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VOLUME NÚMERO 8 1 ISSN 1981-9862 *19819862* www.revistaagendasocial.com.br Encontro Venho me encontrando com histórias como a do seu Sebastião desde 2010. Ele foi um dos primeiros fotografados de uma série que em outubro completa 4 anos. Não sei quando ϔindarei este trabalho, porque na verdade, ele foi tomando sua forma ao longo do tempo; no começo, eu saia pra rua com a minha (na época) D90 e fotografava tudo que era atrativo aos meus olhos. E com o tempo, fui me interessando mais pelas histórias dos trabalhadores de rua. Hoje esta série já tem nome e até uma proposta para ser exposta. Não sinto pressa para mostrar este trabalho às pessoas. Certo dia, conversando com um amigo, ele disse que não adianta de nada produzir um material e não expor, não trazer a arte à luz do dia. Concordo em termos. Estas fotos são pecinhas de um caminho que trilhei e trilho em busca da minha essência como artista e fotógrafo, nós eu e elas) já vimos sim a luz do dia, no nosso eterno namoro, nos nossos amorosos reencontros das vezes que senti saudades daquela foto que ϔiz daquela pessoa “tal ano” ou em “tal época”. Com a maturidade batendo na porta, vejo que minha vida é uma experiência visual e mais nada. Todas as outras experiências partem do meu desejo e até certa obsessão por pelas formas e cores, principalmente aquelas que vêm das pessoas. Esta série tem uma forte carga pra mim, pois me identiϔico muito com estes trabalhadores. Qual ser humano com uma aptidão artística nunca se sentiu marginalizado ou invisível? Com a sensação de que ninguém liga pra sua arte e que no ϔim das contas ela nem é tão importante assim. Eu sinto que existe esta troca entre eu e eles e eu sinto que eles na verdade, são os grandes artistas dessa nossa experiência visual: ver e ser visto como nunca antes. Júlio César Pires (www.jcpires.com.br) Sumário DA NECESSIDADE DE UMA CIÊNCIA DO SOCIAL: CONDIÇÕES E CIRCUNSTÂNCIAS HISTÓRICO - SOCIAIS E PERSPECTIVA HEGEMÔNICA DE ATUAÇÃO SUSTENTABILIDADE EM EMPREENDIMENTOS SOCIAIS: UM ENSAIO REFLEXIVO PARA UMA ECONOMIA SOCIAL LOCAL AMARAL, Odnélia Cristina S. de (UNA); MELLO, Ediméia Maria Ribeiro (UNA). SOUZA, Iael (UNESP) TRABALHO E ECONOMIA CONTRA-HEGEMÔNICA: A CONTRIBUIÇÃO DO MST PARA REVOLUCIONAR AS RELAÇÕES DE PRODUÇÃO O CAMPO E OS NOVOS DESAFIOS MELLO, Ediméia M. R. (UNA); ARAÚJO, Wânia Maria (UNA); SOUSA, Simone; CZYCZA, Cristiano; RODRIGUES, Antônio José S (UNA); NASCIMENTO, Ana Isabel (UNA); ROMUALDO, Sandra (UNA). ORIENTAÇÃO PROFISSIONAL DE JOVENS DAS CAMADAS POPULARES BENEFICIÁRIOS DO PROUNI COM FOCO NOS DESAFIOS DA TRANSIÇÃO ESCOLA-TRABALHO ANDRADE, Marco Túlio Carvalho de Souza (UNA); MACHADO, Lucília R. de Souza (UNA). ANÁLISE DA MERITOCRACIA NAS RELAÇÕES DE PRODUÇÃO DA EFICIÊNCIA PRODUTIVA À INSTABILIDADE DA CLASSE TRABALHADORA SILVA, Priscila Raposo (UNIMONTES); RODRIGUES, Sílvia Gomes (UNIMONTES); PEREIRA, Anete Marília (UNIMONTES). ECONOMIA SOLIDÁRIA E EMPREENDEDORISMO SOCIAL NO CERRADO NORTE MINEIRO RODRIGUES, Luciene (UNIMONTES); GONÇALVES, Maria Elizete (UNIMONTES); BALSA, Casimiro (UNIMONTES). VOIGT, Ana Clara C. M. (UNIMONTES); OLIVEIRA, Simone M. (UNIMONTES) AS NOVAS DINÂMICAS DE ORGANIZAÇÃO DO TRABALHO ARTESANAL NO ATUAL CONTEXTO ECONÔMICO BRASILEIRO. SILVA, Flávia Leão Almeida (UFV-MG/Brasil); BIFANO, Amelia Carla Sobrinho (UFV-MG/Brasil). A REVOLUÇÃO TECNOLÓGICA, REESTRUTURAÇÃO PRODUTIVA E A PRECARIZAÇÃO DO CONTRATO DE TRABALHO PAULINO, Alex Brant (UNIMONTES); FERREIRA, Maria Da Luz Alves (UNIMONTES). VISITAS TÉCNICAS COMO ATIVIDADE FORMATIVA EM CURSOS SUPERIORES DE TECNOLOGIA RELAÇÕES RACIAIS E PLANEJAMENTO URBANO: ALGUMAS CONSIDERAÇÕES SILVA, Marcelo Martins da (UFABC) MACHADO, Lucília Regina de Souza (UNA); OLIVEIRA, Luiz Fabiano Miranda de (UNA). A SIGNIFICAÇÃO DA PRÁTICA DO BASQUETE PARA CADEIRANTES ECONOMIA CRIATIVA NO BRASIL: TRAJETÓRIA, BERLESE, Denise (FEEVALE); BASSO, Claudia (FEEVALE); RENNER, Jacinta (FEEVALE); SANFELICE, Gustavo (FEEVALE). DEBATE E INSTITUCIONALIZAÇÃO DE UM CONCEITO LEITÃO, Andreza (UENF); GANTOS, Marcelo (UENF) PROPOSTA DE GESTÃO DE PROJETOS APLICA À AVALIAÇÃO DE TÉCNICAS DE TRATAMENTO DE ÁGUA PARA CONTROLE DE CIANOBACTÉRIAS NA BACIA HIDROGRÁFICA DO RIO DAS VELHAS, MINAS GERAIS THEODORO, Hildelano Delanusse (UFMG). SOBRE A REVISTA Revista semestral interdisciplinar voltada para a publicação de artigos cientíϐicos que contemplem as seguintes áreas: 1. Estado, Trabalho, Sociedade e Território; 2. Meio Ambiente, Estratégias de Apropriação e Con litos; 3. Política, Cultura e Conhecimento; 4. Educação, Política e Cidadania. A EQUIPE EDITOR-CHEFE Prof. Dr. Geraldo Márcio Timóteo EDITORES-JÚNIOR MSc. Teó ilo Augusto da Silva MSc. Cristiano Ferreira de Barros MSc. Anna Esser REVISÃO TEXTUAL Prof. Dr. Geraldo Márcio Timóteo DESIGN MSc. Teó ilo Augusto da Silva Carolina dos Santos Oliveira Viana POLÍTICAS DE PUBLICAÇÃO A Agenda Social publica artigos nos idiomas Português, Espanhol, Inglês e Francês. Os artigos em português deverão vir acompanhados de um resumo em português e de um abstract. O artigo submetido em qualquer outro idioma deverá apresentar um resumo na língua original e outro em português. • Preparação dos originais - Os artigos deverão ter, no máximo, 20 páginas em formato A4, incluindo desenhos, ϔiguras, tabelas, fotos, notas e referências bibliográϔicas. Figuras, desenhos, tabelas e fotos deverão inserir cabeçalho (se for o caso), créditos e legendas. Se as ilustrações enviadas já tiverem sido publicadas, mencionar a fonte e a permissão para reprodução. Se forem utilizadas fotos com pessoas, mesmo não identiϔicadas, devem vir acompanhadas da permissão por escrito das pessoas fotografadas. No caso de crianças ou adolescentes, suas fotos deverão estar acompanhadas da autorização dos pais ou responsáveis. As resenhas críticas e entrevistas deverão ter, no máximo, cinco páginas em formato A-4. Os trabalhos enviados deverão estar rigorosamente revisados, conforme as normas gramaticais vigentes. O parecer sobre a aceitação ou não dos artigos será comunicado aos autores. Excepcionalmente serão aceitos trabalhos já publicados (seja em versão impressa ou virtual), desde que devidamente autorizados pelo autor e pelo Conselho Diretor do veículo em que o trabalho tenha sido originalmente publicado. As opiniões e conceitos emitidos nos artigos, bem como a exatidão, adequação e procedência das citações e referências, são de exclusiva responsabilidade dos/as autores/as, não reϔletindo necessariamente a posição do Conselho Editorial Executivo. A Agenda Social não remunera os(as) autores(as) que tenham seus artigos nela publicados. Agenda Social utiliza-se da avaliação do tipo Duplo Cego. Padrão de apresentação: Os trabalhos devem seguir os critérios da Associação Brasileira de Normas Técnicas-ABNT, que, durante a editoração, serão adaptados ao projeto e ao formato editorial do periódico Agenda Social. Para autores estrangeiros é permitido o uso das normas da American Psychological Association-APA, que, na editoração, serão convertidas à ABNT. Os trabalhos devem ser, exclusivamente, enviados por meio do site: www.revistaagendasocial.com.br. Deve ser utilizado o Editor Word for Windows, seguindo a conϔiguração: fonte Times New Roman tamanho 12, papel tamanho A-4, espaço interlinear de 1,5 cm, margens esquerda e superior de 3 cm e direita e inferior de 2 cm. Todas as folhas devem ser numeradas na margem superior direita, excetuando a primeira página embora esta deva ser contabilizada como página nº 1. Licença Creative Commons Este trabalho está licenciado sob uma Licença Creative Commons Attribution 3.0 . Todos os artigos publicados nesta revista foram enviados por seus autores que concordaram com os termos e os adequaram as normas da publicação. Todos os textos foram avaliados por membros da comissão da revista e entendidos como aptos à publicação. Toda a cópia do material deve ter como referência o conteúdo desta publicação. INSTITUIÇÕES ENVOLVIDAS Programas de Pós Graduação em Políticas Sociais da Universidade Estadual do Norte Fluminense Darcy Ribeiro (UENF) Programa de Pós-Graduação em Ciências Humanas e Sociais da Universidade Federal do ABC (UFABC) Programa de Pós-Graduação em Desenvolvimento, Sociedade e Cooperação Internacional da Universidade Nacional de Brasília (UNB). Programa de Pós-graduação em Desenho: Mestrado em Desenho, Cultura e Interatividade, da Universidade Estadual de Feira de Santana-BA (UEFS) ABOUT THE JOURNAL Interdisciplinary and semestral journal that aims the publication of scientiϐic articles in the following areas: 1. State, Work, Society and Landmarks; 2. Environment, Con lict and Appropriation Strategies; 3. Policys, Culture e Knowledge; 4. Education, Politics e Citizenship. THE STAFF CHIEF-EDITOR Prof. Dr. Geraldo Márcio Timóteo JUNIOR-EDITORS MSc. Teó ilo Augusto da Silva MSc. Cristiano Ferreira de Barros MSc. Anna Esser TEXTUAL REVISION Prof. Dr. Geraldo Márcio Timóteo DESIGN MSc. Teó ilo Augusto da Silva Carolina dos Santos Oliveira Viana PUBLICATION POLITICS Agenda Social publishes articles in Portuguese, Spanish, English and French. Articles in Portuguese should be accompanied by an abstract in Portuguese and English. The article submitted in any other language must present an abstract in the original language and in Portuguese. • Preparation of documents - Articles should be no more than 20 pages in a format A4, including drawings, ϔigures, tables, photos, notes and references. Figures, drawings, tables and photographs should insert a running head (if it is the case), credits and captions. If illustrations submitted have been already published, it’s important to mention the source and permission for reproduction. If photos with people, even if not identiϔied are used, they must be accompanied by the written permission of the people photographed. In the case of children or teenagers, your photos should be accompanied by parents or guardians permission. The critical reviews and interviews should take no more than ϔive pages in A4 format. The articles submitted must be rigorously reviewed, according to current grammatical rules. The acceptance or rejection of articles will be communicated to authors. Exceptionally will be accepted articles already published (whether printed or virtual version), duly authorized by the author and by the board of the institution in which the work was originally published. The opinions and concepts expressed in the articles, as well as the accuracy, adequacy and correctness of quotes and citations are the sole responsibility of the authors and do not n reϔlect the position of the Executive Editorial Board of Agenda Social. Agenda Social does not pay the authors that have their articles published. Agenda Social uses Double-Blind evaluation. Standard for submission: Papers must follow the criteria of Associação Brasileira de Normas Técnicas-ABNT, that during editing, will be adapted to the design and editorial format of Agenda Social. Foreign authors are authorized to use the standards of the American Psychological Association-APA, that in publishing, will be converted to ABNT. Entries must be exclusively sent by the website: www.revistaagendasocial.com.br. It must be in Word for Windows, with the following conϔiguration: Times New Roman size 12, A4 size paper, interlinear space of 1.5 cm, left and top margins of 3 cm and inferior and tight margins of 2 cm. All sheets must be numbered in the upper right margin, except the ϔirst page, but this should be counted as page number 1. Creative Commons License This work is licensed under a Creative Commons License Attribution 3.0. All articles published in this journal were sent by their authors who agreed with the terms and have adapted them to the standards of publication. All texts were evaluated by members of the committee of the journal and understood as suitable for publication. All copy of the material must have as a reference the contents of this publication. STAKEHOLDERS INSTITUCIONS Programas de Pós Graduação em Políticas Sociais da Universidade Estadual do Norte Fluminense Darcy Ribeiro (UENF) Programa de Pós-Graduação em Ciências Humanas e Sociais da Universidade Federal do ABC (UFABC) Programa de Pós-Graduação em Desenvolvimento, Sociedade e Cooperação Internacional da Universidade Nacional de Brasília (UNB). Programa de Pós-graduação em Desenho: Mestrado em Desenho, Cultura e Interatividade, da Universidade Estadual de Feira de Santana-BA (UEFS) Agenda Social ELETRONIC JOURNAL VOLUME NÚMERO 8 1 ISSN 1981-9862 www.revistaagendasocial.com.br EDITORIAL TIMÓTEO, Geraldo Márcio; SILVA, Teóϐilo Augusto da Na abertura desta edição, gostaríamos de chamar-lhes a atenção, primeiramente, para a própria capa. Ela traz uma foto de “Seu Sebastião”, foto do publicitário Júlio César Pires. Sua escolha deu-se, claramente, pelo elemento teórico que predomina nessa edição, que é a questão do Trabalho. “Seu Sebastião” é a representação dos vários trabalhadores e trabalhadoras espalhados pelo Brasil e o Mundo. Seu semblante e sua altivez é uma representação de todos aqueles que construíram este país, com sangue, suor e lágrimas, mas, também, com a esperança de um futuro melhor. Nesta nova edição, primeira do oitavo ano, trazemos quatorze artigos. Doze deles tendo a categoria trabalho como elemento central das discussões. São observadas todas as suas riquezas de manifestações e implicações na realidade social desde, ainda, início de século, em suas transformações performáticas e tragédias anunciadas. Assim, podemos iniciar esse nosso percurso pela realidade analítica pelo que escreve Iael Souza, que nos demonstra a necessidade atual da Ciência do Social, como foi criada e de que forma foi imaginada. “Quem são, portanto, os sociólogos e seus objetos de pesquisa?” esta é a pergunta que Iael parece pretender responder no artigo “Da Necessidade de Uma Ciência Do Social: Condições e Circunstâncias Histórico-Sociais e Perspectiva Hegemônica de Atuação”. Em “Visitas Técnicas como Atividade Formativa em Cursos Superiores de Tecnologia” Lucília Machado e Luiz Fabiano de Oliveira promovem uma discussão acerca das visitas técnicas como recurso pedagógico em cursos de formação superior técnica. Odnélia Amaral e Edméia Mello em “Sustentabilidade em empreendimentos sociais: um ensaio reϔlexivo para uma Economia Social local” trazem uma reϔlexão “sobre gestão social para o desenvolvimento local, autogestão para o desenvolvimento de negócios e responsabilidade social de iniciativas privadas, a partir de experiências vivenciadas em empreendimento social”. Já em “Trabalho e economia contra-hegemônica: a contribuição do MST para revolucionar as relações de produção no campo e os novos desaϔios” um esforço coletivo formado por Flávia Silva, Amelia Bifano, Ediméia Mello, Wânia Maria Araújo, Simone Sousa, Cristiano Czycza, Antônio José Rodrigues, Ana Isabel Nascimento e Sandra Marta Romualdo, analisa as relações de trabalho dentro dos campos do MST e sua contribuição para o movimento agrário brasileiro. Com o incentivo do governo federal para o ingresso das diversas camadas sociais aos cursos superiores, diversos atores que antigamente não tinham este acesso passam a considerar e tornar real esta possiblidade, contudo, como orientá-los proϔissionalmente, esta é a problemática levantada por Marco Túlio Andrade e Lucília Machado em “Orientação proϔissional de jovens das camadas populares beneϔiciários do PROUNI com foco nos desaϔios da transição escola-trabalho”. Transformações subjetivas nos trabalhadores e possíveis reϔlexos nas transformações no mundo do trabalho é o tema de “Da eϔiciência produtiva à instabilidade da classe trabalhadora” escrito por Priscila Silva, Silvia Raposo e Anete Pereira. Ainda no tema da importância do trabalhador para o capitalismo contemporâneo, segue o artigo “Análise da meritocracia nas relações de produção” de Ana Clara Voigt e Simone de Oliveira. Retomando o objeto “empreendimentos sociais”, Luciene Rodrigues, Maria Elizete Gonçalves e Casimiro Balsa apresentam-nos o artigo “Economia solidária e empreendedorismo social no Cerrado norte mineiro”. Em “Relações Raciais e Planejamento Urbano: Algumas considerações” o autor, Marcelo da Silva, investiga a segregação racial na disposição urbana, em que as condições culturais e históricas levaram os negros a serem minoria nas regiões mais valorizadas urbanisticamente falando. No artigo “As novas dinâmicas de organização do trabalho artesanal no atual contexto econômico brasileiro”, Flavia Silva e Amelia Bifano apresentam um estudo sobre dados coletados junto ao SEBRAE do trabalho artesanal comparando-o com o mesmo ramo de trabalho ao longo da história. E, ϔinalmente, completando nosso percurso, claramente interdisciplinar, temo o artigo “A signiϔicação da prática do basquete para cadeirantes” de Denise Berlese, Claudia Rafaela Basso, Jacinta Renner e Gustavo Sanfelice reproduz a discussão em cima de uma entrevista semi-estruturada sobre a importância do esporte, no caso o basquete, para o bem-estar de um cadeirante; “Proposta de Gestão de projetos aplica à avaliação de técnicas de tratamento de água para controle de cianobactérias na bacia hidrográϔica do Rio das Velhas, Minas Gerais” de Hildelano Theodoro traz um estudo de gestão sobre um problema comum em bacias hidrográϔicas geridas pelo ser humano; e “Economia criativa no brasil: trajetória, debate e institucionalização de um conceito” desenvolve a absorção paulatina da ideia de Economia Criativa pelas políticas públicas brasileiras, por meio da absorção do mesmo dentro do próprio Ministério da Cultura. Esperamos que vocês tenham uma ótima leitura. Prof. Dr. Geraldo Márcio Timóteo Editor-Chefe MSc. Teóϔilo Augusto da Silva Editor-Júnior Agenda Social VOLUME NÚMERO ISSN 1981-9862 ELETRONIC JOURNAL www.revistaagendasocial.com.br DA NECESSIDADE DE UMA CIÊNCIA DO SOCIAL: CONDIÇÕES E CIRCUNSTÂNCIAS HISTÓRICOǧSOCIAIS E PERSPECTIVA HEGEMÔNICA DE ATUAÇÃO From the need for a social-oriented science: social-historical conditions and circumstances and the hegemonic perspective scope 1. SOUZA, Iael. 1. Professora da Universidade Federal do Piauí. Mestre em Ciências Sociais pela UNESPMarília. Depto de Ciências Humanas e Educação. E-mail: [email protected]. RESUMO 12 8 1 ABSTRACT A sociabilidade capitalista é uma construção social. Logo, re lete as contradições postas pelas relações de poder e força entre as classes sociais em luta. A compreensão das condições e circunstâncias históricosociais que produzem essas contradições e exigem a criação de uma ciência do social, bem como a perspectiva hegemônica de atuação da sociologia na sociabilidade do capital, torna-se essencial para um posicionamento e leitura de mundo consciente, consequente e mais aproximada possível da objetividade processual do real, principalmente para os estudantes egressos aos cursos de licenciatura, in luenciando e condicionando sua atuação social, ideocultural. The capitalist sociability is a social construct. Therefore, it reϔlects the contradictions established by the power and strength interplay between social groups in their ongoing clash. The comprehension of socialhistorical conditions and circumstances which breed such contradictions and demand the development of a social-oriented science, along with the hegemonic perspective within the scope of sociology in capital sociability, becomes imperative to reach a cognizant and consequential considered opinion and assessment of world as close as possible to the procedural objectivity of actuality, especially to students enrolled for undergraduate courses, by inϔluencing and conditioning their social ideocultural interaction. PALAVRAS-CHAVE Sociologia, História, Ideologia. KEY-WORDS Sociology, History, Ideology. I. Introdução Todas as ciências criadas e sistematizadas pelos seres humanos são respostas a determinadas necessidades surgidas em momentos histórico-sociais específicos, produto da complexificação das sociabilidades humanas, dos novos problemas sociais postos que exigem soluções para a produção e reprodução das condições materiais e espirituais de existência organizadas pelos homens. É assim que nasce a ciência do social, daí a necessidade de demonstrar as condições e circunstâncias que condicionam seu surgimento, evidenciando seus determinantes causais. O objetivo é auxiliar os estudantes egressos aos cursos de licenciatura na compreensão das razões, condições e circunstâncias que propiciaram o surgimento da sociologia – ciência do social –, bem como as leituras e posicionamentos de mundo possíveis a partir do posicionamento ontológico, científico, filosófico, político e de classe feito por cada um de nós. II. Para começo de conversa Antes de adentrarmos na contextualização histórico-social do surgimento da sociologia, é imprescindível definir seu significado etimológico, embora seja importante lembrar que todas as palavras (logos) – escritas ou faladas –, e suas correspondentes definições, sofrem mudanças conforme o acúmulo do conhecimento humano e complexificação do seu desenvolvimento, devido às transformações nas relações socioculturais e de produção e também à autoconstrução humana. A palavra sociologia é composta por uma palavra em latim (socius = socio) e outra em grego (logos = logia). Consultando os dicionários de latim, socius é traduzida como companheiro, camarada e logos como fala, palavra. Porém, como dissemos acima, os significados originais vão sofrendo modificações, são constantemente ampliados e aperfeiçoados, acompanhando o devir humano em sua autoconstrução racional, acumulativa, consciente. É assim que logos passa a ser compreendido como razão (dado que a palavra é sua expressão), capacidade de raciocinar, refletir sobre algo ou alguma coisa. Reflexão que se externaliza pela fala, palavra escrita ou verbal, dando voz ao mundo, que é mudo, tornando-o inteligível e permitindo sua manipulação pelo ser social. O logos, enquanto capacidade de refletir e ir além da pseudoconcreticidade (KOSIK, 1976) do real, atualiza a potencialidade do ser social desinverter o que foi propositalmente invertido através da reflexão crítica-analítica-dialética. Portanto, logos não significa estudo, posto que este é um desdobramento daquele, pois a reflexão exige o esforço de se debruçar sobre a realidade para observá-la, registrá-la, classifica-la, realizar comparações, construir análises, fazer experimentos, criar definições a fim de poder estabelecer as generalizações possíveis e os conceitos e categorias de representação da realidade. Por sua vez, a sistematização do conhecimento sobre a realidade é a apropriação consciente e racional dela, daí dizermos ciência. Veremos, então, ao analisar a palavra socius e relacioná-la com logos, porque é possível traduzi-las como: ciência do social. Socius é entendido como social. Na tradução do latim, companheiro (cum 13 panis): aquele com quem dividimos o pão. Só se divide o pão, só o partilhamos com quem conhecemos, estabelecemos uma determinada interação, relação social. São as relações sociais, o modo como elas são estruturadas e organizadas, que definem a vida social e a dinâmica das sociabilidades humanas ao longo do desenvolvimento processual, histórico-social do ser social. Assim, desconstruindo o que (des)aprendemos no ensino fundamental e médio, sociologia não significa o estudo da sociedade, dado que o estudo, como vimos, é o desdobramento do logos. A definição inapropriada de socio (também derivada do latim, socius) como sociedade ainda tem um agravante: ao longo de seu desenvolvimento processual histórico-social, os seres humanos estruturaram diferentes formas de organização social, ou seja, sociedades e não sociedade. Logo, aceitar a definição no singular é negligenciar a diversidade e riqueza de organização e estruturação das relações sociais e de produção no tempo-espaço. Esclarecidos estes aspectos essenciais, vejamos como nasce a ciência do social. III. As condições e circunstâncias histórico-sociais Dissemos anteriormente que toda ciência é uma tentativa racional, consciente, finalística de sistematização da realidade pelos seres sociais a fim de resolver ou enfrentar de modo mais eficaz os problemas experimentados. Sendo assim, cabenos perguntar sobre as condições e circunstâncias histórico-sociais insurgentes que impuseram a necessidade de fundar uma ciência do social. Também pontuamos que o desenvolvimento da história humana é cumulativo, processual, tendendo à complexificação das relações sociais e de produção devido o progresso técnico-tecnológico e científico das forças produtivas, revolucionando a base técnico material da produção, alterando a divisão social do trabalho e as relações que os homens estabelecem com os meios de produção (relações de produção), com a propriedade (relações de propriedade) e entre si (relações de trabalho). Portanto, o questionamento que devemos fazer é o seguinte: em que momento desse processo os homens tomaram consciência que a desigualdade entre eles era social e não natural, transformando-a em um problema/questão social que passa a exigir equacionamento? Aqui é importante destacarmos as contribuições de Quintaneiro, Barbosa e Oliveira (2009). As autoras elencam três fatores cruciais que contribuíram para essa mudança de posicionamento do ser social em relação ao mundo e a si mesmo: a) o racionalismo; b) o empirismo e c) o Iluminismo. Expliquemos o por quê. Na transição do modo de produção feudal ao modo de produção capitalista a crença na razão é revitalizada, pois a nova classe social emergente, a burguesia, necessitava fundamentar e justificar a morte e superação do antigo regime, firmandose enquanto classe social, defendendo seus interesses políticos e econômicos. Para alcançar seu objetivo, não poupou esforços, afirmando o homem como sujeito da história, criador, interventor, produtor e capaz de compreender e explicar os fenômenos naturais, controlando-os e manipulando-os em seu benefício, desmistificando (visão de mundo teológica) a lógica de organização do mundo físiconatural e, por consequência, do mundo social, buscando desvendar as leis imanentes, próprias e internas as coisas (visão de mundo antropológica, racional). No dizer de Montesquieu, “relações necessárias que derivam da natureza das coisas” (1991, p. 14 121). A ideia do homem como sujeito da história é uma contribuição do filósofo Giambattista Vico, posteriormente desenvolvida e maturada por Hegel e Marx. Através dela, Vico compreendia que as diferentes sociabilidades humanas eram fruto da ação racional dos homens e, portanto, podiam ser compreendidas e transformadas por eles. O desdobramento dessa constatação resulta na ideia de desenvolvimento e progresso, entendidos como inerentes à ação racional humana, parte do processo da evolução (influência da teoria evolucionista das ciências naturais) social, construindo as condições para a realização da felicidade humana. Note-se que a felicidade decorre do uso da razão, posto que somente ela é capaz de tirar os homens do estado de ignorância (miséria moral) que se encontram, elevando-os a um conhecimento necessariamente holístico, enciclopédico, recompondo a totalidade social. Afinal, as mudanças em curso afetavam o todo da estrutura social, exigindo o estabelecimento das mediações e conexões causais entre os fatos e fenômenos aparentemente isolados, explicando as relações entre a totalidade do sistema complexo das instituições e dos grupos sociais, criando os meios e condições necessários para a ruptura com o antigo regime em prol da reconstrução das bases para a efetivação da felicidade humana. A afirmação da centralidade da razão, do homem como sujeito da história, proporcionará a valorização das ideias de liberdade individual e da igualdade entre os homens. Isto porque a razão é comum entre todos os seres humanos, o que significa dizer que cada um não só pode como deve pensar com sua própria cabeça, estimulando o desenvolvimento da individualidade e da noção de indivíduo, alterando as relações sociais entre os homens, então pautadas nos laços comunitários e nos valores da coletividade, orientados pela tradição e pelos costumes, substituindo-os pelo contrato social, substrato dos interesses individuais e egoísticos, das convenções, artificialismos e do valor de troca que embasam a sociedade moderna. Por outro lado, se a razão é um atributo de todos os homens, evidencia que todos os seres humanos são iguais entre si, natural e essencialmente iguais. E se o destino dos homens não mais está predestinado (visão teológica de mundo, essência divina), mas é obra de suas mãos e da sua consciência racional, finalística e criadora, os privilégios e as desigualdades entre os homens não são naturais, vontade de Deus, muito menos revelação de uma lógica divina, ao contrário, são resultado do modo como os homens organizam e produzem suas condições materiais de existência, são um produto social, ou seja, criação humana – embora tentem justificar esse modo de vida (criação das ideologias) como o único possível para conseguir a legitimação e aceitação dos demais, garantindo as condições subjetivas para a manutenção e reprodução objetivas da estrutura social pautada na desigualdade2. Num primeiro momento, a (re)valorização da razão atua como força revolucionária, e o grupo social que faz sua defesa e propagação também torna-se uma força revolucionária, pois posiciona-se política, econômica e socialmente por um outro mundo, afirmando que um outro mundo é não só possível, mas emergente e necessário, uma vez que só assim a humanidade poderia se desenvolver, progredir, ser livre, viver a igualdade e ser feliz. Nesse momento, a razão aproxima2. Ver SAVIANI, Dermeval. Escola e Democracia – teorias da educação, curvatura da vara, onze teses sobre a educação política. 39 ed. Campinas, SP: Autores Associados, 2007. (Coleção Polêmicas do Nosso Tempo; vol. 5, p. 38 e 39) 3. Ver, REIS, José Carlos. Escola dos Annales – a inovação em História. São Paulo: Paz e Terra, 2000, p. 39 – 43. 15 se do significado ontológico que os gregos lhe atribuíam, ou seja, a busca pelos fundamentos do ser, a essência última das coisas. Algo muito distinto do que ela se transformaria após o período da era das revoluções burguesas, quando aquele grupo se estabelece, efetivamente, como classe social, e sua razão de ser passa do fundamento para a explicação das coisas, da filosofia da essência para a filosofia da existência, instrumentalizando a razão (razão instrumental, pragmática), preocupada em explicar os fatos e seu funcionamento através da descoberta de sua regularidade matemática. Porém, em sua fase revolucionária, a razão questiona os princípios filosóficos metafísicos que sustentavam o modo de vida medievo. A dedução perde a primazia para a indução, embasada na observação do mundo objetivo (empirismo), positivo (do latim, positum, o que está posto, o que é, o que existe) e também na experimentação (método experimental), permitindo as comprovações, as comparações, as classificações, o estabelecimento de similitudes e especificidades, produzindo o conhecimento científico, sistematizando o mundo para os homens, preparando as condições para o próximo passo: o conhecimento dos homens no mundo, onde o homem (sujeito da história) passa a ser também objeto de estudo, assim como a dinâmica e a vida social criadas por ele3. A explicação científica do mundo natural, o método das ciências naturais, com destaque para a Biologia (Charles Darwin e o evolucionismo) e a Física (Isaac Newton e a lei do movimento – dinâmica – e repouso – estática), será o esteio para elaboração e desenvolvimento do método das ciências sociais e da procura das leis da história humana, permitindo aos homens o planejamento, a previsão a precaução e a intervenção intencional na realidade. É assim que podemos entender a assertiva de Saint-Simon, o primeiro a intuir a necessidade de uma ciência do social: todas as ciências, que ‘começaram sendo conjecturais /.../, estão destinadas a se tornarem positivas’ (1813). A ciência do homem – ou fisiologia aplicada ao melhoramento das instituições sociais – não foge, portanto, à regra comum que reza que, para se tornar positiva, ela deve apoiar-se em ‘fatos observados e discutidos’. [...] pelo conhecimento de si que elas (ciências sociais) permitem, o homem pode elevar-se a uma visão diferente de si mesmo e de seu modo de intervenção na natureza. (CUIN; GRESLE, 1994, p.27). IV. O surgimento da ciência do social A crise do antigo regime, as novas relações sociais e de produção, bem como a nova ideologia política-filosófica (iluminismo), contagiaram a massa do povo, desde os pobres aos miseráveis, os trabalhadores e os desempregados, enfim, todos os excluídos das benesses do desenvolvimento da razão, da ciência e das forças produtivas, que passaram a se identificar com o novo projeto político-social de mundo plasmado pelo grupo social emergente dos comerciantes, financistas e industriosos, lutando e colocando em risco a própria vida para poder realiza-lo. Eram guiados pela crença na realização da promessa de um mundo justo, sem exploração, onde a igualdade social seria pressuposta como condição para uma existência digna, 4. Ver, MARTINS, Carlos Benedito. O que é Sociologia? 38ª ed. São Paulo: Brasiliense, 1994, p. 7 – 33. (Coleção Primeiros Passos: 57) 16 5. Ver, BOTTOMORE, Thomas Burton. Introdução à Sociologia. 3ª ed. Rio de Janeiro: Zahar Editores, 1970, p. 16 e 17. concretizando a felicidade e liberdade humanas4. No entanto, a promessa seria frustrada. A era das revoluções foi abortada, ficou inconclusa, porque o processo revolucionário não foi levado até as últimas consequências, sendo freado pela nova classe social emergente, a burguesia, quando esta percebeu que significaria a perda da recém posição política e econômica conquistada, perigo iminente que só seria neutralizado através da retomada da ordem social, que deveria ser planejada e controlada por ela, embora parecesse a todos se tratar de um planejamento em prol dos interesses e necessidades de toda a sociedade, sem distinção, da res-pública (coisa pública), culminando no regime político republicano-democrático (na verdade, na social-democracia burguesa e não numa democracia social). Mesmo sendo minoria, conseguiu se colocar como representante de toda a humanidade, porta-voz dos direitos do homem e do cidadão, e a aceitação e legitimação social do seu poder político-econômico foi possível porque passou a deter o controle e propriedade privada sobre os meios de produção da vida material (a ciência, as técnicas, as tecnologias e as forças produtivas em geral) e espiritual (as ideias, as representações) da sociabilidade humana, demonstrando o verdadeiro significado da palavra hegemonia, confirmado mais tarde por Marx e Engels em sua obra A Ideologia Alemã, quando disseram que as ideias dominantes são as da classe dominante, o que nos permite compreender porque a perspectiva de mundo hegemônica é a conservadora-positivista-funcionalista, como será evidenciado. O problema social5 que se colocava para retomar a ordem social e repor o controle sobre o social, promovendo a reintegração social, era justificar a pobreza de modo racional, persuasivo, contornando-a, principalmente para o movimento operário e todos os pobres e miseráveis que engrossavam sua fileira, pois o novo mundo nascente, o modo de produção capitalista, havia aprofundado e não eliminado – como se esperava – as desigualdades sociais entre os homens, criando uma nova divisão entre eles, cindidos entre proprietários e não-proprietários dos meios de produção/ reprodução da vida material e espiritual. Aqueles que não detêm o controle sobre tais meios de produção são controlados pelos outros que os detêm e assim são criadas as condições reais para a nova divisão social do trabalho e nascimento das duas grandes classes sociais antagônicas e de interesses e necessidades irreconciliáveis e irremediáveis: a) capitalistas e b) trabalhadores. Como conter o ânimo das massas, do movimento operário? Como restabelecer a ordem, a paz, a integração para a coesão social, para o aperfeiçoamento, desenvolvimento e progresso socioeconômico? Essas foram as preocupações iniciais daqueles que entendiam ser necessária a reorganização moral e política da sociedade, como Saint-Simon e seu discípulo August Comte. O primeiro, como dissemos anteriormente, intuiu a necessidade de criação de uma ciência do mundo criado pelo homem, uma ciência do social, ideia apropriada e desenvolvida pelo segundo, que a denominou, primeiramente, como Física Social (influência das ciências naturais), alterando-a, algum tempo depois, para Sociologia. O problema social da pobreza precisava ser explicado, enfrentado e equacionado de alguma maneira, ainda que jamais fosse solucionado. Era importante criar e manter a ilusão de pretensão de resolvê-lo, amenizando-o. A pobreza generalizada contrastava com a concentração e centralização da riqueza social e das forças produtivas restritas a uma minoria. A primeira tentativa de justificar essa nova conjuntura da estrutura social foi explicar a lógica de organização do mundo social através da lógica de organização do mundo natural, constatadas empiricamente, positivamente, demonstrando que da mesma maneira que há leis na natureza, também existem leis na evolução social (darwinismo social). Não se trata de naturalização ou divinização das relações sociais, mas sim de provar que seu 17 funcionamento obedece a princípios imanentes ao desenvolvimento do progresso da história humana. Ilustremos com Comte. Através de seus estudos, Comte conclui que existe uma marcha evolutivaprogressiva inexorável do espírito humano em direção ao estado positivo, que representa o grau mais elevado e complexo da vida social e do conhecimento alcançados pelos homens. Essa marcha ocorre objetivamente, independente da vontade dos indivíduos. Daí a necessidade de conhecer as leis do seu desenvolvimento para que se possa prever e planejar as ações e reformas imprescindíveis ao progresso social, ou seja, a mudança deve ocorrer, porém não de maneira revolucionária, descontrolada, apaixonada, impulsiva, caótica, mas sim de forma estruturada. Em outras palavras, deve-se estruturar a mudança, direcioná-la, pois é necessário ordem para que haja progresso. Comentando o pensamento de Comte, Benoit (1999) diz que o termo positivo e positivismo, adotado por influência de Saint-Simon, remete à atividade prática política, já que designa “toda ação social eficaz” que pretende dar “uma contribuição real à atividade social” (1999, p. 42), demonstrando a preocupação e necessidade de retomar e manter o controle sobre o social, redimensionando, através de reformas, os conflitos sociais, tornando-os manipuláveis, refazendo o equilíbrio social para a produção do consenso moral necessário a coesão social. O estudo das leis sociais permite desenvolver políticas governamentais e os meios mais adequados e precisos para a conservação e manutenção da ordem para o progresso e desenvolvimento econômico-social. Vemos, assim, como Comte, através do pensamento positivista, base do conhecimento científico moderno, procura justificar a nova ordem social, principalmente para a classe trabalhadora, que continua sendo explorada e agora, mais do que em qualquer outro momento ou período histórico-social, está capacitada de enxergar e compreender as origens de sua exploração. Por isso se preocupa em instruir o povo de modo científico, positivo, demonstrando racional e objetivamente, através de um curso de astronomia popular, um exemplo “de uma ‘ordem real’ que comanda o universo” (PILETTI; PRAXEDES, 2010, p. 20), a fim de que não se opusessem e resignassem “a existência de uma ordem social natural e invariável, que funciona independente da intervenção humana”. (PILETTI; PRAXEDES, 2010, p. 20) V. Perspectiva de atuação da ciência do social: a hegemonia conservadorapositivista-funcionalista Ainda que a Sociologia positivista nascente tentasse construir uma justificativa para os problemas sociais e, principalmente, para a desigualdade social e para a pobreza, transformada em um fato social, as contradições tornaram-se demasiadamente evidentes. O capital e o sistema capitalista são a própria contradição viva. Embora a classe capitalista tenha a hegemonia nesse sistema, usando tanto da força (aparelhos repressivos do Estado) como da persuasão (aparelhos ideológicos de Estado), a contra-hegemonia está presente no seu contrário, a classe trabalhadora, e o modo como se articula a luta de classes expressa o nível da correlação de forças e da organização e mobilização política-social de cada uma delas. Infelizmente, a desvantagem da perspectiva contra-hegemônica – que por isso é transformadora (luta pela superação radical do capital e do sistema capitalista), crítica (busca não a explicação das coisas, mas seu fundamento para a produção e reprodução da vida social), de totalidade social (reconstrói as conexões causais e determinações reflexivas-dialéticas das relações sociais e materiais de produção) –, é colossal frente aos mecanismos desenvolvidos pela classe capitalista para a 18 coaptação, desorganização e desmobilização da classe trabalhadora, fragilizando-a, dividindo-a e fazendo com que se digladie entre si, enfraquecendo-a para unir-se e lutar por aquilo que realmente importa: o fim da propriedade privada dos meios de produção/reprodução da vida material e espiritual, do Estado, das classes, da exploração do homem pelo homem e pela emancipação humana. Mesmo assim, “nada é impossível de mudar”, como diz o poeta e dramaturgo Bertold Brecht, pois o ser social é vitalidade criadora e as “grandes proezas da história foram conquistadas daquilo que parecia ser impossível”, como dizia Charles Chaplin. Até mesmo Durkheim, conservador e positivista, reconheceu que apesar da existência de dificuldades impostas por um poder contrário de origem social, apresentamse comportamentos inovadores, e as instituições são passíveis de mudança desde que ‘vários indivíduos tenham, pelo menos, combinado a sua ação e que desta combinação se tenha desprendido um produto novo’ que vem a constituir um fato social. (QUINTANEIRO, BARBOSA, OLIVEIRA: 2009, p. 71) A questão é que demanda tempo, reflexão, estudo, recolocar as mediações no lugar das representações e luta permanente, o que, no contexto atual, parece ser o principal problema: a permanência da e na luta, ainda mais com o discurso da pluralidade cultural, do respeito às diferenças, da valorização das subjetividades; do fim da história, das metas narrativas e dos discursos totalizantes, dentre outros fatores, como demonstram Wood e Foster (1999). É assim que aprendemos que o mundo sempre foi assim, sempre será e nunca vai mudar; que outro mundo é uma utopia, entendida como o não lugar e não no seu sentido ontológico de lugar possível, horizonte que nos ajuda a caminhar, como frisou Eduardo Galeano repetindo as palavras de um amigo. Essa pretensa explicação racional científica, baseia-se numa seleção da história humana, apagando da nossa lembrança e memória os quase 12 mil anos de vida primitiva-comunal, onde não havia exploração do homem pelo homem, desigualdade social, Estado, propriedade privada dos meios de produção e reprodução da vida material. Os livros de história que são utilizados no processo de escolarização condensam esses milhares de anos em um capítulo, quando muito em dois, enquanto os demais são utilizados para inculcar e internalizar uma determinada história, destacando os fatos considerados relevantes para o patrimônio histórico-cultural da humanidade. É interessante ressaltar que essa perspectiva, apesar de conservadora, é progressista, pois pensa a mudança, a planeja, dado que necessita fabricar o consenso moral para a coesão social, conseguindo o consentimento das pessoas para legitimar a estrutural social criada, mantendo-a e perpetuando-a, aperfeiçoando o existente. O que existe é o melhor para existir, porque resulta do desenvolvimento e progresso da razão na história e se há problemas sociais, eles são entendidos como disfunções, anomalias do organismo social (visão organicista da sociedade, devido a influência da biologia no método das ciências sociais), que podem e devem ser corrigidas, consertadas, remediadas, identificando as partes, ou a parte, que não estão cumprindo com sua função social específica para o bom funcionamento do todo, do corpo social. 6. Ver, DELLA FONTE, Sandra Soares. Fundamentos teóricos da pedagogia histórico-crítica, p. 30 e 31. In: MARSÍGLIA, Ana Carolina Galvão (Org.). Pedagogia Histórico-Crítica: 30 anos. Campinas, SP: Autores Associados, 2011. (Coleção memória da educação) 19 O funcionalismo é um desdobramento do positivismo. O que é, o que existe, está posto, está fora, é exterior ao sujeito, é objetivo, por isso mesmo é possível detectar as irregularidades sistêmicas do organismo social, pois o mundo social também apresenta leis, as leis sociais, que são invariáveis, portanto, regulares, o que permite explica-las, porque elas têm padrões que nos permitem entende-las. A racionalidade é matemática. Mas, afinal, qual o problema desse raciocínio? Primeiro, o objetivo para ser compreendido, e não apenas entendido através de suas propriedades imanentes (físico-naturais), exige o estabelecimento de relações com os demais objetos, porque ele está no mundo, portanto, em relação com outros objetos, o que proporciona a compreensão mediada das determinações reflexivas que compõem sua objetividade. O que ele é depende dos condicionantes históricos-sociais em que ele está inserido e com os quais se relaciona, ou seja, a historicidade do que existe, do que é, do existente. Outro aspecto, é que os problemas sociais não são disfunções, mas produto do modo como os homens organizam a produção dos meios materiais e espirituais de existência. Marx e Engels são enfáticos quanto a isso ao dizer: O modo pelo qual os homens produzem seus meios de vida depende, antes de tudo, da própria constituição dos meios de vida já encontrados e que eles têm de reproduzir. Esse modo de produção não deve ser considerado meramente sob o aspecto de ser a reprodução da existência física dos indivíduos. Ele é, muito mais, uma forma determinada de sua atividade, uma forma determinada de exteriorizar sua vida, um determinado modo de vida desses indivíduos. Tal como os indivíduos exteriorizam sua vida, assim são eles. O que eles são coincide, pois, com sua produção, tanto com o que produzem como também com o modo como produzem. O que os indivíduos são, portanto, depende das condições materiais de sua produção. (MARX; ENGELS: 2007, p. 87) Portanto, as contradições postas na realidade são inerentes de uma estrutura social alicerçada nas classes sociais, na propriedade privada dos meios de produção, na divisão social do trabalho, e uma compreensão mais aproximada e adequada delas impõe a necessidade de se apropriar da historicidade e dos condicionantes constitutivos de todo ser existente, reconstituindo a totalidade de suas relações sociais (materiais/espirituais) e de produção, buscando seus fundamentos, suas conexões causais, o que não se esgota no fato em si, que é apenas ponto de partida, pois o real é o concreto pensado, isto é, desvelado pela construção da síntese de suas múltiplas determinações. Referências Bibliográficas ARRAIS NETO, Enéas; SOBRAL, Erilênia. Políticas Educacionais e Sociais. In: _____. Estado e políticas sociais e educacionais no Brasil: esclarecimentos acerca do método e das teorias sociológicas. Fortaleza: Editora UVA, 2000, cap. 1, p. 9 - 42. BENOIT, Lelita Oliveira. Sociologia comteana – Gênese e devir. São Paulo: Discurso Editorial, 1999. 20 BOTTOMORE, Thomas Burton. Introdução à Sociologia. 3ª ed. Rio de Janeiro: Zahar Editores, 1970. CUIN, Charles Henry; GRESLE, François. História da Sociologia. Trad. Roberto Leal Ferreira. São Paulo: Ensaio, 1994. FOSTER, John Bellamy. “Em defesa da história – Posfácio”. In: WOOD, Ellen Meiksins; FOSTER, John Bellamy (Orgs.). Em defesa da História – Marxismo e pósmodernismo. Trad. Ruy Jungmann. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Editor, 1999. KOSIK, Karel. Dialética do concreto. Trad. Célia Neves e Alderico Toríbio. 2 ed. Rio de Janeiro, Paz e Terra, 1976. MARTINS, Carlos Benedito. O que é Sociologia? 38ª ed. São Paulo: Brasiliense, 1994, p. 7 – 33. (Coleção Primeiros Passos: 57) MARX, Karl; ENGELS, Friedrich. A Ideologia Alemã: crítica da mais recente filosofia alemã em seus representantes Feuerbach, B. Bauer e Strner, e do socialismo alemão em seus deferentes profetas (1845-1846). Supervisão editorial, Leandro Konder; tradução, Rubens Enderle, Nélio Schneider, Luciano Cavini Martorano. São Paulo: Boitempo, 2007. MONTESQUIEU. O espírito das leis, livro I, cap. I. In: WEFFORT, Francisco. Os Clássicos da Política – Maquiavel, Hobbes, Locke, Montesquieu, Rousseau. v. I: O Federalista. São Paulo: Ática, 1991. PILETTI, Nelson; PRAXEDES, Walter. Sociologia da Educação – Do positivismo aos estudos culturais. 1 ed. São Paulo: Ática, 2010, p. 27. QUINTANEIRO, Tania; BARBOSA, Maria Lígia de Oliveira; OLIVEIRA, Márcia Gardênia. Um Toque de Clássicos: Marx, Durkheim e Weber. 2 ed. rev. atual. Belo Horizonte: Editora UFMG, 2009. SAVIANI, Dermeval. Escola e Democracia – teorias da educação, curvatura da vara, onze teses sobre a educação política. 39 ed. Campinas, SP: Autores Associados, 2007. (Coleção Polêmicas do Nosso Tempo; vol. 5, p. 38 e 39) WOOD, Ellen Meiksins. “O que é a agenda ‘pós-moderna’?” In: WOOD, Ellen Meiksins; FOSTER, John Bellamy (Orgs.). Em defesa da História – Marxismo e pósmodernismo. Trad. Ruy Jungmann. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Editor, 1999. 21 Agenda Social ELETRONIC JOURNAL VOLUME NÚMERO ISSN 1981-9862 www.revistaagendasocial.com.br VISITAS TÉCNICAS COMO ATIVIDADE FORMATIVA EM CURSOS SUPERIORES DE TECNOLOGIA Technical visits as formative activities in technology undergraduate courses 1. MACHADO, Lucília Regina de Souza. 2. OLIVEIRA, Luiz Fabiano Miranda de. 1. Professora do Centro Universitário UNA, Doutora em Educação. 2. Bolsista IC do Centro Universitário UNA, graduando em Ciências Biológicas. RESUMO 22 8 1 ABSTRACT O artigo discute resultados de pesquisa sobre as bases de orientação para a realização de visitas técnicas por alunos de cursos superiores de tecnologia do Instituto UNA de Tecnologia, sediado em Belo Horizonte. O conceito base de orientação da ação, de P. I. Galperin se referencia na Teoria da Atividade de A. N. Leontiev, autores da escola históricocultural fundada por L. S. Vigotski. Na educação pro issional, as visitas técnicas visam cumprir as inalidades de prover informações a estudos e pesquisas sobre o mundo do trabalho, servir à ampliação e signi icação do processo de ensino-aprendizagem, oferecer visão complementar sobre o exercício futuro de uma determinada ocupação ou pro issão. Realizam a mediação entre o mundo acadêmico e o universo pro issional real numa determinada área de atuação. Os resultados discutidos derivaram de entrevistas semi-estruturadas realizadas com diretora da instituição onde se realizou a pesquisa e coordenadores e/ ou professores responsáveis pelas visitas técnicas dos cursos investigados. The article discusses the results of research on the basis of guidance for the technical visits by students from courses of technological graduation offered by UNA Institute of Technology, in Belo Horizonte. The concept of base of orientation of the action of P. I. Galperin has reference in the Activity Theory of A. N. Leontiev, authors of the cultural-historical school founded by L. S. Vygotsky. In vocational education, technical visits aim to fulϔill the purposes of provide information for studies and research on the world of work, serve the expansion and signiϔicance of the teaching-learning process, provide additional insight into the future exercise of a particular occupation or profession. They perform mediation between the academic world and the real professional world in a particular ϔield. The results discussed were derived from semi-structured interviews conducted with the director of the institution where the research was conducted and coordinators and / or teachers responsibles for technical visits of the courses investigated. PALAVRAS-CHAVE Educação pro issional e tecnológica. Visitas técnicas. Graduação tecnológica. KEY-WORDS Vocational and technological education. Technical visits. Technological Graduation. 1 INTRODUÇÃO Este artigo apresenta resultados de pesquisa sobre bases de orientação de ações em visitas técnicas (VTs), realizadas por alunos de cursos superiores de tecnologia do Instituto Unatec de Tecnologia, sediado em Belo Horizonte, Minas Gerais, e suas perspectivas para o desenvolvimento de habilidades profissionais. Na educação profissional e tecnológica, as VTs contribuem para a realização da mediação entre o mundo acadêmico e o universo profissional real numa determinada área de atuação, para observar diversos aspectos envolvidos nos processos de trabalho, para obter informações diversas sobre o mundo do trabalho e visão complementar sobre o exercício futuro de uma determinada ocupação ou profissão. Podem ampliar a significação do processo de ensino-aprendizagem e permitir encontrar novos elementos para análises, avaliações e criações. Ao discutir aspectos legais e conceituais sobre o profissional tecnólogo e sua formação, Machado conclui que É preciso considerar que a formação do Tecnólogo também deverá ser direcionada para o campo da pesquisa e de desenvolvimento de projetos e para funções de direção, mais além que supervisão de setores especializados. Fundamentada no desenvolvimento do conhecimento tecnológico e em sintonia com a realidade do mundo do trabalho, a oferta dos cursos precisa articular as dimensões da ciência, natureza, cultura, trabalho e tecnologia (MACHADO, 2008, p. 26). A autora oferece elementos para esclarecer que os cursos superiores de tecnologia não podem ser confundidos com cursos técnicos e com habilitações intermediárias entre a de técnico e a de bacharelado. Questiona suas ofertas como versões compactas e empobrecidas de bacharelados. Descarta a possibilidade de defini-los como cursos de curta duração, pois há bacharelados e licenciaturas com igual duração à de um curso superior de tecnologia. Argumenta que eles são um tipo de graduação do mesmo nível de um bacharelado ou de uma licenciatura e que não formam profissionais apenas para o trabalho de operação e gestão. Machado (2008) lembra que à profissão de tecnólogo, na atual Classificação Brasileira de Ocupações datada de 2002, são designadas atribuições de planejamento de serviços e implementação de atividades; administração e gerenciamento de recursos; promoção de mudanças tecnológicas; aprimoramento das condições de segurança, qualidade, saúde e meio ambiente. Todas elas exigem formação compatível com nível elevado de responsabilidade. A pesquisa realizada considerou tais fundamentos conceituais e legais e teve em perspectiva a geração de conhecimentos sobre bases de orientações de ações em visitas técnicas realizadas por alunos de graduação tecnológica. Descritiva, expõe os motivos, as ações e as situações de orientação, acompanhamento e avaliação de alunos. É uma pesquisa qualitativa, por ter nas interpretações de coordenadores e/ou professores dos cursos focalizados seu material empírico. O Instituto UNA de Tecnologia – Unatec foi fundado em 2004, com nove cursos, 360 alunos e média de 20 professores. De 2004 a 2013, experimentou um grande crescimento: multiplicou esse número de cursos por 2,7 chegando a 24; o de alunos por 16,7 alcançando a casa dos 6000; e o de professores por 18 chegando atualmente a 360. As VTs são regulamentadas pela Unatec, para as quais se faz previsão 23 orçamentária. A pesquisa realizada focalizou três cursos, que tem na saúde uma referência comum. O curso de Estética e Cosmética, que visa formar profissionais, que de forma autônoma ou em equipe multidisciplinar, atende clientes encaminhados por dermatologistas, cirurgiões plásticos, nutricionistas e outros profissionais da área de saúde. O curso de Gestão Hospitalar destinado a formar gestores para instituições de saúde tais como hospitais, policlínicas, clínicas, ambulatórios de pronto-atendimento e programas de saúde pública. O curso de Gestão Ambiental, onde se faz a preparação do aluno para atuar como gestor de questões ambientais relativas a ecossistemas, biodiversidades, poluição do solo, águas e atmosfera, manejo de recursos naturais e recursos energéticos. Foram realizadas entrevistas semi-estruturadas com a diretora do Instituto UNA de Tecnologia e coordenadores de cada um desses três cursos. No caso do curso de Estética e Cosmética, entrevistou-se também uma professora para fins de complementação de informações. As entrevistas tiveram a duração média de uma hora e meia, foram gravadas com autorização dos entrevistados e, posteriormente, transcritas. O roteiro que orientou as entrevistas consistia dos seguintes tópicos: a) motivos para a realização de VTs; b) ações dos alunos nas VTs; c) operações dos alunos nas ações em VTs; d) condições de realização das ações e operações; e) orientação dos alunos em VTs; f) acompanhamento e avaliação de discentes; g) reflexões dos alunos sobre VTs. 2 REFERENCIAL TEÓRICO O conceito de base de orientação da ação - BOA, que fundamenta a pesquisa realizada, foi elaborado por P. I. Galperin (1902-88) , discípulo de A. N. Leontiev (1903-79), autor da Teoria da Atividade – TA (Leontiev, 1983). Ambos desenvolveram estudos na perspectiva histórico-cultural em continuidade aos trabalhos de L. S. Vigotski (1896-34). O conceito de BOA decorre da teoria da formação por etapas das ações mentais de Galperin (Talízina, 1985; 1988). Ele entendia o estudo como um sistema formado por diversos tipos de atividade. No presente artigo, a VT é considerada como um dos tipos de atividade de estudo. Referenciado na TA de Leontiev, Galperin considerava que cada atividade pressupõe motivo(s) e se desdobra num conjunto de ações e seus respectivos objetivos. Para a realização das ações, elas precisam ter da parte dos sujeitos que as executam uma determinada representação. Eles também precisam ter uma representação das condições necessárias para realizá-las. Tais condições envolvem as operações que precisam ser cumpridas em conformidade com as regras que constituem o processo da ação. Galperin dá o nome de base orientadora da ação à unidade estrutural formada por essas duas representações: a imagem da ação e a do meio em que esta se realiza. Este último se refere ao sistema de condições da ação e depende das peculiaridades do objetivo e objeto da ação; do caráter e ordem das operações que entram na ação; das características especiais dos instrumentos utilizados. São condições que exercem influência sobre o resultado da ação (Talízina, 1985; 1988). Além da parte orientadora da ação, há, segundo Galperin, a parte de execução da ação e a que diz respeito ao seu controle mediante a comparação entre o previsto e o realizado. Mas, segundo ele, o que é decisivo na ação é a base representacional para a primeira parte, a orientadora, pois dela origina sua direção para a execução e controle. 24 Segundo Talízina (1985; 1988) foi possível encontrar, teoricamente, oito tipos de BOA a partir de combinações das suas características: grau de generalização (ser aplicável não apenas a um caso concreto, mas servir a vários), plenitude (ser completa, incompleta ou mais do que suficiente) ou modo como é obtida (dada pelo professor ao aluno ou por este elaborada de forma autônoma). A elaboração da BOA de forma independente pelo aluno pode resultar de ensaios e erros ou da aplicação consciente de algum método. É importante destacar, porém, que a eficácia da formação da ação depende também de como o aluno recebe do professor esta base orientadora. Talízina (1988) descreve três tipos de BOA. No primeiro tipo, a BOA se mostra incompleta, é aplicável apenas a casos particulares, a obtenção dela se dá por meio do ensaio e erro, a formação da ação ocorre de forma muito lenta, sofre influências de pequenas mudanças nas condições para sua execução e o aluno comete muitos erros. No segundo tipo, a BOA se mostra completa, foi preparada pelo professor que a entrega ao aluno para execução, é aplicável apenas a casos particulares, permite que o aluno forme rapidamente a ação e sem erros, é mais estável em relação à variação das condições, mas é limitada, pois só é transferível às situações muito similares àquela para qual foi elaborada. Esse segundo tipo de BOA forma o pensamento empírico. O terceiro tipo de BOA é mais eficaz e forma o pensamento teórico, pois preenche todos os requisitos do processo de formação da ação pelo aluno: tem composição completa, é generalizável a uma classe de eventos ou fenômenos, foi elaborada pelo aluno de forma independente por meio do método da generalização, permite execução rápida e sem erros, é estável frente à variação das condições existentes, sua transferência para diferentes casos é realizável amplamente. Segundo Talízina, as investigações realizadas com base na teoria de formação das ações mentais desenvolvida por Galperin, [...] mostraram que o enfoque do caráter ativo do processo de estudo permite abordar de maneira construtiva a solução do problema “ensinar a estudar”. Resultou que para isto é necessário dar a orientação não só no sistema estrutural-funcional da atividade, como também na lógica da formação dos novos tipos de atividade cognoscitiva. (TALÍZINA, 1988, p. 107) Com base no conhecimento da estrutura, funções e características fundamentais da ação, Galperin desenvolveu cinco etapas para a formação das ações mentais. Além delas, em certos casos, há necessidade de uma etapa prévia destinada à criação da motivação positiva e necessária para que o aluno adote e cumpra a atividade do estudo. A primeira etapa do processo de assimilação (ou de formação das ações mentais) visa à elaboração do esquema da BOA e é constituída pelo conhecimento prévio da ação e das condições para sua realização. Para tanto, o professor explica aos alunos o objetivo da ação, seu objeto (que é o objeto de estudo), o sistema de pontos de referência para cumpri-la, os três tipos de operações (as orientadoras, as executoras e as de controle) que formam parte da ação. Chama a atenção para fenômenos particulares ou singularidades de eventos. Todos esses aspectos são 1. Ver: VIGOTSKI – BRASIL. Galperin, Piotr Iakovlevitch. Disponível em: <http://www.vigotski.net/nomes. html#galperin>. [Acesso: 13 jul. 2013]. 25 explicados aos alunos utilizando-se formas materiais ou materializadas. Com base no que o professor explicou, os alunos elaboram a BOA que lhes foi demandada, pois o que lhe foi apresentado constitui-se apenas de um sistema de indicadores de como tem que ser realizada a ação. Depois desta primeira etapa, as quatro seguintes são constituídas pelo próprio aluno. A segunda etapa corresponde à formação da ação em forma material ou materializada. Para realizá-la, o aluno deve considerar as três partes da ação (orientadora, executora e de controle), todas as operações no seu detalhamento e o caráter generalizado. Ao expressar com a palavra as operações que realiza materialmente, o aluno faz a passagem para a terceira etapa de formação da ação, a verbal externa. A quarta etapa refere-se à formação da linguagem externa “para si”, não difere muito da anterior, mas começa a ser reduzida e automatizada. Na etapa final, a quinta, o aluno passa para a formação da ação na linguagem interna. Nesta, já não é possível acessar diretamente a ação do aluno por ela se dar no nível do pensamento, a não ser a partir da observação e análise dos seus resultados. 3. RESULTADOS 3.1 Motivos para realização da atividade (visitas técnicas - VTs) Segundo a diretora da instituição, as VTs são uma premissa político-pedagógica da graduação tecnológica e respondem à necessidade de gerar no aluno o sentimento e a visão ampliada de sala de aula, a relação da sala de aula com o mundo exterior, tornando-a viva e, com isso, trazer o prazer para a atividade de estudo do aluno e para o professor. Elas respondem também à necessidade da instituição de trabalhar a visão de mundo que quer desenvolver no aluno. E, por fim, à necessidade de levar o aluno a praticar o conhecimento, trabalhando a teoria que ele vê em sala de aula, fazendo com que ele observe como ela acontece na prática dentro de uma empresa ou outro ambiente. As VTs atenderiam, portanto, ao interesse de fomentar nos alunos significados, aprendizados, experiência. Ela mencionou também a finalidade das VTs de gerar estágio para o aluno, aproximando a instituição ao mundo do trabalho, possibilitando à empresa reconhecer a qualidade dos alunos. No curso de Estética e Cosmética, pratica-se VT somente na disciplina de Legislação Sanitária e na área de Estética. Essa atividade seria motivada pela necessidade de mostrar aos alunos como funciona o mercado, pois muitos deles têm interesse de montar uma clínica de estética e necessitam saber o que determinam as legislações. Para tanto, precisariam desenvolver conhecimento sobre estrutura física para instalação de clínica de estética e entender quais requisitos deve atender um imóvel onde esta clínica pode ser instalada. A VT mostraria ao aluno a importância da legislação sanitária na prática clínica ou no laboratório de estética, observando o que está correto e o que está errado nos ambientes visitados. Visa, assim, desenvolver senso crítico sobre normas da vigilância sanitária, mudar a postura e fazer com que o aluno perca o medo da fiscalização, visualizando o que é visto na teoria. No curso de Gestão Hospitalar, os motivos para realizar as VTs seriam quatro. Primeiro, desenvolver o olhar da gestão no aluno, despertando-o para conhecimentos e práticas de um mundo mais amplo do que está acostumado a ver na área da saúde. Segundo, mostrar-lhe o que é considerado referência em hotelaria hospitalar para ambiente de gestão, condições de trabalho e equipamentos. Terceiro, complementar o aprendizado, oferecendo oportunidades de contato com outras pessoas (hospitais de referência, UPAs, exposições e feiras), que possam ampliar sua visão, responder perguntas sobre questões de seu interesse e fazê-lo perceber a aplicação daquilo 26 que está aprendendo no curso. Quarto, realizar o conceito de sala de aula expandida. O curso de Gestão Ambiental apresentou diversos motivos para a realização de VTs. Primeiro, permitir ao aluno sair do abstrato para o concreto, correlacionando o que viu em livros e em sala de aula com o que vê na natureza e em atividades de mineração, aterro sanitário, estação de tratamento de água e esgoto, empresas de grande porte, entendendo que a ciência funciona. Segundo, desenvolver reflexões dentro do conceito de cidadania, de educação ambiental e de diversidade. Terceiro, desenvolver conhecimentos sobre a profissão, que ainda carece de identidade, e sobre normas, recomendações, macetes, tornando palatáveis termos muito técnicos. Quarto, desenvolver atitudes de confiança, disciplina, de ajuda recíproca, escuta e aceitação do outro, de trabalho em equipe. Quinto, habituar-se ao trabalho de campo. Sexto, favorecer o desenvolvimento dos professores como educadores, puxá-los para o diálogo indisciplinar. Sétimo, favorecer o desenvolvimento da coordenação do curso nos aspectos da gestão. 3.2 Ações que os alunos devem realizar nas VTs Para a diretora da instituição, as ações são de observar, correlacionar a experiência da sala de aula com a experiência externa, relacionar a prática com a teoria, gerar conhecimento, cumprir as competências de módulos curriculares e praticar as habilidades que a disciplina deve desenvolver. No curso de Estética e Cosmética, as ações dos alunos na realização de VTs começam com a escolha por eles da clínica a ser visitada, pelo agendamento da visita com a clínica escolhida e pela articulação do grupo para fazer a atividade. Ao realizá-la eles devem entrevistar, observar a adequação do local e da estrutura, fazer levantamento métrico, fotografar. Devem observar como os profissionais estão trabalhando, os procedimentos, os equipamentos utilizados nos procedimentos, o trânsito dos profissionais e o gerenciamento da clínica. Devem fazer registros, elaborar relatório comparando o observado com o que a legislação preconiza e fazer uma proposta de adequação da clínica visitada à legislação. No curso de Gestão Hospitalar, as ações nas VTs compreendem: ver numa unidade de referência o que está acontecendo no ambiente, condições de trabalho e equipamentos; formular perguntas, entrevistar, buscar esclarecimentos e informação sobre a serventia de equipamentos e aspectos de procedimentos; pesquisar e coletar preços de equipamentos; verificar, constatar, comparar, analisar, refletir, discutir, debater sobre o que observou; trocar experiências tendo a prática como referência. No curso de Gestão Ambiental, as ações nas VTs envolvem: visualizar diferentes grupos geológicos e localizar o que está sendo observado em mapas de geologia; observar fenômenos da natureza e correlacionar com explicações científicas; identificar aspectos sobre o histórico da área; fazer medidas; comparar diferenças de formas e de posição na natureza; observar o funcionamento de equipamentos como o pluviógrafo; realizar simulações; fazer anotações e relatórios. 3.3 Sistema de condições das ações nas VTs: peculiaridades do objetivo e objeto da ação, caráter e ordem das operações e instrumentos utilizados Segundo a diretora da instituição, são condições para a realização das VTs: necessidade, clareza de objetivo, o que vai trazer ao aluno. Além disso, ser realizadas com a cobertura de seguro a cada aluno e transporte, ambos fornecidos pela instituição. As VTs devem ser definidas pelo coordenador e equipe de professores durante o planejamento para o semestre, mas o coordenador tem autonomia para definir se será feita ou não VT no semestre, pois elas não são obrigatórias. É preciso que 27 28 haja escolha das empresas e segmentos a serem visitados conforme o conteúdo de alguma disciplina, projeto aplicado ou conceito interdisciplinar. As VTs são realizadas no horário de aula ou aos sábados; nesse caso, os alunos deixam de ter aula num dia da semana. Há dificuldades para conseguir locais para a realização das VTs, pois os cursos em sua maioria são noturnos. Foram citados pela diretora aspectos operacionais gerais, pois há peculiaridades de procedimentos conforme cada curso. No curso de Estética e Cosmética, houve menção a dificuldades para a realização das VTs causadas por disputas competitivas de mercado. Na área da Cosmética, elas impedem a realização de VTs, pois as empresas não permitem a entrada na área de formulação com o receio de que fórmulas sejam copiadas. Elas divulgam a composição, mas não a concentração, fechando o acesso ao conhecimento. Por outro lado, como o ambiente é de manipulação, impedem a entrada de pessoas não paramentadas. Já na área da Estética, essas disputas mercadológicas também dificultam a realização de VTs, chegam a impedi-las quando se trata de clínicas maiores e mais conceituadas. Elas resistem às VTs por medo da concorrência; relutam em expor o tratamento que estão fazendo e os aparelhos ou cosméticos que estão usando. A solução encontrada tem sido realizar as VTs em clínicas de pequeno porte. Inexiste um modelo de documento da instituição universitária para o encaminhamento dos alunos esclarecendo o caráter didático das VTs, que poderia diminuir essas dificuldades, pois além da situação da concorrência, as clínicas receiam que as VTs estejam ligadas à vigilância sanitária. Assim, tais visitas são feitas apenas na disciplina Legislação Sanitária, por alunos individualmente ou em pequenos grupos e em clínicas selecionadas por eles mesmos conforme os seguintes critérios: facilidade de acesso ao estabelecimento, proximidade da região onde está a clínica, conhecimento que a clínica tem do aluno, possibilidade de retorno caso seja necessário completar informações, clínicas menores. Os alunos fazem as VTs sem acompanhamento docente, condição que foi justificada pelo grande tamanho das turmas. Portanto, o professor não acessa as clínicas visitadas e não as conhece. Ainda não se criou um protocolo de parceria da instituição universitária com clínicas visando à realização de VTs. Os instrumentos utilizados pelos alunos nessas visitas são simples: usam os próprios passos para medir o espaço quando o ideal seria a trena, o próprio aparelho celular para fotografar, desenhos para descrever plantas arquitetônicas e o Power-point para fazer as apresentações. No curso de Gestão Hospitalar, as visitas técnicas não têm caráter obrigatório. Quando em hospitais, são realizadas no horário de aula. Quando em outra cidade, são feitas num fim de semana. Há uma preparação prévia. A programação e planejamento são feitos pelo professor. Se em hospital, ele precisa ser de referência. O professor precisa conhecer o local antes, para ver o que pode ou não ser feito. Geralmente, o acesso é permitido a determinadas áreas hospitalares, as mais comuns. Quando são feitas em feiras e eventos, há maior liberdade para visitar, entrevistar e fotografar. Não há um roteiro. As visitas são realizadas com o acompanhamento de um professor. Cobra-se disciplina do aluno e, depois da VT, um relatório ou uma discussão, debate ou seminário em sala de aula sobre o que se sucedeu na VT. Conforme as possibilidades do ambiente visitado, usa-se equipamento para fotografar, mas, por vezes, a técnica off the record (à margem do protocolo). Há casos de se fornecer aos alunos uma palestra antes da VT. Estimula-se a troca de informações com colegas e com o professor durante a realização da visita. No curso de Gestão Ambiental, as VTs são obrigatórias para os alunos e são pontuadas por avaliação didática. A realização delas depende de uma série de fatores e de situações. Em primeiro lugar, do professor que vai conduzir, da sua disponibilidade, crença e conhecimento prático, pois ele não é remunerado por estas atividades. Elas são realizadas aos sábados para que todos possam participar e durante o dia porque é preciso ver a natureza, as plantas, os resíduos, os afluentes. São duas visitas por módulo do curso e sempre relacionadas com conteúdos das disciplinas que estão sendo realizadas. São previamente planejadas. No começo do semestre, a coordenação do curso, junto com os professores, faz o planejamento e o agendamento, define quem irá à visita, qual será o valor na avaliação do aluno, o que o professor irá pedir como atividade correlata se algum aluno não tiver como participar. Para visitar empresa é preciso cumprir um rol de condições previamente estabelecidas. O problema é que nem sempre a empresa cumpre com o que foi combinado. Há cobertura de dois seguros, um para o traslado com ônibus e outro para situações que envolvem acidentes na exploração de terrenos extra-escolares, agressões de animais peçonhentos e intoxicações. Os professores em campo recebem o planejamento e folha de presença. Os alunos são separados em grupos e recebem a descrição da atividade, como deve ser desenvolvida. São três atividades, uma para cada grupo: de geologia, de águas e climas, de cartografia. Terminada uma atividade, o grupo passa para outra, fazendo um rodízio. É preciso que todos tenham em conta o conceito de trabalho em equipe e o papel da coordenação é considerado decisivo. Quando a visita é realizada em parques, seguem-se normas fotográficas mais gerais, tais como colocar legenda com fonte. Quando é em empresa, segue-se o que a empresa determina. Em geral, escolhe-se empresa que permita fotografar e filmar, pois tais documentos são fundamentais para fazer relatório. Os alunos são orientados a usar bússolas, GPS, Google Earth, paquímetros, réguas milimétricas, bioindicadores e equipamentos para fotografar, fazer gravações, filmagens. Eles manuseiam documentos, plantas operacionais e equipamentos durante a VT e são orientados a construir maquetes descritivas do que viram e observaram. 3.4 Orientação aos alunos para as VTs Conforme a diretora da instituição, quem orienta os alunos à realização da VT é o professor da disciplina no contexto da qual ela se realiza, as orientações ocorrem antes da VT e trata do que vai ser observado e das regras a cumprir quanto a comportamentos, ética e respeito, podendo, às vezes, ter um formulário sobre o que observar, analisar e trazer para a sala de aula. No curso de Estética e Cosmética, a professora de Legislação Sanitária estabelece a data-limite para a realização da VT e determina tópicos ou itens a serem observados. Esses seguem os aspectos que são verificados numa inspeção sanitária real. Não há um questionário a ser seguido, mas um roteiro, pois dependendo da resposta, outras vão ser necessárias ou não. O argumento é de que é muito difícil ter as mesmas perguntas, porque depende da maior ou menor complexidade da clínica. Há orientação para que os alunos observem bastante e falem pouco. E recomendações para que as perguntas sejam feitas de forma bem direta tendo em vista extrair a informação certa. Depois da VT, há orientação técnica sobre o que foi encontrado e a professora estabelece a data para a apresentação em sala de aula. No curso de Gestão Hospitalar, há uma preparação dos alunos antes das visitas. Eles são informados sobre o que será visto, as áreas em que não se deve entrar, se podem ou não tirar fotografia, o que devem ou não perguntar. Não há manual ou roteiro de perguntas que o aluno deve fazer ou responder. Pede-se atenção para aspectos de aplicação daquilo que eles estão aprendendo no semestre letivo. Orientase para o bom senso de como se faz uma pergunta. Eles são desafiados a utilizar a experiência profissional que eles já possuem. No curso de Gestão Ambiental, o processo de orientação é extensivo, é feito por professores em sala de aula, envolve leituras básicas, direcionamentos sobre o 29 que vai ser visto, o que vai feito, uso da fotografia, atitudes, disciplina, material a ser levado para anotações pessoais, uso de vestuário adequado e protetores solares. 3.5 Acompanhamento e avaliação dos alunos Segundo a diretora do Instituto UNA de Tecnologia, o aluno é sempre acompanhado pelo professor nas VTs, sendo o professor o responsável por gerar as perguntas. Ela disse que cada curso tem autonomia para fazer a avaliação dos alunos e para estabelecer o produto que o aluno irá gerar a partir da VT. Alguns cursos pedem relatórios, outros solicitam artigos. Há cursos que se limitam à análise da VT em sala de aula. Ela entende que cada sujeito vai ver a VT realizada de uma forma e que cabe ao professor fazer a síntese. Avalia ser bom poder contar com um formulário de avaliação das visitas técnicas, mas que a instituição ainda não dispõe desse instrumento. No curso de Estética e Cosmética, o professor não acompanha os alunos na realização da VT. O acompanhamento é feito somente dentro de sala de aula. A alegação é de que o acompanhamento docente na realização da VT é inviável devido ao tamanho das turmas, em torno de 60 alunos, e que as VTs não podem ser realizadas por grupos maiores porque o espaço das clínicas não comporta muita gente. O professor avalia, então, o relatório da VT e a apresentação dos alunos em sala de aula. No curso de Gestão Hospitalar, é feita uma avaliação em sala de aula, mas não há atribuição de nota. Avalia-se, na verdade, a qualidade da VT e não propriamente o desempenho do aluno. Essa avaliação envolve o conteúdo aprendido, a metodologia utilizada, pontos positivos e negativos, como se deu a recepção, o ambiente visitado, como a gestão ocorre na instituição visitada. Tais informações entram no relatório do professor, pois não há um instrumento para o aluno preencher. No curso de Gestão Ambiental, há avaliação por aluno e é atribuída uma nota dentro dos pontos que a disciplina destina a exercícios. Esse valor não é fixo, 50% dele refere-se à presença e cumprimento das instruções pelo aluno e os outros 50% à atividade que o aluno vai desenvolver: um relatório, que pode ser feito em dupla ou por três, que pode ser uma descrição ou uma exposição de fotografia. Cada professor tem autonomia quanto a isso. O aluno que não pode ir à VT precisa se justificar ao colegiado do curso por escrito. Ele vai fazer uma atividade correlata que não é o relatório valendo 50% da parte escrita, pois a vivência da VT ele não teve. 3.6 Contribuições vindas das reflexões de alunos sobre VTs A diretora do Instituto UNA de Tecnologia considera que tais contribuições são importantes porque às vezes se erra no planejamento de uma ou outra visita, mas que não dispõe de informações a respeito. Em relação ao curso de Estética e Cosmética, também não obteve informações sobre as reflexões feitas pelos alunos sobre VTs, mas há percepção de que os alunos desenvolveram o olhar crítico, de que os alunos se sentem mais seguros depois das VTs, de que passaram a visualizar com mais facilidade o que se discute em sala de aula e a assimilar com mais facilidade um grande número de informações. Em relação ao curso de Gestão Hospitalar, a avaliação da qualidade técnica da visita é feita pelo professor que prepara um relatório com fotografia e tudo que é importante como documentação. Há o entendimento de que o aluno desse curso é participativo, tem interesse em saber, é muito envolvido com o curso, mas tem perfil mais operacional, menos aberto para o mundo acadêmico. É um aluno que está 30 voltando aos estudos, na idade adulta, e que apresenta dificuldades, timidez quando o assunto não é da área deles. No curso de Gestão Ambiental, valoriza-se a reflexão que o aluno pode dar sobre como melhorar, mesmo que num primeiro momento seja difícil de entendê-la. A preocupação revelada é de não transformar o curso superior de tecnologia em um mini-bacharelado, mas capaz de trabalhar conceitos aplicados e aplicar conceitos. 4. CONSIDERAÇÕES FINAIS Algumas ponderações serão feitas sobre as bases de orientação - BOA para a realização de visitas técnicas nos casos estudados. Para tanto, o referencial teórico utilizado propõe três categorias de análise: grau de generalização, plenitude e modo de obtenção. Grau de generalização: Diz respeito à aplicação das ações não apenas a um caso ou fenômeno concreto e à possibilidade de sua ampla transferência para outros. A percepção da diretora da instituição indica que as ações de VTs que realizam têm esse potencial, pois desenvolvem visão de mundo, sentimento de sala de aula ampliada, relacionamento com o mundo exterior, significados, aprendizados, experiências, habilidades para observar, elaborar relatórios e redigir artigos. Entretanto, correm o risco de serem limitadas à visão de mundo que a instituição quer desenvolver no aluno, às habilidades específicas de disciplinas que as promovem e às situações das empresas e segmentos eleitos para visitar. As ações de VTs no curso de Estética e Cosmética se restringem à disciplina de Legislação Sanitária, à área de Estética e a conhecimentos sobre o que é preciso ter numa clínica de estética conforme normas estabelecidas. Além disso, ocorrem somente em clínicas de pequeno porte, de menor complexidade e selecionadas pelos próprios alunos. Porém, as ações de organizar, planejar, entrevistar, registrar, relatar e analisar são potencialmente transferíveis. As ações de VTs no curso de Gestão Hospitalar se atêm a determinadas áreas hospitalares, as mais comuns. Centram-se em hospitais de referência, logo podem ter pouco potencial de transferência para instituições não similares. Contudo, incidem no desenvolvimento de habilidades básicas e gerais: observar, formular perguntas próprias, entrevistar, buscar esclarecimentos e informação, comparar, analisar, refletir, discutir, debater e trocar experiências. Além disso, colocam atenção no desenvolvimento da disciplina do aluno, um requisito para a atividade de gestão em geral. As ações de VTs no curso de Gestão Ambiental se caracterizam pelo potencial de grande generalização, pois abarcam diferentes contextos (parques, mineração, aterro sanitário e de tratamento de água e esgoto), buscam desenvolver fundamentos (compreensão do funcionamento da ciência, conceitos de cidadania, de educação ambiental e de diversidade) e conhecimentos gerais (sobre a profissão e históricos das áreas visitadas). Incidem, também, sobre práticas profissionais de base, tais como o trabalho de campo, documentação e de uso de diferentes instrumentos (bússolas, GPS, Google Earth, paquímetros, réguas milimétricas, bioindicadores e equipamentos para fotografar, fazer gravações, filmagens). Valorizam o desenvolvimento de habilidades comuns ao profissional, tais como as de observação, leitura de mapas, medição, anotação e de realização de simulações e relatórios. Visam à formação de atitudes requeridas aos profissionais em geral (de confiança, disciplina, ajuda recíproca, trabalho em equipe e de escuta e aceitação do outro). 31 Plenitude: Essa categoria de análise se refere à composição da BOA, se ela é completa, incompleta ou mais do que suficiente. A percepção da diretora da instituição sugere completude das bases de orientação das VTs, admitindo ocorrer erro no planejamento de alguma. Disse inexistir um formulário de avaliação das VTs, mas que elas precisam corresponder à necessidade, ter clareza quanto ao objetivo e ao que trará ao aluno. Quanto à composição das BOAs, esta variaria conforme peculiaridades dos cursos, mas que, em geral, contém orientações sobre o que vai ser observado e regras a cumprir. As ações de VTs no curso de Estética e Cosmética são orientadas por um roteiro baseado nas normas da Vigilância Sanitária sobre estrutura física para instalação de clínica de estética, procedimentos, equipamentos, trânsito dos profissionais, gerenciamento de clínicas. Portanto, a BOA coincide com o que determina a legislação vigente. Os alunos realizam as VTs sem acompanhamento docente, recebem orientações para não serem confundidos com inspetores sanitários e formas de perguntar. Os instrumentos que usam são bem elementares. As ações de VTs no curso de Gestão Hospitalar são desenvolvidas independentemente de roteiro pré-estabelecido. Os alunos recebem informação prévia e são acompanhados por docentes, que privilegiam o que se considera referência em gestão hospitalar, equipamentos (serventia e preços), procedimentos e recomendações sobre onde não se deve entrar, se podem fotografar, o que devem ou não perguntar. As ações de VTs no curso de Gestão Ambiental são orientadas pela necessidade de trabalhar conceitos aplicados e aplicar conceitos. Elas são diversas e requerem detalhamentos variados sobre o que será observado, como será observado, como utilizar uma plêiade de equipamentos e ferramentas, atitudes e habilidades requeridas. Modo de obtenção: Essa categoria contempla duas dimensões: se a BOA é dada pelo professor ao aluno (no caso, a perspectiva é a formação do pensamento empírico) ou se ela é elaborada de forma independente pelo discente, sendo que para formar o pensamento teórico isso deve resultar da aplicação consciente de algum método. O que a diretora da instituição deixou claro é que cabe ao coordenador do curso e professores definir as VTs, a esses últimos a geração das perguntas que os alunos deverão fazer nas visitas e a construção da síntese da atividade. Ou seja, o modo de obtenção da BOA pelo aluno tem características mais passivas. No curso de Estética e Cosmética, as BOAs provêm em parte da professora de Legislação Sanitária, que determina os tópicos ou itens a serem observados e a data-limite para a realização da VT. O restante é fruto da autonomia dos alunos, mas não decorre da aplicação consciente de algum método. Eles se dirigem a clínicas mais à mão, de menor porte e complexidade, cuidam do agendamento, se organizam e realizam a VT sem o acompanhamento docente, que é feito somente dentro de sala de aula. No curso de Gestão Hospitalar, as BOAs são dadas pelo professor, encarregado de programar e planejar as VTs, acompanhar o aluno nessa atividade, avaliar, ao seu final, sua qualidade técnica e apresentar relatório. Isso é feito sem chegar a entregar ao aluno um roteiro prévio ou um instrumento para preencher. Portanto, nesse curso, o aluno não elabora as BOAs e é visto dotado de perfil com característica mais operacional. No curso de Gestão Ambiental, a orientação para as ações nas VTs é extensiva 32 e conta com o papel decisivo da coordenação do curso, inclusive no fornecimento de BOAs aos professores. Quando em campo, eles recebem o planejamento das VTs das mãos da coordenação. Esta também entrega a descrição da atividade e como ela deve ser desenvolvida aos alunos. Alunos e professores precisam cumprir nas VTs um rol de condições previamente acordadas com as empresas. As BOAs estão relacionadas com conteúdos das disciplinas que os alunos estão realizando. Antes de ir para o campo, eles recebem direcionamentos sobre o que vai ser visto, o que vai feito, uso da fotografia, atitudes, disciplina, material a ser levado para anotações pessoais, uso de vestuário adequado e protetores solares. Ou seja, uma BOA bem detalhada, mas não obtida por eles de forma independente e a partir das orientações recebidas. Portanto, com pouco potencial para a formação do pensamento teórico. A pesquisa realizada permitiu, assim, identificar, de forma exploratória, algumas possibilidades e limites das VTs no desenvolvimento de habilidades profissionais dos estudantes nos cursos focalizados. São questões que levam à necessidade de discuti-las e de mais investigações sobre aspectos que permitam aperfeiçoá-las como atividade de estudo, especialmente as bases de orientação das ações dos estudantes. Agradecimentos: Ao Centro Universitário UNA pela concessão de bolsa de Iniciação Científica, à direção do Instituto UNA de Tecnologia – Unatec e seus professores/coordenadores entrevistados e ao Grupo de Pesquisa “A questão pedagógica na Educação Profissional” do Programa de Mestrado Profissional em Gestão Social, Educação e Desenvolvimento Local pelas contribuições no curso da realização da pesquisa. REFERÊNCIAS LEONTIEV, Alexis N.. Actividad, conciencia, personalidad. La Habana: Editorial Pueblo y Educación, 1983. MACHADO, Lucília. O profissional tecnólogo e sua formação. Estudos do Trabalho – Revista da RET, ano II, nº 3, 2008. Disponível em: <http://www.estudosdotrabalho.org/ LuciliaMachado.pdf>. [Acesso: 21 abr. 2014]. TALÍZINA, Nina F.. Conferencias sobre “Los fundamentos de la Enseñaza en la Educación Superior”. La Habana: Universidad de La Habana, 1985, 296p. ¬________. Psicología de la enseñanza. Moscu: Editorial Progreso, 1988, 366p. VIGOTSKI–BRASIL. Nomes em psicologia histórico-cultural [e/ou em conexão com esta perspectiva]. Galperin, Piotr Iakovlevitch. Disponível em: <http://www.vigotski.net/ nomes.html#galperin>. [Acesso: 13 jul. 2013]. 33 Agenda Social ELETRONIC JOURNAL VOLUME NÚMERO ISSN 1981-9862 www.revistaagendasocial.com.br SUSTENTABILIDADE EM EMPREENDIMENTOS SOCIAIS: UM ENSAIO REFLEXIVO PARA UMA ECONOMIA SOCIAL LOCAL SUSTAINABILITY IN SOCIAL ENTREPRENEURSHIP: A REFLECTIVE ESSAY FOR A LOCAL SOCIAL ECONOMY 1. AMARAL, Odnélia Cristina S. de; 2. MELLO, Ediméia Maria Ribeiro. 1. Mestranda em Gestão Social, Educação e Desenvolvimento Local no Centro Universitário UNA. E-mail: [email protected]. 2. Professora do Mestrado em Gestão Social, Educação e Desenvolvimento local no Centro Universitário UNA. E-mail: [email protected] RESUMO 34 8 1 ABSTRACT Este artigo pretende suscitar algumas re lexões, com base no arcabouço teórico sobre gestão social para o desenvolvimento local, autogestão para o desenvolvimento de negócios e responsabilidade social de iniciativas privadas, a partir de experiências vivenciadas em empreendimento social. A pesquisa à literatura disponível possibilita aquilatar a capacidade e as di iculdades de o empreendimento social de proporcionar a emancipação e o resgate de cidadania dos indivíduos, avaliada no sucesso e na permanência do negócio. A partir da re lexão teórica desses conceitos, pretende-se exercitar o olhar re lexivo, com base em uma prática em empreendimento social, que busque o alcance de sua sustentabilidade, no âmbito de uma economia social local, segundo parâmetros que considerem a sua condição de iniciante num mundo de competitividade exacerbada. This article aims to raise some reϔlections on the theoretical framework of social management for local development, selfmanagement to business development and social responsibility of private initiatives, from experiences on social entrepreneurship. A survey of available literature allows the evaluation of the ability and the difϔiculties of the social entrepreneurship to provide the emancipation and recuperation of citizenship of individuals, based on the success and permanence of their business. From the theoretical discussion of these concepts it is intended to exercise a reϔlective view, based on a practice in social enterprise, which seeks to reach its sustainability in the context of a local social economy, according to the parameters that consider their condition of beginners in a world of heightened competitiveness. PALAVRAS-CHAVE Empreendimento Social. Sustentabilidade. Responsabilidade Social. Tempo Social. KEY-WORDS Social Entrepreneurship. Sustainability. Social Responsibility. Social Time. 1 INTRODUÇÃO Este ensaio reflexivo é parte de uma agenda de pesquisa, cujo objetivo é analisar o enfrentamento do desafio da sustentabilidade por empreendimentos sociais de geração de renda, apoiados por instituições privadas. Baseia-se inicialmente em pesquisa à literatura disponível sobre concepções e conceitos que permeiam e são fundamentais quando se discute empreendimentos sociais, a partir de uma visão da gestão social, do desenvolvimento local e da responsabilidade social de instituições privadas. Este proporciona uma reflexão teórica e adentra por vivências e práticas em empreendimentos sociais que lutam pelo alcance de sustentabilidade. O empreendimento social é uma das formas de realização da gestão social, contraposta à gestão estratégica maximizadora de lucro (PEREIRA, 2013). Suas metas são ser lucrativo (requisito da sustentabilidade econômica) e ser promotor de ofertas sociais ou mantenedor de demandas de mesma natureza, além de ser amigável com o meio ambiente. O lucro se submete à restrição de reinvestimento na mesma atividade ou de redistribuição à comunidade que o sustenta. O empreendimento social assume, também, outros conceitos proeminentes da gestão social, quais sejam “[...] participação, diálogo e busca do bem comum” (PEREIRA, 2013, p.1) e, em seus objetivos, encontra uma das grandes categorias que fundamentam a gestão social, a da emancipação social, alcançada por meio da autogestão, traduzida em “[...] tomada de decisão coletiva, sem coerção, baseada na inteligibilidade da linguagem, na dialogicidade e entendimento esclarecido como processo, na transparência como pressuposto e na emancipação enquanto fim último” (CANÇADO, 2011, p.99). Tais empreendimentos colaboram para o desenvolvimento local, enquanto elementos de um conjunto de atividades sociais, intersetoriais e trans-escalares, partes “[...] de um projeto de transformação consciente da realidade local” (MILANI, 2003, p. 1), que não exclui a integração ao mercado, mas que se entende “[...] fruto de relações de conflito, competição, cooperação e reciprocidade entre atores, interesses e projetos de natureza social, política e cultural” (MILANI, 2003, p. 2). O acúmulo de experiência permitiu constatar a raridade das tentativas de sucesso com empreendimentos sociais apoiados por instituições privadas, que atingiram a sustentabilidade de forma emancipadora e autônoma e que de fato mudaram a condição de vida de seus associados. Acredita-se que as dificuldades associadas a estes resultados decorram das diferentes lógicas que envolvem o empreendimento: por um lado, sua lógica social, que se desenvolve a partir de uma gestão coletiva realizada por detentores da força de trabalho e dos meios de produção, que são pessoas à margem do mercado de trabalho e carentes do conhecimento de todas as fases de condução de um negócio. Por outro lado, o apoiador privado, movido pela lógica capitalista, fundada na “expertise” do desenvolvimento de seu negócio, cujo cronograma não prevê a necessidade de uma qualificação completa de sua força de trabalho, espera o alcance de sustentabilidade econômica do empreendimento social num prazo muito curto, relativamente às suas carências iniciais. Este fato influencia no desenvolvimento do empreendimento e requer a atenção 35 e o entendimento da lógica operativa do negócio inclusivo, por parte do associado e, principalmente, pelo apoiador privado. Diante do exposto, para um melhor entendimento sobre empreendimento social, este ensaio apresenta a seguinte estrutura: primeiramente retrata a lógica de um empreendimento social, com base em diversos conceitos e concepções; posteriormente apresenta o empreendimento social dentro de um olhar sensibilizado pela experiência. Em seguida, mostra as dimensões de um empreendimento e os requisitos de sua sustentabilidade. Por último, realiza reflexões finais sobre a importância de se conceituar um tempo social para o empreendimento, com base em parâmetros, que considerem as suas fragilidades originais, para o seu monitoramento. 2. Empreendimento social: visitando conceitos e concepções Ao longo da história dos movimentos sociais no Brasil, conforme Gohn (2004), a sociedade civil vai se configurando e avançando segundo novos formatos. A partir dos anos 1980, destacam-se os movimentos de luta por direitos civis, políticos e sociais, que garantem desdobramentos na efetivação das políticas públicas de cunho social. Este foi um processo de amplas conquistas, mas, principalmente, desde a última década do século XX, com o acirramento das políticas neoliberais, houve perda de direitos conquistados, frente ao cenário de “desemprego, aumento da pobreza e da violência urbana e rural” (GOHN, 2004, p. 25). Forja-se, então, uma nova modelagem para os movimentos sociais, centrada em articulações, construção de agendas políticas e em busca de uma readaptação às mudanças decorrentes de tempos economicamente mais duros. Nesta nova perspectiva, a escassez de recurso restringe a capacidade de resposta do Estado às demandas sociais crescentes. Então, são buscadas “[...] novas formas de articulação com a sociedade civil, envolvendo a participação de ONGs, da comunidade organizada e do setor privado na provisão de serviços públicos” (FARAH, 1998, p. 383). Assim, as ONGs passam a ter um papel menos reivindicativo e mais ativo, por meio da prestação de serviços, visto que a nova gestão pública passa a delegar às empresas da sociedade civil a execução das políticas, mantendo-se nas funções de financiamento e fiscalização. Estas ONGs apresentam um novo perfil... [...] o perfil do novo associativismo civil dos anos 1990. Um perfil diferente das antigas ONG´s dos anos 1980, que tinham fortes características reivindicativas, participativas e militantes. O novo perfil desenha um tipo de entidade mais voltada para prestação de serviços, atuando segundo projetos, dentro de planejamentos estratégicos, buscando parcerias com o Estado e empresas da sociedade civil (GOHN, 2004, p. 27). Por outro lado, o poder público atua por meio do fomento e da garantia de recursos e incentivos fiscais para que, cada vez mais, a sociedade civil assuma a responsabilidade parceira na solução dos problemas sociais, acirrados pelo neoliberalismo, contribuindo para a estratégia de redução da despesa pública. 36 Portanto, o Estado brasileiro tem procurado transferir ao máximo a prestação de serviços sociais para a sociedade civil, diminuindo seus custos administrativos. Essa política abriu espaço para o crescimento das organizações privadas de finalidade pública no país (FISCHER; FALCONER, 1998, apud ALVES JUNIOR; FONTENELE; FARIA, 2008, p. 3). É neste novo cenário político-social se forma o tripé que permeia o empreendimento social: o poder público, com sua regulamentação e financiamento; o poder privado com sua disposição social e financiamento; e o associado com a sua disposição para o desenvolvimento pessoal e local de caracteres social e econômico. Figura 1: Tripé de apoio ao empreendimento social PODER PUBLICO Governo x COMUNIDAD E Associado PODER PRIVADO Mercado Instituições privadas Ao mesmo tempo, dentro da complexidade desta realidade, cada elemento do tripé assume sua função e busca, de forma articulada, tornar reais as oportunidades alternativas de geração de renda, por meio do desenvolvimento do empreendimento social, para a superação da condição de vulnerabilidade social da comunidade. Os empreendimentos sociais são suportados no fortalecimento desta rede de apoio e na concretização de parcerias intersetoriais, para o alcance da sustentabilidade. Assim, eles se constituem em uma inovação que surge neste contexto político da sociedade brasileira. Mas, não só neste contexto, pois estes empreendimentos são negócios que vêm ganhando relevância no enfrentamento da pobreza em nível mundial, apresentando-se como uma forma de reversão, em parte, dos resultados pífios alcançados pela economia capitalista, sustentada em uma dinâmica produtora de exclusão, conforme os dados apresentados por Naigeborin (2010), comparados • Mais de 2,5 bilhões de pessoas vivem com menos de dois dólares/dia (Banco Mundial, 2007); • 900 milhões de pessoas não têm acesso à água potável (OMS e UNICEF , 2010); • 2,6 bilhões de pessoas não têm saneamento básico (OMS e UNICEF, 2010); 37 • Mais de 1,8 milhões/ano de jovens (entre 15 e 24 anos) morrem por enfermidades que poderiam ser prevenidas (OMS); • 1,6 bilhões de pessoas não têm acesso à eletricidade (OCDE3 e IEA4, 2006). • 5,4 bilhões não têm acesso à internet (ITU5, 2008). com uma população mundial de 3,6 bilhões de pessoas, em 2010, segundo as fontes relacionadas pela autora: Este cenário fortalece as iniciativas sociais de empreendimentos, apoiados por instituições públicas e privadas, que, na contemporaneidade, deram surgimento ao novo conceito de negócios sociais. O Grameen Bank fundado, em 1976, por Muhammad Yunus (economista, Prêmio Nobel da Paz em 2006) é uma importante instituição de microcrédito, pioneira nesta modalidade (NAIGEBORIN, 2010). As definições de negócios sociais, levantadas por Naigeborin (2010), podem ser agregadas como economias rentáveis, que oferecem soluções para problemas sociais e/ou ambientais, por meio de mecanismos de mercado (ARTEMISIA apud NAIGEBORIN, 2010), que visem beneficiar setores excluídos (ASHOKA apud NAIGEBORIN, 2010) e às comunidades de baixa renda (BID apud NAIGEBORIN, 2010), ao oferecerem serviços básicos essenciais a um preço menor (AVINA apud NAIGEBORIN, 2010), capazes de gerar receita suficiente para cobrir os custos, sem que, entretanto, sejam distribuídos lucros aos seus investidores (GRAMEEN BANK apud NAIGEBORIN, 2010). Estes negócios incluem os pobres tanto do lado da demanda quanto do lado da oferta (PNUD apud NAIGEBORIN, 2010), adotam componentes de governança inclusiva, assim como, um sistema contábil ético e transparente que prioriza a sustentabilidade ambiental, a distribuição justa dos rendimentos por participação, destinando os lucros ao bem comum (FOURTH SECTOR apud NAIGEBORIN, 2010). Segundo Hervieux (2010) apud Vasconcelos e Lezana (2012), os empreendimentos sociais são organizações que criam valor social através de inovação e organização socioeconômica, fazendo uso do recurso financeiro como garantia de sustentabilidade do empreendimento e de seus associados. Nos países em desenvolvimento o termo mais utilizado para se referir a estes negócios é negócios inclusivos, mas, segundo Comini (2011), no Brasil ainda é predominante à terminologia negócio social onde “ambas as visões apontam os negócios sociais ou inclusivos como decorrentes da forte preocupação com a redução da pobreza e que sejam iniciativas que necessariamente tenham impacto social positivo, efetivo e, sobretudo, de longo prazo” (COMINI, 2011, p.13). Os empreendimentos sociais podem proporcionar a transformação social para um coletivo de desfavorecidos, ao se organizarem segundo o formato cooperativo e de gestão compartilhada do poder decisório. Este formato os caracteriza como organizações autogestionadas e inclusivas, fundadas como alternativa para a melhoria da condição de vida e para o resgate de sustentabilidade social e econômica de indivíduos alijados do processo produtivo. 3. OCDE – Organização de Cooperação e de Desenvolvimento Económico. 4. IEA – Instituto de Estudos Avançados. 38 5. ITU – World Telecommunication. Rossoni, Onozato e Horochovski (2006) atribuem o surgimento do empreendedorismo social a uma evolução do setor filantrópico, considerado insatisfatório do ponto de vista administrativo, de sustentabilidade econômica e de resultados. Mswaka (2009) atesta que, no Reino Unido, enquanto as estruturas filantrópicas de apoio à pobreza declinam, os empreendimentos sociais são estimulados crescentemente, introduzindo um novo modelo de organização social: uma evolução no âmbito da economia social e das organizações filantrópicas associadas. Social enterprise is a result of the evolution of the social economy and the philanthropic organizations associated with it (Laville and Nyssens, 2001). These include earliest forms of craft guilds, building societies and savings clubs that became forerunners of the social enterprises that we know today (Conaty and McGeehan, 2000). Therefore social enterprises have gained prominence perhaps because of their business-like nature in contrast to the traditional non-profit organizations associated with the social economy (Dart, 2002)6 . (MSWAKA, 2009, p. 4). Desta forma, os empreendimentos sociais representam “fórmulas [alternativas] de intervir na realidade dos pobres”, (DUARTE; TEODÓSIO, 2013, p. 10), ao desenvolverem soluções de mercado para contribuir para a superação de alguns dos grandes problemas sociais e ambientais mundiais. Este modelo de negócio tem o lucro não como um fim em si mesmo, mas um meio para gerar soluções sustentáveis que ajudem a reduzir a pobreza, a desigualdade social e a degradação ambiental. De acordo com Duarte e Teodósio (2013), esse universo de novos negócios possibilita o fortalecimento de uma nova economia, dotada de características similares com a economia social, explicada pelos seguintes elementos-chave: 1. A autogestão para a solidariedade; 2. O fortalecimento das iniciativas econômicas cooperativadas e associativas; 3. O desenvolvimento de rede de apoio mútuo, de intercâmbios diversos; 4. A criação de formas alternativas de credito e poupança; [...]. (SINGER, 2000, p.323 apud BASTOS, TEODOSIO, 2013, p. 5). Segundo Rossoni; Onozato e Horochovski (2006), diferentemente do empreendimento privado tradicional, o empreendimento social é uma entidade que se realiza no coletivo, privilegia a autogestão, a produção destinada a demandas da comunidade, o foco na solução de problemas sociais, a aferição do desempenho com base no impacto social e o objetivo de resgatar e promover sujeitos em situação de risco social. Duarte e Teodósio (2013) defendem que este modelo de empreendimento “pode ser compreendido como uma nova tecnologia social, com imensa capacidade de inovação no processo de empreender [em prol do social] já que não se pretende 6. “A empresa social resulta da evolução da economia social e as organizações ilantrópicas associadas (Laville e Nyssens (2001). Estas incluem as primeiras formas de corporações de o ício, as sociedades de construção e clubes de poupança, precursores das empresas sociais que conhecemos hoje (Conaty e McGeehan, 2000). Portanto, empresas sociais ganharam destaque, talvez por causa de sua natureza parecida com negócios em contraste com as organizações sem ins lucrativos tradicionais associadas com a economia social (Dart, 2002).” (Mswaka, 2009, p.4). 39 ser assistencialista e mantenedor, mas empreendedor, emancipador e transformador” (BASTOS, TEODOSIO, 2013, p. 44). Este tipo de empreendedorismo é foco de programas de responsabilidade social em empresas e demais instituições privadas. A responsabilidade social de empresas consiste em sua “decisão de participar mais diretamente das ações comunitárias na região em que está presente e minorar possíveis danos ambientais decorrentes do tipo de atividade que exerce” (D`AMBROSIO et al., 1998 apud MELO NETO e FROES, 1999, p. 78). Porém, Melo Neto (1999) reforça que somente estas iniciativas não garantem o exercício da responsabilidade social. A elas devem se somar ações de preservação do meio ambiente, de investimento no bem estar dos funcionários e seus dependentes, de promoção da transparência, assegurando satisfação e sinergia que alcancem os seus ”stakeholder”. Assim, Melo Neto e Froes (1999) relacionam os principais vetores da responsabilidade social, quais sejam: V1 apoio ao desenvolvimento da comunidade onde atua; V2 preservação do meio ambiente; V3 investimento no bem estar dos funcionários e seus dependentes em um ambiente de trabalho agradável; V4 comunicações transparentes; V5 retorno aos acionistas; V6 sinergia entre parceiros; V7 satisfação dos clientes e/ou consumidores. (MELO NETO e FROES, 1999, p. 78). 40 Estes vetores aliam a gestão empresarial à dimensão social de uma empresa, garantindo a responsabilidade social sob duas formas: interna, voltada para os funcionários e seus dependentes; e externa voltada para a comunidade. Na responsabilidade social externa, a empresa incorpora à comunidade, “os recursos financeiros, produtos, serviços e Know-How da empresa e de seus funcionários” (MELO NETO e FROES, 1999, p. 79). Neste flanco se enquadra o apoio aos empreendimentos sociais, entretanto, permeado pela lógica do capital, na promoção da realização de negócios que possam transformar a condição social da comunidade. Neste engajamento social, no contexto de sua dimensão externa, a empresa busca demonstrar seu compromisso ético com a sociedade, dando-lhe um retorno pelo uso e exploração dos recursos naturais. Desta forma se garante a realização de um balanço social, proporcionando uma imagem positiva diante do mercado mundial que propaga e vincula a comercialização de produtos às práticas sociais justas e à solução de problemas sociais pelas empresas. De acordo com Melo Neto e Froes (1999) “é um mecanismo de compensação das perdas da sociedade em termos de concessão de recursos para serem utilizados pela empresa” (MELO NETO e FROES, 1999, p. 84-85). Com o tempo, são incorporadas ao conceito de responsabilidade social, novas práticas. Uma delas refere-se ao desenvolvimento sustentável em sua dimensão social, que “compreende os direitos humanos, dos empregados, dos consumidores, o envolvimento comunitário, a relação com fornecedores, o monitoramento e a avaliação do desempenho e os direitos dos grupos de interesse” (MELO NETO; FROES, 1999, p. 90). Esta dimensão, em conjunto com as dimensões econômica e ambiental, compõem os pilares da sustentabilidade. Assim, se de fato assumida a responsabilidade social pela empresa, esta poderá contribuir tanto para a sustentabilidade e o desempenho empresarial quanto para o desenvolvimento da sociedade e do seu entorno, proporcionando mudança na realidade local e um exercício pleno de sua cidadania empresarial e de sua responsabilidade social. É dentro desse exercício de responsabilidade social que muitas empresas e suas fundações/ institutos desenvolvem projetos dentro da linha de atuação do empreendedorismo social com o fomento e o fortalecimento de empreendimento social como alternativa de renda para a população desfavorecida ou vulnerável do seu entorno. Deste modo, os empreendimentos sociais são uma forma de enfrentamento dos problemas sociais, onde a economia está a serviço da comunidade. Segundo Melo Neto e Froes (2002) o empreendedorismo social difere do empreendedorismo privado. O segundo tipo tem um foco individual e é centrado no mercado e tem uma busca incessante no lucro. Já o empreendedorismo social tem o foco nas pessoas, o intuito é utilizar a economia para possibilitar a solução de problemas sociais e proporcionar a melhoria da qualidade de vida das comunidades. Para ilustrar melhor tal distinção copia-se, a seguir, o quadro de Melo Neto e Froes (2002). Quadro 1: Diferenças entre Empreendedorismo EMPRENDEDORISMO PRIVADO EMPREENDEDORISMO SOCIAL É individual É coletivo Produz bens e serviços para o mercado Produz bens e serviços para a comunidade Tem foco no mercado Tem foco na busca de soluções para os problemas sociais. Sua medida de desempenho é o lucro Sua medida de desempenho é o impacto social Visa satisfazer necessidades dos clientes e ampliar as potencialidades do negocio Visa resgatar pessoas da situação de risco social e promovê-las. Fonte: MELO NETO e FROES, 2002, p. 11. Portanto, incorporar e efetivar essa nova forma de exercitar a responsabilidade social é fazer do empreendedorismo social um grande desafio para empresas e demais instituições privadas, que por meio da geração de renda, possibilite um olhar diferenciado para a comunidade, com vistas na contribuição para a mudança, decorrente do empoderamento das pessoas e de sua ação. E como forma de melhorar o seu campo de atuação social, as empresas estão recorrendo a parcerias com o próprio governo, ONG´s, entidades da sociedade civil, entre outros, para a execução de seus programas de responsabilidade social, visto o know how que o terceiro setor vem adquirindo no desenvolvimento de projetos de combate a pobreza e em especial, no acompanhamento de negócios sociais e/ou empreendimento sociais. O quadro abaixo de Melo Neto e Froes (1999) demonstram como essas empresas estão desenvolvendo suas parcerias: 41 Quadro 2: Parcerias entre empresas, terceiro setor e governo. PARCERIA DESCRIÇÃO Governo e Empresa A empresa privada fornece recursos para o governo desenvolver os seus projetos sociais. Empresa e ONG A empresa contrata o serviço de uma ONG para desenvolver seus projetos sociais. Empresa, ONG e sociedade civil. A empresa desenvolve seus projetos sociais com o apoio de uma ou mais ONG’s e demais entidades da sociedade civil. Governo, Empresa, ONG e sociedade civil. O governo desenvolve seus projetos com recursos de empresas, com a participação de uma ou mais ONG’s e da sociedade civil. Empresa e sociedade civil A empresa desenvolve seus projetos com a participação da sociedade civil. Fonte: MELO NETO e FROES, 1999, p.24. Neste contexto da responsabilidade social, este ensaio passa a registrar, a seguir, as experiências práticas, a vivência e as lições aprendidas junto a empreendimentos sociais acompanhados no Pará. 3. 42 Empreendimento social: um olhar a partir da experiência A imersão na experiência prática, dedicada a programas de responsabilidade social no Pará, proporcionou a percepção das fragilidades dos sujeitos que se associam em empreendimentos sociais, decorrentes de suas inexperiências em aspectos da gestão empreendedora, o que se traduz em grandes dificuldades para o alcance das condições de sustentabilidade econômica exigidas pelos apoiadores externos. Naquela oportunidade, observou-se desde empreendimentos que tiveram em sua formação uma estrutura de base de formação consistente e consciente das pessoas partícipes do coletivo, até aqueles que apresentaram profundas fragilidades, percebidas já na fase inicial do empreendimento social. As fragilidades referiamse, especialmente, à preparação e à formação da base dos associados nos valores solidários e participativos, com consequências negativas sobre o desenvolvimento da associação e da gestão social do empreendimento. Além disto, as dificuldades se aprofundavam em virtude da não familiaridade previsível dos associados com a gestão empreendedora e/ou ramo de negocio proposto, bem como com a elaboração de planejamento inadequado realizado pelos apoiadores externos. As ações dos programas de responsabilidade social se concretizavam por meio da disponibilização de recursos financeiros para garantir o fortalecimento organizacional e da busca da sustentabilidade de empreendimentos produtores de artefatos em madeira, bijuterias com sementes nativas, costura em geral, ou extração da castanha, jaborandi entre outros, bem como para fortalecer as iniciativas locais que valorizavam os recursos locais, as pessoas e o valor social nos produtos produzidos. As instituições privadas comprometiam ainda outras parcerias com os projetos, como órgãos dos governos federal e estadual, cujas finalidades eram incentivar a geração de renda, a partir da exploração de recursos naturais ou das potencialidades locais, assim como, instituições de cooperação internacional focadas na Amazônia. No sentido de demonstrar o movimento de desenvolvimento do potencial local, não muito distante do Pará, cita-se aqui a importância dos empreendimentos artesanais para o desenvolvimento na região nordeste do País, Passira-Pe, em que instituições Apesar da maior parte da renda do município de Passira [Pernambuco] ser da atividade agropecuária e da pecuária, o município possui 1.200 artesãos que se organizam individualmente, em parcerias e cooperação com instituições e organizações. 48% da renda dos trabalhadores que alternam entre a atividade artesanal e outra está entre 1 e 2 salários mínimos”. (SILVA e XAVIER, 2013, p.98). investiram na capacidade de proporcionar renda incremental para os empreendedores, conforme atesta a pesquisa de campo realizada por Silva e Xavier (2013) em 2011. As iniciativas relacionadas ao artesanato em Passira-Pe estão vinculadas ao programa de artesanato brasileiro (PAB), com o estabelecimento de parcerias “envolvendo institutos da esfera federal, estadual, municipal e entidades privadas com ações que valorizem o trabalho do artesão” (SILVA e XAVIER, 2013, p.98). Diante da experiência acumulada junto à formação dos empreendimentos sociais observaram-se alguns fatores potencializadores e dificultadores, tais como: • Uma das instituições apoiadoras se orientava no âmbito de um planejamento integrado, ao prever a formação de um grupo gestor, que era ativado periodicamente desde a concepção dos empreendimentos. Esta estratégia contribuía para melhorias nos resultados auferidos. • Identificou-se cooperativa/associação, com quase 10 anos em atuação sob o apoio institucional, com sérios problemas de estrutura organizacional e de gestão financeira dos recursos. • Houve empreendimentos constituídos sob uma estrutura de base formativa no contexto de valores solidários, que avançaram no caminho para a sustentabilidade. • Houve, ainda, uma experiência de constituição de empreendimento em associação, que, mesmo orientada por um plano de negócio pronto a ser seguido, não conseguiu se implantar com base no plano, pois este desconsiderou a realidade social local, ou seja, a sua “lógica peculiar” (KRAYCHETE, 2006, p. 4). Neste caso, o plano havia sido elaborado por um especialista, desconhecedor da realidade local, e de forma não participativa, transformando-se “[...] em mais um documento a ser muito bem guardado e esquecido em alguma prateleira” (KRAYCHETE, 2006, p. 4). • Outra experiência presenciada não apresentou essa base preparatória para os associados e, num processo avaliativo reflexivo, percebeu-se que erros graves foram cometidos, quais sejam: (1) convocação aleatória de “beneficiários” da comunidade para montar um negócio; (2) baixa escolaridade dos associados; (3) desconhecimento ou falta de experiência prévia no negócio proposto; (4) implantação de plano de negócio não participativo e descolado da realidade do interior do estado; (5) investimento de recurso financeiro inicial, prevendo contratação de encarregados na produção e/ ou administração, sem uma preparação educativa consistente para os 43 associados lidarem com questões econômicas e de gestão; (6) cronograma irreal, baseado em um tempo empresarial normal, que não previu a condição especial de um empreendimento social, cujo tempo de maturação deve incluir o alcance da emancipação dos associados, o que se denomina, neste ensaio, como tempo social. • Ressalta-se em outra experiência, na qual se realizou um trabalho de base para a transformação das pessoas em empreendedores, com valores cooperativos e associativos em que no período de três anos, foram desenvolvidas varias atividades, entre as quais: (1) preparação das pessoas com valores solidários e cooperativos para uma formação empreendedora; (2) preparação para o desenvolvimento do produto à sua gestão (individual ou coletivo); (3) e posteriormente a esses ensinamentos, realização de convite a pessoas para desenvolver e gerir um empreendimento social, à livre escolha, com garantia de apoio técnico e financeiro. Nesse caso, mesmo depois de longos processos de envolvimento com os sujeitos, a gestão do empreendimento ainda apresentava dificuldades a serem superadas como, por exemplo, resultados financeiros demorados ou apenas suficientes para equilibrá-lo. Alguns associados desistiam do empreendimento, em virtude de encontrarem trabalho assalariado. Em outros casos os sujeitos eram taxados de “jovens preguiçosos” por parte do apoiador externo. Estes casos relatados mostram a dificuldade do alcance de resultados sustentáveis em empreendimentos sociais, mesmo aqueles beneficiados, com “[...] apoio financeiro, muitos [...] apresentam resultados frustrantes - para si e para as instituições financiadoras”, coincidentemente com as observações de Kraychete (2006, p.4). Ainda, segundo este autor,... Por um período, o empreendimento parece funcionar bem, inclusive com resultados econômicos aparentemente positivos. Enquanto dura o projeto, os recursos permitem pagar as despesas e garantem uma remuneração aos associados. Durante algum tempo, como usualmente se diz, parece que “o projeto contribuiu para elevar a autoestima do grupo”. A instituição financiadora publica fotos e folders no seu site dos resultados alcançados. (KRAYCHETE, 2006, p.4). Nestas percepções tem origem à proposição da referida agenda de pesquisa, que objetiva responder à questão: quais seriam os parâmetros para se aquilatar a dimensão do tempo de amadurecimento – tempo social – dos empreendimentos sociais, com vistas no alcance da autossustentabilidade, para orientar o apoio e o investimento das instituições privadas que os suportam? O próximo tópico introduz a discussão da sustentabilidade, com vistas em orientar os parâmetros da pesquisa proposta. 4. 44 Sustentabilidade de um empreendimento social: dimensões e requisitos Inicia-se essa discussão, trazendo o conceito de sustentabilidade, de caráter ambiental/ecológico, publicado pela primeira vez pela ONU (Organização das Nações Unidas) em 1987, qual seja: “conseguir prover as necessidades das gerações presentes, sem comprometer a capacidade das gerações futuras em garantir suas próprias necessidades”. Marcondes (2007) apud Alves Junior; Fontenele; Faria (2008) incorporam outras dimensões à sustentabilidade, ao caracterizar uma organização sustentável, conforme descrito a seguir: Ser uma organização sustentável significa ser economicamente lucrativa, ambientalmente correta e socialmente responsável. Sendo assim, as ações de sustentabilidade precisam atuar como suporte das estruturas de gestão das organizações, e não apenas como ações pontuais (ALVES JUNIOR, FONTENELE e FARIA, 2008, p. 4). A questão da sustentabilidade vai além do aspecto de garantir as fontes de financiamento, ao quais a reduzem muitas organizações. De fato, “envolve, também, um complexo conjunto de fatores que, por sua vez, reforçam a necessidade de profissionalização dessas organizações” (ALVES JUNIOR, FONTENELE e FARIA, 2008, p. 5). A este respeito, Alves Junior, Fontenele e Faria (2008) recomendam à organização, como pré-condições para a sua sustentabilidade, as seguintes medidas: (a) qualificar tecnicamente o trabalho; (b) compartilhar o projeto político/missão; (c) promover uma cultura e metodologia de planejamento e de monitoramento e avaliação; (d) aperfeiçoar os mecanismo de gestão; e (e) qualificar a participação interna e a democratização dos processos decisórios (ALVES JUNIOR, FONTENELE e FARIA, 2008, p. 5). Estes pontos fundamentais não são diferentes para os empreendimentos sociais, que devem garantir todos estes requisitos, dentro de uma visão de gestão social, com um olhar focado no negócio, no sentido de custear o empreendimento e gerar renda aos associados e sobras para o reinvestimento na atividade ou na comunidade, bem como, a preservação do meio ambiente local. Os dados apresentados por Kraychete (2006), baseados no levantamento realizado, em 2004, pela Secretaria Nacional de Informações em Economia Solidária (SENAES) do Ministério do Trabalho e Emprego (MTE), mostram a grande dificuldade dos empreendimentos associativos alcançarem o equilíbrio financeiro. [...] foram identificados quase 15 mil empreendimentos em 2.274 municípios brasileiros (o que corresponde a 41% do total de municípios), envolvendo mais de 1,2 milhão de pessoas; [...] a maior parte dos grupos se estruturou a partir dos anos 1990, tendo como principal motivação a busca de uma alternativa de trabalho face ao desemprego (citado 45% dos empreendimentos), seguida pela busca de uma fonte complementar de renda (44%) e pela possibilidade de obter maiores ganhos através de um empreendimento associativo (39%) [...] apenas 38% dos empreendimentos obtiveram uma receita capaz de pagar as despesas e ter alguma sobra. 33% conseguiram pagar as despesas sem obter sobras e 16% não conseguiram pagar as despesas [...]. (KRAYCHETE, 2006, p. 5-6). 45 Para Kraychete (2006) a meta de equilíbrio financeiro em um empreendimento associativo depende da habilidade dos associados frente às condições de sustentabilidade, não somente de caráter econômico, mas também relacionadas a processos de transformação social mais amplo. [...] empreendimento associativo adquire condições de sustentabilidade quando os seus associados se encontram habilitados para assumir a sua condição. [...] neste termo a sustentabilidade dos empreendimentos econômicos não é um problema estritamente econômico, nem se equaciona no curto prazo, mas pressupõe ações políticas comprometidas com um processo de transformação social (KRAYCHETE, 2006, p. 1). Segundo Zwich, Pereira e Teixeira (2012), o empreendimento social, alicerçado em seu tripé de apoio, sustenta-se em três dimensões operacionais, necessárias ao seu desenvolvimento dentro de uma sociedade de mercado. Tais dimensões, úteis à análise das organizações cooperativas são: a econômico-financeira, a institucionaladministrativa e a sociopolítica. A gestão eficiente destas três dimensões é indispensável ao desenvolvimento de um empreendimento social, segundo o seu formato jurídico – cooperativa, associação ou outro. Por outro lado, elas são dinâmicas e atuam interdependentes e articuladas, desenvolvendo-se de forma sistêmica dentro dos empreendimentos. Os formatos como elas moldam os empreendimentos os assemelham, ou os diferenciam entre si, de acordo com a realidade na qual estão inseridos, podendo confirmar um formato voltado para a gestão social ou para a gestão estratégica tradicional, conforme será refletido, a seguir. A dimensão econômico-financeira visa o equilíbrio entre custos e rendimentos. De acordo com Ventura et al. (2009) apud Zwich, Pereira e Teixeira (2012), contribuem para esta dimensão as categorias “Governança corporativa, [que] trata do governo estratégico da empresa, tendo em vista a distribuição de poder entre as partes, tanto em relação à propriedade quanto às responsabilidades [e a] Governança democrática”, (VENTURA et al., 2009 apud ZWICH, PEREIRA e TEIXEIRA, 2012, p. 9-10), segundo a qual a participação constitui a base para a boa governança, no primado da autogestão. Agrega-se ainda a essa dimensão o exercício da transparência, do controle social, também assumindo características de controle público, bem como da responsabilidade social, no sentido de aliar seu processo às boas práticas e ao compromisso ético com o bem estar da comunidade para a promoção do desenvolvimento local e da sustentabilidade. A dimensão institucional-administrativa, em um formato mais interno à organização, é composta das categorias planejamento, organização, direção, controle, habilidades gerenciais e técnicas. Estas categorias desencadeiam uma forma de gestão, que tende ou para uma forma mais autogestionária, baseada na gestão social que se liga ao trabalho autônomo associado com meios de produção socializados, ou, para uma forma mais heterogestionária, que apresenta uma clara relação de submissão hierárquica em que os meios de produção estão separados da força de trabalho, efetivando um trabalho assalariado individual. Este segundo formato é estranho aos empreendimentos sociais. 46 Por último, a dimensão sociopolítica está associada à forma de participação dos membros, permeada nos valores que regem a organização, que fazem parte do processo educativo e do desenvolvimento do sentimento de pertencimento à organização. A propriedade coletiva, o exercício de participação democrática no processo decisório e na divisão das sobras proporciona a emancipação individual e coletiva e asseguram à autogestão. Contudo, o empreendimento que priorize a concentração da propriedade em um ou poucos membros, a organização hierarquizada, o lucro, a competição e os benefícios individuais, tende à dominação e ao exercício da heterogestão. Duarte e Teodósio (2013) destacam que os sujeitos envolvidos nos empreendimentos sociais são cidadãos submetidos à vulnerabilidade social, os quais se pretende resgatar do ciclo vicioso da pobreza. Daí a importância de se buscar a cooperação para que, fortalecidos no conjunto, tenham a capacidade de dinamizar processos de inovação que proporcionem sustentabilidade ao empreendimento e resultem em mudança social. 5. Considerações finais: a proposição de um tempo social para o empreendimento Diante do exposto acima, verificou-se que os empreendimentos sociais são, em sua grande maioria, apoiados por instituições públicas e/ou privadas, abrindo o leque para o desenvolvimento de uma área de apoio à gestão pública das políticas sociais por meio de iniciativas de geração de renda, contribuindo para a sua implementação, quando apoiados por órgãos públicos. Quando apoiados por instituições privadas, efetivam a sua área de responsabilidade social com o apoio a negócios locais e o fortalecimento de organizações sociais. A experiência vivenciada no estado do Pará, junto a ações de responsabilidade social que contemplem empreendimentos sociais, abre caminho para a realização de um estudo aprofundado, podendo melhor compreender a dinâmica deste tipo de empreendimento em Minas Gerais, em especial, com respeito ao tempo de amadurecimento requerido por estas organizações. Apresenta-se um grande desafio e longo caminho a percorrer, visto que se verificam raras experiências de sucesso, que tenham, de fato, mudado a condição de vida de seus associados. Deste modo, ratificando Comini (2011): “é necessário quebrar paradigmas presentes na forma tradicional de fazer negócios e de atuar no social. Desde o momento zero do empreendimento, é fundamental inovar e viabilizar novos arranjos institucionais” (COMINI, 2011, p.23), no sentido de oferecer a estas instituições condições de sustentabilidade, quais sejam: formação para a gestão social, desenvolvimento tecnológico, abertura de frentes de comercialização, possibilidades de compras consorciadas, articulação em rede, etc. Segundo Oliveira (2004) apud Alves Junior, Fontenele e Faria (2008, p.6), um processo de gestão social dos empreendimentos em foco, apresenta “uma cadeia sucessiva e ordenada de ações, que podem ser resumidas em três fases: a) concepção da ideia b) a institucionalização e maturação da ideia e c) a multiplicação da ideia”. É na fase de maturação da ideia de um empreendimento social que essa pesquisa centrar-se-á e aprofundará seu constructo teórico, para obter dados que subsidiem a busca de sua sustentabilidade, considerando o caminho trilhado pelo empreendimento desde seu nascimento até sua maturidade. As experiências relatadas demonstram claramente a necessidade do 47 reconhecimento de um tempo de maturação para empreendimentos desta natureza, diferente do observado em empreendimentos tradicionais capitalistas, e denominado, neste ensaio, tempo social. O monitoramento deste tempo visa garantir a efetivação da implantação do empreendimento e o alcance de sua sustentabilidade, apoiado no exercício da autogestão, da cooperação, da preparação do produto com qualidade, do enfrentamento do mercado com inovação e participação em arranjos institucionais e em redes consorciadas de comercialização, para firmar seu espaço dentro de uma economia local. Este tempo social é o demandado para se preparar e emancipar pessoas em condição de vulnerabilidade social, tendo em vista suas condições educacionais, culturais e suas qualificações frágeis e destituídas de características empreendedoras, necessitando se fortalecerem e encontrarem complementaridades no coletivo, aprenderem a desempenhar seus papeis em processos autogestionários e realizarem um processo decisório que as levem a alcançar a sustentabilidade de seus negócios. Por fim, é um grande desafio tornar tais iniciativas sustentáveis e capazes de mudar a realidade dos sujeitos envolvidos, pois se deve considerar um tempo, um processo de introjetar valores solidários e cooperativos, além de estabelecer uma cultura empreendedora, baseada em princípios da gestão social. Isto demanda um processo educativo que opere em uma lógica de prazos mais longos, no sentido de que, cada membro constate a sua importância individual no processo e, no coletivo, constate a sua corresponsabilidade frente ao empreendimento, além de promover e estabelecer articulação em rede com outros empreendimentos sociais, sem perder de vista os requisitos dos investimentos “centrados em aspectos sociopolíticos e técnicos e [nas] interações com o mercado”, (DIAS e SOUZA, 2012, p. 18), buscando sustentar a inovação em arranjos locais, sem deixar perder a essência cooperativa dentro de uma cadeia de valor para uma economia social. Referências ALVES JUNIOR, Maisso Dias; FONTENELE, Raimundo Eduardo S.; FARIA, Maria Vilma C. Moreira. Sustentabilidade na Gestão de Organizações do Terceiro Setor – Um Estudo dos Empreendimentos Sociais apoiados pela Ashoka. Anais... V Simpósio, A universidade frente aos desafios da sustentabilidade, 2008. BASTOS, Maria Flavia. 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Centro Universitário Una – [email protected] RESUMO 52 8 1 ABSTRACT Investigam-se os processos de orientação pro issional que precisam ser promovidos pelo Núcleo de Carreira do Centro Universitário UNA, no município de Belo Horizonte - MG, com foco no jovem das camadas populares e bene iciário do ProUni – Programa Universidade para Todos –, visando ao seu desenvolvimento como sujeito autônomo e emancipado na transição do Ensino Superior para o mundo do trabalho. A investigação se orienta por esta questão central: que elementos e dimensões precisam ser considerados na intervenção social e pedagógica da orientação pro issional, direcionada aos jovens oriundos das camadas populares e bene iciários do ProUni, para caracterizá-la como uma inovação social com pertinência educacional e em consonância com os requerimentos do desenvolvimento local? Inicialmente são apresentados elementos da revisão teórica que deram suporte à investigação e que tratam do processo de transição escola-trabalho e dos desa ios da orientação pro issional considerando-se tais circunstâncias. Em seguida, apresentam-se os resultados da pesquisa de campo, realizada no Centro Universitário UNA, por meio de três grupos focais: o primeiro, constituído por pro issionais do Núcleo de Carreira dessa instituição; o segundo, por discentes bene iciários do ProUni; e, o terceiro, por membros do corpo docente e gestores acadêmicos do Centro Universitário UNA. Os dados obtidos evidenciam a necessidade de um novo olhar para a orientação pro issional realizada pela instituição, que considere as especi icidades do alunado do ProUni e sua efetiva e quali icada inserção pro issional. Propõe-se, então, um protocolo ou metodologia sobre orientação pro issional dirigida aos jovens universitários do ProUni. Trata-se de proposta de intervenção que visa promover inovação social e pedagógica na implementação dessa política de ação a irmativa e a concretização do seu potencial de contribuição para o desenvolvimento local. Research on the professional orientation that need to be promoted by the Career Center at Centro Universitário UNA, in the city of Belo Horizonte, Minas Gerais, Brazil, focusing on the low income young people who are beneϔiciaries of ProUni – Programa Universidade para Todos –, aiming at their development as an autonomous and emancipated individual in the transition from higher education to the work world. The research is based on this central question: what elements and dimensions need to be considered in the social and pedagogical intervention of the professional orientation directed to young people from lower social stratum who beneϔit from ProUni, in order to characterize it as a social innovation with educational effect and in accordance with the requirements for local development? The ϔirst chapter presents the theoretic review elements which supported the research, as follows:the transition from higher education to work market and the professional orientation challenges, taking these circumstances into account. Following, this article presents the results of the ϔield research carried out at Centro Universitário UNA, through three focal groups: the ϔirst one with the institution Career Center professionals; the second one, composed by students who beneϔit from ProUni; and, the third one, with professors and academic management professionals of Centro Universitário UNA. The collected data evidence the need of a new look towards the institution’s professional orientation that considers ProUni students speciϔic realities and their effective and qualiϔied employability. Therefore, this research proposes a professional orientation protocol or methodology addressed to ProUni young university students. It is an intervention proposal that seeks to promote social and pedagogical innovation with the implementation of this afϔirmative politic action and achievement of its potential contribution to local development. PALAVRAS-CHAVE ProUni. Orientação Pro issional. Juventude. Educação Superior. Desenvolvimento Local. KEY-WORDS ProUni. Professional Orientation. Young people. Higher Education. Local Development INTRODUÇÃO O tema deste trabalho foi definido como a orientação profissional aos jovens das camadas populares e com acesso ao Ensino Superior por meio do ProUni – Programa Universidade Para Todos com vistas à sua efetiva e qualificada inserção no mundo do trabalho. O problema foi circunscrito à formação dos jovens universitários das camadas populares e beneficiários do ProUni que, para garantir uma qualificada e efetiva transição escola-trabalho, requer que se considere a oferta de um determinado tipo de orientação profissional fundamentado nas origens, condições e identidades socioculturais desses jovens. Entretanto, percebeu-se que essa questão ainda se mostrava pouco esclarecida; especialmente, em relação à intervenção social e pedagógica que poderia ser ofertada aos jovens. A dúvida que surgiu se referiu à especificidade da orientação profissional a ser desenvolvida. Dessa forma, a investigação se orientou por uma questão central que indagou os elementos e dimensões que precisam ser considerados na intervenção social e pedagógica da orientação profissional aos jovens oriundos das camadas populares beneficiários do ProUni, que possam se caracterizar como uma inovação social com pertinência educacional e em consonância com os requerimentos do desenvolvimento local. O estudo foi motivado pela necessidade de uma intervenção voltada para melhoria dos processos educacionais e dos percursos formativo e profissional dos jovens universitários oriundos das camadas populares, visando garantir melhoria da qualidade de vida e reflexos positivos no desenvolvimento local. Na realização dessa investigação, buscou-se, inicialmente, descrever e analisar o ProUni e seus efeitos como política pública de inclusão no Ensino Superior, a partir de dados primários e secundários, referentes às pesquisas e aos censos do INEP realizados de 2005 a 2012, bem como descrever e discutir as atividades de orientação profissional voltadas aos jovens universitários, realizadas pelo Núcleo de Carreira do Centro Universitário UNA, no município de Belo Horizonte - MG. Em seguida, descreveu-se o processo de transição escola-mercado de trabalho entre os jovens oriundos das camadas populares e, a partir desse estudo, elaborou-se uma proposta de intervenção relativa à orientação profissional dos jovens oriundos do ProUni matriculados no Centro Universitário UNA, visando ao desenvolvimento autônomo, emancipado e segundo os interesses desses sujeitos, com foco na transição da educação superior para o mercado de trabalho. A TRANSIÇÃO ESCOLA-TRABALHO O mercado de trabalho espera e exige, cada vez mais, que os jovens egressos da educação superior tragam em sua formação um acervo de vivências e um amplo repertório cultural e comportamental. As empresas exigem, portanto, que o universitário esteja inserido na discussão sobre os atuais requisitos de qualificação profissional e demonstre ter informações, conhecimentos, competências, habilidades, atitudes e valores ligados a uma vivência e visão ampla do mundo das empresas, das relações interprofissionais e do mercado. Essas exigências ficam evidentes na condução das entrevistas e dinâmicas realizadas com os candidatos a vagas em processos seletivos de estágios em diversas organizações. 53 Por carência desse repertório e por não estarem devidamente orientados a explorar as potencialidades culturais e pessoais que possuem, os jovens oriundos das camadas populares têm mais dificuldade de aprovação nesses processos seletivos de estágios, que são, via de regra, a porta de entrada para o mercado de trabalho. Por outro lado, alunos provenientes de camadas sociais mais favorecidas por bens culturais de acesso mais restrito, com viagens e visão globalizada do mundo do trabalho, destacam-se mais nos processos seletivos. São jovens que, embora vivam localmente, estão conectados a informações e valores mais próximos das relações ditadas pelo mundo capitalista globalizado, o que lhes dá um diferencial, em termos de vantagem competitiva, em relação ao universitário oriundo das camadas populares. Ora, os alunos oriundos do ProUni não são capazes de concorrer em igualdade de condições com alunos não-bolsistas para as vagas de estágio nas organizações? Tal questionamento coloca em debate a noção de falsa democratização do acesso à educação superior e de reforço das estratégias de ação afirmativa em face da reposição dos pressupostos da estratificação social. Afinal de contas, além de ser uma política pública do campo educacional, o ProUni também pode ser visto como política pública para o jovem brasileiro. Entre os desafios do Governo Federal, inclusive dentro da Política Nacional de Juventude1, estão o preparo para o mundo do trabalho e a geração de trabalho e renda para os jovens. E os jovens oriundos das camadas populares não podem ser colocados à margem desse processo. Portanto, para garantir o que preconiza o Governo Federal e os anseios de famílias e dos jovens das camadas populares, o significado do ProUni assume novos contornos e inaugura um novo dilema: deixar os egressos desse Programa à própria sorte ou lhes oferecer atenção específica ainda como estudantes e condições para que desenvolvam percepções mais ampliadas do mundo do trabalho e de seus desafios. Constata-se, assim, que mudanças nas abordagens educacionais aos universitários beneficiários do ProUni precisam ser feitas, que reflitam positivamente em seus desempenhos em processos seletivos das organizações. Percebe-se, por outro lado, a importância da promoção de uma educação superior que também não dê as costas aos conhecimentos e valores que os jovens das camadas populares trazem e que lhes despertam sentimentos de pertencimento e de afirmação sociocultural. Vale salientar que a estratégia de criação de cotas para estagiários ProUni, como tem ocorrido em alguns casos, por si, não é capaz de lhes dar autonomia para prosseguir nas suas carreiras profissionais. A estratégia mais consistente remete a intervenções na formação e orientação desses jovens com sentido de fortalecimento dos seus potenciais e valores e de redução das suas vulnerabilidades. A realização profissional desses jovens se reflete na sua qualidade de vida, e na de suas famílias, e, consequentemente, no desenvolvimento local, e isso pode ser feito ou requer ser feito articulando-se os requisitos do agir localmente, considerando-se suas determinações particulares, com as exigências do pensamento mais universalizado, mais global, que o mundo do trabalho hoje apresenta. A realidade dos jovens das classes sociais menos favorecidas é, muitas vezes, de uma trajetória marcada por sofrimento e, em geral, por escassez de recursos. Desde a infância, a desigualdade social interfere no percurso educacional desses jovens. Trazem, quase sempre, um histórico de acesso ao ensino da rede pública, por 54 1. http://www.juventude.gov.br/politica. vezes precário, ou, então, de passagens por instituições educacionais particulares noturnas frequentadas depois de jornadas cansativas de trabalho, perfilando um itinerário de formação, via de regra, descontínuo e limitado, quanto aos recursos encontrados. A baixa escolarização dos pais e a frágil imersão na cultura letrada reforçam as debilidades desse percurso formativo. Essa realidade diferenciada e caracterizada por negatividades, mas, também, por positividades, não pode ser esquecida, quando se busca compreender e intervir no processo de transição escola-trabalho dos jovens oriundos das camadas populares A ORIENTAÇÃO PROFISSIONAL As expectativas por parte do mundo do trabalho, a baixa qualidade na formação básica e o repertório cultural diferenciado e distante do que tende a ser considerado modelar, deixam os jovens pobres em situação de desvantagem. Nesse contexto, a orientação profissional surge como elemento essencial nessa construção, especialmente para jovens oriundos das camadas populares que, após a implementação do ProUni em 2005, passaram a ter acesso à educação superior em maior escala e que pouco ou nenhum contato tiveram com programas de orientação profissional ao longo de suas vidas. Isso se deve ao fato de esses jovens, ao pleitearem vagas no mercado de trabalho, serem submetidos a testes, dinâmicas de grupo e entrevistas, sendo avaliados e selecionados a partir de vieses pouco favoráveis aos seus perfis socioculturais. É o que pode estar acontecendo com grande parte dos beneficiários do ProUni nas instituições brasileiras de educação superior. Atualmente, o termo orientação profissional convive com diversos outros termos recorrentes nas organizações e na literatura, tais como mentoring, coaching e counseling. São iniciativas que embora estejam em consonância com práticas da Psicologia, da Pedagogia e da Administração, propõem intervenções muitas vezes sem levar em consideração os objetivos a serem alcançados e somente reforçam jargões ditados pelas organizações (SILVA, 2010). Em muitos casos são iniciativas, que seguem um padrão, que se esquecem de considerar o indivíduo, sua história, seus registros, sua vida, suas vantagens socioculturais específicas. Essa proposta homogeneizante de orientação profissional deixa de levar em consideração a diversidade sociocultural dos sujeitos e, por causa desse olhar, não dá conta de perceber que há diferenças entre os jovens das camadas populares e aqueles dos estratos sociais mais elevados, que podem ser de valor fundamental. Nas palavras de Bello (2008), verifica-se [...] la debilidad de una Orientación homogeneizante, frente a la realidad de un mundo global, diverso y multicultural. Atender la diversidad es el desafío que la orientación aún no ha resuelto, ya que ésta plantea una multiplicidad de conflictos y paradojas para las cuales no son válidas recetas específicas. (BELLO, 2008, p. 3) Os modelos tradicionais e padronizados de orientação profissional podem ser reducionistas, se confrontados com o processo de globalização e com a diversidade humana em todas as suas dimensões. Podem, ainda, condicionar e limitar o desenvolvimento e a criatividade individuais e, consequentemente, “delimitar o papel 55 que cada indivíduo deve assumir na construção do bem-colectivo” (DUARTE, 2011, p. 145). Essa limitação pode ficar evidente no caso dos jovens das camadas populares, que apresentam um extenso repertório de vida, habilidades e potencialidades, que podem ser positivamente relevantes para as organizações do setor produtivo, mas possivelmente desconhecidas pelos próprios sujeitos e pelos profissionais de recrutamento e seleção, cujas atuações ainda seguem modelos de inclusão tradicionalmente estabelecidos. Tais padrões tendem a ser replicados nos programas de orientação profissional, em geral alicerçados em análises de perfil e mapeamento de competências, realizados por meio de testes psicológicos. Tendem a repetir o modelo de recrutamento e seleção conformado pela lógica dominante no mercado de trabalho. E este modelo pode não atender os anseios e as necessidades dos jovens das camadas populares que carregam registros de vida muito distintos dos padrões pré-estabelecidos. De acordo com Machado (2009), [...] o campo da Orientação Profissional se voltou, então, para a Psicologia Diferencial e a Psicometria, e até hoje, parte significativa dos seus esforços se centra no debate sobre concepções e aplicações de testes construídos especialmente para aferir atributos como inteligência, aptidões, habilidades, interesses e personalidade. (MACHADO, 2009, p. 90) Para Machado (2009), as pessoas precisam, hoje, gerenciar não somente suas escolhas profissionais, mas também o uso de suas capacidades e saberes. Na perspectiva da autora, as pessoas são motivadas por interesses diversos, seus próprios, das organizações e da sociedade em geral. Além disso, se encontram, muitas vezes, em momentos de tensão e contradições e precisam, portanto, compreender melhor o mundo do trabalho em que atuam e o meio social em que vivem para que possam estar envolvidas numa atividade laboral decente (MACHADO, 2009). Dessa forma, faz-se necessário um novo olhar para a orientação profissional. Será necessário mudar a forma de desenhar e executar a prática de OP, bem como repensar seus objetivos e enfoques (DURANT, 2004, p. 21 apud BELLO, 2008). Duarte (2011) propõe que seja uma “tentativa de encontrar e desenhar outras formas de reflectir sobre a orientação enquanto processo de autoconstrução” (DUARTE, 2011, p. 143). Enquanto processo de construção, a orientação pode tirar partido de cada um individualmente, de acordo com suas experiências e história de vida. Duarte (2011) propõe [...] lançar um olhar para a orientação considerando as características e as capacidades de cada um para, não perdendo a sua condição de elemento activo e solidário numa cadeia histórica de onde emerge, nela se alimentar para depois, com o conhecimento assim obtido, e integrando as suas próprias experiências e as leituras que delas faz. Em síntese, dar continuidade à mesma cadeia, projectando-a para o futuro. Continuando a mesma linha de pensamento, procurando reflectir sobre a orientação enquanto processo de construção, procurese agora entender como a orientação pode ajudar a tirar partido da experiência de cada um. (DUARTE, 2011, p. 147) 56 Trata-se, portanto, de potencializar o que os jovens já trazem de suas experiências de vida (DAYRELL et al., 2003, p. 43). Pelo mesmo autor, o pleno desenvolvimento ou não das potencialidades que caracterizam o ser humano vai depender da qualidade das relações sociais com o meio no qual se insere e se as relações sociais entre os jovens das camadas populares e o mundo do trabalho não considerarem os registros de vida desses jovens, suas potencialidades que podem passar invisíveis ou não apresentarem uma evolução no ambiente laboral. Surge, então, a perspectiva de um novo olhar também para a orientação profissional dos jovens oriundos das classes menos favorecidas. Machado (2009) propõe no artigo “Orientação Profissional: a necessária renovação conceitual e reorganização política” uma nova visão dos processos de orientação profissional. Segundo a autora A Orientação Profissional, atualmente, se depara, assim, com a necessidade urgente de buscar referências fora do seu contexto tradicional de atuação e de si mesma como um campo de linguagem e testes que, muitas vezes, são tomados como universais, para interagir com outros campos, pensar junto e ser referenciada por pactos e alianças. (MACHADO, 2009, p. 91) Este novo modelo de OP precisa considerar os contextos existentes, as culturas locais, tendo sempre o sujeito no centro (DUARTE, 2011, p. 150). Nessa vertente, não se pode desconsiderar, no trabalho de orientação profissional, a realidade socioeconômica e sociocultural dos jovens das camadas populares e suas vulnerabilidades (VALORE et al., 2012, p. 358). Na pesquisa realizada por Valore et al. (2012) com jovens oriundos das camadas populares, constatou-se [...] a relevância da orientação profissional na formação cidadã dos jovens, pois independente das restrições impostas pelas condições socioeconômicas desses jovens na construção de seus projetos de vida e carreira, a realização de uma escolha consciente, autônoma, emancipada, apresentou-se comum a todos os jovens participantes da pesquisa. (VALORE et al., 2012, p. 361) Afinal de contas, é próprio da natureza humana o desejo por escolhas conscientes e que levem à auto-realização e, para os jovens oriundos das camadas populares, isso não é diferente. Esses jovens também buscam a realização de projetos de vida e de carreira e têm desejos de mobilidade social. Todas essas reflexões fazem sentido quando confrontadas com o projeto institucional do Centro Universitário UNA, que se propõe a ter foco na formação integral de seus alunos em suas diversas dimensões, como indivíduo, como cidadão e como profissional. Isso é importante para que cada um encontre seu caminho, construa suas trajetórias de vida pessoal e profissional, sem perder sua identidade e o sentido de si próprio (DUARTE, 2011). Além disso, como bem afirma Valore (2012), a OP não pode ser uma intervenção isolada, por iniciativa apenas de psicólogos em escolas e consultórios, mas deve estar articulada em rede com as práticas sociais do corpo docente e dos profissionais em geral das instituições de educação superior. Para Valore, “[…] tal premissa parte do pressuposto de que a transição para o 57 mundo do trabalho não é tema exclusivo da OP, posto que configura um trabalho mais abrangente que, em outros países, vem sendo denominado de Educação para a Carreira” (VALORE et al., 2012, p. 414). Esse papel de educação para a carreira pode ser também o papel da instituição de educação superior como provedora de apoio ao jovem em transição para o mundo do trabalho. Para Gazo-Figuera (1996 apud MELO, 2007) tal instituição precisa assumir um papel de apoio ao estudante para facilitar a inserção no mercado de trabalho. Sugere, ainda, que, como política educacional, ela deve criar uma estrutura informacional sobre a operação do mercado de trabalho que possa ser utilizada tanto para decisões institucionais como também como referência para os projetos profissionais dos estudantes. No âmbito da orientação universitária, Gazo-Figuera (1996) sugere que [...] o desenvolvimento de programas de orientação e de intervenção, durante a fase de transição ao mercado de trabalho, que sigam as seguintes recomendações: (a) aplicação em contextos próximos do aluno; (b) treinamento em habilidades de tomada de decisão e busca de emprego; (c) desmitificação de percepções e de conceitos que reforcem a conduta passiva frente ao mercado de trabalho; (d) construção de programas de desenvolvimento pessoal para estudantes com problemáticas específicas; (e) integração a uma política de emprego que facilite a atuação em nível microcontextual. (GAZO-FIGUERA, 1996 apud MELO, 2007, p. 387) São iniciativas que podem garantir ao jovem uma passagem mais amena para a vida adulta, fazendo com que ele consiga ultrapassar, com maior apoio social, os obstáculos inerentes ao período de transição universidade-mercado de trabalho e com que tenha mais oportunidades para alcançar seus objetivos de vida. Quando a autora cita a necessidade de cuidado com jovens que tragam problemáticas específicas, pode-se considerar, dentre eles, o jovem de baixa renda como aquele que precisa de uma orientação que leve em conta suas vulnerabilidades. Nesse contexto, a instituição de educação superior precisa repensar o seu papel diante das transformações no mundo do trabalho, no sentido de levar em conta questões relevantes enfrentadas pelos jovens no mercado de trabalho atual, que necessitam ser refletidas criticamente, durante o seu processo de formação, e incluir, em suas atividades acadêmicas, projetos voltados para a inserção do graduando no mercado de trabalho, considerando-se as vivências dos jovens nesse período de transição. Um programa de orientação profissional que leve em conta todas essas questões e as particularidades do jovem de baixa renda pode não só oferecer maior suporte institucional a esse jovem, mas, efetivamente, colocá-lo em uma posição mais favorável e competitiva em relação às demandas do mundo do trabalho (MELO et al., 2007, p. 388). Na ótica de uma orientação profissional ofertada pela instituição de ensino, essa responsabilidade individual pode ser trabalhada de forma que o jovem encontre seu próprio caminho e mostre seu potencial ao mundo do trabalho, especialmente aos recrutadores em processos seletivos das organizações em geral. 58 Embora o foco da orientação profissional individual seja um dos caminhos, a instituição de ensino poderia também desenvolver projetos de extensão e pesquisa mais coerentes com as necessidades do mercado de trabalho, introduzindo o jovem mais cedo no contexto em que irá atuar como profissional, preparando-o em aspectos psicossociais (identidade profissional, imagem pessoal, socialização organizacional, etc.), que interferem no projeto da carreira. Assim, a Universidade poderia oferecer um programa de orientação profissional e de preparo para o trabalho, uma vez que muitos jovens mudam de curso ou pela falta de maturidade para a escolha da profissão ou pelas oportunidades que vão aparecendo na sua vida. Portanto, é fundamental olhar para os jovens oriundos das camadas populares no momento de transição da educação superior para o mundo do trabalho com outra proposta de orientação profissional, conduzida e apoiada pela instituição universitária e que leve em conta o preparo para essa transição, alicerçado em suas habilidades e saberes, e que se proponha a realizar a conscientização de profissionais de recursos humanos das organizações. Trata-se de buscar referências e de realizar reflexões sobre como dar mais um passo importante para a verdadeira inclusão social dos jovens das camadas populares e beneficiários do ProUni. PESQUISA COM ESTUDANTES, PROFISSIONAIS DE ORIENTAÇÃO PROFISSIONAL, PROFESSORES E GESTORES DO CENTRO UNIVERSITÁRIO UNA. A pesquisa de campo teve como referência as atividades de OP realizadas pelo Núcleo de Carreira junto aos alunos de graduação do Centro Universitário UNA. Essas atividades são conduzidas por um grupo de profissionais da Psicologia Organizacional que atendem, em média, 700 (setecentos) alunos por ano, promovendo uma série de encontros e análises de perfil profissional e comportamental desses discentes. A partir desses dados, foram discutidos os impactos e a pertinência desse programa de orientação profissional na transição escola-mundo do trabalho, com recorte específico aos alunos beneficiários do ProUni e oriundos das classes populares. Nessa etapa, foram consideradas as particularidades socioculturais desses sujeitos no que diz respeito à transição para o mundo de trabalho como egressos da educação superior. Essas discussões foram conduzidas por meio da realização de três grupos focais. O primeiro grupo (GF1) foi composto pela equipe responsável pela OP no Centro Universitário UNA, atualmente composta por cinco profissionais. O segundo grupo (GF2) foi composto por quatro discentes beneficiários do ProUni, representando quatro diferentes cursos e campi do Centro Universitário UNA. O terceiro grupo (GF3) foi composto por sete participantes acadêmicos, representando os cinco institutos do Centro Universitário UNA e sua coordenação acadêmica: cinco diretores de institutos, um coordenador acadêmico e um docente. Pretendeu-se, por meio dos grupos focais, promover discussões e conhecer a opinião dos seus integrantes sobre a inserção dos jovens beneficiários do ProUni no mundo do trabalho. A proposta foi conhecer as experiências vividas pelos sujeitos participantes e sua percepção acerca do tema, identificando elementos novos ou divergentes com relação às assertivas que balizaram o desenvolvimento do projeto desta pesquisa. 59 A partir do próprio roteiro estabelecido e das respostas fornecidas pelos grupos focais, foi possível categorizar grandes áreas, quais sejam: o perfil do aluno ProUni e uma análise comparativa com os alunos não beneficiários do ProUni; o processo de transição escola-trabalho; o processo de escolha e a orientação profissional e a orientação profissional voltada ao aluno ProUni. Inicialmente, estamparam-se nesse trabalho o entendimento do cenário educacional brasileiro na criação do ProUni – Programa Universidade para Todos – e sua evolução, o ProUni e o Centro Universitário UNA e, finalmente, o cenário atual e a legitimidade do ProUni como política pública. Em seguida, abordaram-se questões relativas à juventude e ao jovem das camadas populares, ao processo de transição escola-trabalho e à orientação profissional voltada para esses jovens. Nessa abordagem concluiu-se sobre diversos conceitos de juventude e a necessidade de se considerar as histórias de vida e particularidades dos jovens oriundos das camadas populares nos processos de orientação profissional e de transição para o mundo do trabalho. Argumentouse que processos padronizados de avaliação de competências consideradas como as exigidas pelo mundo do trabalho nem sempre refletem os saberes dos jovens “proUnistas”. Ao longo dos grupos focais, registrou-se que, embora elevado desempenho acadêmico dos bolsistas seja relatado por todos os participantes, isso não garante a efetiva transição escola-trabalho. Há um padrão, em algum nível, de expectativas das organizações em relação ao aos perfis dos candidatos participantes de processos seletivos e que não corresponde, necessariamente, aos da maioria dos jovens de baixa renda. Por outro lado, esses mesmos jovens apresentam características que podem, embora de forma atualmente não legitimada, contribuir para o sucesso das organizações. Finalmente, propôs-se um novo olhar institucional para a orientação profissional; isto é: uma proposta de intervenção social e pedagógica que considerasse a necessidade do reconhecimento e da legitimação dos saberes e experiências de jovens oriundos dos segmentos sociais populares. É essa a essência da proposta de intervenção que, a seguir, se apresenta. Entende-se que iniciativas dessa natureza podem garantir ao jovem uma passagem mais amena para a vida adulta, fazendo com que ele consiga ultrapassar, com maior apoio social, os obstáculos inerentes ao período de transição universidade-mercado de trabalho e com que tenha mais oportunidades de alcançar seus objetivos de vida. E os jovens oriundos dos estratos sociais mais baixos, com problemáticas específicas, precisam de cuidado, de uma orientação que leve em conta suas vulnerabilidades e que mostre seu potencial frente às exigências do mundo do trabalho. UM NOVO OLHAR INSTITUCIONAL PARA A ORIENTAÇÃO PROFISSIONAL: PROPOSTA DE INTERVENÇÃO SOCIAL E PEDAGÓGICA. A proposta da referida intervenção propõe um novo olhar para a questão da orientação profissional a partir do tema da investigação, assim delineado: a orientação profissional de jovens das camadas populares beneficiários do ProUni com foco nos desafios da transição escola-trabalho. Ela trata de princípios, diretrizes, 60 ações e aspectos das estruturas física, institucional e social para uma concepção de programa de orientação profissional fundamentado nas identidades socioculturais e necessidades dos jovens beneficiários do ProUni, visando à sua exitosa transição escola-mundo do trabalho. Buscou-se desenvolver um instrumental técnico considerando-se a atividade de orientação profissional como um processo educacional e a perspectiva de se inoválo, contemplando seu sentido social e sua importância para o desenvolvimento local. Em outras palavras: a intenção foi elaborar uma proposta de intervenção relativa à orientação profissional de jovens oriundos do ProUni no Centro Universitário UNA, visando ao desenvolvimento pessoal autônomo e emancipado e em atenção às identidades socioculturais desses sujeitos, com foco na transição da Educação Superior para o mundo do trabalho. Apoiada nos dados e referenciais obtidos com a revisão teórica e pesquisa de campo, esta proposta centrou-se nos elementos considerados essenciais para uma orientação profissional inovadora do ponto de vista social e pedagógico e comprometida com o fortalecimento do ProUni como política pública de fundamental importância para o desenvolvimento local. Identificada como Protocolo de Orientação Profissional - ProUni, esta proposta de intervenção foi construída a partir das seguintes interlocuções: a) com a produção acadêmica expressa na revisão teórica sobre o tema; b) com os dados sobre a evolução do ProUni no País e no Centro Universitário UNA; c) com o contexto e práticas do Centro Universitário UNA de relacionamento com os jovens do ProUni; d) com a realidade sociocultural e educacional desses jovens. Algumas premissas oriundas dos grupos focais mereceram destaque como norteadoras dessa proposta de intervenção. Entre elas, está a necessidade de que o aluno “ProUnista” compreenda o cenário do mundo do trabalho atual, reconheça suas demandas e deseje sair do lugar de poucas oportunidades onde se encontra. Mas acima de tudo, compreender que embora seu repertório de vida possa não atender as demandas pré-estabelecidas pelas organizações e traduzidas nos processos seletivos, sua história de vida permitiu e permite desenvolver outros saberes e formas de agir também importantes para a sociedade e para o mundo do trabalho, inclusive o das organizações. Ou seja: é fundamental resgatar o que o pedagogo e cientista da educação francês Georges Snyders (1917-2011) chama de “dupla face do proletariado” (1977), compreender a positividade do que é visto como negativo nas crianças e jovens das camadas trabalhadoras. Esse outro lado precisa ser considerado, ganhar visibilidade e, sobretudo, não ser motivo de autocomiseração dessas crianças e jovens. Nesta proposta de intervenção, busca-se afirmar a importância do reconhecimento e da legitimação dos saberes e expertises desenvolvidos pelos jovens ao longo de seus percursos de vida e de trabalho, que se constituir em diferencial afirmativo dos seus valores nas relações sociais e no contexto das organizações. No contexto da intervenção aqui proposta, o que se pretende é trazer à tona, destacar e valorizar as diferenças que o jovem do ProUni carrega em seu repertório de vida e como essas diferenças podem se constituir em diferencial positivo para si próprios, para a sociedade e o mundo do trabalho. Uma vez dentro da educação superior, percebeu-se, especialmente nas colocações 61 dos educadores, um [entre]cruzamento de culturas entre os bolsistas e alunos de estratos sociais mais elevados. Tal fato remete à perspectiva da “sociologia das diferenças”, objeto das pesquisas de Bernard Charlot (2000, 2004, 2011, 2013); isto é: que as diferenças se produzem em função da inserção do aluno na estrutura de classes da sociedade e das experiências que ele vive e interpreta, diferenças que, na maioria das vezes, são vistas como “falta” ou “carência”; em especial, pelo mundo do trabalho. Os jovens “proUnistas”, de fato, dificilmente acessam as experiências que estão disponíveis para aqueles das classes mais altas e isso entra como um fator que dificulta suas transições escola-trabalho, uma vez que o mercado do trabalho segue um padrão de recrutamento e de seleção pautado em competências predeterminas e padronizadas não correspondentes, em geral, com o histórico de vida do jovem oriundo das camadas populares. Por outro lado, esses jovens são portadores de histórias de vida, subjetividades e singularidades que lhes permitiram construir patrimônios cultural, intelectual e social com significados importantes que, muitas vezes não são percebidos e/ou valorizados pelos recrutadores. Embora diferentes ou não legitimados pelo mundo do trabalho, esses são atributos socioculturais que precisam ser valorizados e que muito podem contribuir para a sociedade e, inclusive, para as organizações. Afinal de contas, cada pessoa se constrói no social, como sujeito ativo e consciente, por meio de singularidades próprias de suas histórias. Ele, portanto, projeta-se não somente pelo que determina o mercado do trabalho ou um perfil profissional padronizado, mas por quem ele é e pelo que viveu e como reagiu a imposições de modelos prefigurados. Nesse contexto, a proposta de intervenção por meio da orientação profissional diferenciada, que a investigação realizada permitiu elaborar, pretende inovar socialmente e pedagogicamente o trabalho educacional realizado em favor da emancipação do aluno ProUni, mostrando e valorizando seus atributos, com base em suas vivências e repertórios de vida. Pretende-se, assim, favorecer uma leitura abrangente e não restritiva de suas vivências e de seus diferenciais, tendo em vista a inserção qualificada desses jovens no mundo do trabalho, e sua permanência exitosa nele. Ocorre que, em geral, os modelos tradicionais de orientação profissional se pautam por conceitos e procedimentos padronizados que nem sempre consideraram as singularidades das pessoas e seus contextos de vida, suas histórias, seus registros, suas características socioculturais específicas. Esses modelos homogeneizantes de orientação profissional não levam em consideração a diversidade sociocultural dos sujeitos e, por isso, não dão conta de perceber que há diferenças importantes, mas nem sempre piores ou melhores, entre os jovens das camadas populares e aqueles dos estratos sociais mais elevados. Com isso, corre-se o risco de se adotar modelos tradicionais e padronizados de orientação profissional reducionistas, que, inclusive, colocam-se na contramão da flexibilidade e da abertura que o processo de globalização tem requerido das organizações e, consequentemente, de seus profissionais. Esses modelos podem, ainda, condicionar e/ou limitar o desenvolvimento e a criatividade individuais e, consequentemente, predeterminar papéis que o jovem profissional deverá assumir no mundo do trabalho. Essa limitação pode ficar evidente no caso dos jovens das camadas populares, que apresentam extensos repertórios de vida, habilidades e potencialidades, que 62 podem ser relevantes para suas comunidades, para sociedade e, inclusive, para as organizações, mas, possivelmente, são desconhecidas pelos próprios sujeitos e pelos profissionais de recrutamento e seleção, cujas atuações ainda seguem modelos de seleção tradicionalmente estabelecidos, com padrões que tendem a ser replicados nos programas de orientação profissional que são, geralmente, alicerçados em análises de perfis e mapeamento de competências, realizados(as) por meio de testes psicológicos, e tendem a repetir o modelo de recrutamento e seleção conformado pela lógica dominante no mercado de trabalho; um modelo pode não atender os anseios e as necessidades dos jovens das camadas populares que carregam registros de vida muito distintos dos padrões pré-estabelecidos. É mister ressaltar que, esse processo de intervenção, no âmbito de uma orientação profissional inovadora, cumpre considerar, também, que as “juventudes” são muitas, que não há uma definição única do que é ser jovem. São muitas as juventudes e todas carregam, ancoradas em suas histórias de vida, sonhos, desejos e expectativas em relação à sua transição da educação superior para o mundo do trabalho. Esse arcabouço de sentimentos também precisa ser considerado no processo de orientação profissional direcionada ao jovem de baixa renda do ProUni. Como política pública o ProUni pode promover a qualidade da inclusão na Educação Superior, mas o olhar inovador para uma orientação profissional que atenda aos anseios desse jovem pode promover efetiva qualidade de participação do mesmo nos processos sociais. Esta proposta de intervenção surgiu de uma experiência prévia com o programa de orientação profissional desenvolvido pela equipe do Núcleo de Carreira do Centro Universitário UNA. Ao perceber que não é possível replicar procedimentos e orientações padronizados para utilização em larga escala, inclusive para jovens do ProUni, surgiu a oportunidade de se pensar algo novo a partir da investigação realizada. Inicialmente, foi pensada na inovação como incremento; isto é: inovar a partir de um modelo já pronto e aplicado. No entanto, o desafio mostrou outra perspectiva: conseguir atender um número grande de jovens “proUnistas” sem perder o olhar para a pessoa. No modelo em vigor, isso se mostra impossível. O desafio exigiu descolamento dos modelos padronizados, pautados em análise de perfis, mapeamento de competências por meios de ferramentas que rotulam e pré-estabelecem padrões comportamentais. Surgiu, assim, a oportunidade para se pensar na promoção da inovação, o que requer ruptura. Assim, esta proposta de intervenção se constitui modelo inédito, na instituição, de orientação profissional, distante do modelo psicológico pautado na lógica das competências e do ajustamento do indivíduo a padrões ditados pelo mercado de trabalho. Em parceria do Núcleo de Carreira com a área de ensino a distância do grupo Anima2, esta nova proposta de orientação profissional prevê momentos coletivos, bem como momentos individuais, presenciais e virtuais, o que dará escala e a garantia de que todos os alunos “proUnistas” terão acesso ao programa proposto. Além disso, ela considera a importância da análise do contexto dos estudantes e de suas decisões, enxergando a orientação profissional como um processo formativo para o desenvolvimento pessoal e social e uma intervenção que deve ter caráter emancipatório, e não meramente compensatório. 2. http://www.animaeducacao.com.br/ 63 A proposta de intervenção precisa da parceria do NAP – Núcleo de Apoio Psicopedagógico – do Centro Universitário UNA. Entre os objetivos do escopo de trabalho do NAP estão: diagnosticar, preventivamente, dificuldades comportamentais de alunos do Ensino Superior e a adaptação e acompanhamento aos alunos com realidades específicas; orientar sobre hábitos de estudo e relacionamentos interpessoais - individual ou em sala de aula. A proposta dessa parceria é deslocar de um campo único de linguagem e testes que, muitas vezes, são tomados como universais, para interagir com outros campos. Pretende-se, também, interagir com atividades extensionistas da instituição, por meio de projetos que envolvam os alunos bolsistas e que reforcem seus atributos e saberes. Portanto, a abordagem da proposta de intervenção se propõe a ser educativa, dialógica, processual e integrada com a vivência escolar, inclusive com diferentes áreas de apoio ao aluno. CONSIDERAÇÕES FINAIS Os percursos da investigação, incluindo revisão teórica, análises documentais e de dados empíricos, ofereceram os elementos necessários para se entender a importância do debate sobre a transição de concluintes da educação superior para o mundo do trabalho quando esses são jovens de baixa renda e beneficiários do ProUni. A pesquisa realizada se insere nesse processo de busca de promoção de inclusão social na educação superior, sabendo que ela não garante uma efetiva transição para o mundo do trabalho que atenda os anseios dos jovens “proUnistas”. O ProUni, como política pública de inclusão educacional, pode ser efetivo, mas não se propõe a responder ao processo de inserção qualificada dos estudantes no mundo do trabalho. Percebeu-se que existem progressos sociais com relação à inclusão na educação superior, que há uma política pública inclusiva representada pelo ProUni, mas, ao mesmo tempo, verificou-se que pouco se fala sobre a transição dos concluintes para o mundo do trabalho e sobre a qualidade das conquistas dos jovens beneficiários com relação às suas trajetórias profissionais. Os grupos focais com estudantes e educadores mostraram que nem sempre a escolha por determinado curso ou profissão está alinhada com os anseios e sonhos desses jovens, ocorrendo, em muitos casos, em função do curso para o qual foi possível conquistar a bolsa. Há, portanto, indícios de qualidade do acesso, mas não necessariamente de qualidade de participação no mundo do trabalho com vistas a atender as expectativas dos jovens; ou seja: o jovem pode conquistar um espaço na instituições particulares de educação superior, obter um bom desempenho acadêmico, o que inclusive constatouse durante a investigação em relação aos “proUnistas”, mas, ainda assim, esse resultado não é garantia de uma transição que satisfaça seus desejos e expectativas quanto à oportunidade de se emancipar socialmente. Embora as juventudes sejam muitas, os jovens carregam, em geral, sonhos, desejos, anseios de realização pessoal e profissional e buscam na educação superior uma oportunidade para realizá-los. A partir dos resultados da pesquisa realizada, chegou-se ao modelo que propõe um novo olhar para a orientação profissional. Esse modelo é inovador, por propor mudar a forma de desenhar e executar a prática de OP, bem como por repensar seus 64 objetivos e enfoques. Nessa proposta, o jovem é considerado o protagonista principal dos processos do seu autorreconhecimento e autoconstrução. Ela busca tirar partido de cada participante da OP, individualmente, de acordo com suas experiências e história de vida. O que se pretende é que o jovem, como protagonista, seja capaz de conhecer a dinâmica do mundo do trabalho, conhecer a si mesmo, refletir sobre seus saberes por meio do inventário de saberes (CHARLOT, 2000) e, a partir daí, construir seu percurso profissional de modo que possa se apresentar ao mundo do trabalho valorizando seus atributos. O que se propõe, portanto, é que os bolsistas entendam que precisam participar ativamente do processo de suas escolhas profissionais; que caminhem além, gerenciando, também, o uso de suas capacidades, competências, habilidades e saberes, de modo que sejam os primeiros a valorizar seus interesses e a se colocar com dignidade e autoconfiança frente às exigências das organizações e da sociedade em geral. Pautado nessa perspectiva é que esta proposta de OP contempla, de forma inovadora, a combinação de atividades em grupo e individuais, presenciais e a distância, com o propósito de municiar o jovem com informações e orientações sobre o mundo do trabalho e suas peculiaridades, mas, acima de tudo, visando contribuir para o seu “empoderamento” para o uso de suas capacidades e saberes a partir das análises do seu inventário de saberes. Significa franquear a esses jovens não somente a oportunidade de acesso ao Ensino Superior, mas, também, a de dar continuidade ao seu desenvolvimento como indivíduo, cidadão e profissional, proporcionandolhes uma transição para o mundo do trabalho de forma autônoma e emancipada, valorizadora de seus atributos socioculturais, promovendo melhoria da sua qualidade de vida e, consequentemente, desenvolvimento local. Inspirado em Abade (2005, p. 143), acredita-se que o papel da OP “[…] não é prescrever um modelo de sociedade e de homem, mas construir propostas que possam convergir para a transformação de nossas condições de existência, no sentido de uma sociedade mais democrática e menos desigual”. Finalmente, esta investigação não tem a pretensão de encerrar a discussão sobre o tema e o problema selecionados para estudo, mas a de contribuir para o alargamento do espaço para novas reflexões e a de provocar interesse por novas pesquisas sobre as condições e situações de estudantes de instituições de ensino onde os contrastes sociais são ainda muito nítidos e sobre as mudanças que se fazem necessárias nas políticas e práticas de recrutadores para o mundo do trabalho. REFERÊNCIAS ABADE, F. L. Orientação Profissional no Brasil: Uma Revisão Histórica da Produção Científica. Revista Brasileira de Orientação Profissional, v. 6, n. 1, p. 15-24, 2005. 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RESUMO 70 8 1 ABSTRACT As transformações no mundo do trabalho, ligadas à reestruturação produtiva, têm sido signi icativas e veri icáveis em países de capitalismo avançado, com repercussões não homogêneas, em áreas industrializadas do Terceiro Mundo. As novas tecnologias foram inserindo e se desenvolvendo cada vez mais nos processos de produção, onde emergiram novos padrões de busca por maior e iciência na produtividade, como também formas de ajustar a produção à lógica do mercado mais competitivo e instável. Essas transformações afetaram a classe trabalhadora em escala global. O objetivo deste estudo é analisar essas transformações e o seu impacto sob a classe trabalhadora. À luz dos autores, Antunes (1999), Cattani (1997) e Harvey (2005), foram tratadas as transições no mundo do trabalho e os contrastes entre modelos de produção. Novas formas produtivas começaram a superar o padrão fordista, dentre elas, emergiram o conceito de especialização lexível. Mas, foi o toyotismo, ou modelo japonês, que provocou maior impacto. O que se pode considerar é que os trabalhadores permanecem como os principais protagonistas das transformações, sendo que foram duramente atingidos em sua subjetividade e em sua materialidade. Assim, estes passaram a icar sem estabilidade, na igura de trabalhadores atípicos, ou seja, executavam trabalhos temporários, parciais, em domicílios, informais, entre outros. The changes in the working world, linked to the restructuring process, have been signiϔicant and veriϔiable in the advanced capitalist countries, with inhomogeneous impact in industrialized areas of the Third World. New technologies were entering and developing more and more in production processes, where new patterns emerged search for greater efϔiciency in productivity, as well as ways to adjust production to the logic of competitive and ϔickle market. These changes affected the working class on a global scale. The objective of this study is to analyze these changes and their impact on the working class. In light of the authors, Antunes (1999), Cattani ( 1997) and Harvey (2005 ) , were handled transitions in work and contrasts between production models. New productive forms began to overcome the Fordist pattern, among them emerged the concept of ϔlexible specialization. But was Toyotism or Japanese model, which caused greater impact. What you might consider is that workers remain as the main protagonists of change, and have been hit hard in their subjectivity and their materiality. So they started to run out of stability, in the ϔigure of atypical workers, or temporary work performed, partial, in households, informal, among others. PALAVRAS-CHAVE Reestruturação produtiva; instabilidade trabalhista; capitalismo. KEY-WORDS Economic restructuring; capitalism. 1. Artigo publicado no II CONINTER, Belo Horizonte, Minas Gerais, 2013. labor unrest; 1. Introdução Profundas foram as mudanças no mundo do trabalho, na década de 1980, nos países capitalistas. Essas afetaram tanto a estrutura produtiva, quanto a classe dos trabalhadores. Novas tecnologias, a globalização, foram inserindo e desenvolvendo nos processos de produção, onde emergiram assim, novos padrões de busca de produtividade, novas formas de adequar a produção à lógica do mercado, cada vez mais competitivo e instável. Estas mudanças, no entanto, não romperam com o sistema produtivo em questão. A “essência” do capitalismo ainda permanece figurada no lucro e na competição. Os autores Antunes (1999), Cattani (1997) e Harvey (2005), tratam dessas transições no mundo do trabalho e fazem, principalmente, um contraste entre estes modelos. Neste sentido, o fordismo caracteriza-se como prática de gestão na qual se observa a radical separação entre concepção e execução baseando-se no trabalho fragmentado, repetitivo, parcelado, monótono e simplificado, com ciclos operatórios muito curtos requerendo pouco tempo para formação e treinamento dos trabalhadores. Os antigos processos de trabalho como a produção em massa, constituídos pelo padrão fordista de produção foram substituídos pela flexibilização da produção. O conceito de especialização flexível definiu-se como modelo alternativo apresentado e consagrado por Sabel e Piore para a produção capitalista. Mas, foi o toyotismo, ou modelo japonês, que provocou maior impacto, já que apresentava um processo produtivo mais flexível, no qual permite um operário trabalhar com várias máquinas e atender o mercado com melhor qualidade e num melhor tempo. Em decorrência do surgimento de novas formas produtivas, da reestruturação produtiva, para atender as exigências do mercado, várias foram as mudanças ocorridas no mundo do trabalho que afetaram principalmente a classe trabalhadora, seu modo de vida e de trabalho. Com estas mutações ocorridas na classe trabalhadora, nasceram assim outras formas de trabalho marcadas pela desqualificação e pouco custo. Desse modo, o presente trabalho busca analisar essas transformações e o seu impacto sob a classe trabalhadora. Pois, os trabalhadores ficaram sem estabilidade na figura de trabalhadores atípicos, ou seja, executavam trabalhos temporários, parciais, em domicílios, informais, entre outros. 2. Do fordismo à especialização flexível Após a Segunda Guerra Mundial, os países centrais estavam sob o sistema fordista de produção, todavia, nos anos 1960, este modelo apontou os primeiros sinais de sua crise, e assim surgiram formas mais flexíveis de organização da produção. Para entender as transições ocorridas é preciso destacar a origem e o significado de tais mudanças nas ordens produtivas. Segundo Antunes (1999), Cattani (1997) e Harvey (2005), o fordismo, sistema de produção empregado por Henri Ford em 1914, foi um modelo de produção baseado em inovações técnicas e organizacionais que se mesclavam. Para Harvey (2005), este modelo iniciou quando o seu criador reduziu a jornada de trabalho (encurtando para 8 horas uma jornada que eram de 9 horas) e aumentou para U$ 5,00 (enquanto a média nas indústrias automobilísticas era de U$2,34) – o que ficou conhecido como The Five Dollars Day. A visão de Ford, ainda segundo Harvey (2005, p.121), “seu 71 72 reconhecimento explícito de que produção de massa significava consumo de massa, um novo sistema de reprodução da força de trabalho, uma nova política de controle e gerência do trabalho (...)”, iria diferenciar o fordismo do taylorismo. Com este modelo, Henri Ford racionalizou velhas tecnologias, tendo em vista a produção e o consumo em massa. Essa nova forma inovou a indústria de automóvel quando introduziu e aperfeiçoou a linha de montagem. Caracterizava-se por fábricas verticalizadas, o qual se observava a separação entre elaboração e execução no processo de trabalho com produtos mais homogêneos, em que o trabalhador ocupava um posto do qual evitava seu deslocamento, pois a linha de montagem se encontrava conectada à esteira rolante. Eram as peças que se movimentavam, e cada trabalhador efetuava uma operação. Era essa relação, um homem/uma máquina, em que se fundamentava o fordismo. Nessas condições, o trabalho se tornava repetitivo, parcelado e monótono, ou seja, o trabalhador tinha como função repetir movimentos padronizados, desprovidos de qualquer conhecimento profissional, vendo desta forma a sua iniciativa e autonomia extremamente reduzidas. O fordismo alcançou um significativo crescimento na produtividade e apresentou um bom desempenho. Um fator importante surgido nesta fase foi à conquista dos direitos trabalhistas, em que houve uma redução da jornada de trabalho e um aumento relativo nos salários, sendo que, este último, funcionava como um incentivo para melhores rendimentos no trabalho. Porém este modelo enfrentou dificuldades em se propagar, tanto nos Estados Unidos quanto na Europa, principalmente. O benefício conhecido como, The Five Dollars Day, não funcionou apenas como incentivo, bem como forma de manter uma linha de comportamento disciplinado, como um meio de adestramento para com os trabalhadores. Visava entre outros objetivos, funcionar como forma de renda e lazer para que os trabalhadores consumissem dos produtos comercializados, consequentemente, assegurava o mercado, as fábricas e o aumento da produção. Contudo, esta experiência não perdurou e a sua existência demonstra os problemas nos quais o fordismo iria enfrentar. O aumento nos salários também não continuou, visto que, houve um corte dos mesmos, acompanhados de demissão dos trabalhadores, já que o mercado competitivo se fortalecia cada vez mais. As dificuldades de propagação do fordismo se deram por diversos fatores. Primeiramente, devido à resistência por parte dos trabalhadores em aceitar um sistema de produção fundamentado em um trabalho fragmentado, repetitivo e monótono, ou seja, em aceitar a rotinização e a monotonia do trabalho, pois o empregado perdia suas qualificações, as quais eram incorporadas as máquinas, e também no elevado grau de rotatividade da força de trabalho. Outra dificuldade, apresentada por Harvey (2005), é concernente à limitação dos modos e mecanismos de intervenção estatal na economia. Fez-se necessário obter um novo modo de regulamentação para atender aos requisitos da produção fordista. Foi preciso também, o quase colapso do capitalismo nos anos trinta, que promoveu de um lado o esfriamento da resistência dos operários, ameaçado pelos elevados índices de desemprego e, por outro, verificou a necessidade de uma nova postura e papel do Estado. Nem todos eram gratificados pelos benefícios do fordismo gerando insatisfações, pois este modelo apresentou desigualdades. A raça, o gênero e a etnia, determinavam quem tinha ou não acesso ao emprego privilegiado, sendo que amplos segmentos da força de trabalho não tinham acesso aos privilégios da produção em massa e do consumo de massa. Com isto, essas desigualdades resultaram em fortes movimentos sociais e tensões sociais por parte dos “excluídos”. Em meados a década de 1970, este modelo, até então predominante, entra em declínio, logo depois da aguda recessão instalada a partir de 1973. Com o aumento da concorrência internacional e a globalização da economia, este padrão entra em crise. A competição pressionou as empresas a adotarem novos processos de reestruturação produtiva, visando adequá-los às novas exigências do mercado, fazendo surgir um rápido processo de transição do regime. Outros modelos, novas formas produtivas começaram a superar o padrão fordista, os quais se operavam na flexibilidade dos processos de trabalho, dos mercados, dos produtos e padrões de consumo. Neste sentido, emerge o conceito de especialização flexível, a saber, foi um modelo alternativo apresentado por Sabel e Piore para a produção capitalista que, (...) articula, de um lado, um significativo desenvolvimento tecnológico e, de outro, uma desconcentração produtiva baseada em empresas médias e pequenas, “artesanais”. (...) Um processo “artesanal”, mais desconcentrado e tecnologicamente desenvolvido, produzindo para um mercado mais localizado e regional, que extingue a produção em série, (...) (ANTUNES, 1999, p.17). É inegável que Sabel e Piore se opõem ao fordismo e sua produção em massa, pois defendem o trabalho flexível, a mão-de-obra qualificada e polivalente, ou seja, para essa nova forma produtiva havia um significativo desenvolvimento tecnológico e uma descentralização produtiva para médias e pequenas empresas. Segundo estes autores, o elemento que causaria a crise capitalista, seriam os excessos do fordismo e a produção em massa, que suprimiam a dimensão criativa do trabalhador, mas nem todos concordavam com esta tese defendida por Sabel e Piore, sofrendo assim várias críticas e algumas considerações. Coriat (1992) criticava esta tese afirmando que a substituição da produção em massa e a sua generalização eram irrealizáveis na prática. Já para Clarke (1991), a tese não era universalmente aplicável, com diversas incoerências e também enfatizava que o fordismo já havia sido aplicado em diversas situações e que a razão da sua crise era pura conseqüência da crise do capitalismo (apud ANTUNES, 1999). Frank Annunziato (1989) desenvolveu pontos críticos sobre essa nova formulação, em que criticava, dizendo que Sabel e Piore entendiam que a produção artesanal era um meio necessário para a preservação do capitalismo, mas para ele o fordismo como é, dominava a economia dos EUA na época. O autor Fergus Murray (1983) concordava com Sabel e Piore ao dizer que a descentralização produtiva, a fragmentação do trabalho, se, unida com o avanço tecnológico, garantia maior exploração e maior controle sobre a força de trabalho. Enquanto Harvey (1992) reconhecia que podiam coexistir diferentes processos produtivos, integrando o fordismo aos processos flexíveis, tradicionais, “artesanais”. (apud ANTUNES, 1999). O autor Harvey (2005), faz um esboço analítico sobre o significado e os contornos das transformações vividas pelo capitalismo. Para ele, com a crise no início dos anos de 1970 marcou-se um período de transição de um padrão de acumulação capitalista rígido (o fordismo e suas forças produtivas) aos novos modos de acumulação do capital (a “acumulação flexível”). Sobre a acumulação flexível, este autor marca esta 73 fase da produção como um confronto direto com a rigidez do fordismo apoiado na flexibilidade dos processos de trabalho, dos mercados de trabalho, dos produtos e padrões de consumo. Caracteriza-se pelo surgimento de setores de produção inteiramente novos, novas maneiras de fornecimento de serviços financeiro, novos mercados e, sobretudo, taxas altamente intensificadas de inovação comercial, tecnológica e organizacional. A acumulação flexível envolve rápidas mudanças dos padrões do desenvolvimento desigual, tanto entre setores como entre regiões geográficas, criando, por exemplo, um vasto movimento no emprego no chamado “setor de serviços”, bem como conjuntos industriais completamente novos em regiões até então subdesenvolvidas (...) (HARVEY, 1992 apud ANTUNES, 1999, p.21). Outras características sobre a acumulação flexível são elucidadas por Harvey (1992, apud ANTUNES, 1999). Primeiramente estão voltadas ao crescimento, este que se apóia na exploração do trabalho vivo no universo da produção, e, por último, se referem ao capitalismo, que possui uma intrínseca dinâmica tecnológica e organizacional. Apesar das várias formulações e experiências sobre esta tese, foi o toyotismo ou modelo japonês que provocou maior impacto, “tanto pela revolução técnica que operou na indústria japonesa, quanto pela potencialidade de propagação que alguns dos pontos básicos têm demonstrado (...)” (ANTUNES, 1999, p.23). O toyotismo originou-se na fábrica da Toyota no Japão e foi um modo de organização produtiva que em várias partes do capitalismo globalizado mescla ou substitui o fordismo. Podem-se elucidar, segundo Coriat (1992), quatro fases que contribuíram para a ascensão desde modelo: Primeira: a introdução, na indústria automobilística japonesa, da experiência do ramo têxtil, dada especialmente pela necessidade de o trabalhador operar simultaneamente com várias máquinas. Segunda: a necessidade de a empresa responder à crise financeira, aumentando a produção sem aumentar o número de trabalhadores. Terceira: a importação das técnicas de gestão dos supermercados dos EUA, que deram origem ao kaban (...). Quarta fase: a expansão do método kaban para as empresas subcontratadas e fornecedoras (CORIAT, 1992 apud ANTUNES, 1999, p.23). Deste modo, percebe-se que os traços constitutivos do toyotismo se diferem bastante do fordismo. No primeiro, a produção se baseia num processo mais flexível onde permite o trabalhador operar com várias máquinas, tornando o empregado mais polivalente. O trabalho não segue uma dinâmica parcelar, se realiza em equipe, nos quais operam um sistema de máquinas automatizadas. Outro fator importante, é que não se segue com a produção de massa e em série do fordismo. O consumo aparece como determinante do que será produzido, com isto se baseiam em um estoque mínimo, ou seja, produzem somente o necessário seguindo o modelo dos supermercados, de reposição dos produtos somente após os 74 mesmos serem vendidos. O termo associado a este modo de funcionamento é o kaban, que indica a quantidade necessária de peças a serem produzidas pelas unidades anteriores, resultando no acionamento da produção do fim para o início, ou seja, após a venda que se inicia a reposição do estoque. Outra forma de administração da produção usada é o just in time, este garante o melhor aproveitamento do tempo da produção, pois tanto os estoques quanto a matéria-prima necessária no processo produtivo são abastecidos no tempo certo e na quantidade exata. Neste sentido, o toyotismo apresentava um processo produtivo mais flexível, no qual permite um operário trabalhar com várias máquinas e atender o mercado com melhor qualidade e num melhor tempo, sendo que a empresa tem grandes investimentos, no que diz respeito aos treinamentos, sugestões, controle de qualidade dos produtos, entre outros. Uma diferença compreendida entre o indivíduo que trabalha no fordismo e no toyotismo é que neste último, o trabalho parece mais envolvente, participativo e mais livre. Com relação à classe trabalhadora, os autores Coriat (1992) e Gounet (1992) apud Antunes (2007), fazem algumas considerações. Para Gounet (1992) apud Antunes (2007), no toyotismo, houve uma intensificação da exploração do trabalho, já que o trabalhador passa a ser polivalente, trabalhando com diversas máquinas e Coriat (1992) apud Antunes (2007), vê isso como uma desespecialização dos profissionais, transformando-os em multifuncionais. Assim, ocorre também uma flexibilização dos trabalhadores, em que esse sistema estrutura-se a partir de um número mínimo de funcionários, ocorrendo a realização de horas extras, para ampliá-las desta forma. A flexibilização do trabalho fez com que aumentasse o trabalho ilegal. Nesta época, denominavam-se trabalhadores temporários ou subcontratação, empregos vitalícios, terceirização, entre outros. Cabe salientar, que neste modelo é que houve a desregulação dos direitos trabalhistas, havendo também vários movimentos grevistas, contra a racionalização do trabalho e em prol do aumento salarial, momento em que as empresas empreenderam uma repressão contra o movimento dos trabalhadores. Neste sentido, percebem-se as transições ocorridas no mundo do trabalho, para, principalmente, enfrentar a crise econômica e a saturação do mercado, adaptando-se assim, às mudanças tecnológicas com maior flexibilidade e integração no sistema de produção, mas o que se pode considerar é que os trabalhadores permanecem como os principais protagonistas das transformações, sendo que foram duramente atingidos em sua subjetividade e em sua materialidade. No fordismo, o operário sofria com o trabalho repetitivo, massificado, intenso, etc., e, no toyotismo, o mesmo passava pela exploração, a intensificação e a precarização do trabalho, visto que neste último, pregavam pela valorização do trabalho em equipe, da flexibilização e da qualificação do trabalhador. Estes sistemas vigentes em questão focam-se somente na busca desenfreada pelo lucro, em uma sociedade capitalista caracterizada por um mercado competitivo e instável. Em suma, elucidando o tema tratado e demonstrando detalhes (os quais alguns não foram expostos) sobre a transição do fordismo à especialização flexível, Harvey (2005) usa como artifício, um relato de Swyngedouw (1986), que fornece mais especificações sobre as transformações no campo da tecnologia e do processo de trabalho, e, também como o regime de acumulação e suas modalidades de regulamentação se transformam, dando destaques aos processos de produção, ao 75 trabalho, o espaço, o estado e a ideologia. 3. Formas de trabalho atípico Segundo Antunes (1999), o mundo do trabalho passou por várias metamorfoses, nas quais alteraram de alguma forma a classe trabalhadora e os modos de trabalho. Quando ocorreu a reestruturação produtiva do capital, houve uma diminuição da classe operária industrial tradicional, onde verificou algumas mudanças. O mais brutal resultado dessas transformações é a expansão, sem precedentes na era moderna, do desemprego estrutural, que atinge o mundo em escala global. Pode-se dizer, de maneira sintética, que há uma processualidade contraditória que, de um lado, reduz o operariado industrial e fabril; de outro, aumenta o subproletariado, o trabalho precário e o assalariamento no setor de serviços. Incorpora o trabalho feminino e exclui os mais jovens e os mais velhos. Há, portanto, um processo de maior heterogeneização, fragmentação e complexificação da classe trabalhadora. (ANTUNES, 1999, p. 41 e 42) Percebe-se que ocorreu uma heterogeneização, traço marcante das transformações no interior da classe trabalhadora, em que houve a incorporação da mão-de-obra feminina no mundo operário e subentende-se que, ao excluir os jovens e os mais velhos do trabalho, aumentam substantivamente os contingentes dos trabalhos informal e voluntário. Também ocorreu a uma diminuição no número de trabalhadores industriais e um aumento dos assalariados no setor de serviços. A automação é pautada como um dos grandes causadores do desemprego estrutural nas fábricas. Este proletariado vinculado aos ramos mais tradicionais vem dando lugar a formas mais desregulamentadas de trabalho, reduzindo fortemente o conjunto de trabalhadores estáveis que se estruturavam através de empregos formais. Porém, a tendência a ser seguida com estas mudanças é a redução do número de trabalhadores centrais e o emprego de uma força de trabalho que entra e sai rapidamente sem custos. Assim, viram surgir os mais diversos tipos de subempregos. Pode-se dizer que esta idéia esta ligada, a subproletarização do trabalho, (...) presente nas formas de trabalho precário, parcial, temporário, subcontratado, “terceirizado”, vinculados à “economia informal”, entre tantas modalidades existentes. (...) essas diversas categorias de trabalhadores têm em comum a precariedade do emprego e da remuneração; a desregulamentação das condições de trabalho em relação às normas legais vigentes ou acordadas e a conseqüente regressão dos direitos sociais, bem como a ausência de proteção e expressão sindicais, configurando uma tendência à individualização extrema da relação salarial. (ALAIN BIHR, 1991 apud ANTUNES, 1999, p.44). 76 QUADRO 1: CONTRASTE ENTRE O FORDISMO E A ACUMULAÇÃO FLEXÍVEL Produção Fordista Produção just-in-time (baseada em economia de escala) (baseada em economias de escopo) A- O PROCESSO DE PRODUÇÃO Produção em massa de bens homogêneos Produção em pequenos lotes Uniformidade e padronização Produção flexível e em pequenos lotes de uma variedade de tipo de produto Testes de qualidade ex-post (detecção tardia de erros e Controle de qualidade integrado ao processo (detecção produtos defeituosos) imediata de erros) Produtos defeituosos ficam ocultados nos estoques Rejeição imediata de peças com defeito Perda de tempo de produção por causa de longos tempos de Redução do tempo perdido, reduzindo-se “a porosidade do preparados, peças com defeito, pontos de estrangulamento dia de trabalho” nos estoques, etc. Voltada para os recursos Integração vertical e (em alguns casos) horizontal Redução de custos através do controle dos salários Realização de uma única tarefa pelo trabalhador Voltada para a demanda Integração (quase-) vertical, subcontratação Aprendizagem na prática integrada ao planejamento a longo prazo B- TRABALHO Múltiplas tarefas Pagamento pro rata (baseado em critérios da definição do Pagamento pessoal (sistema detalhado de bonificações) emprego) Alto grau de especialização de tarefas Eliminação da demarcação de tarefas Pouco ou nenhum treinamento de trabalho Longo treinamento no trabalho Organização vertical do trabalho Organização mais horizontal do trabalho Nenhuma experiência de aprendizagem Aprendizagem no trabalho Ênfase na redução da responsabilidade do trabalhador Ênfase na co-responsabilidade do trabalhador Nenhuma segurança no trabalho Grande segurança no emprego para trabalhadores centrais (emprego perpétuo). Nenhuma segurança no trabalho e condições de trabalho ruins para trabalhadores temporários C- ESPAÇO Especialização espacial funcional (centralização/descentralização) Agregação e aglomeração espaciais Divisão espacial do trabalho Integração espacial Homogeneização dos mercados regionais de trabalho (mercados Diversificação do mercado de trabalho (segmentação de trabalho espacialmente segmentados) interna do mercado de trabalho) Distribuição em subcontratantes escala mundial de componentes e Proximidade espacial de firmas verticalmente quase integradas D- ESTADO Regulamentação Desregulamentação/re-regulamentação Rigidez Flexibilidade Negociação coletiva Divisão/individualização, negociações locais ou por empresas Socialização do bem-estar social (o Estado do bem-estar social) Privatização das necessidades coletivas e da seguridade social Estabilidade internacional através de acordos multilaterais Desestabilização internacional, crescentes tensões geopolíticas Centralização Descentralização e agudização da competição interregional/interurbana O Estado/cidade “subsidiador” O estado/cidade “empreendedor” Intervenção indireta em mercados através de políticas re renda e Intervenção estatal direta em mercados através de de preços aquisição Políticas regionais nacionais Políticas regionais “territoriais” (na forma de uma terceira parte) Pesquisa e desenvolvimento financiados pelas firmas Pesquisa e desenvolvimento financiados pelo Estado Inovação liderada pela indústria Inovação liderada pelo Estado E- IDEOLOGIA Consumo de massas de bens duráveis: a sociedade de consumo Consumo individualizado: cultura “yuppie” Modernismo Totalidade/reforma estrutural Socialização Pós-modernismo Especificidade/adaptação Individualização; a sociedade do “espetáculo” Fonte: Swyngedouw (1986 apud HARVEY, 2005, p.169) 77 Com estas mutações ocorridas na classe trabalhadora, nasceram outras formas de trabalho marcadas pela desqualificação. Criou-se uma massa de trabalhadores atípicos na forma de trabalhadores temporários que não possuem garantia de emprego; trabalhadores parciais, integrados precariamente as empresas e que não efetuam um ofício a tempo inteiro e de maneira permanente; aos subcontratados, terceirizados, trabalhadores informais, desempregados, etc., ou seja, trabalhadores sem estabilidade. As mulheres também não ficaram isentas das mudanças na estrutura produtiva e no mercado, já que possibilitou a exploração da mão-de-obra em ofícios de tempo parcial em trabalhos domésticos, etc. Conforme Cappelin (2004), “o que se verifica é a presença maciça de mulheres em trabalhos atípicos” (apud FERREIRA, 2007, p. 61 ). Neste sentido, foi empregado o trabalho a domicílio, que de acordo Cattani (1997), podia ser executado por conta própria, no qual é destinado o produto diretamente ao consumidor; ou por contratação, visto que se produzia, recebendo determinações externas, como: prazo, quantidade, remuneração, entre outros. Desta maneira, pode ser chamado também de trabalho industrial a domicílio, sendo que Cattani(1997), assinalou um conjunto de características: (...)sonegação dos benefícios e direitos assegurados pela legislação aos trabalhadores; b) baixa remuneração; c) intensificação do trabalho e extensão da jornada de trabalho para que se possam cumprir os prazos contratados; d) irregularidade dos rendimentos devido à demanda variável de trabalho; e) pequena ou nula capacidade de negocição com os contratantes em decorrência da dispersão e inexistência de contatos entre trabalhadores contratados, tornando difícil ou inviável qualquer forma de organização e atuação coletiva; f) difícil registro fidedigno de sua magnitude devido a seu caráter oculto ou invisível; g) utilizaação predominate de mão-de-obra feminina. (CATTANI, 1997, p.276 e 277) Com isto, o trabalho torna-se cada vez mais marcado pela precariedade e pela desregulamentação. Esse processo precariza todo o modo de vida do trabalhador, fazendo com que se distanciem dos direitos trabalhistas e fiquem à margem do setor formal. Alguns viam a flexibilização do trabalho como alternativa para combater o desemprego, mas ao invés disso, fez com que aumentasse o trabalho ilegal. Esta tendência de flexibilização do trabalho resultou no crescente número de trabalhadores desempregados, compostos pelos operários demitidos e pelos recém-chegados ao mercado de trabalho ou que não encontraram emprego. Consequentemente, esta situação os obriga a ocuparem atividades precárias e de baixa produtividade, já que, segundo Noronha (2003), a urbanização e a industrialização ampliaram também a massa de trabalhadores subempregados e/ou mal incorporados ao mercado de trabalho. Ao mesmo tempo em que elucida uma alteração em quantidade no trabalho industrial, como foi dito anteriormente, percebe-se uma alteração na forma de ser do trabalhador, este se torna mais autônomo, ocorrendo também uma grande desespecialização do mesmo. De acordo com Cappelin (2004), essas formas atípicas de trabalho resultam nos baixos salários, na falta de garantia de direitos de proteção social e, por consequência, na limitação de investimentos em qualificação profissional. 78 4. Considerações Finais O mundo do trabalho tem passado por diversas transformações, no que compete ao melhor modelo adaptado ao tempo e espaço específico. Mostrando que as formas de auferir lucros no regime capitalista são altamente mutáveis. No entanto, nesse jogo repentino de mudanças na gestão e organização da firma, o trabalhador também tende a se tornar mutável. É perceptível que do fordismo à reestruturação produtiva, o trabalhador nunca foi tão necessário, isto é, a figura dele aparece como essencial, na medida em que a forma de produzir se torna mais complexa e flexível. Até mesmo termos que poderia definir a melhor formação escolhida para o trato daqueles que agora ocupam postos flexíveis, tende a se tornarem insuficientes. O trabalhador tem que ser qualificado, polivalente, tem que buscar meios que o possibilitem a entrada e permanência no mundo do trabalho, que continuamente alteram seu modo de vida. Cabe salientar que as consequências dessas mutações desembocam também na subcontratação, terceirização, contratos de trabalho temporários em diversos setores produtivos, pois parte do trabalho passa a ser considerada pouco relevante. Redução do setor industrial comparado ao setor de serviços, aumento do desemprego e informalização, debilidade sindical. REFERÊNCIAS ANTUNES, Ricardo. Adeus ao trabalho? Ensaio sobre as metamorfoses e a centralidade do mundo do trabalho. 6ed. São Paulo: Cortez, 1999. CATTANI, Antonio David(org). Trabalho e Tecnologia: Dicionário Crítico. 4ed. Petrópolis: Vozes, 1997. FERREIRA, Maria da Luz Alves. Trabalho informal e cidadania: heterogeneidade social e relações de gênero. Tese de doutorado apresentada a Universidade Federal de Minas Gerais, 2007. HARVEY, David. Condição Pós-Moderna – Uma Pesquisa sobre as Origens da Mudança Cultural. 14ed. São Paulo: Edições Loyola, 2005. NORONHA, Eduardo G. “Informal”, ilegal, injusto: percepções do mercado de trabalho no Brasil. In RBCS v.18, n.53, 2003. Acesso em: 04 de setembro de 2011. 79 Agenda Social ELETRONIC JOURNAL VOLUME NÚMERO 8 1 ISSN 1981-9862 www.revistaagendasocial.com.br ANÁLISE DA MERITOCRACIA NAS RELAÇÕES DE PRODUÇÃO Meritocracy in production´s relations review. 1. VOIGT, Ana Clara Carvalho Machuca; 2. OLIVEIRA, Simone Mendes de 1. Universidade Estadual de Montes Claros - UNIMONTES. Programa de Pós Graduação em Desenvolvimento Social - PPGDS. E-mail: [email protected]. 2. Universidade Estadual de Montes Claros - UNIMONTES. Programa de Pós Graduação em Desenvolvimento Social - PPGDS. Email: [email protected]. RESUMO 80 ABSTRACT Este artigo visa analisar a estratégia capitalista da meritocracia nas relações de produção como forma de manipulação populacional e como esta estratégia reforça o avanço do poder econômico. Pretendeu-se veri icar se as bases das principais formas de desigualdade são decorrentes das relações de trabalho e se a organização da sociedade salarial foi responsável por grandes transformações sociais. Os impactos de sua in luência sobre o sistema produtivo e sob o comportamento social moderno também serão checados, para ao inal ser capaz de perceber se o trabalho é um fator libertador ou opressor dos indivíduos e se as chamadas novas elites (a nova classe emergente) são produto da meritocracia. A exploração do conceito de trabalho e o retorno da discussão acerca das classes sociais se izeram necessárias, apresentando processos históricos para a compreensão de classe do início da modernidade e para a compreensão contemporânea. O artigo, estruturado em linha argumentativa, expõe resultantes obtidas a partir de pesquisa bibliográ ica. This article aims to analyze the capitalist strategy of meritocracy in production relations as a form of population manipulation and how this strategy reinforces the advancement of economic power. It was intended to verify that the foundations of the main forms of inequality are the result of labor relations and the organization of wage society was responsible for major social transformations. The impacts of its inϔluence on the production system and under the modern social behavior will also be checked to eventually be able to notice if the work is a liberating or oppressive factor of individuals and calls new elites (the new emerging class) are product of meritocracy. The exploration of the concept of work and the return of the discussion about the social classes were necessary presenting historical processes for understanding class early modern and contemporary understanding. The article is structured in argumentative line, resulting exposes obtained from literature. PALAVRAS-CHAVE Meritocracia; Relações Classe Social. KEY-WORDS Meritocracy; Production Relations; Social Class. de Produção; INTRODUÇÃO Em termos iniciais, é necessária a investigação do termo “meritocracia”, eis que é o conceito chave para o vislumbre da análise que se pretende. Sua atuação se reproduz de forma invisível para os atores sociais, e pode-se aduzir que, nas sociedades modernas, os indivíduos estão constantemente sendo compelidos a competir e a qualificarem-se, sob o argumento falacioso de que estão sob o pálio da equidade e da igualdade, desenvolvendo um sentimento de esforço pessoal, para alcançar o que se almeja de forma que conseguirão seus méritos e recompensas por seus próprios esforços. Retoma-se desta forma a articulação da mais valia, demonstrando claramente as manifestações de dominação do mundo num contexto de globalização, onde quem possui mais qualidades terá mais recompensas (DUBET, 2000). O autor francês François Dubet (2000) delineou este pensamento e esse processo em seu livro As desigualdades multiplicadas, mais especificamente no capítulo “As desigualdades Multiplicadas ou as vicissitudes da Igualdade”. Tendo desenvolvido sua investigação com a sociedade francesa, contribuiu com dados e conceitos universais, de modo a aplicarem-se nas sociedades modernas de forma geral. Para este autor, quem inicialmente relatou a modernidade foi Tocqueville, que identificou o próprio sentido da história com o “triunfo obstinado da igualdade” (DUBET, 2000, pág.24) e Rousseau no sentido político de sua teoria do contrato social. Neste contexto, Dubet propôs que: Praticamente, esta interpretação da modernidade significa que as desigualdades justas provêm do achievment, da conquista de status, e não mais da herança e das estruturas sociais desiguais em seu princípio. Isto significa também que, tendencialmente, os indivíduos consideram-se como fundamentalmente iguais e que eles podem legitimamente reivindicar a igualdade de oportunidades e de direitos, reivindicações capazes de reduzir as desigualdades reais. Aliás, todas as teorias do contrato social, tanto político como em Rousseau ou econômico como em Smith, colocam o princípio de uma igualdade inicial à partir da qual será possível discriminar entre as desigualdades justas e as desigualdades injustas. Deste ponto de vista, a igualdade é um valor e as desigualdades injustas... ... É evidente que o cenário de Tocqueville foi amplamente confirmado: as sociedades modernas são igualitárias na medida em que elas estendem o direito à igualdade, especialmente à igualdade de oportunidades, em que, em termos normativos, jurídicos e políticos, elas aceitam as desigualdades desde que elas não impeçam os indivíduos de concorrer nos desafios que concernem à igualdade de oportunidades nas suas dimensões econômicas, políticas, jurídicas e escolares... ...O self made man só triunfa realmente nas sociedades igualitárias, da mesma forma que façanhas esportivas supõem uma perfeita igualdade entre os competidores (DUBET, 2000, pág.25). 81 Miguel G. Arroyo, em Políticas Educacionais e Desigualdades: à procura de novos significados (ARROYO, 2010), empreendeu seus esforços em investigar esta existência da característica meritocrática que persiste nas sociedades modernas: Por aí passa uma das mediações mais destacadas na relação entre educação e superação das desigualdades: capacitar para a empregabilidade, para a disputa menos desigual dos postos de trabalho. “Estude e terás emprego”. “Tire o diploma de ensino fundamental, médio e terás trabalho”. O acesso ao trabalho como redutor das desigualdades. A inserção social pela educação tem como mediação a inserção no trabalho. Quando essa mediação do trabalho entra em crise, as desigualdades se aprofundam e as políticas educativas perdem significado, entram em crise de legitimação social entre os coletivos desiguais... ...A articulação tão mecânica nas políticas de acesso e permanência, ou de currículos por competências, tendo como mediação o acesso ao trabalho, expõe essas políticas e sua relação com a diminuição das desigualdades ao enfraquecimento a até ao fracasso, sempre que o trabalho entra em crise (ARROYO, 2010, pág.1398). 82 Os indivíduos estão condicionados a uma incessante busca por qualificação em razão de se enquadrarem à competitividade do mercado de trabalho que se apresenta. A eles é incutida a idéia de “qualificar” na expectativa de fazerem frente aos demais vistos como concorrentes. Ainda explorando a questão dos indivíduos nunca estarem prontos para o mercado de trabalho, Pascale Molinari (2011) abordou este pensamento capitalista sobre um viés sociológico - psicológico e desenvolveu seu próprio conceito, o qual chamou de “Homem Superformático”. Segundo Molinari (2011), os investimentos, desde o ano de 1980 (Séc.XX), foram acompanhados de uma nova prioridade nos seios das organizações, que é a busca da super performance. Segundo ela, a lógica capitalista é a de que o indivíduo não deve simplesmente ser bom no que faz, mas estar em permanente motivação. A cultura da excelência é a ordem empresarial, e nela ao homem não é demandado fazer somente seu trabalho, mas fazer mais, melhor, e com um sorriso no rosto. Ainda segundo a autora, essa máxima se instrumentaliza no mercado de trabalho através da fixação dos objetivos, metas, na majoração automática dos resultados anteriores etc, denunciando a grande causa de problemas de saúde, stress e suicídios que acometem trabalhadores. A vulnerabilidade do homem num contexto meritocrático, perpassa a integridade emocional, a intelectual, atingindo mesmo o bem estar físico. Na obra As metamorfoses da questão social: uma crônica do salário, no capítulo intitulado “A nova questão social”, o autor social Robert Castel explora o sentido da qualificação sob a ótica democrática, e traz à discussão, o ataque ao subdesenvolvimento cultural através da eliminação das baixas qualificações como pensamento legitimado. Mas faz um alerta sobre uma situação na qual as pessoas podem estar inseridas sem se dar conta; a de que a simples qualificação, a elevação do nível de escolaridade, não significa emprego garantido diante das constantes transformações que a relação formação-emprego vem sofrendo, sejam elas temporais ou de contexto. Castel alerta para um problema iminente e que pode estar no campo da invisibilidade, e trata-se da possibilidade de não haver emprego para todos os qualificados, em razão da oferta de mão-de-obra e da busca incessante da qualificação como imperativo democrático (CASTEL, 1998, Cáp.VIII). É possível que a meritocracia impulsione o mercado de trabalho, por ser este beneficiado com a disputa criada nas sociedades salariais. Castel aponta que pessoas com alto nível de qualificação estão trabalhando em subempregos dada a grande oferta de qualificados, e pessoas sem qualificação, estão completamente vulneráveis, afinal não tem acesso a recursos que lhes permitam concorrer. Ainda segundo Castel, a inacessibilidade ao trabalho dos indivíduos excluídos – população inativa - desencadeia uma série de outros problemas, como por exemplo, a dependência do Estado para que se tenha acesso aos recursos básicos além da instabilidade da seguridade social. Castel propõe aqui uma redistribuição do trabalho, com redução da carga horária para que mais pessoas possam ter acesso aos empregos, e conseqüentemente, aos bens primários (CASTEL, 1998, Cáp.VIII). A meritocracia está naturalizada nas relações de produção, sendo prática corriqueira na sociedade salarial, e perpetrada pelos próprios atores, eis que o poder manipulatório do capitalismo conseguiu transpor para os próprios indivíduos a obrigação de concorrerem entre si, diminuindo desta forma, até mesmo custos com os outrora conhecidos “olheiros” da era industrial, que controlavam a cadeia de produção e os funcionários das fábricas. Diante destas colocações iniciais, cabe questionar: o trabalho seria, portanto, um fator libertador ou opressor dos indivíduos? Ou ainda: as chamadas novas elites (a nova classe emergente) são produto da meritocracia? NOÇÕES DE TRABALHO: Autores clássicos empreenderam esforços no sentido de analisar, compreender e conceituar “trabalho”, dadas as peculiaridades das relações que o envolvem. Seja relacionando-o com o sistema capitalista, com as sociedades modernas, ou com as formas de produção e divisão do trabalho do início dos tempos, certo é que o trabalho faz parte da história do homem, e envolve pragmática e ideologicamente os campos econômicos, políticos sociais, culturais, e adentra até mesmo nas mais íntimas relações humanas, como as familiares. Para Émile Durkheim, a divisão social do trabalho era pautada no conceito de solidariedade mecânica e orgânica. A mecânica era predominante nas sociedades pré-capitalistas, onde os indivíduos permaneciam independentes e autônomos em relação à divisão do trabalho social, partilhando de uma consciência coletiva comum. Já na orgânica, em sociedades capitalistas, o individuo é socializado porque embora tenha uma esfera própria de ação, depende dos demais, e, por conseguinte, da sociedade resultante dessa união. Durkheim percebe a solidariedade social como o processo de aceleração da divisão social do trabalho, sendo este processo um novo mecanismo de integração social, eis que os indivíduos se tornam interdependentes e suas funções são vitais para o funcionamento do sistema social (DURKHEIM, 2004). Karl Marx concebe a idéia de que a sociedade está dividida em classes, mas mesmo com suas próprias leis e regras, estão inseridos em um único sistema que é o modo de produção capitalista. Os homens se organizam socialmente e estabelecem 83 relações sociais de produção. Assim a divisão do trabalho inclui a divisão de tarefas entre os indivíduos e ainda nas relações de propriedade, ou seja, divisão entre os meios de produção e a força de trabalho. A divisão do trabalho surge com o excedente da produção e a apropriação privada das condições de produção. Portanto, a divisão do trabalho para Marx existe desde sociedades tradicionais, onde os homens constroem a si mesmos na persecução dos seus meios de vida (MARX, 2004). Neste sentido: ...a produção da vida, tanto a própria através do trabalho como a alheia através da procriação, surge-nos agora como uma relação dupla: por um lado, como uma relação natural, e, por outro, como uma relação social no sentido de ação conjugada de vários indivíduos, não importa em que condições, de que maneira e com que objetivo. Segue-se que um determinado modo de produção ou estádio de desenvolvimento industrial se encontram permanentemente ligados a um modo de cooperação ou a um estado social determinado, e que esse modo de cooperação é ele mesmo uma força produtiva. (MARX; ENGELS, 1976, p.35). Outro autor clássico que desenvolveu importante teoria acerca do trabalho foi Max Weber. Para Weber, a religião seria responsável pelo amadurecimento do capitalismo no Ocidente, pois teria a função de solidificar e enaltecer o trabalho, dimensionando-o como um ato vocacional. Ulteriores elementos importantes na formatação do capitalismo foram as condições econômicas, a organização racional do trabalho e por fim a cultura. Em sua obra A Ética protestante e o espírito do capitalismo, Max Weber observa que o trabalho adquire uma nova dimensão com Lutero e Calvino, que antes visto como um castigo passa a ser uma vocação, um chamado divino (WEBER, 1999). A QUESTÃO DAS CLASSES SOCIAIS: Neste ponto é crucial a retomada da discussão acerca das “classes sociais”, para que se tenha uma idéia da importância do trabalho no processo histórico das desigualdades. As primeiras tentativas sociológicas de tradução de sociedades democráticas e concomitantemente capitalistas se deram na modernidade. O pioneiro dos estudiosos, segundo Dubet, foi Tocqueville que cuidou de verificar o sentido da igualdade como extensão de um princípio, muito além da igualdade empírica, para concluir que na modernidade os indivíduos são considerados iguais e suas desigualdades reais deixam de embasarem-se em fatores tais quais: tradição ou nascimento (DUBET, 2000). Ou seja, perde-se o sentido da desigualdade decorrente de castas e ordens e transferese para o indivíduo a obrigação de se realizar sozinho: “as classes impõem-se como um critério de desigualdade produzido pela própria ação dos indivíduos no mercado. As desigualdades jurídicas entre os grupos são substituídas por desigualdades referentes à atividade e ao sucesso dos atores” (DUBET, 2000, pág.24). Neste período, a discussão acerca de “igualdade” foi preponderante, posto que até o momento, o discurso para fomentar o avanço capitalista e para incentivar cada 84 vez mais a competição entre os indivíduos, continua se baseando na falsa idéia de igualdade de oportunidades. Para Dubet (2000) existe ainda uma multiplicidade de funções, as ações vão se particularizando e a partir daí surge a necessidade de estratificar. Assim, a origem dos conflitos são os interesses divergentes, e esses conflitos estão associados às mudanças. Karl Marx, segundo Dubet (2000), também empreendeu esforços na tentativa de explicar as desigualdades de classes nas sociedades modernas, concluindo que tais desigualdades não se tratavam de herança, mas verdadeiramente de elemento estrutural e fundamental das sociedades capitalistas. Aqui o relacional entre trabalho e capital ganha contornos mais visíveis, eis que na concepção de Marx, o capitalismo se baseia de uma extração máxima do trabalho e, à partir daí, surgiriam relações tais quais a oposição da força de trabalho à exploração, o investimento de parte das riquezas produzidas e a oposição dos donos de investimentos. Enfim, a oposição das classes sociais. Neste momento histórico, as atenções estavam bastante voltadas para a compreensão da situação de classes e as conseqüentes desigualdades decorrentes destas, pois explicavam, como comenta Dubet, “a maioria das condutas sociais e culturais” (DUBET, 2000, pág.26). Dubet também bebe da fonte de Castel (1995) para afirmar uma das grandes imputações a que se deve atribuir ao trabalho: é o gerador das principais desigualdades existentes. Neste sentido: Em outras palavras, o encontro da igualdade democrática e das desigualdades capitalistas gera a formação do Estado – providência e de um sistema de proteções e de direitos sociais. Sendo as principais desigualdades provenientes do trabalho, a sociedade salarial organiza a coesão e a integração sociais à partir do trabalho que opõe e une ao mesmo tempo os indivíduos. (DUBET, 2000, pág.28). E diante da meritocracia subjacente, associada às desigualdades observadas nas relações de trabalho, outro não poderia ser o resultado: os indivíduos estão divididos entre três mundos – o dos competitivos, o dos protegidos e o dos fatalmente excluídos. Atualmente, alguns autores contemporâneos têm retomado a discussão acerca das classes sociais, tendo vista o imperativo da formação de um novo coletivo no meio social: a chamada “nova classe social”. Para Castel (2006), o termo “classe social” quando refutado, é situação de despolitização. Classe social, para este autor, pode ser entendida como uma categoria mais ampla, enquanto classe trabalhadora inclui lógicas corporativas e conflitos corporativos, visto que no mundo contemporâneo há uma pulverização e fragmentação das atividades profissionais, ocasionando diversidade de categorias profissionais. De acordo com Castel (2006), a partir do momento que se negligencia a questão da classe, naturaliza-se as desigualdades. Em sua visão, classe é perspectiva de mundo, apresentando dicotomia entre desigualdade econômica material e desigualdade moral. Assim se faz necessário, redefinir a questão de classe 85 no processo de mundialização, uma vez que há uma certa ocultação da exclusão sob a ótica de classes sociais, quando se permite utilizar a expressão “pertencer ao coletivo”. Jessé Souza, em sua recente pesquisa “Os Batalhadores Brasileiros: nova classe média ou nova classe trabalhadora?”, publicada no ano de 2010 e após empreender esforços na tentativa de compreender aqueles a quem denominou de “ralé brasileira”, procurou penetrar no drama humano, para compreender de que forma o neoliberalismo efetivamente modificou as vivências dos indivíduos e como a partir daí surgiu esta nova classe de emergentes: quem são, como se portam, em quais postos de trabalho estão (SOUZA, 2010, pág.19-57). Jessé Souza constatou que, no Brasil, esta nova classe média representa pelo menos 30 milhões de pessoas que tem acesso ao mercado de consumo e que são destacados pelos dominantes como sendo aqueles que ajudaram a mudar a economia e a sociedade brasileira recentes. São ainda apontados como os responsáveis pela transformação do Brasil de país subdesenvolvido para país moderno e de primeiro mundo, e tudo através de esforço próprio (SOUZA, 2010, pág.19-57). Todo este discurso, entretanto, nada mais é do que uma violência simbólica. Tratam-se, conforme Jessé, de meias verdades que se referem a mudanças reais distorcidas em interpretação. Mais uma vez, a “nova classe média” e sua ideologia capitalista estão naturalizadas na sociedade, de forma a perpetrar a reprodução do controle por parte do poder dominante. É possível extrair ainda do pensamento crítico de Jessé Souza, uma censura ao Marxista enrijecido e ao Liberalismo econômico dominante no que tange o enfrentamento das classes sociais: ambas as teorias não enxergam as mudanças do mundo novo, ou seja, não condizem com a realidade vivenciada associando classes apenas ao poder econômico. Enquanto um vincula as classes ao lugar ocupado na produção exclusivamente, o outro apenas diz que existem as classes, mas nega sua existência quando vincula classe à renda, numa contradição em si mesma (SOUZA, 2010, pág.19-57). As classes sociais para o liberalismo estão intimamente relacionadas ao poder de consumo, que decorre da capacidade financeira dos indivíduos. A crítica está no fato destas linhas de pensamento analisarem superficialmente as desigualdades, em detrimento da apreciação das questões reais, acobertando problemas não econômicos, como os de ordem cultural, moral e emocional. Afinal, a classe de trabalhadores brasileiros que se verifica atualmente, têm vida, emoções, anseios e desejos, não se tratando de indivíduos enrijecidos que se resumem à mão de obra trabalhadora para o neoliberalismo. CONSTATAÇÕES: Uma das transformações diretamente ligadas às inovações do mercado de trabalho no contexto neoliberalista e que demonstram a meritocracia no sentido da qualificação para atender a este mercado, está no surgimento de carreiras que requerem capacitação rápida. Alguns dados são apontados por Armando Alcántara e Mônica Aparecida da Rocha Silva in “Semejanzas y Diferencias em lãs Políticas de Educación Superior em La América Latina: Cambios Recientes em Brasil, Chile y México” (ALCÁNTARA; SILVA, 2006). Haja vista a reforma universitária brasileira que 86 ocorreu no Governo FHC, a diversificação institucional acarretou a criação de carreiras ligadas à tecnologia com fins de atender o mercado de trabalho, com duração curta de dois a três anos. Os autores apontam, segundo dados emitidos no ano de 2004 e colhidos do Instituto Nacional de Estudos e Pesquisas (INEP), que as carreiras ligadas à tecnologia passaram de 364 no ano de 2000 para 636 no ano de 2002, o que representa um aumento de 74,7 por cento. Ainda neste contexto, tomando o Brasil como referência, pesquisadores do Instituto de Pesquisa Econômica Aplicada (IPEA) evidenciaram a ocorrência de uma diminuição dos índices de população com nível educacional baixo. A baixa qualificação no estudo foi considerada até a quarta série completa, a semiqualificação considerada da quinta série incompleta até o segundo grau completo e alta qualificação considerada o ensino superior incompleto ou completo. Para tanto, Bahia et al. (2011) verificaram a “composição educacional dos trabalhadores do setor formal entre os anos de 19962005” e chegaram a conclusão de que a circunstância provia de três fatores, senão a melhoria do sistema educacional, com aumento de cobertura e redução das taxes de repetência; o fato dos últimos 20 anos perfazerem o pico da janela de oportunidade demográfica educacional e finalmente o aumento da exigência do mercado de trabalho na qualificação formal. No último caso, os autores afirmam que a situação exclui trabalhadores do setor formal, que são deslocados para a informalidade, sem garantias e proteções legislativas e fora da População Economicamente Ativa (PEA). Júnior e Ribeiro (2011), ao analisarem estatisticamente a criação e a destruição de emprego para o período compreendido entre 1998 e 2005, concluíram que houve um aumento significativo do emprego qualificado em relação ao índice de emprego total. Contudo, tal situação não teria sido ocasionada, segundo os autores, pelo fechamento de locais/estabelecimentos onde os empregados possuíam grau de qualificação inferior e abertura de novos locais/estabelecimentos com empregados mais qualificados, mas sim com a substituição, nos mesmos locais/estabelecimentos, dos empregados menos qualificados por outros mais qualificados. Os autores perceberam que as empresas empregadoras preferiram transformações incisivas em seu quadro de trabalhadores em detrimento de alterações estruturais de seus estabelecimentos. CONCLUSÕES FINAIS As situações sociais, culturais e políticas inovadoras experimentadas no período de transição para a modernidade são infindáveis. E com as mudanças, novas formas de desigualdades foram verificadas, demonstrando uma capacidade enorme de mutabilidade e adaptação. Dentre as muitas desigualdades existentes, uma a que podemos destacar, é a existência da meritocracia nas relações de produção, inobstante também esteja presente na educação, na política, e até nas casas dos indivíduos, sendo cultivadas de pai para filho sob a penumbra que paira do discurso do poder dominante da igualdade de oportunidades para todos. Aos filhos da modernidade é ensinado que o trabalho duro, o esforço individual e a qualificação são as únicas saídas para se atingir o bem estar: diga-se maior poder aquisitivo na utopia de um dia se tornarem burguesia. O sentido da “igualdade” iluminista, enquanto princípio, fora completamente deturpado, 87 88 não se respeitando as capacidades e potencialidade individuais de cada um, mas enaltecendo o “esforço” particular de cada um, que nunca se esgota. A vida boa pretendida pelos indivíduos, na atual conjuntura, e suas realizações, confunde-se com desejos materiais, sob o argumento capitalista da acumulação de bens pela simples acumulação. O trabalho, na tangente da mão de obra, à medida que proporciona ao indivíduo acesso a recursos primários tais quais: alimentação, moradia, educação de melhor qualidade, saúde, previdência social, aos prazeres individuais, e a verdadeira vida boa – aquela que permite ao indivíduo exercer sua autonomia, noutro giro proporciona acesso a bens e produtos gerados pelo capitalismo e pela globalização, numa cadeia cíclica infindável de renovação de oferta, principalmente de ordem tecnológica. Ou seja, os indivíduos estão se prendendo e se tornando cada vez mais reféns do consumo e das facilidades mascaradas que o capitalismo proporciona. O indivíduo que pertence à sociedade salarial está “integrado”, mas o que não pertence à sociedade salarial fica excluído. Mas integrado a quê? Provavelmente à massa que detém poder de consumo, mas nenhuma consciência de sua real condição e de que tem se tornado vítima em face de uma nova estratificação social que se apresenta. As modalidades de trabalho, a mão de obra, têm se voltado para atender o mercado, demandando a criação de novos setores. Com isso, os indivíduos nunca estão “prontos” para a concorrência do mercado, sempre alternando de emprego, e empregos cada vez mais instáveis. A própria existência da nova classe social ou da nova classe trabalhadora no Brasil, como bem observou Jessé Souza (2010), é a prova concreta de que há uma nova formação de mão de obra, acima da ralé brasileira, mas que somente se distancia diante do fato de terem acesso a bens de consumo. Esta “nova classe social” que se formou, é quem verdadeiramente sustenta o poder dominante, posto que é a força de trabalho atual e que está à mercê das “maravilhas” do capitalismo. São os empregados indiretos, ou com contratos de trabalho por tempo determinado, que empreendem esforços para complementar a renda e geram pouquíssimas despesas para os empregadores. Como conseqüência disso, há uma enorme demanda de pessoas qualificadas para atuarem nos mercados informais, e as pessoas desqualificadas ficam cada vez mais vulneráveis e dependentes do Estado, tido como benevolente e salvador. Estes novos emergentes representam a nova elite social, e possivelmente, são produto da meritocracia, uma vez que os discursos que impulsionam estes indivíduos é o de alcançar status e recursos econômicos como forma de realização pessoal e que o meio para que isso ocorra é através do desempenho pessoal. Os indivíduos, segundo Castel (1998), tem se tornado cada vez mais individualistas, perdendo a noção de solidariedade e compreensão. Competem entre si ao contrário de se ajudarem mutuamente, o que também contribui deveras para a invisibilidade das desigualdades sociais. Outras conseqüências importantes também são verificadas, como a incidência disso sobre a previdência social. Com o mercado informal, um menor número de pessoas é arrecadador, e, portanto, surgem os grupos privilegiados dentro de um mesmo coletivo que é feito desigual, como é o caso da licença maternidade para mulheres gestantes. Ainda, se um menor número de pessoas arrecada, um menor número de pessoas é assistido, não se fazendo valer para todos. Assim, é possível concluir que, persiste uma dicotomia à partir da análise feita: a de que, o trabalho, ao mesmo passo em que pode proporcionar ao indivíduo autonomia e acesso a recursos importantes para seu bem estar, também aprisiona os indivíduos que pretendem através dele, ter acesso a bens de consumo, produtos diretos do capitalismo; sempre impulsionados pela mais valia e pela meritocracia excludente, de não terem a consciência de que não têm liberdade, não têm livre arbítrio e de que sua força de trabalho, verdadeiramente, mantêm o poder dominante e a roda do capitalismo girando. REFERENCIAL TEÓRICO ALCÁNTARA, A.; SILVA, M. A. R. (2006). Semejanzas y Diferencias en las Políticas de Educación Superior en América Latina: Cambios recientes en Argentina, Brasil, Chile y México” in “Reforma Universitária: dimensões e perspectivas. Campinas, SP: Editora Alínea, (Coleção políticas universitárias). ARROYO, M. G. (2010). 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São Paulo: Pioneira, p.75. 90 91 Agenda Social ELETRONIC JOURNAL VOLUME NÚMERO 8 1 ISSN 1981-9862 www.revistaagendasocial.com.br ECONOMIA SOLIDÁRIA E EMPREENDEDORISMO SOCIAL NO CERRADO NORTE MINEIRO Solidarity economy and social entrepreneurship in the northen Minas Gerais Cerrado 1. RODRIGUES, Luciene. 2. GONÇALVES, Maria Elizete. 3. BALSA, Casimiro. 1. PPGDS/UNIMONTES / CesNova-UNL, E-mail: [email protected] 2. PPGDS/ UNIMONTES, E-mail: Maria.Gonç[email protected] 3. Universidade Nova de Lisboa/CesNova, E-mail.: [email protected] RESUMO 92 ABSTRACT O conceito de Empreendedorismo Social surge diante de um contexto de redução dos investimentos públicos na área social e da expansão das estruturas econômicas pertencentes à economia social e solidária. Diante da crescente di iculdade de geração de renda a partir dos modelos tradicionais de crescimento da economia, têm surgido redes de solidariedade perceptíveis no campo da economia social e também o desenvolvimento do empreendedorismo social. Em situações de exclusão, di iculdades e provação, muitas pessoas decidem unir-se aos seus pares para juntas formarem estratégias de manutenção da vida, do trabalho e emprego. O que se observa é o desenvolvimento de diversas atividades econômicas que desconectadas do grande capital passam a ser exercidas por trabalhadores autônomos, famílias, associações e cooperativas de produção. Nesse contexto, o desenvolvimento da economia solidária e do empreendedorismo social, a partir do capital social local, da formação de grupos de produção e da participação da população contribuem para ampliar o “espaço público” de indivíduos/famílias/grupos em situação de vulnerabilidade socioeconômica. Uma das motivações para a existência de redes de solidariedade dos setores populares na economia é a exclusão do emprego, dos processos de desenvolvimento, da distribuição de renda e do sistema econômico o icial. O processo de incorporação da solidariedade na economia é multifacetado e, portanto, várias são as situações e motivos pelos quais diversas pessoas têm acesso ou se aproximam para procurar alguma participação na economia social. Nesse sentido, a proposta do estudo é fazer uma análise das experiências econômicas de modo a observar seus aspectos econômicos, organizativos e sociais que apontam para outras formas de gerir o desenvolvimento social e territorial. Para desenvolver o estudo, elegemos algumas iniciativas de geração de trabalho e renda que se desenvolvem no âmbito das redes expressas na economia popular composta por famílias que criam diversas estratégias econômicas coletivas para manutenção da vida material e simbólica no Cerrado Norte Mineiro - Brasil. The concept of Social Entrepreneurship emerges in a context of reduction of public investment in the social area and the expansion of economic structures that belong to the social and solidarity economy. Given the increasing difϔiculty of generating income from the traditional models of economy growth, noticeable solidarity networks have emerged in the ϔield of social economy and also the development of social entrepreneurship. In exclusion, difϔiculty and trial situations, many people decide to join their peers together to form strategies for sustaining life, work and employment. What is observed is the development of many economic activities that when disconnected from big business, start to be carried out by self-employed individuals, families, associations and cooperatives of production. In this context, the development of solidary economy and social entrepreneurship, with the local social local capital, the formation of production groups and people’s participation contribute to expand the “public space” of individuals/ families/ groups in situations of socioeconomic vulnerability. One of the motivations for the existence of solidarity networks of the popular sectors in the economy is the exclusion of employment, processes of development, the distribution of income and the ofϔicial economic system. The process of incorporating the solidarity in economy is diverse and therefore, there are several situations and reasons why many people have access or get close to search for some involvement in social economy. In that way, the purpose of this study is to analyze the economic experiences in order to observe its economic, organizational and social aspects that point to other ways of managing social and territorial development. To develop the study, we chose some initiatives of employment and income creation that develop within the networks expressed in popular economy composed by families that create several collective economic strategies to maintain the symbolic and material life in Cerrado Norte Mineiro - Brazil. PALAVRAS-CHAVE Palavras chave: Economia Social, Economia Solidária, Empreendedorismo Social, Brasil, Norte de Minas. KEY-WORDS Social Economy, Solidarity Economy, Social Entrepreneurship, Brazil, North of Minas Gerais. Introdução Empreender significa mudar uma realidade em que se está inserido. O empreendedorismo social é uma forma de buscar resolver os problemas sociais, com imaginação e criatividade. Constitui uma inovação social, um meio de avançar nas causas sociais, de ampliar o espaço público por meio da autogestão. É um conceito que permite apreender o setor da economia social e solidária, das iniciativas coletivas de geração de renda e trabalho sob o enfoque empreendedor. É um conceito que ganha relevância sob o espectro da crise econômica e do desemprego, da contração do Estado Social, e da difusão da cultura empreendedora. Trata-se da criatividade social, da mobilização de sinergias coletivas à luz de valores como solidariedade, entreajuda, autogestão. O empreendedorismo social designa uma gama ampla de iniciativas coletivas, socialmente inovadoras da economia social e solidária. Segundo HUYBRECHTS & NICHOLLS (2012) para os atores da sociedade civil, o empreendedorismo social pode representar um fator de mudança social sistêmica, um espaço para parcerias híbridas, ou um modelo de transformação política e de empoderamento. Para os autores, a despeito da diversidade de definições de empreendedorismo social, elas apresenta ao menos três pontos comuns com relação ao caráter social, à inovação organizacional e quanto à orientação para o mercado. O primeiro aspecto, o foco central sobre os resultados sociais ou ambientais tem primazia sobre o retorno financeiro; o segundo, a definição de inovação, que tem haver com novos modelos e processos organizacionais, novos produtos e serviços, ou por intermédio de novas formas de pensar/ enfrentar os desafios sociais. Em terceiro lugar, a variedade de formas que a orientação para o mercado pode assumir, em contextos marcados por alianças e parcerias, com a ideia de alcançar resultados multidimensionais. No intuido de melhor delimitar as fronteiras do que é empreendedorismo social, com relação a outros conceitos correlatos, HUYBRECHTS & NICHOLLS (2012) procuram especificar o conceito pela sua negação, pelo que não é empreendedorismo social. Para eles, o empreendedorismo social não é um setor discreto, circunspecto a uma forma. Ao contrapor empreendedorismo social ao conceito de economia social, percebe-se que este é mais amplo e, ao mesmo tempo, mais restrito que o primeiro. De um lado, é mais amplo porque inclui organizações não necessariamente empreendedoras e que não necessariamente dependem do recurso mercado. De outro lado, economia social é um conceito mais restrito do que empreendedorismo social porque inclui apenas empreendimentos com formas jurídicas específicas: cooperativas, mutualidades, fundações e associações. Os níveis de análise também são diferentes, porque Economia social é um setor e o empreendedorismo é uma capacidade, é um conjunto híbrido de organização e processos, que pode ter lugar em diferentes espaços institucionais e em diferentes setores. Desse modo, empreendedorismo social não é um setor, nem tampouco sinônimo de negócio social; ou uma nova forma de responsabilidade social das empresas, ou um modelo único de inovação social. O empreendedorismo social é uma inovação de base coletiva, associativista voltada para o enfrentamento de problemas sociais como desemprego, exclusão social, questões ambientais, entre outras. Diante da crescente dificuldade de geração de renda a partir dos modelos 93 tradicionais de crescimento da economia, têm surgido redes de solidariedade perceptíveis no campo da Economia Solidária e do empreendedorismo social. Em situações de exclusão, dificuldades e provação, muitas pessoas decidem unir-se aos seus pares para juntas formarem estratégias de manutenção da vida, do trabalho e emprego. O que se observa é o desenvolvimento de diversas atividades econômicas que desconectadas do grande capital passam a ser exercidas por trabalhadores autônomos, famílias, associações e cooperativas de produção. Nesse contexto, o desenvolvimento da economia solidária e do empreendedorismo social, a partir do capital social local, da formação de grupos de produção e da participação da população contribuem para ampliar o “espaço público” de indivíduos/famílias/grupos em situação de vulnerabilidade socioeconômica. Uma das motivações para a existência de redes de solidariedade dos setores populares na economia é a exclusão do emprego, dos processos de desenvolvimento, da distribuição de renda e do sistema econômico oficial. O processo de incorporação da solidariedade na economia é multifacetado e, portanto, várias são as situações e motivos pelos quais diversas pessoas têm acesso ou se aproximam para procurar alguma participação na Economia Solidária. Nesse sentido, a proposta do estudo é fazer uma análise das experiências econômicas de modo a observar seus aspectos econômicos, organizativos e sociais que apontam para outras formas de gerir o desenvolvimento social e territorial. Para desenvolver o estudo, elegemos algumas iniciativas de geração de trabalho e renda que se desenvolvem no âmbito das redes expressas na economia popular solidária composta por famílias que criam diversas estratégias econômicas coletivas para manutenção da vida material e simbólica no Cerrado Norte Mineiro Brasil. No território de análise – o Cerrado norte mineiro, elegemos especialmente famílias e grupos da cidade de Montes Claros, embora alguns estejam em municípios vizinhos. Cerrado é o nome regional dado às savanas brasileiras, que abrange cerca de 23% do território brasileiro. É a segunda maior formação vegetal da América do Sul, depois do conjunto florestal amazônico. Além das particularidades do ecossistema, o Cerrado tem em uma sociedade e cultura próprias cujas economias e reprodução social dos grupos tradicionais encontram-se ameaçadas com o crescimento das grandes lavouras comerciais e de outras atividades do grande capital. As promessas da sociedade salarial, avivadas aqui e ali por conjunturas desenvolvimentistas, não se cumpriram na medida das expectativas que ela criou, sejam porque uma parte importante das populações que dela poderiam potencialmente beneficiar, são excedentárias em relação às suas necessidades ou não têm as competências ajustadas aos requisitos da produção. As cidades, sobretudo aquelas que, como Montes Claros, devem o seu crescimento exponencial aos movimentos de desagregação do mundo rural / crescimento urbano, concentram e têm de gerir estas populações e constituem territórios privilegiados para estudar os problemas socioeconômicos que as afetam. Os entrevistados foram escolhidos aleatoriamente quando no desenvolvimento das suas atividades econômicas e em ocasiões de participações em feiras de artesanato. No cômputo dos casos significativos (56 entre os 62 questionários aplicados), propôs-se com as informações fornecidas pelos sujeitos pesquisados fazer um analise estrutural do contexto social dos pesquisados. Mais do que uma amostra representativa do universo, esta se constituiu em etapa privilegiada para 94 explorar o objeto, levantar questões e propor orientações metodológicas. A intenção residiu em observar as características ou performance dos indivíduos/famílias ou grupos nos seus espaços que aqui denominamos de espaços de atributos dos sujeitos. Os dados fornecidos possibilitaram compreender alguns dos fatores, motivos ou razões das quais partem as ações dos sujeitos. 1. Construção conceitual empírica No plano empírico, a nossa pesquisa é pautada por uma abordagem exploratória e compreensiva. A orientação exploratória justifica-se pela extensão do território visado – a região do cerrado norte mineiro, que apontamos como quadro sócio histórico, complexo geopolítico e meio sócio ecológico de referência do nosso estudo. Os determinantes estruturais que resultam deste enquadramento e que serão considerados sempre que possível, não podem levar a ocultar a grande diversidade das situações que aí podem ser vivenciadas nas áreas temáticas que nos interessam. Mais do que procurar, neste momento, a representatividade de posições no interior do território de referência, interessa-nos a sua significatividade, isto é, as formas (no sentido simmeliano) em torno das quais os atores tecem o seu labor quotidiano com vista à geração de renda. A maior parte dos Empreendimentos Solidários encontra-se na informalidade. O GRAF. 1, mostra que ¾ dos empreendimentos estão na informalidade contrapondo apenas1/4 que se encontram em situação formal. Gráϐico 1: Situação dos Empreendimentos Gráϐico 2: Tipos de Empreendimentos Solidários1 Solidários quanto à Formalização1 A solidariedade nos Empreendimentos nem sempre é comunitária, constituída por um grupo de pessoas que vivem próximas e se juntam para desenvolver uma dada atividade. Em muitos casos, a atividade é desenvolvida no âmbito das famílias, conforme mostram os dados do GRAF. 2, em que 72% das atividades dos empreendimentos são comunitárias e 28% familiar. O GRAF. 3 se refere à composição dos grupos com relação ao gênero e geração. Os dados mostram que 54% dos Empreendimentos são compostos por mulheres; 37% são mistos, isto é, contam com mulheres e homens; 7% são compostos apenas por homens; e 2% são compostos por pessoas da terceira idade. 1. Fonte: dados da pesquisa de Campo. 95 Gráfico 3: Composição dos Empreendimentos com relação a gênero e geração Os Empreendimentos Solidários nem sempre contam com um local próprio de funcionamento. Há uma diversidade de situações solidárias inclusive na própria localização. Alguns funcionam em locais cedidos pelas Associações de Moradores, outros em casas dos associados, em galpões de Igrejas e Organizações, em locais próprios ou alugados, entre outras situações. Dos grupos pesquisados, verificouse que 51% dos empreendimentos se localizam na própria casa dos componentes do grupo; 9% dos empreendimentos são ambulantes; 11% possuem imóvel próprio; 4% dos empreendimentos se situam apenas em feiras; 8% se localizam em imóvel alugado; e, 17% possuem outros tipos de localização dos seus empreendimentos. No que refere à corresponsabilidade e apoio do Estado e da Sociedade Civil para com as iniciativas de Economia Solidária, verifica-se que a maioria dos Empreendimentos Pesquisados não recebem apoios. Segundo seus informantes, 74% não recebem nenhum tipo de ajuda governamental. Apenas 26% informaram receber algum tipo ajuda do governo. GRAF. 4. Segundo os entrevistados, o apoio da Sociedade Civil ainda é pequeno, embora um pouco maior que o do Estado. Os dados do GRAF. 5 mostram que 30% dos informantes dos Empreendimentos afirmaram receber algum tipo de ajuda da sociedade civil; 70% não recebem nenhum tipo de ajuda da sociedade civil. Com relação às Redes e parcerias estabelecidas entre os pares de Empreendimentos Solidários, nota-se que é mais elevada: cerca de 73% dos Empreendimentos tem algum tipo de parceria com outros empreendimentos; 27% não possuem nenhum tipo de parceria com outros empreendimentos, como mostra o GRAF. 6. Inquiridos sobre as principais dificuldades enfrentadas pelos Empreendimentos, a maioria afirma ser de natureza econômica, relacionadas com recursos para a produção e acesso a mercados, como aponta o GRAF. 7. Todavia, mesmo com dificuldades, sejam elas econômicas ou relacionadas a outros aspectos, nota-se uma determinação muito grande dos associados em seguir em frente com o desenvolvimento das atividades associativas, em que 91% dos entrevistados afirmam que pretendem continuar as atividades. 96 Gráϐico 4: Proporção de Empreendimentos que recebem apoio do Estado Gráϐico 5: Proporção de Empreendimentos que recebem apoios da sociedade civil Gráϐico 6: Empreendimentos que têm parceria com outros empreendimentos Gráϐico 7: Principais diϐiculdades enfrentadas pelos Empreendimentos Para grande parte dos Empreendimentos Solidários, as Feiras constituem uma oportunidade importante para a realização da venda de seus produtos, sendo o principal meio de acesso ao mercado. Além da venda dos produtos, as Feiras constituem um momento de socialização, interação entre associados de diferentes Empreendimentos, trocas, encontros e lazer. É um momento de ver o que os outros grupos estão produzindo, ter ideias para inovar a produção, fazer contatos, deixar seus produtos serem conhecidos pelo público. Os recursos monetários para o desenvolvimento das atividades dos Empreendimentos são de natureza diversa, desde os recursos próprios, a ajudas de ONGs e do próprio Governo. O GRAF. 8 mostra que 71% dos empreendimentos funcionam com recursos dos próprios associados; 12% contam com ajuda do governo federal; outros 12% contam com o apoio de organizações da sociedade civil; 5% contam com o apoio de governos municipais. Gráϐico 8: Origem dos recursos dos Empreendimentos Solidários 97 3. Proposta metodológica para um modelo analítico das diversas iniciativas de Economia Solidária Após apresentação de alguns dados empíricos, buscamos sistematizar os materiais coletados. Para além das suas orientações específicas, que distinguem os Empreendimentos no seio do movimento social, elas se diferenciam umas das outras pela forma como elas se posicionam face às múltiplas formas como a ação se apresenta no terreno. A vertente institucional permite definir as orientações que caracterizam os dispositivos de intervenção e os distinguem de outros investimentos similares. As propostas de criação de oportunidades de emprego e de renda podem ter motivações diversas: 1) Finalidades políticas, sociais e econômicas. A este nível podem ser distinguidos os programas orientados pelo objetivo de integração dos empreendimentos na racionalidade econômica instrumental (maximização do lucro), daqueles que, não descurando a rentabilidade econômica dos empreendimentos, procuram, no essencial, maximizar os seus benefícios sociais (criação e repartição de emprego sustentada – econômica, cultural e ecologicamente - num território de referência) 2) Enquadramento ideológico, político, jurídico ou financeiro significativo para definir as orientações que regulam o programa de trabalho; 3) Nível de alcance territorial (local / comunitário / nacional / internacional) 4) Funções assumidas (técnicas ligadas a fatores de produção / sociais visando, por exemplo, o estabelecimento de relações sociais de solidariedade, de responsabilidades / simbólicas ou culturais, na medida em que é visada, por exemplo, a proteção de identidades, de práticas culturais específicas associadas a patrimônios que se querem preservar / pedagógicas, quando a função é de socializar os destinatários aos valores inscritos na missão do dispositivo ou a determinados padrões de comportamento ou de representações, à utilização de determinados recursos, etc.). Claro que estas funções não se exercem, geralmente de forma isolada, mas combinam-se em estratégias de ação que são moduladas, provavelmente, pelas características das populações associadas ou pelas fases de amadurecimento do movimento social que é promovido. Na base da sua organização prática, podemos considerar os critérios que permitem identificar o perfil do Empreendimento e a sua relação com o contexto significativo para a atividade desenvolvida (comunidade ou mercado). 98 1) Relação do Empreendimento à iniciativa que os integra no movimento da economia solidária. Na medida em que o objeto da pesquisa se concentra em empreendimentos de economia solidária, não faz sentido considerar projetos isolados, qualquer que sejam as modalidades de organização. Tampouco pertencem à economia solidária projetos cuja única característica é de se apresentarem agrupados. O único critério que nos parece adequado para considerar um empreendimento dentro da “economia solidária” é a inscrição de alguma das dimensões da sua atividade neste movimento, quaisquer que sejam, aliás, os conteúdos mais ou menos solidários das suas práticas. No essencial, podemos distinguir associações que se constituíram horizontalmente, a partir da vontade dos seus membros, daquelas que aderiram a um programa institucional de economia solidária que se oferece como um molde específico de enquadramento da ação. Podemos ainda considerar uma situação intermédia, quando a mobilização se faz de forma vertical, partindo do centro de iniciativa de uma associação para os empreendimentos ou investimentos singulares, mas que adotam um regime de cooptação dos seus membros, com base nos membros que, entretanto aderiram. Esta relação à iniciativa distingue, em princípio, os níveis de autonomia que os associados têm em relação aos projetos, podendo considerar-se, por hipótese, que uma associação cooperativa deterá um maior controle e capacidade de iniciativa sobre a produção das suas orientações e modos de funcionamento do que os empreendimentos que são pautados por modelos definidos fora dos grupos. Esta relação de autonomia/dependência pode ser detalhada por meio da distinção dos diferentes momentos do ciclo produtivo (financiamento, produção e comercialização), que podem ser objeto de tratamentos diferentes. 2) Tipo de bens produzidos (materiais / serviços /simbólicos ou culturais) 3) Setor(es) privilegiados das atividades desenvolvidas 4) Posição na repartição técnica da produção (promoção ou financiamento / organização / comercialização / produção) Na relação das iniciativas com os contextos significativos para a atividade desenvolvida (comunidade ou mercado), podemos considerar: 1) Sustentabilidade do Programa. Neste plano, consideramos os níveis de interdependência existentes entre as atividades singulares que constituem uma associação ou empreendimento específicos. Esta interdependência pode ser considerada no plano interno da associação: os investimentos singulares dos membros podem estar funcionalmente integrados entre si ou, pelo contrário, apresentarem se forma atomizada (cada um desenvolve a sua atividade independentemente dos outros, mesmo se podem existir mecanismos de solidariedade, por exemplo, no plano do financiamento – bancos populares). No plano externo, podemos considerar modos ou níveis de integração dos projetos de um grupo com outras atividades que se desenvolvem fora do grupo (em princípio, na economia “tradicional”). Considerando estes dois tipos de integração, distinguimos três posições modais que podem marcar a sustentabilidade dos empreendimentos: i) A interdependência verifica-se no interior e no exterior do grupo; ii) A interdependência ocorre no interior, mas não com o exterior e iii) A interdependência não se verifica a nenhum dos níveis. (Excluímos a possibilidade em que haveria integração no exterior sem haver integração no interior, na medida em que nesta posição a sustentabilidade não é controlada pelo grupo, podendo sê-lo por uma das unidades que lhes estão agregadas). 2) Âmbito territorial do empreendimento: local / itinerante / internacional) 3) Tipo de clientes (individuais / institucionais) 99 4. Efeitos tipológicos e grelhas de análise As dimensões anteriormente elencadas não têm a mesma importância quando consideramos a sua capacidade para diferenciar os empreendimentos. Com efeito, determinados tipos de projetos são marcados por uma ou outra dessas dimensões que lhes delimitam os seus significados essenciais. Considerando a generalidade das iniciativas, que nos interessa apreender, parece-nos importante proceder a um esforço de hierarquização, que poderá sempre ser reformulado, para que possamos produzir efeitos tipológicos ou grelhas de análise susceptíveis de orientar o nosso olhar e ajudar na interpretação da grande variedade das situações empíricas encontradas. Neste sentido, vamos considerar que três das dimensões apresentadas – uma em cada um dos grupos delimitados – podem produzir efeitos de classificação mais discriminantes e permitir, assim, construir espaços de atributos onde poderá entrar a extrema diversidade das experiências empíricas com as quais os terrenos da ação nos confrontam. No plano da sua ancoragem institucional, vamos considerar como determinantes as finalidades dos programas de trabalho ou projetos associativos, distinguindo, como o fizemos acima, duas orientações modais: os programas são movidos, em primeira instância, por uma racionalidade instrumental e econômica ou eles visam, em primeiro lugar, produzir efeitos sociais ou culturais, mesmo se através de atividades susceptíveis de aceder ao emprego e renda. No plano da caracterização dos empreendimentos singulares, consideraremos que a relação à iniciativa e ao controle das diferentes fases de concretização do projeto (financiamento, produção e comercialização) são determinantes, distinguindo, aqui, uma posição de autonomia ou ao contrário de dependência dos produtores em relação aos elementos necessários à concretização dos processos nos quais eles estão implicados. Finalmente, no que respeita à relação das iniciativas com os contextos significativos para a atividade desenvolvida (comunidade ou mercado) consideramos mais importante a sustentabilidade das iniciativas quer no plano interno, quer no plano externo. Numa primeira aproximação, vamos construir uma substrução a partir das duas primeiras dimensões consideradas, esperando poder beneficiar dos efeitos tipológicos assim produzidos conforme TAB. 1. É claro que cada tipo direciona para orientações modais, possíveis de se associarem nas experiências empíricas concretas. A este nível, tratar-se-ia, sobretudo, de identificar o locus da iniciativa e o sentido modal da ação, para perceber, em seguida, como as diferentes orientações se podem associar ao nível de estratégias específicas de ação. A outro nível, para tornar mais operante este esforço de classificação, é importante considerar que a ação, e a ação de projetos que visam a promoção de indivíduos e comunidades através do emprego e da melhoria da renda, não é monolítica. Quer dizer que podemos decompor as diferentes fases de uma intervenção, que pode ser um processo produtivo, para distinguir as orientações que as marcam. Por exemplo, um empreendimento individual pode estabelecer uma relação de dependência com uma Instituição de apoio, mas conduzir de forma completamente 100 Tabela 1: Efeitos tipológicos considerando as Finalidades dos Programas (em coluna) e a relação à Iniciativa (em linha) Efeitos tipológicos considerando as Finalidades dos Programas e a Relação à iniciativa Finalidades dos Programas Instrumental Social 3- Autogestão de iniciativas 1- Autogestão de iniciativas orientadas, em ordem orientadas, em ordem principal, para a promoção principal, para fins global de grupos ou instrumentais comunidades Associação de Programas sociais (ação atividades/processos comunitária) ou econômicos singulares, organizadas pelos (cooperativas) que visam, em Autonomia próprios, que visam, em primeira instância, produzir primeira instância, manter ou efeitos sociais, apoiando-se criar emprego e/ou em atividade de promoção determinados níveis de emprego/renda. renda, para eles mesmos. Relação à iniciativa (Projetos de promoção local (Cooperativas econômicas) de grupos ou de comunidades) 2- Relação Instituição/ beneficiário através de ação condicionada limitada e seletiva Intervenção especializada e condicionada, operando no âmbito ou na dependência de Dependência programas oficiais de apoio à entrada no mercado de trabalho e/ou à obtenção ou melhoria de renda. (Programas oficiais ou 3º setor) 4- Relação Instituição/ beneficiário através de ação multidimensional não condicionada e não seletiva Intervenção de grupos do movimento social instituído com o objetivo de apoiar iniciativas de criação de emprego e obtenção de renda. (Programas oficiais ou 3º setor) Fonte: Elaboração nossa. 101 independente o processo de produção e de comercialização. Na TAB. 2, sugerimos o quadro analítico de referência que pode ser considerado para analisar as situações concretas: Tabela 2: Desenvolvimentos empíricos da tipologia resultante dos efeitos tipológicos apresentados na tabela 15. Fases do processo consideradas Financiamento Produção Tipo 1 Tipo 2 Tipo 3 Tipo 4 Recursos próprios Políticas Públicas 3º Setor Comunitário Autonomia Dependência Dependência Dependência Material/ Material/ Material/ Social/ simbólica simbólica Comercialização Local Financiamento simbólica cultural Itinerante Internacional Plural + Isolado Rede Cooperativa Associação + Isolado Rede Cooperativa Associação + Isolado Rede Cooperativa Associação Financiamento + Isolado Rede Cooperativa Associação Produção + Produção Financiamento Comercialização Produção Comercialização Comercialização Fonte: Elaboração nossa. Numa segunda aproximação do nosso esforço de classificação das atividades, podemos sistematizar a relação das iniciativas com os contextos significativos para a atividade desenvolvida (condições de sustentabilidade) dicotomizando, para simplificar o raciocínio, as posições que podem assumir a integração das atividades entre si e a relação das atividades com o exterior (TAB. 3). Tabela 3: Orientações da Sustentabilidade. Orientações da sustentabilidade Integração das Sim atividades com atividades externas Integração interna dos projetos Sim Sustentabilidade interna e externa Sustentabilidade Não interna mas não externa 102 Fonte: Elaboração nossa. Não (Não considerada) Sem sustentabilidade Obtemos, assim, um novo efeito tipológico que permite distinguir 1) os empreendimentos que têm a sua sustentabilidade interna e externa asseguradas; 2) os que conseguem assegurar uma sustentabilidade interna mas não externa e, finalmente, os que não asseguram nenhum dos níveis de sustentabilidade (desprezamos a quarta posição por considerarmos que os empreendimentos que não asseguram a sua sustentabilidade interna, se o conseguem no exterior, isso não poderá ser creditado ao grupo em que está inserido e que nos interessa aqui melhor conhecer). Conclusão Em situações de dificuldades e provação, muitas pessoas decidem unir-se aos seus pares, talvez movidas pelas memórias do agir coletivo do mundo rural ou de seus ancestrais, para juntas formarem estratégias de manutenção da vida. Seja pela motivação da tradição do mundo rural, pelas dificuldades de ingresso no mercado de trabalho formal, ou por outros motivos que explicam o porquê de diversas pessoas se aproximam para procurar alguma participação na Economia Solidária, o processo de incorporação da solidariedade nas práticas econômicas é multifacetado. A maior parte dos Empreendimentos Solidários encontram-se na informalidade (cerca de 75%) e nem sempre contam com local próprio para funcionamento. Há uma diversidade de situações solidárias inclusive na própria localização. No que refere à corresponsabilidade e apoios do Estado e da Sociedade Civil para com as iniciativas de Economia Solidária, verifica-se que a maioria dos Empreendimentos Pesquisados não recebe apoio. Segundo os entrevistados, o apoio da Sociedade Civil ainda é pequeno, embora um pouco maior que o do Estado. Com relação às Redes e parcerias estabelecidas entre os pares de Empreendimentos Solidários, nota-se que é mais elevada: cerca de 73% dos Empreendimentos têm algum tipo de parceria com outros empreendimentos. No estudo exploratório dos processos de trabalho dos indivíduos/famílias/ grupos ligados à Economia Solidária, encontramos recursos que as diferenciam, como também recursos que são similares. O estudo apresentou uma proposta metodológica de modo a olhar o conjunto dos Empreendimentos considerando critérios que permitem identificar o perfil do projeto ou atividade singular e a relação das iniciativas com os contextos significativos para a atividade desenvolvida (comunidade ou mercado). O perfil do projeto ou atividade singular pode ser considerado a partir da: (i) relação dos Empreendimentos à iniciativa que os integra no movimento da economia solidária; (ii) Tipo de bens produzidos (materiais / serviços / simbólicos ou culturais); (iii) Setor(es) privilegiados das atividades desenvolvidas; (iv) Posição na repartição técnica da produção (promoção ou financiamento / organização / comercialização / produção). A relação das iniciativas com os contextos significativos para a atividade desenvolvida (comunidade ou mercado), podem ser avaliadas com base na (i) Sustentabilidade do Programa. Neste plano, consideramos os níveis de interdependência existentes entre as atividades singulares que constituem uma associação ou empreendimento específicos. Esta interdependência pode ser considerada no plano interno da Associação: os investimentos singulares dos membros podem estar funcionalmente integrados entre si ou, pelo contrário, apresentarem se forma atomizada (cada um desenvolve a sua atividade independentemente dos 103 outros, mesmo se podem existir mecanismos de solidariedade, por exemplo, no plano do financiamento – Bancos Comunitários). No plano externo, podemos considerar modos ou níveis de integração dos projetos de um grupo com outras atividades que se desenvolvem fora do grupo (em princípio, na economia “tradicional”). Considerando estes dois tipos de integração, distinguimos três posições modais que podem marcar a sustentabilidade dos empreendimentos: a) A interdependência verifica-se no interior e no exterior do grupo; b) A interdependência ocorre no interior, mas não com o exterior e c) A interdependência não se verifica a nenhum dos níveis. (ii) Âmbito territorial do empreendimento: local / itinerante / internacional); (iii) Tipo de clientes (individuais / institucionais), entre outras variáveis. Referências e Bibliografia Araújo, Yara Mendes Cordeiro; Rodrigues, L.(2008). Uma outra racionalidade econômica acontece em Montes Claros-MG: A solidariedade através do fator trabalho nos Bancos Comunitários. In: XIII seminário sobre economia mineira, 2008, Diamantina, MG. Brasil. XII Seminário sobre a Economia Mineira. Balsa, Casimiro. (org.) (2006). Confiança e Laço Social. Lisboa, ed, Colibri / CEOS Investigações Sociológicas. Bourdieu, P. (2006). As estruturas sociais da economia. Lisboa, Campo das Letras. Castel, R. (1998). As metamorfoses da questão Social. Uma crônica do salário. Petrópolis, Vozes, 5ª, ed. Original: Les métamorfhoses de la question sociale: une chronique du salariat. Paris, Ed. Fayard (1995). Castel, R. (2006). Classes sociais, desigualdades sociais, exclusão social. 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Professor da Universidade Estadual de Montes Claros, Departamento de Ciências Sociais. RESUMO As inovações tecnológicas empreendidas no inal do século XX e intensi icadas no início do século XXI e a mudança no processo de organização produtiva alteraram a estrutura social, notadamente nas relações de trabalho. A globalização intensi ica o nível de competitividade entre empresas, levandoas à uma diminuição de custos. No mesmo passo surge o modelo político neoliberal, que visa o afastamento do estado imprimindo a lexibilização trabalhista. O trabalho, elevado pelo Estado do Bem-Estar Social como fonte de a irmação, tanto no aspecto social (inserção familiar e econômica) como no desenvolvimento das potencialidades individuais, sofre com o novo modelo. A precarização do trabalho intensi ica, especialmente após a década de 1970, abalando as bases do primado do trabalho, tal como posto nas normas jurídicas de proteção. Os sindicatos, fragmentados, já não fazem uma contraposição ao novo modelo. O trabalho informal cresce, sem garantias sociais necessárias a uma vida digna. Portanto, necessária uma maior re lexão, que é a proposta do presente texto, para contextualizar o novo modelo e os rumos do trabalho na sociedade contemporânea, a irmando a luta pela sua valorização com foco na dignidade do ser humano, que dever ser o desiderato de todo progresso. 106 PALAVRAS-CHAVE Revolução Tecnológica. Trabalho. Precarização. Reestruturação Produtiva. ABSTRACT Technological innovations undertaken in the late twentieth century and intensiϔied in the early twenty-ϔirst century and the change in the productive organization process altered the social structure, especially in labor relations. Globalization intensiϔies the level of competition between ϔirms, leading them to a cost reduction. In the same step the neoliberal political model, which aims to expulsion from the state printing the labor ϔlexibility arises. The work, elevated by the State Social Welfare as a source of afϔirmation, both social (family and economic integration) as the development of individual potential, suffers from the new model. The casualization of labor intensiϔies, especially after the 1970s, shaking the foundations of the primacy of work, as set in the legal standard of protection. Unions, fragmented, no longer form an opposition to the new model. Informal work grows without social guarantees necessary for a digniϔied life. Therefore required further reϔlection, that is the purpose of this text, to contextualize the new model and the directions of work in contemporary society, saying the ϔight for its recovery with a focus on human dignity, which should be the desideratum of all progress. KEY-WORDS Technological Revolution; Work Precariousness; Productive Restructuring. Introdução O presente artigo tem por objetivo discutir a crise gerada pelo novo sistema de produção capitalista, identificando as discussões acerca Revolução Tecnológica e o que tem gerado de conflito social, com o foco nas relações de trabalho. A quem aproveita e a quem prejudica. Esse é o interesse da discussão a fim de localizar a estrutura na qual estamos inseridos e quais as tendências para o futuro. Apesar de todos os argumentos e divulgação de um pensamento cuja ótica (neo)liberal é hegemônica, buscaremos analisar se esta perspectiva de desenvolvimento é real e favorece as relações de trabalho. Buscaremos analisar a atual fase que nos encontramos, partindo desde a Revolução Industrial até este início de século XXI, com a chamada Revolução Tecnológica na tentativa de entendermos o contexto e propostas de tais modelos. Posteriormente, buscaremos analisar a ideologia que acompanha esse processo, identificando inclusive a ação social e política que as envolve, com o olhar sobre o estado liberal, interventor (bem-estar social) e neoliberal. Analisaremos ainda os modelos produtivos¬, (fordismo/taylorismo e toyotismo ) implementados e sua busca pelo progresso, com as inovações tecnológicas e seus impacto e abordagem sobre o que se concebe como desenvolvimento. Buscaremos assim abordar a influência dos sistemas produtivos e ideológicos nas relações de trabalho, na tentativa de apontar quais são os pontos que causam e porque causam uma crise estrutural no trabalho e que prováveis enfrentamentos poderá advir para a sociedade. 1. O novo mundo do trabalho: A Revolução Industrial e Tecnológica A Revolução industrial foi um marco na formação de uma sociedade capitalista que revolucionou o mundo, trazendo profundas modificações estruturais nas relações entre os indivíduos, especialmente em decorrência da divisão social do trabalho. Se de um lado hoje encontramos uma produção de bens de consumo como jamais visto na história da humanidade, por outro lado também vimos agigantar problemas de ordem social tais como desigualdade crescente, fome, desemprego, exclusão social sob diversas perspectivas, que muitas vezes nos fogem do controle, o que justifica uma reflexão para práticas visando um mundo justo e solidário. Polanyi referindo-se a esse momento histórico vivido pela sociedade afirma: [...] a gente do campo se desumanizava em habitantes de favelas; a família estava no caminho da perdição e grandes áreas do país desapareciam rapidamente sob montes de escória e refugos vomitados pelos “moinhos satânicos”. Escritores de todas as opiniões e partidos, conservadores e liberais, capitalistas e socialistas, referiam-se invariavelmente às condições sociais da Revolução Industrial como um verdadeiro abismo de degradação humana. (POLANYI, 2012, p.42) 1. Modelo também chamado de japonês, pós-fordista, da terceira revolução industrial, mas que nesse trabalho optamos por utilizar a nomenclatura modelo Toyotista. 107 A ideologia liberal impregnada na sociedade de então, toma corpo para concretizar o avanço para uma sociedade de consumo, numa busca desenfreada e desorientada pela produção de bens e do lucro, este agora tido como valor moral a configurar a motivação do homem. Na tentativa de descobrir a origem das riquezas, economistas no fim do século XVIII descrevem as condições da acumulação do capital, baseando-se quase sempre no ideologia liberal (BEAUD, 1999, p.122). Polanyi salienta que um dos grandes problemas desse pensamento foi que “O liberalismo econômico interpretou mal a história da Revolução Industrial porque insistiu em julgar os acontecimentos sociais a partir de um ponto de vista econômico.” (POLANYI, 2012, p.36) Tratando ainda da revolução industrial, temos a afirmação de que “Através dela é introduzida e ampliada a lógica capitalista de produção: exploração de um número crescente de trabalhadores e produção de uma massa sempre maior de mercadorias; acumulação vertiginosa de riquezas, num pólo, ampliação e agravamento da miséria, no outro”. (BEAUD,1999, p.123) A análise feita por Polanyi(2012) em sua obra “A Grande Transformação” demonstra o curso percorrido pelo capitalismo que engendrou a ruína na sociedade, especialmente da sua relação com o trabalho e o aumento das desigualdades. Ponto crucial da análise do autor é a sustentação de sua tese de que a atividade econômica estava incrustada nas relações sociais no período anterior ao da revolução industrial e que a concepção de um mercado autorregulável, com a ideologia liberal, retirou a economia de sua base social, daí advindo uma série de problemas, dentre eles este da precarização do trabalho que ora analisaremos. A Revolução Industrial que desencadeou as mudanças no mundo do trabalho é apontada como sendo um complexo de reestruturação produtiva, que passou por algumas fases, também denominadas de primeira, segunda e terceira revolução industrial, sempre visando contornar as crises cíclicas e/ou estruturais do capitalismo e sua expansão pelo mundo. Nesse sentido: [...] A primeira Revolução Industrial começou em fins do século XVIII e caracterizou-se pela substituição das ferramentas manuais por máquinas e pelas novas tecnologias como a máquina a vapor e a fiadeira. A segunda Revolução Industrial, em fins do século XIX, destacou-se pela produção da eletricidade; pelo desenvolvimento do motor de combustão interna, de produtos químicos com bases científicas e da fundição eficiente do aço; e pela invenção do telégrafo e da telefonia. A terceira Revolução Industrial iniciou-se durante a Segunda Guerra Mundial, com o desenvolvimento da eletrônica e, em meados da década de 1970, com a revolução da tecnologia da informação, tendo por base o desenvolvimento da microeletrônica, computadores e telecomunicações. (ALVES, 2011, p.16-17) Sobre esta Terceira Revolução Industrial, afirma ainda Alves(2011) que ela se distingue das anteriores, contendo em si duas revoluções tecnológicas que foram a causa de uma alteração da atividade industrial. 108 [...] A Terceira Revolução Tecnológica, usualmente identificada com a Terceira Revolução Industrial propriamente dita, se baseia no chamado “binômio informática/robótica”, sendo portanto o que Adam Schaft denominou de “revolução informática’; e a Quarta Revolução Tecnológica é a que identificamos com a constituição das redes informacionais (ciberespaço) a partir dos novos avanços das telecomunicações, sendo portanto a “revolução informacional”. (ALVES, 2011, p. 17). No mesmo sentido: A primeira revolução industrial aconteceu na Inglaterra ente 1770 e 1860. A segunda, aconteceu por volta de 1880 no novos países industrializados de então (EUA, Alemanha, Itália, França, entre outros). A terceira, data da crise dos anos 70, com novo paradigma tecnológicocientífico. Aí se produziu um novo e intenso ciclo de mundialização do capital. Neste sentido, a mundialização do capital consiste na nova configuração do capitalismo mundial, com extrema centralização de gigantes capitais financeiros, que comandam a repartição social da riqueza. A esfera financeira cresce em ritmo superior aos índices de crescimento do investimento (PIB) ou do comércio exterior. (Oliveira; 1999, p. 57). Não obstante relevantes observações sobre o impacto desse processo no meio ambiente, as implicações da revolução tecnológica sobre o primado do trabalho e seu valor social é que buscamos analisar, dentro de um modelo de acumulação flexível. Tal modelo veio fazer frente ao conjunto de proteção social até então vigente, visando a maximização do lucro mesmo que às custas de males sociais profundos. 2. O Estado liberal, intervencionista e neoliberal e a reestruturação produtiva. A ideologia liberal que transformou a sociedade moderna, imprimiu ao capitalismo um ritmo acelerado de acumulação de riqueza e produção de bens visando sua expansão e criando novos padrões de comportamento. O capitalismo com sua saga em busca de expansão de mercados teve que se rearranjar, se remodelar para enfrentar suas crises. A reestruturação produtiva ao longo desse processo foi primordial para o ideal capitalista, com instauração desde o modelo taylorista/fordista e o toyotista com uma acumulação flexível. Os sistemas ideológicos que permearam a sociedade nessa época é também de fundamental importância, pois forjaram valores na sociedade, ora com mais ora com menos força de resistência. O liberalismo econômico evoluiu “como uma fé verdadeira na salvação do homem através de um mercado autorregulável” (POLANYI, 2012, p. 151), que prega a não intervenção do estado. Aponta o autor que no ano de 1830 o liberalismo econômico ‘explodiu com uma cruzada apaixonante”, e o laissez-faire se tornou um credo militante. 109 O Estado para os liberais deveria se afastar de interferências, a não ser para garantir a propriedade de bens, o livre mercado, o mercado de trabalho etc. Polanyi assim se manifesta: [...] Todos esses baluartes da interferência governamental, no entanto, foram criados com a finalidade de organizar uma simples liberdade – a da terra, do trabalho e da administração municipal. Assim como, contrariando expectativas, a invenção da maquinaria que economizaria trabalho não diminuíra, mas, na verdade, aumentara a utilização do trabalho humano, a introdução de mercados livres, longe de abolir a necessidade de controle, regulamentação e intervenção, incrementou enormemente seu alcance. Os administradores tinham de estar sempre alertas para garantir o funcionamento livre do sistema. Assim, mesmo aqueles que desejavam ardentemente liberar o estado de todos os deveres desnecessários, e cuja filosofia global exigia a restrição das atividades do estado, não tinham outra alternativa senão confiar a esse mesmo estado os novos poderes, órgãos e instrumentos exigidos para o estabelecimento do laissez-faire[...]. (POLANYI 2012, p.157) Esse sistema liberal tem hegemonia na história capitalista desde o século XVIII, permanecendo incólume durante o século XIX, não obstante o surgimento de algumas críticas cada vez mais consistentes. “O surgimento do Direito do Trabalho, aliás, nesse período final do século XIX, já traduzia um revés imposto à plena dominância do liberalismo radical”. (DELGADO, 2006, p. 73). Em razão da destruição operada pelo movimento liberal e mercado autorregulável, surgiu de forma natural e espontânea um contramovimento, coletivista e universal: Achamos, assim, que a evidência comprova a interpretação que damos ao duplo movimento. Se a economia de mercado foi uma ameaça para os componentes humanos e natural do tecido social, como insistimos, o que mais poderia esperar senão que uma ampla gama de pessoas exercesse a maior pressão no sentido de obter alguma espécie de proteção? Foi isto o que encontramos (POLANYI, 2012, p.167). Nega referido autor que esse contramovimento intevencionista seja algo de caráter ideológico e uma conspiração contrária ao liberalismo econômico e ao laissezfaire e que não foi nenhuma preferência pelo nacionalismo ou socialismo, aduzindo que na verdade ele teve todas as características de uma reação espontânea ao caos que se apresentava. O sistema de proteção, advindo de estratos sociais definidos, direcionam no sentido de resguardar a terra, o trabalho e o dinheiro. 110 Como último recurso, a autorregulação imperfeita do mercado levou a uma intervenção política. Os governos tiveram de responder às pressões quando o ciclo comercial deixou de corresponder e restaurar o emprego, quando as importações deixaram de produzir exportações, quando as regulamentações da reserva bancária ameaçaram os negócios com o pânico, quando devedores estrangeiros recusaram-se a pagar. Numa emergência, a unidade da sociedade afirmou-se por meio da intervenção (POLANYI, 2012, p. 229). Oliveira(1999) enfatiza que “[...] o liberalismo que conheceu seu apogeu durante a fase concorrencial, é substituído pelo Keynesianismo, ou Estado Interventor (Regulador), mais adaptado à nova fase monopolista do sistema” e arremata A solução foi o New Deal do Presidente Roosevelt (que governou de 1933 a 1945) com seu programa de Auxílio, Recuperação e Reforma. Em suma, este programa, através da intervenção do Estado, ajudou os setores econômicos (Bancos, Agricultura e Indústria) a sair da crise, fez programas de auxílio aos carentes: idosos, deficientes e grupos marginalizados, iniciou um programa de seguro-desemprego e previdência e estimulou a economia através da realização de obras públicas (Oliveira, 1999, p.38-39) No mesmo sentido: O Welfare State foi, em grande parte, uma resultante do embate entre capitalismo liberal e os “conflitos sociais”. A ação do Estado tendeu a regular a ordem econômica e social, com um controle consciente do gasto público e mecanismos de controle econômico. A órbita do trabalho deixou de ser ditada exclusivamente pelas leis do mercado, assim como as questões sociais. O conceito de Estado de bem-estar social foi ampliando-se gradativamente, bem como a ideia de que as situações de risco contra o trabalhador são produzidas socialmente (CAVALCANTE, et al, 2008, p.750). Analisando essa fase do sistema capitalista, temos que “No tocante ao trabalho vivo, a constituição do Welfare State, no interior do próprio sistema produtor de mercadorias nos países capitalistas centrais após a Segunda Guerra Mundial, estabelece barreiras à usurpação capitalista e à superexploração da força de trabalho.” (ALVES, 2011, p. 12). Delgado enfatiza que o Estado do Bem-Estar Social tinha como fundamento o primado do trabalho na sociedade capitalista tornando-se o epicentro da vida social e econômica. “Percebe tal matriz a essencialidade da conduta laborativa como um dos instrumentos mais relevantes de afirmação do ser humano, quer no plano de sua própria individualidade, quer no plano de sua inserção familiar, social e econômica” (DELGADO, 2006, p.29). Para enfrentamento de uma crise, uma solução do capitalismo foi a introdução 111 do sistema fordista de produção, como veremos mais adiante, que visou modificação na produção e no salário dos trabalhadores. Antes dessa análise, necessário apontar ainda a fase ideológica que desponta no sistema mundial, em contraponto ao então sistema do Walfare State, que perde credibilidade com o aparelhamento do estado de forma gigantesca, uma burocracia engessadora e uma crise fiscal enorme. Com a derrocada da URSS sai de cena o mais forte contraponto capitalista do século XX, ensejando a retomada de uma ideologia que volta a ser hegemônica e faz novamente ruir as bases do coletivismo (DELGADO, 2006). Surge então o modelo globalizante, despontado no último quartel do século XX, tendo como um de seus pilares o neoliberalismo, também chamado de ultraliberalismo. Este liberalismo readaptado – neoliberalismo ou ultraliberalismo – corresponde a um conjunto orgânico de idéias, que se fortaleceu política e economicamente a contar dos anos de 1970 nos países capitalistas desenvolvidos, dirigidas à estruturação do Estado e sociedade no sistema capitalista, em anteposição à matriz do Estado de Bem-Estar Social, hegemônica no pós-2ªGuerra Mundial nos EUA e, principalmente, Europa Ocidental. (DELGADO, 2006, p.21). Referindo-se à essa internalização do pensamento liberal, afirma Delgado(2006) que a Argentina foi um exemplo dramático na gestão de Carlos Menem(1989-1999) e revela: [...] o novo governante promoveu a desconstrução drástica da participação estatal na economia, com privatizações generalizadas, a par de impor reforma trabalhista célere por sua agressividade, com profunda desregulamentação normativa. O resultado de tal estratégia é por todos conhecido: poucos anos depois, no final do século, mais de 50% da população do país vivia abaixo da linha da pobreza, segundo o internacional Índice de Desenvolvimento Humano (IDH), ao passo que duas décadas antes apenas 5% dos argentinos submetiam-se a tal condição; o desemprego, em 2002, atingia cerca de 25% da força de trabalho do país; a criminalidade elevou-se cerca de 290% em torno de 10 anos (DELGADO, 2006, p.26-27). No Brasil este movimento teve seu ponto forte no governo Collor(1990-1992) e mais acentuadamente no governo de Fernando Henrique Cardoso (1994-2002) onde se percebeu além de abertura comercial, privatizações, a desregulamentação e flexibilização trabalhista. “Se o processo de reestruturação produtiva no Brasil, durante os anos 80, teve uma tendência limitada e seletiva, foi especialmente a partir da década de 1990, inicialmente com Collor e depois com FHC, que ele se ampliou sobremaneira. (ANTUNES, 2013, p.20) 112 3. Fordismo, Taylorismo e Toyotismo: modernidade e o impacto nas relações de trabalho. A reestruturação produtiva, com implementação de novas tecnologias e nova organização do trabalho, ocorrida no curso do desenvolvimento capitalista, forjou valores que ordenaram o mundo do trabalho, influenciando sobremaneira na identidade da classe que vive do trabalho, sendo também fator fundamental para o aumento das desigualdades sociais. O desemprego estrutural que hoje se percebe no mundo é fruto desta política organizacional capitalista e incremento da tecnologia. O sistema de gestão empresarial que prevaleceu no século XX até a década de 1970 foi conhecido como fordismo/taylorismo, com origem na economia Norte Americana. A racionalização norteia a atividade produtiva. O taylorismo surge como um método de gerência científica, de organização do trabalho partindo do ponto de vista capitalista. “Sua base inicial fundava-se, essencialmente, no método de gestão trabalhista estruturado a partir de fins do século XIX pelo engenheiro norte-americano Frederick Winslow Taylor(1856-1915)” (DELGADO, 2006, p. 45). O taylorismo, aplicando análise sistemática ao exercício prático do trabalho no estabelecimento capitalista, viabilizou a simplificação e agilização do treinamento da mão-de-obra, mesmo não qualificada, além de potenciar, significativamente, a produtividade do trabalho. Propondo a minuciosa separação de tarefas e sua consequente rotinização no processo laborativo de sofisticada especialização do trabalho, transformando-o em uma sequência de atos basicamente simples. A partir daí, esta gerência científica do trabalho multiplicava a produtividade laborativa, viabilizando a explosão da produção massiva característica do sistema capitalista” (DELGADO,2006, p.46). Carmo, citado por Cavalcante, Albuquerque e Jesus, caracteriza o sistema taylorista: O Taylorismo visa à racionalização da produção, a fim de possibilitar o aumento da produtividade no trabalho, evitando o desperdício de tempo, economizando mão-de-obra, suprimindo gestos desnecessários e comportamentos supérfluos no interior do processo produtivo. Taylor concretizou de forma exemplar a noção de “tempo útil”. A linha de montagem criada por Ford(18631947) na fabricação em massa de automóveis, seguiu a trilha aberta por Taylor. Essa atividade em cadeia elevou o grau de mecanização do trabalho, reduzindo ainda mais a iniciativa e a autonomia dos operários. Ao ditar a cadência do trabalho, a linha de montagem permite um grau de padronização da mão-de-obra que elimina o operário zeloso ou preguiçoso, pois ambos retardariam a marcha da produção (CARMO, 1992: 20). (CARMO, apud CAVALCANTE, et al, 2008, p. 87) 113 O fordismo, aliado ao taylorismo, provocou intensas mudanças no processo de produção capitalista, como a massificação e elevada produtividade. Esse período ocorrido após a Segunda Guerra Mundial foi o boom do capitalismo, os seus “anos dourados”, a “era de ouro”, “os trinta anos gloriosos’. (HOBSBAWM, 2008). Idealizado por Henri Ford(1863-1947), “[...] este método de trabalho veio trazer inovações não só aos processos de produção, mas também à forma de organização do trabalho dentro da empresa e ao padrão de consumo, e de vida, dos assalariados”. (CARVALHO, 1999, p. 96). Salienta o mesmo autor que a economia mundial cresceu a uma taxa explosiva, ficando notório isso especialmente na década de 1960. “A produção mundial de manufaturas quadruplicou entre o início da década de 1950 e o início da década de 1970, e, o que é ainda mais impressionante, o comércio mundial de produtos manufaturados aumentou dez vezes” (HOBSBAWM, 2008, p.257). “O modelo de produção em massa de Henry Ford espalhou-se para indústrias do outro lado dos oceanos, enquanto nos EUA o princípio fordista ampliavase para novos tipos de produção, da construção de habitações à chamada junk food (o McDonald’s foi uma história de sucesso do pós-guerra). (HOBSBAWM, 2008, p.259). Descrevendo a dinâmica do modelo proposto por Henry Ford, Beaud demonstra que “Cada trabalhador ocupa um posto, do qual ele não se mexe, pois “andar a pé, repetia Ford, não é uma atividade remuneradora”. São, portanto, as peças que se movimentam numa correia transportadora; e cada trabalhador efetua uma operação [...]’ (BEAUD, 1999, P.259). Nesse sistema o crescimento do capitalismo foi gigantesco, especialmente nos países desenvolvidos. Ocorre que a partir de 1970, mais uma mudança estrutural vai balançar as bases da sociedade. O capitalismo entra em uma crise estrutural que é marcada pela sobre acumulação e intensa concorrência internacional, “Sob o impulso da mundialização do capital, constituiu-se um novo complexo de reestruturação produtiva, buscando instaurar e impor um novo padrão de acumulação capitalista em escala planetária e que se impôs cada vez mais às corporações transnacionais[...]. (ALVES, 2011, p.1112). Cita referido autor que essa reestruturação produtiva configura um processo de acumulação flexível, que tende a debilitar o mundo do trabalho e diz que Harvey ao propor o conceito de acumulação flexível “[...] o contrapõe à suposta acumulação rígida do fordismo.” Faz no entanto a ressalva de que “[...] na verdade, o fordismo, tanto quanto a acumulação flexível de Harvey, aumentou os poderes de flexibilidade e mobilidade do capital” (ALVES, 2011, p.15). O toyotismo é a ‘ideologia orgânica’ do novo complexo de reestruturação produtiva do capital que encontra nas novas tecnologias da informação e comunicação e no sociometabolismo da barbárie, a materialidade sociotécnica(e psicossocial) adequada à nova produção de mercadorias. Existe uma intensa sinergia entre inovações organizacionais, inovações tecnológicas e inovações sociometabólicas, constituindo o novo empreendimento capitalista que coloca novos elementos para a luta de classes no século XXI. (ALVES, 2011, p.43). 114 Delgado reforça: No cenário da forte crise econômica então desencadeada no Ocidente, com a exacerbação da concorrência interempresarial e mundial, inclusive a célere invasão, naqueles anos, do mercado econômico europeu e norte-americano pelo novo concorrente japonês, tudo associado ao desenvolvimento da chamada terceira revolução tecnológica e das condições macropolíticas desfavoráveis ao Estado do Bem-Estar Social, passa-se a assistir à incorporação de novos sistemas de gestão empresarial e laborativa. Entre estes, o que produz maior impacto, sem dúvida, é aquele apelidado de toyotismo ou ohnismo. [...] O toyotismo visa, em síntese, elevar a produtividade do trabalho e a adaptabilidade da empresa a contextos de alta competitividade no sistema econômico e de insuficiente demanda no mercado consumidor (portanto adaptar a empresa mesmo a contextos de crise). Conforme indagava Taiichi Ohno em sua obra, O Espírito Toyota; “o que fazer para elevar a produtividade quando as quantidades não se elevam? (DELGADO, 2006, p.4647). Alves expõe que “[...] a fábrica toyotista é uma fábrica enxuta” e afirma que a produção flexível toyotista implica no engajamento do trabalhador, e tem uma finalidade que é a “absoluta eliminação do desperdício”. (ALVES, 2011, p.49) Salienta ainda que o Toyotismo não se constitui como “modelo puro” de organização da produção capitalista. Pelo contrário, em seu desenvolvimento complexo, tende a articular-se (e mesclar-se) com formas pretéritas de racionalização do trabalho (como o fordismo-taylorismo) [...]” (ALVES, 2011, p.62). Tratando da questão da subjetividade do trabalhador, demonstra: A desespecialização (ou polivalência do trabalho) não quer dizer que eles tenham se convertido em trabalhadores qualificados, mas representam, como salientou Aglietta, “o extremo da desqualificação, ou seja, seus trabalhos foram despojados de qualquer conteúdo concreto”. que o modelo toyotista capta a “subjetividade do trabalhador” na medida em que [...] Nesse sentido, o toyotismo articula um novo tipo de operação de “captura” da subjetividade do trabalho ou uma subjetividade às avessas capaz de gerir seus novos dispositivos tecnológico-organizacionais. O espírito do toyotismo irá impulsionar na linguagem do managering, os apelos à administração participativa e ao “gerenciamento moderno.” [...] O cérebro dos operários e dos empregados, não está mais livre, como no taylorismo-fordismo.” [...] incentivam-se habilidades pró-ativas e propositivas no sentido adaptativo aos constangimentos sistêmicos. (ALVES 2011, p.64-65) 115 A exigência do empenho maior do trabalhador nessa fase modifica a dinâmica do trabalho, com vistas à maior produtividade sem no entanto perceber que as condições para o trabalhador o levam a problemas antes não diagnosticados, pelo menos não na intensidade e forma que hoje se apresenta. Tanto a forma de organização do trabalho quanto o surgimento de alta tecnologia e meios de comunicação captam essa subjetividade do trabalhador, retirando-lhe valores humanos inalienáveis, como por exemplo o direito ao descanso, ao lazer, à vida social e comunitária, dentre outros. Linhart, tratando desta modernização nas relações de trabalho na França sintetiza que; As problemáticas avançam com freqüência, implícita ou explicitamente, a noção de progresso: trabalho com tendência mais abstrata, mais intelectual, apoiado em competências maiores, papel decisivo da qualidade da comunicação e das interações no trabalho, maior engajamento da subjetividade, empresas com linhas hierárquicas reduzidas, com estruturas menos pesadas, dando mais espaço às instâncias transversais, ao comportamento participativo, e trabalhando por uma individualização das situações de trabalho e dos destinos profissionais. Todos valores portadores, em si mesmos, da idéia de uma melhora da vida no trabalho. (LINHART 2007, p.104) Constatação interessante é feita por este autor, que apesar de referir-se à analise num contexto específico das empresas na França, não é difícil a percebermos em nossa realidade. Fundamentalmente o que está em jogo é distanciar o assalariado dos valores contestatórios, dos valores autônomos ou particulares, combater sua inquietação em relação ao futuro para incorporá-lo à racionalidade escolhida pela empresa. Conduta acompanhada por um discurso baseado na valorização da pessoa e que, de certa maneira, entra em ressonância com algumas expectativas dos assalariados, principalmente os mais jovens.” [...] Essas transformações, que visam a modernizar e conquistar a confiança, desencadeiam uma apreensão e, consequentemente, reações de autodefesa. Mais do que cooperar lealmente e confiar em seus superiores, cada um trata de se tornar indispensável, insubstituível, tornando seu trabalho ainda mais opaco, ainda mais inacessível.Cada um se debruça sobre sua tarefa, sobre seu posto, investe na obscuridade e cava ainda mais profundamente seu buraco. As pesquisas de campo captam bem essas estratégias inscritas em uma lógica individual de sobrevivência. (LINHART, 2007) É nesse contexto que constatamos a perda da subjetividade, paulatinamente o trabalhador se depara com a insegurança, aumentam-se os casos de assédio moral no trabalho, o trabalhador não se identifica mais com seus pares e sequer consigo mesmo. O valor social do trabalho é deixado de lado. 116 Sob o toyotismo, o homem produtivo é instigado a pensar demais, mas de acordo com a racionalidade instrumental do capital. O cérebro dos operários e dos empregados não está livre, como no taylorismo-fordismo. Deve-se combater nos locais de trabalho e nas instãncias da reprodução social o pensamento crítico ou aquilo que Gramsci tratou como “um curso de pensamentos pouco conformistas”. Incentivam-se habilidades congnitivocomportamentais pró-ativas e propositivas no sentido adaptativo aos constrangimentos sistêmicos. [...] O toyotismo é, então, expressão de uma “racionalidade cínica” que caracteriza as sociedades capitalistas na etapa de crise estrutural do capital. Uma racionalidade cínica que, como observou Safatle, visa a “estabilizar uma situação que, em outras circunstâncias, seria uma típica e insustentável situação de crise” (Safatle, 2004, p.132). Na medida em que Ohno, por um lado, trata da “harmonia entre operários”, por outro lado, proclama, mais adiante, que “a produção pode ser feita com metade dos operários”. Fica claro que o discurso de Ohno é um discurso paradoxal: diz ter obsessão contra o desperdício, mas é agente do capitalismo da superprodução. (ALVES, 2011, p.65-66) Além de seguir desconstruindo o primado do trabalho como valor social relevante, o novo modelo capitalista ainda deteriora as bases sindicais, com o seu processo de fragmentação das plantas industriais e a terceirização. Ainda tratando da questão social na França, mas sem se distanciar do que ocorre também no Brasil, Linhart salienta que; No fim do século XX, sacudido pela crise econômica, o sindicalismo francês não convence. Não se impõe muito no plano da luta pelo emprego, não chega a defender os salários, não exerce influência efetiva sobre o conteúdo da organização do trabalho. Tem poucos filiados e, sobretudo, não atrai mais os jovens. (LINHART, 2007, p.115) Alves particulariza a situação no Brasil, sem deixar de reconhecer o valor histórico do sindicato, mas acentua que: A crise do mundo do trabalho não se resolve por meio de qualquer reforma sindical. Na verdade, em si, ela tende a iludir o movimento sindical sobre suas perspectivas no contexto da crise do capital do século XXI. O que se coloca hoje é a necessidade de uma intervenção global, de que o sindicalismo demonstra ser incapaz, não apenas no plano político-organizativo, mas também no sociocultural. A instituição-sindicato tornou-se incapaz de servir como centro de organização de classe. (ALVES, 2013, p.464) Verifica-se pois que é estrutural a problemática desse modelo imprimido pelo que chamamos da Terceira Revolução Industrial ou Revolução Tecnológica, sobretudo pelo rompimento e desarticulação de um dos principais fatores que equilibravam e 117 garantiam melhores condições de trabalho, advindo da luta sindical e movimentos operários. O desemprego estrutural, insegurança quanto ao futuro, o trabalho precário, temporário e a terceirização que se vê surgindo por todos os lados em diversos setores da economia, como salienta Ricardo(2013) geram insegurança quanto ao futuro, atormentando o trabalhador que se vê numa verdadeira crise de identidade. Singer, citado por Gonçalves(2003), salienta que: [...] o final do século XX demonstra um claro mal-estar social, nomeadamente no que tange ao crescente universo de pessoas economicamente ativas e que não encontram um ocupação remunerada. Argumenta que dita situação denota traço inevitável de uma nova etapa da evolução do sistema capitalista. [...] O catedrático entende que o termo que melhor pode refletir a situação do mercado de trabalho não é o verbete “desemprego”, mas a expressão “precarização”, porque os novos postos de serviços criados em virtude das novas tecnologias não conseguem nem suprir a carência de absorção de mão-de-obra, mas – principalmente – não conferem aos seus ocupantes os mesmos direitos e garantias que eram previstos legal ou convencionalmente nos empregos tradicionais, sendo corriqueiras as relações informais ou incompletas de emprego, o que se reverte em sentido socialmente difundindo de insegurança no emprego.(SINGER, 2000 apud GONÇALVES, 2003) Na legislação brasileira se observa uma frequente onda flexibilizante, que paulatinamente vai desconstruindo a rede de proteção das relações sociais. Exemplos dessa flexibilização é a mitigação do princípio da continuidade da relação de emprego, típica proteção justrabalhista que visa resguardar a segurança nas relações de trabalho, com a edição das leis de trabalho temporário, tais como a Lei 6.019/74 que introduziu a terceirização no ordenamento jurídico. Também a Lei 9.601/98 abre espaço para a mitigação do referido princípio da continuidade dentre diversas outras normas que vão afetando direitos antes já garantidos e conquistados relativos à jornada de trabalho, aos salários, aos períodos de descanso como muito bem explicitado por Gonçalves(2004) em sua obra “Flexibilização Trabalhista”. Cumpre lembrar ainda a denúncia da Convenção 158 da Organização Internacional do Trabalho que trata do impedimento para despedida imotivada ou sem justa causa do trabalhador. Tal Convenção internacional, que foi absorvida pelo ordenamento jurídico brasileiro pelo Decreto de nº 1855, de 10 de abril de 1996 que no entanto logo foi denunciada mediante pressão da classe empresarial em 20 de novembro de 1996 pelo Decreto de nº2.100, retirando-lhe a eficácia normativa (Gonçalves, 2004). Na esteira desse pensamento, sobre os efeitos da tecnologia e da remodelagem organizacional nas relações de trabalho Santos citado por Gonçalves(2003) ressalta: 118 A tecnologia informacional e a nova organização do trabalho, sob a forma de capital-intensivo e de estrutura enxuta, inerentes em um processo de globalização, são causas do desemprego estrutural. A introdução de dispositivos informatizados, robôs, micropocessadores, etc. eliminam postos de trabalho, da mesma forma que a reengenharia, o enxugamento, a reestruturação organizacional. O fato é que seja por via da automação eletrônica, seja por via da remodelagem do layout organizativo da empresa – os empregos somem aos milhares, enquanto aumenta a carga de trabalho sobre aqueles que continuam empregados. (SANTOS, 1999, p.81, apud GONÇALVES, 1999, p.130,) Durkheim(1999), ao tratar da divisão social do trabalho, trata da solidariedade forjada na formação da sociedade moderna, denotando que essa divisão cria uma função ainda mais relevante que o mero serviço econômico, mas um efeito moral que guia e torna coesa essa sociedade de indivíduos. É pois na perspectiva de Durkheim fonte de solidariedade social esta divisão do trabalho. Todavia, o que percebemos principalmente a partir do ano 1990 com esta reestruturação produtiva e incremento tecnológico intenso, é uma desarticulação social, a quebra de coesão social especialmente entre os trabalhadores, com uma crise de identidade do trabalhador e negativação de um senso de coletividade. A captura da subjetividade, como salientado por Alves(2011) tem trazido consequências graves ao trabalhador, haja vista que a ótica implementada pelo processo capitalista atual é a busca pelo aumento da produtividade, intensificação do trabalho sem geração de emprego (redução de custos) com uma preocupação meramente econômica. A saída para o avanço desses males que geram exclusão social não pode ser outra senão aquela sempre apontada por Celso Furtado e Karl Polanyi, que é a intervenção do Estado de forma planejada, estruturante, com liberdade e com participação da sociedade, dos movimentos sociais, especialmente no caso específico dos trabalhadores um fortalecimento e resgate da atuação sindical. 4. Considerações finais A consolidação de um sistema produtivo implementado nos últimos anos tem influenciado diretamente as relações sociais, especialmente no que toca ao trabalho, gerando uma exclusão social cada vez mais crescente e uma perda do sentido do trabalho, tido como valor preponderante na sociedade. Este sistema que hoje intensifica o desemprego estrutural e especialmente a precarização nas relações de trabalho, como vimos, advém da lógica toyotista de produção capitalista, aliada a uma ideologia neoliberal e que tem na revolução tecnológica uma força desestruturante que deve ser enfrentada após reflexões importantes. A preocupação com a superprodução, a luta das empresas pela sobrevivência num mercado globalizado e altamente competitivo merecem uma reflexão constante para implementação de uma política pública voltada para a 119 valorização social do trabalho, a fim de que aqueles valores morais que geram coesão e solidariedade não sejam superados pela busca incessante do lucro. Não se trata de esboçar uma intervenção do Estado para volta a períodos passados, a um modelo fordista/taylorista ou que quer que seja, mas apontar uma reforma que seja profunda e séria e que tenha como fim último a valorização do homem, considerado em sua plenitude e não unicamente enquanto ser inserido em camadas favorecidas. Tal reforma deve ser amplamente discutida, já que é certo que ela precisa ocorrer no âmbito das coletividades. Uma conscientização das massas é necessária para tal reforma porque sua participação é essencial, sobretudo se levarmos em conta que a questão transita entre interesses de outros Estados nacionais, que, em se tratando do processo de globalização, deve ser pensado como um todo. Constatamos com a leitura que não se trata simplesmente de enfrentamento da tecnologia que surge nas novas relações de trabalho, pois com a racionalidade e as novas descobertas da ciência sempre mais estarão integradas nas relações de trabalho. Trata-se de discutirmos a ideologia que está por traz desse momento, a fim de que possamos descobrir caminhos para melhoria das condições sociais como um todo, sem exclusão, com amparo social e preservação de valores morais importantes para coesão social. 5. Referências bibliográficas ALVES, Giovanni. Trabalho e Subjetividade: o espírito do toyotismo na era do capitalismo manipulatório. São Paulo: Boitempo, 2011 ANTUNES, Ricardo(org). 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SILVA, Marcelo Martins da 1.Mestrando Universidade Federal do ABC – UFABC, E-mail: [email protected] RESUMO 122 8 1 ABSTRACT Problemas urbanos e raciais no Brasil têm sido estudados com profundidade separadamente, porém, o nexo entre ambos os processos sociais pouco tem sido objeto de estudo, exceto no que tange a segregação residencial entre negros e brancos, provavelmente, seu principal corolário. Não obstante, investigar a gênese destes processos é fundamental para compreendê-los, ou pelo menos, ter indicações de possíveis tendências. Este trabalho busca, apoiado em uma literatura que trata do planejamento urbano e das relações raciais, além de dados demográ icos do IBGE, apontar algumas especi icidades sócio-históricas e socioespaciais que geraram o atual espaço urbano brasileiro, do ponto de vista das interações raciais no espaço, utilizando como exemplo o caso da distribuição espacial da população negra na região do Grande ABC. Urban and racial problems in Brazil have been studied with shallow depth separately, however, the connection between both social processes have been little studied, except with respect to residential segregation between blacks and whites, its main corollary. Nevertheless, to investigate the genesis of these processes is essential to understand them, or at least have indications of possible trends. This work intends, based on literature dealing with urban planning and race relations, and statistical data of IBGE, point out some socio-historical and socio-spatial speciϔicities that generated the current Brazilian urban space, from the standpoint of racial interactions in space using the example of the spatial distribution of black people in the Great ABC. PALAVRAS-CHAVE Planejamento Urbano; Relações Raciais; Região do Grande ABC. KEY-WORDS Urban Planning; Race Relations; Great ABC Region. Introdução Os impasses para a superação das mazelas urbanas e raciais no Brasil, bem como estas mesmas, são oriundos de uma determinada formação social que resultou em um tipo específico de urbanização e industrialização (no que diz respeito aos países do capitalismo periférico) baseada em baixos salários1 e na posse da terra (apropriação privada e excludente), e que determinou muito o ambiente a ser construído nas metrópoles, isto é, uma máquina de produzir favelas e agredir o meio ambiente. Este ambiente construído reflete as relações e contradições sociais da sociedade que o construiu sendo, “... impossível pensar que uma sociedade como a nossa, radicalmente desigual e autoritária, baseada em relações de privilégio e arbitrariedade, possa produzir cidades que não tenha estas características”. (MARICATO, 2011a, p.51). Esta sociedade e suas especificidades foram estudadas e interpretadas por autores que viriam a ser parte das matrizes teóricas do pensamento e ação crítica no planejamento urbano e das análises das relações raciais no Brasil. Este trabalho busca: a) analisar de forma breve e a partir de alguns autores, o fio condutor societário característico do Brasil que orientou o desenvolvimento, tanto do planejamento urbano (urbanismo), quanto das relações raciais; e b) explicitar, ainda que parcialmente, a relação entre espaço urbano e população negra na região do ABC. Argumentamos que a questão racial, central na formação social brasileira, tem uma correlação direta, ainda que latente, com as práticas de planejamento urbano e seus corolários, sendo a favela a mais significativa expressão desta correlação. Alguns aspectos metodológicos são importantes de serem esclarecidos nesta introdução. Qualquer que seja a política adotada para combater desigualdades, quando se trata da população negra, o elemento “racismo” influi na análise. Dadas às peculiaridades da formação socioeconômica brasileira e das relações raciais paradoxais desenvolvidas no Brasil denominadas por alguns autores de “racismo à brasileira” (TELLES, 2004; DAMATTA, 1984; SILVA, 2009), o racismo e seus corolários não são auto-evidentes. Faz-se necessário um estudo sistemático das várias dimensões do racismo para combatê-lo. Para tanto a classificação racial e a adoção de uma ideologia racialista que reconheça a “raça” como categoria social e de análise definidora de uma sociabilidade empírica que impacta de maneira positiva ou negativa as pessoas dependendo de sua posição econômica, no território, o status atribuído e etc. (GUIMARÃES, 2009, p.11), é fundamental, com todos os problemas e críticas devidas que as acompanham. Portanto, o conceito de “raça” neste trabalho será utilizado conforme a definição elaborada por Guimarães que entende raças como: “... construtos sociais, formas de identidade baseadas em uma ideia biológica errônea, mas socialmente eficaz para construir, manter e reproduzir diferenças e privilégios.” (ibidem, p.67). Sem considerar a existência das raças no sentido apresentado fica impossível detectar os problemas advindos do racismo. Este trabalho está estruturado em cinco seções além desta introdução. A primeira discorre de forma breve e sintética sobre conceitos importantes de alguns 1. A industrialização com baixos salários tinha como corolário o consumo da mercadoria habitação fora do mercado marcado pelas relações capitalistas de produção, já que a maior parte dos trabalhadores não ganha o su iciente para pagar o preço da moradia ixa pelo chamado mercado formal (MARICATO, 2012, p.155). 123 autores (dentre vários) que se esforçaram para conseguir apontar a especificidade da formação social brasileira na sua concretude, utilizando conceitos e categorias de análises oriundas ou não da tradição marxista, porém realizando as devidas e necessárias mediações com o desenvolvimento e especificidade histórica brasileira. A segunda analisa e correlaciona aspectos paralelos e convergentes do planejamento urbano e das relações raciais como corolários das caracteristicas percebidas pelos autores supracitados. A terceira busca compreender o resultado deste encontro materializado na precariedade das sub-habitações e dos sublugares: favelas, malocas, cortiços, palafitas e etc., sendo a população negra maioria nestes lugares. Na quarta serão apresentados alguns dados da relação habitação/localização/população negra na região do Grande ABC, utilizando como fonte de dados o Censo Demográfico do IBGE (Resultados do Universo). Por fim, na última seção, serão explicitadas algumas breves considerações e possíveis conclusões. O pensamento social crítico brasileiro O pensamento social crítico brasileiro que embasou a produção acadêmica na área de planejamento urbano, em especial àquela que visava compreender a especificidade da cidade periférica ou ainda o desenvolvimento urbano na periferia do capitalismo, se pautou, principalmente, por duas vertentes analíticas: o marxismo de inspiração francesa (escola francesa de sociologia urbana2) e pelos autores que pensaram a sociedade brasileira (MARICATO, 2011b, p.12). A primeira vertente buscava compreender a lógica de acumulação capitalista na sua relação com o urbano para desnudar os processos de segregação socioespacial condicionados por tal lógica (SOUZA, 2005, p.62). A segunda – e é desta que iremos nos ocupar – buscou compreender a especificidade da formação social brasileira que balizou, e continua sendo característico, dos processos sociais do Brasil republicano. Caio Prado Júnior (2011), no livro “Formação do Brasil Contemporâneo”, ocupava-se dos processos que condicionaram a transição colônia-república, ou seja, preocupava-se com aquilo que, presente no Brasil colônia e na fase de transição do Brasil império, caracterizava o Brasil república. O período de análise privilegiado pelo autor, inicio do século XIX, foi decisivo para interpretar o processo histórico posterior que viria resultar no que é o Brasil hoje, já que não houve rupturas significativas do ponto de vista político, econômico e social. (ibidem, pp. 9-10). Para o autor, a colonização brasileira foi parte de uma vasta empresa comercial inserida no âmbito da acumulação de capital na Europa cujo único objetivo era fornecer produtos primários de alto valor para o mercado externo. A sociedade original que emergiu deste processo, baseada na produção agrícola e mineradora que recrutava compulsoriamente trabalhadores negros africanos e indígenas do próprio continente, caracterizava-se pela efemeridade dos ciclos econômicos aproveitando conjunturas positivas sem constituir uma base econômica sólida para a satisfação das necessidades materiais da população que nele habita (ibidem, p.75). Este oportunismo produtivo que demandava uma exacerbada mobilidade da população e, por isso mesmo, estruturou as desigualdades regionais, foi orientado sempre pela 2. Segundo Souza (2005) estes autores, Lefebvre, Castells, Boccara e Lojkine, dentre outros, promoveram uma verdadeira 124 reviravolta epistemológica no espaço citadino, tornando o debate francês referência obrigatória nos estudos urbanos. e para a demanda externa e, conseqüentemente, criava um antagonismo entre o desenvolvimento endógeno e a função exógena do sistema. Csaba Deàk (2010), também se debruçando sobre a função exógena do sistema colonial, entende que seu corolário principal é a sociedade de elite. Segundo o autor, a sociedade de elite surge como expressão do modo de organização da produção colonial, a saber, produção de excedente para o mercado externo e, mais especificamente, para a metrópole. Deák observa que inicialmente, na economia colonial, o excedente é constituído, ou por extração simples, ou por saque, porém, na medida em que se complexifica e se amplia, há a necessidade de implantar um processo de produção que demanda, inclusive, uma produção local para sobrevivência, isto é, um pequeno mercado interno (ibidem, p.23). A contradição é que a reprodução ampliada local e a conseqüentemente formação de um mercado interno, principalmente do ponto de vista da produção de mercadorias, ia de encontro com os interesses da metrópole de manter a hegemonia sobre a produção/reprodução local, “... o principio da extração de excedente precisou ser continuamente reimposto contra a tendência da ampliação da reprodução local que, no entanto, é a própria fonte de ampliação do excedente retirável” (ibidem, p.26). Tal reimposição do principio de extração, por ser antagônico aos interesses locais, se dá na base da repressão militar ou redução da escala da produção local, ainda que implicasse em perda de produtividade. A sociedade de elite, portanto, é aquela que mantém o status quo da sociedade colonial e de seu principio econômico. Uma sociedade autoritária com fortes traços estamentais, em que é mantido a todo e qualquer custo o direito à propriedade, inclusive na sua forma política, isto é, excluindo as classes trabalhadoras das possíveis decisões sobre esta, retirando-lhe os direitos políticos. A sociedade de elite difere-se da sociedade burguesa sem, no entanto, negá-la no discurso. Assume-se um discurso liberal que esconde a dominação de classe e nega na prática, inclusive, o mínimo de que precisa, ainda que no terreno das aparências, a sociedade burguesa, a saber, práticas que na verdade são resquícios de uma igualdade formal (ibidem, p.26). No nível do discurso, Marilena Chauí (2000) aponta a existência de um mito fundador da sociedade brasileira que resolve contradições reais por meio de representações criadoras de uma auto-imagem positiva, ainda que se reconheçam os problemas e que estes sejam insolúveis. É um passado glorioso fundado em uma natureza benevolente; numa mistura de raças que criou um povo pacifico alegre, sensual e, que mesmo nas maiores adversidades, feliz, sonhador “não desistindo nunca”; um povo sem preconceitos e com grande contraste regional que diversifica sua base cultural. O mito fundador é, nas palavras da autora, no seu sentido antropológico: “... a solução imaginária para as tensões, conflitos e contradições que não encontram caminhos para serem resolvidos no nível da realidade.” (ibidem, p.9), ou seja, atuando fora da história, o mito se transmuta e se adapta às diversas roupagens históricas para garantir o status quo com a mínima (ou nenhuma) tensão possível. Portanto, a constatação de Caio Prado Júnior no tocante a formação social brasileira, qual seja, “... incoerência e instabilidade no povoamento, pobreza e miséria na economia; dissolução nos costumes, inércia e corrupção nos dirigentes leigos e eclesiásticos.” (PRADO JR., 2011, p.378) é fundamental para interpretações futuras 125 sobre as especificidades e para a compreensão do legado colonial para a sociedade brasileira contemporânea. Clóvis Moura (1988), diferente da maioria das interpretações do Brasil (inclusive de Caio Prado) identificava a questão racial como determinante daquilo que “é” o Brasil, na perspectiva do negro como sujeito ativo na luta de classes e não como mero instrumento de trabalho. Para o autor a escravidão tinha o caráter de luta de classes e não de um choque entre padrões culturais africanos e europeus. Significa, portanto, que a dinâmica social do escravismo era marcada pelo conflito entre classes antagônicas, senhores e escravos, sendo que os últimos resistiram de forma ativa à opressão e contribuíram para a destruição do sistema vigente. A noção do negro escravizado como parte de uma classe social contradiz aquela que retira do negro a condição de sujeito do processo histórico brasileiro, já que a escravização é uma condição imposta. Na perspectiva de Moura, assim como não houve uma democracia social3 fundamental, também não houve uma democracia racial, e os negros, libertos, ficaram inertes ante aos mecanismos de seletividade estabelecidos pelas elites (ibidem, p.9). Com o declínio da sociedade senhorial e o avanço das relações capitalistas, o escravismo torna-se anacrônico no Brasil. A incipiente industrialização e a economia cafeeira, ainda preponderante no final do século XIX, carecem de modernização para qualitativamente caminhar em direção de um capitalismo autônomo. Como não houve ruptura com a base social antiga: Superpostas às relações de produção escravistas implantam-se, do exterior, relações capitalistas dependentes. O capitalismo monopolista cria um complexo cerrado de dominação naquilo que a economia brasileira deveria dinamizar se tivesse forças econômicas internas capazes de efetivar uma mudança qualitativa a fim de sair do escravismo e entrar na senda do desenvolvimento do capitalismo autônomo. (ibidem, p.237). Neste sentido, a subalternização econômica fez com que não houvesse ruptura com a estrutura escravista, mas um rearranjo interno que mantém as relações patrimoniais racistas intactas. Era, portanto, um projeto de nação, elaborado pelas elites que pretendia negar à grande parcela da população a condição de cidadão, ainda que formalmente fingisse integrá-la. Francisco de Oliveira em seus dois ensaios, “Crítica à razão dualista” de 1972 e “o ornitorrinco” de 2003, procura demonstrar os impasses do desenvolvimento brasileiro e, no caso do segundo, a deriva de uma sociedade marcada por um lado pela precarização, e por outro pela opulência. Confrontando tanto o pensamento cepalino4, quanto as teorias da dependência, o autor vai pensar principalmente a simbiose entre o arcaico e o moderno e como este último funcionaliza o atraso, criando 126 uma unidade contraditória, mas operacionalmente eficaz. Neste sentido, segundo Francisco de Oliveira, não há antagonismo entre os pólos e sim complementaridade, e esta se deve a estrutura social historicamente arranjada entre as elites arcaicas e outras supostamente modernas (coronéis e empresários), que tornou harmonioso o que deveria ser conflitante para possibilitar ruptura, a saber, a relação entre o moderno e o arcaico. (OLIVEIRA, 2003, pp.44-45). A desconstrução do conceito de dualidade, de que existiriam dois “Brasis”5, leva o autor a detectar em várias dimensões da vida social brasileira este traço característico. No trabalho, por exemplo, esta mesma estrutura social faz com que o setor informal alimente a “superexploração” da força de trabalho assalariada, portanto, informalidade e acumulação convergem e se dinamizam em períodos de maior expansão da economia. O que Francisco de Oliveira pretendeu demonstrar é o desmanche daqueles espaços sociais, que ainda resistiam como focos de projetos e ambição de transformação, em função dos impasses estruturais da sociedade brasileira. As três particularidades que podem ser resgatadas dos autores, a saber, ciclos de crescimento efêmeros, elitistas e sem substancialidade (Caio Prado Jr.); perpetuação de uma sociedade racista e patrimonialista (Clóvis Moura); e a simbiose “ornitorrinquica’, isto é, uma sociedade que não consegue superar as estruturas do atraso e, por isso mesmo, não tem nem identidade e nem projeto (Francisco de Oliveira), convergem e se alastram como uma epidemia, infectando todos os processos sociais e alijando as possibilidades reais de desenvolvimento, seja urbano, seja na superação das desigualdades raciais. O legado da simbiose atraso/moderno para as relações raciais e o planejamento urbano Da breve exposição de uma pequena parcela daquilo que Maricato (2011b) chamou de “interpretes da sociedade brasileira” (exceto Clóvis Moura de quem a autora não trata), pode-se perceber a formação de um capitalismo dependente, desigual e combinado – nos termos desenvolvidos por Trotsky e retomados por Francisco de Oliveira – que tem na propriedade privada da terra sua principal manifestação. Decorre, portanto, que os conflitos e a territorialização da população brasileira se dará a partir deste traço específico. A urbanização e a industrialização no Brasil estão imbricadas com a questão da terra e sua propriedade privada, ou seja, a urbanização brasileira é marcada pelos privilégios de acesso a terra. Desde 1850 com a Lei de terras , o latifúndio influi de maneira decisiva os rumos do país e a apropriação privada da terra vai sendo recolocada e regulamentada para garantir as prerrogativas dos latifundiários, agora renovados e atualizados para melhorar mascarar a concentração indevida de terras. No começo do século XX já havia a tentativa de, através de decretos, resolver os problemas de habitação, principalmente tentando criar um padrão satisfatório de moradia sem levar em conta a realidade social. Em São Paulo, no início do século XX ocorre, por exemplo, uma periferização, isto é: 5. Tese segundo a qual existiriam dois “Brasis” estruturalmente antagônicos, um moderno e rico e outro atrasado e pobre. (MANTEGA, 1990 127 “... combinação do lote precário e irregular na periferia urbana com a autoconstrução da moradia. Uma nova alternativa de moradia popular é implementada pela dinâmica pr6pria de produção da cidade e não pelas propostas de regulação urbanística ou de política habitacional, mostrando que, enquanto os projetos de leis constituíam idéias fora do lugar, um lugar estava sendo produzido sem que dele se ocupassem as idéias”. (MARICATO, 2012, p.151). A lei de terras, concomitante com a lei Eusébio de Queiroz – que proibia o tráfico interatlântico de escravos – faziam parte de um “pacote” com a finalidade de modernizar o Brasil sem romper com a lógica estamental e arcaica até então em voga. Essas leis, ao mesmo tempo em que tornava mais caro o acesso e a manutenção do escravo, já apontando para uma futura abolição, também criava uma legislação que impedia o futuro escravo liberto, ou simplesmente negro livre, ter acesso à terra. A estes obstáculos, somava-se a política de imigração, fruto do planejamento que pretendia “embranquecer” a população com a falsa justificativa de suprir e qualificar a mão-de-obra, reproduzindo a retórica eugenista européia assim como os planos de embelezamento descritos por Flávio Villaça (1999) que privilegiavam a paisagem urbana, sendo, pois, elitista e seletivo: apenas a classe dominante possuía e impunha sua proposta urbana de caráter europeu. A “europeização” e “embelezamento” no Brasil abrangiam tanto o território quanto as pessoas; pois significava transformar a paisagem conforme os preceitos das elites racistas ainda não preocupadas com a eficiência de um ambiente racionalizado e voltado para a produção. Assim como neste momento histórico, o conflito advindo do escravismo tardio era claro, isto é, a contradição senhor/escravo ainda não havia perdido completamente seu caráter político (MOURA, 1988, p.240), na medida em que se desenvolve, um incipiente operariado que impõe alguns limites às classes dominantes, a estratégia de dominação deveria ser reelaborada de forma tal que ficasse mais difícil ser caracterizada (VILLAÇA, 1999, p.199). Com a decadência da sociedade agrária, principalmente por conta da crise da economia cafeeira, uma nova sociedade racional e industrial urge a surgir. Sem romper com o passado, a classe dominante passa do embelezamento para a eficiência para o capital, isto é, para a “cidade produção” (VILLAÇA, 1999, p.193). Para tanto era preciso negar o atraso, ainda que o absorvesse e funcionalizasse. Porém como efetuar uma política tendo em vista o moderno sem romper com o atraso? Três hipóteses parecem razoáveis no plano ideológico: i) importando teorias e planos estrangeiros sem vínculos com a realidade brasileira; ii) através de uma “política do esquecimento”, rompendo com o passado apenas do ponto de vista ideológico e; iii) Criando elementos de integração nacional de maneira à despolitizar o debate em torno das mazelas e conflitos sociais. Em relação ao planejamento urbano que se desenvolve com a crise dos planos de embelezamento, “as idéias fora do lugar” – isto é: “uma suposta regulação que se 6. A lei de terras era um obstáculo ao livre acesso da terra por parte da massa da população pobre, inclusive por parte dos ex-escravos, daqueles que viessem ser libertados da escravidão. Em oposição à lei da colonização aprovada nos EUA na mesma época (a reforma agrária norte-americana) em que as terras do oeste foram abertas à livre ocupação dos 128 colonos, mediante supervisão e controle do governo. (MARTINS, 1997). quer universal, baseada em modelos exógenos e se nenhum vínculo com a realidade é imposta a população como solução para problemas outros que não aqueles que realmente a afligem” (MARICATO, 2012, p.122) não significa uma nova estratégia. Ao contrário, repetem a mesma lógica de funcionar como um esquema de dominação sem necessariamente vincularem-se às mudanças concretas. O modelo racionalistaprogressista cujo principal expoente é Le Corbusier, ditou o padrão de planejamento urbano no começo do século e teve seu ápice com a construção de Brasília. Aos racionalistas-progressistas se contrapunham os culturalistas, reacionários, que propunham a volta aos valores pré-industriais. Roberto Monte-mór afirma que: “O principal ponto em comum entre as duas correntes que se opõem, aliado à visão de desordem e a busca do moderno, é a incapacidade de reconhecer na cidade o espaço precípuo da luta de classes” (MONTE-MÓR, 2008, p.36). O que significa um embate puramente conceitual e apolítico. Pensa-se em resolver os problemas urbanos desconsiderando as forças que movem a sociedade. Na medida em que a burguesia urbano-industrial assumia cada vez mais o domínio da sociedade brasileira em substituição à aristocracia rural (VILLAÇA, 1999, p.202) a cidade industrial necessita ser não só bela, mas eficiente. É neste sentido que os planos ficam mais discursivos e menos reais porque se afastam dos interesses imediatos e irrelevantes (do ponto de vista social e “público”, por assim dizer) das classes dominantes. Segundo Monte-mór: “... à medida que as forças modernas do capitalismo penetram os espaços econômicos subdesenvolvidos, vão sendo buscadas, na experiência do mundo desenvolvido, as abordagens existentes para os problemas errados” (MONTE-MÓR, 2008, p.34). Isto é, em países como o Brasil, a urbanização é feita de fora para dentro, já que o que prevalece é a inserção submissa no capital mundializado. Neste período, é o capital industrial que rege as relações econômicas mundiais e o Brasil precisa dançar conforme a música. O urbanismo, neste sentido, é mais um bailarino interpretando a sinfonia da ideologia dominante. Quando transposta ao campo de análise das relações raciais, a ruptura é apenas em parte epistêmica, já que o elemento racial, biológico e negativo – no que tange à miscigenação – torna-se cultural e positivo, mas a ideia de “raça” não é superada. A positividade da miscigenação é, portanto, cultural, mas não garante ao negro o lugar de cidadão, além do que, esta positividade coaduna-se tanto ao ideal de “embranquecimento”, agora pelo viés da mistura e não mais pela exclusão do negro e importação do trabalhador europeu; quanto ao escamoteamento do conflito racial por uma suposta ideia de fluidez entre as raças. Neste sentido, as políticas do esquecimento, que negam o passado, nem tão passado assim, cumprem a função de tornar a realidade perene, portanto, sem história e nem devir; e redundam no esquecimento da política, ou seja, na privatização da vida, como lembra Adauto Novaes: “... o esquecimento da coisa pública em proveito do privado.” (NOVAES, 2006, p.15). São estas políticas que vão orientar a implementação das “ideias fora do lugar” de que trata Ermínia Maricato, esquecem-se os processos históricos reais que se desenvolveram no Brasil para viabilizar projetos que nada tinham de real. Assim como nas relações raciais todo passado escravista cruel fica esquecido ou é romantizado na tentativa de erigir o “Brasil moderno”, no planejamento urbano as mazelas sociais historicamente construídas são desconsideradas e, quando emergem no debate, os planos perdem importância e se transformam apenas em discursos. A realidade local e os conflitos existentes passam a ser desconsiderados 129 em detrimento de uma planificação exógena e uma produção basicamente teórica (MARICATO, 2012, p.173). Já os elementos de integração nacional, dentro da estratégia funcionalista, criam mecanismos simbólicos escamoteadores da realidade tendo em vistas um pretenso projeto nacional. Se no planejamento urbano, a matriz modernista-funcional e o racionalismo técnico que se pretendia universal em nome do “progresso” do povo brasileiro, remetiam a um ambiente apolítico, autoritário e centralizado, nas relações raciais gestava-se o conceitual teórico que redundaria no mito da democracia racial7, fundante da moderna sociabilidade brasileira. Mesmo não citando o termo propriamente, foi Gilberto Freyre seu principal articulador conceitual, em especial nas obras Casa-grande & Senzala e Sobrados e Mocambos em que narra a decadência da oligarquia nordestina e sua adaptação aos tempos mais modernos: “No contexto da urbanização, a arquitetura colonial da casa-grande cedeu lugar aos sobrados modernos e à falta de planejamento de políticas públicas nas cidades brasileiras, determinando o novo lugar da população pobre, em sua maioria mestiça e negra: as favelas, antes denominadas malocas ou mocambos.” (SANTOS, 2009, p.49). A democracia racial serviu de bandeira dos governos autoritários como exemplo de harmonia entre os povos fundadores em uma época de guerras étnicas pelo mundo ao mesmo tempo em que despolitizava o debate sobre as desigualdades raciais, subsumindo estas às desigualdades de classe. Vimos, portanto, a importância de se pensar criticamente a realidade brasileira como forma de se contrapor ao status quo e sua influência na análise dos processos de planejamento urbano e das relações raciais, na próxima seção analisaremos as convergências, rupturas e permanências destes processos com as relações raciais. Convergências, rupturas e permanências. Analisados em uma perspectiva não mais dual, como processos paralelos, mas imbricados na atual configuração do espaço na sociedade brasileira, as relações raciais e o planejamento urbano que emerge desta sociedade racista, resultam em abissais desigualdades socioeconômicas e socioespaciais entre negros e brancos, remetendo a população negra aos piores empregos e aos piores espaços urbanos. Renato Emerson dos Santos buscando situar a dimensão espacial das relações raciais, sustenta que mesmo havendo um a negação sistemática da dimensão biológica do conceito de raça nas diferenças humanas, esta continua sendo um princípio regulador de comportamentos e relações, produzindo desigualdades, portanto, “... reconhecer a igualdade biológica não necessariamente impulsiona reconhecimento da igualdade social.” (SANTOS, 2008, p.40). Neste sentido, utilizando o conceito de colonialidade desenvolvido por outros autores (Quijano e Grosfoguel), vai afirmar que a modernidade capitalista acontece no mesmo tempo em que a colonialidade se impõe, isto é, um sistema de hierarquias que vai regular as relações no capitalismo de tal forma que mantém as distinções sociais (abstratas na forma, mas concretas na relação) operando ante uma aparente igualdade formal. Quijano (2007, p.47) aponta que neste sistema de hierarquias, 7. A democracia racial teria como fundamento uma dialética entre senhor e escravo, braços e negros, que possibilitaria a alteração da ordem social e a mudança de papéis, pelo menos no plano cultural (BRYM, 2009). A questão é que a 130 dialética, apenas no plano cultural, é absolutamente funcional à opressão. “cor” é uma construção social mais antiga e mais concreta (do ponto de vista do mundo físico) que a ideia de “raça”. A última se difunde como forma de dominação no capitalismo e se relacionam diretamente com a divisão social do trabalho. Ainda que haja diversas formas de hierarquias (de classe, sexual, racial, geográfica e etc.) não há hierarquias entre hierarquias, resta então à compreensão dos eixos e das múltiplas relações e manifestações destas hierarquias que se concretizam em contextos diferentes. (ibidem, p.42). Isto significa que no caso especifico do Brasil a relação classe/raça opera num contexto preciso, historicamente determinado, cumprindo uma função hierárquica no estabelecimento de posições sociais. Para o autor a regulação não é a mesma em todos os contextos nem obedece a um padrão operante. Citando Grosfoguel o autor vai definir as “áreas duras” e “áreas moles” das relações raciais. As áreas duras são aquelas em que o pertencimento racial tem mais impacto, frequentemente mais negativo para os negros, como por exemplo, no trabalho. Já as áreas moles são aquelas em que a cor/raça importa menos e por isso, são mais valorizadas como no campo do lazer (música, futebol). Afirma o autor: “Esta coexistência de momentos e lugares onde há posições distintas e padrões distintos de interação racial é que permite que o mesmo indivíduo, que seleciona narcisisticamente com base em pertencimento racial no balcão de empregos, possa retornar para sua rua e se encontrar com um amigo negro. A ambigüidade no comportamento deste indivíduo revela uma construção espacial que é resultante de um “aprendizado” social: ainda que inconscientemente, ele “sabe” onde a raça, a cor, o pertencimento racial é importante como critério (de seleção) regulador das relações sociais e onde não é – afinal, um erro no trabalho pode lhe custar seu emprego, e um erro nas relações de amizade pode lhe custar o reconhecimento e laços afetivos.” (ibidem, p.46). Raça pode, para o autor, estar ou não entrelaçada com outras variáveis, independente mesmo das relações de classe, neste sentido existem fronteiras visíveis e invisíveis no espaço marcado pelas interações sociais que dão o tom contextual da forma como se corporificará as relações raciais em determinado lugar. Também aponta que há a presença marcante do passado das relações raciais no espaço que permitem tanto a corroboração das desigualdades e das clivagens, como uma resistência e luta antirracista. É importante, portanto, que busquemos formas de compreender a espacialidade das relações raciais para situá-las no contexto dos espaços e dos territórios, no caso aqui específico, a segregação socioespacial. Sobre segregação socioespacial, analisando o caso de São Paulo, são interessantes as observações de José Sette Whitaker Ferreira: Se há como indica o professor Kabenguele Munanga, uma espécie de “racismo à brasileira”, existente, porém não confesso, é fácil supor que ele se expresse também na configuração do espaço. Os pesquisadores Eduardo Rios e Juliana Riani (2007), da UERJ, mostraram que em São Paulo, no ano 2000, as áreas que concentram as camadas mais ricas e cuja porcentagem de pobres varia (segundo as áreas de ponderação) de 1,6% a 9,6% da população 131 são também aquelas onde a porcentagem de negros está sempre abaixo de 13,7% dos habitantes, chegando a 3,8% em algumas áreas. Os bairros periféricos, onde se situa a maioria dos assentamentos precários, com uma população de pobres que vai de 19,8% a 58,6%, são também os bairros dos negros, que representam de 26% a 58% dos habitantes. Se considerarmos a origem étnica e geográfica, e a segregação e o preconceito para com a população migrante nordestina que fez a cidade desde meados do século XX, a correlação entre a segregação étnico-racial e a social fica ainda mais evidente (FERREIRA, 2011, p.78). Um dos corolários de tal exclusão social é a degradação territorial de uma população que sobra, e por isso mesmo, se apropria como forma de sobrevivência daquilo que sobra. Neste caso, sobram encostas de morro e áreas ambientalmente sensíveis. Nestas áreas, transformadas em aglomerados de favelas, a violência penaliza os jovens. Além do que todos os indicadores de qualidade de vida são mais baixos. Essa realidade é mascarada em diversos níveis institucionais para dar lugar uma cidade ideal, reconhecida como ideal e tratada como única. Há, portanto, um vínculo indissociável entre o padrão de uso e ocupação do solo, caracterizado por desigualdades socioespaciais e o desenvolvimento das relações raciais no Brasil, caracterizadas por desigualdades socioeconômicas e socioculturais. A prevalência da população negra em favelas segundo o IPEA (PINHEIRO, 2011) expõe esta realidade. Trata-se de uma localidade mais precária carregada de estigmas que se torna única opção para pessoas com baixa condição socioeconômica. Como afirmou Rolnik (2007, p.87), “Como, no Brasil, a questão racial “não existe”, os conflitos aparecem mais como tensões territoriais do que como tensões raciais”, e neste sentido, o estigma recai, discursivamente sobre o lugar e não sobre as pessoas. Do ponto de vista da ideologia da “cidade do pensamento único”, a responsabilidade por tal degradação é a disfuncionalidade criada pelos movimentos populares, porém, a invasão e ocupação de terras no Brasil não é fruto de movimentos populares, é antes uma prerrogativa das elites e uma solução informal do mercado imobiliário para as terras “fora” do lugar, isto é, fora da legislação. O crescimento da ilegalidade encarnada nas favelas não pode, como salienta Maricato (2012), ser remetida às lideranças populares taxadas como baderneiras e subversivas, mas fruto de um desenvolvimento urbano seletivo e segregador, que não por acaso é funcional ao capital. A convergência entre as relações raciais e o planejamento urbano, portanto, remete à degradação relacional, social, urbana e ambiental; a permanência é de uma sociedade que, mesmo quando olha pra frente, não consegue escapar do legado do passado, porque nunca se estruturou de modo a romper de fato com este. Na próxima seção discutiremos aquilo que entendemos ser o resultado desta convergência nas desigualdades socioespaciais entre negros e brancos na região do ABC. Segregação socioespacial na região do ABC Como exemplo do acima exposto, a saber, a convergência das relações raciais com o 132 planejamento urbano e o espaço produzido/apropriado em territórios urbanos, iremos demonstrar alguns aspectos da segregação socioespacial na região do Grande ABC paulista. Para tanto utilizaremos dados do Censo Demográfico de 2010 do IBGE para os chamados “aglomerados subnormais”. A Região do Grande ABC situa-se na Região Metropolitana de São Paulo e é composta por sete municípios: Diadema, Mauá, Ribeirão Pires, Rio Grande da Serra, Santo André, São Bernardo do Campo e São Caetano do Sul. Segundo o sítio na internet da Agência de desenvolvimento Econômico do Grande ABC, a região é o berço da indústria automobilística no Brasil e o quinto mercado consumidor. Com uma economia extremamente dinâmica, seja no setor de serviços, no comercial e, principalmente, no setor industrial, o ABC tornou-se lugar privilegiado para análise de processos de reestruturação produtiva e rearranjos econômicos. A região possuía, em 2010, segundo o Censo Demográfico do IBGE, 2.551.328 habitantes em 827 Km², sendo 899.590 negros e 1.651.738 não negros. Se comparado aos resultados nacionais, a população negra do ABC é menor que a mesma no Brasil, respectivamente 35,3 % e 50,7 % do total da população, talvez em razão da atração de imigrantes em meados do século passado para o trabalho na indústria da região. Quadro 1 - População relativa de negros e não negros (2000-2010) e incremento absoluto e relativo da população negra entre 2000 e 2010 no Grande ABC 2000 Município Diadema Mauá Ribeirão Pires Rio Grande da Serra Santo André São Bernardo do Campo São Caetano do Sul Total 2010 Incremento absoluto e relativo da população negra Negros Não Negros Negros Não Negros 40,9% 33,6% 28,4% 59,1% 66,4% 71,6% 50,1% 42,9% 34,9% 49,9% 57,1% 65,1% 47.358 56.503 9.840 32,5% 46,2% 33,2% 42,2% 57,8% 54,4% 45,6% 8.294 53,0% 20,3% 79,7% 27,5% 72,5% 54.198 41,1% 27,8% 72,2% 33,9% 66,1% 63.551 32,5% 10,7% 89,3% 12,7% 87,3% 3.960 26,5% 27,9% 72,1% 35,3% 64,7% 243.704 37,2% Fonte: IBGE, Censos Demográ icos de 2000 e 2010 (Resultados Gerais da Amostra). Elaboração própria. Nota: A categoria “não negros” abrange brancos, amarelos e indígenas, enquanto a “negros” abrange pretos e pardos Mesmo não sendo um percentual tão significativo quanto o nacional, observase um importante incremento na população negra no ABC no período 2000-2010, 243.704 pessoas que correspondem, em termos percentuais médios, a 37,2 %. Incremento este que não pode ser explicado pelo crescimento vegetativo ou mesmo por grandes migrações, mas que tem como principal fator um ambiente cultural e institucional mais propício para a auto-afirmação racial/étnica. As políticas afirmativas das duas últimas décadas e, com mais força na década passada, contribuíram, sem dúvida, para algo mais próximo de uma sociedade multirracial de classes que muitos defendem que já existe desde a abolição no país. Sem entrar neste debate, o fato é que um melhor ambiente cultural ainda não é suficiente para mitigar significativamente 133 as desigualdades raciais. Os quadros abaixo demonstram a distribuição da população negra tanto nos aglomerados subnormais8, quanto em regiões mais valorizadas imobiliariamente. Não obstante o crescimento nesta última década da população negra, esta continua menor em relação à população não negra na região do ABC. Porém, quando verificamos a ocorrência da população negra nos aglomerados subnormais nesta região, constatamos sua prevalência. Os gráficos acima demonstram que a população negra é maioria nos aglomerados subnormais do ABC. A concentração maior da população negra nos aglomerados subnormais, recorte territorial de características urbanísticas mais precárias e com uma população com menor renda, denota uma pior condição socioeconômica desta parcela da população, já que comparada à população total dos municípios se encontra em menor número. Conclusão Aqueles traços históricos que caracterizam a sociedade brasileira estão, ainda hoje, presentes. Não se trata de investigar o desenvolvimento histórico da sociedade brasileira ou do planejamento urbano por simples “curiosidade’ histórica. Se trata, sim, de tentar perceber aquela mesma desumanização que foi imposta aos trabalhadores negros escravizados, aos trabalhadores negros livres com baixos salários e à grande parcela da população negra moradora das cidades que penam no seu dia-a-dia pela falta de condições urbanas básicas de vida (saneamento, mobilidade, trabalho, habitação e etc.). Esta desumanização iniciada no passado embrutecia tanto os oprimidos quanto os opressores, impedindo estes últimos de perceberem a prerrogativa ontológica do ser social desenvolvida por Marx9 em que o livre desenvolvimento de cada um é condição necessária para o desenvolvimento de todos e vice-versa, ou seja, a elite brasileira não se humanizou ao ponto de – seja no planejamento urbano, nas relações raciais ou em qualquer outro processo social – comandar um desenvolvimento ao mesmo tempo endógeno e qualitativo. A longa escravidão que perpassou a maior parte da história do território brasileiro gerou uma problemática racial que, se bastante estudada nas ciências 8. O IBGE assim de iniu aglomerados subnormais para o Censo Demográ ico de 2010: “O setor especial de aglomerado subnormal é um conjunto constituído de, no mínimo, 51 (cinqüenta e uma) unidades habitacionais (barracos, casas...) carentes, em sua maioria de serviços públicos essenciais, ocupando ou tendo ocupado, até período recente, terreno de propriedade alheia (pública ou particular) e estando dispostas, em geral, de forma desordenada e densa. A identi icação dos Aglomerados Subnormais deve ser feita com base nos seguintes critérios: a) Ocupação ilegal da terra, ou seja, construção em terrenos de propriedade alheia (pública ou particular) no momento atual ou em período recente (obtenção do título de propriedade do terreno há dez anos ou menos); e b) Possuírem pelo menos uma das seguintes características: urbanização fora dos padrões vigentes - re letido por vias de circulação estreitas e de alinhamento irregular, lotes de tamanhos e formas desiguais e construções não regularizadas por órgãos públicos; e precariedade de serviços públicos essenciais. Os Aglomerados Subnormais podem se enquadrar, observados os critérios de padrões de urbanização e/ou de precariedade de serviços públicos essenciais, nas seguintes categorias: a) invasão; b) loteamento irregular ou clandestino; e c) áreas invadidas e loteamentos irregulares e clandestinos regularizados em período recente. (IBGE, 2011). 9. MARX, K.; ENGELS, F. O manifesto do partido comunista. Porto Alegre: L&PM, 2001. p.62. 134 Gráϐico 1 - População relativa (%) em aglomerados subnormais no ABC por cor ou raça (2010) Fonte: IBGE, Censo Demográ ico de 2010 (Resultados do Universo). Elaboração própria. Notas: A categoria “outros” abrange amarelos e indígenas, enquanto a “negros” abrange pretos e pardos. Nos municípios de Rio Grande da Serra, Ribeirão Pires e São Caetano do Sul não foram de inidos setores subnormais e, consequentemente, não foram veri icadas ocorrências de aglomerados subnormais. Gráϐico 2 - Percentual de brancos, negros e outros que residiam em aglomerados subnormais no ABC em 2010 (em relação ao total da população de cada categoria) Fonte: IBGE, Censo Demográ ico de 2010 (Resultados do Universo). Elaboração própria. Notas: A categoria “outros” abrange amarelos e indígenas, enquanto a “negros” abrange pretos e pardos. Nos municípios de Rio Grande da Serra, Ribeirão Pires e São Caetano do Sul não foram de inidos setores subnormais e, consequentemente, não foram veri icadas ocorrências de aglomerados subnormais. 135 sociais e na história, pouco tem sido considerada em outras áreas do conhecimento. Na produção teórica do planejamento urbano, e principalmente nas práticas, este tema, em geral, tem ficado à margem do debate. Desconhecer ou não considerar a dimensão racial das mazelas urbanas brasileiras é de certa forma reproduzir “as idéias fora do lugar”, pois aquela parcela da população mais afetada com os processos de urbanização precária, no trabalho, na mobilidade, na habitação, no saneamento e etc., não por acaso é negra. A discriminação e o racismo tão presentes e sutis no urbano brasileiro, na medida em que não são devidamente reconhecidos como tal e como tal combatidos (com políticas específicas e universais, respectivamente, ações afirmativas no trabalho e na educação e políticas de habitação e urbanização de favelas, por exemplo), a tendência é que a degradação urbana e o aprofundamento das práticas discriminatórias se perpetuem. Bibliografia BRYM, Robert...[et al.] Sociologia: sua bússola para um novo mundo. São Paulo: Cengage Learning, 2009. CHAUÍ, Marilena. Brasil: mito fundador e sociedade autoritária. São Paulo: Fundação Perseu Abramo, 2000. DAMATTA, Roberto. “Digressão: a fábula das três raças, ou o problema do racismo à brasileira”. In: DAMATTA, Roberto. Relativizando: uma introdução à antropologia social. 4ª ed. Petrópolis: Vozes, 1984. pp. 58-85. DEÁK, Csaba. “Acumulação entravada no Brasil e a crise dos anos de 1980”. In: DEÁK, Csaba; SCHIFFER, Sueli R. (orgs.) 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Professora Adjunta, Universidade Federal de Viçosa – MG/Brasil, E-mail: [email protected] RESUMO Este estudo buscou compreender as novas dinâmicas de organização do trabalho artesanal inseridas no contexto econômico brasileiro atual, considerando as mudanças nas conformações desse tipo de trabalho ao longo da história. Neste estudo, propusemos uma análise da organização do trabalho artesanal a partir de cinco classi icações, a partir da adaptação dos conceitos do SEBRAE, sendo elas: artesãos individuais, grupos informais de produção artesanal, núcleos de produção artesanal familiar, empreendimentos solidários, empresas artesanais. Pudemos perceber que cada uma dessas formas de organização apresenta peculiaridades, como o envolvimento dos familiares e interações entre os membros inseridos na atividade, o local onde a mesma é realizada (coincidindo ou não com o âmbito doméstico) e o nível de “formalização”. O aprofundamento teórico sobre o funcionamento desses modelos permitiu o início de um debate sobre a compreensão das novas dinâmicas de organização da atividade artesanal, contribuindo futuramente para uma avaliação dos programas e das políticas públicas que envolvem esse tipo de trabalho. 140 PALAVRAS-CHAVE Novas formas de organização do trabalho. Trabalho artesanal. Informalidade. 8 1 ABSTRACT This study sought to understand the new dynamics of organization of craftsmanship inserted in the current Brazilian economic context, considering the changes in the conformations of this type of work throughout history. In this study, we proposed an analysis of the organization of craftsmanship from ϔive classiϔications, based on the adaptation of the concepts of SEBRAE, namely: individual artisans , informal groups of artisanal production, family craft production centers, solidarity enterprises and craft enterprises. We realized that each of these forms of organization presents peculiarities, such as the involvement of family members and interactions between members inserted in the activity, the place where it is performed (coinciding - or not - with the domestic space) and the level of “formalization”. The theoretical study on the functioning of these models allowed the start of a debate on the new understanding of the dynamic organization of artisanal activity, contributing to an assessment of future programs and public policies that involve this kind of work. KEY-WORDS Urban Planning; Race Relations; Great ABC Region. 1. INTRODUÇÃO É difícil precisar a origem do trabalho artesanal, mas pode-se dizer que ele sempre esteve ligado à habilidade do homem de transformar artefatos em objetos carregados de aspectos sociais. Até a Idade Média, o trabalho artesanal foi marcado por um tipo de produção familiar e residencial, uma vez que o local de trabalho coincidia com o ambiente doméstico e as pessoas envolvidas na sua produção faziam parte de um grupo que, apesar de não ser constituído apenas por membros de um mesmo tipo sanguíneo, podia ser considerado familiar, já que dentro dele eram estabelecidas relações de confiança, respeito e de socialização. As crianças eram enviadas por seus pais a uma “oficina-residência”, organizada num sistema de guildas, na qual havia basicamente três níveis hierárquicos: mestres, jornaleiros e aprendizes. O mestre acompanhava de perto as atividades do aprendiz, mas não apenas aquelas relacionadas à produção: ele representava também a figura paterna, se tornando responsável pela socialização do iniciante (SENNET, 2009). O trabalho artesanal sofreu mudanças em sua organização ao longo dos anos, devido, principalmente, a dois grandes acontecimentos: a Revolução Industrial, ocorrida no século XVIII, que ocasionou o deslocamento da atividade produtiva do ambiente doméstico para um ambiente fabril/industrial, reforçando assim a divisão social do trabalho (devido à simplificação dos processos, tornando-os, aparentemente, mais independentes do trabalhador) e a divisão sexual do trabalho (devido ao homem “sair de casa para trabalhar”, configurando-o como provedor da família, e à permanência da mulher em casa, responsabilizando-a inteiramente pela organização do lar e cuidado dos filhos); posteriormente, na década de 1970, a Revolução Tecnológica ocasionou novas transformações no mundo do trabalho, sendo marcada pela reestruturação produtiva e pela mudança no perfil da classe trabalhadora: houve uma redução do proletariado fabril tradicional (devido à redução dos postos de trabalho diante da substituição da mão-de-obra humana por mão-de-obra mecanizada) e a consequente expansão do setor de serviços (ANTUNES, 2003; GRISCI; BESSI, 2004). Apesar de o Brasil não ter vivenciado esses acontecimentos com a mesma intensidade dos países europeus, as transformações ocorridas diante desses acontecimentos históricos repercutiram no cenário econômico nacional e na forma de organização do trabalho artesanal nesse país. No início da nossa história, o trabalho artesanal brasileiro esteve inicialmente associado ao trabalho escravo e indígena, sendo considerado degradante pela sociedade em formação no período colonial. Porém, a partir dos anos 1990, diante da intensificação das transformações no mundo do trabalho no país e de um cenário econômico marcado pelo desemprego estrutural, ele passou a ser considerado como possibilidade estratégica de empregabilidade e geração de renda, ganhando a atenção de instituições governamentais e não governamentais. Desde os anos 2000, o trabalho artesanal tem sido uma atividade desenvolvida por diferentes grupos em busca do aumento da visibilidade do pequeno trabalhador no cenário econômico nacional por meio da efetivação de políticas públicas, entre as quais se destacam o incentivo ao micro empreendedorismo, à agricultura familiar e às atividades não formais baseadas em um a lógica diferente da produção capitalista, sendo estas inseridas no setor de economia solidária. Diante desse contexto, o objetivo desse estudo foi compreender as novas 141 dinâmicas de organização do trabalho artesanal inseridas no contexto econômico brasileiro atual, procurando, especificamente, identificar como estariam estruturadas as diferentes formas de organização do trabalho artesanal e comparar as especificidades de cada uma delas. 2. O TRABALHO ARTESANAL O trabalho artesanal tem sido organizado de diversas formas ao longo da história, assumindo características econômicas, sociais e políticas distintas, de acordo com o contexto em que está inserido. Neste tópico, contextualizaremos essas mudanças em nível global e nacional. 2.1 Contextualização global Na Idade Média, a atividade artesanal era basicamente familiar e o local de trabalho coincidia com o âmbito doméstico. A “oficina-residência” era organizada num sistema de guildas1, baseadas basicamente em três níveis hierárquicos masculinos: mestres, jornaleiros e aprendizes. O aprendiz era acompanhado de perto pelo mestre na realização de suas atividades. Em um prazo de aproximadamente sete anos, ele deveria apresentar o chef d’oeuvre, trabalho que demonstraria as habilidades fundamentais absorvidas pelo aprendiz. Uma vez que obtivesse êxito, ele se tornaria jornaleiro e trabalharia por mais cinco a dez anos, até que fosse capaz de demonstrar que estava em condições de assumir o título de mestre. Para isso, era necessário apresentar outro trabalho, dessa vez mais elaborado, o chef d’oeuvre élevé, por meio do qual tinha de demonstrar competência gerencial e mostrar confiança como futuro líder. A maior compreensão da atividade caracterizava o desenvolvimento de capacitações e reafirmava a autoridade do mestre, cujo veredicto era definitivo e raramente contestado (SENNET, 2009). Com o advento da Revolução Industrial, houve um deslocamento do trabalho, antes realizado no ambiente doméstico, para um ambiente fabril/industrial, provocando assim mudanças tanto no sistema de produção artesanal, quanto no então universo doméstico. Entre elas se destacam: a introdução de novas tecnologias, ligadas à produção capitalista, que possibilitou a produção em massa facilitando a aquisição de bens que antes seriam de difícil acesso para a “classe baixa”; a divisão social do trabalho, por meio da qual os processos industriais simplificaram aparentemente o trabalho operário tornando-o mais independente da habilidade do trabalhador, ocasionando aumento do número de trabalhadores não-qualificados ou semiqualificados; a divisão sexual do trabalho, com a saída do homem da casa em busca de sustento da família, e a mulher permanecendo no ambiente doméstico, se responsabilizando pela organização do lar e pelo cuidado dos filhos (ALVES, 2011). A partir da consolidação do sistema capitalista na Europa, devido à Revolução Industrial, o trabalho passou a ser visto como o principal gerador de valor na sociedade, sendo o único meio para obtenção de sucesso econômico, e começou a tomar forma de emprego ou trabalho assalariado. De acordo com os estudos de Marx (1971), o 1. “Federação de o icinas autônomas, cujos proprietários (os mestres) geralmente tomavam as decisões e ixavam as exigências de promoção das funções inferiores (jornaleiros, ajudantes temporários ou aprendizes).” (Lopez, 1971 apud 142 Sennet, 2009, p.71). trabalho passa a ser entendido como mercadoria e o trabalhador, suprimido do seu saber-fazer, explorado através do único valor que possuía: sua força de trabalho. O trabalho, gradualmente, passou a ser criador de riquezas, e totalmente investido de conotação econômica. Consequentemente, ele sofreu alterações no seu significado, deixando de ser uma atividade de realização individual e um esforço que satisfaz, para transformar-se em mercadoria no mercado universal criado pelo capitalismo vigente (KRAWULSKI, 1998). A partir dos anos 1980, os países de capitalismo avançado foram marcados por profundas transformações no mundo do trabalho, ocorridas a partir da Revolução Tecnológica, que compreenderam o desenvolvimento de alta tecnologia, da automação, da robótica e da microeletrônica, cuja inserção nas fábricas ocasionou mudanças relacionadas principalmente às relações de trabalho, entre elas a diminuição do “proletariado industrial tradicional” e, consequentemente, aumento das formas desregulamentadas de trabalho (ANTUNES, 2006; ANTUNES 2003; GRISCI et al, 2004). Uma das características marcantes dessa reestruturação produtiva foi a diminuição do proletariado industrial tradicional e, consequentemente, o aumento de “formas desregulamentadas de trabalho, reduzindo fortemente o conjunto de trabalhadores estáveis que se estruturavam através de empregos formais” (BIHR, 1998; BEYNON, 1998 apud ANTUNES, 2003, p. 55). A reestruturação produtiva do trabalho, aliada à globalização e à introdução de novas tecnologias, colaborou com o aumento do desemprego, o desaparecimento de empregos permanentes e, consequentemente, com o aumento do número de excluídos do mercado de trabalho (GRISCI et al, 2004). 2.2 O caso do trabalho artesanal no Brasil Todos os acontecimentos apresentados acima repercutiram no cenário brasileiro, a partir de 1970, com o aumento do desemprego, a degradação salarial e a precarização do trabalho que se apresenta nas formas de trabalho informal, temporário ou parcial, ocasionando o aumento das possibilidades de empregos sem registro em carteira e criando assim condições de “instabilidade”, no que se refere à falta de proteção e de cidadania plena devido à perda de direitos trabalhistas (MATSUO, 2011). Em resposta a essa situação, percebe-se uma movimentação dos indivíduos, que tentam se reorganizar a fim de continuarem garantindo a sua renda, mesmo que não seja no trabalho dito “formal”. No Brasil dos anos de 1990, como consequência das transformações ocorridas no mundo do trabalho e do esvaziamento rural e das cidades de pequeno porte, iniciouse um movimento de valorização do artesanato como forma alternativa de fixação dos indivíduos por meio de estratégias de empregabilidade e geração de renda. A partir de então surgiram iniciativas tanto governamentais quanto não governamentais cujos discursos são de valorização da cultura local como forma de fortalecimento da identidade regional, bem como a estruturação da atividade baseada na coletividade e na participação ativa dos artesãos. Algumas iniciativas criadas nesse período têm grande influência sobre o setor artesanal ainda hoje, dentre as quais se destacam: o Programa Brasileiro de Artesanato (PAB) e o Programa SEBRAE de Artesanato (PSA), em nível nacional; a EMATER-MG, a ONG Central Mãos de Minas e as Associações de Circuitos Turísticos, em nível estadual. 143 Assim, estudos têm apontado o trabalho artesanal como uma atividade com forte potencial econômico, cultural e social (SANTOS et al, 2010; SANTOS, 2010; VIEIRA FILHO et al, 2006; RORIZ, 2010; MASCÊNE et al, 2010), e consequentemente como possibilidade de contribuição para o desenvolvimento local. Por outro lado, a partir de uma análise histórica brasileira, percebe-se a falta de estímulo à produção artesanal no país desde o período colonial, época em que os portugueses estavam voltados para a extração de ouro e diamantes, não demonstrando nenhum interesse em estimular outro tipo de atividade econômica. O artesanato já era praticado pela população indígena que aqui se encontrava, sendo considerado, portanto, “inferior” à cultura dominante (no caso, a cultura portuguesa). Posteriormente, as atividades artesanais passaram a ser praticadas por escravos de ganho que aprendiam ofícios para atender às necessidades dos colonizadores, sendo vistas, então, como forma de penitência (RUIZ, 2010). No atual contexto econômico brasileiro, apesar dos incentivos em termos de programas que buscam a valorização da cultura local e a geração de emprego e renda, os artesãos têm se organizado em um mercado competitivo em busca de lucros com base na produção em larga escala, ao mesmo tempo em que contam com um mercado de trabalho em transformação, necessitando se reorganizarem para que possam comercializar seus produtos, sem perder suas características peculiares. Hirata (2001) apud Silva et al. (2010) aponta que essa realidade contribui para o aumento de negócios informais realizados no próprio espaço doméstico, a fim de que os trabalhadores consigam conciliar trabalho doméstico e trabalho remunerado. Nesse cenário, a atividade artesanal pode ser interpretada erroneamente como “refúgio dos desempregados” ao ser considerada uma possibilidade de geração de renda momentânea (durante a espera pela entrada no setor formal, por exemplo). Isso se deve ao fato de ela apresentar um baixo custo de investimento e uma aparente flexibilidade tanto em questão de horários quanto de local de produção, podendo ser então conciliada com outra fonte principal de renda. A fim de entender como o trabalho artesanal tem se organizado no cenário brasileiro atual, foi feito um levantamento bibliográfico referente às formas existes de organização dessa atividade e seus resultados serão apresentados no tópico seguinte. 3. AS FORMAS DE ORGANIZAÇÃO DO TRABALHO ARTESANAL NO BRASIL CONTEMPORÂNEO A discussão teórica a respeito do trabalho artesanal é bastante complexa visto que o termo apresenta diferentes conceituações que variam de acordo com a perspectiva de cada autor. Ele pode ser definido pela natureza da produção (em algumas definições o “feito à mão” é essencial, sendo considerado às vezes até como “rudimentar”, em outras permitem o uso de equipamentos e instrumentos tecnológicos desde que a atividade seja predominantemente manual), pelas características (habilidade, destreza, qualidade e criatividade) inerentes a quem excuta a atividade, pelos aspectos ambientais (a partir do momento que a escolha de matérias-primas procede de recursos sustentáveis) e culturais (no sentido de que todo artesanato, então, deveria expressar a cultura de onde é produzido), entre outras. Neste estudo, o trabalho artesanal será considerado sob o ponto de vista 144 do trabalho, mais especificamente no que se refere à sua organização. Propomos, portanto, a seguinte definição: o trabalho artesanal se refere ao processo de produção de um determinado produto em que o(s) sujeito(s) envolvido (s) participa(m) das etapas de produção, desde a escolha da matéria-prima até a comercialização do produto final, em que haja conhecimento prático (expertise), o domínio, por parte do(s) sujeito(s), englobando assim o trabalho. A partir desse conceito, buscamos classifica-lo de acordo com as suas formas de organização. Para tanto, nos baseamos na discussão apresentada pelo SEBRAE2 e propomos a seguinte categorização: artesãos individuais, grupos informais de produção artesanal, núcleos de produção artesanal familiar, empreendimentos artesanais solidários e empresas artesanais. Cada um desses grupos será apresentado a seguir. 3.1 O artesão individual Nessa classificação, englobamos os artesãos, artistas e trabalhadores manuais, analisados separadamente pelo SEBRAE. Neste estudo, entendemos por artesão todos aqueles indivíduos que participam diretamente nas etapas de produção, independente do “nível de aprendizagem” (mestre ou aprendiz) e do “nível de criatividade” (artista ou não). É essencial, entretanto, o domínio das técnicas por parte do(s) sujeito(s) e o conhecimento prático (expertise). Os artesãos individuais não necessariamente trabalham sozinhos, porém a ajuda de outras pessoas que não estejam envolvidas na atividade não as torna necessariamente um artesão. O artesão que trabalha em sua casa, por exemplo, concilia o local de produção e o seu espaço doméstico podendo se deparar com situações em que a atividade artesanal deverá ser interrompida para resolver atividades domésticas. Geralmente, esse tipo de artesão trabalha no próprio ambiente doméstico, já que sua produção é pequena (por ser feita por apenas uma pessoa), sendo possível adequar os espaços. Em relação à sua (in)formalidade, eles podem se organizar sem registros formais3 (o que é bastante comum, principalmente no caso de aposentados ou pessoas que possuem outros empregos), bem como se registrarem como autônomos ou como empreendedores individuais. Esta última opção tem sido incentivada principalmente pelo SEBRAE, por oferecer diversos tipos de benefícios, como será apresentado no item 3.5 deste artigo. Porém, cada caso deve analisado considerando as necessidades e especificidades de cada artesão para que se possa chegar a uma forma de registro que melhor atenda seus objetivos. Um artesão cujo ofício não é a principal fonte de renda muitas vezes prefere não “se formalizar” para evitar a burocracia. Outros, porém, que têm suas atividades artesanais como principal fonte de renda, vêem a 2. O SEBRAE aborda o Artesanato a partir: das categorias dos produtos de acordo com seu processo de produção, sua origem, uso e destino (arte popular, artesanato, trabalhos manuais, produtos alimentícios, produtos semi-industriais e industriais, artesanato indígena, artesanato tradicional, artesanato de referência cultural, artesanato conceitual), dos usos dos produtos artesanais (adornos e acessórios, decorativo, educativo, lúdico, religioso, utilitário), das tipologias de acordo com as matérias-primas utilizadas (natural, processada, reciclável/reaproveitável), da organização do trabalho (mestre artesão, artesão, aprendiz, artista, núcleo de produção familiar, grupo de produção artesanal, empresa artesanal, associação, cooperativa). 3. Especi icamente neste trabalho, entende-se por registros formais aqueles relacionados à documentação jurídica, como por exemplo, o cadastro nacional de pessoa jurídica (CNPJ). 145 “formalização” como um meio de expandir seu mercado consumidor uma vez que esta possibilita a emissão de notas fiscais facilitando a comercialização para empresas, instituições e organizações. 3.2 Grupos informais de produção artesanal Um grupo informal de produção artesanal engloba artesãos que se amparam em acordos informais, “como aquisição de matéria-prima e/ou de estratégias promocionais conjuntas e produção coletiva” (MASCÊNE et al, 2010, p.18). O termo “informal”, proposto para denominar este grupo, não está relacionado nem ao cadastro jurídico, nem à classificação utilizada pelo IBGE (Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística)4 ou pela OIT (Organização Internacional do Trabalho)5. Ele se relaciona apenas ao tipo de relação estabelecida entre os membros. Também podem ser inseridos nesse grupo, artesãos individuais que eventualmente se encontrem em um mesmo local para produzirem (como no caso de vizinhas que se reúnem na casa de uma delas para bordar, ou grupos de indivíduos – geralmente, jovens e/ou mulheres - que se reúnem para aprender um tipo de atividade artesanal em espaço coletivo destinado à comunidade local. Em ambos os casos, o trabalho artesanal apresenta mais um sentido de socialização do que necessariamente de produção) ou na aquisição de matérias-primas (artesãos que utilizam a mesma matéria-prima e realizam um pedido em quantidades maiores buscando a redução dos preços, por exemplo), sem necessariamente participarem de uma cooperativa ou associação. O fato da relação entre os seus membros ser mais “informal” sugere que os mesmos sejam mais próximos uns dos outros, priorizando a relação de confiança em detrimento de acordos jurídicos e/ou documentos escritos. 3.3 Núcleos de Produção Artesanal Familiar A força de trabalho do núcleo de produção familiar é composta por membros de uma mesma família, alguns com dedicação integral e outros com dedicação parcial ou esporádica (MASCÊNE et al, 2010). Os autores complementam que nesses casos: A direção dos trabalhos é exercida pelo pai ou pela mãe (dependendo do tipo de artesanato que se produza) que organizam os trabalhos de filhos, sobrinhos e outros parentes. Em geral não existe um sistema de pagamentos prefixados, sendo as pessoas remuneradas de acordo com suas necessidades e disponibilidade de um caixa único (MASCÊNE et al, 2010, p.17). 4. “Pertencem, ao setor informal todas as unidades econômicas de propriedade de trabalhadores por conta própria e de empregadores com até cinco empregados, moradores de áreas urbanas, sejam elas a atividade principal de seus proprietários ou atividades secundárias” (IBGE, 2003, p.16). 5. De acordo com a classi icação da Organização Internacional do Trabalho (OIT), estão na categoria “trabalhos informais” os autônomos, assalariados sem carteira, e as situações em que prevalece o trabalho familiar ou o domiciliar, como nos pequenos negócios e nas pequenas empresas. Teoricamente, esses trabalhadores estariam expostos às condições precárias de trabalho, no que se refere à falta de proteção e de cidadania plena (MATSUO, 2011), devido à 146 perda de direitos trabalhistas. Os produtores e/ou agricultores familiares6 são bons exemplos para essa discussão. Apesar dos núcleos familiares não estarem restritos à Zona Rural, é mais comum encontrarmos esse tipo de conformação nesse local, principalmente devido ao incentivo às atividades artesanais como forma de fixação da população nesse meio e como forma alternativa de geração e complementação de renda. Nesses núcleos, a mão-de-obra é essencialmente familiar podendo contar com a contratação de trabalho assalariado desde que o número de membros da família seja maior que o dos demais trabalhadores. No que se refere à formalização de núcleos de produção familiar localizados em área urbana, estes podem se organizar informalmente, (quando não há nenhum tipo de registro jurídico) ou formalmente, podendo estar registrado como Empresário Individual, conforme será apresentado no item 3.5 deste artigo. Entretanto, mesmo quando se configuram como empreendimentos formais, os núcleos familiares não devem ser confundidos com empresas familiares uma vez que a lógica de funcionamento e as relações entre os membros em cada uma delas são diferentes. Já na área rural, os núcleos familiares são amparados pela Lei nº 11.326, de 24 de julho de 2006 que estabelece as diretrizes para a formulação da Política Nacional da Agricultura Familiar e Empreendimentos Familiares Rurais. No que se refere à formalização de núcleos de produção familiar localizados em área urbana, estes podem se organizar informalmente, (quando não há nenhum tipo de registro jurídico) ou formalmente, podendo estar registrado como Empresário Individual, conforme será apresentado no item 3.5 deste artigo. Entretanto, mesmo quando se configuram como empreendimentos formais, os núcleos familiares não devem ser confundidos com empresas familiares uma vez que a lógica de funcionamento e as relações entre os membros em cada uma delas são diferentes. Já na área rural, os núcleos familiares são amparados pela Lei nº 11.326, de 24 de julho de 2006 que estabelece as diretrizes para a formulação da Política Nacional da Agricultura Familiar e Empreendimentos Familiares Rurais. 3.4 Empreendimentos Artesanais Solidários No início dos anos 2000, ganharam destaque propostas de geração de trabalho e renda baseadas nas discussões sobre a possibilidade de uma “outra economia”7 a partir dos setores populares em uma economia solidária. Desde então esse setor vem se desenvolvendo no Brasil e se constituindo como uma forte alternativa de trabalho e renda e inclusão social. Em 2003, durante o governo Lula, as iniciativas solidárias foram elevadas à categoria de política pública pelo Ministério do Trabalho e Emprego, conforme Lei nº 10.683/2003. No mesmo ano, foi criada a Secretaria 6. Neste trabalho usaremos o termo “produtor artesanal” em conformidade com o Decreto nº 44.133, de 19 de outubro de 2005 (MG de 20/10/2005), Art 4ª, Inciso VIII, que assim o de ine: “Produtor Artesanal e ou Agricultor Familiar: é a pessoa ísica que produza e ou manipule alimentos para ins de comercialização, e que esteja iliada a cooperativa ou associação”. Já o termo “agricultor familiar” é utilizado de acordo o Decreto nº 44.133, de 19 de outubro de 2005 (MG de 20/10/2005), Art 4ª, Inciso IX: “Agricultor familiar – além do disposto no inciso VIII: é a pessoa ísica que se dedica à atividade agropecuária, e que processa alimentos como forma de agregação de valor à sua produção, em consonância com os requisitos do Programa Nacional de Agricultura Familiar – PRONAF”. 7. Para maiores informações sobre este assunto, consultar as discussões sobre economia social (SACHS, 1986), socioeconomia (ETZIONI, 1995), economia solidária (LISBOA, 2005), economia descalça (MAX-NEEF, 1986), economia popular solidária (RAZETO, 1997) e economia solidária (SINGER, 2002) – leituras sugeridas por FELSKI et al (2010). 147 Nacional de Economia Solidária (SENAES) e, em 2006, o Conselho Nacional de Economia Solidária com objetivo de impulsionar o tema Economia Solidária no âmbito das políticas públicas federais (BARBOSA, 2008; SINGER, 2012). Estas novas formas de organização têm sido vistas como possibilidades de promoção do desenvolvimento não apenas no âmbito econômico, mas também social, político, cultural e ambiental (SOUZA, 2003; CUNHA, 2003), tornando-se expressivas as iniciativas econômicas solidárias ou populares solidárias (TIRIBA et al, 2004). Embora não se possa generalizar, elas apresentam alguns pontos básicos em comum, como: coletividade; solidariedade; democracia inclusiva e participativa; crescimento justo e apropriado. Os empreendimentos solidários abrangem atividades que estão fora do assalariamento formal, principalmente as experiências populares de pequeno porte, de caráter informal e de baixa rentabilidade como comércio ambulante, pequenas oficinas, serviços autônomos, o artesanato, entre outros (Cunha, 2003; Barbosa, 2008). Esse debate ganha importância no setor artesanal, uma vez que os artesãos têm se organizado de forma “informal” segundo as classificações governamentais, por exemplo, como autônomos, como microempresários (tanto de forma individual como pela formação de microempresas), além de se encontrarem também organizados de forma coletiva em setores que não são considerados nem formais, nem informais, como é o caso do setor da economia popular solidária. Destacam neste setor, as associações e cooperativas. A principal diferença entre as duas é que a primeira tem por finalidade a organização de pessoas com o intuito de desenvolver atividades de cunho cultural, político, esportivo, social, educacional, filantrópicos, ou seja, não apresenta fins econômicos; enquanto a segunda tem como principal objetivo viabilizar o negócio produtivo, ou seja, sua finalidade é essencialmente econômica (SEBRAE, 2009). Propomos o termo “empreendimentos artesanais solidários” para nos referirmos aos grupos de artesãos inseridos dentro dos setores populares da economia solidária e que consequentemente contribuem com aspectos culturais (por meio da comercialização de produtos característicos da região em que é produzido e/ou comercializado), sociais (por meio do reconhecimento dos seus produtos em nível local e, em muitos casos, regional) e/ou econômicos (por meio da geração e complementação de renda), por meio do trabalho artesanal. 3.5 Empresas artesanais As empresas artesanais abrangem os “núcleos de produção que evoluíram para a forma de micro ou pequenas empresas, com personalidade jurídica, regida por um contrato social (...). Empregam artesãos e aprendizes encarregados da produção e remunerados” (MASCÊNE et al, 2010, p.18). Para ter registro de empresa e se tornar um Empresário Individual8, o artesão pode se enquadrar como Micro Empreendedor Individual (MEI), Micro Empresa (ME) ou Empresa de Pequeno Porte (EPP). Micro Empreendedor Individual (MEI) Para se cadastrar como MEI, é necessário que o artesão trabalhe por conta própria, não participe de outra empresa como sócio ou titular e tenha faturamento 8. “O empresário individual (anteriormente chamado de irma individual) é aquele que exerce em nome próprio uma 148 atividade empresarial. É a pessoa ísica (natural) titular da empresa” (PORTAL DO EMPREENDEDOR, 2013a). anual no máximo até R$60.000,00. Ele pode ter um empregado contratado que receba o salário mínimo ou piso da categoria. Entre as vantagens oferecidas pela Lei Complementar nº 128, de 19/08/2008, está o Cadastro Nacional de Pessoas Jurídicas (CNPJ), que facilita a abertura de conta bancária, o pedido de empréstimos e a emissão de notas fiscais, além da isenção de tributos federais (Imposto de Renda, PIS, Cofins, IPI e CSLL), devendo pagar apenas o valor fixo mensal9 de R$34,90 (comércio ou indústria), R$38,90 (prestação de serviços) ou R$39,90 (comércio e serviços), que será destinado à Previdência Social e ao ICMS ou ao ISS, garantindo assim o acesso a benefícios como auxílio maternidade, auxílio doença, aposentadoria, entre outros (Portal do Empreendedor, 2013b). Micro Empresa (ME) e Empresa de Pequeno Porte (EPP) O artesão empresário poderá se enquadrar como MicroEmpresa ou Empresa de Pequeno Porte, desde que atenda aos requisitos da Lei Complementar 123, de 14 de dezembro de 2006, que apresenta a seguinte definição: Art. 3 º Para os efeitos desta Lei Complementar, consideram-se microempresas ou empresas de pequeno porte a sociedade empresária, a sociedade simples, a empresa individual de responsabilidade limitada e o empresário a que se refere o art. 966 da Lei n º 10.406, de 10 de janeiro de 2002 (Código Civil), devidamente registrados no Registro de Empresas Mercantis ou no Registro Civil de Pessoas Jurídicas, conforme o caso, desde que: I - no caso da microempresa, aufira, em cada anocalendário, receita bruta igual ou inferior a R$ 360.000,00 (trezentos e sessenta mil reais); e II - no caso da empresa de pequeno porte, aufira, em cada ano-calendário, receita bruta superior a R$ 360.000,00 (trezentos e sessenta mil reais) e igual ou inferior a R$ 3.600.000,00 (três milhões e seiscentos mil reais). (Lei complementar 123, 2006) 4. CONSIDERAÇÕES FINAIS Foi possível perceber que a construção social do conceito de artesanato no Brasil carregou um fardo de preconceito, de atividade menor e, desde então, de pouco valor social, o que repercutiu tanto no valor econômico dos produtos originários desta forma de produção quanto no lugar social ao qual os sujeitos envolvidos eram destinados, agravado ainda pelo modelo de desenvolvimento econômico adotado, que privilegiava o industrial e o urbano, em detrimento do feito a mão e do rural, símbolos de atraso e subdesenvolvimento. Somente a partir da crise estrutural do capital é que se começou a considerar outras possibilidades de geração de emprego e renda para a população à margem deste dito processo de desenvolvimento. Consequentemente, as outras formas 9. Os valores ixos mensais variam de acordo com o tipo de atividade exercida. Essas informações podem ser consultadas na tabela de ocupação da Resolução CGSN nº58, de 27 de abril de 2009, do Comitê Gestor do Simples Nacional (CGSN) que dispõe sobre o Microempreendedor Individual – MEI no âmbito do Simples Nacional. Disponível em: <http://www. receita.fazenda.gov.br/Legislacao/Resolucao/2009/CGSN/Resol58.htm>. 149 de organização do trabalho passaram a fazer parte das temáticas importantes de serem discutidas, como possibilidade concreta de inclusão de uma grande parte da população brasileira posta à margem do processo. O entendimento de como se organizam estas formas de trabalhar são recentes, e pudemos, a partir dos estudos bibliográficos, propor cinco classificações que levassem em consideração a contextualização do trabalho artesanal, bem como dos conceitos e classificações a ele relacionados, de forma a organizar um conjunto teórico que os situassem melhor nas discussões relativas aos aspectos sociais, de produção e de organização relacionados ao mundo do trabalho. Foi possível também estabelecer algumas considerações a respeito do modo como cada um desses grupos se organizam. O artesão individual, apesar de desenvolver sozinho o seu produto, conta com ajuda de membros externos que o auxiliam indiretamente no seu trabalho: seja auxiliando enventualmente em alguma das etapas de produção, seja realizando atividades (principalmente domésticas) que evitam que a atividade artesanal seja interrompida. Esse artesão pode estar inserido no mercado tanto formal quanto informalmente, de acordo com os seus principais objetivos e com o significado da sua atividade para si e para os demais membros da família. Nos trabalhos coletivos também é possível perceber diferenças. Podemos dizer que quanto mais próximo da caracterização de empresa, mais “rígido” deve ser o comportamento dos membros. No grupo de produção informal, por exemplo, os artesãos estabelecem acordos verbais, priorizando a troca de saberes, o lazer, a companhia um do outro, mais do que a produção em si. No núcleo familiar, mesmo que haja maior preocupação com prazos e com a qualidade final do produto, a função de cada membro não é extremamente rígida. Mesmo quando há definição de funções e horários entre eles, é possível fazer alterações de acordo com as contingências do cotidiano e com as necessidades individuais. Nas associações e cooperativas, existem acordos jurídicos pré-estabelecidos, criando uma relação de discricionariedade uma vez que os artesãos geralmente têm liberdade em relação à produção, mas por outro lado devem se sujeitar às exigências e obrigações propostas pelo Estatuto do empreendimento. Já as empresas são ainda mais inflexíveis uma vez que são regidas por estatutos, regimentos internos e manuais que buscam estabelecer regras de conduta tanto da gestão quanto das operações. As empresas analisadas neste artigo, justamente por serem artesanais, podem se diferenciar das outras no sentido de que são compostas por artesãos, que dominam as etapas de produção e possuem expertise, o que pode conferir maior liberdade na produção, já que os seus membros têm condições de revezar funções. Cada uma dessas formas de organização apresenta peculiaridades, como o envolvimento dos familiares e interações entre os membros inseridos na atividade, o local onde a mesma é realizada (coincidindo ou não com o âmbito doméstico) e o nível de “formalização”. No atual cenário político e econômico onde predominam organizações cujas conformações produtivas são baseadas no capitalismo, os artesãos buscam a melhor forma possível de se organizarem, de acordo com suas necessidades específicas. A classificação das formas de organização do trabalho artesanal em cinco formas 150 distintas permitiu a compreensão das peculiaridades da atividade, bem como das estratégias elaboradas por cada um dos grupos apresentados na tentativa de inserirem a si mesmos e os seus produtos econômica e socialmente no mercado atual. A partir dessa discussão será possível contribuir para a avaliação dos programas e políticas públicas que envolvem esse tipo de atividade, considerando as constantes transformações do mundo do trabalho. REFENCIAL BIBLIOGRÁFICO Antunes, Ricardo L.C. O caráter polissêmico e multifacetado do mundo do trabalho. Revista Educação, Saúde e Trabalho, v.11, n.1, 2003, p.53-61. ANTUNES, Ricardo L.C. Adeus ao Trabalho?: ensaio sobre as metamorfoses e a centralidade do mundo do trabalho. São Paulo: Cortez; Campinas, SP: Editora da Universidade Estadual de Campinas. 2006. ALVES, Ana Elizabeth Santos. Fundamentos históricos da separação entre trabalho de homem e trabalho de mulher: algumas notas. Revista HISTEDBR on-line [online], 41, 2011. Disponível em http://www.histedbr.fae.unicamp.br/revista/edicoes/41/art13_41. pdf. Acesso em julho de 2013. BARBOSA, Rosangela Nair de Carvalho. “Economia solidária: estratégias de governo no contexto da desregulamentação social do trabalho”. 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Professora do Mestrado em Gestão Social, Educação e Desenvolvimento local no Centro Universitário UNA. Belo Horizonte – MG/Brasil. E-mail: [email protected] 2. Professora do Mestrado em Gestão Social, Educação e Desenvolvimento local no Centro Universitário UNA - Belo Horizonte – MG/ Brasil. E-mail: [email protected]. 3. Membro da Associação Estadual de Cooperação Agrícola no Estado do Maranhão – AESCA – MA/Brasil, E-mail: [email protected]. 4. Membro da Cooperativa de Produção agropecuária Vitória – COPAVI – ES/Brasil. E-mail: [email protected]. 5. Membro da Associação de Cooperação Agricola do Estado De Ceará – ACACE – CE/Brasil. E-mail: [email protected]. br. 6. Membro do Núcleo de Extensão Sul do Piauí – PI/Brasil. E-mail: [email protected]. 7. Bolsista de Iniciação Cientí ica do Centro Universitário UNA – MG/Brasil. E-mail: [email protected] 154 RESUMO ABSTRACT Este trabalho foca os assentamentos da Reforma Agrária, geridos pelo MST. Visa ampliar o conhecimento das organizações coletivas, orientadas por princípios de cooperação e solidariedade, para a gestão das comunidades dos sem terra. A estrutura institucional modelada pelo MST prioriza relações autogestoras, democráticas e igualitárias. A geração de excedentes e a implantação de processos produtivos mais complexos impõem novos desa ios, relativos à manutenção dos princípios e valores originários e aos cuidados com o meio ambiente, en im, para sustentar a superioridade do político sobre o econômico, frente às decisões comunitárias. Pergunta-se: quais estratégias o MST adota para, frente a tais desa ios, conservar os valores e princípios originais, assim como, o seu compromisso com a construção de uma sociedade sustentável? Esta re lexão fundamenta-se na busca de referenciais teóricos e na recuperação dos problemas levantados em trabalhos de conclusão de curso em Administração por alunos, membros do MST, co-autores deste artigo. This paper deals with the organization of settlements, arising from agrarian reform, run by MST. It aims to expand the knowledge of collective organizations, under principles of cooperation and solidarity, for the management of communities that bring together landless and/or homelss people. In the management of settlements, MST models an institutional structure which prioritizes self-management, democratic and egalitarian relationships. The increased generation of surpluses and the implementation of more complex processes pose new challenges to the movement, when it comes to the maintenance of the originating principles and values relating to collective management, the egalitarian design and care for the environment, in short, to sustain superiority of the political over the economic regarding community decisions. The question that guides this reϔlection: which strategies does the MST adopt, facing such challenges, in order to preserve original values and principles, as well as its commitment to building a sustainable society? PALAVRAS-CHAVE Novas formas de organização do trabalho. Trabalho artesanal. Informalidade. KEY-WORDS Urban Planning; Race Relations; Great ABC Region. 1. Introdução Este artigo descreve o modelo adotado pelo Movimento dos Trabalhadores Rurais Sem Terra (MST) na organização dos seus assentamentos, decorrentes da Reforma Agrária no Brasil. Seu objetivo é contribuir para a ampliação do conhecimento sobre uma forma de organização coletiva, baseada em princípios de cooperação e solidariedade, para a gestão de comunidades formadas a partir da reunião de pessoas desprovidas de terra e/ou de teto. Com o fim de orientar a gestão dos seus assentamentos, o MST adota uma estrutura institucional fundadora de uma organização social e política, cujas prioridades são relações autogestoras, democráticas e igualitárias, às quais compreende-se contra-hegemônicas. O entendimento deste conceito, parte da ideia da globalização hegemônica neoliberal, caracterizada por um “[...] mesmo sistema de dominação e exclusão“, que faz com que, em um processo dialético, movimentos contra-hegemônicos se apercebam “[...] da existência de interesses comuns nas próprias diferenças [possibilitando a convergência] em combates contra-hegemônicos consubstanciadores de projetos sociais emancipatórios distintos, mas relacionados entre si”. (SOUZA SANTOS, 2003, p.9). Os princípios contemplados, nas iniciativas contra-hegemônicas, são: igualdade, na forma de distribuição equitativa da produção e participação de todos no processo decisório; solidariedade no usufruto, segundo as necessidades das pessoas, e na participação do processo produtivo, segundo as capacidades individuais; respeito à natureza, ao submeter as escalas produtivas e a tecnologia aos imperativos ecológicos. (SOUZA SANTOS e RODRIGUES, 2002). A luta política do MST visa, de fato, a construção de uma sociedade socialista, ao apresentar, segundo Machado (2008), características identitárias que fazem dos seus assentamentos “ilhas de resistência’ [ao neoliberalismo] espaços reais de construção de novas relações sociais e de produção, mesmo sob a hegemonia burguesa”. (MACHADO, 2008, p. 240). Isto os torna “redutos populares de contrahegemonia”, visto que, ao empunharem a bandeira da reforma agrária, seus membros assumem a oposição à burguesia agrária, apontam... [...] as contradições e limites do capitalismo [, sinalizam] formas de produção anticapitalistas [e universalizam] a luta como potencialmente pertencente a todos os trabalhadores explorados e expropriados pelo capital. É no marco contemporâneo dessas contradições e desafios que se encontram os sem-terra. (idem, p. 240-241) A evolução de vários assentamentos do MST, com o crescimento da produção, a geração de excedentes e a implantação de processos produtivos mais complexos, impõe novos desafios ao Movimento, com respeito à manutenção dos princípios e valores originários, relativos à gestão coletiva, ao projeto igualitário e aos cuidados com o meio ambiente. Enfim, que sigam considerando a superioridade do político sobre o econômico, frente às decisões comunitárias e que os sustente enquanto organizações contra-hegemônicas. Este artigo introduz uma reflexão sobre a condição atual de vários assentamentos da Reforma Agrária, geridos pelo MST, frente à inserção de sucesso no processo 155 produtivo e no mercado. Pergunta-se: quais estratégias os pensadores do MST adotam para enfrentar os desafios postos pelo desenvolvimento dos assentamentos a ele vinculados e para sustentar os valores e princípios originais, assim como o seu compromisso com a construção de uma sociedade sustentável? A sociedade sustentável, segundo Lester Brown do World Watch Institute (1980), é aquela que supre as gerações atuais, sem prejudicar as futuras (TAUTZ entrevista CAPRA, 2003). Contudo, esta definição não ensina o modo de alcança-la. Segundo Capra (idem, 2003, s/p), “a questão moral está clara, mas não concordamos com a questão operacional. Como saímos dessa alta atitude moral e chegamos ao nível prático das políticas”? Certamente que o consumismo, próprio ao sistema capitalista, não contribui para o alcance desta meta, assim como, o “modus operandi” do mercado na alocação dos recursos é contrário a soluções igualitárias. Por outro lado, os movimentos sociais, que reforcem e reposicionem o poder local, buscam implantar alternativas econômicas e sociais concretas “[...] emancipatórias e viáveis e que, por isso, deem conteúdo específico às propostas por uma globalização contra-hegemônica”. (SOUZA SANTOS e RODRIGUES, 2002, p. 23-24). Souza Santos e Rodrigues (2002) descrevem inúmeras e diversificadas práticas contra-hegemônicas, experimentadas no mundo todo, cujas viabilidades são atribuídas ao fato de saberem sobreviver mesmo sob o domínio capitalista, entretanto, preservando formas revolucionárias de conceber e organizar a vida econômica. A observação dessas práticas amplia o espectro do possível por meio da experimentação e da reflexão acerca de alternativas concretizadas em formas de sociedades mais justas, que observem a ideia de Gandhi, denominada “swadeshi”: [...] existe o suficiente para satisfazer a necessidade de todos, mas não para satisfazer a ambição de todos, uma alternativa ao desenvolvimento implica uma forma de ver o mundo que privilegie a produção de bens para consumo básico em vez da produção de novas necessidades e de artigos para as satisfazer a troco de dinheiro. (GANDHI, apud SOUZA SANTOS e RODRIGUES, 2002, p. 56). A difusão das iniciativas bem-sucedidas amplia o espaço onde se realizam formas de organização não capitalistas. (idem, 2002, p. 31). Estas alternativas põem ênfase na escala local, onde os atores centrais do desenvolvimento são as “comunidades organizadas que procuram seguir em frente”. O poder decisório sustenta-se na sociedade civil e despreza formas de produção capitalistas, bem como o controle do Estado (SOUZA SANTOS e RODRIGUES, 2002, p. 46-47). A via do mercado não é totalmente rejeitada para o alcance de objetivos de igualdade, liberdade e solidariedade. Souza Santos e Rodrigues (2002, p. 43) citam Le Grand e Estrin (1989) que defendem a possibilidade de o mercado se tornar uma forma de organização com objetivos socialistas. Certamente, os autores não se referem ao mercado autorregulado com seu potencial de aniquilar a humanidade, por meio da devastação da natureza e da destruição do ser humano. Mas, aquele submetido à reforma no regime de propriedade e das instituições, que acolha a apropriação das empresas pelos trabalhadores, transformando-as em cooperativas, sob novas formas de coordenação, tanto entre si quanto em relação às entidades estatais. 156 As prescrições para se lidar com a crise contemporânea, que defendam a maioria da população mundial, são conhecidas e dotadas até mesmo de certa simplicidade. Na realidade, as dificuldades de implementação encontram-se no caráter do homem, relacionadas a equívocos na escolha do caminho para o bem estar. Capra (2003) propõe um esforço de eco-alfabetização, para construir novos valores para a gestão dos recursos necessários à sobrevivência da humanidade, compatível com a preservação da natureza, pois, como acreditava Marx, o homem e a natureza compõem um todo indissociável. Coraggio (1994) e Singer (1998) apresentam propostas contra-hegemônicas, no ambiente urbano. Coraggio (1994) contempla a autoiniciativa das comunidades e a gestão pelos governos locais das necessidades básicas da população local. Além disso, recomenda o fortalecimento da economia popular urbana, teoricamente compatível com a globalização do capital. Esta economia é formada por unidades domésticas de trabalhadores em seus diversos tipos de organização, a partir da utilização de seu fundo de trabalho para a reprodução intergeracional da vida de seus membros – biológica e cultural – num crescente aprimoramento. (CORAGGIO, 1994, p. 237-38). Esta economia se fortaleceria sem desprezar as relações com os outros setores componentes da sociedade (instituições privadas, organizações não governamentais e Estado), bem como usufruiria das transferências financeiras (subsídios, doações, etc.) do setor mais bem estruturado da economia capitalista. Singer (1998) propõe a tomada de iniciativa pelo próprio desempregado, cabendo ao Estado forjar um novo setor de reinserção produtiva, por meio da fundação de cooperativas de produção e de consumo, nas quais se criariam oportunidades de trabalho. (SINGER, 1998, p. 122-135). Esta solução não capitalista relacionase a uma economia de caráter solidário, cujo formato parte do reconhecimento de que “a causa maior da debilidade da pequena empresa e do autônomo é o seu isolamento... o pequeno só é pequeno porque está sozinho”. (idem, 1998, p. 125). Os recursos potenciais para a realização deste modelo encontram-se junto à massa de trabalhadores desempregados, onde há ampla disponibilidade de capital humano com alto grau de diversificação. Esses trabalhadores oferecem a base gerencial e técnica necessária às novas empresas edificadas em moldes cooperativos. As manifestações contra-hegemônicas rurais capitaneadas pelo MST representam a reação ao processo excludente capitalista na área rural. Este artigo levanta as estratégias do Movimento para lidar com a evolução dos assentamentos e com o aumento da complexidade de seus processos sociais e produtivos, sem se afastar de seus valores e princípios originais. Para tanto, é realizada uma pesquisa bibliográfica sobre o modo de organização recomendado pelo MST e seguido nos assentamentos e extraída das monografias dos alunos do Curso de Administração, membros do MST (co-autores deste artigo), os problemas que se constituem em desafios de sua evolução, especialmente a produtiva. Este estudo demonstra que a inevitável inserção ao mercado, dos assentamentos dotados de sustentabilidade econômica, acontece com a fidelidade aos princípios originais, assegurada por um processo formativo nos valores solidários e cooperativos, pela práxis da convivência diária prévia à formação dos assentamentos e pela recitação frequente da “mística”, que os mantém vivos assim como o respeito pelo meio ambiente. 157 2. A contribuição do MST para a organização social contra-hegemônica no campo O MST foi fundado no início da década de 1980, em Cascavel no Paraná, por centenas de trabalhadores rurais, como um movimento social camponês autônomo em prol da luta pela terra, da implementação da reforma agrária e de transformações sociais mais abrangentes que contemplem todo o País. Seus fundadores são posseiros, meeiros, parceiros, pequenos agricultores e atingidos pelas barragens, trabalhadores “[...] desprovidos do seu direito de produzir alimentos [...]”. (MST, s/d, s/p). Estes trabalhadores repudiam o projeto “modernizante” no campo, fundado massivamente no uso de agrotóxicos, na mecanização, nos créditos rurais abundantes para os grandes proprietários, e que fortaleçam o controle dos grandes conglomerados agroindustriais sobre a agricultura brasileira. Os assentamentos da reforma agrária vinculados ao MST se organizam de modo a reverter o processo de aprofundamento da desigualdade no campo, decorrente da forma prevalecente que orienta a expansão capitalista, (AZAR, 2005), e a buscar uma forma de organização do processo produtivo adequada às realidades regionais. (ELIAS, 2010). Os números do Movimento, ao final da década passada, registravam 350 mil famílias assentadas e ainda as seguintes realizações: [...] mais de 400 associações e cooperativas que trabalham de forma coletiva para produzir alimentos sem transgênicos e sem agrotóxicos [,] 96 agroindústrias que melhoram a renda e as condições do trabalho no campo [e] oferecem alimentos de qualidade e baixo preço nas cidades, 2 mil escolas públicas em acampamentos e assentamentos que garantem o acesso à educação a mais de 160 mil crianças e adolescentes Sem Terras [e] que alfabetizaram 50 mil adultos e jovens nos últimos anos [, a oferta de] mais de 100 cursos de graduação em parceria com universidades por todo o Brasil (MST, s/d, s/p). Na organização dos seus assentamentos o MST adota o modelo cooperativo: aquele decorrente da “[...] reação de trabalhadores assalariados, principalmente operários industriais, à piora contínua das suas condições de existência, em contextos de conflito político explícito com a classe capitalista, o que conferiu a estas cooperativas nítido caráter militante”. (GERMER, 2010, p. 4). O tópico a seguir aprofundará neste modelo. 3. Uma breve história do cooperativismo mundial e o modelo cooperativo do MST A origem do cooperativismo coincide com a Revolução Industrial. A estratégia da cooperação foi adotada originalmente pela classe trabalhadora para agregar forças em favor da superação das péssimas condições auferidas por ela na indústria. Segundo Rios (2007), a primeira cooperativa (de consumo) foi organizada em 1844, por 28 tecelões pioneiros da cidade inglesa Rochdale. Esta iniciativa foi “[...] considerada a fonte do cooperativismo”, (RIOS, 2007, p. 22), e sucedeu aos movimentos socialistas 158 que contribuíram para o estabelecimento dos princípios orientadores de seu formato. Os principais foram o cartismo1 (1830/1840), responsável pelo caráter democrático da cooperativa, e o owenismo2, pelos princípios do mutualismo cooperativista. A metade dos fundadores da cooperativa de Rochdale teve origem no owenismo. (RIQUE, s./d.). Os sete princípios originais que, ainda hoje, orientam o cooperativismo foram introduzidos pela Cooperativa de Rochdalle, quais sejam: (1) governo democrático da sociedade, sendo concedido a cada sócio o direito a um voto (herança do movimento cartista); (2) sociedade aberta, com a participação societária condicionada somente à integralização de uma quota de capital mínima e igual para todos (evita privilégios para os sócios fundadores); (3) qualquer aporte incremental de capital, acima da média, por um sócio dá direito somente a uma remuneração proporcional, calculada com base em uma taxa de juros, sem aumentar a influência de seu proprietário no processo decisório (fiel ao ideário owenista); (4) distribuição das sobras da receita (deduzidas as despesas e os juros) entre os sócios, proporcional às compras feitas na cooperativa; (5) vendas à vista (em virtude de falência anterior); (6) compromisso de venda de produtos puros e de boa qualidade; (7) treinamento dos sócios nos princípios do cooperativismo; e (8) neutralidade política e religiosa (evita posições exacerbadas e contrárias dos sócios/trabalhadores com respeito a estes temas). A evolução da pratica cooperativa culmina, em 1995, no Congresso Mundial da Aliança Cooperativa Internacional, em Manchester, no qual se define o conceito de cooperativa, como uma “[...] associação autônoma de pessoas que se unem, voluntariamente, para satisfazer aspirações e necessidades econômicas, sociais e culturais comuns a seus integrantes, e constitui-se numa empresa de propriedade coletiva, a ser democraticamente gerida”. (OCB, 2009, p. 12). Neste mesmo ano são definidos os valores cooperativistas, quais sejam: ajuda mútua, democracia, igualdade, solidariedade, honestidade, transparência, responsabilidade social e preocupação com o semelhante. Com vistas ao fortalecimento da organização coletiva, o MST adota um modelo cooperativo próprio porque a ideia da cooperação, que anima a organização dos assentamentos do MST, vai além do benefício econômico que proporciona. Cooperar é trabalhar de forma sincronizada em busca do mesmo objetivo; sua prática, indubitavelmente, educa, desenvolvendo nas pessoas um senso participativo, humano e solidário [...] e se fundamenta nos valores humanos e na dignidade pessoal; é, atualmente, meio de adequação a um sistema econômico-social, que intenta, na união de pessoas com objetivos semelhantes [...]. (LEOPOLDINO, 2008, p. 11). Este cooperativismo é, em essência, um modelo de organização social, que consiste em organizar pessoas em torno de interesses comuns, para realizarem atividades de forma cooperada, com base na ajuda mutua, sejam elas de produção, consumo, educação, vida doméstica etc., com vistas no desenvolvimento conjunto de todos os atores participantes, observando os princípios democráticos. 1. Movimento social inglês da década de 30 do século XIX, que teve seu nome associado à Carta do Povo que pedia a inclusão política da classe operária ao Parlamento. 2. Movimento socialista utópico inglês do início do século XIX baseado nas ideias de reforma social e nas práticas ilantrópicas de Robert Owen. 159 O modelo cooperativo do MST busca ser fiel a duas questões centrais: a promoção da consciência crítica e a resistência ao modelo capitalista. (ELIAS, 2010). Para eleger seus princípios cooperativistas, o MST estudou experiências que se fundam nestas premissas, tais como, o Kolkhoz soviético; a Zadruga Eslava; a Comuna Popular Chinesa; a Ejido mexicana; as Cooperativas de Produção Agropecuárias cubanas e o Kibutz israelense. (CONCRAB, 2001). Além destas experiências estrangeiras, o MST se apropriou também do conhecimento gerado em experiências nos laboratórios experimentais brasileiros, sendo que o de Clodomir Santos de Morais (1984) teve grande influência nos estudos do Movimento. (AZAR, 2005). O caráter político do cooperativismo defendido pelo MST o diferencia de outras formas de organização do trabalho, cuja finalidade é enfrentar a crise no mercado de trabalho, mas que, entretanto, mantêm prioridades tipicamente capitalistas, relacionadas à perseguição de elevados índices de competitividade e priorizam a maximização do lucro. Assim, a constituição de cooperativas também se presta aos objetivos de fortalecer empreendedores de baixo poder de competição, plenamente inseridos no modelo capitalista, para melhorar suas posições individuais no mercado, ao realizarem conjuntamente operações específicas. Segundo Germer (2010, p. 4), O cooperativismo formou-se a partir de duas diferentes origens: por um lado, a partir da formação de associações de pequenos capitalistas, que evoluiram para a forma de cooperativas empresariais. Estas nunca foram organizadas na esfera da produção, mas apenas para a realização de operações complementares à produção, principalmente na comercialização e no processamento final de algumas matérias-primas, principalmente agrícolas. A motivação da formação destas associações é puramente comercial, com o objetivo de reduzir custos individuais nas operações complementares realizadas em grande escala. Cerioli e Martins (1998) atestam que o MST constrói um cooperativismo novo, de oposição, diferente e alternativo ao cooperativismo tradicional regido pela OCB. Para Dal Chiavon (1999), a criação de um sistema cooperativista desvinculado da OCB, permite a autonomia política dos assentados, em relação ao governo e às grandes corporações cooperativistas. Mas a cooperação não é só uma coalizão contrária ao sistema. Dentro do espaço em que se realiza, é um instrumento de enfrentamento de um modo de vida, em que se acirram valores individuais, por meio da introdução de novos valores e de novas relações de trabalho. Assim como, a garantia de desenvolvimento igualitário e justo para um coletivo de indivíduos, sujeitos deste processo. (CZYCZA, 2011, p.14). Na verdade, o MST adota a cooperação como a base de sustentação de uma proposta de organização que extrapola a perspectiva econômica, alcançando as perspectivas social e política. Cerioli e Martins (1998) destacam as diferenças existentes entre o cooperativismo tradicional e aquele implantado pelo MST. 160 Especificamente para o MST, a produção cooperativada é fundamental, sendo mesmo a base de sua proposta social, econômica e política. Extrapola as dificuldades conjunturais de desemprego para tornar-se uma das alternativas ao processo capitalista de produção e gestão. Neste sentido, aproxima-se das análises desenvolvidas por Marx. Em O Capital, o autor afirma que as cooperativas de trabalhadores seriam as primeiras formas de ruptura com o capitalismo, pois suprime-se a oposição entre capital e trabalho [...]. (MENEZES NETO, 2003, p. 78). Dentre elas, as mais importantes referem-se aos seguintes aspectos: o caráter político da sociedade em detrimento do econômico; a organização coletiva da gestão e do trabalho; a priorização da inclusão dos associados; a restrição à entrada de associados de grande porte; a distribuição das sobras; o incentivo ao conhecimento dos assuntos pertinentes e participação dos associados nos processos decisórios; a autonomia diretiva; e a descentralização administrativa de modo a funcionar de “baixo para cima”. (CERIOLI e MARTINS, 1998, p. 57). Estas diferentes características, entre outras, tornam o modelo MST alternativo, diferente e de oposição, em virtude das seguintes constatações: • Possibilidade de organização econômica sobre outras bases e valores, por meio da apropriação dos instrumentos de gestão pelos trabalhadores e da construção de um mercado popular solidário, que articula campo e cidade. • Direção coletiva e distribuição das sobras, proporcionalmente à participação do cooperado nas atividades. • Meta fundamental de resgate da dignidade dos sem-terra e do trabalhador, frente à sociedade capitalista, excludente. • Conscientização de sua base para a edificação de uma sociedade mais justa, ao demonstrar a possibilidade de novas relações sociais, baseadas no companheirismo e na solidariedade. Para fins de implantar seu modelo, o MST estrutura suas instituições próprias. Os estudos realizados junto às cooperativas socialistas e os princípios de Rochdalle fornecem o “modus operandi” para estas instituições. Assim, em 1989, surge o Sistema Cooperativista dos Assentamentos (SCA), especializado em organizar a produção dos assentamentos em todo o País, inicialmente para a sua autossuficiência, estimulando e disseminando a cooperação agrícola. Cabem, ao SCA, as seguintes responsabilidades: incentivar o desenvolvimento tecnológico; implantar os processos de transformação industrial ou da agroindústria; orientar a aplicação do crédito rural; assistir à comercialização. O SCA atua, também, “na organização política dos assentamentos, na conscientização e politização da base, [para] levar à mobilização social e articular lutas econômicas e políticas, bem como [contribuir] com o setor de massa”. (CERIOLI e MARTINS, 1998, p. 11). O cooperativismo estimulado pelo SCA prioriza o desenvolvimento do associado para a intracooperação (entre os associados) e para a intercooperação (entre as cooperativas), nas várias formas desenvolvidas por eles. As formas de cooperação praticadas nos assentamentos do MST evoluíram de arranjos muito simples, de troca 161 de serviço entre vizinhos e parentes, para a formação de cooperativas de prestação de serviços, ou de distribuição de linhas de crédito oficiais e de empréstimos das poupanças geradas nos assentamentos, ou de produção, ou, ainda, de implantação de unidades agroindustriais. (CERIOLI e MARTINS, 1998, p. 61). Os modos de organização dos assentamentos e destas cooperativas observam os seguintes principais aspectos: (1) a terra é posse do coletivo e não é individualizada; (2) a organização do trabalho se dá por setores, que fazem as divisões de tarefas internamente no setor; (3) a moradia das famílias é organizada em forma de agrovilas, ou seja, as casas ficam próximas umas das outras, sem divisão com cercas ou muros entre elas; (4) a distribuição de renda deve ser feita da maneira mais igualitária e justa possível, sem criar diferenças de renda entre os cooperados; (5) todas as decisões que dizem respeito a investimentos patrimoniais e sociais, planejamentos, mudanças, como quaisquer outros assuntos são discutidos e decididos pelo coletivo da cooperativa. (CZYCZA, 2011, p. 16) Finalmente, o Sistema Cooperativista dos Assentamentos (SCA) evolui para o Setor de Produção, Cooperação e Meio Ambiente (SPCMA) para assessorar as famílias assentadas na organização da produção, inovando, ao incrementar práticas comprometidas com a preservação do meio ambiente aos objetivos de autossuficiência dos assentamentos e de resistência ao modelo capitalista. Neste ato, o MST se compromete com a decisão de perseguir, na agricultura camponesa, além da sustentabilidade econômica, cultural, política e social, a ambiental. (MST, s/d). Este movimento é acompanhado de perto pela Confederação das Cooperativas de Reforma Agrária do Brasil Ltda. (CONCRAB), fundada em 15 de agosto de 1992 pelo MST para estreitar as relações institucionais com os assentados da reforma agrária, posto que sua linha de atuação envolva a prestação de assessoria, assistência técnica e acompanhamento dos processos de organização produtiva dos assentamentos, atuando aos níveis local, regional e estadual. (VILELA, 2002, apud SOUSA, 2011). 4. Alguns problemas contemporâneos das cooperativas rurais apoiadas pelo MST Na introdução ao seu trabalho de conclusão de curso, Rodrigues (2011, p. 12) relata: “[...] muitos grupos se organizam porque seus componentes possuem um alto nível de consciência, mas também é verdade que outros tantos se formam simplesmente por influência das lideranças, sem o envolvimento verdadeiro de todos os elementos”. Rodrigues (2011) refere-se à dificuldade de realizar plenamente nos assentamentos o ideal cooperativista, conforme a síntese proposta pelo MST, em virtude da falta de comprometimento de novos integrantes. O autor segue, afirmando: 162 Muito embora a organização cooperativista na agricultura [familiar] seja considerada a “melhor forma” para organizar a produção agrícola nas comunidades rurais, esta convicção ainda está longe de ser a práxis de todos os agricultores. Existe muita dificuldade de compreenderem todos os aspectos da cooperação, principalmente, os sociais e políticos. Neste contexto, se a organização cooperativista se afasta dos cooperados, ela restringe sua função a se ocupar de discussões econômicas, deixando de contribuir para o avanço do desenvolvimento mais amplo do modelo organizacional, inibindo-o. (RODRIGUES, 2011, p. 12). Com a introdução de processos agroindustriais e industriais de pequeno porte, a cooperação nos assentamentos ganha complexidade, incrementando notavelmente as oportunidades de divisão social do trabalho. Por outro lado, este avanço é responsável pelo surgimento de conflitos entre prioridades políticas e econômicas na organização social. A partir de 1989, Carvalho (1999) destaca uma ruptura do modelo de cooperação, até então, baseado em pequenas equipes de cooperação, movidas por objetivos diversos, alguns políticos. Então, percebe-se um desequilíbrio na distribuição das importâncias relativas dos temas constantes nos processos decisórios em favor dos objetivos econômicos, submetendo a cooperativa aos mesmos problemas sofridos pelas cooperativas tradicionais, o que dá origem a um a crise interna. Segundo Alencar, Grandi e Andrade (2001), estes problemas relacionam-se a duas grandes áreas da gestão de curto prazo: a operacional e a estratégica do planejamento, carentes de qualificações profissionais específicas, que saibam preservar o lugar dos aspectos políticos da cooperação nos processos decisórios, impedindo que as urgências econômicas os destituam. Apesar da natureza estrutural dos problemas apresentados, eles também podem estar relacionados com a tendência das cooperativas brasileiras de enfatizarem mais a dimensão operacional do que a dimensão estratégica do planejamento, na qual tanto os aspectos organizacionais, financeiros, de competitividade e a situação de integração da agricultura aos complexos agroindustriais fossem considerados. Para a análise de tais considerações, dois fatores podem ser mencionados: o caráter instrumental imediatista assumido pela cooperativa e a não profissionalização da sua administração. (ALENCAR, GRANDI e ANDRADE et al., 2001, p. 11). Com o fim de enfrentar a crise de qualificação, o MST passa a oferecer, por exemplo, os cursos de Técnico em Administração de Cooperativas (TAC), com os objetivos de aprofundar a cooperação nos espaços de assentamentos de Reforma Agrária e transformar os jovens assentados em gestores de cooperativas, qualificandoos política e tecnicamente e capacitando-os para intervenções bem embasadas nos debates internos. Por outro lado, nova inovação introduzida nos assentamentos do MST, os processos agroindustriais, proporciona a redução da dependência dos produtos 163 alimentícios em estado primário, garantindo, por meio do processamento, o aumento da diversidade e durabilidade, especialmente daqueles para o consumo familiar. Esta é uma vantagem importante, mas gera o problema da comercialização. O processamento agroindustrial, mesmo que em pequena escala, produz um excedente que precisa ser comercializado pelo assentamento para não interromper a dinâmica de produção, com o risco de perda de equipamentos, por desuso. Lidar com as dificuldades da comercialização, ao recorrer ao instrumento proporcionado pelo marketing, acessa os cooperados a recursos administrativos próprios da economia capitalista. Assim, tal e qual em um empreendimento capitalista, as cooperativas passam a considerar em suas análises para a comercialização do excedente fora dos assentamentos, os conceitos típicos da gestão mercadológica, quais sejam: potencial de mercado, pesquisa de mercado, viabilidade de mercado, público-alvo, clientes, mudanças em preferências, tendências, metas etc. Um estudo para uma cooperativa associada à produção agrícola em um assentamento do MST apresenta a seguinte problemática: [...] incapacidade de planejar a produção de forma contínua, pouca experiência na gestão de negócio por parte do grupo de mulheres, falta de conhecimentos específicos para fazer a análise de viabilidade de um produto no mercado, pouca experiência na área de vendas, desconhecimento de pontos estratégicos para comercialização dos produtos, ociosidade na capacidade instalada, resultado deficitário em decorrência da geração de receitas inferiores aos custos e às despesas. (NASCIMENTO, 2011, p.15). A geração de produção excedente, seja primária ou secundária, implica na introdução da demanda por geração de valor de troca, visto que este não se destina mais ao autoconsumo do assentamento – valor de uso –, mas sim à comercialização no mercado externo capitalista. (MIOR, 2008). Outro problema que aflige as cooperativas do MST, também decorrente do aumento da complexidade estrutural delas, se encontra no estabelecimento de modelos de remuneração dos cooperados aceitos como justos pelos seus beneficiários. Na verdade, trata-se do estabelecimento de critérios para a distribuição das sobras geradas pelas atividades produtivas desenvolvidas. O aumento da geração de excedentes de produção associado à maior complexidade das funções e à demanda por qualificações profissionais mais sofisticadas introduzem novos desafios para assegurar a satisfação dos cooperados com os retornos advindos de seus esforços. Por este motivo, os critérios de distribuição se alternam com o desenvolvimento das cooperativas. Por exemplo, são adotados critérios específicos, mais ou menos objetivos, relacionados à quantidade produzida, e/ou aos compromissos assumidos com as cooperativas, e/ou proporcionais ao tamanho das jornadas de trabalho e ao tempo de dedicação, e/ou referenciados na especialização e experiência do cooperado e/ou, considerando o comprometimento deste com os princípios que regem as cooperativas (naturismo, ecologismo e cooperativismo). (ESTIVALETE et al., 2010; PERIUS, 2000). 164 A elevação da renda das famílias é realidade nos assentamentos, principalmente onde as agroindústrias estão desenvolvidas. Uma pesquisa da FAO (Organização das Nações Unidas para Agricultura e Alimentação) aponta que a média de renda nos assentamentos é de 3,7 salários mínimos mensais por família, e onde as agroindústrias estão implantadas essa média sobe para 5,6 salários mensais por família. (MST, 2010, p.11). Quando se implementa a cooperativa, a distribuição das sobras se realiza de forma igualitária entre os produtores. Com a sua elevação acompanhada da crescente complexidade das atividades, o MST começa a enfrentar a necessidade de adequação do modelo de distribuição do excedente a uma condição de maior desenvolvimento produtivo do assentamento, assim como de maior dificuldade de satisfazer os diversos interesses e seus argumentos. 5. Considerações Finais Schumacher, em Capra (1982, p. 183) compara dois sistemas econômicos fundados em valores e metas diferentes: o sistema materialista ocidental mede o “padrão de vida” com base no consumo, as sociedades buscam “alcançar o máximo consumo associado a um padrão ótimo de produção”. Em oposição a esta ideia, o sistema budista prioriza o modo de vida correto e o bom senso, o que leva o sistema econômico a realizar o “máximo de bem estar humano com um padrão ótimo de consumo”. Entretanto, fatalmente, a sociedade evolui com as mudanças ambientais, e novos padrões culturais são introduzidos, afetando todo o processo social. Marx atribui um papel importante à natureza no processo produtivo, enquanto corpo inorgânico do homem. A existência humana acontece na e a partir da natureza, portanto a natureza é seu corpo, com o qual ele deve permanecer em contínuo intercurso se não quiser morrer. (CAPRA, 1982, p. 199). Mas o meio ambiente reage aos excessos do capitalismo, cujas consequências negativas atingem todos os setores da vivência humana, quais sejam: (1) desigualdade econômica e de poder entre as classes sociais, em virtude da separação entre capital e trabalho e da apropriação privada dos bens públicos; (2) formas de sociabilidade empobrecidas, em virtude das relações de concorrência que inibem pactos de solidariedade; (3) ameaça às condições físicas da terra, em virtude da exploração crescente dos recursos naturais e do padrão de consumo crescente para sustentar o sistema. (SOUZA SANTOS e RODRIGUES, 2002, p. 27). Os movimentos sociais reagem aos desacertos do modelo capitalista e o MST exemplifica, no campo, um modelo de organização social contra-hegemônico que reproduz os princípios eleitos por Souza Santos e Rodrigues (2002) para caracterizar estes tipos de iniciativas. Este, no Brasil, é um dos mais importantes movimentos sociais, atuantes após a reabertura política, ocorrida na década de 1980. Conforme demonstrado, em seus assentamentos, O MST prioriza a fidelidade à proposta original, de se constituir enquanto um modelo de organização que submete as categorias econômicas às políticas, no sentido de manter vivas as opções pela solidariedade, 165 cooperação, distribuição igualitária e produção ecológica. Em suas ocupações, o MST realiza iniciativas que transformam o latifúndio improdutivo, vazio da presença humana, em terra ocupada por pessoas que mudam o panorama da localidade, por meio da constituição de um assentamento, cujo caráter não é somente produtivo, e no qual se inicia uma dinâmica mobilizadora do desenvolvimento local. Conforme estabelece o MST, As áreas agrícolas reformadas não podem ser apenas lugares de produção e trabalho. Assentamento é um espaço para o conjunto de famílias camponesas viver, morar, estudar e garantir um futuro melhor à população. São conquistados direitos sociais que não são garantidos a todo o povo brasileiro: trabalho, casa, escola e comida. (MST, 2010, p.19). Prevalece, entre muitos membros do Movimento, a ideia da comercialização dos excedentes, também, comprometida com o modelo contra-hegemônico. Potencialmente, o sucesso produtivo abala este modelo organizacional. A colocação das sobras no ambiente externo ao assentamento pode implicar no estabelecimento de relações comerciais com o mercado hegemônico, ideológica e politicamente contrário aos princípios defendidos pelo Movimento. Felizmente, existem possibilidades alternativas de dar destinação útil às sobras, que evitem a submissão às leis do mercado não regulado e preservem as características da organização contra-hegemônica, quais sejam: a colocação do produto junto às prefeituras, às feirinhas solidárias e o estabelecimento de trocas em rede entre organizações produtivas de mesmas características. De qualquer forma, o MST se estrutura institucionalmente de modo a evitar na edificação dos assentamentos que a grande preocupação com a autossustentabilidade, afeta à seara econômica, submeta a importância da gestão política e do processo decisório, com respeito às questões sociais. Para este fim, o Movimento realiza práticas ritualísticas – “mística” – responsáveis por revigorar a identidade política que mantém, em sua organização, a fidelidade aos princípios e valores originais. A mística3 assegura a permanente recitação da ética que o torna organização produtiva diferenciada do mercado hegemônico. Cooperação e solidariedade no lugar da competição, valorização de todos os esforços individuais, gestão e trabalho coletivos no lugar do individual, consumo necessário e possível no lugar do consumo supérfluo, preservação do meio ambiente e vida saudável no lugar da devastação e do uso desenfreado dos recursos. Tais valores estão profundamente enraizados nas vidas dos assentados, desde as experiências vivenciadas no período de ocupação prévia à constituição dos assentamentos. Durante longos anos de convivência, sob condições de extrema precariedade, mas determinados a lutar pela terra, no enfrentamento da fome, do frio, da justiça, da polícia e dos jagunços, os sem-terra desenvolvem a pratica de tomadas de decisão em assembleias, nas quais realizam debates e avaliações 3. Ritual que contribui para a “[...] formação da identidade política de sem-terra [...], expressão religiosa que toma contornos políticos, chegando ao ponto de constituir-se num dos eixos que dão sustentação ao movimento na sua trajetória. É um elemento do fazer-se classe, acontecendo como resultado das experiências, no sentir e na articulação da identidade de seus interesses e contra outros homens cujos interesses se opõem aos seus”. (Thompson, 1987, apud 166 Vieira, 2008, p. 3). políticas coletivas, de modo a assegurar o sucesso da ocupação. “Chegam a viver [quatorze] anos embaixo da lona-preta e, sem dúvida alguma, é um exercício ‘pedagógico’ fundamental para a formação política de cada um. Nesse período, crianças, adolescentes, homens, mulheres, idosos “fazem” política diuturnamente”. (MACHADO, 2008, p.243). Então, respondendo à questão que deu origem a este trabalho, acredita-se que a luta por um modelo social contra-hegemônico, que privilegie condições de existência compatíveis com a justiça social, tem no MST seu maior protagonista brasileiro. Muito provavelmente, a inserção da produção de seus assentamentos no mercado mudará o mercado e não o contrário. A maneira como as convicções político-ideológicas estão arraigadas nos sem-terra conserva a autenticidade do movimento e viabiliza o alcance das metas de construção de uma sociedade mais justa. Referências ALENCAR, Edgard; GRANDI, Daniela Silva; ANDRADE, Débora Mesquita. Complexos agroindústrias, cooperativas e gestão [Online]. In: V Congresso de Ciências Humanas, Letras e Artes. Organização, gestão e trabalho. Anais... Ouro Preto: UFMG, 2001. Disponível: http://www.ichs.ufop.br/conifes/anais [Acesso em 1 abril 2011]. AZAR, Zaira Sabry. A organização da produção da Vila Diamante na luta pela terra no Maranhão. 169 f. 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BERLESE, Denise; 2 BASSO, Claudia Rafaela; 3. RENNER, Jacinta Sidegum; 4. SANFELICE, Gustavo Roese. 1. Doutoranda do Programa de Pós-graduação em Diversidade e Inclusão – Universidade Feevale, bolsista FAPERGS – CAPES. E-mail: [email protected]; 2. Bacharel em Design – FEEVALE. E-mail: [email protected]; 3. Professora e Coordenadora do Programa de Pós-Graduação em Diversidade e Inclusão na Universidade Feevale, avaliadora Ad Hoc do CYTED, E-mail: jacinta@feevale. br; 4. Professor titular da Universidade Feevale, membro do comitê cientí ico do GT Comunicação e Midía do Colégio Brasileiro de Ciências do Esporte desde 2003. RESUMO 170 ABSTRACT Esta pesquisa descritiva, com análise de dados sob o paradigma qualitativo teve por objetivo investigar a signi icação da prática do basquete para cadeirantes. Participaram desse estudo quatro praticantes de basquetebol em cadeira de rodas. A coleta das informações foi realizada por meio de entrevista semi-estruturada, que utiliza para a análise dos resultados a técnica de análise de conteúdo temática. A análise permitiu a estruturação de quatro categorias. Como resultados pode-se inferir que o basquete acaba sendo um com¬plemento do processo de reabilitação, como melhora do condicionamento ísico motor. Em suma, o basquete em cadeiras de rodas parece ter um papel central na vida das pessoas. This research is characterized as descriptive, with data analysis under the qualitative paradigm. The objective was focused on investigating the signiϔicance of basketball practice for wheelchair users. Four people with physical disabilities participated of the group, and all of them were practitioners of wheelchair basketball. Data collection was conducted through semi-structured interviews, for the analysis of the results the technique of thematic content analysis was used. The analysis allowed the structuring of four categories. In short, basketball in wheelchairs seems to have a central role in people’s lives. PALAVRAS-CHAVE Cadeirantes, atividade qualidade de vida. KEY-WORDS Wheelchair, physical activity sports, quality of life. ísico-esportiva, 8 1 INTRODUÇÃO A Declaração Universal dos Direitos Humanos, aprovada pela ONU em 1948, afirma que os direitos humanos valem para todos. Entretanto, em virtude das diferenças que apresentam em relação aos demais, as pessoas com deficiências possuem necessidades específicas a serem satisfeitas. Assim, a ONU estabeleceu, em 1975, a Declaração dos Direitos das Pessoas com Deficiências, o que se tornou o ponto de partida para a defesa da cidadania e do bem-estar desses cidadãos. Segundo relatório Mundial sobre Deficiência (2012), mais de um bilhão de pessoas em todo o mundo convivem com alguma forma de deficiência, dentre os quais cerca de 200 milhões experimentam dificuldades funcionais consideráveis. Nos pró¬ximos anos, a deficiência será uma preocupação ainda maior porque a incidência tem aumentado. De acordo com o IBGE – Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (2010) no Brasil existem 46 milhões de brasileiros com algum tipo de deficiência, o que significa que 24% da população brasileira apresentam alguma deficiência física, mental ou dificuldade para enxergar, ouvir ou locomover-se. Os dados do censo apontam ainda que 13.265.599 milhões de pessoas declararam ter mobilidade reduzida, correspondendo a 6,95% da população brasileira, sendo que destes, uma grande parcela é usuária de cadeiras de rodas. Noce, Simim e Mello (2008) expõe que poucos estudos abordam o sentido e significado da prática regular de atividades desportivas adaptadas, para indivíduos com algum tipo de deficiência. Em termos de contextualização histórica, o esporte adaptado surgiu no período pós-guerra como um serviço para reintegrar os mutilados e lesados medulares com limitações e deficiência decorrentes dos combates. Nesse período, foi de extrema importância à construção de centros de reabilitação e treinamento vocacional em todo o mundo. Os programas de reabilitação destes diferentes centros mostraram que os esportes auxiliavam na reabilitação dos veteranos de guerra que adquiriram algum tipo de deficiência (ANDRADE e CASTRO, 2010). No Brasil, a prática de atividade esportiva para pessoas com deficiência aumentou significativamente nos últimos dez anos, impulsionada pela concepção da inclusão social e pela maior popularidade e divulgação do desporto paraolímpico (BOAS et al, 2003). Para MONTANDON (1992) através do esporte é possível quebrar determinadas barreiras; proporcionar autonomia, independência e autoconfiança, necessários para a vida em sociedade. Considerando que cada modalidade esportiva tem um significado particular para o praticante, há diferentes formas de compreensão que derivam da origem cultural e das disposições dos indivíduos constituídas socialmente (BOURDIEU, 1990). Nesse sentido, cada sujeito se apropria do esporte de acordo com sua perspectiva e aspirações e transforma a sua prática a partir desse mesmo modelo (STIGGER; SILVA, 2004). Entretanto, é preciso ter claro também que o esporte se configura como um universo único e próprio de características específicas, mas que se desmembra em diversas formas de manifestação. Sendo assim, o esporte pode ter diversas significações para o indivíduo, desde uma agradável atividade até um meio de vida. As atividades esportivas, em sua essência, trabalham capacidades físicas como: força, velocidade, resistência, habilidade, agilidade, bem como, atuam de maneira positiva nas capacidades psíquicas. Toda prática esportiva é concebida na inter- 171 relação de um sentido (uma razão de ser, transmitindo valores) que se apresentam num determinado ambiente social (MARQUES, 2007). Tendo em vista a realidade da pessoa com deficiência, mais especificamente dos Lesados Medulares que são usuários de cadeiras de rodas, a LEME - Associação de Lesados medulares do Rio Grande do Sul, ao proporcionar o basquete em cadeira de rodas para seus associados surge como promotora e difusora de ações esportivas, auxiliando na reabilitação e na reinserção de sujeitos com lesão medular na sociedade. Tendo em vista esta perspectiva, expõe-se o problema de pesquisa que está fundamentado na seguinte questão: qual o sentido, significado da prática do basquete para cadeirantes? Portanto, nesta perspectiva, os objetivos deste estudo estão focados em compreender o significado da pratica do basquete para usuários de cadeira de rodas que integram o time de basquetebol da LEME. METODOLOGIA Esta pesquisa caracterizou-se como um estudo de natureza descritiva, de caráter qualitativo. Para Gonzáles (1997), o processo de investigação qualitativa é algo dinâmico que se expressa de forma contínua, e não se esgota em nenhuma forma de expressão. Implica que os sujeitos se relacionem neste processo dando lugar a uma comunicação na qual podem aparecer indicadores relevantes para a construção do conhecimento em quaisquer dos momentos concretos de investigação. Os aspectos éticos da pesquisa relacionada a este artigo estão baseados na resolução 466, de dezembro de 2012, do Conselho Nacional de Saúde. Esta proposta de investigação integra uma pesquisa mais abrangente intitulada “Acessibilidade para cadeirantes: da casa ao trabalho”, que obteve aprovação para sua execução pelo Comitê de ética em Pesquisa da Universidade Feevale sob protocolo de número 6.12.01.10.1867. O campo deste estudo foi a sede da LEME, localizada na cidade de Novo Hamburgo. A respectiva associação civil tem caráter filantrópico, sem fins lucrativos, de natureza assistencial às pessoas que foram acometidas de deficiência medular do Estado do Rio Grande do Sul e Pessoas com Deficiência Física. O grupo de colaboradores desta pesquisa foi integrado por quatro pessoas com deficiência motora em membros inferiores, usuários de cadeira de rodas, todos do sexo masculino, com idade superior a vinte anos, praticantes de basquetebol em cadeira de rodas no time da LEME. A fim de preservar a identidade dos colaboradores os mesmos terão um nome fictício. O principal instrumento para coleta de dados foi uma entrevista semi-estruturada. A entrevista utilizada teve caráter focalizado com um roteiro de tópicos relativos ao problema. Para Polit, Beck e Hungler (2004) nas entrevistas semi-estruturadas ou enfocadas o pesquisador utiliza-se de tópicos para que todas suas questões sejam respondidas, oportunizando ao participante liberdade de falar sobre esses tópicos. De acordo com Minayo (1992) durante as entrevistas o sujeito deve ter liberdade total para abordar o assunto sob o seu ponto de vista, permitindo tanto a obtenção de informações denominadas mais objetivas, como outras de caráter mais subjetivo, referentes às atitudes, opiniões e valores dos indivíduos entrevistados. No processo de produção do conhecimento, a entrevista deixa de ser uma técnica e convertese em um processo que dá sentido a unidade do todo o processo metodológico, 172 garantindo a continuidade das diferentes formas de expressão do sujeito perante os instrumentos, dentro do qual algumas expressões adquirem sentido para a interpretação (GONZÁLES, 1997). Neste estudo, a análise das informações foi realizada, utilizando a técnica de análise de conteúdo temática, proposta por Minayo (2004), que consiste em três etapas distintas: Pré–Análise: consiste na escolha do material analisado, realizando uma leitura exaustiva para impregnar-se de seu conteúdo, retomando as hipóteses e objetivos iniciais da pesquisa, no que diz respeito ao material qualitativo. Exploração do material: consiste na transformação dos dados brutos para a compreensão do texto, construindo índices para quantificação, classificando, agregando e escolhendo categorias teóricas e empíricas que especificarão os temas. Tratamento dos resultados obtidos e interpretação: os dados sofrerão operações estatísticas simples ou complexas que permitam destacar as informações obtidas, havendo variantes no tratamento dos resultados trabalhando com interpretação ao invés de inferências estatísticas. Minayo (2004) ainda afirma que fazer uma análise temática consiste em descobrir os núcleos em uma comunicação que tenham algum significado para o objetivo analítico visado. O material coletado do roteiro de entrevista foi transcrito de maneira a dar sentido à pesquisa, buscando respostas aos objetivos do estudo. Para analisar o conteúdo das informações foi necessária a elaboração de indicadores que orientassem a interpretação final. Este processo foi organizado no sistema de classificação de categorias para posteriormente serem abordados e discutidos (MINAYO, 1994). Com a análise dos resultados das entrevistas surgiram quatro categorias: identificação com o tipo de esporte, o impacto nos aspectos físicos, impacto da prática do basquete nos aspectos sociais, impacto do basquete na autonomia. Essas categorias serão tratadas a seguir. RESULTADOS E DISCUSSÃO Apresenta-se os resultados relativos à caracterização da LEME (Associação de Lesados Medulares - RS) tem por objetivo a promoção de ações de difusão e desenvolvimento da assistência social, reabilitação na vida social e no mercado de trabalho, promoção de atividades culturais, educacionais, culturais e recreativas e a criação de um banco de dados dos lesados medulares do Rio Grande do Sul. Sua missão é trabalhar na Reabilitação Física, Social e Emocional destas pessoas que se encontram em situação de vulnerabilidade social. Como campo deste estudo, o perfil dos colaboradores e os resultados oriundos das expressões verbais dos entrevistados e das observações do diario de campo originaram quatro categorias, sendo estas: identificação com o tipo de esporte, o impacto nos aspectos físicos, impacto da prática do basquete nos aspectos sociais, impacto do basquete na autonomia. Para preservar a identidade, os entrevistados estão sendo mencionados com nomes fictícios. O primeiro colaborador foi denominado como João, o segundo colaborador como Pedro, o terceiro colaborador será identificado como Joaquim e o quarto, e último colaborador, será chamado de Carlos. 173 Caracterização dos Entrevistados Os quatro cadeirantes que participaram da pesquisa são do sexo masculino. A média de idade dos praticantes da modalidade de basquetebol sobre cadeiras de rodas é de 35 anos e apenas um o cadeirante apresenta tetraplegia parcial, os demais são paraplégicos. Carlos é o colaborador que faz uso da cadeira de rodas há mais tempo (13 anos), e Pedro é o que há menos tempo pratica basquetebol (7 meses). Em relação ao treino individual, observou-se que todos os entrevistados praticam musculação além do basquete e Carlos pratica também a modalidade de natação. A média de treino que realizam com a equipe de basquete é de 2,25 vezes na semana. Apresentação das categorias A partir dos resultados das entrevistas que aqui estão expostos de forma literal, além das observações e informações coletadas junto aos entrevistados, foi possível agrupar as respostas conforme afinidades, em quatro categorias: identificação com o tipo de esporte, o impacto nos aspectos físicos, impacto da prática do basquete nos aspectos sociais, impacto do basquete na autonomia. Identificação com o tipo de esporte Existem diversos modos de significar a prática de atividade física e desportiva para pessoas com deficiência, o que nos reporta a dizer que deficiência, atividade física e pratica desportiva são afetados por multifacetados sentidos, de acordo com a ordem do discurso em que eles são significados. Nesse contexto, a relevância do basquete é expressa por João da seguinte forma: “pra mim não tem outro esporte eu sou muito esportista, mas não tenho acesso a outro esporte, pra mim então é tudo. O meu esporte é esse hoje.” Ele ainda complementa: “Antes eu fazia ciclismo, era um baita de um esporte, trabalha todo o meu corpo e tal. Hoje eu faço basquete e não deixo de trabalhar todo o meu corpo”. Melo e Lopes (2002) relatam que oportunizar a prática esportiva para pessoas com deficiência é de extrema eficácia para a promoção da qualidade de vida, uma vez que o através do exercício físico é possível testar limites e potencialidades, prevenir enfermidades secundárias decorrentes da deficiência, bem como promove a interação social do indivíduo. Tendo em vista que nem todas as pessoas tem acesso à pratica desportiva, por diversas razões, esta questão para os cadeirantes pode ter um grau de complexidade ainda maior. Neste sentido observa-se que João pratica o basquete, pois não teve acesso a outra modalidade esportiva. Isto foi expresso da seguinte forma: “Eu gosto muito de ciclismo, eu pretendo pedalar ainda, mas é muito valor agregado a bicicleta é muito caro. Hoje em dia é muito dinheiro, deixa rolar mais um tempo”. Ao contextualizar esta situação relatada por João percebe-se como um dos fatores limitantes a pratica desportiva é a questão financeira, sendo que na maioria dos esportes há que se fazer algumas adaptações que acabam por gerar um custo nem sempre compatível com as possibilidades do cadeirante. Nestes casos, o individuo acaba se adaptando a uma pratica desportiva que nem sempre é a mais prazerosa, no entanto, é a que está ao alcance. 174 Marivoet (2002) expõe que um dos motivos que faz com que as pessoas se adaptem a outras modalidades desportivas diz respeito à falta de apoio e condições adequadas para a prática. Além disso, constata-se que há pouca oferta de modalidades desportivas para cadeirantes e as que existem, algumas vezes, não atendem as necessidades e ambições dos praticantes. Para caracterizar esta realidade, Fonseca e Maria (2002) expuseram que ao investigar a os fatores motivacionais para a prática desportiva constatou-se que os motivos apresentados para a prática da atividade física além dos benefícios físicos, emocionais e sociais encontra-se a possibilidade de dar sequência à prática de esportes. Nesse sentido, durante a entrevista, Joaquim fez a seguinte comparação: “o basquete representa o futebol que a gente jogava antigamente”. Pelo discurso de ambos os entrevistados identifica-se que existe uma carência de oportunidade em desenvolver outras modalidades de desporto. Os colaboradores dessa pesquisa procuram através do basquete em cadeiras de rodas, dar sequencia a prática desportiva que já praticavam antes de se tornarem cadeirantes. O impacto nos aspectos Físicos O esporte e a atividade física chegaram ao século XIX acompanhando as transformações políticas e sociais que começaram nos séculos anteriores, demonstrando, desde então, uma tendência a servir como uma tela de projeção da dinâmica social (RUBIO et al, 2006). A atividade física, além dos benefícios físicos, parece ter um papel importante na qualidade de vida, que engloba domínios como capacidade funcional, estado emocional, interação social, atividade intelectual, autocuidado, suporte familiar, estado de saúde, valores culturais, éticos, religiosos, estilo de vida, satisfação com o emprego e/ou com atividades diárias e ambiente em que se vive. Está relacionada à autoestima e ao bem-estar individual (VECCHIA et al, 2005). Para Medola et al (2010) o esporte adaptado, como o Basquete em cadeira de rodas possibilita do ponto de vista fisiológico melhora na condição orgânica e funcional como aumento do consumo máximo de oxigênio, ganho na capacidade aeróbica, redução do risco de doenças cardiovasculares e de infecções respiratórias, diminuição na incidência de complicações médicas, redução de hospitalizações e aumento da expectativa de vida. A importância do esporte em relação à melhora fisiológica foi exemplificada por Pedro que comentou: “o funcionamento do nosso corpo, o lado intestinal, o lado do tronco, quadril melhora muito, porque é um esporte com grande mobilidade”. Ele ainda acrescentou: “o esporte ajuda em todos os aspectos: físicos, emocionais e fisiológicos” O esporte adaptado pode trazer inúmeros benefícios ao deficiente físico tais como melhora na coordenação motora, equilíbrio de tronco, flexibilidade, força muscular e função cardiopulmonar em comparação àqueles inativos (LIMA et al, 2002). De acordo com Diehl (2006) a prática do esporte adaptado proporciona a melhoria de algumas necessidades motoras básicas, tais como: equilíbrio, força, agilidade, resistência muscular localizada, resistência cardiorespiratória e o repertório de movimentos e a orientação espacial são estimulados, o que condiz com o relato por Pedro: “Logo que eu me acidentei eu perdi boa parte da minha musculatura, eu fiquei bem fraco. Eu ia me mexer na cama e me dava câimbra nos braços de fazer 175 força assim, de me puxar assim e não ter força pra se puxa, depois que eu comecei a jogar basquete, minha força melhorou muito”. Há efeitos incontestáveis dos exercícios para desenvolvimento de força e resistência muscular, sendo uma das estratégias na promoção de saúde mais recomendadas pelo American College of Sports Medicine. Eles são, também, importantes pela redução na fragilidade do aparelho locomotor, acrescentandolhe força, ganho de massa muscular e diminuição de prováveis déficits (RAHAL e SGUIZZATTO, 2005). Ainda de acordo com Kannus, Khan (2004), a prática regular de exercício físico, de acordo pode melhorar o equilíbrio, a coordenação, a propriocepção, reação de tempo e a força muscular. Neste contexto de performance físico motora, Joaquim relata que houve melhora em sua capacidade cardiorespiratória: “Fizemos uns testes aqui na LEME e eu tinha uma respiração muito ruim, depois o basquete tu aprende, tu fica mais ofegante, tu aprende a respirar mais”. Para Silva et al (2005) os benefícios da prática esportiva para pessoas com deficiência são: melhora do consumo máximo de oxigênio (VO2 máximo), ganho de capacidade aeróbica, redução do risco de doenças cardiovasculares e de infecções respiratórias, diminuição na incidên¬cia de complicações médicas (infecções urinárias, escaras e infecções renais), redução de hospitalizações, aumento da expectativa de vida, aumento nos níveis de integração comunitária, auxílio no enfrenta¬mento da deficiência, favorecimento da independência. Em relação às potencialidades que envolvem o movimento corporal, como a consciência corporal, o repertório de movimentos e a orientação espacial, Carlos comenta: “É um esporte bastante dinâmico daí a gente usa bastante os músculos, bastante os braços, o quadril e membros superiores a gente usa bastante, agente agacha toda a hora, a gente ergue a cabeça, a gente movimenta bastante os braços o tempo todo.” A percepção das dimensões corporais para Barros (2005) está relacionada com a integridade do sistema nervoso e do esquema corporal. Para Barros (2005), Maravita e Irki, (2004) e Medina e Coslett (2010), este é um aspecto neurológico que representa as relações espaciais do indivíduo entre as partes do corpo percebidas cinestésica e proprioceptivamente. Caracteriza-se por uma interação neuromotora que permite perceber o próprio corpo no espaço e desenvolver as ações de forma adequada. Já o esquema corporal é dinâmico, ou seja, qualquer situação que participe do movimento consciente do corpo é somada ao modelo corporal, tornando-se parte desse esquema Impacto da prática do basquete nos aspectos sociais Pessoas com deficiência geralmente estão afastadas do convívio com a sociedade, têm reduzido números de amigos e interação sociais, em função da falta de entendimento e compreensão sobre suas possibilidades e de oportunidades diferenciadas por parte da sociedade, porém através da prática desportiva é possível proporcionar a integração da pessoa (CARDOSO, 2010). Em relação ao impacto na sua vida social, Pedro relatou que “o basquete representa tudo porque é um estilo de vida muito bom, a gente se aproxima um dos outros” revelando desta forma que o esporte cria vínculos de amizade e companheirismo. O esporte tem um papel fundamental na reabilitação, pois complementa e amplia as alternativas; estimula e 176 desenvolve os aspectos físicos, psi¬cológicos e sociais; e favorece a independência (SILVA et al., 2005; ZUCHETTO e CASTRO, 2002; SOUZA, 1994). No estudo de Medola et al (2011) observou-se melhora da qualidade de vida dos cadeirantes antes e após o período de treinamento esportivo. Aspectos como a capacidade funcional, a percepção do estado geral de saúde e os aspectos emocionais apresentaram melhora significativa entre os participantes, o que podemos interpretar como resultado direto do treinamento físico e esportivo, uma vez que estes proporcionam melhora da condição física, interação social e o surgimento de novos objetivos de vida. Labronici et al (2000), em um estudo semelhante, ao investigar o efeito do treinamento esportivo nos aspectos físicos, psicológicos e sociais, encontraram melhora nos dois últimos as¬pectos, com os participantes apresentando alto vigor, baixa depressão e melhora nos relacionamentos sociais, esses achados vem ao encontro da expressão de Pedro que relata: “a gente trabalha bastante o nosso lado psicológico e o lado emocional vem a tona, a gente fica feliz, a gente se diverte, a gente brinca, a gente treina,a gente briga, a gente cai no chão, a gente se ergue.” Ao buscar o entendimento do sentido, significado do esporte para os cadeirantes, a partir da expressão de Pedro, percebe-se que o basquete desperta inúmeras facetas positivas tanto no aspecto emocional como no âmbito do lúdico. Também fica claro que para Pedro o basquete auxilia na melhora da mobilidade e na autonomia quando ele relata que consegue cair e se erguer, sem que maiores prejuízos sejam causados. Nahas (2006) afirma que as atividades físicas e desportivas regulares podem reduzir os sintomas de ansiedade e depressão, promover a socialização e aumentar os níveis e bem-estar geral das pessoas com deficiência. Em suma, os entrevistados relataram que: “o basquete pra mim é tudo, eu não viveria mais sem ele”. Lima et al (2002) justifica essa expressão afirmando que o esporte pode aumentar a autoestima da pessoa com deficiência, bem como promover a inclusão social. Com isso, é possível inferir que o basquete tem um significado relevante na vida dos cadeirantes, uma vez que através de sua prática é possível melhorar tantos as capacidades físicas, emocionais, cognitivas, bem como auxilia na reinserção do cadeirante na sociedade. Impacto do basquete na autonomia A ideia de autonomia (auto= próprio, nomos=norma, regra, lei) conduz o pensamento imediatamente à ideia de liberdade e de capacidade de exercício ativo de si, da livre decisão dos indivíduos sobre suas próprias ações e às possibilidades e capacidades para construírem sua trajetória na vida (Teixeira et al, 2008). Neste sentido a autonomia surge como categoria para análise do discurso dos sujeitos que praticam basquete em cadeiras de rodas. “Autonomia é tudo, tu poder chegar nos lugares e fazer as coisas por conta”(Carlos). Segundo Martinez (2000) o basquetebol em cadeira de rodas tem experimentado uma metamorfose nos últimos quarenta anos. Isto tem sido demonstrado com relação à sofisticação tecnológica e a um aumento da aceitação popular em considerá-lo um esporte que gera esforço físico e consequentemente traz benefícios físicos e psicológicos. Entre estes benefícios podemos destacar, além da melhora geral da aptidão 177 física, um enorme ganho de independência, e autoconfiança para a realização das atividades diárias, além de uma melhora do autoconceito e da autoestima como relatou o João: “O basquete me auxilia em tudo eu dirijo meu carro e não preciso de auxilio de ninguém eu boto minha cadeira no carro, saio sozinho, não dependo de ninguém.” O mesmo colaborador ainda ressalta a ideia de autoconfiança através da seguinte fala: “Se tem uma escada ali, eu subo, eu demoro um pouco mais que tu, tu vai subir correndo, eu não eu vou subir degrau por degrau, bundinha num degrau, bundinha no outro.” E acrescenta: “Não é porque minhas pernas não funcionam do jeito que eu gostaria que funcionassem que eu vou deixar de fazer o que eu quero”. Gonçalves (2008) coloca que a função neuromuscular é de grande importância na autonomia, pois muitas das atividades diárias requerem força muscular. Para tanto, entende-se que a Qualidade de vida tem grande relação com a independência funcional e com a realização das atividades diárias com êxito. Ainda sobre os benefícios do basquete para a melhora da autonomia, Carlos relata: “Antes eu era bem debilitado e minha musculatura era bem fraca e após eu começar a treinar minha vida mudou pra melhor. Eu consigo outras coisas que eu não fazia antes. Como me movimentar sozinho, ir para a cadeira de banho sair dela, subir no carro, descer do carro, atravessar a rua sozinho, subir e descer cordão. Rezer et al (2009) ao analisar as contribuições do basquetebol em cadeiras de rodas para praticantes com deficiências observou-se que a prática desta modalidade oportuniza benefícios físicos e psicológicos tais como: ganho de independência para atividades da vida diária, autoconfiança, melhora da aptidão física, do autoconceito e autoestima, favorecendo desta forma a reconstrução de suas identidades. Soler (2005) aborda que os esportes servem para aumentar o sentimento de autonomia. Os jogos servem para explorar o mundo que os rodeia e permite um alto grau de liberdade. Corroborando com o autor Joaquim comenta: “... e daí com o basquete a gente aprende a se transportar na cadeira, tu aprende a ter agilidade com a cadeira, não só com a tua cadeira do basquete, mas com tua cadeira do dia a dia.” Para Gorgatti e Böhme (2002) ao praticar uma modalidade em cadeira de rodas, o indivíduo torna-se mais independente para suas atividades diárias e obtém um acréscimo significativo em várias capacidades motoras o que corrobora com a fala de Carlos: “...dentro de casa mesmo, pra fazer as tarefas do dia a dia, tipo te auxilia muito porque tu tem força no braço”. Sobre a melhora da capacidade física força João aborda “...tu só andando no dia a dia na cadeira tu não pega força nos braços, mas é bem pouco, ai com o esporte tu pega muita força nos braços que querendo ou não os braços que me conduzem por ai né.” Pedro também observa mudanças na autonomia devido a melhora de aspectos específicos como equilíbrio e força: “Pra mim que tinha pouco equilíbrio, me ajudou bastante no equilíbrio e também a própria força pra mim mover a cadeira com mais firmeza e em uma distancia maior que eu movia antes de começar no basquete”. Nesse sentido Labronici (2000) salienta que o esporte os contempla inúmeros benefícios físicos como a melhora da motricidade, desenvolvimento das potencialidades orgânico-funcionais, melhora da autonomia locomotora em cadeira de rodas, estimulação e fortalecimento de grupos musculares, bem como benefícios psicossociais também são importantes, como a socialização e a possibilidade de sensação de movimentos que frequentemente são impossibilitados pelas barreiras 178 físicas, ambientais e sociais. CONSIDERAÇÕES FINAIS A presente pesquisa que teve por objetivo investigar a significação da prática do basquete para cadeirantes pode constatar através do discurso dos colaboradores entrevistados que o basquetebol em cadeira se roda, bem como o treinamento com exercício resistido tem um significado positivo na melhora da qualidade de vida dos mesmos. O desporto tem um significado de com¬plementar o processo de reabilitação de pessoas que sofreram lesão da medula espinhal e com mobilidade restrita e necessitam de cadeira de rodas para mobilidade. Por fim, o significado positivo da prática do basquete pela pessoa com deficiência é facilmente perceptível uma vez que os quatro indivíduos relatam melhorias em seu aspecto físico-motor, psicológico e social e ressaltam que o basquete contribui para a melhora na qualidade de vida. Contudo, apesar desses avanços e do significado benéfico da prática do basquete, percebe-se que ainda existem lacunas a serem preenchidas principalmente em relação à oportunidade de vivenciar outras modalidades desportivas. Por fim, o basquete em cadeira de rodas ainda tem muito a proporcionar para pessoas com deficiência. REFERÊNCIAS ADAMS R., et al. Jogos, esportes e exercícios para o deficiente físico. 3. ed. São Paulo: Manole, 1985. ANDRADE, C.C., CASTRO, T.G.. 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Para tanto, o trabalho parte de um estudo de caso, que é o da problemática crescente sobre o desenvolvimento de cianobactérias na região da bacia hidrográ ica do Rio das Velhas, que traz inúmeros desa ios ao gerenciamento público, principalmente em termos do planejamento de ações para diminuição de impactos ambientais e sociais. O mote de discussão então é o da necessidade de se estudar quais os melhores mecanismos de controle de contaminantes, avaliação de alternativas de ações e implementação de políticas públicas, via metodologia de projetos, para a área de recursos hídricos, em geral, e para o Rio das Velhas, em particular. E tais discussão são feitas a partir da institucionalização envolvida na temática, de forma a propiciar uma leitura organizacional de como tais decisões devem ser consideradas aos interessados pelo assunto. This article aims to demonstrate the importance of project management methodology for the environmental theme, in order develop better decision making processes. Thus, presents a case study, which is related to the growing problem of the cyanobacteria development in the Velhas River´s watershed, which brings numerous challenges to the public management, especially in terms of planning actions to decrease environmental and social impacts. The discussion´s motto is the need to study what the best mechanisms to control contaminants, evaluation of alternative actions and implementation of public policies, for the water resources in general and for Velhas River´s watershed, in particular. And such discussion is made from the institutionalization involved in the issue, in order to provide an organizational understanding of how such decisions should be considered by the concerned subject. PALAVRAS-CHAVE Gestão de Projetos; Bacia Hidrográ ica; Cianobactérias. KEY-WORDS Project management, Hidrograϔic Basin, Cyanobacterias. 1.0 - INTRODUÇÃO O presente trabalho é uma proposta de realização de um projeto de pesquisa que leve em consideração uma avaliação dos principais aspectos relacionados à determinação de uma técnica de tratamento de água para a bacia hidrográfica do Rio das Velhas, que, além de conter a capital do Estado de Minas Gerais, Belo Horizonte, estão outros 50 (cinquenta) municípios ao longo do território acima citado. Tal deanda surgiu a partir da constatação do crescente desenvolvimento de cianobactérias na região e que tem levado a um número cada vez maior também de pesquisadores a tentar indicar e/ou determinar o tipo de técnica de tratamento de água mais adequado ao fato. Isto se deve à realidade de que há um perigo exponencial da presença das cianobactérias nos corpos d´água de algumas regiões (principalmente na Região Metropolitana de Belo Horizonte). Consequentemente, há possibilidades de impactos na saúde da população envolvida dada a diminuição da qualidade hídrica e sanitária a ser disponibilizada. Isto leva a crer que há uma necessidade do entendimento sobre a forma como o problema tem sido abordado na atualidade da bacia, assim como a identificação de problemas direta ou indiretamente relacionados com o controle das cianobactérias são posturas às quais o projeto pretende se estabelecer. Nesta direção também é válido salientar que a utilização de mecanismos de controle e avaliação através da utilização de instrumentos de gestão de projetos poderá salientar pontos de entraves ao melhor funcionamento de Estações de Tratamento de Água (ETA) e Estações de Tratamento de Esgosto (ETE) para o controle das cianobactérias. Assim, um planejamento de várias etapas de intervença sobre as mesmas poderá ter um diferencial em termos de aplicação de recursos humanos e matérias no médio e longo prazos. Conta-se também nesta proposta a emergência de maior coleta e controle de dados de fontes contaminantes 2.0 - Objetivos e metas a serem alcançados 2.1 - Objetivo Geral Identificação, seleção e avaliação das principais técnicas de tratamento de água para serem utilizadas na bacia hidrográfica do Rio das Velhas, Minas Gerais. 2.2 - Objetivos Específicos - Geração de banco de dados sobre a atual situação de ocorrência das cianobactérias dentre os 51 municípios componentes da bacia hidrográfica do Rio das Velhas; - Estabelecimento da melhor técnica por Unidade Territorial Estratégica, a partir de suas constituições ambientais e institucionais a partir de parâmetros definidos; - Elaboração de relatório e resumo executivo que possam ser disseminados entre os stakeholders envolvidos na gestão dos recursos hídricos, como também possíveis parceiros. - Adequação de proposta de projeto para estudo de interferência das 185 cianobactérias em relação à revisão do Plano Diretor da bacia hidrográfica do Rio das Velhas de modo a possibilitar captação de recursos. 3.0 - Histórico 3.1- A Bacia Hidrográfica do Rio das Velhas A pesquisa tem seu foco na bacia hidrográfica do Rio das Velhas, localizada em Minas Gerais, bem no centro do Estado, entre as latitudes 17º 15’S e 20º25’S e com longitude 43º25’W e 44º e 50W, com uma direção norte-sul de grande esta extensão. Esta possui comitês1 e sub-comitês, objeto de estudo na pesquisa, dada a sua importância política, geográfica e populacional além do fato de que esta bacia é um dos tributários da bacia hidrográfica do Rio São Francisco) dentro da divisão em “Unidades de Planejamento e Gestão dos Recursos Hídricos (UPGRH)” efetivadas pelo Instituto Mineiro de Gestão das Águas (IGAM). A divisão interna por trechos entre Alto-Médio-Baixo Rio das Velhas que havia anteriormente e, a partir de 2012 e ainda em implantação, a criação de Unidades Territoriais Estratégicas (UTE´s), indica que cada qual possui características sociais, econômicas e geográficas próprias. Na sua extensão de 753 km pertencentes à bacia, localizam-se 51 municípios. Estas unidades tem como objetivo: 1) Identificar áreas específicas para subsidiar a implantação dos instrumentos da Política Estadual de Recursos Hídricos e a gestão descentralizada dos recursos hídricos; 2) Orientar o planejamento de formação de comitês de bacia ou outras formas de organização dos usuários da água; 3) Servir de referência para a elaboração de Planos Diretores e outros estudos regionais; 4) Contribuir no planejamento de outras ações do Estado. Vê-se aqui que a bacia hidrográfica do Rio das Velhas adquire também um caráter ambiental importante, por ser parte do Rio São Francisco, de projeção e integração nacional que identifica tanto seu caráter de meio de transporte no passado até seu caráter simbólico-religioso em relação ao seu nome – o Estado de Minas Gerais. Este abrange em seu território, quatro denominadas “Regiões Hidrográficas Nacionais” (COSTA:2008): São Francisco (RHSF e 40% da área); Paraná (RHPR e 27% da área); Atlântico Leste (RHAL e 17% da área); Atlântico Sudeste (RHAS e 16% da área). Além do fato de apresentar-se como uma das principais bacias hidrográficas não só de Minas Gerais como também do país, uma vez que integra a bacia hidrográfica 1. Segundo o IGAM, os comitês de bacia hidrográ ica “São órgãos normativos e deliberativos que têm por inalidade promover o gerenciamento de recursos hídricos nas suas respectivas bacias hidrográ icas. São competências dos comitês, entre outras: promover o debate sobre as questões hídricas; arbitrar, em primeira instância administrativa, os con litos relacionados com o uso da água; aprovar e acompanhar a execução do plano de recursos hídricos da bacia, bem como estabelecer mecanismos de cobrança pelo uso da água, sugerindo valores a serem cobrados e aprovando planos de aplicação de recursos oriundos da cobrança. Os comitês são instituídos por ato do Governador do Estado e são compostos por representantes do poder público municipal e estadual, dos usuários e de entidades da sociedade 186 civil ligadas a recursos hídricos.” - www.igam.gov.br (22/01/07). do Rio São Francisco, a bacia hidrográfica do Rio das Velhas tem apresentado constantes mudanças biológicas, químicas, antrópicas, dentre outras, que tem vindo a demandar novos estudos sobre os impactos de variados fatores sobre sua estrutura como corpo d´água. /,/ZK'Z&/KZ/K^s>,^ ÈUHDWRWDOGDEDFLD .P &RWDQDIR] P &RWDQDQDVFHQWH P ([WHQVmR .P /DUJXUDPpGLD .P 2FXSDomR PXQLFtSLRVQD50%+ 3HUtPHWURGDEDFLD NP 3RSXODomR,%*( PLOK}HVQD50%+ 3ULQFLSDLVWULEXWiULRV 5LR 3DUD~QD 5LR ,WDELULWR 5LR 7DTXDUDoX 5LR %LFXGR5LEHLUmRGD0DWD %DL[R PXQLFtSLRV 0pGLR PXQLFtSLRV 'LYLVmRSRUWUHFKRV 'LYLVmR SRU 8QLGDGHV 7HUULWRULDLV $OWRPXQLFtSLRV (VWUDWpJLFDVHVWiHPLPSODQWDomR 4XDGUR3HUILOGDEDFLDKLGURJUiILFDGR5LRGDV9HOKDV )RQWH$GDSWDGRGH&$0$5*26 Com o decorrer das décadas ela se constituiu como uma bacia hidrográfica de características muito variadas e com níveis muito distintos de acesso a saneamento e esgotamento sanitário, como também em relação aos tipos de classes de seus cursos de água em termos de enquadramento para utilização e, mais atualmente, para cobrança por uso dos recursos hídricos. Estes dados mostram a amplitude da bacia hidrográfica do Rio das Velhas e de como se mostra complexo o planejamento da gestão de seus recursos hídricos e a articulação dos vários usuários que podem potencializar conflitos institucionais na busca de soluções como, por exemplo, sobre 2 Existem várias nascentes vinculadas ao Rio das Velhas – como, por exemplo, as localizadas em São Bartolomeu, distrito de Ouro Preto - porém aquela o icialmente considerada e que é aqui considerada, por seu caráter simbólico e por ser a mais remota, é a localizada na região da Cachoeira das Andorinhas (em Ouro Preto, propriamente) e que se tornou reserva municipal recentemente (2006) – “Área de Proteção Ambiental da Cachoeira das Andorinhas”. 3 Neste sentido vale destacar que há uma incongruência de exposição dos dados, visto que segundo o próprio CAMARGOS (2005:24): “(...) estão localizados 51 municípios que abrigam uma população de aproximadamente 4,8 milhões de habitantes (destes, aproximadamente 89% residem em distritos e municípios integralmente inseridos nas bacia), segundo os últimos dados estatísticos do (...) IBGE (2000).” 187 as fontes de contaminação hídrica existentes atualmente. Identifica-se, por exemplo, que o trecho próximo à região metropolitana, apesar de possuir o menor número de municípios, é a mais densamente povoada. Além disso, há uma grande concentração de compostos químicos nos corpos de água oriundo da RMBH (Região Metropolitana de Belo Horizonte) que, consequentemente, determinam a perda de qualidade tanto dos próprios ribeirões como de seu entorno, que tendem ao assoreamento constante. Tal acontece, a partir dos dados coletados, pela grande presença de um circuito industrial que permanece durante todo o curso dos rios e córregos da citação região, com suas largas escalas de empresas e indústrias de metais, automotores, etc. Mais ainda, dada a crescente expansão urbana da capital e adjacências, este dado acaba por ser refletido na perda da qualidade e quantidade dos recursos hídricos existentes na bacia do Rio das Velhas como um todo, o que, preliminarmente, corrobora a noção do grande nível de polução que alcança este recurso hídrico ao se aproximar da região da capital mineira, ao contrário de seus trechos anteriores. Também deve se lembrar que os municípios que estão localizados nesta região são diretamente responsáveis por mais de 42% do Produto Interno Bruto de Minas Gerais, o que caracteriza a bacia como um espaço relevante de desenvolvimento sócio-economico, onde se explicitam complexas relações de poder institucional e regional do Estado4. 3.2 - As Unidades Territoriais Estratégicas (UTE`s) Assim, uma das principais questões a ser estudada para que a proposta seja colocada em ação se relaciona tanto com o momento pelo qual passam as políticas públicas vinculadas à gestão dos recursos hídricos no Estado de Minas Gerais e, em particular da bacia hidrográfica do Rio das Velhas, onde, inclusive, o seu Plano Diretor está em processo de revisão (já com Termo De Referência – TDR proposto para seleção da empresa que fará o Plano Diretor em si). Concomitante a este novo momento, o território da bacia hidrográfica do Rio das Velhas foi redefinido, a partir de articulações sociais e institucionais para um modelo que se pretende mais aproximado da realidade das microrregiões, agora denominadas de Unidades Territoriais Estratégicas (UTE´s). Isto significa, em termos desta proposta, que a identificação de fatores de contaminação hídrica poderão ser melhor identificados e trabalhados não apenas em termos de um curso de água, mas integrados dentro da lógica de gestão de uma bacia hidrográfica, tal como orientam as determinações técnicas e legais, principalmente a lei 9.433 de 1997. E uma vez que se trabalha aqui sob o ponto de vista da gestão de projetos aplicados em uma prosposta de avaliação para a seleção de técnicas de tratamento de água, essa introdução anterior se tornou necessária de maneira a permitir se entender, adiante, que cada UTE deverá ser entendida particular para o controle das cianobactérias. A causa de tal demanda se refere ao fato de que as cianobactérias só poderão ser adequadamente combatidas se entendidas dentro de um arcabouço de decisões políticas, administrativas e geográficas que demanda o conhecimento de técnicas de projetos. Dessa forma, segue abaixo a atual composição de Unidades Territoriais Estratégicas proposta para que o gerenciamento de problemas relacionados à bacia hidrográfica do Rio das Velhas: 188 4 SITE: http://www.ufmg.br/diversa/1/manuelzao.htm Figura 1 - UPGHs de MG Fonte: www.igam.mg.gov.br/images/stories/mapoteca/upgrhs-minas-gerais Figura 2 - Unidades Territoriais Estratégicas da Bacia Hidrográ ica do Rio das Velhas (CBH Rio das Velhas, 2012) 189 7DEHOD0XQLFtSLRVGDV87(GDEDFLDGRULRGDV9HOKDV&%+5LRGDV9HOKDV ƌĞĂ;ŬŵϮ Ϳ hd ϭ EĂƐĐĞŶƚĞƐ ϱϰϭ͘ϰ DƵŶŝĐşƉŝŽƐ /ƚĂďŝƌŝƚŽ KƵƌŽWƌĞƚŽ /ƚĂďŝƌŝƚŽΎ EŽǀĂ>ŝŵĂ Ϯ ZŝŽ/ƚĂďŝƌŝƚŽ ϱϰϴ͘ϯ ZĂƉŽƐŽƐ ZŝŽĐŝŵĂ ^ĂďĂƌĄ ĂĞƚĠ /ƚĂďŝƌŝƚŽ ϯ ŐƵĂƐĚŽ'ĂŶĚĂƌĞůĂ ϯϮϯ͘ϳ EŽǀĂ>ŝŵĂ ZĂƉŽƐŽƐΎ ZŝŽĐŝŵĂΎ /ƚĂďŝƌŝƚŽ EŽǀĂ>ŝŵĂΎ ϰ ŐƵĂƐĚĂDŽĞĚĂ ϱϰϰ͘ϯ ZĂƉŽƐŽƐ ZŝŽĐŝŵĂ ^ĂďĂƌĄ ĂĞƚĠΎ ϱ ZŝďĞŝƌĆŽĂĞƚĠͬ^ĂďĂƌĄ ϯϯϭ͘ϯ ZĂƉŽƐŽƐ ^ĂďĂƌĄΎ ^ĂŶƚĂ>ƵnjŝĂ ĞůŽ,ŽƌŝnjŽŶƚĞΎ ϲ ZŝďĞŝƌĆŽƌƌƵĚĂƐ ϮϮϴ͘ϯ ŽŶƚĂŐĞŵΎ ^ĂďĂƌĄ ϳ ZŝďĞŝƌĆŽKŶĕĂ ϮϮϭ͘ϰ ĞůŽ,ŽƌŝnjŽŶƚĞ ŽŶƚĂŐĞŵ ^ĂďĂƌĄ ϴ WŽĚĞƌŽƐŽsĞƌŵĞůŚŽ ϯϲϬ͘ϱ ^ĂŶƚĂ>ƵnjŝĂΎ dĂƋƵĂƌĂĕƵĚĞDŝŶĂƐ ĂƉŝŵƌĂŶĐŽΎ ŽŶĨŝŶƐΎ ϵ ZŝďĞŝƌĆŽĚĂDĂƚĂ ϳϴϲ͘ϲ ƐŵĞƌĂůĚĂƐ >ĂŐŽĂ^ĂŶƚĂ DĂƚŽnjŝŶŚŽƐΎ 190 ƌĞĂ;ŬŵϮ Ϳ hd DƵŶŝĐşƉŝŽƐ WĞĚƌŽ>ĞŽƉŽůĚŽΎ ϵ ZŝďĞŝƌĆŽĚĂDĂƚĂ ;ĐŽŶƚŝŶƵĂĕĆŽͿ ZŝďĞŝƌĆŽĚĂƐEĞǀĞƐΎ ϳϴϲ͘ϲ ^ĂŶƚĂ>ƵnjŝĂ ^ĆŽ:ŽƐĠĚĂ>ĂƉĂΎ sĞƐƉĂƐŝĂŶŽΎ ĂĞƚĠ :ĂďŽƚŝĐĂƚƵďĂƐ ϭϬ ZŝŽdĂƋƵĂƌĂĕƵ ϳϵϱ͘ϭ EŽǀĂhŶŝĆŽΎ ^ĂŶƚĂ>ƵnjŝĂ dĂƋƵĂƌĂĕƵĚĞDŝŶĂƐΎ ŽŶĨŝŶƐ &ƵŶŝůąŶĚŝĂΎ ϭϭ ĂƌƐƚĞ ϲϮϳ͘Ϭ >ĂŐŽĂ^ĂŶƚĂΎ DĂƚŽnjŝŶŚŽƐ WĞĚƌŽ>ĞŽƉŽůĚŽ WƌƵĚĞŶƚĞĚĞDŽƌĂŝƐ ϭϮ :ĂďŽͬĂůĚŝŵ ϭϬϴϬ͘ϰ ĂůĚŝŵΎ :ĂďŽƚŝĐĂƚƵďĂƐΎ ĂƉŝŵƌĂŶĐŽ &ƵŶŝůąŶĚŝĂ ϭϯ ZŝďĞŝƌĆŽ:ĞƋƵŝƚŝďĄ ϲϮϯ͘ϵ :ĞƋƵŝƚŝďĄΎ WƌƵĚĞŶƚĞĚĞDŽƌĂŝƐΎ ^ĞƚĞ>ĂŐŽĂƐΎ :ĞƋƵŝƚŝďĄ ϭϰ ^ĞŵEŽŵĞ ϭϭϳϭ͘ϳ WƌĞƐŝĚĞŶƚĞ:ƵƐĐĞůŝŶŽ ^ĂŶƚĂŶĂĚĞWŝƌĂƉĂŵĂΎ ƌĂĕĂşΎ ŽƌĚŝƐďƵƌŐŽΎ ϭϱ ZŝďĞŝƌƁĞƐdĂďŽĐĂƐĞKŶĕĂ ϭϮϮϯ͘ϭ ƵƌǀĞůŽ :ĞƋƵŝƚŝďĄ WĂƌĂŽƉĞďĂ ϭϲ ^ĂŶƚŽŶƚƀŶŝŽͬDĂƋƵŝŶĠ ϭϯϯϲ͘ϲ ƵƌǀĞůŽΎ /ŶŝŵƵƚĂďĂΎ ϭϳ ZŝŽŝƉſ Ϯϭϴϰ͘ϴ ĂůĚŝŵ ŽŶŐŽŶŚĂƐĚŽEŽƌƚĞ 191 ƌĞĂ;ŬŵϮ Ϳ hd DƵŶŝĐşƉŝŽƐ :ĂďŽƚŝĐĂƚƵďĂƐ ϭϳ ZŝŽŝƉſ ;ĐŽŶƚŝŶƵĂĕĆŽͿ Ϯϭϴϰ͘ϴ WƌĞƐŝĚĞŶƚĞ:ƵƐĐĞůŝŶŽ ^ĂŶƚĂŶĂĚĞWŝƌĂƉĂŵĂ ^ĂŶƚĂŶĂĚŽZŝĂĐŚŽΎ ŽŶĐĞŝĕĆŽĚŽDĂƚŽ ĞŶƚƌŽ ŽŶŐŽŶŚĂƐĚŽEŽƌƚĞΎ ĂƚĂƐΎ 'ŽƵǀĞŝĂΎ ϭϴ ZŝŽWĂƌĂƷŶĂ Ϯϯϯϴ͘ϱ DŽŶũŽůŽƐ WƌĞƐŝĚĞŶƚĞ:ƵƐĐĞůŝŶŽΎ WƌĞƐŝĚĞŶƚĞ<ƵďŝƚƐĐŚĞŬΎ ^ĂŶƚĂŶĂĚĞWŝƌĂƉĂŵĂ ^ĂŶƚŽ,ŝƉſůŝƚŽ ŽƌŝŶƚŽΎ ƵƌǀĞůŽ ϭϵ ZŝďĞŝƌĆŽWŝĐĆŽ ϭϳϭϲ͘ϯ /ŶŝŵƵƚĂďĂ DŽƌƌŽĚĂ'ĂƌĕĂ ^ĂŶƚŽ,ŝƉſůŝƚŽ ƵŐƵƐƚŽĚĞ>ŝŵĂ ƵĞŶſƉŽůŝƐ ϮϬ ZŝŽWĂƌĚŽ ϮϮϯϰ͘Ϭ ŝĂŵĂŶƚŝŶĂ 'ŽƵǀĞŝĂ DŽŶũŽůŽƐΎ ^ĂŶƚŽ,ŝƉſůŝƚŽΎ ƵŐƵƐƚŽĚĞ>ŝŵĂΎ Ϯϭ ZŝŽƵƌŝŵĂƚĂş ϮϮϭϵ͘ϱ ƵĞŶſƉŽůŝƐΎ :ŽĂƋƵŝŵ&ĞůşĐŝŽ ϮϮ ZŝŽŝĐƵĚŽ ϮϮϳϰ͘ϯ ŽƌŝŶƚŽ DŽƌƌŽĚĂ'ĂƌĕĂΎ ŽƌŝŶƚŽ Ϯϯ 'ƵĂŝĐƵş ϰϭϯϳ͘ϲ >ĂƐƐĂŶĐĞΎ WŝƌĂƉŽƌĂ sĄƌnjĞĂĚĂWĂůŵĂΎ ΎDƵŶŝĐşƉŝŽƐĐŽŵƐĞĚĞƐůŽĐĂůŝnjĂĚĂƐĚĞŶƚƌŽĚĂhd 192 3.3 - Os instrumentos para a gestão de recursos hídricos De maneira a que um determinado tipo de planejamento possa ser aplicado em todas as instâncias do gerenciamento dos recursos hídricos envolvidos na bacia hidrográfica do Rio das Velhas, é necessário o estabelecimento de algumas concordâncias entre a tríplice restrição advinda de projetos com base no Project Management Institute (PMI) como também em relação aos instrumentos previstos juridicamente ao assunto, a ver, tal como já colocado por AGB (2012): • Plano Estadual de Recursos Hídricos; • Planos Diretores de Recursos Hídricos de Bacias Hidrográficas; • Sistema Estadual de Informações sobre Recursos Hídricos; • Enquadramento dos corpos de água em classes, segundo seus usos preponderantes; • Outorga dos direitos de uso de recursos hídricos; • Cobrança pelo uso de recursos hídricos; • Compensação a municípios pela exploração e restrição de uso de recursos hídricos; • Rateio de custos das obras de uso múltiplo, de interesse comum ou coletivo e Penalidades. Tais prerrogativas se encontram na Lei 13.1999/99, que trata da Política Estadual de Recursos Hídricos, em seu Art. 9º, como também se vincula com a Lei Federal 9.433/97, onde existe a determinação máxima sobre a Política Nacional de Recursos Hídricos e que tem em sua formulação a preocupação com o controle da quantidade e da qualidade dos corpos de água que são disponibilizados à população. Cada um dos pontos acima colocados tentam, também, fazer interagir um todo um sistema de tomadas de decisões técnicas e políticas que envolvem o gerenciamento hídrico no país, que, tomado enquanto um sistema de ação, tem a seguinte configuração: )LJXUD6LVWHPD1DFLRQDOGH5HFXUVRV+tGULFRV )RQWH$JrQFLD1DFLRQDOGHÈJXDV$1$ 193 4.0 - A questão das Cianobactérias As cianobactérias, também chamadas de algas azuis, microrganismos que se encontram em ambientes aquáticos e que são capazes de produzir toxinas (determinadas como cianotoxinas) que são potencialmente prejudiciais à saúde humana e anil, seja por ingestão ou contato quando estão presentes nos corpos de água. Cianobactéria também é um denominação utilizada para uma gama de algas que possuem características próximas (unicelulares, procariotas e com espécies filamentosas e coloniais – SPERLING, 2009) e que estão presentes na superfície da Terra há mais de três bilhões de anos e apresentam um crescimento significativo quando se considera o potencial hidrogeniônico (pH) entre 6,0 e 9,0, e com temperatuas entre 15 e 30 graus Celsius (condições que são bastante presentes em regiões tropicais como a brasileira e mineira). Além disso, elas produzem, por meio de processos de fotossíntese, seu próprio alimento (são seres autotróficos) e, quando em ambientes com grande presença de nutrientes, se desenvolvem em largamente e podem gerar colocação verde-azulada nos mananciais hídricos. )LJXUD&LDQREDFWpULDV )RQWHZZZHQTXIVFEUODEVSURELRGLVFBHQJBELRT&,$12%$&7(5,$6KWPO A importância de estudo das mesmas se deve pelo aumento de sua incidência em áreas principalmente urbanas e de grande atividade industrial, uma vez que possuem grande valência ecológica, ou seja, são capazes de sobreviverem em regiões muito variadas. Como exemplo, em outubro de 2007 se verificou uma floração (crescimento de forma abrupta) do nível de concentração das cianobactérias justamente na Região Metropolitana de Belo Horizonte e que ocasionou a impossibilidade do uso dos mananciais por parte da população e serviu como alerta para a urgência de seu controle, ainda mais em termo de tratamento de água. Por outro lado, o estudo das cianobactérias atualmente perpassa áreas como dos fármacos e agrícolas devido ao alto valor nutritivo que elas detém, com a possibilidade de serem utilizadas como fertilizantes. Em termos de toxidades, as mais importantes a serem consideradas são as microcistinas, anatoxinas, saxitoxinas e as nodularinas, com capacidades neurotóxicas (atuação nos neurônios), dematotóxicas (atuação na pele) e hepatotócias (atuação no fígado), assim como também podem inibir a síntese de proteínas dentre outras possibilidades de atividade (CARNEIRO e LEITE, 2007). 194 Vale destacar que existem vários efeitos que a intoxicação por cianobactérias é capaz de realizar como (de acordo com MOTA e ROLLA, 2011): - contato direto: conjuntivite, dermatite, asma, irritação ocular; - ingestão: náuseas, febre, diarreias, hepatite; - inalação: alergias, renite, bronquite aguda. Em termos de uma justificativa técnica específica para o tratamento de água e sua relação com as cianobactérias, valeria salientar que o presente estudo poderá delimitar com maior segurança quais dos fatores adiante poderão ter mais preponderância para a definição da tecnologia a ser implementada: 1) características da água bruta; 2) custos de implantação, manutenção e operação; 3) manuseio e confiabilidade dos equipamentos; 4) flexibilidade operacional; 5) localização geográfica e características da comunidade; 6) disposição final do logo gerado - tal como coloca LIBÂNIO (2010). Isto significa que o projeto pretende interagir quais as características dos recursos hídricos da bacia em relação ao tipo de tratamento de será possível ser aplicado em termos de eficiência institucional. De forma a se conseguir fazer interagir áreas diferentes de formação e sempre com vistas à um detalhamento de técnicas de seleção de tratamento de água mais adequados para a situação atual e futura da bacia hidrográfica do Rio das Velhas, visa-se aqui uma reunião das principais discussões não apenas dos aspectos físicoquímicos-biológicos, como também organizacionais e legais. 5.0 - Metodologia De acordo com BUENO (2012), é necessário que ações propostas para a gestão direta ou indireta dos recursos hídricos na bacia hidrográfica do Rio das Velhas estejam vinculadas com o Plano Diretor, como no caso do projeto proposto. Dessa maneira, seria pertinente se ater que as metas para controle das cianobactérias deverão ser divididas em termos de qualidade (vinculadas ao enquadramento determinado), de execução (onde se estabelecerão indicadores para que os objetivos propostos sejam alcançados) e de finanças. De forma a se empregar a melhor técnica para tratamento de água, o projeto pretende se valer da rede de mais de 40 pontos de coleta de água para análise de qualidade disponibilizadas pelo IGAM (Instituto Mineiro de Gestão das Águas) e que deverão ser analisadas nos laboratórios da Copasa, em Belo Horizonte. O objetivo passa a ser de se observar as características da água que está a ser consumida para se verificar a existência ou não das cianobactérias e quais os seus níveis de concentração por trecho. Nesta direção, o projeto pretende se estabelecer a partir de três etapas principais de efetivação de modo a incorrer tanto na identificação quanto no controle e divulgação da situação das cianobactérias dentro no Rio das Velhas. Se pretende assim que, ao final do projeto, exista uma unificação nos critérios de seleção de projetos para atuação no Rio das Velhas com a prerrogativa de tratamento das cianobactérias. 195 (7$3$ $7,9,'$'( 352'8726 (WDSDSURSRVWD 5HXQL}HVGHHTXLSHH 3ODQR GH WUDEDOKR 3ODQRGH7UDEDOKR GHILQLomRGHFURQRJUDPD DVHUH[HFXWDGR GHDo}HV &ROHWDGHGDGRV UHODWLYRVjV FLDQREDFWpULDV 1LYHODPHQWRGH FRQFHLWRVHWpFQLFDVD VHUHPHPSUHJDGDV (WDSDSURSRVWD &DUDFWHUL]DomR GH LWHQV 'LDJQyVWLFR JHUDO 'LDJQyVWLFR H SURJQyVWLFR ELROyJLFRV GDEDFLDHGDV87(V VRFLDLV H GDEDFLDHPUHODomR LQVWLWXFLRQDLVHQYROYLGRV jV /HYDQWDPHQWR LQWHUIHUrQFLDV GH GDVFLDQREDFWpULDV GHPDQGDV (WDSDSURSRVWD 3URSRVLomR $YDOLDomRH5HODWyULRV 3URJUDPDV GH (ODERUDomR GH 3URMHWRV UHODWyULR FRP ,QWHUYHQo}HV H (VWXGRV FULWpULRV HVSHFtILFRVSDUDDV87(H SDUD VHOHomR GH WpFQLFDV JHUDLV SDUD D EDFLD GR ULR GDV9HOKDV SDUDWUDWDPHQWRVGH FLDQREDFWpULDV 7DEHOD 6.0 - Principais contribuições científicas ou tecnológicas da proposta A presente proposta tem como principais contribuições científicas e/ou tecnológicas as seguintes premissas: 1) Aumento do conhecimento, quantitativo e qualitativo sobre uma bacia hidrográfica de perfil multifacetado, com área rural e urbana de larga extensão; 2) Possibilidade da identificação das principais áreas de ocorrência das cianobactérias e quais as técnicas mais adequadas para seu controle a partir de escalas regionais; 3) Identificação de melhor relação custo x benefício para a gestão de recursos hídricos quando em termos de controle tecnológico de cianobactérias; 4) Criação de redes de pesquisa/administrativas que possam criar/trocar entre si publicações relativas direta ou indiretamente ao tema da seleção de técnicas de tratamento de água. 196 7.0 - Contratação de equipe técnica Uma das maiores necessidades a serem consideradas no projeto proposto é o de se estabelecer uma estrutura multidisciplinar de assessoria desde a coleta de dados até a tomada de decisões sobre o melhor tratamento de água disponível, tanto em termos de preço como em termos de técnica. Esse cuidado deve ser estabelecido por todo o processo de implantação do projeto e de modo a seguir as determinações técnicas, administrativas e jurídicas envolvidas como, por exemplo, àquelas expostas tanto na Constituição Federal em seu Art. 37, que trata que o Estado (órgão aqui fomentador) deve se pautar pela busca da legalidade, impessoalidade, moralidade, publicidade e, principalmente, eficiência da máquina pública (ou seja, deve buscar o máximo de capacidade de uso de seus recursos materiais e humanos da melhor maneira possível – tempo, resultados, permanência etc). Neste sentido, uma das preocupações existentes para a definição da equipe técnica proposta adiante foi no sentido de se estabelecer intersecções constantes entre as áreas das engenharias, biológicas e humanos, como fatores determinantes para o sucesso do projeto, unidos por uma perspectiva de integração. Isto posto, assim se determina as demandas5: 7DEHOD&RQWUDWDomRGHHTXLSHWpFQLFD 3URILVVLRQDO %LyORJR 4XDQWLGDGH 3HUILO 6rQLRU 3URGXWR $YDOLDomR VLWXDomR SUHOLPLQDU GDV VREUH FLDQREDFWpULDV HODERUDomR GH UHODWyULR SDUD GHWHUPLQDomR GH WpFQLFD GH WUDWDPHQWR D SDUWLU GH GDGRV ELROyJLFRV &RRUGHQDGRU 6rQLRU $UWLFXODomR LQWHULQVWLWXFLRQDO GH *HUDO IRUPD D GHVHQYROYHU DQiOLVH HVWUDWpJLFD GH LPSODQWDomR GH FRQWUROHGDVFLDQREDFWpULDV (QJHQKHLUR 6rQLRU $YDOLDomRGHLPSDFWRHVWUXWXUDOH &LYLO 3OHQR GH YLDELOLGDGH SDUD VHOHomR GD WpFQLFDDVHUGHILQLGD (VWDJLiULRV *UDGXDQGRV &ROHWD GH GDGRV WDEXODomR GH HP (QJ GDGRV UHODWyULRV GH FDPSR $PELHQWDO UHODWyULRV *HRJUDILD DWLYLGDGHV SUHOLPLQDUHV GH &LrQFLDV %LROyJLFDV &LrQFLDV 6RFLDLV +LGUyORJR 6rQLRU ,GHQWLILFDomR GH iUHDV GH RFRUUrQFLDVGHFLDQREDFWpULDV 6RFLyORJR 6rQLRU 5HODWyULR GH LPSDFWR GDV FLDQREDFWpULDV H GR WLSR GH VHOHomR GH WUDWDPHQWR GH iJXD HVFROKLGR SDUD D SRSXODomR GD UHJLmRGHILQLGD 5 Aqui se considera: 1) Pro issional Júnior: até 3 anos de formado; Pleno: entre 4 e 8 anos de formado; Sênior: mais de 8 anos de formado. 197 8.0 - Parcerias, infraestrutura, apoios técnicos-financeiros Para o desenvolvimento do projeto em termos de uma rede de instituições e organizações interessadas no entendimento das questões vinculadas ao controle das cianobactérias será importante o estabelecimento de mecanismos de interação, seja pela participação em editais de financiamentos públicos e privados, seja pela possibilidade da geração de retornos futuros em termos de captação e investimentos de recursos. Nesta direção o atual projeto vislumbra a possibilidade de parcerias entre instituições de ensino superior (faculdades, universidades, institutos técnicos), assim como organismos públicos, a ver: 1) Universidade Federal de Minas Gerais; 2) Cefet-MG; 3) Projeto Manuelzão 4) NUVELHAS (Núcleo de Estudos) 5) Copasa 6) Agência Nacional de Águas (ANA) Dentre as várias fontes de recursos que poderiam ser acopladas dentro do atual projeto, tem-se algumas possibilidades de destaque, a ver (e já salientadas em BUENO (2012): • • • • • • • • • • • Os orçamentos federal, estadual e dos municípios integrantes da bacia; Os orçamentos de concessionárias de serviços públicos; Os Planos Plurianuais Federal e Estadual; Recursos advindos da cobrança pelo uso dos recursos hídricos; PRODES - Programa de Despoluição de Bacias Hidrográficas da ANA; FHIDRO – Fundo para recuperação de recursos hídricos de Minas Gerais; CEF – Caixa Econômica Federal; BNDES – Banco Nacional de Desenvolvimento Econômico e Social; FUNASA – Fundação Nacional de Saúde6; Banco Mundial (BIRD) e Banco Interamericano de Desenvolvimento (BID). FUNDO SOMMA do Banco de Desenvolvimento de Minas Gerais – BDMG. 9.0 - Conclusões Colocada como uma das questões mais emergentes dentro das políticas públicas de recursos hídricos em Minas Gerais, com especial destaque para sua ocorrência na bacia hidrográfica do Rio das Velhas, a floração de cianobactérias se constituiu aqui como o foco de uma proposta para a aplicação de gestão de projetos. 10.0 - Bibliografia Agência Nacional de Águas – ANA. Disponibilidade e Demandas de Recursos Hídricos no Brasil. Cadernos de Recursos Hídricos 2. Superintendência de Planejamento de Recursos Hídricos e Usos Múltiplos. 6. Sobre este parceiro, cabe destacar que houve reunião para a nivelamento de informações sobre a atual situação do Rio das Velhas juntamente entre os presidentes da FUNASA e do CBH Rio das Velhas, para início de propostas para 198 projetos de estudos cientí icos e estruturais, no segundo semestre de 2011. Brasília, (2007). Agência Nacional de Águas – ANA. Hidroweb. Disponível em: http://hidroweb.ana. gov.br/. Acesso em 12/07/2012. Agência de Águas Peixe Vivo – Disponível em : http://www.agbpeixevivo.org.br/index. php/noticias/48-noticias-internas/576-processo-de-selecao-para-o-provimento-de16-vagas-na-agb-peixe-vivo.html. Acesso em 13/06/2012. Atlas da Bacia do Rio das Velhas (2003). BUENO, Eduardo. Proposta de Termo de Referência aprovada para licitação pela Agência de Águas Peixe Vivo. CAMARGOS, Luiza de Marillac Moreira (coord.). Plano diretor de recursos hídricos da bacia hidrográfica do rio das Velhas: resumo executivo - dezembro 2004. Belo Horizonte: Instituto Mineiro de Gestão das Águas, Comitê da Bacia Hidrográfica do Rio das Velhas. 2005. CARNEIRO, Talita Gomes e LEITE, Flávio. Cianobactérias e suas toxinas. Revista Analytica. Número 32. Dezembro 2007/Janeiro 2008. COPASA. http://www.copasa. com.br/cgi/cgilua.exe/sys/start.htm?tpl=home. Acesso em 13/07/12. COSTA, Maria Angélica Maciel. Reflexões sobre a política participativa das águas: o caso CBH Velhas/MG. Dissertação de Mestrado. UFMG. 2008. Decreto Estadual No 41.578/2001: Regulamentação da Lei 13.199/1999. Deliberação CBH Rio das Velhas No 01/2009: Altera os artigos 4 e 10 da Deliberação Normativa CBH Rio das Velhas Nº 02/2004. Deliberação CBH Rio das Velhas No 01/2012: Define as Unidades Territoriais Estratégicas – UTE do CBH Rio das Velhas para uma gestão descentralizada dos recursos hídricos da bacia. Deliberação CBH Rio das Velhas No 02/2004: Estabelece diretrizes para a criação e o funcionamento dos subcomitês, vinculados ao comitê da bacia. Deliberação CBH Rio das Velhas No 02/2009: Regulamenta os procedimentos para a criação e o funcionamento de subcomitês de bacias hidrográficas, vinculados ao CBH Rio das Velhas. 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Acesso em 14/07/12. 200 201 Agenda Social ELETRONIC JOURNAL VOLUME NÚMERO 8 1 ISSN 1981-9862 www.revistaagendasocial.com.br ECONOMIA CRIATIVA NO BRASIL: TRAJETÓRIA, DEBATE E INSTITUCIONALIZAÇÃO DE UM CONCEITO Creative economy in Brazil: pathways, debate and concept´s institutionalization. 1. LEITÃO, Andreza Barreto; 2. GANTOS, Marcelo Carlos. 1. Bacharela em Ciências Sociais (UENF), Mestra do Programa de Pós-Graduação em Políticas Sociais (PPGPS/CCH/UENF), E-mail: [email protected]; 2. Doutorado em História Social da América pela Universidade Federal Fluminense (UFF), Professor do Programa de PósGraduação em Políticas Sociais (UENF), E-mail: [email protected] RESUMO 202 ABSTRACT O artigo propõe uma discussão focalizada na análise das interseções entre as esferas da cultura e do trabalho e suas consequências no campo das políticas públicas brasileiras. O objetivo é descrever o processo de circulação e apropriação de idéias mediante o qual o conceito de “Economia Criativa” se institucionaliza em uma Secretaria de governo homônima dentro do Ministério da Cultura. Além de breve apresentação histórica e teórica sobre o processo histórico, pretende-se contribuir para o debate sobre a adaptação do conceito de Economia Criativa ao quadro brasileiro, pontuando alcances, limitações e desenhando seu horizonte de possibilidades. This article proposes an analysis focused on the intersections between the spheres of culture and labor and its consequences in the ϔield of Brazilian public policy discussion. The goal is to describe the process of circulation and appropriation of ideas by which the concept of “Creative Economy” is institutionalized in a namesake Department of Government within the Ministry of Culture. Besides brief historical and theoretical presentation of the historical process, the aim is contribute to the discussion on the adaptation of the concept of Creative Economy to the Brazilian context, highlighting achievements, constraints and imagining their horizon of possibilities. PALAVRAS-CHAVE Economia Criativa; Políticas Públicas; Políticas Sociais; Trabalho Criativo; Desenvolvimento. KEY-WORDS Creative Economy; Public Policy; Social Policies; Creative work; Development. Introdução Em tempos de desemprego estrutural e de renovados desafios da questão social na região e no mundo, urge que se faça uma análise sobre as atuais Políticas Públicas que são construídas no Brasil sobre o apanágio da promoção do desenvolvimento nacional. Este trabalho trata sobre a circulação de ideias, a recepção, elaboração politica e institucionalização do conceito de “Economia Criativa” no pais. Um projeto em construção. Aproximações ao conceito de Economia Criativa A expressão “Economia Criativa” é relativamente recente, surgindo pela primeira vez em 2001, numa matéria de capa da revista Business Week, intitulada “The creative economy – the 21 century corporation” e dando título ao livro de John Howkins “The Creative Economy – how people make money from ideas”, publicado em Londres (MIGUEZ, 2007, p.98). De acordo com Reis (2008a, p. 16), a origem se dá há poucos anos antes, a partir da experiência do projeto Creative Nation, em 1994, na Austrália. Havia o intuito, por parte do governo australiano, em, concomitantemente ao fomento das artes, promover a elaboração de políticas públicas de preservação da herança cultural e reconhecimento dos aborígenes australianos enquanto elemento relevante da identidade nacional. Tal projeto tinha como premissa a importância do trabalho criativo, sua contribuição para a economia do país, bem como o papel das tecnologias como aliadas da Política Cultural. Já em 1997, no Reino Unido, durante a gestão de Tony Blair, a idéia se amplia, quando, diante da eminência de uma crise econômica global dos setores tradicionais, a equipe britânica distigue setores de potencial econômico relevante para o país, que foram chamados de “Indústrias Criativas”, os quais se definem como “indústrias que tem sua origem na criatividade, habilidade e talento individuais e que apresentam um potencial para a criação de riqueza e empregos por meio da geração e exploração de propriedade intelectual”1. A classificação de Indústrias Criativas da UNCTAD é dividida em quatro categorias amplas: patrimônio cultural (incluindo artesanato, festivais e expressões da cultura tradicional), artes (artes visuais: pintura, escultura e fotografia/ artes dramáticas: teatro, dança, ópera, circo, música) , mídia (edição e mídia impressa, audiovisual, cinema e rádio) e criações funcionais (design de moda e de interiores, arquitetura, conteúdos digitais, jogos), os quais são apresentados como setores intrínsecamente inovadores e privilegiados na geração de emprego e renda. ( DUISEMBERG, 2008, p. 61) A fim de compreender os preceitos necessários para o desenvolvimento da Economia Criativa, é importante considerar o panorama das mudanças globais do período. Diz-se que o processo de Globalização, caracteriza-se pela desindustrialização de muitas economias, assim como pela fragmentação das cadeias de produção e a integração financeira em escala mundial. Atualmente, admite-se ainda, que o capital de uma empresa não se mede apenas por seu patrimônio material, mas também pelos chamados “ativos intangíveis”, que, neste caso, pode ser representados, por exemplo, por sua marca registrada e expressos nos moldes das políticas de propriedade intelectual. 1. Cf. REIS, Op. Cit. Também Disponível em: http://www.culture.gov.uk/about_us/creativeindustries/default.html 203 Paralelamente, percebe-se o aumento da demanda por serviços criativos no setor de turismo: a valorização da cultura ofstream2, das identidades locais, da experiência, do único, do singular. Nessa perspectiva, de acordo com REIS (2011), dois ativos econômicos apresentam-se como facilmente transferíveis entre cidades, países e regiões: Capital & Tecnologia, e, por sua vez, a Cultura se mostra como um ativo econômico diferenciado: agrega valor, pois incorpora conhecimento não facilmente copiável, que não se consegue “transferir” com certa facilidade, sem que se perca sua especificidade e, portanto, gera os chamados “ativos intangíveis”, também representados pelos direitos de propriedade intelectual. (REIS, 2011, p. 151) O primeiro passo para compreender o sentido destas políticas é o surgimento, nos anos 1970, de teorias que propunham que o capitalismo estava suplantando a fase industrial e seguindo para uma fase pós-industrial, ou para o pós-fordismo, como alguns denominam. O século XX foi marcado por intensas e seqüenciais mudanças nos campos político, cultural, social e tecnológico, cujos efeitos seguem em curso hoje: mudanças de ordem estrutural, tais quais a ampliação do setor de serviços em detrimento ao setor industrial e importância cada vez maior da função da tecnologia e do conhecimento nos rendimentos de produtividade. Nos novos modelos de gestão a constante aquisição de conhecimentos e habilidades dos trabalhadores é fundamental. Vemos paralelamente um processo de capitalização incessante do tempo ocioso, onde os indivíduos são impelidos a se qualificarem continuamente, sob pena de perderem sua vaga no sistema produtivo. Inaugura-se a chamada “Economia do Conhecimento”, ou nova economia, que se fundamenta na supremacia de conteúdos imateriais, simbólicos e intangíveis. Em síntese, teríamos o seguinte esquema: Século XIX-XX - Era Industrial Fins do Século XX, início do Século XXI Era “Pós- Industrial” MATÉRIA PRIMA , PRODUTOS, SERVIÇOS CONHECIMENTO, CULTURA, EXPERIÊNCIA Tangível, Finito, Inelástico Intangível, Infinito, Elástico QUANTITATIVO QUALITATIVO Massificação Singularidade Economia da Escassez Economia da Abundância Entre os séculos XIX e o século XX, a chamada Era Industrial, com a predominância da material prima, de ativos tangíveis, do quantitativo, configurando uma “economia da escassez”, em contraposição ao período que se configura entre a segunda metade do século XX e a atualidade, a que Daniel Bell denominou como “pósindustrial”, também chamada de pós-fordista, devido ao esgotamento do paradigma fordista/taylorista de racionalização do trabalho que tinha por base técnica processos mecanizados. Para Nico Stehr, inegavelmente os fundamentos da ordem social que divisamos à diante são o conhecimento, tal ordem se faz presente por transformações visíveis em toda parte: no mundo do trabalho, na indústria, nas prestações de serviços, mas também na agricultura e em todos os demais setores da economia, portanto é sensato falarmos em uma “sociedade do conhecimento”. Contudo, ele pondera que 204 2. Cultura de Fluxo. “o conceito de sociedade pós-industrial indica uma direção errada, pois a indústria, o chamado setor de fabricação, no qual produzimos carros, geladeiras e coisas parecidas, não perde a importância. Só que cada vez menos pessoas trabalham na indústria”. (STEHR, 2007, p. 47). Braga analisa a questão: Nos últimos trinta anos, dizem alguns, o trabalho humano vivo estaria mudando de conteúdo: do material para o imaterial. Se antes da informatização da produção de bens e serviços o conteúdo do trabalho era essencialmente material, isto é, implicava no dispêndio físico de energia objetivando transformar a matéria, com as novas tecnologias informacionais, o dispêndio físico cede lugar às aptidões cognitivas e o objetivo final do processo de trabalho é acumular informação agregando um valor adicional oriundo da criatividade intelectual. (BRAGA, 2004, p. 50) Ao falar sobre o chamado “Capitalismo Cognitivo”, Cocco (et al, 2003, p. 12) assinala que Schumpeter (1883 – 1950) seria o primeiro a dar conta da inovação como motor fundamental da economia. Os pensadores neo-schumpeterianos enfocam o papel do conhecimento como instrumento-chave para o alcance do fato inovador. O ponto que se coloca é, como formula Antonella Corsani: “Quem são os sujeitos da atividade inovante, que teoria do sujeito criador poderia fundar a análise do fato inovante?” (CORSANI, 2003, p. 18) De onde, trazendo para o glossário da Economia Criativa, podemos também indagar: qual criatividade é valorizada e quem institui que ela mereça ser valorizada? Castel (1998) fala sobre as metamorfoses da questão social, como um fantasma que ronda a sociedade contemporânea, colocando em xeque as garantias conquistadas pelos direitos trabalhistas que configuravam a condição salarial até parte do século XX. O autor aborda o processo em que se desenvolve uma “nova questão social” nos últimos anos, a qual, ultrapassando a pauperização de uma periferia precária, se caracteriza pela “desestabilização dos estáveis”, ou seja, pela retirada de direitos conquistados pelos trabalhadores, e que toma a mesma amplitude e centralidade daquela questão social oriunda das primeiras revoluções industriais, onde se observava o acirramento de conflitos, desemprego e precarização laboral. Diante do chamado contexto “pós-fordista”, as formas atuais de emprego se parecem mais com as antigas formas de contratação, quando o status do trabalhador se diluía ante as pressões do trabalho. O progresso técnico, em vez de criar, suprime empregos: as transformações tecnológicas promovem a invalidação dos trabalhadores mais velhos, não aptos à produtividade pela via informatizada e, ao mesmo tempo, jovens demais para se aposentarem. Essa precarização do emprego e aumento do desemprego gera déficits de “lugares ocupáveis” na sociedade. Assim, vemos o que Castel caracteriza como um processo de desfiliação, entendido como a ausência de vínculos e a não inscrição do sujeito numa estrutura de sentidos. Os chamados “inúteis para o mundo” escolhem entre a resignação e a raiva. Ocorre, com isso, o crescimento de uma vulnerabilidade de massas que havia sido lentamente afastada (CASTEL, 1998, p. 495 – 591) 205 Isto posto, questiona-se quais modelos produtivos seriam capazes de criar “refiliações” dos sujeitos envolvidos. Se formos pensar nos atuais desafios das Políticas Sociais no que diz respeito ao bem-estar do trabalhador, sua qualidade de vida e erradicação da miséria é de se intuir3 que dificilmente alguém que trabalha por meio da expressão de algum talento artístico/criativo o faça por obrigação ou por imposição de fatores meramente de ordem financeira: antes, trabalha-se com o que se gosta. Dir-se-ia que o trabalho criativo tem por premissa a auto-realização dos sujeitos. Destaca-se, concomitantemente, que essa Economia Criativa tem se revelado como importante via de geração de empregos e renda na atualidade. No Reino Unido, a Economia Criativa torna-se referencial em 2005: representa 7,3% do PIB em 2005 e possui, entre 1997 – 2005, taxa de juros de 6% a.a , frente a 3% a.a. do total da economia. (REIS, 2011, p. 153). E, assim, conforme assinalado pelos autores, a Economia Criativa também tem se apresentado como estratégia para o fortalecimento econômico e social de países em desenvolvimento: Nos países em desenvolvimento, especialmente nos mais pobres, a economia criativa é uma fonte de criação de empregos , oferecendo oportunidades para a mitigação da pobreza. Atividades criativas, especialmente as ligadas às artes e às festas culturais tradicionais, geralmente levam à inclusão das minorias, mantidas à distância. Isso facilita a maior absorção de parcelas de jovens talentos marginalizados que, na maioria dos casos, envolvem-se com atividades criativas no setor informal da economia. Além disso, como muitas mulheres trabalham na produção de arte e artesanato, nas áreas relacionadas à moda e à organização de atividades culturais, a economia criativa também desempenha um papel catalítico na promoção do equilíbrio de gêneros na força de trabalho criativo. (DUISENBERG, 2008, p. 61) Há uma tendência global de adesão ao fortalecimento das indústrias criativas, percebendo a cultura como um vetor da nova economia. Se, por um lado esse fato aumenta seu status entre as políticas públicas, por outro, há o risco de comprometer a especificidade da cultura, no momento em que ela se submete à lógica econômica. Em geral, quando assume o caráter conservador, não adaptado às novas tecnologias (associadas ao software livre, copyleft, etc.), o projeto de implementação das indústrias criativas costuma vir acompanhado de uma acentuação das políticas de proteção à propriedade intelectual. O próprio John Howkins (responsável por ter cunhado o termo “Economia Criativa”) em visita ao SESI-SP comenta que “não há tantos contratos noutros setores como na economia criativa. Nos balancetes constam basicamente copyrights.”4 Vale, neste sentido, atentarmos para a pergunta: De onde vem esta noção de “propriedade intelectual” e o aparato legal a ela relacionado? De acordo com Vianna (2005), sua origem é comprometida com relações de poder. Com o florescimento da imprensa, na transição da idade média ao renascimento, os soberanos, ao se verem ameaçados pela possibilidade da democratização da informação, constituem um ardiloso mecanismo de censura: concedem monopólio da edição e comercialização 4. Anotação tomada durante a palestra de John Howkins no “Seminário Internacional SESI-SP – Economia Criativa, 206 Cultura e Negócios” em 17 de abril de 2012. dos títulos aos donos dos meios de produção dos livros desde que estes, em troca, cuidassem para que não fosse difundido nenhum conteúdo desfavorável à ordem vigente. “A esse privilégio no controle dos escritos, chamou-se copyright, que nasceu, pois, de um direito assegurado aos livreiros, e não de um direito do autor dos escritos.” (ABRÃO, p. 28, 2002. Apud VIANNA, 2005). Outro problema é que, geralmente, os intermediários exigem dos criadores a recriação dos padrões e esquemas dos produtos culturais, com a finalidade de reduzir custos e riscos de investimento. Isso pode se configurar como ameaça à diversidade cultural. Há de se ter cuidado frente à iminência do risco de que tal aparato legal – quando expandido não de forma a resguardar os direitos dos produtores, mas dos difusores de tais conteúdos (empresas, gravadoras, editoras), no âmbito da Economia Criativa – sirva para garantir a exploração por terceiros dos conteúdos simbólicos gerados pelas comunidades. Isto é, uma vez que conteúdos simbólicos tornam-se ativos agregadores de valor econômico, as pessoas correm o risco de perderem o direito até sobre o que elas significam. Tal quadro já tem gerado conflitos, conforme relata Kovács: ativistas quenianos estão lutando para reter designs culturais que foram desenvolvidos na África Oriental, mas que estão sendo patenteados por empresas em países ricos. Após perder a marca registrada da cesta Kiondo para o Japão, hoje, a famosa estampa de tecido kikoi corre o risco de ser patenteada por uma empresa britânica. O kikoi é um tecido colorido de algodão, historicamente vestido por homens e mulheres em toda costa oriental africana. (KOVÁCS, 2008, p. 110) Desse modo, pensando em políticas que não resultem na expropriação de significados, é mister a reflexão sobre a possibilidade de atrelar o conceito de propriedade intelectual aos campos do conhecimento tradicional e do patrimônio imaterial, para que estes saberes sejam respeitados. Nesse sentido, a consolidação de uma política nacional de Economia Criativa, visando à proteção de tais conteúdos, frente a um processo global que já se encontra em curso, pode ser encarado de modo positivo. Pensamos que grande desafio das Políticas Públicas nesse sentido é o de não promover a redução da cultura a um bem cultural, todavia possibilitar que os grupos utilizem de sua cultura como um bem quando eles assim desejarem. A aparição da Economia Criativa no contexto brasileiro Se a cultura é o recurso privilegiado na economia criativa, num país miscigenado e tão plural em sua formação como nosso, onde vemos reinar a diversidade, certamente possuímos esse recurso em abundância, o que faz com que a promoção da Economia Criativa seja-nos interessante em termos de “vantagens competitivas” a nível internacional. Mas, do mesmo modo que o Brasil sempre foi dotado de riqueza em recursos naturais, as questões que se colocam são as seguintes: Como se dão, na Economia Criativa, os usos e apropriações desses recursos? Será que podemos afirmar que seus projetos e políticas realmente culminam na redistribuição de renda? Qual modelo de gestão que cumpriria tal finalidade? Ana Carla Fonseca Reis destaca que um elemento base nessa questão é pensarmos sobre a “inadequação dos atuais paradigmas sócio-econômicos em lidar com as discrepâncias distributivas, forjar 207 modelos sustentáveis de inclusão econômica e resolver os problemas da violência urbana, ambientais e sociais que nos afligem”. (REIS, 2008b, p. 23) Portanto, como saída, a noção de Economia Criativa por aqui deveria passar por adaptações, dando ênfase na economia da experiência que “reconhece o valor da originalidade, dos processos colaborativos (...) fortemente ancorada na cultura e em sua diversidade” (idem, p. 24) e da economia da cultura “ que propõe a valorização da autenticidade de do intangível cultural, único e inimitável” (idem), as quais abririam portas às aspirações dos países em desenvolvimento de possuírem um recurso abundante em suas mãos. Para a autora, (...) gerar riqueza não equivale a gerar desenvolvimento, a questão de fundo de nossas economias continua sendo não somente como crescer, mas como crescer de modo sustentável e, ao mesmo tempo, distribuir as possibilidades de inclusão (...) de formação de profissionais capazes de conquistarem seus meios de sobrevivência e se realizarem com isso. ( REIS, 2011, p.151) De acordo com o ex-ministro Juca Ferreira, nos últimos anos tem sido de recomendação dos relatórios da ONU o tratamento da Cultura como propulsora no desenvolvimento das nações. Ele afirma que isso não se dá por um acaso, uma vez que “não se pode conceber desenvolvimento ou tecnologia sem cultura, porque tudo está impregnado de cultura” (FERREIRA, 2010). Para ele, portanto, a cultura deveria ser encarada de uma forma holística, dado que : A cultura produz muitas “externalidades”; os impactos dos processos simbólicos, das ações e dos conteúdos culturais e artísticos iluminam de diversas formas os diferentes segmentos da sociedade e a vida das pessoas nas mais diversas dimensões: impactos da cultura são visíveis na economia, na saúde, na educação, na ciência e tecnologia, na pesquisa, na qualidade das relações sociais, nas questões de segurança pública, na vida política do país, na possibilidade de desenvolvimento de subjetividades complexas, fundamentais na formação de uma cultura democrática, solidária e participativa. (Op. Cit.) 208 Ferreira percebe a cultura em seu sentido antropológico como aquilo que “cimenta” toda forma de ação humana, daí o protagonismo das políticas culturais, que deveriam fazer uma ponte entre os demais ministérios. Podemos, paralelamente a nossas considerações anteriores, compreender a possibilidade da criação da Secretaria de Economia Criativa como fruto dessa necessidade de intercâmbio entre setores ministeriais e na medida em que se recoloca a Cultura como componente estratégico para o desenvolvimento brasileiro. Visionário, o ex-ministro da Cultura Celso Furtado, já na década de 70, afirmava no livro Criatividade e Dependência, que “implícito na criatividade existe, portanto, um elemento de poder”. (FURTADO, 1978, p. 17) e aventava a possibilidade de superação da dependência econômica – particularidade dos países em desenvolvimento – por meio da criatividade. Furtado se preocupa com a questão da dependência, em função do contexto global. Para ele, os paises em desenvolvimento não tinham condições de se tornarem contemporâneos aos industrializados se não se adequassem à tática correta. Até a metade do século XX, os esforços para a saida da condição de dependencia se relacionavam ao folego da industrialização pautada na substituição de importações faziam algum sentido. No pós-guerra, essa estratégia não se sustentaria: de nada adianta ter máquinas, tecnologia, ou cultura organizacional, porque o que chega primeiro é o padrão de consumo. Desse modo, para o Celso Furtado é pouco válido tentar competir em desenvolvimento tecnológico se não tivermos criatividade para forjarmos os nossos padrões de consumo, isto é, a única saida para os países periféricos consiste em investirem em criatividade para se anteciparem a essa demanda de contornos globais e se recolocarem na dinâmica da sociedade de consumo . Outro autor que pensou como poucos a nação brasileira, cuja obra é vinculada às teorias da mudança social e ao desenvolvimento nacional é Darcy Ribeiro, que também na década de 70 apontava o diferencial dos papéis da criatividade e da inovação nessa empreitada: Um dos fatores fundamentais da mudança cultural é a criatividade, através de invenções e descobertas. Outros fatores de mudança são a difusão através dos contatos entre povos e a inovação, através de movimentos sociais revolucionários que ensejem o exercício da criatividade no plano institucional. (RIBEIRO, 1975, p. 141) Ferreira ainda alerta: “Muitos não sabem que a cultura movimenta uma economia que emprega mais que a indústria automobilística, já respondendo por mais de 6,5% de nosso PIB” (Idem), isto é, trata-se de uma economia em franca expansão. De acordo com Euclides Mauricio de Souza, as articulações entre cultura e desenvolvimento devem ser encaradas em sua complexidade, dando ênfase a seu caráter transversal: Para que a cultura seja inserida no contexto de um desenvolvimento sustentável, é preciso que suas respectivas políticas públicas sejam devidamente articuladas no conjunto de outras políticas voltadas para essa proposta de desenvolvimento. Ou seja, criar pontes, abrir diálogos conseqüentes em ações e políticas(...) (SOUZA, 2008, p. 2) Os termos Indústrias Criativas e Economia Criativa, cuja penetração em alguns países – como o caso específico da França (MIGUEZ, 2007, p.101) – inicialmente encontravam resistências, tendem a se acelerar particularmente pelo fato de que a UNESCO passou a incorporá-los a suas iniciativas e documentos. No Brasil, o conceito chega pelos debates do reposicionamento do papel da cultura na estratégia socioeconômica a partir de 2004, com a XI Reunião Ministerial da Conferência das Nações Unidas para o Comércio e Desenvolvimento (UNCTAD). Em 2005 ocorre, em Salvador, o I Forum Internacional de Indústrias Criativas, organizado por iniciativa do embaixador Rubens Ricupero (então secretário-geral da UNC-TAD) e do ex-Ministro Gilberto Gil. Em 2006, uma pesquisa inédita da FIRJAN5 com base em dados da Relação Anual de Informações Sociais (RAIS) indica a participação de 16,4% de toda a cadeia produtiva do setor considerado Economia Criativa no PIB brasileiro e a movimentação de 381,3 bilhões de reais de toda a riqueza produzida nesse mesmo ano em que, também, o módulo “Economia Criativa” é inserido no Fórum Cultural Mundial do Rio de Janeiro. Em 2007 ocorrem dois Seminários Internacionais no Ceará e São Paulo. (REIS, 2008b, p.21). No ano de 5. Federação das Indústrias do Estado do Rio de Janeiro no Rio de Janeiro 209 2008 são editados os trabalhos “Cadernos de Economia Criativa: Economia Criativa e Desenvolvimento Local” pelo SEBRAE & SECULT de Vitória e “Economia Criativa como estratégia de desenvolvimento: uma visão dos países em desenvolvimento”, pelo Itaú Cultural, de São Paulo, que sistematizam experiências e possibilidades acerca do tema, não se tratando, contudo de obras acadêmicas, muito embora boa parte de seus autores provenham da academia, como sinaliza Reis (2008b, p. 13). Mais recentemente, em 25 de fevereiro de 2011, é inaugurada a Federação Nacional de Economia Criativa (FNEC) no Centro Cultural dos Correios de Recife-PE6. Em 23 de setembro de 2011, durante o II Seminário Internacional de Políticas Culturais, na Fundação Casa de Rui Barbosa, é lançado o Plano da Secretaria da Economia Criativa, no qual se declara o compromisso com a formulação de um modelo próprio, alinhado à nossa realidade, com diretrizes e ações a se efetuarem até 2014. Importa salientar que muito da crítica a nossas políticas desenvolvimentistas diz respeito justamente à importação de modelos vindos de fora, sem a necessária adequação às nossas condições. Algo como: Copia-se a receita do bolo, mas nossos ingredientes não são os mesmos. No referido documento há uma preocupação em demonstrar que está havendo algum cuidado com relação a esse fato. Por exemplo, as remissões ao pensamento de Celso Furtado como precursor na construção de um modelo particular para as políticas da Economia Criativa ficam evidenciadas. Além disso, optou-se por usar a terminologia “setores criativos”, em vez de “indústrias criativas”, por motivos de tradução. O conceito de setores criativos é definido neste documento como: “(...) todos aqueles cujas atividades produtivas têm como processo principal um ato criativo gerador de valor simbólico, elemento central da formação do preço, e que resulta em produção de riqueza cultural e econômica.”7 Destacam-se os chamados princípios orientadores, por cuja intercessão se constitui o modelo de Economia Criativa Brasileira. De acordo com o Plano, as ações da secretaria devem atentar para o fato de que nossa riqueza cultural se deve a nossa diversidade cultural. Ela é responsável por um “mundo rico e variado que aumenta a gama de possibilidades e nutre as capacidades e valores humanos, constituindo, assim, um dos principais motores do desenvolvimento sustentável das comunidades, povos e nações.”8 Também se coloca a importância da sustentabilidade contra o uso indiscriminado de recursos naturais e tecnologias poluentes, cujo objetivo é obter lucros e garantir vantagens competitivas a curto prazo; um tipo de produção compulsiva e massificada de baixo valor agregado que é destituída de elementos originais identificadores das culturas locais. O princípio da inovação – concernente, por sua vez, à idéia de capitalismo cognitivo, que foi discutida - diz respeito à identificação de soluções aplicáveis e viáveis, à capacidade de lidar com riscos e à própria postura de vanguarda do artista. Por fim, vemos o princípio da inclusão social: dadas as condições atuais de precariedade de considerável parte da população brasileira, 6. http://www.fnec.net.br/ 7. Plano da Secretaria da Economia Criativa: políticas, diretrizes e ações. 2011 -2014. Brasília. Ministério da Cultura, p. 22 210 8. Plano da Secretaria da Economia Criativa: políticas, diretrizes e ações. 2011 -2014. Brasília. Ministério da Cultura, p. 33. a efetividade dessas políticas passa pela implementação de projetos que criem ambientes favoráveis ao desenvolvimento desta economia e que promovam a inclusão produtiva da população, priorizando aqueles que se encontram em situação de vulnerabilidade social, por meio da formação e qualificação profissional e da geração de oportunidades de trabalho e renda.9 Em 1º de junho de 2012, a partir do Decreto 7743 , é criada a Secretaria da Economia Criativa (SEC), composta pela Diretoria de Desenvolvimento e Monitoramento e pela Diretoria de Empreendedorismo, Gestão e Inovação. Segundo o texto resumido no site oficial do Ministério da Cultura, a SEC “tem como missão conduzir a formulação, a implementação e o monitoramento de políticas públicas para o desenvolvimento local e regional, priorizando o apoio e o fomento aos profissionais e aos micro e pequenos empreendimentos criativos brasileiros. O objetivo é tornar a cultura um eixo estratégico nas políticas públicas de desenvolvimento do Estado brasileiro.”11 Considerações Finais: No decorrere do texto focamos nosso esforço em contextualizar e configurar historicamente uma conjuntura de mutação da esfera produtiva brasileira e evidenciamos sua nova institucionalidade como resposta e adequação do pais ao ritmo das transformações e demandas da globalização. Nesse clima, apontamos a trajetória da circulação e apropriação de idéias e os contornos do debate que deu forma a matriz institucional da economia criativa no Brasil através da Secretaria de Economia Criativa. Neste momento “fundador” ainda não é prudente se aventurar a mensurar o alcance e impactos concretos deste processo em curso. Entretanto, é um fato histórico para o pais que as políticas publicas do setor promovidas pela Secretaria se encontram em plena fase de formulação e implantação permanecendo abertas ao debate público e ao controle social de setores qualificados da cidadania. Contudo, se pode inferir que, se por um lado há risco de estas mudanças promoverem processos de mercantilização da cultura, por outro, tais ações, se aplicadas às especificidades nacionais (regionais) e tendo em vista a redistribuição de bens simbólicos e de renda, poderiam facilitar a dinamização de novos atores e setores produtivos. Esta dinâmica, em tese, funcionaria como um elemento inovador do desenvolvimento endógeno contribuindo simultaneamente para a resignificação das relações produtivas em segmentos sociais diversificados e emergentes que passariam a atuar como sujeitos ativos nesta nova economia. A contribuição principal deste processo, a nosso entender, seria alargar o debate democratico, estimulando o processo político de reconhecimento e empoderamento dos sujeitos-criadores, valorizando saberes e identidades produtivas inovadoras que atualmente se encontram à margem do processo econômico hegemonico. 9. Plano da Secretaria da Economia Criativa: políticas, diretrizes e ações. 2011 -2014. Brasília. Ministério da Cultura, p. 34. 10. Disponível em http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/_Ato2011-2014/2012/Decreto/D7743.htm 11. http://www.cultura.gov.br/site/categoria/politicas/economia-criativa-2/ 211 Referências Bibliográficas: 212 BRAGA, Ruy. O trabalho na trama das redes: para uma crítica do capitalismo cognitivo. Revista de Economía Política de las Tecnologías de la Información y Comunicación. www.eptic.com.br, Vol. VI, n. 3, Sep. – Dec. 2004 BRASIL. Plano da Secretaria da Economia Criativa: políticas, diretrizes e ações. 2011 -2014. Brasília. Ministério da Cultura, 2011. 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