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IV Reunião Equatorial de Antropologia XIII Reunião de Antropólogos do Norte e Nordeste 04 a 07 de agosto de 2013, Fortaleza-CE Grupo de Trabalho: Fotografia, imagem fílmica e sonoridades em contextos etnográficos Título do Trabalho: Da performance fotográfica à imaginação ou como fazer uma antropologia da imagem em ação Inês Quiroga Coelho E-mail: [email protected] Instituição: PPCIS - UERJ Sempre me pareceu um pouco paradoxal falar sobre as potencialidades da fotografia, no âmbito da pesquisa antropológica, fazendo uso, puramente, de palavras. Me dava a impressão de que era quase o mesmo que descrever determinada cena e/ou situação etnográfica em frases e mais frases, ao invés, de, simplesmente, mostrar uma foto ou alguns minutos de um vídeo. No entanto, fui percebendo e aprendendo, à medida que adentrei, cada vez mais, o campo da antropologia visual, que palavra e imagem, cada uma dentro de sua especificidade e sensibilidade, atuam de modo distinto na construção do conhecimento. Com isso em mente, me lanço sem hesitação no mundo das palavras para, através deste, refletir sobre a experiência de realização de um ensaio fotográfico no âmbito de uma pesquisa, ainda em processo, com jovens participantes de projetos socioculturais da organização não-governamental Contato – Centro de Referência da Juventude 1. Adentrar e entender esta proposta fotográfica significa, antes de tudo, perpassar os caminhos que me levaram até ela, uma vez que a sua inserção, enquanto procedimento metodológico, não se deu de forma aleatória, mas sim, intrinsecamente, conectada a todo meu percurso, desde meu ingresso nesta organização não-governamental, há sete anos atrás, até os primeiros momentos em campo, já no âmbito de minha pesquisa de mestrado. Neste sentido, ao longo das páginas que seguem, procuro exercitar uma dupla mirada: olhar para o passado e para o presente, de modo a esboçar o percurso que me levou até o tema de minha pesquisa e o uso da fotografia, enquanto instrumento de produção de performances; e trazer à cena questões e reflexões acerca da imaginação e da invenção no contexto do trabalho de campo e na própria construção da narrativa etnográfica, vislumbrando, a partir das fotografias geradas, um caminho expositivo mais próximo ao mundo do sensível. 1 Ao longo do texto me referirei à ONG Contato – Centro de Referência da Juventude também como ONG Contato ou simplesmente Contato. 1 DO PERCURSO AO TEMA De 2007 a 2011, fiz parte da ONG Contato – Centro de Referência da Juventude, localizada na cidade de Belo Horizonte, Minas Gerais. Esta organização tem como foco atividades voltadas para a reflexão, formação e produção cultural nas áreas de audiovisual, música, artes plásticas, inclusão digital, meio ambiente e cooperação internacional, e busca, através de suas ações, estabelecer e estreitar o diálogo entre cultura e juventude. A ONG Contato, em relação às inúmeras organizações não-governamentais que vem proliferando no Brasil, com ações centradas, primordialmente, na população de baixa renda, apresenta um diferencial: a inclusão em seus projetos de jovens provenientes de distintas classes e espaços sociais. Dessa forma, em suas atividades convivem – tanto como participantes, quanto como funcionários – jovens de diferentes origens sociais e culturais. Ao longo dos cinco anos em que atuei nesta organização, participei e me envolvi de diferentes maneiras com os projetos socioculturais aí implementados. Durante o primeiro ano, fiz parte de uma espécie de conselho de jovens que opinavam e ajudavam na realização das atividades 2. Depois me tornei uma das participantes de um projeto de realização audiovisual e, por fim, após o término de minha graduação em Ciências Sociais, fui contratada para trabalhar em uma série de projetos, como produtora cultural e consultora em antropologia. Nos primeiros anos de vínculo com a Contato, a partir da convivência e do estabelecimento de relações de amizade com jovens de espaços sociais diferentes do meu, passei a ter grande interesse pelo mundo da periferia. Guiada por essa motivação, entre 2008 e 2009 desenvolvi uma pesquisa em bailes funk da cidade de Belo Horizonte, que deu origem à minha monografia de conclusão de curso. Após a realização desta pesquisa, em que busquei entender um pouco do universo da 2 Nesse meu primeiro momento de inserção na organização, as atividades, em que participava, faziam parte da primeira edição do projeto Cine Aberto – Laboratório de Filmes, que consistia em oficinas diversas na área de audiovisual e exibições de filmes nacionais, sendo algumas destas comentadas por seus realizadores e/ou especialistas da área de audiovisual. 2 periferia através de aspectos visuais – gestos, cortes de cabelo, indumentária, etc. – que demarcavam o pertencimento de jovens frequentadores do baile a este contexto social, começou a intrigar-me, não mais este mundo diferente do meu e suas características distintivas, mas a interação entre os diferentes mundos sociais, que apresentam fronteiras simbólicas, muitas vezes, rígidas, porém, em constante fricção. Frente à inquietação em relação a essas fronteiras e intersecções sociais, tornouse quase impossível não voltar o meu olhar para aqueles que fizeram parte do meu convívio diário durante cinco anos; para os jovens que, assim como eu e junto comigo, participaram dos projetos implementados pela ONG Contato e puderam, através deste espaço de imersão artística, conviver e interagir com diferentes universos sociais. Assim, diante dessa mistura de curiosidade, inquietação e necessidade de entendimento da minha própria experiência, emergiu o propósito de refletir, em minha pesquisa de mestrado, sobre a relação entre a arte e a formação identitária de jovens participantes de projetos socioculturais, buscando entender o papel da arte na inserção desses jovens em universos sociais distintos e o modo como esse múltiplo pertencimento reflete em suas subjetividades. Nas primeiras reflexões sobre meu objeto e minhas hipóteses antes da (re)imersão em campo, a ONG Contato era, por mim, pensada, como apenas um ponto de partida, enquanto local onde (eu supunha) os jovens pesquisados tiveram seu primeiro contato com a arte. Assim, logo em seguida, eu partiria em busca tanto do entendimento da possibilidade de transformação da arte em si, tendo como principais referências as reflexões sobre performances artísticas de Turner e Schechner 3, quanto da interação desses jovens com pessoas de distintas classes sociais em outros espaços conectados à arte, no intuito de aprofundar questões relativas a este múltiplo pertencimento e seus reflexos subjetivos. A Contato, dessa forma, neste momento inicial, ocuparia, no âmbito da pesquisa, um 3 Sobre a arte como possibilidade de interrupção do fluxo da vida cotidiana, momento de reflexividade e alteração das relações vigentes, ver DAWSEY (2011); HIKIJI (2005, 2006a, 2006b); SCHECHNER (2011); TURNER (1985, 1987, 2005). 3 papel importante, porém, coadjuvante, um “simples” cenário indicando a porta de entrada para o mundo da arte. No entanto, nas primeiras conversas e entrevistas em campo, a instituição, para além de sua “presença física” nos encontros com os pesquisados, já que estes ocorreram sempre ali, fazia-se o tempo todo presente, não apenas nas falas que procuravam responder às minhas perguntas referentes à ONG Contato e seus projetos, mas, principalmente, porque os sujeitos pesquisados mencionavam, constantemente, em distintos momentos das conversas e entrevistas, pessoas que por lá passaram ou que de alguma forma conectavam-se à instituição. O que eu pensava ser apenas um cenário, uma simples fachada de papelão, em que atrás se encontravam diversas manifestações artísticas, era desenhado como composto de pessoas que, em distintos momentos, aí se encontraram e relacionavam-se, de alguma forma, dentro e fora dos muros da instituição. Percebi, também, neste primeiro tatear, que não estava diante de um único mundo da arte, escrito em letras maiúsculas e negrito, e, sim, de mundos artísticos, em que cada sujeito apresentava a sua definição de arte. Neste sentido, não estava à frente de uma porta de entrada para a arte, mas de um espaço relacional, em que pessoas de distintos mundos artísticos interagiam. Tornou-se, assim, necessário redesenhar o caminhar da pesquisa, de modo a não somente permanecer um pouco mais e compreender em profundidade o espaço relacional construído pela e a partir da ONG Contato, mas também retroceder alguns passos e entender as concepções e relações desses jovens com a arte antes da entrada pelo portão enferrujado da Contato. O trabalho de campo, portanto, se transformou, deixando de ser um acompanhamento de trajetórias de vida, lineares e paralelas, em que a organização seria somente uma catapulta para o entendimento dos passos seguintes dos sujeitos pesquisados, e passou a se constituir como uma grande teia, em que tanto o percurso institucional da ONG Contato, quanto as trajetórias individuais encontram-se amalgamados, e cujos fios de relações passadas, presentes e futuras podem ser vislumbrados por entre as grades do muro da instituição. 4 O mergulho no objeto de estudo proposto se deu, neste sentido, a partir do entrecruzamento, com o percurso da própria ONG Contato, das trajetórias de Alex Santana, Anderson Medina, Jessica Martins e Vinicius Ribeiro 4. A escolha dos quatro jovens pesquisados deve-se, primordialmente, à nossa relação de amizade, uma vez que os cinco anos em que convivi diariamente no ambiente da ONG foram com eles compartilhados, pois participavam desta desde o pr imeiro dia em que passei a frequentá-la. Além disso, os quatro ainda encontram-se vinculados à organização, seja como monitores e assistentes, seja como técnicos de alguns dos projetos em realização. Ter como eixo central as trajetórias de vida dos quatro jovens foi fundamental, uma vez que me interessava entender as relações estabelecidas naquele espaço, seja com pessoas, seja com a arte, a partir dos olhares, percepções e significados atribuídos por estes sujeitos. Peixoto, Velho e Gonçalves, trabalhando com distintos conceitos, que apresentam particularidades, mas também muitos pontos de interseção – história de vida, trajetória e etnobiografia 5, trazem à luz o caráter de reconstrução de identidade dessas narrativas pessoais, permitindo que o sujeito defina “seu lugar social e suas relações com o grupo” (PEIXOTO, 1997, p. 152). Neste sentido, os jovens, a partir da reconstituição de momentos e situações de suas vidas, criam um estar em determinado contexto, que revela, simultaneamente, intimidade, emoções e conteúdos sociais. Suas falas, que mostram a “indissociável junção entre vivido e pensado, dado e construído, individual e social, ação e representação” (GONÇALVES, 2012, p. 39), trouxeram à tona não apenas suas trajetórias 6 individuais, mas também o próprio caminhar 4 Como bem pontua Goldman (2003, p. 470-471), existem várias questões e modos de agir possíveis em relação à preservação ou não das identidades dos interlocutores e sujeitos de uma pesquisa, dessa forma, explicito que na construção deste texto opto pelo uso não somente de seus nomes próprios (nome e sobrenome), mas, principalmente, pelo modo como são chamados dentro do espaço da ONG: Alex, Medina, Jessica e Vini, uma vez que o anonimato completo seria impossível e, além disso, deixaria sombras àquilo que a perspectiva da trajetória de vida busca, justamente, jogar luz: pessoas. 5 Para o entendimento das particularidades e pontos de interseção de cada um destes conceitos, ver GONÇALVES (2012); PEIXOTO (1997); VELHO (1994, 2006). 6 Ao longo deste texto, mesmo apoiando-me, também, nas ideias que perpassam tanto o conceito de história de vida, quanto de etnobiografia, faço uso, primordialmente, do termo trajetória, pois, no 5 da ONG Contato, que desde sua fundação em 2001, também se modificou, refletindo, visivelmente, nas pessoas que adentram seus muros. Desse modo, na pesquisa, parto dessas narrativas pessoais para reconstruir, também, o percurso institucional da organização. UM MUNDO COMUM: POTENCIALIZAR É PRECISO Ao longo dessas primeiras páginas, foi tornando-se cada vez mais claro que a fala que aqui ecoa não é de uma antropóloga que chega a determinado campo pela primeira vez, mas de um corpo familiar, que durante cinco anos vivenciou intensamente esse lugar e do qual, ainda hoje, pensando neste espaço relacional, além muros e projetos da instituição, faz parte. Desse modo, o mergulho etnográfico aqui descrito se dá a partir desse olhar tridimensional: jovem participante, amiga e pesquisadora. Faz-se necessário, no entanto, trazer à luz que o ponto de partida da minha caminhada até a entrada pelo portão enferrujado da organização é diferente do dos quatro jovens pesquisados: como costumámos brincar, eu sou do “asfalto”, enquanto eles são do “morro”. Neste sentido, ao me colocar como um corpo familiar, um membro do espaço relacional estudado, não tenho como intenção afirmar que apresento o mesmo olhar e percepção dos pesquisados, mas que, a partir de nossa entrada e convivência na organização, fomos afetados pelas mesmas forças7, conseguindo, assim, constituir um mundo comum. Se por um lado, estudar o que está perto, mergulhar internamente traz à luz, mais do que nunca a importância de, como coloca DaMatta (1978, p. 28), “transformar o familiar em exótico”, por outro, a riqueza desta minha vivência e da proximidade com esses jovens e com a ONG Contato, tornam óbvia a necessidade de adentrar caso deste estudo, acredito refletir melhor o movimento constante, o processo de metamorfose presente no caminhar desses jovens, dessas identidades em formação. 7 Goldman (2003), ao refletir sobre o devir-nativo do antropólogo, apoiando-se nas colocações de Favret-Saada (1990), diz que não se trata de colocar-se em seu lugar, mas de afetar-se por aquilo que afeta o nativo, estabelecendo “com eles uma certa modalidade de relação”. (p. 465) . 6 e potencializar essa experiência por nós compartilhada. Neste sentido, além do uso de métodos que buscavam inserir alguma distância mínima, como entrevistas semi-estruturadas e conversas informais com fotografias trazidas pelos jovens, tornou-se mais do que necessário lançar mão de um método que buscasse potencializar, tirar proveito dessa intimidade já conquistada, desse mundo comum compartilhado, no intuito de aceder e aprofundar, ainda mais, questões relativas ao modo como os jovens pesquisados percebem e (re)significam a experiência vivida, tanto no espaço relacional da ONG Contato, quanto antes de seu ingresso nesta. Neste sentido, propus aos quatro jovens a realização de um ensaio fotográfico com algumas das fotografias trazidas e comentadas durante as conversas informais. Se, nessas conversas, as imagens de diferentes momentos das vidas dos quatro jovens – tiradas por eles e suas famílias, amigos e funcionários da ONG Contato -, tornaram possível uma maior aproximação a lugares e tempos “presentificados” na folha de papel fotográfico e na tela do computador, no ensaio proposto, as fotografias assumiram um viés provocador. Através do uso de um projetor multimídia, as imagens, previamente selecionadas, foram projetadas em uma parede branca da ONG Contato e os pesquisados foram, em sessões fotográficas individuais, solicitados que se colocassem na projeção, isto é, em frente à parede branca, para que eu os fotografasse. Nessas sessões, utilizando também roupas brancas, uma vez que esta tonalidade reflete melhor a luz do projetor e potencializa, assim, a idéia de imersão nas cenas e vivências projetadas, os quatro jovens puderam, frente às suas respectivas imagens, se posicionar como quisessem, pensando somente em algum diálogo possível com as fotografias projetadas. Ao propor esse ensaio, tinha como intenção provocar um ambiente em que os jovens pudessem criar e recriar a si mesmos e sua relação com os espaços, pessoas e situações vivenciadas e enquadradas nas imagens. Como pano de fundo da construção desse espaço de improvisação, me apropriei de duas noções importantes que permeiam a obra do antropólogo e cineasta 7 francês Jean Rouch: antropologia compartilhada 8 e etnoficção9, buscando não apenas construir o conhecimento etnográfico na relação e diálogo com os sujeitos pesquisados, mas, principalmente, utilizar uma forma alternativa de acesso e representação da experiência vivida e das questões relativas ao sensível que perpassam meu estudo. Rouch, como aponta Gonçalves (2008, p. 148), ao exercer uma antropologia marcada pelo constante entrecruzamento de fronteiras, misturando gêneros, provocando a participação, conjugando etnografia e ficção, dá vida ao esqueleto das sociedades por ele estudadas e descortina, assim, uma verdade “inacessível ao olho senão pela mediação da câmera” (SZTUTMAN, 2005, p. 122 apud op. cit., p. 119). Ao realizar uma série de filmes, sendo Eu, um negro (1958) um dos grandes exemplos, em que seus amigos e personagens improvisam histórias inspiradas em suas experiências de vida, ele buscou na atuação e improvisação um caminho de acesso à “realidade”, apoiado nos universos imaginativos de seus personagens etnográficos, como ele mesmo apresenta nos minutos iniciais do filme Eu, um negro. Por seis meses segui um grupo de jovens imigrantes nigerianos em Treichville, um subúrbio de Abidjan. Propus-lhes fazermos um filme em que representariam a si mesmos, e poderiam fazer e falar o que quisessem. Foi assim que improvisamos este filme. Um deles, Eddie Constantine, foi tão fiel a seu personagem, Lemmy Caution, agente federal americano, que foi, durante as filmagens, condenado a três meses de prisão. Para o outro, Edward G. Robinson, o filme se transformou num espelho de autodescoberta: de descobrir ele mesmo. Ex-combatente da Indochina, expulso de casa por seu pai por ter perdido a guerra. Ele é o herói deste filme, passo-lhe a palavra. (Trecho da narração do filme apud GONÇALVES, 2008, p. 96-97) Neste sentido, o antropólogo-cineasta, permitindo que os sujeitos filmados improvisassem suas ações e falas, joga luz não somente sobre o caráter indissociável da realidade e dos personagens, mas também sobre a possibilidade de revelação, por parte destes, de “valores e sentimentos que poderiam, de outra maneira, não expressar diretamente, não por repressão ou inibição, 8 Sobre Rouch e sua antropologia compartilhada, ver GONÇALVES (2008); ROUCH (1995); BARBOSA; CUNHA; HIKIJI (2009), entre outros. 9 Sobre a noção de etnoficção, ver GONÇALVES (2008); SJÖBERG (2009); FERRAZ (2009, 2010), entre outros. 8 necessariamente, mas, algumas vezes, porque são tidos como certo”10 (LOIZOS, 2008 apud SJÖBERG, 2009, p. 2). Ferraz (2009, 2010) e Sjöberg (2009), ao refletirem sobre a criação de uma etnoficção no contexto de suas pesquisas junto, respectivamente, a uma companhia de circo-teatro e travestis e transexuais de São Paulo 11, trazem à luz, também, a possibilidade dos pesquisados revelarem sua interioridade, sonhos, desejos e recalques ao projetarem-se nos protagonistas do filme, tornando, assim, “possível compreender como suas próprias identidades se relacionam com os personagens” (FERRAZ, 2010, p. 5). Para Ferraz (2009), é possível “ver a projeção” da atriz Luciane Rosã, uma das personagens etnográficas de sua pesquisa, ao representar a protagonista de uma peça. Refletindo-se na personagem Patrícia, protagonista da peça o Chá de panelas, a atriz avalia os casamentos que não teve e os que viveu. As pulsões, o desejo, todos os sonhos recalcados confundese com os seus personagens. Nesse momento, ficção e realidade não se distinguem, são, ambos, experiências do passado em potência, por se realizarem na virtualidade da vida tal como imaginada pela atriz. A partir da proposição do trabalho sobre o personagem, a atriz narra a sua biografia, falando de um outro. (p. 6) Apesar de não solicitar aos quatro jovens a representação de algum papel específico, acionando, explicitamente, a elaboração de um duplo, de certa maneira, o espaço de improvisação criado possibilitou, também, uma duplicidade. Na primeira sessão de fotos realizada com Alex, quando disse que poderia se colocar onde quisesse na imagem projetada, ele enfatizou: “eu quero me colocar no lugar que apareço na foto”. Neste mesmo sentido, Jessica, ao encontrar o lugar em que gostaria de se posicionar, disse: “é pra mostrar a diferença de eu antes e agora”. O espaço construído a partir da proposta fotográfica gerou, assim, uma espécie de jogo de espelhos entre o “eu” dos jovens naquele momento e o “eu” que se encontrava projetado na parede. Dessa forma, as fotografias reproduzidas 10 Tradução livre do original em inglês. Os filmes Amores de circo e Transfiction são as etnoficções resultantes desses processos investigativos. 11 9 em tamanho quase “natural” tornaram-se mais que um “artefato da memória” 12, uma vez que permitiram aos sujeitos pesquisados uma confrontação entre esses dois “eus” e, assim, uma reflexão sobre si à luz dessa experiência vivida. Esta reflexividade acerca de si, de suas vivências e de suas relações com pessoas e espaços esteve presente não somente nas improvisações, mas também na análise, junto com os jovens, das imagens feitas. Assim, a observação conjunta, como propõe Peixoto (2000), reforçou esse confronto com suas próprias imagens, esse “reflexo no espelho”, adensando o processo de análise, uma vez que pude ver e entender determinadas questões através dos “olhos dos personagens” (p. 91). Se todo o processo de pesquisa foi marcado pelo diálogo constante com Alex, Medina, Jessica e Vini, na construção do ensaio fotográfico e na análise posterior das fotografias geradas, a antropologia compartilhada de Rouch ou, nos termos de Peixoto (2000), a troca antropológica 13 adquiriu, sem dúvida, ainda mais importância, uma vez que as trocas de olhares e opiniões sobre histórias, sentimentos, possibilidades fotográficas (enquadramentos, planos, ângulos, posições), etc., tornaram-se parte essencial desse processo. Nessa performance fotográfica ou “improvisação projetiva” 14, termo sugerido por Loizos (1993) à atuação presente nas etnoficções de Rouch e que espelha de forma precisa minha proposta fotográfica, abro caminho, assim, para a imaginação e a fabulação, colocando em pauta a possibilidade de se aceder a determinadas questões, que envolvem os sujeitos pesquisados, por meio da (re)invenção e atualização de momentos de suas vidas, da subversão ou não das experiências vividas. Tentei, portanto, tomando emprestada a reflexão de Piault (1995) sobre a experiência fílmico-etnográfica de Rouch, aproximar-me, através da ficção, da “(...) 12 Peixoto (2012) traz à luz que as fotografias ao funcionarem como um “artefato da memória”, permitem, no contexto da reconstituição de trajetórias de vidas, a “evocação dos fatos do seu passado” 12 (p. 346), de modo a recompor fragmentos deste. 13 A noção apresentada por Peixoto (2000), a meu ver, designa, de modo um pouco mais refinado, esse processo de interação entre antropólogo e sujeitos pesquisados, uma vez que enfatiza o movimento de dar e receber, além de abrir mais espaço para a possibilidade de que estas trocas nem sempre sejam iguais. 14 “Pelo termo „improvisações projetivas‟ Loizos refere-se à noção de „projeção‟ da psicologia e o seu significado de tornar algo implícito, explícito (...).” (SJÖBERG, 2009, p. 2) (tradução livre do original em inglês) 10 compreensão de uma existência, não somente ao nível de uma cotidianidade trivial, mas, também, no plano de uma afetividade específica que é posta em situação, projetando sonhos nos condicionamentos pragmáticos do dia-a-dia” (p. 188). Ao longo das sessões de projeção, portanto, quando pensava estar ultrapassando, de alguma forma, as fronteiras do fazer antropológico, uma vez que via, a cada fotografia tirada, os limites das noções de imaginação, ficção e realidade, tornando-se cada vez mais fluidos, me dei conta de que essa fricção das fronteiras entre arte e antropologia, pelo contrário, me aproximava do cerne da etnografia: da compreensão do outro. À medida que a via de acesso da antropologia ao sujeito e seu mundo se dá pelo falar e fazer deste o que é tomado como verdade na etnografia passa, necessariamente, pelo que os sujeitos imaginam e representam acerca de si e seu universo. Assim, seguindo os passos de Rouch, porém ainda longe de ter comido kusu e apresentar o poder de entender e revelar grandes segredos 15, mergulhei, sem medo, nessas fronteiras entrecruzadas, (re)vivendo junto com os quatro jovens, a cada nova imagem projetada, muitos momentos, que fizeram parte de suas vidas. Dentro desse espaço de improvisação e fora dele, na análise conjunta das fotografias da projeção em seus corpos, portanto, afloraram inúmeras histórias, explicações das posturas e posições assumidas, choros, risos, etc., que me possibilitaram entender com mais profundidade e sutileza a percepção dos pesquisados em relação às suas vivências. 15 Caixeta de Queiroz (2004), citando Stoller (1989), traz à luz uma belíssima imagem sobre a origem, para os songais, da trajetória tão respeitada de Rouch: “Se Jean Rouch tornou-se um etnólogo e cineasta inovador e provocador na Europa, na África, como bem demonstra Paul Stoller (1989, p. 87), é porque ele é um europeu astuto que soube seguir os espíritos: para os songais, o povo do Níger, Rouch comeu kusu, a substância do poder, compreendeu grandes segredos, e, por isso, é um homem temido e respeitado.” (p. 113) 11 DAS FOTOGRAFIAS GERADAS À NARRATIVA CONSTRUÍDA As noções de realidade e verdade, não somente em referência aos sujeitos pesquisados, mas principalmente em relação ao fazer antropológico e fotográfico, já vêm, há algum tempo, sendo desconstruídas seja por antropólogos, seja por fotógrafos e teóricos da imagem16. Questões relativas à autoria, condições de produção, perspectiva crítica, manipulação de imagens, mise-en-scène, entre inúmeras outras, vem sendo amplamente debatidas no intuito de apontar o caráter construído tanto do texto etnográfico quanto das imagens fotográficas. Neste sentido, a exaltação a um naturalismo e a resistência à ficção começam a ser diluídas, uma vez que nos damos conta da construção presente no ato de escrever e fotografar e, mais do que isso, no próprio ato de ver. Como bem pontua Caiuby Novaes (2009), nossa visão é formada. Vemos o que aprendemos a ver e a visão torna-se um hábito, uma convenção, uma seleção parcial de tudo aquilo que há para ver e um sumário distorcido de todo o resto. Vemos aquilo que queremos ver e o que queremos ver é determinado não por leis inelutáveis de ótica ou mesmo (como pode ser o caso em animais selvagens) por um instinto de sobrevivência, mas sim por um desejo de descobrir ou de construir um mundo em que podemos acreditar. (READ, 1991, p. 12 apud CAIUBY NOVAES, 2009, p. 56) Escapar, portanto, do caráter de construção que permeia tanto o fazer antropológico, quanto o fotográfico torna-se uma tarefa inviável, ou melhor, deixa de ser um obstáculo do qual devemos fugir ou saltar. Não se trata de posicionarse em um dos lados dos pares dicotômicos - objetividade e subjetividade, realidade e ficção, arte e ciência -, mas em ambos. Mesmo que estes polos não estejam livres de tensão, é impossível dissociá-los por completo, pois estes, como coloca Caixeta de Queiroz (2012) ao discorrer sobre Rouch e sua 16 Sobre a desconstrução da noção de verdade na antropologia ver CLIFFORD (2011); e na fotografia ver ROUILLÉ (2009); SOULAGES (2010). 12 cinemantropologia, “não são dois polos opostos e irreconciliáveis, mas dois pontos na mesma trajetória” 17 (p. 209). Neste sentido, as imagens geradas tornaram-se não somente fonte, seja pelas “improvisações projetivas” em si, seja pela análise junto com os jovens das fotografias tiradas, de um rico e delicado material sobre a percepção e os significados atribuídos por eles às experiências vividas em torno dessa grande teia de relações constituída pela e a partir da ONG Contato, mas também possibilidade de expressão de questões e vivências relativas à subjetividade que, de outro modo, acabariam perdendo sua vitalidade e multiplicidade. As fotografias construídas nesta performance fotográfica permitiram, assim, como pontua Copque (2012, p.150), “dar forma às vozes e olhares daqueles que contribuem para o relato etnográfico”, uma vez que a projeção de imagens de espaços, pessoas e situações, que perpassaram as vidas dos sujeitos pesquisados, em seus corpos, tornou visível as camadas de experiências que se encontram aí interconectadas. Assim, suas trajetórias, com as vivências que as constituem, sobem à pele, mostrando que, apesar de não serem aparentes a um olhar que busca uma forma “natural”, marcam seus corpos. Não sendo uma qualidade física, mas um atributo incorporal das coisas e dos estados de coisas, o sentido não pode ser descoberto, registrado ou restaurado. Ele deve ser, em vez disso, produzido, expresso. E essa produção, essa expressão de sentido, requer necessariamente um trabalho de escrita, de invenção de formas. (ROUILLÉ, 2009, p. 168) Assim, as imagens produzidas são como escrituras em seus corpos, uma vez que as fotografias de diferentes momentos das vidas dos quatro jovens, ao serem projetadas nestes, penetram suas peles, fundindo, dessa maneira, os sujeitos às experiências vividas e sentidas e mostrando que a melhor representação de algo não, necessariamente, significa assemelhar-se a este. Se voltarmos lá trás a um dos primeiros filmes etnográficos produzidos, Nanook of the north, de 1922, já nos damos conta, como argumenta o próprio realizador do filme, Flaherty, que, muitas 17 Tradução livre do original em inglês. 13 vezes, é necessário “distorcer uma coisa para captar seu espírito verdadeiro” (BARSAM, 1992, p. 52 apud GONÇALVES, 2008, p. 136). Caixeta de Queiroz (2004), ao citar a clássica cena do filme em que a foca é retirada de dentro de um buraco, desmistifica-a ao dizer que a corda é puxada, na verdade, por um outro grupo de pessoas e chama, principalmente, a atenção para o fato de que “o mundo das coisas não se encerra nelas mesmas e pede sempre uma imaginação” (p. 133). Outro nome clássico do cinema documentário, Vertov, com sua linguagem inovadora e suas intervenções nas imagens, como ordem não cronológica de planos, legendas, coloração de fotogramas, etc., nos reafirma, como salienta Peixoto (1998, p. 6), “que a imagem por si só não diz muita coisa, não representa uma ideia, uma vez que não retrata „a realidade‟”. Assim, principalmente, em estudos que lidam com o mundo do sensível vemos não somente o potencial, mas a necessidade do uso de imagens “transformadas” para trazer à luz o invisível, materializar o incorpóreo. Em uma pesquisa com os Asuriní do Xingu, Nespoli (2010), chama a atenção, para o lugar que essas imagens modificadas, ou melhor, que se distinguem de um registro “natural”, assumem em seus estudos sobre rituais xamanísticos. Os vídeos “crus”, no formato original de registro, não interessam tanto aos xamãs, que preferem os vídeos funcionando “como as imagens dos sonhos”. (...) Os sonhos e os vídeos revestem os corpos, e mostram o que está oculto, aquilo que a percepção “cotidiana” não pode ver. (p. 155-156) As fotografias que compõem o ensaio fotográfico buscam, portanto, ao caminhar pela ficção e imaginação, aproximar, o máximo possível, não somente da experiência vivida, mas principalmente da experiência sentida e interpretada por cada um dos jovens pesquisados (PIAULT, 2001, p. 161). Estas imagens, no entanto, longe de serem mobilizadas com o intuito de excluir ou diminuir a importância da escrita, representam uma forma outra de entrada na temática estudada, percorrendo ruelas e becos menos acessíveis à palavra, seja ela oral ou escrita. Palavras e imagens foram conectadas, de forma que cada uma, assim 14 como apontado no preâmbulo inicial deste artigo, preenchesse as lacunas do conhecimento produzido dentro de suas especificidades e potencialidades. Segundo MacDougall (2006, p. 51), a escrita é cumulativa e sucessiva e a imagem é simultânea, dessa forma, a primeira apresenta maior capacidade analítica e argumentativa, enquanto a segunda permite explorar o mundo social com todas as suas interconexões e estímulos sensoriais múltiplos. Nesse sentido, texto e fotografias complementam-se, não de modo a explicar ou ilustrar um ao outro, mas, para juntos, cada um atuando com suas diferentes sensibilidades, nos permitir caminhar pela subjetividade e objetividade, pela arte e ciência, e nesse trajeto nos aproximar à possibilidade de desvendar, camada após camada, um pequeno pedaço desse mundo real e imaginado, que perpassa não somente o espaço relacional da ONG Contato, mas principalmente os corpos de Alex, Medina, Jessica e Vini. REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS BARBOSA, Andréa; CUNHA, Edgar Teodoro da; HIKIJI, Rose Satiko Gitirana (orgs.). Imagem-conhecimento: antropologia, cinema e outros diálogos. Campinas: Papirus Editora, 2009. 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