĞƐΎ
ϳϴϲ͘ϲ
^ĂŶƚĂ>ƵnjŝĂ
^ĆŽ:ŽƐĠĚĂ>ĂƉĂΎ
sĞƐƉĂƐŝĂŶŽΎ
ĂĞƚĠ
:ĂďŽƚŝĐĂƚƵďĂƐ
ϭϬ
ZŝŽdĂƋƵĂƌĂĕƵ
ϳϵϱ͘ϭ
EŽǀĂhŶŝĆŽΎ
^ĂŶƚĂ>ƵnjŝĂ
dĂƋƵĂƌĂĕƵĚĞDŝŶĂƐΎ
ŽŶĨŝŶƐ
&ƵŶŝůąŶĚŝĂΎ
ϭϭ
ĂƌƐƚĞ
ϲϮϳ͘Ϭ
>ĂŐŽĂ^ĂŶƚĂΎ
DĂƚŽnjŝŶŚŽƐ
WĞĚƌŽ>ĞŽƉŽůĚŽ
WƌƵĚĞŶƚĞĚĞDŽƌĂŝƐ
ϭϮ
:ĂďŽͬĂůĚŝŵ
ϭϬϴϬ͘ϰ
ĂůĚŝŵΎ
:ĂďŽƚŝĐĂƚƵďĂƐΎ
ĂƉŝŵƌĂŶĐŽ
&ƵŶŝůąŶĚŝĂ
ϭϯ
ZŝďĞŝƌĆŽ:ĞƋƵŝƚŝďĄ
ϲϮϯ͘ϵ
:ĞƋƵŝƚŝďĄΎ
WƌƵĚĞŶƚĞĚĞDŽƌĂŝƐΎ
^ĞƚĞ>ĂŐŽĂƐΎ
:ĞƋƵŝƚŝďĄ
ϭϰ
^ĞŵEŽŵĞ
ϭϭϳϭ͘ϳ
WƌĞƐŝĚĞŶƚĞ:ƵƐĐĞůŝŶŽ
^ĂŶƚĂŶĂĚĞWŝƌĂƉĂŵĂΎ
ƌĂĕĂşΎ
ŽƌĚŝƐďƵƌŐŽΎ
ϭϱ
ZŝďĞŝƌƁĞƐdĂďŽĐĂƐĞKŶĕĂ
ϭϮϮϯ͘ϭ
ƵƌǀĞůŽ
:ĞƋƵŝƚŝďĄ
WĂƌĂŽƉĞďĂ
ϭϲ
^ĂŶƚŽŶƚƀŶŝŽͬDĂƋƵŝŶĠ
ϭϯϯϲ͘ϲ
ƵƌǀĞůŽΎ
/ŶŝŵƵƚĂďĂΎ
ϭϳ
ZŝŽŝƉſ
Ϯϭϴϰ͘ϴ
ĂůĚŝŵ
ŽŶŐŽŶŚĂƐĚŽEŽƌƚĞ
191
ƌĞĂ;ŬŵϮ Ϳ
hd
DƵŶŝĐşƉŝŽƐ
:ĂďŽƚŝĐĂƚƵďĂƐ
ϭϳ
ZŝŽŝƉſ
;ĐŽŶƚŝŶƵĂĕĆŽͿ
Ϯϭϴϰ͘ϴ
WƌĞƐŝĚĞŶƚĞ:ƵƐĐĞůŝŶŽ
^ĂŶƚĂŶĂĚĞWŝƌĂƉĂŵĂ
^ĂŶƚĂŶĂĚŽZŝĂĐŚŽΎ
ŽŶĐĞŝĕĆŽĚŽDĂƚŽ
ĞŶƚƌŽ
ŽŶŐŽŶŚĂƐĚŽEŽƌƚĞΎ
ĂƚĂƐΎ
'ŽƵǀĞŝĂΎ
ϭϴ
ZŝŽWĂƌĂƷŶĂ
Ϯϯϯϴ͘ϱ
DŽŶũŽůŽƐ
WƌĞƐŝĚĞŶƚĞ:ƵƐĐĞůŝŶŽΎ
WƌĞƐŝĚĞŶƚĞ<ƵďŝƚƐĐŚĞŬΎ
^ĂŶƚĂŶĂĚĞWŝƌĂƉĂŵĂ
^ĂŶƚŽ,ŝƉſůŝƚŽ
ŽƌŝŶƚŽΎ
ƵƌǀĞůŽ
ϭϵ
ZŝďĞŝƌĆŽWŝĐĆŽ
ϭϳϭϲ͘ϯ
/ŶŝŵƵƚĂďĂ
DŽƌƌŽĚĂ'ĂƌĕĂ
^ĂŶƚŽ,ŝƉſůŝƚŽ
ƵŐƵƐƚŽĚĞ>ŝŵĂ
ƵĞŶſƉŽůŝƐ
ϮϬ
ZŝŽWĂƌĚŽ
ϮϮϯϰ͘Ϭ
ŝĂŵĂŶƚŝŶĂ
'ŽƵǀĞŝĂ
DŽŶũŽůŽƐΎ
^ĂŶƚŽ,ŝƉſůŝƚŽΎ
ƵŐƵƐƚŽĚĞ>ŝŵĂΎ
Ϯϭ
ZŝŽƵƌŝŵĂƚĂş
ϮϮϭϵ͘ϱ
ƵĞŶſƉŽůŝƐΎ
:ŽĂƋƵŝŵ&ĞůşĐŝŽ
ϮϮ
ZŝŽŝĐƵĚŽ
ϮϮϳϰ͘ϯ
ŽƌŝŶƚŽ
DŽƌƌŽĚĂ'ĂƌĕĂΎ
ŽƌŝŶƚŽ
Ϯϯ
'ƵĂŝĐƵş
ϰϭϯϳ͘ϲ
>ĂƐƐĂŶĐĞΎ
WŝƌĂƉŽƌĂ
sĄƌnjĞĂĚĂWĂůŵĂΎ
ΎDƵŶŝĐşƉŝŽƐĐŽŵƐĞĚĞƐůŽĐĂůŝnjĂĚĂƐĚĞŶƚƌŽĚĂhd
192
3.3 - Os instrumentos para a gestão de recursos hídricos
De maneira a que um determinado tipo de planejamento possa ser aplicado em todas
as instâncias do gerenciamento dos recursos hídricos envolvidos na bacia hidrográfica
do Rio das Velhas, é necessário o estabelecimento de algumas concordâncias entre a
tríplice restrição advinda de projetos com base no Project Management Institute (PMI)
como também em relação aos instrumentos previstos juridicamente ao assunto, a ver,
tal como já colocado por AGB (2012):
• Plano Estadual de Recursos Hídricos;
• Planos Diretores de Recursos Hídricos de Bacias Hidrográficas;
• Sistema Estadual de Informações sobre Recursos Hídricos;
• Enquadramento dos corpos de água em classes, segundo seus usos
preponderantes;
• Outorga dos direitos de uso de recursos hídricos;
• Cobrança pelo uso de recursos hídricos;
• Compensação a municípios pela exploração e restrição de uso de recursos
hídricos;
• Rateio de custos das obras de uso múltiplo, de interesse comum ou coletivo
e Penalidades.
Tais prerrogativas se encontram na Lei 13.1999/99, que trata da Política
Estadual de Recursos Hídricos, em seu Art. 9º, como também se vincula com a Lei
Federal 9.433/97, onde existe a determinação máxima sobre a Política Nacional de
Recursos Hídricos e que tem em sua formulação a preocupação com o controle da
quantidade e da qualidade dos corpos de água que são disponibilizados à população.
Cada um dos pontos acima colocados tentam, também, fazer interagir um todo um
sistema de tomadas de decisões técnicas e políticas que envolvem o gerenciamento
hídrico no país, que, tomado enquanto um sistema de ação, tem a seguinte
configuração:
)LJXUD6LVWHPD1DFLRQDOGH5HFXUVRV+tGULFRV
)RQWH$JrQFLD1DFLRQDOGHÈJXDV$1$
193
4.0 - A questão das Cianobactérias
As cianobactérias, também chamadas de algas azuis, microrganismos que
se encontram em ambientes aquáticos e que são capazes de produzir toxinas
(determinadas como cianotoxinas) que são potencialmente prejudiciais à saúde
humana e anil, seja por ingestão ou contato quando estão presentes nos corpos de
água.
Cianobactéria também é um denominação utilizada para uma gama de algas
que possuem características próximas (unicelulares, procariotas e com espécies
filamentosas e coloniais – SPERLING, 2009) e que estão presentes na superfície da
Terra há mais de três bilhões de anos e apresentam um crescimento significativo quando
se considera o potencial hidrogeniônico (pH) entre 6,0 e 9,0, e com temperatuas entre
15 e 30 graus Celsius (condições que são bastante presentes em regiões tropicais
como a brasileira e mineira).
Além disso, elas produzem, por meio de processos de fotossíntese, seu próprio
alimento (são seres autotróficos) e, quando em ambientes com grande presença de
nutrientes, se desenvolvem em largamente e podem gerar colocação verde-azulada
nos mananciais hídricos.
)LJXUD&LDQREDFWpULDV
)RQWHZZZHQTXIVFEUODEVSURELRGLVFBHQJBELRT&,$12%$&7(5,$6KWPO
A importância de estudo das mesmas se deve pelo aumento de sua incidência em
áreas principalmente urbanas e de grande atividade industrial, uma vez que possuem
grande valência ecológica, ou seja, são capazes de sobreviverem em regiões muito
variadas. Como exemplo, em outubro de 2007 se verificou uma floração (crescimento
de forma abrupta) do nível de concentração das cianobactérias justamente na
Região Metropolitana de Belo Horizonte e que ocasionou a impossibilidade do uso
dos mananciais por parte da população e serviu como alerta para a urgência de seu
controle, ainda mais em termo de tratamento de água.
Por outro lado, o estudo das cianobactérias atualmente perpassa áreas
como dos fármacos e agrícolas devido ao alto valor nutritivo que elas detém, com a
possibilidade de serem utilizadas como fertilizantes.
Em termos de toxidades, as mais importantes a serem consideradas são as
microcistinas, anatoxinas, saxitoxinas e as nodularinas, com capacidades neurotóxicas
(atuação nos neurônios), dematotóxicas (atuação na pele) e hepatotócias (atuação
no fígado), assim como também podem inibir a síntese de proteínas dentre outras
possibilidades de atividade (CARNEIRO e LEITE, 2007).
194
Vale destacar que existem vários efeitos que a intoxicação por cianobactérias é capaz
de realizar como (de acordo com MOTA e ROLLA, 2011):
- contato direto: conjuntivite, dermatite, asma, irritação ocular;
- ingestão: náuseas, febre, diarreias, hepatite;
- inalação: alergias, renite, bronquite aguda.
Em termos de uma justificativa técnica específica para o tratamento de
água e sua relação com as cianobactérias, valeria salientar que o presente estudo
poderá delimitar com maior segurança quais dos fatores adiante poderão ter mais
preponderância para a definição da tecnologia a ser implementada:
1) características da água bruta;
2) custos de implantação, manutenção e operação;
3) manuseio e confiabilidade dos equipamentos;
4) flexibilidade operacional;
5) localização geográfica e características da comunidade;
6) disposição final do logo gerado - tal como coloca LIBÂNIO (2010).
Isto significa que o projeto pretende interagir quais as características dos
recursos hídricos da bacia em relação ao tipo de tratamento de será possível
ser aplicado em termos de eficiência institucional.
De forma a se conseguir fazer interagir áreas diferentes de formação e sempre
com vistas à um detalhamento de técnicas de seleção de tratamento de água mais
adequados para a situação atual e futura da bacia hidrográfica do Rio das Velhas,
visa-se aqui uma reunião das principais discussões não apenas dos aspectos físicoquímicos-biológicos, como também organizacionais e legais.
5.0 - Metodologia
De acordo com BUENO (2012), é necessário que ações propostas para a gestão
direta ou indireta dos recursos hídricos na bacia hidrográfica do Rio das Velhas estejam
vinculadas com o Plano Diretor, como no caso do projeto proposto. Dessa maneira,
seria pertinente se ater que as metas para controle das cianobactérias deverão ser
divididas em termos de qualidade (vinculadas ao enquadramento determinado), de
execução (onde se estabelecerão indicadores para que os objetivos propostos sejam
alcançados) e de finanças.
De forma a se empregar a melhor técnica para tratamento de água, o projeto
pretende se valer da rede de mais de 40 pontos de coleta de água para análise de
qualidade disponibilizadas pelo IGAM (Instituto Mineiro de Gestão das Águas) e que
deverão ser analisadas nos laboratórios da Copasa, em Belo Horizonte. O objetivo
passa a ser de se observar as características da água que está a ser consumida
para se verificar a existência ou não das cianobactérias e quais os seus níveis de
concentração por trecho.
Nesta direção, o projeto pretende se estabelecer a partir de três etapas
principais de efetivação de modo a incorrer tanto na identificação quanto no controle
e divulgação da situação das cianobactérias dentro no Rio das Velhas. Se pretende
assim que, ao final do projeto, exista uma unificação nos critérios de seleção de projetos
para atuação no Rio das Velhas com a prerrogativa de tratamento das cianobactérias.
195
(7$3$
$7,9,'$'(
352'8726
(WDSDSURSRVWD
5HXQL}HVGHHTXLSHH
3ODQR GH WUDEDOKR
3ODQRGH7UDEDOKR
GHILQLomRGHFURQRJUDPD DVHUH[HFXWDGR
GHDo}HV
&ROHWDGHGDGRV
UHODWLYRVjV
FLDQREDFWpULDV
1LYHODPHQWRGH
FRQFHLWRVHWpFQLFDVD
VHUHPHPSUHJDGDV
(WDSDSURSRVWD
&DUDFWHUL]DomR GH LWHQV 'LDJQyVWLFR JHUDO
'LDJQyVWLFR H SURJQyVWLFR ELROyJLFRV
GDEDFLDHGDV87(V
VRFLDLV
H GDEDFLDHPUHODomR
LQVWLWXFLRQDLVHQYROYLGRV jV
/HYDQWDPHQWR
LQWHUIHUrQFLDV
GH GDVFLDQREDFWpULDV
GHPDQGDV
(WDSDSURSRVWD
3URSRVLomR
$YDOLDomRH5HODWyULRV
3URJUDPDV
GH (ODERUDomR GH
3URMHWRV UHODWyULR
FRP
,QWHUYHQo}HV H (VWXGRV FULWpULRV
HVSHFtILFRVSDUDDV87(H
SDUD
VHOHomR GH WpFQLFDV
JHUDLV SDUD D EDFLD GR ULR
GDV9HOKDV
SDUDWUDWDPHQWRVGH
FLDQREDFWpULDV
7DEHOD
6.0 - Principais contribuições científicas ou tecnológicas da proposta
A presente proposta tem como principais contribuições científicas e/ou
tecnológicas as seguintes premissas:
1) Aumento do conhecimento, quantitativo e qualitativo sobre uma bacia
hidrográfica de perfil multifacetado, com área rural e urbana de larga extensão;
2) Possibilidade da identificação das principais áreas de ocorrência das
cianobactérias e quais as técnicas mais adequadas para seu controle a partir
de escalas regionais;
3) Identificação de melhor relação custo x benefício para a gestão de recursos
hídricos quando em termos de controle tecnológico de cianobactérias;
4) Criação de redes de pesquisa/administrativas que possam criar/trocar entre
si publicações relativas direta ou indiretamente ao tema da seleção de técnicas
de tratamento de água.
196
7.0 - Contratação de equipe técnica
Uma das maiores necessidades a serem consideradas no projeto proposto é
o de se estabelecer uma estrutura multidisciplinar de assessoria desde a coleta de
dados até a tomada de decisões sobre o melhor tratamento de água disponível, tanto
em termos de preço como em termos de técnica.
Esse cuidado deve ser estabelecido por todo o processo de implantação do
projeto e de modo a seguir as determinações técnicas, administrativas e jurídicas
envolvidas como, por exemplo, àquelas expostas tanto na Constituição Federal em
seu Art. 37, que trata que o Estado (órgão aqui fomentador) deve se pautar pela
busca da legalidade, impessoalidade, moralidade, publicidade e, principalmente,
eficiência da máquina pública (ou seja, deve buscar o máximo de capacidade de
uso de seus recursos materiais e humanos da melhor maneira possível – tempo,
resultados, permanência etc).
Neste sentido, uma das preocupações existentes para a definição da equipe
técnica proposta adiante foi no sentido de se estabelecer intersecções constantes
entre as áreas das engenharias, biológicas e humanos, como fatores determinantes
para o sucesso do projeto, unidos por uma perspectiva de integração. Isto posto,
assim se determina as demandas5:
7DEHOD&RQWUDWDomRGHHTXLSHWpFQLFD
3URILVVLRQDO
%LyORJR
4XDQWLGDGH
3HUILO
6rQLRU
3URGXWR
$YDOLDomR
VLWXDomR
SUHOLPLQDU
GDV
VREUH
FLDQREDFWpULDV
HODERUDomR GH UHODWyULR SDUD
GHWHUPLQDomR GH WpFQLFD GH
WUDWDPHQWR D SDUWLU GH GDGRV
ELROyJLFRV
&RRUGHQDGRU 6rQLRU
$UWLFXODomR LQWHULQVWLWXFLRQDO GH
*HUDO
IRUPD D GHVHQYROYHU DQiOLVH
HVWUDWpJLFD GH LPSODQWDomR GH
FRQWUROHGDVFLDQREDFWpULDV
(QJHQKHLUR
6rQLRU
$YDOLDomRGHLPSDFWRHVWUXWXUDOH
&LYLO
3OHQR
GH YLDELOLGDGH SDUD VHOHomR GD
WpFQLFDDVHUGHILQLGD
(VWDJLiULRV
*UDGXDQGRV &ROHWD GH GDGRV WDEXODomR GH
HP
(QJ GDGRV UHODWyULRV GH FDPSR
$PELHQWDO
UHODWyULRV
*HRJUDILD
DWLYLGDGHV
SUHOLPLQDUHV
GH
&LrQFLDV
%LROyJLFDV
&LrQFLDV
6RFLDLV
+LGUyORJR
6rQLRU
,GHQWLILFDomR
GH
iUHDV
GH
RFRUUrQFLDVGHFLDQREDFWpULDV
6RFLyORJR
6rQLRU
5HODWyULR
GH
LPSDFWR
GDV
FLDQREDFWpULDV H GR WLSR GH
VHOHomR GH WUDWDPHQWR GH iJXD
HVFROKLGR SDUD D SRSXODomR GD
UHJLmRGHILQLGD
5 Aqui se considera: 1) Pro issional Júnior: até 3 anos de formado; Pleno: entre 4 e 8 anos de formado; Sênior: mais de
8 anos de formado.
197
8.0 - Parcerias, infraestrutura, apoios técnicos-financeiros
Para o desenvolvimento do projeto em termos de uma rede de instituições e
organizações interessadas no entendimento das questões vinculadas ao controle
das cianobactérias será importante o estabelecimento de mecanismos de interação,
seja pela participação em editais de financiamentos públicos e privados, seja pela
possibilidade da geração de retornos futuros em termos de captação e investimentos
de recursos.
Nesta direção o atual projeto vislumbra a possibilidade de parcerias entre instituições
de ensino superior (faculdades, universidades, institutos técnicos), assim como
organismos públicos, a ver:
1) Universidade Federal de Minas Gerais;
2) Cefet-MG;
3) Projeto Manuelzão
4) NUVELHAS (Núcleo de Estudos)
5) Copasa
6) Agência Nacional de Águas (ANA)
Dentre as várias fontes de recursos que poderiam ser acopladas dentro do atual
projeto, tem-se algumas possibilidades de destaque, a ver (e já salientadas em
BUENO (2012):
•
•
•
•
•
•
•
•
•
•
•
Os orçamentos federal, estadual e dos municípios integrantes da bacia;
Os orçamentos de concessionárias de serviços públicos;
Os Planos Plurianuais Federal e Estadual;
Recursos advindos da cobrança pelo uso dos recursos hídricos;
PRODES - Programa de Despoluição de Bacias Hidrográficas da ANA;
FHIDRO – Fundo para recuperação de recursos hídricos de Minas Gerais;
CEF – Caixa Econômica Federal;
BNDES – Banco Nacional de Desenvolvimento Econômico e Social;
FUNASA – Fundação Nacional de Saúde6;
Banco Mundial (BIRD) e Banco Interamericano de Desenvolvimento (BID).
FUNDO SOMMA do Banco de Desenvolvimento de Minas Gerais – BDMG.
9.0 - Conclusões
Colocada como uma das questões mais emergentes dentro das políticas
públicas de recursos hídricos em Minas Gerais, com especial destaque para sua
ocorrência na bacia hidrográfica do Rio das Velhas, a floração de cianobactérias se
constituiu aqui como o foco de uma proposta para a aplicação de gestão de projetos.
10.0 - Bibliografia
Agência Nacional de Águas – ANA. Disponibilidade e Demandas de Recursos Hídricos
no Brasil. Cadernos de Recursos Hídricos 2.
Superintendência de Planejamento de Recursos Hídricos e Usos Múltiplos.
6. Sobre este parceiro, cabe destacar que houve reunião para a nivelamento de informações sobre a atual situação do
Rio das Velhas juntamente entre os presidentes da FUNASA e do CBH Rio das Velhas, para início de propostas para
198 projetos de estudos cientí icos e estruturais, no segundo semestre de 2011.
Brasília, (2007).
Agência Nacional de Águas – ANA. Hidroweb. Disponível em: http://hidroweb.ana.
gov.br/. Acesso em 12/07/2012.
Agência de Águas Peixe Vivo – Disponível em : http://www.agbpeixevivo.org.br/index.
php/noticias/48-noticias-internas/576-processo-de-selecao-para-o-provimento-de16-vagas-na-agb-peixe-vivo.html. Acesso em 13/06/2012.
Atlas da Bacia do Rio das Velhas (2003).
BUENO, Eduardo. Proposta de Termo de Referência aprovada para licitação pela
Agência de Águas Peixe Vivo.
CAMARGOS, Luiza de Marillac Moreira (coord.). Plano diretor de recursos hídricos
da bacia hidrográfica do rio das Velhas: resumo executivo - dezembro 2004. Belo
Horizonte: Instituto Mineiro de Gestão das Águas, Comitê da Bacia Hidrográfica do
Rio das Velhas. 2005.
CARNEIRO, Talita Gomes e LEITE, Flávio. Cianobactérias e suas toxinas. Revista
Analytica. Número 32. Dezembro 2007/Janeiro 2008. COPASA. http://www.copasa.
com.br/cgi/cgilua.exe/sys/start.htm?tpl=home. Acesso em 13/07/12.
COSTA, Maria Angélica Maciel. Reflexões sobre a política participativa das águas: o
caso CBH Velhas/MG. Dissertação de Mestrado. UFMG. 2008.
Decreto Estadual No 41.578/2001: Regulamentação da Lei 13.199/1999.
Deliberação CBH Rio das Velhas No 01/2009: Altera os artigos 4 e 10 da Deliberação
Normativa CBH Rio das Velhas Nº 02/2004.
Deliberação CBH Rio das Velhas No 01/2012: Define as Unidades Territoriais
Estratégicas – UTE do CBH Rio das Velhas para uma gestão descentralizada dos
recursos hídricos da bacia.
Deliberação CBH Rio das Velhas No 02/2004: Estabelece diretrizes para a criação e
o funcionamento dos subcomitês, vinculados ao comitê da bacia.
Deliberação CBH Rio das Velhas No 02/2009: Regulamenta os procedimentos para a
criação e o funcionamento de subcomitês de bacias hidrográficas, vinculados ao CBH
Rio das Velhas.
Deliberação CBH Rio das Velhas No 02/2012: Aprova os procedimentos para aplicação
de recursos da cobrança pelo uso de recursos hídricos nas Unidades Territoriais
Estratégicas, através dos denominados “Projetos Hidroambientais”.
Deliberação CBH Rio das Velhas No 03/2004: Aprova o plano diretor de recursos
hídricos da bacia.
Deliberação CBH Rio das Velhas No 04/2004: Aprova a “Meta 2010 - Navegar, pescar
e nadar no rio das Velhas”.
Deliberação Normativa CERH Nº 26/2008: Outorga de lançamentos de efluentes.
Deliberação Normativa CERH Nº 31/2009: Estabelece critérios e normas gerais para
aprovação de outorga de direito de uso de recursos hídricos para empreendimentos
de grande porte e com potencial poluidor, pelos comitês de bacias hidrográficas.
Deliberação Normativa Conjunta COPAM / CERH-MG No 01/2008:
Classificação dos cursos d’água e diretrizes para o enquadramento no Estado
de MG.
Deliberação Normativa COPAM No 20/1997: Enquadramento das águas da bacia do
rio das Velhas.
GOULART, Eugênio Marcos Andrade (org.). Navegando o Rio das Velhas das Minas
aos Gerais. Belo Horizonte: Projeto Manuelzão/UFMG, 2005.
Lei Estadual No 13.199/1999: Política Estadual Recursos Hídricos.
199
Lei Federal No 9.433/1997: Política Nacional Recursos Hídricos.
LIBÂNIO, Marcelo. Fundamentos de qualidade e tratamento de água. Campinas,
SP:Editora Átomo, 2010.
MOTA, Hélen Regina e ROLLA, Maria Edith. As cianobactérias e a qualidade da água:
a importância de estar sempre atento. Cartilha CEMIG. 2011.
Plano Diretor de Desenvolvimento Integrado da Região Metropolitana de Belo
Horizonte - RMBH (2011).
Plano Diretor de Recursos Hídricos da Bacia Hidrográfica do Rio das Velhas (2004).
Plano Estadual de Recursos Hídricos de Minas Gerais (2011).
POLIGNANO, Marcos Vinícius et AL (org.) Revitalização de Rios no Mundo: América,
Europa e Ásia. Belo Horizonte: Instituto Guaicuy, (2010).
POMPEU, Paulo dos Santos e MASCARENHAS, Carlos Bernardo. Ictiofauna do Rio
das Velhas: Revitalização, Barragens e Conexões com o Rio São Francisco. 2010.
_____. Peixes do Rio das Velhas: passado e presente. Belo Horizonte: Projeto
Manuelzão, 2001.
Portaria IGAM Nº 49/2010: Estabelece os procedimentos para a regularização do uso
de recursos hídricos do domínio do Estado de Minas Gerais.
Projetos Hidroambientais na Bacia Hidrográfica do Rio das Velhas.
Resolução CNRH No 17/2001: Diretrizes para Planos de Recursos Hídricos.
Resolução CNRH No 91/2008: Enquadramento Águas Superficiais e Subterrâneas.
Resolução CONAMA No 357/2005: Classificação dos corpos d’água e diretrizes para
Enquadramento Águas Superficiais;
SPERLING, Eduardo Von. Estudo sobre Influência na Qualidade da Água decorrente
da Implantação da Barragem de Santo Hipólito, rio das Velhas – MG, 2009.
UFSC. www.enq.ufsc.br/labs/probio/disc_eng_bioq/CIANOBACTERIAS.html. Acesso
em 14/07/12.
200
201
Agenda
Social
ELETRONIC JOURNAL
VOLUME
NÚMERO
8
1
ISSN 1981-9862
www.revistaagendasocial.com.br
ECONOMIA CRIATIVA NO BRASIL: TRAJETÓRIA, DEBATE E
INSTITUCIONALIZAÇÃO DE UM CONCEITO
Creative economy in Brazil: pathways, debate and concept´s
institutionalization.
1. LEITÃO, Andreza Barreto; 2. GANTOS, Marcelo Carlos.
1. Bacharela em Ciências Sociais (UENF), Mestra do Programa de Pós-Graduação em Políticas
Sociais (PPGPS/CCH/UENF), E-mail: [email protected]; 2. Doutorado em História
Social da América pela Universidade Federal Fluminense (UFF), Professor do Programa de PósGraduação em Políticas Sociais (UENF), E-mail: [email protected]
RESUMO
202
ABSTRACT
O artigo propõe uma discussão focalizada
na análise das interseções entre as
esferas da cultura e do trabalho e suas
consequências no campo das políticas
públicas brasileiras. O objetivo é descrever
o processo de circulação e apropriação
de idéias mediante o qual o conceito de
“Economia Criativa” se institucionaliza
em uma Secretaria de governo homônima
dentro do Ministério da Cultura. Além
de breve apresentação histórica e teórica
sobre o processo histórico, pretende-se
contribuir para o debate sobre a adaptação
do conceito de Economia Criativa ao
quadro brasileiro, pontuando alcances,
limitações e desenhando seu horizonte de
possibilidades.
This article proposes an analysis focused
on the intersections between the spheres
of culture and labor and its consequences
in the ϔield of Brazilian public policy
discussion. The goal is to describe the
process of circulation and appropriation
of ideas by which the concept of “Creative
Economy” is institutionalized in a
namesake Department of Government
within the Ministry of Culture. Besides brief
historical and theoretical presentation of
the historical process, the aim is contribute
to the discussion on the adaptation
of the concept of Creative Economy
to the Brazilian context, highlighting
achievements, constraints and imagining
their horizon of possibilities.
PALAVRAS-CHAVE
Economia Criativa; Políticas Públicas;
Políticas Sociais; Trabalho Criativo;
Desenvolvimento.
KEY-WORDS
Creative Economy; Public Policy; Social
Policies; Creative work; Development.
Introdução
Em tempos de desemprego estrutural e de renovados desafios da questão social
na região e no mundo, urge que se faça uma análise sobre as atuais Políticas Públicas
que são construídas no Brasil sobre o apanágio da promoção do desenvolvimento
nacional. Este trabalho trata sobre a circulação de ideias, a recepção, elaboração
politica e institucionalização do conceito de “Economia Criativa” no pais. Um projeto
em construção.
Aproximações ao conceito de Economia Criativa
A expressão “Economia Criativa” é relativamente recente, surgindo pela
primeira vez em 2001, numa matéria de capa da revista Business Week, intitulada
“The creative economy – the 21 century corporation” e dando título ao livro de John
Howkins “The Creative Economy – how people make money from ideas”, publicado
em Londres (MIGUEZ, 2007, p.98). De acordo com Reis (2008a, p. 16), a origem se
dá há poucos anos antes, a partir da experiência do projeto Creative Nation, em 1994,
na Austrália. Havia o intuito, por parte do governo australiano, em, concomitantemente
ao fomento das artes, promover a elaboração de políticas públicas de preservação da
herança cultural e reconhecimento dos aborígenes australianos enquanto elemento
relevante da identidade nacional. Tal projeto tinha como premissa a importância do
trabalho criativo, sua contribuição para a economia do país, bem como o papel das
tecnologias como aliadas da Política Cultural. Já em 1997, no Reino Unido, durante
a gestão de Tony Blair, a idéia se amplia, quando, diante da eminência de uma
crise econômica global dos setores tradicionais, a equipe britânica distigue setores
de potencial econômico relevante para o país, que foram chamados de “Indústrias
Criativas”, os quais se definem como “indústrias que tem sua origem na criatividade,
habilidade e talento individuais e que apresentam um potencial para a criação de
riqueza e empregos por meio da geração e exploração de propriedade intelectual”1.
A classificação de Indústrias Criativas da UNCTAD é dividida em quatro
categorias amplas: patrimônio cultural (incluindo artesanato, festivais e expressões da
cultura tradicional), artes (artes visuais: pintura, escultura e fotografia/ artes dramáticas:
teatro, dança, ópera, circo, música) , mídia (edição e mídia impressa, audiovisual,
cinema e rádio) e criações funcionais (design de moda e de interiores, arquitetura,
conteúdos digitais, jogos), os quais são apresentados como setores intrínsecamente
inovadores e privilegiados na geração de emprego e renda. ( DUISEMBERG, 2008,
p. 61)
A fim de compreender os preceitos necessários para o desenvolvimento da
Economia Criativa, é importante considerar o panorama das mudanças globais do
período. Diz-se que o processo de Globalização, caracteriza-se pela desindustrialização
de muitas economias, assim como pela fragmentação das cadeias de produção e a
integração financeira em escala mundial. Atualmente, admite-se ainda, que o capital
de uma empresa não se mede apenas por seu patrimônio material, mas também
pelos chamados “ativos intangíveis”, que, neste caso, pode ser representados,
por exemplo, por sua marca registrada e expressos nos moldes das políticas de
propriedade intelectual.
1. Cf. REIS, Op. Cit. Também Disponível em: http://www.culture.gov.uk/about_us/creativeindustries/default.html
203
Paralelamente, percebe-se o aumento da demanda por serviços criativos
no setor de turismo: a valorização da cultura ofstream2, das identidades locais, da
experiência, do único, do singular. Nessa perspectiva, de acordo com REIS (2011),
dois ativos econômicos apresentam-se como facilmente transferíveis entre cidades,
países e regiões: Capital & Tecnologia, e, por sua vez, a Cultura se mostra como
um ativo econômico diferenciado: agrega valor, pois incorpora conhecimento não
facilmente copiável, que não se consegue “transferir” com certa facilidade, sem que se
perca sua especificidade e, portanto, gera os chamados “ativos intangíveis”, também
representados pelos direitos de propriedade intelectual. (REIS, 2011, p. 151)
O primeiro passo para compreender o sentido destas políticas é o surgimento,
nos anos 1970, de teorias que propunham que o capitalismo estava suplantando
a fase industrial e seguindo para uma fase pós-industrial, ou para o pós-fordismo,
como alguns denominam. O século XX foi marcado por intensas e seqüenciais
mudanças nos campos político, cultural, social e tecnológico, cujos efeitos seguem
em curso hoje: mudanças de ordem estrutural, tais quais a ampliação do setor de
serviços em detrimento ao setor industrial e importância cada vez maior da função da
tecnologia e do conhecimento nos rendimentos de produtividade. Nos novos modelos
de gestão a constante aquisição de conhecimentos e habilidades dos trabalhadores
é fundamental. Vemos paralelamente um processo de capitalização incessante do
tempo ocioso, onde os indivíduos são impelidos a se qualificarem continuamente,
sob pena de perderem sua vaga no sistema produtivo. Inaugura-se a chamada
“Economia do Conhecimento”, ou nova economia, que se fundamenta na supremacia
de conteúdos imateriais, simbólicos e intangíveis. Em síntese, teríamos o seguinte
esquema:
Século XIX-XX - Era Industrial
Fins do Século XX, início do Século XXI Era “Pós- Industrial”
MATÉRIA PRIMA , PRODUTOS, SERVIÇOS
CONHECIMENTO, CULTURA, EXPERIÊNCIA
Tangível, Finito, Inelástico
Intangível, Infinito, Elástico
QUANTITATIVO
QUALITATIVO
Massificação
Singularidade
Economia da Escassez
Economia da Abundância
Entre os séculos XIX e o século XX, a chamada Era Industrial, com a
predominância da material prima, de ativos tangíveis, do quantitativo, configurando
uma “economia da escassez”, em contraposição ao período que se configura entre a
segunda metade do século XX e a atualidade, a que Daniel Bell denominou como “pósindustrial”, também chamada de pós-fordista, devido ao esgotamento do paradigma
fordista/taylorista de racionalização do trabalho que tinha por base técnica processos
mecanizados.
Para Nico Stehr, inegavelmente os fundamentos da ordem social que divisamos
à diante são o conhecimento, tal ordem se faz presente por transformações visíveis
em toda parte: no mundo do trabalho, na indústria, nas prestações de serviços,
mas também na agricultura e em todos os demais setores da economia, portanto é
sensato falarmos em uma “sociedade do conhecimento”. Contudo, ele pondera que
204
2. Cultura de Fluxo.
“o conceito de sociedade pós-industrial indica uma direção errada, pois a indústria,
o chamado setor de fabricação, no qual produzimos carros, geladeiras e coisas
parecidas, não perde a importância. Só que cada vez menos pessoas trabalham na
indústria”. (STEHR, 2007, p. 47). Braga analisa a questão:
Nos últimos trinta anos, dizem alguns, o trabalho humano
vivo estaria mudando de conteúdo: do material para o
imaterial. Se antes da informatização da produção
de bens e serviços o conteúdo do trabalho era
essencialmente material, isto é, implicava no dispêndio
físico de energia objetivando transformar a matéria, com
as novas tecnologias informacionais, o dispêndio físico
cede lugar às aptidões cognitivas e o objetivo final do
processo de trabalho é acumular informação agregando
um valor adicional oriundo da criatividade intelectual.
(BRAGA, 2004, p. 50)
Ao falar sobre o chamado “Capitalismo Cognitivo”, Cocco (et al, 2003, p. 12)
assinala que Schumpeter (1883 – 1950) seria o primeiro a dar conta da inovação como
motor fundamental da economia. Os pensadores neo-schumpeterianos enfocam o
papel do conhecimento como instrumento-chave para o alcance do fato inovador.
O ponto que se coloca é, como formula Antonella Corsani: “Quem são os sujeitos
da atividade inovante, que teoria do sujeito criador poderia fundar a análise do fato
inovante?” (CORSANI, 2003, p. 18) De onde, trazendo para o glossário da Economia
Criativa, podemos também indagar: qual criatividade é valorizada e quem institui que
ela mereça ser valorizada?
Castel (1998) fala sobre as metamorfoses da questão social, como um
fantasma que ronda a sociedade contemporânea, colocando em xeque as garantias
conquistadas pelos direitos trabalhistas que configuravam a condição salarial até
parte do século XX. O autor aborda o processo em que se desenvolve uma “nova
questão social” nos últimos anos, a qual, ultrapassando a pauperização de uma
periferia precária, se caracteriza pela “desestabilização dos estáveis”, ou seja, pela
retirada de direitos conquistados pelos trabalhadores, e que toma a mesma amplitude
e centralidade daquela questão social oriunda das primeiras revoluções industriais,
onde se observava o acirramento de conflitos, desemprego e precarização laboral.
Diante do chamado contexto “pós-fordista”, as formas atuais de emprego se parecem
mais com as antigas formas de contratação, quando o status do trabalhador se
diluía ante as pressões do trabalho. O progresso técnico, em vez de criar, suprime
empregos: as transformações tecnológicas promovem a invalidação dos trabalhadores
mais velhos, não aptos à produtividade pela via informatizada e, ao mesmo tempo,
jovens demais para se aposentarem. Essa precarização do emprego e aumento do
desemprego gera déficits de “lugares ocupáveis” na sociedade. Assim, vemos o que
Castel caracteriza como um processo de desfiliação, entendido como a ausência
de vínculos e a não inscrição do sujeito numa estrutura de sentidos. Os chamados
“inúteis para o mundo” escolhem entre a resignação e a raiva. Ocorre, com isso, o
crescimento de uma vulnerabilidade de massas que havia sido lentamente afastada
(CASTEL, 1998, p. 495 – 591)
205
Isto posto, questiona-se quais modelos produtivos seriam capazes de criar
“refiliações” dos sujeitos envolvidos. Se formos pensar nos atuais desafios das
Políticas Sociais no que diz respeito ao bem-estar do trabalhador, sua qualidade de
vida e erradicação da miséria é de se intuir3 que dificilmente alguém que trabalha
por meio da expressão de algum talento artístico/criativo o faça por obrigação ou
por imposição de fatores meramente de ordem financeira: antes, trabalha-se com
o que se gosta. Dir-se-ia que o trabalho criativo tem por premissa a auto-realização
dos sujeitos. Destaca-se, concomitantemente, que essa Economia Criativa tem se
revelado como importante via de geração de empregos e renda na atualidade. No
Reino Unido, a Economia Criativa torna-se referencial em 2005: representa 7,3%
do PIB em 2005 e possui, entre 1997 – 2005, taxa de juros de 6% a.a , frente a 3%
a.a. do total da economia. (REIS, 2011, p. 153). E, assim, conforme assinalado pelos
autores, a Economia Criativa também tem se apresentado como estratégia para o
fortalecimento econômico e social de países em desenvolvimento:
Nos países em desenvolvimento, especialmente nos mais
pobres, a economia criativa é uma fonte de criação de
empregos , oferecendo oportunidades para a mitigação
da pobreza. Atividades criativas, especialmente as ligadas
às artes e às festas culturais tradicionais, geralmente
levam à inclusão das minorias, mantidas à distância. Isso
facilita a maior absorção de parcelas de jovens talentos
marginalizados que, na maioria dos casos, envolvem-se
com atividades criativas no setor informal da economia.
Além disso, como muitas mulheres trabalham na produção
de arte e artesanato, nas áreas relacionadas à moda e à
organização de atividades culturais, a economia criativa
também desempenha um papel catalítico na promoção
do equilíbrio de gêneros na força de trabalho criativo.
(DUISENBERG, 2008, p. 61)
Há uma tendência global de adesão ao fortalecimento das indústrias criativas,
percebendo a cultura como um vetor da nova economia. Se, por um lado esse fato
aumenta seu status entre as políticas públicas, por outro, há o risco de comprometer
a especificidade da cultura, no momento em que ela se submete à lógica econômica.
Em geral, quando assume o caráter conservador, não adaptado às novas tecnologias
(associadas ao software livre, copyleft, etc.), o projeto de implementação das indústrias
criativas costuma vir acompanhado de uma acentuação das políticas de proteção à
propriedade intelectual. O próprio John Howkins (responsável por ter cunhado o termo
“Economia Criativa”) em visita ao SESI-SP comenta que “não há tantos contratos
noutros setores como na economia criativa. Nos balancetes constam basicamente
copyrights.”4
Vale, neste sentido, atentarmos para a pergunta: De onde vem esta noção de
“propriedade intelectual” e o aparato legal a ela relacionado? De acordo com Vianna
(2005), sua origem é comprometida com relações de poder. Com o florescimento da
imprensa, na transição da idade média ao renascimento, os soberanos, ao se verem
ameaçados pela possibilidade da democratização da informação, constituem um
ardiloso mecanismo de censura: concedem monopólio da edição e comercialização
4. Anotação tomada durante a palestra de John Howkins no “Seminário Internacional SESI-SP – Economia Criativa,
206
Cultura e Negócios” em 17 de abril de 2012.
dos títulos aos donos dos meios de produção dos livros desde que estes, em troca,
cuidassem para que não fosse difundido nenhum conteúdo desfavorável à ordem
vigente. “A esse privilégio no controle dos escritos, chamou-se copyright, que nasceu,
pois, de um direito assegurado aos livreiros, e não de um direito do autor dos escritos.”
(ABRÃO, p. 28, 2002. Apud VIANNA, 2005). Outro problema é que, geralmente,
os intermediários exigem dos criadores a recriação dos padrões e esquemas dos
produtos culturais, com a finalidade de reduzir custos e riscos de investimento. Isso
pode se configurar como ameaça à diversidade cultural.
Há de se ter cuidado frente à iminência do risco de que tal aparato legal –
quando expandido não de forma a resguardar os direitos dos produtores, mas dos
difusores de tais conteúdos (empresas, gravadoras, editoras), no âmbito da Economia
Criativa – sirva para garantir a exploração por terceiros dos conteúdos simbólicos
gerados pelas comunidades. Isto é, uma vez que conteúdos simbólicos tornam-se
ativos agregadores de valor econômico, as pessoas correm o risco de perderem o
direito até sobre o que elas significam. Tal quadro já tem gerado conflitos, conforme
relata Kovács:
ativistas quenianos estão lutando para reter designs
culturais que foram desenvolvidos na África Oriental,
mas que estão sendo patenteados por empresas em
países ricos. Após perder a marca registrada da cesta
Kiondo para o Japão, hoje, a famosa estampa de tecido
kikoi corre o risco de ser patenteada por uma empresa
britânica. O kikoi é um tecido colorido de algodão,
historicamente vestido por homens e mulheres em toda
costa oriental africana. (KOVÁCS, 2008, p. 110)
Desse modo, pensando em políticas que não resultem na expropriação
de significados, é mister a reflexão sobre a possibilidade de atrelar o conceito de
propriedade intelectual aos campos do conhecimento tradicional e do patrimônio
imaterial, para que estes saberes sejam respeitados. Nesse sentido, a consolidação
de uma política nacional de Economia Criativa, visando à proteção de tais conteúdos,
frente a um processo global que já se encontra em curso, pode ser encarado de modo
positivo. Pensamos que grande desafio das Políticas Públicas nesse sentido é o de
não promover a redução da cultura a um bem cultural, todavia possibilitar que os
grupos utilizem de sua cultura como um bem quando eles assim desejarem.
A aparição da Economia Criativa no contexto brasileiro
Se a cultura é o recurso privilegiado na economia criativa, num país miscigenado
e tão plural em sua formação como nosso, onde vemos reinar a diversidade,
certamente possuímos esse recurso em abundância, o que faz com que a promoção
da Economia Criativa seja-nos interessante em termos de “vantagens competitivas” a
nível internacional. Mas, do mesmo modo que o Brasil sempre foi dotado de riqueza
em recursos naturais, as questões que se colocam são as seguintes: Como se dão,
na Economia Criativa, os usos e apropriações desses recursos? Será que podemos
afirmar que seus projetos e políticas realmente culminam na redistribuição de renda?
Qual modelo de gestão que cumpriria tal finalidade? Ana Carla Fonseca Reis destaca
que um elemento base nessa questão é pensarmos sobre a “inadequação dos atuais
paradigmas sócio-econômicos em lidar com as discrepâncias distributivas, forjar
207
modelos sustentáveis de inclusão econômica e resolver os problemas da violência
urbana, ambientais e sociais que nos afligem”. (REIS, 2008b, p. 23) Portanto, como
saída, a noção de Economia Criativa por aqui deveria passar por adaptações, dando
ênfase na economia da experiência que “reconhece o valor da originalidade, dos
processos colaborativos (...) fortemente ancorada na cultura e em sua diversidade”
(idem, p. 24) e da economia da cultura “ que propõe a valorização da autenticidade de
do intangível cultural, único e inimitável” (idem), as quais abririam portas às aspirações
dos países em desenvolvimento de possuírem um recurso abundante em suas mãos.
Para a autora,
(...) gerar riqueza não equivale a gerar desenvolvimento,
a questão de fundo de nossas economias continua sendo
não somente como crescer, mas como crescer de modo
sustentável e, ao mesmo tempo, distribuir as possibilidades
de inclusão (...) de formação de profissionais capazes de
conquistarem seus meios de sobrevivência e se realizarem
com isso. ( REIS, 2011, p.151)
De acordo com o ex-ministro Juca Ferreira, nos últimos anos tem sido de
recomendação dos relatórios da ONU o tratamento da Cultura como propulsora no
desenvolvimento das nações. Ele afirma que isso não se dá por um acaso, uma vez
que “não se pode conceber desenvolvimento ou tecnologia sem cultura, porque tudo
está impregnado de cultura” (FERREIRA, 2010). Para ele, portanto, a cultura deveria
ser encarada de uma forma holística, dado que :
A cultura produz muitas “externalidades”; os impactos dos
processos simbólicos, das ações e dos conteúdos culturais
e artísticos iluminam de diversas formas os diferentes
segmentos da sociedade e a vida das pessoas nas mais
diversas dimensões: impactos da cultura são visíveis na
economia, na saúde, na educação, na ciência e tecnologia,
na pesquisa, na qualidade das relações sociais, nas
questões de segurança pública, na vida política do país,
na possibilidade de desenvolvimento de subjetividades
complexas, fundamentais na formação de uma cultura
democrática, solidária e participativa. (Op. Cit.)
208
Ferreira percebe a cultura em seu sentido antropológico como aquilo que
“cimenta” toda forma de ação humana, daí o protagonismo das políticas culturais,
que deveriam fazer uma ponte entre os demais ministérios. Podemos, paralelamente
a nossas considerações anteriores, compreender a possibilidade da criação da
Secretaria de Economia Criativa como fruto dessa necessidade de intercâmbio entre
setores ministeriais e na medida em que se recoloca a Cultura como componente
estratégico para o desenvolvimento brasileiro. Visionário, o ex-ministro da Cultura
Celso Furtado, já na década de 70, afirmava no livro Criatividade e Dependência,
que “implícito na criatividade existe, portanto, um elemento de poder”. (FURTADO,
1978, p. 17) e aventava a possibilidade de superação da dependência econômica –
particularidade dos países em desenvolvimento – por meio da criatividade. Furtado se
preocupa com a questão da dependência, em função do contexto global. Para ele, os
paises em desenvolvimento não tinham condições de se tornarem contemporâneos
aos industrializados se não se adequassem à tática correta. Até a metade do século
XX, os esforços para a saida da condição de dependencia se relacionavam ao folego
da industrialização pautada na substituição de importações faziam algum sentido.
No pós-guerra, essa estratégia não se sustentaria: de nada adianta ter máquinas,
tecnologia, ou cultura organizacional, porque o que chega primeiro é o padrão de
consumo. Desse modo, para o Celso Furtado é pouco válido tentar competir em
desenvolvimento tecnológico se não tivermos criatividade para forjarmos os nossos
padrões de consumo, isto é, a única saida para os países periféricos consiste em
investirem em criatividade para se anteciparem a essa demanda de contornos globais
e se recolocarem na dinâmica da sociedade de consumo .
Outro autor que pensou como poucos a nação brasileira, cuja obra é vinculada
às teorias da mudança social e ao desenvolvimento nacional é Darcy Ribeiro, que
também na década de 70 apontava o diferencial dos papéis da criatividade e da
inovação nessa empreitada:
Um dos fatores fundamentais da mudança cultural é a
criatividade, através de invenções e descobertas. Outros
fatores de mudança são a difusão através dos contatos
entre povos e a inovação, através de movimentos sociais
revolucionários que ensejem o exercício da criatividade no
plano institucional. (RIBEIRO, 1975, p. 141)
Ferreira ainda alerta: “Muitos não sabem que a cultura movimenta uma
economia que emprega mais que a indústria automobilística, já respondendo por
mais de 6,5% de nosso PIB” (Idem), isto é, trata-se de uma economia em franca
expansão. De acordo com Euclides Mauricio de Souza, as articulações entre cultura
e desenvolvimento devem ser encaradas em sua complexidade, dando ênfase a seu
caráter transversal:
Para que a cultura seja inserida no contexto de um
desenvolvimento sustentável, é preciso que suas respectivas
políticas públicas sejam devidamente articuladas no
conjunto de outras políticas voltadas para essa proposta
de desenvolvimento. Ou seja, criar pontes, abrir diálogos
conseqüentes em ações e políticas(...) (SOUZA, 2008, p. 2)
Os termos Indústrias Criativas e Economia Criativa, cuja penetração em alguns
países – como o caso específico da França (MIGUEZ, 2007, p.101) – inicialmente
encontravam resistências, tendem a se acelerar particularmente pelo fato de que a
UNESCO passou a incorporá-los a suas iniciativas e documentos.
No Brasil, o conceito chega pelos debates do reposicionamento do papel da
cultura na estratégia socioeconômica a partir de 2004, com a XI Reunião Ministerial
da Conferência das Nações Unidas para o Comércio e Desenvolvimento (UNCTAD). Em 2005 ocorre, em Salvador, o I Forum Internacional de Indústrias Criativas,
organizado por iniciativa do embaixador Rubens Ricupero (então secretário-geral da
UNC-TAD) e do ex-Ministro Gilberto Gil. Em 2006, uma pesquisa inédita da FIRJAN5
com base em dados da Relação Anual de Informações Sociais (RAIS) indica a
participação de 16,4% de toda a cadeia produtiva do setor considerado Economia
Criativa no PIB brasileiro e a movimentação de 381,3 bilhões de reais de toda a
riqueza produzida nesse mesmo ano em que, também, o módulo “Economia Criativa”
é inserido no Fórum Cultural Mundial do Rio de Janeiro. Em 2007 ocorrem dois
Seminários Internacionais no Ceará e São Paulo. (REIS, 2008b, p.21). No ano de
5. Federação das Indústrias do Estado do Rio de Janeiro no Rio de Janeiro
209
2008 são editados os trabalhos “Cadernos de Economia Criativa: Economia Criativa
e Desenvolvimento Local” pelo SEBRAE & SECULT de Vitória e “Economia Criativa
como estratégia de desenvolvimento: uma visão dos países em desenvolvimento”,
pelo Itaú Cultural, de São Paulo, que sistematizam experiências e possibilidades
acerca do tema, não se tratando, contudo de obras acadêmicas, muito embora boa
parte de seus autores provenham da academia, como sinaliza Reis (2008b, p. 13).
Mais recentemente, em 25 de fevereiro de 2011, é inaugurada a Federação Nacional
de Economia Criativa (FNEC) no Centro Cultural dos Correios de Recife-PE6.
Em 23 de setembro de 2011, durante o II Seminário Internacional de Políticas
Culturais, na Fundação Casa de Rui Barbosa, é lançado o Plano da Secretaria da
Economia Criativa, no qual se declara o compromisso com a formulação de um
modelo próprio, alinhado à nossa realidade, com diretrizes e ações a se efetuarem até
2014. Importa salientar que muito da crítica a nossas políticas desenvolvimentistas
diz respeito justamente à importação de modelos vindos de fora, sem a necessária
adequação às nossas condições. Algo como: Copia-se a receita do bolo, mas nossos
ingredientes não são os mesmos. No referido documento há uma preocupação em
demonstrar que está havendo algum cuidado com relação a esse fato. Por exemplo,
as remissões ao pensamento de Celso Furtado como precursor na construção de
um modelo particular para as políticas da Economia Criativa ficam evidenciadas.
Além disso, optou-se por usar a terminologia “setores criativos”, em vez de “indústrias
criativas”, por motivos de tradução. O conceito de setores criativos é definido neste
documento como: “(...) todos aqueles cujas atividades produtivas têm como processo
principal um ato criativo gerador de valor simbólico, elemento central da formação do
preço, e que resulta em produção de riqueza cultural e econômica.”7
Destacam-se os chamados princípios orientadores, por cuja intercessão se
constitui o modelo de Economia Criativa Brasileira. De acordo com o Plano, as ações
da secretaria devem atentar para o fato de que nossa riqueza cultural se deve a nossa
diversidade cultural. Ela é responsável por um “mundo rico e variado que aumenta
a gama de possibilidades e nutre as capacidades e valores humanos, constituindo,
assim, um dos principais motores do desenvolvimento sustentável das comunidades,
povos e nações.”8
Também se coloca a importância da sustentabilidade contra o uso indiscriminado
de recursos naturais e tecnologias poluentes, cujo objetivo é obter lucros e garantir
vantagens competitivas a curto prazo; um tipo de produção compulsiva e massificada
de baixo valor agregado que é destituída de elementos originais identificadores
das culturas locais. O princípio da inovação – concernente, por sua vez, à idéia
de capitalismo cognitivo, que foi discutida - diz respeito à identificação de soluções
aplicáveis e viáveis, à capacidade de lidar com riscos e à própria postura de vanguarda
do artista. Por fim, vemos o princípio da inclusão social: dadas as condições atuais de
precariedade de considerável parte da população brasileira,
6. http://www.fnec.net.br/
7. Plano da Secretaria da Economia Criativa: políticas, diretrizes e ações. 2011 -2014. Brasília. Ministério da Cultura, p. 22
210
8. Plano da Secretaria da Economia Criativa: políticas, diretrizes e ações. 2011 -2014. Brasília. Ministério da Cultura, p. 33.
a efetividade dessas políticas passa pela implementação de
projetos que criem ambientes favoráveis ao desenvolvimento
desta economia e que promovam a inclusão produtiva
da população, priorizando aqueles que se encontram em
situação de vulnerabilidade social, por meio da formação e
qualificação profissional e da geração de oportunidades de
trabalho e renda.9
Em 1º de junho de 2012, a partir do Decreto 7743 , é criada a Secretaria
da Economia Criativa (SEC), composta pela Diretoria de Desenvolvimento e
Monitoramento e pela Diretoria de Empreendedorismo, Gestão e Inovação. Segundo
o texto resumido no site oficial do Ministério da Cultura, a SEC “tem como missão
conduzir a formulação, a implementação e o monitoramento de políticas públicas para
o desenvolvimento local e regional, priorizando o apoio e o fomento aos profissionais
e aos micro e pequenos empreendimentos criativos brasileiros. O objetivo é tornar
a cultura um eixo estratégico nas políticas públicas de desenvolvimento do Estado
brasileiro.”11
Considerações Finais:
No decorrere do texto focamos nosso esforço em contextualizar e configurar
historicamente uma conjuntura de mutação da esfera produtiva brasileira e
evidenciamos sua nova institucionalidade como resposta e adequação do pais ao
ritmo das transformações e demandas da globalização. Nesse clima, apontamos a
trajetória da circulação e apropriação de idéias e os contornos do debate que deu
forma a matriz institucional da economia criativa no Brasil através da Secretaria de
Economia Criativa. Neste momento “fundador” ainda não é prudente se aventurar a
mensurar o alcance e impactos concretos deste processo em curso. Entretanto, é um
fato histórico para o pais que as políticas publicas do setor promovidas pela Secretaria
se encontram em plena fase de formulação e implantação permanecendo abertas ao
debate público e ao controle social de setores qualificados da cidadania. Contudo, se
pode inferir que, se por um lado há risco de estas mudanças promoverem processos
de mercantilização da cultura, por outro, tais ações, se aplicadas às especificidades
nacionais (regionais) e tendo em vista a redistribuição de bens simbólicos e de renda,
poderiam facilitar a dinamização de novos atores e setores produtivos. Esta dinâmica,
em tese, funcionaria como um elemento inovador do desenvolvimento endógeno
contribuindo simultaneamente para a resignificação das relações produtivas em
segmentos sociais diversificados e emergentes que passariam a atuar como sujeitos
ativos nesta nova economia. A contribuição principal deste processo, a nosso
entender, seria alargar o debate democratico, estimulando o processo político de
reconhecimento e empoderamento dos sujeitos-criadores, valorizando saberes
e identidades produtivas inovadoras que atualmente se encontram à margem do
processo econômico hegemonico.
9. Plano da Secretaria da Economia Criativa: políticas, diretrizes e ações. 2011 -2014. Brasília. Ministério da Cultura, p. 34.
10. Disponível em http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/_Ato2011-2014/2012/Decreto/D7743.htm
11. http://www.cultura.gov.br/site/categoria/politicas/economia-criativa-2/
211
Referências Bibliográficas:
212
BRAGA, Ruy. O trabalho na trama das redes: para uma crítica do capitalismo cognitivo.
Revista de Economía Política de las Tecnologías de la Información y Comunicación.
www.eptic.com.br, Vol. VI, n. 3, Sep. – Dec. 2004
BRASIL. Plano da Secretaria da Economia Criativa: políticas, diretrizes e ações. 2011
-2014. Brasília. Ministério da Cultura, 2011.
CASTEL, Robert. As metamorfoses da questão social: uma crônica sobre o salário.
(trad. Iraci D. Pleti). Petrópolis-RJ: Vozes, 1998.
COCCO, et at. “Conhecimento, inovação e redes de redes. Capitalismo Cognitivo:
trabalho, redes e inovação. COCCO, Giuseppe; GALVÃO, Alexander Patez & SILVA,
Gerardo (orgs.) Trad. de Eliana Aguiar. Rio de Janeiro: DP&A, 2003.
CORSANI, Antonella. “Elementos de uma ruptura: a hipótese do captalismo cognitivo”.
Capitalismo Cognitivo: trabalho, redes e inovação. COCCO, Giuseppe; GALVÃO,
Alexander Patez & SILVA, Gerardo (orgs.) Trad. de Eliana Aguiar. Rio de Janeiro:
DP&A, 2003.
DEHEINZELIN, Lala. “Economia Criativa, Sustentabilidade e Desenvolvimento Local”.
In: DEHEINZELIN, Lala; REIS, Ana Carla Fonseca (orgs.). Cadernos de Economia
Criativa: Economia Criativa e Desenvolvimento Local. Vitória: SEBAE & SECULT,
2008.
DUISENBERG, Edna dos Santos. “Economia Criativa: uma opção de desenvolvimento
viável?” In: REIS, Ana Carla Fonseca (org.), 2008.
FERREIRA, J. “A centralidade da cultura no desenvolvimento” – In. Barroso, Aloísio
Sérgio; Souza, Renildo (orgs.). Desenvolvimento: idéias para um projeto nacional.
São Paulo: Fundação Maurício Grabois, 2010. p. 265-278. Disponível em: http://www.
cultura.gov.br/site/2010/12/13/a-centralidade-da-cultura-no-desenvolvimento/ acesso
em 8 de junho de 2011.
FURTADO, Celso. “Poder e espaço numa economia que se globaliza”. In: Criatividade
e dependência na civilização industrial. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1978.
GALLOIS, Dominique. “O que é Patrimônio Imaterial?” In.: Gallois (org.), Patrimônio
Cultural Imaterial e Povos Indígenas. Iepé, 2006.
KOVÁCS, Máté. “A Economia Criativa e a erradicação da pobreza na África: princípios
e realidades. “ In: REIS, Ana Carla Fonseca (org), 2008.
MARSHALL, T. H. Política Social. Rio de Janeiro: Zahar editores, 1967.
MIGUEZ, Paulo. Economia Criativa: uma discussão preliminar. In: Teorias e Políticas
da Cultura: visões multidisciplinares. NUSSBAUMER, Gisele Marchiri (org). Salvador:
EDUFBA, 2007.
REIS, Ana Carla Fonseca. “Introdução”. In: REIS, Ana Carla Fonseca (org).
Economia Criativa como estratégia de desenvolvimento: uma visão dos países em
desenvolvimento. São Paulo: Itaú cultural, 2008a.
REIS, Ana Carla Fonseca. “Evolução Histórica: da Indústria Criativa à Economia Criativa
– pequeno panorama global.” In: DEHEINZELIN, Lala; REIS, Ana Carla Fonseca
(orgs.). Cadernos de Economia Criativa: Economia Criativa e Desenvolvimento Local.
Vitória: SEBRAE & SECULT, 2008b.
REIS, Ana Carla Fonseca. “O Desenvolvimento de uma Economia Criativa”. In.: Rio: A
hora da virada. André Urani & Fábio Giambiagi (orgs). Rio de Janeiro, Elsevier, 2011.
RIBEIRO, Darcy. Os Brasileiros: 1. Teoria do Brasil. Rio de Janeiro: Civilização
Brasileira, 1975.
SOUZA, Euclides Maurício Siqueira. O lugar da Cultura na idéia de desenvolvimento
sustentável. In.: IV ENECULT : Encontro de Estudos Multidisciplinares em Cultura.
Salvador: UFBA, 2008.
STEHR, Nico. “A Economia Criativa – made in Germany!!”. Agosto/Setembro 2007.
Deutschland. Forum de Política, Cultura e Economia. Entrevista concedida a Martin
Orth.
VIANNA, Túlio Lima. 2005.
“A ideologia da propriedade intelectual: a
inconstitucionalidade da tutela penal dos direitos patrimoniais do autor”. Revista
Jus navigandi. Disponível em: http://jus.com.br/revista/texto/8932/a-ideologia-dapropriedade-intelectual. Acesso em 26 de setembro de 2011.
213