Razão, decisão e cérebro

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Razão, decisão e cérebro
RAZÃO, DECISÃO E CÉREBRO: O QUANTO A ANATOMIA DO CÉREBRO
CONTRIBUI PARA A COMPREENSÃO DOS SUBMODOS ESQUEMA
RESOLUTIVO E EM DIREÇÃO AO DESFECHO1
Monica Aiub
Resumo: Estudos sobre anatomia cerebral apontam para interferências do
funcionamento do cérebro nos estados mentais e, consequentemente em nossos
processos racionais de decisão e ação. Entre esses estudos, as pesquisas do
neurologista Antonio Damásio estabelecem relações entre estados cerebrais e
estados mentais, com destaque para o papel das emoções nos processos de
raciocínio. Este artigo trata de uma abordagem filosófico-clínica ao estudo de
Damásio, tentando conciliar a ausência de teorias prévias e tipologias, própria da
Filosofia Clínica, com a proposta de Damásio. Entre os pontos enfocados, destaque
para os submodos Esquema Resolutivo e Em Direção ao Desfecho.
Palavras-chave: Filosofia da mente, cérebro, emoções, mente, submodos.
INTRODUÇÃO
O presente trabalho aborda as relações entre o estudo de Damásio acerca da
anatomia do cérebro e os processos de raciocínio, decisão e ação, observados em
Filosofia Clínica. Partindo do estudo dos casos de Phineas Gage e Elliot, Damásio
apresenta o papel das emoções como determinante nos processos de raciocínio,
decisão e comportamento. Considerando a ausência de teorias prévias e tipologias em
Filosofia Clínica sem, contudo, ignorar o aspecto biológico do humano, a discussão
apresentada questionará a possibilidade de conciliar os estudos de Damásio com os
Submodos Esquema Resolutivo e Em Direção ao Desfecho, destacando pontos
comuns e outros incompatíveis.
A primeira parte do trabalho apresenta os casos Phineas Gage e Elliot,
apontando para suas contribuições no campo da neurologia e sua rediscussão na
abordagem da neurociência. Derivando dessas questões, a segunda parte – A
1
Artigo publicado na revista Informação Dirigida – Revista Internacional de Filosofia Clínica. Instituto
Packter, Porto Alegre/RS, n. 2, Julho-dezembro 2005, p. 103-114.
questão filosófica – destaca a abordagem de questões filosóficas provocadas por esse
estudo.
Num segundo momento, a relação com os fundamentos da Filosofia Clínica,
apontando aspectos comuns e incomuns, propõe o debate acerca do uso dos
Submodos citados.
A ausência de uma teoria consistente acerca das relações mente e cérebro,
simultaneamente à constatação de uma mútua interferência entre os processos
cerebrais e mentais – se assim os podemos chamar – dificulta a compreensão da
construção dos processos de raciocínio, decisão e comportamento, impedindo a
construção de uma teoria explicativa ou interpretativa acerca desses processos.
Contudo, considerando que em Filosofia Clínica tanto a presença de elementos
como a Categoria Lugar, o Tópico Sensorial & Abstrato, o Submodo Percepcionar,
entre outros que trabalham ao mesmo tempo com dados das sensações e das
abstrações, permitindo uma leitura do funcionamento do cérebro como interferindo nos
processos deliberativos, assim como uma leitura dos processos de pensamento
interferindo no funcionamento do corpo, essa questão parece ser abordada de
maneira
a
aceitar
possíveis
interferências,
apenas
e
tão
somente
como
probabilidades, e não como uma relação necessária, como propõe Damásio.
O CASO PHINEAS GAGE: DO ACIDENTE À ANATOMIA DO CÉREBRO
Phineas Gage, um trabalhador da construção de ferrovias, exercendo a função
de explodir os obstáculos para a passagem dos trilhos, socando dinamite, em um
buraco feito na rocha com uma barra de ferro de mais ou menos um metro de
comprimento por três centímetros de largura, por acaso, no exercício de seu trabalho,
provocou uma explosão prematuramente e foi atingido pela barra de ferro, que
atravessou o osso frontal até o cérebro, ferindo o córtex pré-frontal. Gage sobreviveu,
restabeleceu suas forças, mas algo mudou:
(...) em sua capacidade de equilibrar as faculdades intelectuais e propensões
animais fora destruído. As mudanças tornaram-se evidentes assim que
amainou a fase crítica da lesão cerebral. Mostrava-se agora caprichoso,
irreverente, usando por vezes a mais obscena das linguagens, o que não era
anteriormente seu costume, manifestando pouca deferência para com os
colegas, impaciente relativamente a restrições ou conselhos quando eles
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entravam em conflito com seus desejos, por vezes determinadamente
obstinado, outras ainda caprichoso e vacilante, fazendo muitos planos para
ações futuras que tão facilmente eram concebidos como abandonados... Sendo
uma criança nas suas manifestações e capacidades intelectuais, possui as
paixões animais de um homem maduro (...)
Esses novos traços de personalidade estavam em nítido contraste com os
“hábitos moderados” e a “considerável energia de caráter” que Phineas Gage
possuía antes do acidente. Tinha tido “uma mente bastante equilibrada e era
considerado, por aqueles que o conheciam, como um homem de negócios
astuto e inteligente, muito enérgico e persistente na execução de todos os seus
planos de ação”.
(...) Como Harlow comenta, seu forte era “encontrar sempre algo que não lhe
convinha” (DAMÁSIO, 1996: 28-29).
Esse caso foi motivo de muitos estudos posteriores sobre o funcionamento do
cérebro, sobretudo em casos de lesões neurológicas. A partir dele encontra-se o
indicativo de possíveis relações entre partes do cérebro, funções do raciocínio e
comportamento, sugerindo a hipótese da capacidade de deliberação desenvolver-se
em uma parte determinada do cérebro, o córtex pré-frontal.
Enquanto outros casos de lesões neurológicas, ocorridas na mesma época
revelaram que o cérebro era o alicerce da linguagem, da percepção e das
funções motoras, fornecendo de um modo geral pormenores mais conclusivos,
a história de Gage sugeriu este fato espantoso: em certo sentido, existiam
sistemas no cérebro humano mais dedicados ao raciocínio do que quaisquer
outros e, em particular, às dimensões pessoais e sociais do raciocínio. A
observância de convenções sociais e regras éticas previamente adquiridas
poderia ser perdida como resultado de uma lesão cerebral, mesmo quando
nem o intelecto de base nem a linguagem mostravam estar comprometidos.
Involuntariamente, o exemplo de Gage indicou que algo no cérebro estava
envolvido especialmente em propriedades humanas únicas e que entre elas se
encontra a capacidade de antecipar o futuro e de elaborar planos de acordo
com essa antecipação no contexto de um ambiente social complexo; o sentido
de responsabilidade perante si próprio e perante os outros; a capacidade de
orquestrar deliberadamente sua própria sobrevivência sob o comando do livrearbítrio. (Damásio, 1996: 30-31)
A partir do relato de Harlow, médico que cuidou do caso Phineas Gage, é
possível observar que antes do acidente Gage utilizava os Submodos Esquema
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Resolutivo, Em Direção ao Desfecho, Busca e Análise Indireta de maneira producente.
Após o acidente, esses submodos tornaram-se contraproducentes, gerando mais
problemas a Gage:
Ele tinha outrora sabido tudo o que precisava saber para efetuar escolhas
que levassem ao melhoramento de sua pessoa. Tinha um sentido de
responsabilidade pessoal e social que se refletia no modo como assegurava a
promoção na carreira, se preocupava com a qualidade de seu trabalho e atraía
a admiração de patrões e colegas. Estava bem adaptado em termos de
convenções sociais e parecia ter seguido princípios éticos em sua conduta.
Depois do acidente, deixou de demonstrar qualquer respeito pelas convenções
sociais; princípios éticos eram constantemente violados; as decisões que
tomava não levavam em consideração seus interesses mais genuínos; era
dado à invenção de narrativas que, segundo as palavras de Harlow, “não
tinham nenhum fundamento, exceto na sua fantasia”. Não existiam provas de
que ele se preocupava com o futuro, nem qualquer sinal de previsão acerca do
mesmo.
Ele já não conseguia fazer escolhas acertadas, e as que fazia não eram
simplesmente neutras. Não eram as decisões reservadas e apagadas de
alguém cuja mente está prejudicada e que receia agir, mas decisões
ativamente desvantajosas. (DAMÁSIO, 1996: 32).
Os trechos destacados evidenciam a modificação efetiva observada no
comportamento de Gage após o acidente. É possível notar, nessa mudança de
comportamento, o uso dos mesmos Submodos, que antes eram eficazes, agora
contraproducentes. Embora evidente no relato de Harlow, as mudanças no
comportamento foram negligenciadas, muito provavelmente devido à abordagem do
problema mente cérebro da época, que destacava o debate entre teorias
localizacionistas e holistas.
Existiram boas razões para essa negligência. Mesmo no reduzido mundo da
ciência cerebral existente na época, duas perspectivas começavam a delinearse. Uma defendia que as funções psicológicas, como a linguagem ou a
memória, nunca poderiam ser imputadas a uma região cerebral particular. Se
se tinha de aceitar, relutantemente, que o cérebro de fato produzia a mente,
então esse fa-lo-ia como um todo e não como um conjunto de partes com
funções específicas. A outra perspectiva defendia que, pelo contrário, o cérebro
possuía partes especializadas que davam origem a funções mentais distintas.
O fosso entre as duas perspectivas não resultava apenas da imaturidade da
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pesquisa sobre o cérebro; o debate prolongou-se por mais um século e, em
certa medida, subsiste ainda hoje em dia.
Qualquer que tenha sido o debate científico que o caso de Gage fomentou, ele
concentrou-se sobretudo na questão da localização da linguagem e do
movimento no cérebro. Nunca abordou a conexão entre conduta social
desviante e lesão do lobo frontal. (DAMÁSIO, 1996: 33).
Um dos motivos da negligência acerca das questões comportamentais é o fato
da leitura do caso feita por Harlow aproximar-se à frenologia de Gall, que pretende
apresentar uma relação mente e cérebro onde cada parte do cérebro corresponde a
uma função específica do organismo, da mente e, inclusive, do comportamento.
Segundo Damásio, Harlow provavelmente teve contato com as teorias da frenologia
através de palestras que assistiu, o que, embora Harlow não cite, pode ter influenciado
a leitura feita sobre o caso Gage. Estudando crânios dos mortos e relacionando-os às
supostas personalidades destes em vida, Gall pretendia identificar características
físicas do cérebro que correspondessem a aspectos da personalidade, as saliências
da superfície do crânio foram as características encontradas por ele. Criando uma
tipologia de características de acordo com saliências em determinadas regiões, Gall
criou uma espécie de chapéu, colocado sobre o crânio, com pinos móveis que,
pressionados, perfuravam uma superfície de papel. A leitura das perfurações no papel
indicavam a personalidade do indivíduo. A frenologia, que tentou mapear o cérebro,
encontrando os vários órgãos que o formam, e estabelecer relações entre eles e a
mente, indicando qual parte do cérebro é responsável por cada atividade do intelecto e
do comportamento, tornou-se muito popular, uma maneira “científica” de tratar as
“questões da alma humana”.
Algumas das idéias de Gall são assombrosas para a época. Ele afirmou
categoricamente que o cérebro era o órgão do espírito. Com não menos
certeza, defendeu que o cérebro era constituído por um agregado de muitos
órgãos e que cada um deles possuía uma faculdade psicológica específica.
Não só se distanciou do pensamento dualista vigente, que separava
completamente a biologia da mente, como também intuiu corretamente que
existiam muitas partes que formavam essa coisa chamada cérebro e que
existia também especialização em termos das funções desempenhadas por
essas partes. (...) Seria preciso que passassem dois séculos para que uma
perspectiva “moderna” acabasse por vingar. Podemos agora dizer com
segurança que não existem “centros” individuais para a visão, para a
linguagem ou ainda para a razão ou para o comportamento social. O que na
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realidade existe são “sistemas” formados por várias unidades cerebrais
interligadas. Anatômica mas não funcionalmente, essas unidades cerebrais são
nada mais nada menos que os velhos “centros” resultantes da teoria de base
frenológica. E esses sistemas dedicam-se, de fato, a operações relativamente
independentes que constituem a base das funções mentais. (DAMÁSIO, 1996:
35-36).
O caso de Gage remete à hipótese que convenções sociais, comportamentos,
princípios éticos e decisões vantajosas para a própria sobrevivência supõem
conhecimento de sistemas específicos do cérebro. Faltando evidências para sustentar
essa hipótese, o que poderia ser uma explicação tornou-se um mistério, levantou mais
questões do que respostas, provocando pesquisas na área.
Entre os pesquisadores, Broca (1861) concluiu que uma lesão na terceira
circunvolução frontal provocaria perda completa da linguagem articulada, mantendo as
outras funções da linguagem e do intelecto. Assim, na citada região estaria localizada
a linguagem articulada. Sua pesquisa, constatada a partir do caso de um paciente
falecido dias após o exame, identificava como área referente à linguagem, uma área
totalmente distinta da área identificada pela frenologia.
Wernick (1874) observou que a perda da compreensão com manutenção da
linguagem articulada estaria relacionada a uma lesão na primeira circunvolução
temporal, concluindo ser esta a região responsável pela compreensão. Sua teoria
restringiu o localizacionismo a funções psíquicas mais elementares, como audição,
visão, distanciando-o da postura dos frenologistas, que atribuíam funções e
características de personalidade às saliências na superfície do crânio, propondo um
mapeamento simples unívoco, numa correspondência ponto a ponto (Gall).
Para Wernick, a associação de várias idéias em um conceito seria função de
sistemas associativos que conectam diferentes partes do córtex, sendo impossível
localizá-las em áreas determinadas. Os estímulos sensoriais estariam armazenados
em células individuais, sem interferência recíproca. O córtex cerebral estaria povoado
desses estímulos, que consistiriam em imagens da memória. A destruição dos centros
sensoriais
provocaria
perda
das
imagens,
implicando
em
incapacidade
de
compreensão da linguagem. Wernick distingue entre afasias centrais, com lesões nos
centros sensoriais, e afasias de condução, com lesões nos feixes de condução,
justificando assim, os diferentes tipos de afasia.
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Huglings-Jackson considerava o cérebro organizado de acordo com uma
hierarquia. Os impulsos mais primitivos eram mantidos sob controle por funções
restritivas superiores. Lesões cerebrais poderiam implicar em liberação de funções
inferiores, primitivas, pela dissolução das mais evoluídas. A idéia de ganho de
complexidade do ponto de vista funcional não supõe um local, sede, responsável pela
função, mas uma lesão funcional e dinâmica, explicada pelo isolamento de um
processo cortical, sem traumatismo físico.
Um exemplo disso é a parafasia, presente em pacientes afásicos assim como
em pessoas normais em estados de fadiga, divisão de atenção, sob emoções
perturbadoras, apresenta os mesmos sintomas: uso indevido e distorção de palavras.
Partindo desta constatação poder-se-ia descaracterizar a parafasia como o resultado
de uma lesão, e apontá-la como um sintoma meramente funcional, um sinal de perda
de eficácia por parte do aparato de associações de linguagem. (Freud, 1891: 30)
As teorias localizacionistas dos problemas da linguagem tinham em comum
procurar localizar áreas delimitadas do córtex cerebral correspondentes a funções da
linguagem, como a área de Broca (terceira circunvolução frontal) e a área de Wernick
(primeira circunvolução frontal). Também comum é a teoria psicológica subjacente ao
localizacionismo: o associacionismo, que tenta aproximar as funções psíquicas a uma
neurofisiologia do cérebro. O associacionismo de James Mill propõe uma mecânica
mental, o atomismo psicológico, afirmando que todo conhecimento provém da
experiência, e inferindo, como conseqüência, a dissolução progressiva do conceito de
mente como centro de atividade organizadora e sintética dos processos psíquicos. “A
idéia de casa resulta da soma das idéias das tábuas, pregos, tijolos que a compõem”
(cf. Simanke, 2004: 5).
Hoje, ao pensar a arquitetura do funcionamento cerebral, é possível encontrar
diferentes opções metodológicas, entre elas, o localizacionismo, o holismo e o
equipotencialismo:
O
localizacionismo
tornou-se,
contemporaneamente,
o
localizacionismo
funcional, ou seja, a localização de áreas obedece a um critério essencialmente
funcional. O holismo nega que funções mentais possam ser entendidas em
termos de áreas isoladas, mas não se choca com o localizacionismo, pois ele
não precisa negar a especialização da áreas. (...) Em outras palavras, o holista
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não se opõe necessariamente ao localizacionista, trata-se de uma questão
apenas de ênfase na parte ou no todo. Para os equipotencialistas não existiria
especificidade funcional – o que é bem diferente do que dizem os holistas.
(Teixeira, 2005: 21)
Conforme Damásio, “a mente resulta não só da operação de cada um dos
diferentes componentes, mas também da operação concertada dos sistemas múltiplos
constituídos por esses diferentes componentes” (1996: 36). Portanto, o debate entre
localizacionismo e holismo continua, acrescida a hipótese equipotencialista, sem
atingir, contudo, uma teoria conclusiva e consistente acerca do mental e suas relações
com o funcionamento cerebral.
A QUESTÃO FILOSÓFICA
Mais significativa que o debate acerca do localizacionismo é a questão antropológicoética suscitada pelo caso Gage: diante dessa lesão, que teve como resultado
mudança de comportamento, é possível considerar Gage como sujeito autônomo,
dotado de liberdade, responsável por seus atos?
Poderá Gage ser descrito como estando dotado de livre-arbítrio? Teria
sensibilidade relativamente ao que está certo e errado, ou era vítima de seu
novo design cerebral, de tal forma que as decisões lhe eram impostas e por
isso inevitáveis? Era responsável pelos seus atos? Se concluirmos que não
era, que nos pode dizer isso sobre o sentido de responsabilidade em termos
mais gerais? Existem muitos Gage a nossa volta, indivíduos cuja desgraça
social é perturbadoramente semelhante. Alguns têm lesões em conseqüência
de tumores cerebrais, de ferimentos na cabeça ou de outras doenças de
caráter neurológico. Outros, no entanto, não tiveram qualquer doença
neurológica e comportam-se, ainda assim, como Gage, por razões que têm a
ver com seus cérebros ou com a sociedade em que nasceram. Precisamos
compreender a natureza desses seres humanos cujas ações podem ser
destrutivas tanto para si próprios como para os outros, caso pretendamos
resolver
humanamente
os
problemas
que
eles
colocam.
Nem
o
encarceramento nem a pena de morte – respostas que a sociedade atualmente
oferece para esses indivíduos – contribuem para a compreensão do problema
ou para sua resolução. De fato, devíamos levar mais longe essa questão e
interrogar-nos acerca da nossa responsabilidade quando nós, indivíduos ditos
“normais”, deslizamos para a irracionalidade que marcou a grande que da de
Phineas Gage. (DAMÁSIO, 1996: 40-41)
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Considerando que temos em média 10 bilhões de neurônios e mais de 10
trilhões de sinapses, e seus possíveis arranjos, Damásio conclui que:
As principais conseqüências desse arranjo são as seguintes: 1) o que um
neurônio faz depende do conjunto dos outros neurônios fizinhos no qual o
primeiro se insere; 2) o que os sistemas fazem depende de como os conjuntos
se influenciam mutuamente numa arquitetura de conjuntos interligados; e 3) a
contribuição de cada um dos conjuntos para o funcionamento do sistema a que
pertence depende da sua localização nesse sistema. (DAMÁSIO, 1996: 53)
Damásio apresenta também o caso Elliot, que após uma cirurgia para retirada
de um tumor no córtex pré-frontal, mudou completamente seu comportamento,
tornando-se incapaz de tomadas de decisão. Estudando os casos Gage e Elliot,
Damásio conclui que:
O cérebro não é uma extensa massa disforme de neurônios que fazem a
mesma coisa onde quer que se encontrem. Acontece que as estruturas
destruídas em Gage e Elliot são as necessárias para que o raciocínio culmine
numa tomada de decisão. (1996: 64)
Uma equivocada distinção entre problemas do “cérebro” e da “mente” sinaliza
um grande problema nos tratamentos. Dada a ignorância assumida da relação entre o
cérebro e a mente, as doenças do cérebro são vistas como tragédias, o sujeito
“doente” é considerado vulnerável, incapaz de decidir, e, consequentemente,
irresponsável por suas decisões. As chamadas doenças da mente, especialmente
aquelas que afetam a conduta e as emoções, são vistas como problemas sociais. O
sujeito é considerado capaz de liberdade e responsabilidade, sendo esta, não apenas
por sua conduta, mas, inclusive, por sua “doença”.
Voltando ao caso Elliot, “Elliot era incapaz de fazer uma escolha eficiente e
podia não chegar sequer a fazer uma escolha, ou escolher mal.” (DAMÁSIO, 1996:
75). Damásio atribui essa dificuldade à danificação de uma região do cérebro,
responsável pelo raciocínio, tomada de decisões e sentimentos. O cruzamento entre
razão e emoção.
(...) existe uma região do cérebro humano, o complexo de córtices
somatossensoriais no hemisfério direito, cuja danificação compromete também
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o raciocínio e tomada de decisão e as emoções e sentimentos e,
adicionalmente, destrói os processos de sinalização básica do corpo.
(...) existem regiões localizadas nos córtices pré-frontais para além do setor
ventromediano cuja danificação compromete também o raciocínio e a tomada
de decisões, mas segundo um padrão diferente: ou a deficiência é muito mais
avassaladora, comprometendo mais as operações sobre palavras, números,
objetos ou o espaço do que as operações no domínio pessoal e social.
(DAMÁSIO, 1996: 96)
Desta forma, em nosso percurso acerca das pesquisas sobre Gage e Elliot, é
possível concluir que Damásio atribui às emoções um papel determinante, vinculado à
preservação biológica, ao que ele denomina “marcador somático”. A preservação
biológica estaria vinculada à Categoria Lugar: um bem-estar apontado pelo organismo
em determinados contextos, implicaria em decisões favoráveis à manutenção do
mesmo, enquanto um mal-estar apontado pelo marcador somático, implicaria em
decisões contrárias à manutenção do mesmo. Ao mesmo tempo, ele tenta apresentar
correlatos neurais, apontando partes do cérebro ou sistemas do funcionamento
cerebral
responsáveis
pelas
emoções
e,
consequentemente,
influenciando
diretamente no processo de raciocínio e decisão.
Quando lhe surge um mau resultado associado a uma dada opção de resposta,
por mais fugaz que seja, você sente uma sensação visceral desagradável. (...)
Mas os marcadores-somáticos aumentam provavelmente a precisão e a
eficiência do processo de decisão. Sua ausência as reduz. (...)
Em suma, os marcadores-somáticos são um caso especial do uso de
sentimentos gerados a partir de emoções secundárias. Essas emoções e
sentimentos foram ligados, pela aprendizagem, a resultados futuros previstos
de determinados cenários. Quando um marcador-somático negativo é
justaposto a um determinado resultado futuro, a combinação funciona como
uma campainha de alarme. Quando, ao contrário, é justaposto um marcador
somático positivo, o resultado é um incentivo (DAMÁSIO, 1996:205-6).
UMA ABORDAGEM FILOSÓFICO-CLÍNICA
A abordagem dos temas raciocínio, decisão e ação, em Filosofia Clínica, supõe
a observação do partilhante como um todo, sendo os exames categoriais, a estrutura
de pensamento e os submodos (destacado que alguns tópicos ou submodos são
determinantes, que associam-se e mesclam-se de maneiras distintas em diferentes
pessoas, interseções, contextos, tempos, permitindo uma constante flexibilidade,
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plasticidade) considerados como um todo, sem privilégio ou detrimento de um ou outro
como ponto de partida. Se houver privilégio de algum tópico, categoria ou submodo,
isso será, exclusivamente, observado nos dados apresentados pelo partilhante. Desta
forma, a teoria de Damásio correspondente ao papel das emoções no processo de
raciocínio, decisão e deliberação não é, em Filosofia Clínica, uma conclusão
necessária. Há casos em que a Estruturação de Raciocínio, por exemplo, possui um
peso tão grande no todo da estrutura de pensamento, sendo capaz de minimizar e, em
alguns casos, até anular, o tópico Emoções.
Como ocorrem os processos de raciocínio e decisão? Segundo Damásio:
Os termos raciocinar e decidir implicam habitualmente que quem decide tenha
conhecimento a) da situação que requer uma decisão, b) das diferentes opções
de ação (respostas) e c) das conseqüências de cada uma dessas opções
(resultados), imediatamente ou no futuro. O conhecimento, que existe na
memória sob a forma de representações dispositivas, pode tornar-se
consciente de modo lingüístico ou não. (...)
Os termos raciocínio e decisão também implicam habitualmente que quem
decide dispõe de alguma estratégia lógica para produzir inferências válidas
com base nas quais é selecionada uma opção de resposta adequada e que
dispõe dos processos de apoio necessários ao raciocínio. Entre esses últimos
são normalmente mencionadas a atenção e a memória de trabalho, mas nada
se diz sobre a emoção ou o sentimento, e quase nada sobre o mecanismo que
permite a criação de um repertório de diferentes opções para seleção. (...)
O aspecto que pretendo salientar aqui é o de que a mente não está vazia no
começo do processo de raciocínio. Pelo contrário, encontra-se repleta de um
repertório variado de imagens originadas de acordo com a situação enfrentada
e que entram e saem de sua consciência numa apresentação demasiado rica
para ser rápida ou completamente abarcada. (DAMÁSIO, 1996:197-202)
Como a filosofia clínica descreve esses mesmos processos? A resposta é
sempre a mesma: depende do partilhante, de seus contextos, de seus momentos e
interseções. Durante os procedimentos clínicos, observa-se tudo o que estiver
relacionado ao partilhante, desde os contextos em que viveu e vive, até as maneiras
que habitualmente utiliza para lidar com suas situações, passando, é claro, pela
construção de seus modos de ser – modos de ser sempre em devir. Assim, enquanto
alguns partilhantes raciocinam sob influência do tópico Emoções, outros raciocinam
sob a influência de uma Espacialidade em Recíproca de Inversão, ou a partir de um
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Percepcionar, ou ainda, tendo como influência principal um Pré-juízo aliado a um
Tópico de Singularidade Existencial. Em outras palavras, todas as possibilidades de
associações são, a priori, tão prováveis quanto quaisquer outras. Desta forma, há
processos de raciocínio, mas não um único processo. Há, em alguns casos, a
interferência de processos afetivos ou de processos biológicos, mas isso não é uma
necessidade.
Não é possível, em Filosofia Clínica, partir de um princípio determinista, pois o
ser humano é, ao mesmo tempo, determinado e determinante, ora um ora outro, às
vezes ambos, às vezes mais um do que outro. Desta maneira, a teoria de Damásio
acerca do papel das emoções no processo de raciocínio e decisão não encontra apoio
na Filosofia Clínica, embora, em alguns casos, isso possa ser verificado.
É possível observar que sua tese distancia-se da própria filosofia, quando
questiona a concepção de razão, associando-a ao senso comum:
Trata-se de uma perspectiva filosófica, a partir da própria concepção de
perspectiva da “razão nobre”, que não é outra senão a do senso comum, parte
do princípio de que estamos nas melhores condições para decidir e somos o
orgulho de Platão, Descartes e Kant quando deixamos a lógica formal conduzirnos à melhor solução para o problema. Um aspecto importante da concepção
racionalista é o de que, para alcançar os melhores resultados, as emoções têm
de ficar de fora. O processo racional não deve ser prejudicado pela paixão. (...)
O que a experiência com doentes como Elliot sugere é que a estratégia fria
defendida por Kant, entre outros, tem muito mais a ver com a maneira como os
doentes com lesões pré-frontais tomam suas decisões do que com a maneira
como as pessoas normais tomam decisões. Naturalmente, até os racionalistas
puros funcionam melhor com a ajuda de papel e lápis. (DAMÁSIO, 1996:203204).
O submodo Esquema Resolutivo consiste em pesar prós e contras, colocar na
balança vantagens e desvantagens de uma determinada situação, tendo em vista
contextos em que a deliberação se faz necessária. Há partilhantes que fazem
Esquemas Resolutivos somáticos, outros aliam seus Esquemas Resolutivos a um Em
direção às Idéias Complexas, fazendo-o no campo das abstrações. Há aqueles que o
fazem tendo como determinante o tópico Emoções, como sugere que o seja Damásio,
mas há outros que consideram os tópicos Como o Mundo Parece e Busca associados.
As opções de combinação são inúmeras.
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No que se refere ao submodo Em Direção ao Desfecho, este consiste em
colocar um ponto, em dirigir-se para um término, um desfecho de determinada
questão. Para tal pesam as emoções? Em alguns casos sim, em outros elas sequer
aparecem no processo, sendo este determinado por outros dos 30 Tópicos da
Estrutura de Pensamento.
Estabelecendo agora uma relação direta dessa problemática com os submodos
sugeridos na questão: Esquema Resolutivo e Em Direção ao Desfecho, é possível
perceber que, mesmo em submodos que exigem um processo formal de raciocínio,
onde se faz necessária uma avaliação de diferentes opções – como no caso do
Esquema Resolutivo, não há uma única e exclusiva regra de desenvolvimento desse
processo, dada previamente. Os submodos são apenas formas, cujo conteúdo será
dado pela leitura feita do histórico do partilhante. Essas formas, ao tornarem-se
procedimentos clínicos, também não partem de um princípio previamente dado. De
que maneira os submodos são utilizados em clínica também é algo que depende da
pesquisa feita com o partilhante, daí concluir que são formas vazias, sem conteúdo,
mas que, no uso, ganham o conteúdo presente no “jogo de linguagem” do partilhante e
dos conteúdos que se revelam na compreensão deste.
CONCLUSÃO
O estudo de Damásio defende, a partir das constatações feitas em casos como
os de Phineas Gage e Elliot, um papel fundamental das emoções nos processos de
raciocínio, decisão e ação. Seu fundamento encontra-se na observação de uma lesão
cerebral no córtex frontal gerando alterações no comportamento e na capacidade de
decisão. Não há, contudo, uma teoria acerca das relações mente e cérebro que
explique de maneira consistente e definitiva essas relações, e, consequentemente a
necessidade e a suficiência das emoções para uma boa deliberação.
Muitas questões filosóficas se colocam a partir das afirmações de Damásio. A
primeira delas é: se aceitamos que somos determinados por processos cerebrais,
aproximando-nos de um “quase” materialismo eliminativista, em que medida temos
liberdade? Somos seres, de fato, autônomos, ou somos, dado esse determinismo,
heterônomos? Se não temos liberdade, consequentemente não temos também
responsabilidade, quem se responsabiliza, assina, nossas decisões e ações?
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Ainda, se somos apenas determinados por nossos cérebros, que determinam,
inclusive, nosso processo de raciocínio, como fundamentar trabalhos terapêuticos
como a filosofia clínica? As únicas terapias possíveis seriam, então, as que agem
diretamente sobre o cérebro?
Mas ainda uma terceira e fundamental questão se faz: o conceito de emoções
proposto por Damásio em suas explicações é o mesmo conceito de emoções
encontrado na Filosofia?
Relacionando a exposição de Damásio com a Filosofia Clínica é possível
concluir que não há apoio de uma proposta para a outra. Há algumas similaridades,
porém o que para a Filosofia Clínica é uma possibilidade, Damásio apresenta como
uma necessidade.
No que se refere ao submodo Esquema Resolutivo, a similiaridade consiste na
definição e descrição do processo de raciocínio e decisão, assim como na possível
interferência das emoções, encontrada apenas em alguns casos. No submodo em
Direção ao Desfecho, um comportamento movido por um processo anterior de
Esquema Resolutivo também é descrito por Damásio, contudo, como necessário,
enquanto, em Filosofia Clínica, essa sucessão é apenas contingente.
O texto de Damásio nos oferece pontos instigantes acerca do estudo do
cérebro, mas, como as teorias formuladas até então, estes são inconclusivos, não
podendo, por este motivo, servir de referencial para a elaboração de uma teoria da
mente que sirva como fonte de explicação ou interpretação para os processos de
raciocínio e decisão.
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