2 Vol XXI 2012 - Revista Nascer e Crescer

Transcrição

2 Vol XXI 2012 - Revista Nascer e Crescer
Vol. 21, nº 2, Junho 2012
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XXIV REUNIÃO ANUAL DE
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Douro, CH V. N. de Gaia e Espinho, Hospital de Braga, CH São João, Hospital dde Santa Maria Maior, ULS
Revista do Hospital de Crianças Maria Pia | Departamento de Ensino, Formação e Investigação | Centro Hospitalar do Porto
Ano | 2012 Volume | XXI Número | 02
Directora | Editor-in-Chief | Sílvia Álvares; Director Adjunto | Associated Editor | Rui Chorão; Directora Executiva | Executive Editor | Margarida Lima
Presidente do Conselho de Administração do Centro Hospitalar do Porto | Director | Fernando Sollari Allegro
Corpo Redactorial | Editorial Board
Artur Alegria, CHP
Armando Pinto, IPOPFG
Carmen Carvalho, CHP
Cláudia Pedrosa, CHVNG/E
Conceição Mota, CHP
Cristina Rocha, CHEDV
Gustavo Rocha, CHSJ
João Barreira, CHSJ
Laura Marques, CHP
Lurdes Morais, CHP
Margarida Guedes, CHP
Rui Almeida, HPH/ULSM
Editores especializados | Section Editors
Artigo Recomendado – Helena Mansilha, CHP; Maria do
Carmo Santos, CHP
Perspectivas Actuais em Bioética – Natália Teles, CGMJM
Pediatria Baseada na Evidência – Luís Filipe Azevedo,
FMUP; Altamiro da Costa Pereira, FMUP
A Cardiologia Pediátrica na Prática Clínica – António
Marinho, CHUC; Fátima Pinto, HSM/CHLC; Maria Ana
Sampaio, HCV, Maria João Baptista, CHSJ; Paula Martins,
HPCM/CHUC, Rui Anjos, HSC/CHLO; Sílvia Álvares, CHP
Ciclo de Pediatria Inter-Hospitalar do Norte – Armando Pinto,
IPOPFG; Carla Carvalho, HSMM; Carla Moreira, HB/EB;
Conceição Santos Silva, CHPVVC; Fátima Santos,
CHVNG/E; Inês Azevedo, CHSJ; Isalita Moura, HSMM;
Isolina Aguiar, CHAA; Joaquim Cunha, CHTS; Susana
Tavares, CHEDV; Cármen Carvalho, CHP; Rosa Lima, CHP;
Sofia Aroso, HPH/ULSM; Sónia Carvalho, CHMA
Caso Dermatológico – Manuela Selores, CHP; Susana
Machado, CHP
Caso Electroencefalográfico – Rui Chorão, CHP
Caso Endoscópico – Fernando Pereira, CHP
Caso Estomatológico – José Amorim, CHP
Caso Radiológico – Filipe Macedo, CHAA
Genes, Crianças e Pediatras – Esmeralda Martins, CHP;
Margarida Reis Lima, HPP
Pequenas Histórias – Margarida Guedes, CHP
Consultor Técnico | Consultant
Gama de Sousa, Porto
Consultora de Epidemiologia e de Bioestatistica |
| Advisor of Epidemiology and Biostatistics
Maria José Bento, IPOPFG
Conselho Científico Nacional |
| National Scientific Board
Alberto Caldas Afonso, CHSJ, FMUP, Porto
Almerinda Pereira, HB/EB, Braga
Álvaro Aguiar, FMUP, Porto
Ana Maria Leitão, HSSM, Barcelos
Ana Ramos, CHP, Porto
António Martins da Silva, CHP e ICBAS/UP, Porto
Arelo Manso, Porto
Braga da Cunha, CHTS, Penafiel
Cidade Rodrigues, CHP, Porto
Conceição Casanova, CHPVVC, Póvoa de Varzim
Eurico Gaspar, CHTMAD, Vila Real
Fátima Praça, CHVNG/E, Vila Nova de Gaia
Gonçalves Oliveira, CHMA, Famalicão
Helena Jardim, CHP, Porto
Henedina Antunes, HB/EB, Braga
Hercília Guimarães, CHSJ, FMUP, Porto
Ines Lopes, CHVNG/E, Vila Nova de Gaia
José Barbot, CHP, Porto
José Carlos Areias, FMUP, Porto
José Cidrais Rodrigues, HPN/ULSM, Matosinhos
José Pombeiro, CHP, Porto
Lopes dos Santos, HPH/ULSM, Matosinhos
Luís Almeida Santos, CHSJ, FMUP, Porto
Luís Vale, HPBN, Porto
Manuel Salgado, HPCM/CHUC, Coimbra
Manuela Selores, CHP, Porto
Marcelo Fonseca, ULSM, Matosinhos
Margarida Lima, CHP, ICBAS/UP, Porto
Maria Augusta Areias, HPBN, Porto
Norberto Estevinho, HPP, Porto
Óscar Vaz, CHN, Mirandela
Paula Cristina Ferreira, CHP, Porto
Pedro Freitas, CHAA, Guimarães
Rei Amorim, CHAM, Viana do Castelo
Ricardo Costa, CHCB, Covilhã
Rosa Amorim, CHP, Porto
Rui Carrapato, CHEDV, Santa Maria da Feira
Teresa Temudo, CHP, Porto
Assessores Editoriais | Editorial Assistants
Carolina Cortesão
Paulo Silva
Conselho Científico Internacional |
| International Scientific Board
Alain de Broca, Centre Hospitalier Universitaire Amiens, Amiens
Annabelle Azancot, Hôpital Robert Debré, Paris
Francisco Alvarado Ortega, Hospital Infantil Universitario La
Paz, Madrid
Francisco Ruza Tarrio, Hospital Infantil Universitario La Paz,
Madrid
George R. Sutherland, University Hospital, Edinburgh
Harold R. Gamsu, Kings College Hospital, Londres
J. Bois Oxoa, Hospitals Vall d’Hebron, Barcelona
Jean-François Chateil, Hôpital Pellegrin, Bordeaux
José Quero, Hospital Infantil Universitario La Paz, Madrid
Juan Tovar Larrucea, Hospital Infantil Universitario La Paz,
Madrid
Juan Utrilla, Hospital Infantil Universitario La Paz, Madrid
Luís Callís, Hospital Vall d’Hebron, Barcelona
Peter M. Dunn, University of Bristol, Bristol
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DE 0005/2005 DCN
Publicação trimestral resumida e indexada por
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Artigos disponíveis no Repositório Científico do CHP
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Execução gráfica e paginação
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Vila Nova de Famalicão
ISSN
0872-0754
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Condições de assinatura
Anual Nacional (4 números) - 40 euros
Anual Estrangeiro (4 números) - 80 euros
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CGMJM, Centro de Genética Médica Dr. Jacinto Magalhães, CHAA, Centro Hospitalar do Alto Ave; CHAM, Centro Hospitalar do Alto Minho; CHCB, Centro Hospitalar da Cova da Beira; CHEDV, Centro Hospitalar de Entre Douro e Vouga;
CHMA, Centro Hospitalar do Médio Ave; CHN, Centro Hospitalar do Nordeste; CHP, Centro Hospitalar do Porto; CHPVVC, Centro Hospitalar da Póvoa de Varzim – Vila do Conde; CHSJ, Centro Hospitalar de São João;
CHTMAD, Centro Hospitalar de Trás-os-Montes e Alto Douro; CHTS, Centro Hospitalar do Tâmega e Sousa; CHUC, Centro Hospitalar e Universitário de Coimbra; CHVNG/E, Centro Hospitalar de Vila Nova de Gaia/Espinho;
DEFI, Departamento de Ensino, Formação e Investigação; FMUP, Faculdade de Medicina da Universidade do Porto; HB/EB, Hospital de Braga/Escala Braga; HCV, Hospital Cruz Vermelha; HPBN, Hospital Privado da Boa Nova;
HPCM/CHUC, Hospital Pediátrico Carmona da Mota; HPH/ULSM, Hospital Pedro Hispano/Unidade Local de Saúde Matosinhos; HPP, Hospitais Privados de Portugal; HSC/CHLO, Hospital de Santa Cruz/Centro Hospitalar de Lisboa Ocidental;
HSM/CHLC, Hospital de Santa Marta/Centro Hospitalar de Lisboa Central; HSMM, Hospital Santa Maria Maior; ICBAS/UP, Instituto de Ciências Biomédicas Abel Salazar da Universidade do Porto;
IPOPFG, Instituto Português de Oncologia do Porto, Francisco Gentil.
XXIV Reunião Anual de Pediatria, CHP
Pediatria em Mudança
Porto, 18 a 21 de Novembro de 2012
Programa
18 Novembro 2012 | Domingo
Cursos pré-congresso
Curso 1 – ANEMIA EM PEDIATRIA
Abordagem diagnóstica da criança com anemia
Abordagem diagnóstica do recém-nascido com anemia
Anemia ferripriva
Esferocitose hereditária
Anemias hemolíticas auto-imunes
Síndromes talassémicos
Anemia de Fanconi
Anemia na doença crónica
Anemia enquanto manifestação de patologia não hematológica
Abordagem da criança com anemia no SU
19 de Novembro | 2ª feira
Mesa redonda: Restrição de crescimento intra-uterino (RCIU):
decisões obstétricas com repercussões no recém-nascido
RCIU e infecções fetais
RCIU e vigilância pré-natal e decisão do parto
Período neonatal
Morbilidades futuras
Conferência: Microbiota e cultura de arranque
Sessão interactiva
Urgências cirúrgicas
Urticária aguda
Malformações urológicas
Comunicações livres
Curso 2 – REUMATOLOGIA
Quando pensar em doença reumatológica: o exame osteoarticular
O diagnóstico nas doenças reumatológicas
- Imunologia | Radiologia | Cirurgia vascular
Artrite idiopática juvenil (AIJ): Classificação
Abordagem farmacológica
- O fisiatra | O olhar do oftalmologista
Sessão interactiva
Vasculites
- Classificação | Dermatologia
20 de Novembro | 3ª feira
Controvérsias: Psicoterapia ou psicofármacos – qual o mais
adequado nas perturbações psiquiátricas da infância e da
adolescência
A favor da Psicoterapia
A favor da Psicofarmacologia
Mesa redonda: Internet e as novas responsabilidades do
pediatra
21 de Novembro | 4ª feira
Cyberbullying na adolescência
Estratégias de intervenção
Panorama nacional do bullying
Cursos pós-congresso
Mesa redonda: Hiperplasia supra-renal congénita
Curso 3 – CATETERES DE ACESSO VENOSO E ARTERIAL
Selecção do cateter e do local de inserção
Guidelines for the prevention of intravascular catheter-related
infections, 2011
SIMULAÇÃO:
- Penso do local de inserção
- Montagem dos sistemas
- Cateterismo eco guiado e inserção do cateter arterial
- Inserção dum cateter na veia subclávia
- Inserção dum cateter na veia jugular e femoral
- Inserção dum PICC e cateter médio
Curso 4 – CONCEÇÃO, REDAÇÃO E PUBLICAÇÃO DE
ARTIGOS CIENTÍFICOS
Conceção de artigos para publicação
Redação de artigos para publicação:
- estrutura e conteúdo
- tamanho e apresentação
Submissão de artigos para publicação
Autoria de trabalhos científicos
Acesso à informação científica
Indicadores bibliométricos
Formas Clássicas e formas tardias
Importância do estudo genético para o tratamento prénatal
- Papel do endocrinologista e do geneticista
Abordagem cirúrgica das formas clássicas virilizantes
Comunicações livres
21 de Novembro | 4ª feira
Mesa redonda: Doença inflamatória intestinal
Epidemiologia
Diagnóstico
Tratamento
Mesa redonda: Pulmão e doença sistémica
Vasculites
Cardiopatia congénita
Doença gastrointestinal
Doença renal
Entrega de prémios para a melhor comunicação oral e poster
Encerramento
Data limite para envio de resumos: 30 DE OUTUBRO DE 2012
Secretariado: [email protected]
NASCER E CRESCER
revista do hospital de crianças maria pia
ano 2012, vol XXI, n.º 2
índice
número2.vol.XXI
73 Editorial
74 Artigos Originais
Sílvia Álvares
Anemia ferripriva refractária à terapêutica com ferro oral – Que etiologias?
Sandrina Martins, Emília Costa, Luís Ribeiro, Miguel Salgado,
Cristiana Couto, Fernando Pereira, José Barbot
80
Urticária crónica numa população pediátrica
Marta Rios, Rui Silva, Leonor Cunha, Eva Gomes, Helena Falcão
86 Artigos de Revisão
Contraceção para adolescentes com lúpus eritematoso sistémico
Cristiana Couto, Helena Sousa, Margarida Guedes
92 Artigo Recomendado
94 Perspectivas Actuais em Bioética
Maria do Carmo Santos
Consentimento e discernimento
Rosalvo Almeida
96 Casos Clínicos
Doença de Addison em idade pediátrica – um caso clínico
Liliana Franco, Helena Vieira, Paula Vieira, Irene Rebelo
99
Incontinentia Pigmenti – caso clínico
Sónia Santos, Rita S. Oliveira, Vítor Bastos, José Matos, Isabel Andrade
102
Síndrome de Overlap entre colangite esclerosante primária e hepatite
auto-imune – um caso com apresentação sequencial ao longo dos anos
Teresa São Simão, Marta Rios, J Ramón Vizcaíno,
Fernando Pereira, Ermelinda Santos Silva
107
Pâncreas heterotópico numa criança com Trissomia 8 em mosaico:
uma associação acidental?
Gisela Silva, Isabel Couto Guerra, Lurdes Morais, Virgílio Senra, Fernando Pereira
NASCER E CRESCER
revista do hospital de crianças maria pia
ano 2012, vol XXI, n.º 2
de Pediatria Inter-Hospitalar
110 Ciclo
do Norte
Eritroblastopenia transitória da infância:
atitude expectante face a uma anemia grave
Marco Pereira, Rui Bergantim, Emília Costa,
Lurdes Morais, Vasco Lavrador, José Barbot
113 Qual o seu Diagnóstico?
Caso estomatológico
José M. S. Amorim
115
Caso radiológico
João Nascimento, Lurdes Morais, Filipe Macedo
117 Normas de Publicação
NASCER E CRESCER
revista do hospital de crianças maria pia
ano 2012, vol XXI, n.º 2
summary
number2.vol.XXI
73 Editorial
74 Original Articles
Sílvia Álvares
Refractory iron deficiency anemia – what possible causes?
Sandrina Martins, Emília Costa, Luís Ribeiro, Miguel Salgado,
Cristiana Couto, Fernando Pereira, José Barbot
80
Chronic urticaria in a pediatric population
Marta Rios, Rui Silva, Leonor Cunha, Eva Gomes, Helena Falcão
86 Review Article
Contraception for adolescents with systemic lupus erythematosus
Cristiana Couto, Helena Sousa, Margarida Guedes
92 Recommended Article
94 Current Perspectives in Bioethics
Maria do Carmo Santos
Consent and understanding
Rosalvo Almeida
96 Case Reports
Addison disease in pediatric age – a clinical case
Liliana Franco, Helena Vieira, Paula Vieira, Irene Rebelo
99
Incontinentia pigmenti – a case report
Sónia Santos, Rita S. Oliveira, Vítor Bastos, José Matos, Isabel Andrade
102
Primary sclerosing cholangitis overlapping with autoimmune hepatitis
– a case with sequentially presentation over the years
Teresa São Simão, Marta Rios, J Ramón Vizcaíno,
Fernando Pereira, Ermelinda Santos Silva
107
Heterotopic pancreas in a child with Trisomy 8 mosaicism syndrome:
an accidental association?
Gisela Silva, Isabel Couto Guerra, Lurdes Morais, Virgílio Senra, Fernando Pereira
NASCER E CRESCER
revista do hospital de crianças maria pia
ano 2012, vol XXI, n.º 2
110 Paediatric Inter-Hospitalar Meeting
Transient erythroblastopenia of childhood: “Wait-and-see” approach
Marco Pereira, Rui Bergantim, Emília Costa,
Lurdes Morais, Vasco Lavrador, José Barbot
113 What is your Diagnosis?
Oral pathology case
José M. S. Amorim
115
Radiological case
Teresa São Simão, Miguel Salgado, Emília Costa, José Barbot
117 Instructions for Authors
NASCER E CRESCER
revista do hospital de crianças maria pia
ano 2012, vol XXI, n.º 2
editorial
A XXIV Reunião de Pediatria do Centro Hospitalar do Porto vai realizar-se nos
dias 18 a 21 de Novembro de 2012 no Hotel Ipanema Park, Porto. Em nome da
Comissão Organizadora dirijo-me a todos os colegas, convidando-os a participar
neste evento científico que tem uma longa tradição na região. O programa científico
foi elaborado com a colaboração de todos os Serviços de Pediatra do norte do país.
O objectivo é debater temas actuais da pediatria, desde o feto até ao jovem adulto,
numa visão multidisciplinar e abrangente, indo ao encontro das necessidades dos
diferentes grupos profissionais.
O formato da reunião inclui quatro cursos de carácter prático e com inscrições
limitadas: Reumatologia, Hematologia, Como Escrever um Artigo Científico e Cateteres de Acesso Venoso Central. Os temas seleccionados para as mesas redondas
são a Restrição do Crescimento Intra-uterino, a Internet e as Novas Responsabilidades do Pediatra, a Hiperplasia Supra-renal Congénita, a Doença Inflamatória
Intestinal, o Pulmão e a Doença Sistémica. Teremos ainda uma conferência sobre o
Microbiota e Cultura de Arranque, uma Sessão Interactiva com televoto, e uma sessão de Controvérsias: Psicoterapia versus Psicofármacos, que imprimem sempre
uma dinâmica participativa e entusiasta. Finalmente, estarão também presentes as
Associações de Doentes, nossos parceiros na prestação de Cuidados.
Um dos aspectos mais importantes de uma reunião científica é a apresentação de trabalhos originais (comunicações orais e posters). Esperamos o vosso
contributo (a data limite para envio de trabalhos é 21 de Outubro). Na sessão de
encerramento da reunião serão atribuídos os Prémios para a Melhor Comunicação
Oral e Poster, bem como o Prémio para o Melhor Artigo Original publicado na Revista Nascer e Crescer em 2011.
Realço o empenho e o entusiasmo de toda a equipa organizadora, que preparou um programa atractivo e de elevado interesse, e agradeço aos nossos prelectores e convidados, cuja experiência e qualidade científica são a garantia do sucesso
que esperamos obter. Reconhecemos, também, o papel importante das entidades
patrocinadoras que colaboram connosco e o seu interesse na educação médica
contínua.
Até recentemente, a divisão e a especialização foram as condições inerentes à
busca do conhecimento. Hoje os novos desafios da sociedade e a própria evolução
da ciência mostram-nos uma realidade complexa que não é compatível com uma
visão fragmentada dos problemas e apontam para a emergência de um trabalho em
rede, ultrapassando as estruturas verticalizadas e compartimentalizadas existentes.
Esta nova visão exige uma articulação entre os vários profissionais, inclui a participação da sociedade, comunidade e famílias, no desenvolvimento de uma acção
colectiva na direcção do bem comum. Esta Reunião, para além de um espaço para
rever e actualizar saberes, conhecer as nossas práticas e experiências, promover
os contactos entre pares e parceiros, quer adicionalmente lançar as bases para o
trabalho em rede na área da saúde da Mulher, da Criança e do Adolescente, derrubar os limites do isolamento e flexibilizar a articulação de cuidados. É também um
tempo de convívio, solidariedade e amizade.
Sejam bem-vindos à XXIV Reunião de Pediatria do Centro Hospitalar do Porto.
Sílvia Álvares
editorial
73
NASCER E CRESCER
revista do hospital de crianças maria pia
ano 2012, vol XXI, n.º 2
Anemia ferripriva refractária à terapêutica
com ferro oral – que etiologias?
Sandrina Martins1, Emília Costa1, Luís Ribeiro1, Miguel Salgado1, Cristiana Couto1, Fernando Pereira2, José Barbot1
RESUMO
Introdução: Uma anemia ferripriva refractária (AFR) à terapêutica com ferro oral pode colocar questões delicadas em termos de diagnóstico etiológico. O não cumprimento da terapêutica ou a deficiente correcção de eventuais erros alimentares são
as causas mais frequentes. No entanto, é importante ponderar
outras etiologias como défice de absorção, hemorragia oculta
assim como erros de metabolismo do ferro.
Objectivos: Os autores pretendem discutir os diagnósticos
diferenciais de AFR bem como a pertinência dos exames auxiliares de diagnóstico.
Material e Métodos: Foi efectuado um estudo retrospectivo dos processos clínicos de seis doentes em idade pediátrica
com anemia ferripriva refractária ao ferro oral.
Resultados: Três doentes apresentavam patologia gastrointestinal com má absorção de ferro, um apresentava hemorragia oculta e duas crianças tinham anemia ferripriva provocada
por erros do metabolismo do ferro.
Discussão/Conclusões: Discute-se a pertinência e oportunidade das seguintes investigações etiológicas: parâmetros hematológicos, padrão dos parâmetros bioquímicos de ferro, prova
terapêutica de absorção, rastreio de patologia de absorção, resposta terapêutica ao ferro endovenoso e/ou ferro de absorção
não dependente da secreção gástrica e investigação endoscópica e histológica do tracto digestivo. Conclui-se ser importante
no estudo destes doentes a elaboração de uma metodologia de
investigação que tenha em conta elementos de ordem epidemiológica, semiológica e analítica assim como a utilização criteriosa
de exames auxiliares de diagnóstico invasivos.
Palavras-chave: anemia ferripriva refractária, hemorragia
oculta, erros do metabolismo do ferro, patologia de absorção.
Nascer e Crescer 2012; 21(2): 74-79
INTRODUÇÃO
O défice de ferro representa um problema de saúde pública,
sendo a causa mais frequente de anemia na criança(1,4,9,18). Nas
últimas décadas vários estudos desenvolvidos mostram o efeito
__________
1
2
U. Hematologia Pediátrica, CH Porto
U. Gastrenterologia Pediátrica, CH Porto
74
artigo original
original article
nocivo desta deficiência sobre o desenvolvimento psicomotor da
criança que, em algumas circunstâncias, pode ser irreversível(1).
Tendo este facto em consideração, a correcção célere das anemias ferriprivas é de importância primordial.
Embora o diagnóstico etiológico e a resolução terapêutica
da anemia ferripriva habitualmente não se mostrem complexos,
existem situações clínicas que colocam dificuldades diagnósticas
e terapêuticas tal como a resistência à terapêutica com ferro oral.
O não cumprimento da terapêutica ou a deficiente correcção de
eventuais erros alimentares são as causas mais frequentes. No
entanto, é importante ponderar outras etiologias relacionadas
com o défice de absorção, a hemorragia oculta assim como com
erros de metabolismo do ferro.
Para serem formuladas as diversas hipóteses diagnósticas,
é indispensável conhecer o processo de metabolismo de ferro
(2-4,18)
. O ferro é um elemento essencial para processos vitais mas,
paradoxalmente, altamente tóxico quando presente em concentrações elevadas no organismo. Isto obriga a que haja um equilíbrio perfeito no seu metabolismo: desde a absorção até à sua
incorporação na molécula de hemoglobina. Esta função é levada
a cabo por diversas proteínas cujo conhecimento emergiu na última década. De uma forma geral, o ferro proveniente da dieta
é absorvido no duodeno e para tal necessita da integridade das
vilosidades assim como dos diversos transportadores envolvidos
na absorção, que é favorecida por um ambiente ácido. O ferro é
incorporado no enterócito através de uma proteína transportadora comum a outros metais divalentes (DMT-1) e exportado para
a corrente sanguínea através de uma outra proteína designada
de ferroportina, também essencial na exportação do ferro por
parte da célula do sistema reticulo-endotelial (SER) no processo
de reciclagem do eritrócito senescente. Assim, o ferro utilizado
na eritropoiese provém essencialmente de duas fontes: da sua
absorção da dieta e da degradação das hemácias. Quando em
circulação, liga-se à transferrina que o torna insolúvel e impede
a sua toxicidade. Não apresentando nenhum mecanismo de excreção eficiente, a regulação do metabolismo de ferro fica essencialmente dependente da hepcidina, uma molécula que constitui
a mais recente descoberta do processo do metabolismo do ferro
e que impede que a ferroportina exerça a sua acção (exportação de ferro dos enterócitos e do SRE) (2-4). Assim sendo, numa
situação em que ocorre défice de ferro, a síntese de hepcidina é
frenada, de forma a permitir a passagem do elemento do enterócito e do SRE para a circulação sanguínea. Por seu lado, numa
situação de excesso, a síntese de hepcidina aumenta e o ferro
NASCER E CRESCER
revista do hospital de crianças maria pia
ano 2012, vol XXI, n.º 2
fica sequestrado no enterócito e no SRE. O comprometimento de
qualquer um destes factores pode contribuir para uma anemia
ferripriva refractária (AFR) ao tratamento oral.
OBJECTIVOS
Os autores pretendem, através da descrição de seis casos
clínicos de anemia ferripriva refractária em idade pediátrica, discutir os diagnósticos diferenciais de AFR bem como a pertinência
dos exames auxiliares de diagnóstico e demonstrar a necessidade de protocolar a sua investigação à luz dos conhecimentos
actuais.
MATERIAL E MÉTODOS
Foi efectuado um estudo retrospectivo dos processos clínicos de seis doentes com anemia ferripriva refractária e avaliados
diversos parâmetros como: índices hematológicos, padrão dos
parâmetros bioquímicos de ferro, prova terapêutica de absorção,
rastreio de patologia de absorção, resposta terapêutica ao ferro
endovenoso e/ou ferro de absorção não dependente da secreção gástrica e investigação endoscópica e histológica do tracto
digestivo.
RESULTADOS
Caso 1 - A.M.C.P., dois anos, sexo feminino, caucasiana.
Referenciada à consulta de Hematologia Pediátrica por anemia
ferripriva resistente ao tratamento com ferro oral. No último mês
apresentara vómitos esporádicos e irritabilidade e tinha uma
evolução ponderal deficitária desde os sete meses. Ao exame
físico era de realçar a palidez da pele e mucosas e o aspecto
emagrecido. Após quatro meses de tratamento com ferro oral,
apresentava uma anemia moderada microcítica e hipocrómica
com RDW aumentado e ausência de reticulocitose. O ferro sérico, percentagem de saturação de transferrina e ferritina estavam
baixos (Quadro 1) e a prova de absorção de ferro oral revelou défice de absorção (Figura 1). Do estudo efectuado, destacaram-se
anticorpos anti-transglutaminase IgA positivos – 4600 U/ml (Normal: <30 U/ml). Efectuou endoscopia digestiva alta (EDA) com
biópsias da 2ª porção do duodeno que vieram confirmar atrofia
vilositária e corroborar o diagnóstico de doença celíaca. Iniciou
evicção do glúten da dieta e reposição de ferro, primeiro por via
endovenosa com posterior recurso à via oral. Observou-se uma
recuperação gradual dos valores hematológicos com a normalização dos parâmetros bioquímicos de ferro (Quadro 1). Desde
então, manteve dieta específica com valores dos índices hematológicos e dos parâmetros bioquímicos de ferro adequados à
idade, sem recidiva da anemia.
Caso 2 - F.P., 12 anos, sexo feminino, caucasiana, sem antecedentes pessoais ou familiares dignos de relevo. Aos 11 anos de
idade, em análises de rotina, foi detectada uma anemia ferripriva.
Efectuou terapêutica com ferro oral durante um ano sem resposta
adequada, motivo pelo qual foi orientada para a consulta de Hematologia Pediátrica. Tratava-se de uma adolescente pré-púbere,
assintomática e que consumia uma dieta equilibrada. O estudo
efectuado evidenciou uma anemia ligeira, microcítica e hipocrómica com RDW aumentado e ausência de reticulocitose. Os pa-
râmetros bioquímicos de ferro confirmaram a ferropenia (Quadro
1) e a prova de absorção de ferro oral sugeria défice de absorção.
Neste contexto procedeu-se ao estudo analítico no qual se destacavam os níveis elevados de gastrina sérica - 580 pg/ml (Normal:
13-115 pg/ml). Embora os anticorpos anti-Helicobacter pylori não
sejam o método ideal de pesquisa de infecção por Helicobacter
pylori, face à suspeita e ao valor negativo do teste respiratório
com ureia C-13, foram determinados e revelaram-se francamente
positivos (IgG - 1149 RU/ml e IgA - 8,2 INDEX, respectivamente).
Decidiu-se então realizar EDA que mostrou uma mucosa hiperemiada no corpo e no fundo gástricos. A histologia evidenciou “…
lesões de gastrite crónica com atrofia glandular focal e metaplasia intestinal ligeira… A pesquisa de Helicobacter pylori (H. pylori)
foi positiva…”. Efectuou terapêutica tripla durante duas semanas
com omeprazol, amoxicilina e claritromicina e iniciou tratamento
com sulfato ferroso de glicina oral (preparação cuja absorção é
independente da secreção gástrica) que cumpriu durante quatro
meses com normalização dos parâmetros hematológicos e bioquímicos de ferro (Quadro 1). Repetiu o estudo endoscópico sete
meses depois do primeiro notando-se uma regressão da metaplasia intestinal. Não eram evidentes sinais de atrofia e a pesquisa
de H. pylori foi negativa. Não ocorreram recidivas num período de
um ano de seguimento.
Caso 3 - P.S.P.S, sexo feminino, seis anos de idade. Referenciada à consulta por anemia microcítica e hipocrómica
detectada em análises efectuadas no pré-operatório de amigdalectomia. Os parâmetros bioquímicos de ferro indicavam clara
deficiência (Quadro 1). A história não revelava evidência de erros
alimentares ou de perdas hemáticas. Após oito meses de tratamento com ferro oral não foi observada resposta. Realizou prova
de absorção de ferro oral que revelou défice de absorção. Os
anticorpos anti-transglutaminase e a pesquisa de infecção por
H.pylori com teste respiratório foram negativos. Efectuou posteriormente o estudo para exclusão de gastrite atrófica auto-imune
(GAAI): a pesquisa de anticorpos anti-célula parietal foi fortemente positiva (212,5 U/ml; Normal < 25 U/ml) e o doseamento
de gastrina sérica foi elevado (535 pg/ml; Normal < 115 pg/ml).
Figura 1 – Prova de absorção oral indicativa de défice de absorção
artigo original
original article
75
NASCER E CRESCER
revista do hospital de crianças maria pia
ano 2012, vol XXI, n.º 2
Realizou EDA com biópsias gástricas que demonstraram mucosa atrófica no corpo e fundo gástrico. Este conjunto de resultados veio confirmar o diagnóstico de GAAI. Foi medicada com
sulfato ferroso de glicina com boa resposta (Quadro 1). Catorze
meses após normalização do hemograma verificou-se uma recidiva da anemia ferripriva. Reiniciou sulfato ferroso de glicina
durante quatro meses com normalização dos valores.
Quadro 1 - Valores hematológicos e parâmetros bioquímicos de ferro
dos casos um, dois e três (Patologia gastrointestinal de absorção).
Apresentação
Caso 1
Hb (N:10,5-13,5 g/dl)
VGM (N: 70-86 fl)
HGM (23-31 pg)
RDW (<15%)
Reticulócitos (/μL)
CHr (N > 26-28 pg)
Ferro sérico (50-120 μg/dl)
CTFF (N: 250-400 μg/dl)
% Sat Transf (15-45)
Ferritina (7-140 ng/ml)
7,6 ↓
57,5 ↓
15,1 ↓
26,2 ↑
77200
22,5 ↓
13 ↓
480 ↑
2,7 ↓
0,9 ↓
Após
Após ferro Após ferro
sulfato
PO
ev
ferroso de
glicina PO
7,3 ↓
59,2 ↓
14,4 ↓
18,8 ↑
75000
22,7 ↓
12 ↓
400 ↑
3↓
2,75 ↓
Caso 2
Hb (N:11,5-15,5 g/dl)
VGM (N: 77-95 fl)
HGM (25-33 pg)
RDW (<15%)
Reticulócitos (/μL)
CHr (> 26-28 pg)
Ferro sérico (50-120 μg/dl)
CTFF (N: 250-400 μg/dl)
% Sat Transf (15-45)
Ferritina (7-140 ng/ml)
10,2 ↓
70,3 ↓
22,7 ↓
15,7 ↑
57000
23,2 ↓
15 ↓
430 ↑
3,4 ↓
6↓
10,7 ↓
67,1 ↓
21,7 ↓
15,7 ↑
51800
22,8 ↓
30 ↓
600 ↑
5↓
6↓
Caso 3
Hb (N:11,5-13,5 g/dl)
VGM (N: 75-87 fl)
HGM (24-30 pg)
RDW (<15%)
Reticulócitos (/μL)
CHr (N> 26-28 pg)
Ferro sérico (50-120 μg/dl)
CTFF (N: 250-400 μg/dl)
% Sat Transf (15-45)
Ferritina (7-140 ng/ml)
8,9 ↓
67,7 ↓
21,4 ↓
16,4 ↑
56200
24,3 ↓
19 ↓
500 ↑
3,8 ↓
3,9 ↓
8,9 ↓
70,3 ↓
21,7 ↓
15,8 ↑
41100
24,7 ↓
18 ↓
450 ↑↑
4,6 ↓
6,5 ↓
11,9
75
25
13,9
126600
28,4
72
300
24
50
N/A
N/A
N/A
Quadro 2 – Valores Hematológicos e parâmetros bioquímicos de ferro do
caso 4 (Hemorragia Gastrointestinal oculta).
13,4
78
25,5
13,7
93300
29
58
387
15
49
11,9
81,2
27,8
12,7
31,6
74
337
21
66,5
Hb – hemoglobina; VGM – volume globular médio; HGM – hemoglobina
globular média; CHr – conteúdo de hemoglobina reticulocitária; CTFF
– capacidade total de fixação de ferro; % sat transf – percentagem de
saturação da transferrina; N/A – não aplicável.
76
artigo original
original article
Caso 4 - J.E.M.S, sexo masculino, oito anos de idade. Detectada anemia ferripriva em análises de rotina no pré-operatório
de adenoidectomia. Na altura do diagnóstico apresentava um
consumo excessivo de produtos lácteos. Iniciou ferro oral e correcção dos erros alimentares. Um ano depois, por resposta não
satisfatória, foi referenciado à nossa consulta. Apresentava uma
anemia microcítica hipocrómica, com RDW aumentado e reticulocitose. Os parâmetros bioquímicos de ferro eram sugestivos de
ferropenia (Quadro 2). A pesquisa de doença celíaca, infecção
por H. pylori e GAAI foi negativa, assim como o exame parasitológico e a pesquisa de sangue oculto nas fezes. A resposta à
terapêutica com ferro oral revelava-se sempre parcial e fugaz
(Quadro 2). A resposta ao tratamento com ferro endovenoso era
adequada numa primeira fase (reticulocitose e hemoglobinização normal dos reticulócitos), mas recidivava sistematicamente
após suspensão do tratamento. Este padrão de resposta levou à
suspeita de hemorragia oculta. A realização de EDA evidenciou
hérnia do hiato e esofagite péptica (grau IV). Iniciou tratamento
com omeprazol e foi submetido a fundoplicatura de Nissen laparoscópica. Reiniciou ferro oral com normalização sustentada do
quadro hematológico ao fim de três meses (Quadro 2).
Caso 4
Hb (N:11,5-15,5 g/dl)
VGM (N: 77-95 fl)
HGM (25-33 pg)
RDW (N <15%)
Reticulócitos (N< 100.000/ul)
CHr (N>26-28 pg)
Ferro sérico (50-120 μg/dl)
CTFF (N: 250-400 μg/dl)
% Sat Transf (15-45)
Ferritina (7-140 ng/ml)
Apresentação
Após
ferro PO
Após
ferro ev
Após
Cirurgia
(3m)
9,4 ↓
66,5 ↓
15,1 ↓
17 ↑
137100
22,5 ↓
8↓
333
2,4 ↓
1↓
11,2 ↓
76 ↓
27,2
14,5
184800↑
26,4
22 ↓
351
3↓
13
12
89,5
29,1
14,6
209200 ↑
29
38
306
12,4 ↓
36
12,8
79,3
25,9
13,5
73600
32
70
265
49%
52
Hb – hemoglobina; VGM – volume globular médio; HGM – hemoglobina
globular média; CHr – conteúdo de hemoglobina reticulocitária; CTFF
– capacidade total de fixação de ferro; % sat transf – percentagem de
saturação da transferrina.
Caso 5 - M.C.O.N., sexo feminino. Aos 11 meses de idade
efectuou estudo analítico por quadro de perda ponderal, anorexia e palidez. Foi detectada anemia severa, microcítica, hipocrómica, com necessidade de suporte transfusional. Apresentava
nessa altura parâmetros de ferro indicativos de défice (Quadro
3). O tratamento prolongado com ferro oral não demonstrou
NASCER E CRESCER
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ano 2012, vol XXI, n.º 2
nenhum benefício em termos de índices hematológicos. Aos
dois anos de idade foi enviada à nossa consulta para estudo. A
prova terapêutica de absorção de ferro oral indicava défice de
absorção. O estudo protocolado de patologia de má absorção
revelou-se negativo. Os parâmetros de ferro mostravam-se de
alguma maneira contraditórios na medida em que a saturação
de transferrina e o ferro sérico eram sistematicamente baixos
em contraste com a ferritina sérica que se revelava sempre
normal/limiar. A terapêutica com ferro endovenoso acentuava
esta discrepância aumentando a ferritina sérica para valores
preocupantes enquanto os outros parâmetros sofriam apenas
discreta melhoria (Quadro 3). De referir que esta criança tinha
uma prima em segundo grau seguida na nossa consulta por
ser portadora de anemia de características semelhantes. Este
contexto sugeria uma patologia de carácter hereditário por erro
do metabolismo do ferro que, para além de ser mal absorvido,
não seguia o seu trajecto normal quando administrado por via
endovenosa. O seu esclarecimento definitivo teve que esperar pelo ano de 2008, altura em que foi descrita e caracterizada molecularmente uma doença denominada de IRIDA (Iron-Refractory Iron Deficiency Anemia)(9). As duas primas vieram
a revelar-se homozigóticas para uma mutação no exão 15 do
gene TMPRSS6 da protease transmembranar matriptase-2.
Esta proteína uma vez deficitária impede a contra-regulação
da produção de hepcidina, com consequente excesso da sua
secreção(9). Actualmente com oito anos, a criança apresenta
desenvolvimento normal, tolera razoavelmente bem a anemia
e é medicada, de forma intermitente, com pequenas doses de
ferro endovenoso.
Caso 6 - M.I.M, sexo feminino, 17 anos de idade, com diagnóstico de Glicogenose tipo 1A desde os quatro anos. Seguida em consulta de Nefrologia por nefromegalia e proteinúria e
de Hepatologia por aparecimento de adenomas hepáticos aos
sete anos. Foi referenciada à nossa consulta aos 14 anos por
anemia de agravamento progressivo. Apresentava uma anemia
microcítica e hipocrómica, com parâmetros bioquímicos de ferro
indicativos de défice em contradição com o valor da ferritina que
era normal (Quadro 3). Iniciou tratamento com ferro oral e face à
ausência de resposta efectuou prova de absorção oral de ferro
que foi indicativa de défice de absorção. Com a administração
de ferro endovenoso verificava-se, tal como no caso 5, um aumento desproporcional dos valores de ferritina em contradição
com os restantes parâmetros bioquímicos de ferro e parâmetros
hematológicos (Quadro 3). Uma consulta da literatura associava
os adenomas hepáticos característicos da Glicogenose tipo 1A a
uma secreção inapropriada de hepcidina(17). Esta hipótese justificava a refractoriedade da terapêutica com ferro oral assim como
com ferro endovenoso. O aumento do tamanho e do número dos
adenomas ao longo dos anos associado ao seu potencial de
malignização e possível papel no desenvolvimento de anemia
conduziram à decisão de efectuar um transplante hepático. Três
meses após transplante verificou-se uma normalização sustentada do hemograma bem como dos parâmetros bioquímicos de
ferro (Quadro 3).
Quadro 3 – Valores Hematológicos e parâmetros bioquímicos de ferro
dos caso 5 e 6 (Excesso de produção de Hepcidina)
Caso 5
Hb (N: 11,5-12,5 g/dl)
VGM (N: 77-95 fl)
HGM (24-27 pg)
RDW (<15%)
Reticulócitos (/μL)
CHr (N> 26-28 pg)
Ferro sérico (50-120 μg/dl)
CTFF (N: 250-400 μg/dl)
% Sat Transf (15-45)
Ferritina (7-140 ng/ml)
Caso 6
Hb (N:12-14 g/dl)
VGM (N: 78-90 fl)
HGM (25-30 pg)
RDW (<15%)
Reticulócitos (/μL)
CHr (N> 26-28 pg)
Ferro sérico (50-120 μg/dl)
CTFF (N: 250-400 μg/dl)
% Sat Transferrina (15-45)
Ferritina (7-140 ng/ml)
Após
ferro ev
Após
transplante
Apresentação
Após
ferro PO
7,1 ↓
52,3 ↓
14 ↓
17 ↑
39100
16,2 ↓
15 ↓
253
6↓
36
6,9 ↓
52,8 ↓
13,5 ↓
17,5 ↑
46100
16,7 ↓
15 ↓
264
5,7 ↓
75
8↓
55,7 ↓
14,6 ↓
16,7 ↑
71300
17,2 ↓
27 ↓
281
9,6 ↓
215 ↑
8,2 ↓
71,8 ↓
21,1 ↓
15,5 ↑
8,9 ↓
66,8 ↓
20,6 ↓
17,3 ↑
10,6 ↓
69,5 ↓
22,3 ↓
19 ↑
13,3
89,4
29,4
14,2
21,9 ↓
10 ↓
296
3,6 ↓
45,3
22,7 ↓
12 ↓
300
4↓
98,7
24,3 ↓
11 ↓
366
3↓
237 ↑
29,7
80
242
33
89
N/A
Hb – hemoglobina; VGM – volume globular médio; HGM – hemoglobina
globular média; CHr – conteúdo de hemoglobina reticulocitária; CTFF
– capacidade total de fixação de ferro; % sat transf – percentagem de
saturação da transferrina; N/A – não aplicável.
DISCUSSÃO E CONCLUSÕES
Os seis casos descritos documentam três mecanismos fisiopatológicos cuja investigação é fundamental na presença de
uma AFR.
Todos apresentam, à partida, uma anemia microcítica, hipocrómica com RDW aumentado.
Relativamente aos parâmetros bioquímicos de ferro, os
casos 5 e 6 podem diferenciar-se logo à partida dos restantes.
Efectivamente, nestes dois casos, estes parâmetros revelam-se
contraditórios, ou seja, a saturação da transferrina é muito baixa
(sobretudo à custa do ferro sérico baixo com capacidade total
de fixação ao ferro normal) em contraste com a ferritina sérica
que é normal. Nestes dois casos, um excesso de hepcidina com
sequestro do ferro no enterócito e SRE justifica estes valores. Os
restantes casos (1 a 4) apresentam parâmetros bioquímicos de
ferro típicos de uma situação deficitária (saturação baixa à custa
de ferro sérico baixo e capacidade total de fixação ao ferro alta
artigo original
original article
77
NASCER E CRESCER
revista do hospital de crianças maria pia
ano 2012, vol XXI, n.º 2
e ferritina baixa). É neste sentido que uma avaliação crítica dos
parâmetros de ferro se pode revelar importante na orientação
diagnóstica.
Relativamente ao padrão de resposta ao ferro oral, o caso
4 (hemorragia oculta) difere dos restantes na medida em que
se observa uma reticulocitose inicial com incremento da hemoglobinização dos reticulócitos. Esta hemoglobinização nunca é,
contudo, satisfatória e o incremento no valor da hemoglobina é
frustre com recidiva da anemia ainda durante o tratamento, consequente à perda hemorrágica coexistente. Nos restantes casos,
a resposta ao ferro oral convencional é mínima ou nula, seja qual
for o parâmetro de avaliação.
A investigação da anemia ferripriva na criança é forçosamente distinta daquela que está indicada em outros grupos etários. Num homem adulto ou numa mulher pós-menopausa a avaliação endoscópica do tracto gastrointestinal é obrigatória e de
primeira linha. Na criança a prioridade deve ser dada à investigação de aporte insuficiente. Face à não evidência desta etiologia,
a atitude seguinte será a de investigar patologia gastrointestinal
de absorção(5-8,10-14,16). A prova de absorção oral, embora com algumas limitações, pode ser útil face a esta suspeita. Esta etiologia de AFR vem emergindo com importância crescente na última
década e é passível de ser estudada por métodos não invasivos:
pesquisa de doença celíaca, infecção por H. pylori e doseamento de anticorpos anti-célula parietal e de gastrina sérica para
exclusão de GAAI. A pesquisa de Doença Celíaca faz já parte
da rotina da investigação de AFR em pediatria. Em termos fisiopatológicos, o comprometimento da absorção de ferro deve-se
essencialmente à atrofia da mucosa e desaparecimento das criptas, com diminuição da área de absorção. São propostos como
mecanismos coadjuvantes a ocorrência de hemorragia oculta
e, mais recentemente, postula-se que o aumento da hepcidina
associado à inflamação contribui para a deficiente absorção do
metal(6,10,12,13). Pelo contrário, a pesquisa de infecção por H.pylori
e de GAAI não integra ainda a rotina da investigação de AFR
em idade pediátrica. Trata-se de duas situações susceptíveis
de provocar gastrite atrófica com consequente hipocloridria que,
por sua vez, pode comprometer a absorção de ferro(5-10,11,14,16). O
doseamento de gastrina sérica constitui um bom indicador indirecto de hipocloridria e pode revelar-se importante na orientação
diagnóstica. De referir que a GAAI foi até há pouco tempo considerada uma doença do idoso e associada apenas ao desenvolvimento de anemia perniciosa. Estudos extremamente bem conduzidos vieram revelar que esta patologia pode atingir a faixa etária
pediátrica e que dezenas de anos antes do desenvolvimento de
anemia perniciosa se pode instalar uma AFR por lesão das células parietais gástricas(6,10,11,14). A resposta à terapêutica com uma
apresentação de ferro de absorção não dependente de ambiente
ácido (sulfato ferroso de glicina) pode reforçar a evidência de
uma patologia de absorção associada a acloridria/hipocloridria
e pode ser uma arma terapêutica de ouro nos casos em que a
cura da doença de base não é possível, como é o caso de GAAI.
Nesta situação, como ilustra o caso 3, a recidiva da anemia é
quase inevitável na ausência de tratamento adequado(15). Nos
casos de infecção por H.pylori, o teste respiratório com Ureia
78
artigo original
original article
C-13 é considerado de eleição para o diagnóstico embora possa
ser de difícil realização em crianças mais jovens, nos quais se
pode optar pela pesquisa do antigéneo nas fezes. Nesta criança
as serologias foram orientadoras embora não devam ser a investigação de primeira linha. No caso descrito, a erradicação da
bactéria levou à resolução do quadro, sem recidiva.
É importante referir que os casos 5 e 6 também revelaram
compromisso na absorção de ferro. Neste contexto, e tendo em
conta que o mecanismo não envolve a hipocloridria mas sim o
impedimento da absorção por excesso de hepcidina, o sulfato
ferroso de glicina revela-se obviamente ineficaz. O que individualiza de forma inequívoca os casos 5 e 6 é o padrão de resposta ao ferro endovenoso que sugere fortemente um distúrbio
do metabolismo que leva a que o ferro administrado sob via endovenosa não siga um percurso expectável na medida em que
não é disponibilizado para eritropoiese, pelo facto de ficar sequestrado no SRE. O aumento desproporcionado da ferritina é
disso um claro indicador. O incremento anómalo da produção de
hepcidina, base fisiopatológica destas duas situações, resulta de
erro hereditário no caso 5 e de uma produção tumoral autónoma
no caso 6(17). Este aumento de hepcidina também contribui para
a denominada anemia da doença crónica na medida em que é
também uma proteína cuja secreção aumenta em resposta à IL-6 em condições inflamatórias.
Conclui-se assim ser fundamental no estudo destes doentes a elaboração de uma metodologia de investigação que tenha
em conta elementos de ordem epidemiológica, semiológica e
analítica assim como a utilização criteriosa de exames auxiliares
de diagnóstico invasivos.
REFRACTORY IRON DEFICIENCY ANEMIA
– WHAT POSSIBLE CAUSES?
ABSTRACT
Background: A refractory iron deficiency anaemia may
have some issues considering its aetiology. Non-compliance
to drug therapies and persistent dietary errors are the most
common causes. However, it is important to consider other
possibilities such as malabsorption, occult bleeding and errors
on iron metabolism.
Purpose: The authors aim to demonstrate the need of a
diagnostic investigation strategy in a refractory iron deficiency
anaemia study.
Material and Methods: We performed a retrospective study
of medical records of six patients with refractory iron deficiency
anaemia.
Results: Three patients had gastrointestinal pathology
with impaired absorption of iron, one had occult gastrointestinal
bleeding, and two children had iron deficiency caused by iron
metabolism disorders.
Discussion / Conclusion: The relevance of the following
investigations are discussed: hematologic indices, iron-status
indicators, screening of malabsorption, response to intravenous
iron and/or oral iron formulation independent of gastric acid
NASCER E CRESCER
revista do hospital de crianças maria pia
ano 2012, vol XXI, n.º 2
secretion and endoscopic and histological investigation of the
digestive tract. The development of a research methodology
that considers epidemiologic, clinical and analytical factors is
necessary in such patients.
Keywords: refractory iron deficiency anemia, occult
bleeding, iron metabolism disorders, malabsorption.
Nascer e Crescer 2012; 21(2): 74-79
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CORRESPONDÊNCIA
Sandrina Martins
E-mail: [email protected]
artigo original
original article
79
NASCER E CRESCER
revista do hospital de crianças maria pia
ano 2012, vol XXI, n.º 2
Urticária crónica numa população pediátrica
Marta Rios1, Rui Silva2, Leonor Cunha3, Eva Gomes3, Helena Falcão3
RESUMO
Introdução: A urticária crónica (UC) é uma patologia rara
na criança e no adolescente.
Objetivo: Caracterizar um grupo de crianças e adolescentes com UC, analisando os subtipos de UC identificados, patologias associadas, tratamento e evolução.
Material e métodos: Estudo retrospetivo baseado na consulta dos processos clínicos de uma amostra consecutiva de 59
crianças e adolescentes seguidos numa consulta de Imunoalergologia pediátrica.
Resultados: Os 59 doentes tinham idades compreendidas
entre 16 meses e 17 anos. Destes, 37 (62,7%) eram do sexo masculino. Trinta e cinco (59,3%) casos corresponderam a urticária
espontânea crónica, 20 (33,9%) a urticária física (15 factícia, cinco ao frio), e quatro (6,8%) a outro tipo de urticária (dois induzida
pelo exercício, um colinérgica, um aquagénica). Foram detetados
autoanticorpos em quatro doentes com urticária espontânea e
em cinco com urticária física/outro tipo. Diagnosticou-se infecção
aguda por CMV num doente com urticária espontânea e infeção
por Giardia num doente com urticária induzida pelo exercício.
Em 31 (88,6%) dos 35 casos cuja evolução é conhecida durante
os primeiros cinco anos de doença, houve remissão da sintomatologia, em média 24 meses depois (mediana 12 meses).
Conclusões: Para além da UC espontânea, identificada na
maioria, a urticária factícia e desencadeada pelo frio são subtipos
frequentes neste grupo etário. O rastreio de doenças autoimunes
parece ter interesse não só nos casos de urticária espontânea,
como nos restantes subtipos. Na maioria dos doentes ocorre
resolução espontânea dos sintomas durante os primeiros cinco
anos de doença, sobretudo durante o primeiro ano.
Palavras-chave: Adolescentes, crianças, patologia cutânea, urticária crónica.
Nascer e Crescer 2012; 21(2): 80-85
INTRODUÇÃO
A urticária caracteriza-se pelo aparecimento súbito de lesões cutâneas papuloeritematosas e pruriginosas, que desaparecem ou atenuam à digitopressão e que regridem, espontaneamente ou sob terapêutica, sem lesão residual, num período
inferior a 24h (1-4). Em cerca de 50% dos casos acompanha-se
de angioedema, que traduz o envolvimento das estruturas mais
profundas da derme (1-4). De acordo com a evolução temporal
das lesões, classifica-se em aguda ou crónica, conforme ocorram episódios durante um período inferior ou superior a seis semanas, respetivamente (1,4-6).
A incidência de todas as formas de urticária na criança varia
entre 2,1 e 6,7%, sendo mais frequente em crianças mais pequenas (2,4-7). A urticária crónica (UC) na criança/adolescente é pouco
frequente, ocorrendo em apenas 0,1-0,3%, percentagem inferior
à observada em idade adulta (2,5,6,8).
Embora muito do conhecimento sobre UC no adulto possa ser aplicado à criança e ao adolescente, as particularidades
inerentes a este grupo etário, sobretudo no que diz respeito à
etiologia e evolução, ainda estão pouco estudadas (4-6,9).
Os autores pretendem caracterizar um grupo de 59 crianças/adolescentes, analisando os subtipos de UC identificados,
fatores desencadeantes, patologias associadas, tratamento e
evolução.
MATERIAL E MÉTODOS
Estudo retrospetivo e descritivo, baseado na consulta dos
processos clínicos de uma amostra consecutiva de crianças/
adolescentes seguidos numa consulta de Imunoalergologia pediátrica por UC.
Foram incluídas as crianças com episódios de urticária
(agudos recorrentes - pelo menos três episódios de urticária
num período mínimo de seis meses ou persistentes - mais do
que quatro episódios por semana), durante um período superior a seis semanas, sem ou com etiologia identificada (urticária
espontânea, física, de outro tipo específico), e foram excluídas
as crianças com episódios de urticária associados a alergia alimentar.
__________
__________
1
2
3
S. Pediatria, H Maria Pia, CH Porto
U. Imunoalergologia, CH Trás-os-Montes e Alto Douro
U. Imunoalergologia, H Maria Pia, CH Porto
80
artigo original
original article
ABREVIATURAS:
ANA - Anticorpos antinucleares; CMV - Citomegalovírus; EAACI - European Academy
of Allergology and Clinical Immunology; EBV - Vírus epstein-barr; EDF - European
Dermatology Forum; GA2LEN - Global Allergy and Asthma European Network; HSV Vírus herpes simplex; UC - Urticária crónica; WAO - World Allergy Organization
NASCER E CRESCER
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ano 2012, vol XXI, n.º 2
Foi considerada a nova classificação de urticária, de acordo
com as recomendações propostas pela Secção de Dermatologia
da EAACI, a GA2LEN, a EDF e a WAO no 3rd International Consensus Meeting on Urticaria 2008 (1).
Foram consultados os processos clínicos de todos os doentes e analisados os registos relativos à anamnese e exame físico,
assim como o resultado dos exames complementares de diagnóstico efetuados, que incluíram: testes cutâneos a alimentos (leite,
ovo, trigo e bacalhau) e inalantes comuns (Dermatophagoides
pteronyssinus, pelo de cão e gato e mistura de gramíneas e cereais); testes específicos para confirmação de urticária física nos casos suspeitos (aplicação de pressão sobre a pele, teste com cubo
de gelo, contacto com água ou prática de exercício físico); hemograma, função renal, ionograma e enzimas hepáticas; IgE total
e específicas (na suspeita clínica); função tiroideia e anticorpos
antitiroideos; anticorpos antinucleares (ANA) e estudo do complemento (CH50, C3, C4 e inibidor C1 se angioedema associado);
serologias - vírus epstein-barr (EBV), citomegalovírus (CMV), vírus herpes simplex (HSV), parvovírus, Helicobacter pylori; exame
sumário de urina e urocultura; exame parasitológico de fezes.
As variáveis analisadas foram as seguintes: sexo, idade,
manifestações clínicas, fatores desencadeantes identificados,
comorbilidades associadas, exames complementares de diagnóstico, tratamento e evolução.
Os dados obtidos foram analisados através do programa de
análise estatística Sigmastat 3.5, utilizando análise descritiva.
RESULTADOS
Dados demográficos
Foram incluídas 59 crianças, 37 (62,7%) do sexo maculino.
A mediana de idade à data de início dos sintomas foi de seis
anos (mínimo 16 meses, máximo 17 anos).
Manifestações clínicas, antecedentes e exame físico
Quarenta e uma (69,5%) crianças apresentavam urticária
isolada, e 18 (30,5%) urticária com angioedema associado.
A frequência dos sintomas foi bem caracterizada em 45 casos, tendo surgido diariamente em 12 (26,7%) e semanalmente
em oito (17,8%). Nos restantes 25 (42,4%) houve referência a
surtos mais esporádicos. Metade dos 20 casos com periodicidade diária ou semanal correspondeu a urticária espontânea e os
restantes a urticária factícia.
Em dez casos havia a suspeita de um possível fator desencadeante (16,9%): cinco - exposição ao frio, dois - exercício físico, um - exercício físico e banho com água quente, um - contacto
com água fria ou quente, um - síndrome febril.
Vinte e duas (37,3%) crianças/adolescentes tinham asma
e/ou rinite associada(s), com evidência de sensibilização a aeroalergenos em 17, e um tinha também dermatite atópica. Dois
doentes com urticária espontânea apresentavam como patologia
concomitante perturbação de hiperatividade e défice de atenção
e ambos tinham iniciado tratamento com ritalina vários meses/
anos antes do aparecimento de urticária.
Cinco doentes (8,5%) tinham antecedentes familiares de
UC, embora alguns com subtipos diferentes (um doente com ur-
ticária ao frio tinha familiares com urticária aquagénica; um doente com urticária aquagénica tinha um familiar com angioedema
induzido pelo exercício). Deste grupo fazem parte dois irmãos
gémeos, ambos incluídos na amostra estudada.
Ao exame físico na primeira avaliação, observou-se dermografismo em 17 doentes.
Exames complementares de diagnóstico
Relativamente à pesquisa de patologia infeciosa associada,
numa criança com urticária espontânea detetou-se infeção ativa/
recente por CMV (IgM positiva, sem sintomatologia associada)
dois meses depois do aparecimento de urticária. Em 11 doentes
havia evidência serológica de infeção prévia por Streptococcus
do grupo A, CMV, EBV e/ou HSV (dez com urticária espontânea
e um com dermografismo). Quatro doentes tinham IgG positiva
para Helicobacter pylori (três com urticária espontânea e um com
urticária factícia), não havendo referência a sintomatologia digestiva em nenhum, pelo que não foi efetuada endoscopia digestiva
alta nestes doentes. Numa criança com urticária desencadeada
pelo exercício, o exame parasitológico de fezes foi positivo para
Giardia lamblia.
Na investigação efetuada para exclusão de patologia autoimune, identificou-se ANA positivos (título >1/80) em quatro doentes (um com urticária espontânea e três com urticária física).
Em quatro crianças/adolescentes (três com urticária espontânea
e uma com urticária ao frio) foram detetados anticorpos antitiroideus, todos com função tiroideia normal.
Não se detetou nenhuma alteração quantitativa ou funcional do complemento nos doentes com angioedema.
Verificou-se sensibilização a alergenos alimentares em dois
doentes, um com urticária colinérgica e um com urticária factícia.
Nenhum referia associação dos episódios de urticária com a ingestão dos alimentos implicados e não se verificou desaparecimento dos mesmos após evicção daqueles alimentos.
Em cinco crianças/adolescentes com suspeita de urticária
ao frio foi efetuado o teste de provocação com cubo de gelo, que
foi positivo em todos, e doseamento de crioglobulinas, cujo valor
estava normal.
Classificação
Trinta e cinco (59,3%) casos foram classificados como urticária espontânea crónica, 20 (33,9%) doentes tinham urticária
física (15 factícia e cinco ao frio) e quatro (6,8%) outro tipo específico de urticária (dois induzida pelo exercício, um colinérgica e
um aquagénica) – quadro I.
Tratamento
Todos os doentes efetuaram tratamento com antihistamínicos de segunda geração como primeira opção. Para controlo sintomático, 22 doentes (37,3%) necessitaram de um antihistamínico diário, 11 (18,6%) de dois antihistamínicos em associação e 4
(6,8%) de associação de um antihistamínico com um antagonista
dos leucotrienos. Em 22 (37,3%) casos foi aconselhada apenas
a utilização de antihistamínico nos períodos de agudização por
apresentarem sintomas mais esporádicos.
artigo original
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Evolução
Em 31 (88,6%) dos 35 casos cuja evolução é conhecida
durante os primeiros cinco anos de doença, houve remissão dos
episódios de urticária (Quadro II). A remissão dos sintomas surgiu em média 24 meses após o início da sintomatologia (mediana 12 meses).
Quadro I – Subtipos de urticária identificados na amostra estudada
Física
Classificação
Nº absoluto
(n=59)
%
Urticária espontânea crónica
35
59,3%
Factícia/Dermografismo sintomático
15
25,4%
Frio
5
8,5%
Induzida pelo exercício
2
3,4%
Aquagénica
1
1,7%
Colinérgica
1
1,7%
Outros
tipos
Quadro II – Percentagem de remissão durante os cinco anos após o
diagnóstico
Remissão durante os primeiros 5 anos após o diagnóstico
Evolução conhecida (n=35)
Remissão
Nº absoluto (%)
Até aos 6 meses
8 (22,9%)
Entre os 6 e os 12 meses
9 (25,7%)
Entre os 12 meses e os 2 anos
4 (11,4%)
Entre os 2 e os 5 anos
10 (28,6%)
Total
31 (88,6%)
DISCUSSÃO
Em crianças e adolescentes com UC verificou-se um predomínio do sexo masculino, ao contrário do que é habitual na
idade adulta (2,5,10,11).
No grupo estudado, verificou-se uma elevada percentagem
de casos com angioedema associado (30,5%), tal como é descrito na literatura. Estudos anteriores referem a ocorrência de urticária isolada em 48,8-78,4% dos casos e de urticária associada
a angioedema em 15,0-50,4% (5,11,12).
Numa percentagem importante de casos (44,4%) os sintomas surgiram com periodicidade diária ou semanal, havendo
no entanto séries publicadas que revelam valores superiores a
50% (11).
A maioria dos casos correspondeu a urticária espontânea
crónica, previamente denominada urticária crónica idiopática.
82
artigo original
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Este tipo de UC é o mais frequente em idade pediátrica (3). De
entre os tipos de urticária física, o mais comum foi a urticária
factícia ou dermografismo sintomático, que correspondeu a 25%
da amostra estudada. Este subtipo de urticária carateriza-se pelo
aparecimento de lesões em zonas de atrito cutâneo (1), o que
pode ser facilmente reproduzido durante a consulta através da
aplicação de pressão sobre a pele, sendo o diagnóstico efetuado perante o aparecimento poucos minutos depois de lesões
cutâneas de urticária. Salienta-se que dois dos 17 casos com
evidência de dermografismo ao exame físico, não foram classificados como urticária factícia, mas como urticária ao frio e urticária colinérgica. Como se observou nestes dois casos, podem
surgir diferentes tipos de urticária no mesmo doente simultaneamente (1,3,4,6,11). A urticária ao frio, embora muito rara no adulto, é
relativamente frequente nas crianças e nos adolescentes, como
se observou na amostra analisada, tendo correspondido a cerca de 8,5% do total e a 25,0% dos casos de urticária física. O
exercício físico foi apontado como fator desencadeante em três
casos, tendo sido dois destes casos classificados como urticária
induzida pelo exercício e um como urticária colinérgica. Embora ambas as formas possam ser desencadeadas pelo exercício
físico, na urticária colinérgica, os sintomas são também desencadeados por outros fatores que conduzem ao aumento da temperatura corporal, como o banho com água quente e episódios
de ansiedade (1). Este tipo de urticária é frequente sobretudo nos
adolescentes e adultos jovens (6).
Verificou-se que a anamnese foi fundamental ao permitir
identificar fatores desencadeantes em dez casos, tendo orientado o diagnóstico relativamente ao tipo de urticária. A evidência
de dermografismo ao exame físico permitiu o diagnóstico de urticária factícia em 15 casos. O teste de provocação com o cubo
de gelo, confirmou o diagnóstico de cinco casos suspeitos de
urticária ao frio.
As maiores dificuldades surgiram na abordagem dos doentes com urticária espontânea, ou seja sem fator desencadeante
identificado. Doenças autoimunes como tiroidite autoimune, doença celíaca, diabetes mellitus tipo 1, doença inflamatória intestinal, artrite idiopática juvenil e lúpus eritematoso sistémico podem
surgir previamente, simultanemante ou posteriormente ao aparecimento dos episódios de urticária (3,5,13,14). De entre os 35 casos
de urticária espontânea, identificaram-se fenómenos autoimunes
em quatro (11,4%): um com ANA positivos e três com anticorpos
antitiroideus positivos, embora todos sem outra sintomatologia
e com função tiroideia normal. Num estudo prospetivo com 94
doentes adultos e crianças com UC idiopática houve 2% de positividade para ANA (9). Num estudo canadiano realizado com 624
doentes com UC, foi diagnosticada tiroidite autoimune em 90
(cerca de 14%), valor superior ao encontrado no grupo controlo
(3-6%) e semelhante ao encontrado na amostra apresentada (14).
Dos 24 casos de urticária com fator desencadeante identificado, em quatro (16,7%) foram identificados autoanticorpos: ANA
(padrão mosqueado) em três e anticorpos antitiroideus em um.
Investigações anteriores identificaram autoanticorpos IgG contra
as cadeias alfa dos recetores IgE dos mastócitos em 25-50%
doentes com UC espontânea, o que pode ser demonstrado pela
NASCER E CRESCER
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ano 2012, vol XXI, n.º 2
realização de teste cutâneo com soro autólogo (2-6). Este teste,
tal como em outros centros de imunoalergologia (3), não é realizado por rotina no serviço onde foi realizado este estudo. As
doenças infeciosas que têm sido associadas a UC e que parecem ser fatores desencadeantes/agravantes dos episódios de
urticária, incluem infeção do trato urinário por E.coli, infeções
respiratórias altas por Streptococcus grupo A, infeções por Chlamydia pneumoniae, Helycobacter pylori, CMV, EBV e infeções
parasitárias (ex: Giardia lamblia) (1,3,5,6,15,16). Embora tenha havido
evidência serológica de infeção prévia por alguns destes agentes em 11 doentes, em apenas um se demonstrou infeção ativa
por CMV, sem sintomatologia ou sinais de doença. Nos adultos,
tem sido referida a implicação do Helicobacter pylori na etiologia
da UC (1,2,17-20), embora com muita controvérsia (21,22). Apesar da
serologia ter sido positiva para IgG em três doentes, nenhum
apresentava sintomatologia digestiva, pelo que não tinham indicação para realização de endoscopia digestiva alta. O papel dos
alimentos na UC é controverso. A urticária alimentar não está
incluída na nova classificação proposta em 2008 e publicada em
2009 (1), mas os alimentos continuam a ser apontados como uma
das causas possíveis ou fator agravante (3,5,15). Podem estar envolvidos diferentes mecanismos: reações IgE mediadas (alergia
a marisco, peixe, frutos secos...), reações desencadeadas por
aminas vasoativas (vinho, cerveja, queijo) e pseudoalergenos
(aditivos alimentares, salicilatos naturais e benzoatos) (4). As reações IgE-mediadas estão associadas sobretudo a episódios de
urticária aguda (2,4). Nos dois casos em que se verificou sensibilização a alergenos alimentares não se considerou que estes
estivessem implicados nos episódios de urticária, quer pela história clínica pouco sugestiva, quer pela persistência dos sintomas após a sua evicção. Doenças psiquiátricas/psicossomáticas
são comorbilidades comuns em adultos com UC (3,5). Na amostra
estudada, houve dois doentes com perturbação de hiperatividade e défice de atenção, mas esta patologia em particular ainda não foi associada a UC. O aparecimento de urticária é um
dos efeitos secundários possíveis da ritalina. No entanto, nestes
dois doentes não foi comprovada a implicação deste fármaco,
uma vez que não se verificou relação temporal entre o início e
a suspensão desta terapêutica e o aparecimento e a remissão
dos episódios de urticária, respetivamente. Os fatores genéticos
parecem ter algum papel na etiologia da UC, pela evidência de
história familiar positiva em 8,5% da amostra, semelhante a outros estudos (10,0%) (15).
A abordagem dos doentes com UC baseia-se sobretudo
na realização de uma anamnese e exame físico completos,
de forma a caracterizar as manifestações clínicas e identificar
possíveis fatores desencadeantes (4, 23). As últimas recomendações da EAACI, GA2LEN, EDF e WAO consideram que não é
necessária investigação complementar por rotina, para além dos
testes de provocação que podem ser realizados nalguns casos,
se os dados da história clínica apontarem para o diagnóstico de
urticária desencadeada por um fator bem identificado (1, 6, 23). A
exceção deve ser feita nos casos de urticária factícia e nos casos
de urticária induzida pelo frio, em que devem ser realizados hemograma e velocidade de sedimentação/proteína C reativa em
ambos e doseamento de crioglobulinas no último (1). Nos casos
de UC espontânea, deve ser realizado um estudo complementar mais alargado para rastrear algumas patologias (autoimune,
infeciosa, alergia alimentar) que podem estar associadas. Neste
grupo de exames complementares estão incluídos hemograma,
velocidade de sedimentação, desidrogenase láctica, enzimas
hepáticas, função renal, exame sumário de urina e urocultura,
exame parasitológico de fezes, anticorpos antinucleares, anticorpos antitiroideos e função tiroideia, rastreio de doença celíaca e
testes cutâneos se suspeita de alergia alimentar (1,3). Na maioria
das vezes, os resultados destes exames estão dentro dos parâmetros da normalidade, como se observou em 20 (57,1%) dos
35 casos de UC espontânea identificados na amostra estudada,
percentagem semelhante à demonstrada num estudo com 130
doentes, em que 68% apresentavam estudo normal (24). Embora
atualmente não haja indicação para investigação alargada nos
casos de urticária física ou com fator desencadeante identificado, verificou-se que neste grupo de doentes também se detetaram fenómenos autoimunes em quatro casos (17%) e giardíase
em um. Este facto leva-nos a pensar que ambos os fenómenos,
autoimunes e infeciosos, podem ser comuns a todos os tipos de
urticária e que poderá ter interesse investigar também os casos
de urticária com fator desencadeante identificado. Um grupo de
investigadores italiano chegou à mesma conclusão ao verificar
que a percentagem de doentes com tiroidite autoimune era semelhante no grupo de doentes com UC de causa identificada
(39%) e no grupo de doentes com UC idiopática (42%) (25).
A principal medida a tomar nos casos de urticária com fator desencadeante identificado é evitar a exposição aos mesmos
(3,4)
. Em cerca de 50% dos doentes com urticária ao frio podem
ocorrer manifestações sistémicas. A perda de consciência dentro
de água acarreta o risco de morte por afogamento, pelo que se
desaconselha a prática de desportos que impliquem exposição a
temperaturas baixas como a natação e o esqui (6). A aplicação de
substâncias oleosas sobre a pele antes ou durante o banho nos
doentes com urticária aquagénica permite isolá-la parcialmente
do contacto direto com a água, minimizando os sintomas. Os antihistamínicos, idealmente os não sedativos de segunda geração
(cetirizina, desloratadina, levocetirizina), constituem o tratamento
de primeira linha (3). Nos casos refratários ao tratamento com um
antihistamínico, pode ser associado um segundo antihistamínico
H1 (sedativo como a hidroxizina ou não sedativo), duplicada a
dose do antihistamínico inicialmente proposto ou associado outro fármaco como os antagonistas dos receptores H2 (cimetidina,
ranitidina) ou os antileucotrienos (montelucaste) (3). Os corticóides orais podem diminuir a duração dos episódios, mas não são
uma boa opção terapêutica, devido aos efeitos secundários associados a este fármaco e ao facto de poderem mascarar outras
etiologias/patologias (3). Nos doentes estudados, foi necessário
tratamento diário em cerca de um terço da amostra e da associação de dois fármacos em um quarto, o que demonstra a dificuldade no controlo da doença em alguns casos.
Do grupo de 35 doentes cuja evolução durante os primeiros
cinco anos após o diagnóstico é conhecida, em cerca de metade
(17) houve remissão da sintomatologia um ano após o diagnóstico.
artigo original
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Aos cinco anos de doença, em cerca de 89% dos doentes houve
remissão dos sintomas, em média 24 meses depois (mediana de
12 meses). Num estudo de 94 crianças com UC (espontânea e
induzida pelos estímulos físicos ou outros) foi avaliada a evolução
em 52, tendo havido remissão da sintomatologia em 58%, com
uma mediana de duração dos sintomas de 16 meses (26). Um trabalho inglês realizado com 53 crianças com urticária física, mostrou que em apenas 11,6% dos casos a doença tinha remitido
após um ano e em 38,4% após cinco anos, o que mostra que a
urticária física pode ter um prognóstico pior (27). Estes autores ingleses verificaram ainda que antecedentes de alergia e episódios
mais frequentes (diários/semanais) se relacionam com um pior
prognóstico (menor percentagem de remissão e remissão mais
tardia) (27). O número de doentes com urticária física na amostra
apresentada não foi suficiente para avaliar estas variáveis. Os
autores reconhecem as limitações deste estudo decorrentes do
seu carácter descritivo e retrospetivo, não deixando de reforçar
a importância de implementação de protocolos de abordagem e
investigação bem definidos que permitam a realização de estudos
prospetivos e melhor caracterização desta patologia.
CONCLUSÕES
A UC espontânea foi o subtipo identificado na maioria dos
casos, seguido da urticária factícia, ao frio, induzida pelo exercício e colinérgica.
A anamnese e o exame físico completos são fundamentais
na identificação de eventuais fatores desencadeantes e na classificação dos subtipos de urticária.
O rastreio periódico de doenças autoimunes nas crianças
com UC é fundamental e parece ter interesse, não só nos doentes com urticária espontânea, como também naqueles com
urticária física ou induzida por outros factores.
Embora a urticária possa estar associada ou ser desencadeada por processos infeciosos, só num pequeno número de casos se identifica o agente infecioso implicado, que, sendo vírico
na maior parte dos casos, não altera a abordagem terapêutica. A
infeção por Helicobacter pylori, para além de não parecer ter um
papel relevante na etiologia de UC, sobretudo na criança, deve
ser pesquisada apenas na presença de sintomas sugestivos daquele diagnóstico.
Na grande maioria dos doentes ocorre resolução espontânea dos sintomas durante os primeiros cinco anos de doença, a
maior parte durante o primeiro ano. Apesar disso, é necessária
administração de terapêutica diária para controlo dos sintomas
num elevado número de casos.
CHRONIC URTICARIA IN A PEDIATRIC POPULATION
ABSTRACT
Introduction: Chronic urticaria (CU) is a rare disease in
children and adolescents.
Aim: To characterize a group of children and adolescents
with CU, analyzing the subtypes of CU, associated diseases,
treatment and evolution.
84
artigo original
original article
Material and methods: Retrospective study based on medical records consultation of a consecutive sample of 59 children
and adolescents followed in a pediatric Immunoallergology department.
Results: There were 59 patients aged between 16 months
and 17 years, 37 of them (62,7%) were male. Thirty five (59,3%)
cases corresponded to spontaneous chronic urticaria, 20 (33,9%)
to physical urticaria (15 factitious and five cold urticaria), and four
(6,8%) to another type of urticaria (two induced by exercise, one
cholinergic, one aquagenic). Autoantibodies were detected in
four patients with spontaneous urticaria and in five with physical
urticaria or other. Acute CMV infection was diagnosed in a patient
with spontaneous urticaria, and Giardia infection was found in a
patient with exercise-induced urticaria. In 31 (88,6%) of the 35
cases in which evolution during the first five years is known, there
was remission of symptoms, after 24 months on average (median
12 months).
Conclusions: In addition to spontaneous CU, identified in
most cases, cold and factitious urticaria subtypes are common in
this age group. The screening of autoimmune diseases seems
to have a role not only in patients with spontaneous urticaria, but
also in those with the other types. In the large majority of patients
the spontaneous resolution of symptons occurs during the first
five years of disease, especially during the first year.
Keywords: Adolescents, children, skin pathology, chronic
urticaria.
Nascer e Crescer 2012; 21(2): 80-85
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CORRESPONDÊNCIA
Marta Rios
[email protected]
artigo original
original article
85
NASCER E CRESCER
revista do hospital de crianças maria pia
ano 2012, vol XXI, n.º 2
Contraceção para adolescentes com
lúpus eritematoso sistémico
Cristiana Couto1, Helena Sousa2, Margarida Guedes2
RESUMO
A escolha de um método anticoncecional nas adolescentes com lúpus eritematoso sistémico (LES) tem sido controversa,
nomeadamente no que respeita aos contracetivos hormonais
combinados pelo risco aumentado de eventos trombóticos e
pelo possível impacto na atividade da doença. Revisões recentes sugerem que as doentes com LES podem usar a maioria
dos métodos contracetivos, incluindo os métodos hormonais.
Os contracetivos hormonais combinados são uma boa opção
nas adolescentes com anticorpos antifosfolipídeos negativos,
que não apresentam outros factores de risco pró-trombóticos
e cuja doença se encontra inativa. Os contracetivos progestativos são uma alternativa nos casos de maior risco tromboembólico e nos casos de LES ativo. Os métodos de barreira são
sempre recomendados, a contraceção de emergência não tem
contra-indicação nas adolescentes com LES e o dispositivo intra-uterino (DIU) não está atualmente contra-indicado, sendo uma
opção segura e eficaz, pelo que constitui uma alternativa contracetiva a considerar, particularmente o DIU com levonorgestrel.
Palavras-chave: adolescente, contraceção, lúpus eritematoso sistémico.
Nascer e Crescer 2012; 21(2): 86-91
INTRODUÇÃO
O lúpus eritematoso sistémico (LES), doença autoimune de predomínio feminino, é diagnosticado em 15 a 20% dos
casos na infância(1). O seu prognóstico tem melhorado nos últimos anos com a evolução e aperfeiçoamento da abordagem
terapêutica(1,2,3). O aumento da sobrevida, com transição para a
vida adulta, condiciona questões relativas ao início da vida sexual e, deste modo, a informação e uso de contraceção adequada é fundamental1. A escolha de um método anticoncecional
nas mulheres com LES tem sido controversa, nomeadamente
no que respeita aos contracetivos orais – pelo risco aumentado
__________
1
2
S. Pediatria, CH Alto Ave
S. Pediatria, CH Porto
86
artigo de revisão
review articles
de eventos trombóticos e pelo aparente impacto na atividade da
doença(1,4). A avaliação recente, por diferentes estudos, do uso
de preparações hormonais nas doentes com LES trouxe uma
nova perspetiva(4).
Podendo constituir um desafio, a escolha do método contracetivo nas adolescentes com LES é de suma importância, pelo
que requer atualização constante. Os autores apresentam uma
abordagem geral da contraceção nas adolescentes com LES,
nomeadamente no que respeita a indicações e contra-indicações
dos diferentes métodos anticoncecionais e qual a melhor opção
em situações específicas.
ASPETOS GERAIS DA CONTRACEÇÃO NA ADOLESCÊNCIA
Nos países desenvolvidos, a idade média da primeira relação sexual é 16 anos(5), pelo que na transição para a adolescência se torna essencial o aconselhamento relativo à atividade
sexual e contraceção(1,6). As recomendações atuais indicam que
a idade não é contra-indicação para qualquer método contracetivo reversível nas adolescentes(6,7). A escolha deverá ser individualizada, considerando a sua eficácia, co-morbilidades, efeitos
laterais, estilo de vida e preferência pessoal(1,5,7). O método de
eleição deverá ser duplo e incluir o uso de um método barreira
(preservativo masculino) em associação a um método contracetivo eficaz, de modo a prevenir gestações indesejadas e doenças
sexualmente transmissíveis (DST)(7).
A avaliação clínica prévia à escolha contracetiva deverá incluir uma anamnese detalhada, nomeadamente no que respeita
a contra-indicações potenciais para métodos contracetivos hormonais, história de tabagismo e uso de fármacos(8). A anamnese
é suficiente para uma escolha contraceptiva segura na maioria
das adolescentes(5,6) e deve associar-se, de acordo com alguns
autores, a uma avaliação da tensão arterial(8). Em determinados
casos deverá considerar-se a realização de uma inspecção da
genitália externa, urocultura e zaragatoa vaginal para a exclusão de DST(6). O exame pélvico não é habitualmente obrigatório
numa fase inicial, podendo ser deferido(5,6), com excepção dos
casos de dor abdominal em adolescente sexualmente activa(6).
De acordo com as orientações da American Cancer Society e do
American College of Obstetricians and Gynecologists, o rastreio
através de citologia cervicovaginal deverá iniciar-se três anos
após o início da atividade sexual ou aos 21 anos de idade(6). Nas
adolescentes saudáveis, o início de contraceção não indica a
realização de rastreio analítico adicional ao habitualmente preconizado para este grupo etário(8).
NASCER E CRESCER
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ano 2012, vol XXI, n.º 2
Métodos de barreira
Os preservativos masculinos têm a vantagem de serem
contracetivos e protegerem contra DST(5). Devem ser recomendados a todos(as) os(as) adolescentes, sem exceção (mesmo
nos casos de utilização de métodos hormonais)(5,6). Os contracetivos de barreira femininos incluem o diafragma, o capuz cervical
e o preservativo feminino(6).
Métodos hormonais (Quadro 1)
Os anticoncecionais orais combinados (ACO-C) contêm
uma associação de estrogénio (etinilestradiol, 15 a 35 μg/dose
nas formulações disponíveis em Portugal) e um progestativo
e podem ser categorizados em mono- ou multifásicos, estes
de utilização mais confusa e sem vantagens relativamente aos
primeiros(6,11). Na maioria das adolescentes um ACO-C com
≤ 35 μg de etinilestradiol é adequado(6) e alguns autores sugerem um ACO-C monofásico com 30 μg de etinilestradiol e
dose baixa de noretisterona ou levonorgestrel como opção de
primeira linha(12). Os benefícios não contracetivos dos ACO-C incluem regularização dos ciclos menstruais, melhoria da
acne e diminuição da dismenorreia, hemorragia menstrual e
quistos funcionais dos ovários(6). Os efeitos laterais incluem
náuseas, sensibilidade ou dor mamária e cefaleias(6). O uso de
ACO-C aumenta três a cinco vezes o risco de tromboembolismo venoso, sendo que os que contêm gestodeno, desogestrel
ou acetato de ciproterona como fonte de progestagénio estão
associados a maior risco(12). As contra-indicações absolutas
para o uso de contraceção hormonal combinada encontram-se no Quadro 2.
Os contracetivos orais progestativos (ACO-P) (mini-pílulas
com desogestrel) são menos eficazes que os ACO-C, sendo
alternativa nos casos de contra-indicação (Quadro 2) ou intolerância aos estrogénios(6). Habitualmente não são recomendados
na adolescência pela sua menor eficácia(6), com necessidade de
uma toma mais rigorosa e sobretudo porque condicionam padrões hemorrágicos imprevisíveis(5).
A contraceção hormonal transdérmica, método hormonal combinado contendo etinilestradiol e norelgestromina, e
a contraceção hormonal vaginal, contendo etinilestradiol e
etonogestrel(6,11), são tão eficazes como os ACO-C e poderão
ter melhor adesão terapêutica por não requererem toma diária.
O adesivo da contraceção hormonal transdérmica é aplicado
semanalmente durante três semanas, seguindo-se uma semana de pausa para indução do cataménio(6). O anel usado na
contraceção hormonal vaginal é aplicado mensalmente (permanece na vagina durante três semanas, seguindo-se uma semana de intervalo para indução do cataménio)(6). A contraceção
hormonal vaginal é frequentemente um método de difícil aceitação pelas adolescentes dada a necessidade de manipulação
genital. Os efeitos adversos são sobreponíveis aos dos ACO-C(6). Não obstante, estudos recentes sugerem que a mudança de um ACO-C para a contraceção hormonal transdérmica
pode condicionar um desvio desfavorável nos biomarcadores
de trombose (ao contrário das que mudam para contraceção
hormonal vaginal)(13).
Quadro 1. Contracetivos hormonais comercializados em Portugal(6,9,10,15).
£
ACO-C com atividade anti-androgénica.
Contracetivos hormonais combinados
Etinilestradiol combinado com um progestativo.
Anticoncecionais orais combinados (ACO-C)
Monofásicos
- Segunda geração:
Miranova®, Microginon®.
Levonorgestrel.
- Terceira geração:
Desogestrel.
Marvelon®, Mercilon® e Novynette®.
Gestodeno.
Microgeste®, Minesse®, Minigeste®,Estinette®,
Harmonet®, Gynera®, Minulet®, Effiplen®.
- Quarta geração:
Ciproterona£.
Diane 35®.
Drospirenona£.
Yasmin®, Yasminelle®, Yaz®.
Cloromadinona£.
Belara®, Libeli®.
Dienogest.
Valette®.
Bifásicos
Gracial®.
Desogestrel.
Trifásicos
Gestodeno.
Tri-Gynera®, Tri-Minulet®.
Levonorgestrel.
Trinordiol®.
Contraceção hormonal transdérmica
Etinilestradiol e norelgestromina (Evra®).
Contraceção hormonal vaginal
Etinilestradiol e etonogestrel (NuvaRing®).
Contracetivos hormonais progestativos
Progestativo isolado.
Contracetivos orais progestativos (ACO-P)
Desogestrel (Cerazette®).
Contraceção hormonal injetável
Acetato de depo-medroxiprogesterona (Depo-Provera®).
Dispositivo intra-uterino (DIU)
Levonorgestrel (Mirena®).
Implante progestativo subcutâneo
Etonogestrel (Implanon®).
Contraceção de emergência
Combinada: levonorgestrel e etinilestradiol (Tetragynon®).
Progestativa: levonorgestrel (Norlevo®, Postinor®).
Inibidor seletivo dos recetores da progesterona: acetato de ulipristal (Ellaone®).
artigo de revisão
review articles
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O acetato de depo-medroxiprogesterona é o único contracetivo hormonal injetável disponível em Portugal. Este é um
contracetivo progestativo muito eficaz, administrado a cada três
meses por via intramuscular, e poderá ser uma alternativa para
as adolescentes com baixa adesão terapêutica aos ACO(6) e nos
casos de contra-indicação ou intolerância aos estrogénios(5). Os
efeitos adversos mais comuns incluem alterações menstruais(5,6),
Quadro 2. Contra-indicações absolutas para o uso de contraceção hormonal combinada(9). TAS, tensão arterial sistólica. TAD, tensão arterial
diastólica. IMC, índice de massa corporal. £Doença cardíaca coronária,
doença vascular periférica, retinopatia hipertensiva, acidente isquémico
transitório. §Por exemplo com hipertensão pulmonar, fibrilação auricular,
história de endocardite bacteriana. ∂Idade, tabagismo, diabetes mellitus,
hipertensão arterial, hiperlipidemia.
aumento de peso, acne e cefaleias(6), bem como risco de redução
da densidade mineral óssea, pelo que deverá ser evitado nas
adolescentes com risco de osteopenia/osteoporose(6,14) ou, de
acordo com alguns autores, em todas a menores de 18 anos(5).
As adolescentes sob acetato de depo-medroxiprogesterona deverão ser aconselhadas quanto a suplementos dietéticos ou farmacológicos de cálcio e vitamina D(6,14), bem como incentivadas
a realizar exercício físico regular(6).
O implante progestativo subcutâneo é eficaz durante três
anos e apresenta como vantagem uma contraceção reversível, a
longo prazo e muito eficaz(5,6). Demonstra vantagens nas adolescentes que desejam uma ação contracetiva prolongada, referem
dificuldade em manter uma administração oral diária ou que têm
antecedentes de gestação prévia(8). As suas principais desvantagens incluem irregularidades menstruais, sobretudo ao longo do
primeiro ano de uso, e cefaleias(6,9). Não está demonstrado risco
de redução da densidade mineral óssea(14).
Sistema arterial
Hipertensão arterial grave não tratada: TAS ≥160 mmHg ou TAD ≥95 mmHg.
Hipertensão arterial com doença vascular£.
Doença cardíaca isquémica.
Acidente cerebrovascular.
Doença cardíaca valvular complicada ou congénita§.
Múltiplos fatores de risco para doença cardiovascular∂.
Sistema venoso
Trombose (trombose venosa profunda, embolismo pulmonar ou trombose
venosa cerebral).
Cirurgia major com imobilização prolongada.
Trombofilia conhecida.
Sistema endócrino
Diabetes mellitus >20 anos.
Diabetes mellitus com doença vascular grave ou nefropatia, retinopatia ou
neuropatia graves.
Mama
Aleitamento <6 semanas após o parto.
Cancro de mama atual.
Sistema metabólico
Obesidade com IMC >40 kg/m2.
Sistema neurológico
Enxaqueca com aura.
Enxaqueca sem aura e idade ≥35 anos.
Fígado
Hepatite vírica activa.
Cirrose grave (descompensada).
Tumores hepáticos benignos ou malignos.
Tecido conectivo
Lúpus eritematoso sistémico com anticorpos anticardiolipina/anticoagulante
lúpico.
Drogas
Tabagismo com ≥15 cigarros por dia e ≥35 anos.
88
artigo de revisão
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Dispositivo intra-uterino (DIU)
Os DIU são muito eficazes como método de contraceção
a longo prazo(6) e atualmente associam-se a um baixo risco
de infeção(11). O DIU de cobre, com eficácia de cinco a dez
anos(5,11), pode condicionar aumento da hemorragia menstrual
e dismenorreia(11). O DIU com levonorgestrel, com eficácia de
cinco anos(5,11), condiciona uma redução de 75% da hemorragia menstrual(11). O American College of Obstetricians and
Gynecologists, entre outras organizações, aprovou o uso de
DIU desde a menarca até aos 20 anos(5). Nas adolescentes
nulíparas pode existir maior dificuldade de colocação e, dada
a maior taxa de expulsão, a indicação deve ser individualizada. As contra-indicações absolutas para o seu uso incluem
sépsis pós-parto ou pós-abortamento e doença inflamatória
pélvica atual(9).
Contraceção de emergência
A contraceção de emergência pode prevenir a gravidez
após uma relação sexual desprotegida ou com falha do método contracetivo(6). Estão disponíveis formulações de estrogénio combinado com progestativo (levonorgestrel e etinilestradiol), progestativo isolado (levonorgestrel)(6) e inibidor seletivo
dos recetores da progesterona (acetato de ulipristal)(15). A
contraceção de emergência está indicada até 72 horas após
uma relação desprotegida para as duas primeiras formulações
(levonorgestrel associado a etinilestradiol ou levonorgestrel
isolado)(6) e até 120 horas para a terceira formulação (acetato
de ulipristal)(15).
Seguimento após início da contraceção
A reavaliação frequente das adolescentes que iniciaram
contraceção é fundamental de modo a maximizar o cumprimento
das medidas sugeridas e rever questões relativas ao seu uso
correto, efeitos adversos e complicações(6). É uma oportunidade para reforçar o ensino para uma vida sexual saudável, bem
como rastrear comportamentos de risco, rastrear DST e realizar
citologia cervicovaginal, quando indicado(6).
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ano 2012, vol XXI, n.º 2
ESPECIFICIDADES DA CONTRACEÇÃO NAS
ADOLESCENTES COM LES
A escolha da contraceção nas adolescentes com LES
constitui um desafio pelo potencial incremento dos riscos subjacentes à doença (nomeadamente risco tromboembólico), pelo
potencial agravamento da doença e por possíveis interações
medicamentosas(1,5,7). Revisões recentes da literatura sugerem
que as mulheres com LES podem usar a maioria dos métodos
contracetivos, incluindo os métodos hormonais (exceto em situações particulares), já que os benefícios são superiores aos
riscos(5).
Risco tromboembólico
Deve considerar-se o risco de complicações tromboembólicas nas doentes com LES e anticorpos antifosfolipídeos (aPL)
positivos(1), pelo que todas as adolescentes com LES devem ser
rastreadas para a sua presença antes de iniciar contraceção
hormonal combinada(11). Os ACO-C estão contra-indicados nas
adolescentes com títulos médios ou altos de aPL (≥ 40 unidades
GPL ou MPL)(1,11). Nas adolescentes com títulos baixos ou ausentes deverão rastrear-se outros fatores de risco pró-trombóticos
hereditários antes do uso de ACO-C(1,11), nomeadamente através
do seguinte estudo complementar: hemograma, factor V de Leiden (e/ou teste de resistência à proteína C ativada), protrombina
G20210A, proteína S, proteína C, antitrombina III, homocisteína
e lipoproteína (a)(16,17). Os ACO-P (ou outra formulação progestativa) são uma boa alternativa nas doentes com aPL positivos,
já que na sua maioria não se associam a um aumento do risco
de trombose(1,11), com a exceção dos progestativos de terceira
geração (gestodeno e desogestrel)(12).
Exacerbação do LES
Existem evidências de que os ACO-C não aumentam o
risco de exacerbação do LES em mulheres com doença estável, apesar dos estudos não se focarem especificamente em
adolescentes(1). Os resultados de dois ensaios clínicos randomizados (ensaio SELENA(18) e ensaio realizado por Sanchez-Guerrero et al.(19)) demonstraram que os ACO-C não aumentam significativamente o risco de exacerbação da doença numa
população de doentes com LES estável. Com base nestes estudos, a contraceção hormonal combinada parece segura nas
doentes com aPL negativos(4,11) e com LES inativo(4,11,14) ou ativo
estável(4,11,14) sem envolvimento renal(14). Considerando o Systemic Lupus Erythematosus Activity Index (SLEDAI)(20), a contraceção hormonal combinada poderá ponderar-se nos casos
de SLEDAI ≤ 10 e sem evidência de exacerbação da doença
(aumento de três pontos no mesmo índice). São, no entanto,
necessários estudos adicionais para avaliar o possível impacto dos estrogénios exógenos em mulheres com doença ativa(1).
Neste grupo de doentes, atualmente são opção os contracetivos
progestativos(11).
Interações medicamentosas
Os ACO-C apresentam potencial de interação com vários
fármacos, aumentando a concentração sérica de corticóides,
varfarina e ciclosporina(11). Os anticonvulsivantes, como carbamazepina, fenitoína, fenobarbital, oxcarbazepina, primidona,
felbamato, topiramato e lamotrigina, diminuem a eficácia contracetiva dos ACO-C(11). O metotrexato não parece interferir com os
estroprogestativos(7).
Opções contracetivas nas adolescentes com LES
Nas adolescentes com LES o método preferencial é, como
nos restantes adolescentes, um método duplo (método barreira
associado a método hormonal), que deverá ser ponderado de
acordo com fatores de risco relacionados com a doença.
Os autores sugerem uma avaliação clínica preliminar, nomeadamente: anamnese, incluindo sintomas sugestivos de doença ativa, história de trombose venosa ou arterial e factores de
risco cardiovascular, como tabagismo; exame objectivo, incluindo sinais sugestivos de doença ativa, somatometria (incluindo
cálculo do índice de massa corporal) e avaliação da tensão arterial; e estudo analítico, incluindo hemograma, estudo imunológico (C3, C4, anti-C1q, anti-dsDNA), bioquímica sérica (ureia,
creatinina, colesterol total, HDL, LDL e triglicerídeos) e exame
de urina (análise sumária de urina e microalbuminúria), doseamento de aPL (anticoagulante lúpico, anticardiolipina e anti-β2-glicoproteína) e estudo pró-trombótico adicional [factor V de Leiden, protrombina G20210A, proteína S, proteína C, antitrombina
III, homocisteína e lipoproteína (a)].
Quadro 3. Indicações dos contracetivos hormonais combinados e progestativos nas adolescentes com LES de acordo com o risco tromboembólico e de exacerbação da doença(2,7,21). De notar que os progestativos gestodeno e desogestrel são considerados ligeiramente mais
trombogénicos(12). £Uma unidade de GPL corresponde a actividade ligante de 1 μg/ml do anticorpo IgG de cardiolipina, o qual foi purificado a
partir de um soro padrão por afinidade cromatográfica. §Uma unidade
de MPL corresponde a actividade ligante de 1 μg/ml do anticorpo IgM de
cardiolipina, o qual foi purificado a partir de um soro padrão por afinidade
cromatográfica.
Contracetivos hormonais combinados
Grupo de alto risco
Contra-indicados pelo risco de doença tromboembólica e de exacerbação da
doença.
Doença ativa.
História de trombose venosa ou arterial.
Títulos médios ou elevados de aPL (≥ 40 unidades GPL£ ou MPL§).
Fatores de risco cardiovascular (obesidade, tabagismo, hipertensão
arterial não controlada).
Grupo de baixo risco
Sem contra-indicação.
Doença inativa ou estável.
Sem história de trombose venosa ou arterial.
Títulos ausentes ou baixos de aPL (< 40 unidades GPL£ ou MPL§).
Sem fatores de risco cardiovascular.
Contracetivos hormonais progestativos
Sem contra-indicação nas adolescentes com LES.
artigo de revisão
review articles
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NASCER E CRESCER
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ano 2012, vol XXI, n.º 2
Os métodos de barreira não afetam a condição médica pré-existente e podem ser globalmente recomendados(5,7). Relativamente aos contraceptivos hormonais, as formulações combinadas
(orais, vaginais e intramusculares) são uma boa opção nas adolescentes com aPL negativos ou com títulos baixos, sem outros
fatores de risco pró-trombóticos e sem LES ativo(11) (Quadro 3).
Atualmente, poderá ser prudente evitar os contracetivos hormonais transdérmicos até existirem mais dados quanto aos efeitos
de uma maior exposição estrogénica relativamente às outras
formas de contraceção hormonal combinada(11). Os contracetivos progestativos (orais, intramusculares, subcutâneos ou intra-uterinos) por norma não aumentam o risco de trombose e são
recomendados nas doentes de qualquer idade que apresentem
contra-indicação para o uso de estrogénios(11). O acetato de depo-medroxiprogesterona deve ser usado com cautela nas adolescentes em corticoterapia pelo risco adicional de perda de massa
óssea(11). O DIU pode ser uma opção segura e eficaz nas adolescentes com LES, nomeadamente o que contém levonorgestrel(3).
Não aumenta o risco de trombose, osteoporose ou hemorragia
menstrual abundante(3) e poderá ser útil nas doentes em terapêutica com varfarina por reduzir o fluxo menstrual(11). Apesar do DIU
não estar absolutamente contra-indicado nas doentes com terapêutica imunossupressora, não existem recomendações quanto
ao grau de imunossupressão que aumenta significativamente o
risco de infeção(11). Finalmente, a contraceção de emergência não
tem contra-indicação nas adolescentes com LES(7).
CONTRACEPTION FOR ADOLESCENTS WITH SYSTEMIC
LUPUS ERYTHEMATOSUS
CONCLUSÕES
O aconselhamento contracetivo nas adolescentes com LES
é fundamental e deve incluir informação relativa aos diferentes
métodos disponíveis(1), nomeadamente eficácia, indicações,
contra-indicações e efeitos adversos. Neste grupo etário a contraceção dupla (método barreira e método hormonal combinado)
é a mais indicada, sendo classicamente ponto de discussão o
uso de contraceção hormonal combinada nas adolescentes com
LES(1,5,7). Revisões recentes sugerem que as doentes com LES
podem usar a maioria dos métodos contracetivos, incluindo os
métodos hormonais (exceto em situações particulares)(5). De facto, os contracetivos hormonais combinados são uma boa opção
nas adolescentes com aPL negativos ou com título baixo, sem
outros fatores de risco pró-trombóticos e sem LES ativo(1,11). Os
contraceptivos progestativos são recomendados nos casos de
contra-indicação para o uso de estrogénios (aPL em título médio
ou elevado, outros fatores de risco pró-trombótico ou LES ativo)(1,11). Os métodos de barreira são globalmente recomendados
(mas não como método isolado pela baixa eficácia contracetiva)
(5,7)
e a contraceção de emergência não tem contra-indicação nas
adolescentes com LES(7). O DIU não está atualmente contra-indicado, sendo uma opção segura e eficaz nas adolescentes
com LES(3), nomeadamente nos casos em que se pretende uma
redução do fluxo menstrual (DIU com levonorgestrel) (11).
Finalmente, o aconselhamento contracetivo da adolescente
com LES deverá ser individualizado, considerando a atividade
da doença e fatores de risco para trombose, mas também fatores
relativos ao estilo de vida e contexto sociocultural(1).
1
90
artigo de revisão
review articles
ABSTRACT
The selection of a contraceptive method in the adolescents
with systemic lupus erythematosus (SLE) has been controversial,
namely with respect to combined hormonal contraceptives for
the risk of thrombosis and possible impact in the disease activity.
Recent reviews suggest that patients with SLE may use the
majority of the contraceptive methods, including the hormonal
ones. The combined hormonal contraceptives are a good option
in lupic adolescents with negative antiphospholipid antibodies,
without other risk factors for thrombosis and inactive disease.
Progestogen-only contraceptives are an option in the patients
with higher risk of thrombosis or active SLE. Barrier methods
are globally recommended, emergency contraception has no
contraindication in the adolescents with SLE; intrauterine device
is not actually contraindicated being considered a safe option,
specially the one containing levonorgestrel.
Keywords: adolescent, contraception, systemic lupus
erythematosus.
Nascer e Crescer 2012; 21(2): 86-91
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NASCER E CRESCER
revista do hospital de crianças maria pia
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11 Sammaritano L. Therapy insight: guidelines for selection of
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13 Jensen J, Burke A, Barnhart K, Tillotson C, Messerle-Forbes
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CORRESPONDÊNCIA
Cristiana Couto
E-mail: [email protected]
artigo de revisão
review articles
91
NASCER E CRESCER
revista do hospital de crianças maria pia
ano 2012, vol XXI, n.º 2
Just One Click: A Content Analysis
of Advertisements on Teen Web Sites
Slater A, Tiggermann M, Hawkins K, Werchon D.
J Adolesc Health 2012;50:339-45
ABSTRACT
Purpose: The current study provides a comprehensive
analysis of the content of advertisements onWebsites targeted
at adolescents, with a particular focus on the female beauty
ideal.
Methods: Advertisements (N_631) from 14Websites
popular with adolescents were analyzed with respect to product advertised, characteristics of people presented, and emphasis on appearance and the thin beauty ideal.
Results: Although a wide variety of products were featured, advertisements for cosmetics and beauty
products were the most frequent. Further, many of the
products advertised (e.g., dating services, weight loss prod-
COMENTÁRIOS
A internet tem vindo a ser reconhecida como um poderoso
meio para a publicidade chegar aos adolescentes. Estes, como
grandes utilizadores dos meios digitais e consumidores, têm vindo a ser alvo de campanhas de marcas de alimentos e bebidas,
especialmente desenhadas para explorar as necessidades psicológicas dos adolescentes, sem que haja uma regulação efectiva e que os proteja de possíveis riscos(1,2).
Neste artigo os autores procedem a uma análise exaustiva
dos anúncios que são apresentados nos sítios mais populares
para adolescentes nos Estados Unidos da América. Aqui, o interesse focaliza-se na transmissão do ideal de magreza e do corpo
perfeito, sobretudo feminino.
O corpo teve, desde sempre, uma importância vital nas relações humanas e na organização social – evoluiu na forma como
é conceptualizado desde o corpo belo da Grécia Antiga, ao corpo
casto ou fonte das tentações sexuais sob a influência do cristianismo na Idade Média, lugar de exposição de riquezas e jóias na
aristocracia, ao corpo burguês, veículo para controlar a natureza,
até ao momento actual, em que o corpo é uma forma poderosa
de afirmação da identidade pessoal(3). Nos adolescentes, o corpo
em transformação, é fonte de grande ansiedade e investimento,
e um factor importante na construção da identidade. No trabalho
de Maria João Cunha com adolescentes portuguesas, confirma-se a insatisfação com o corpo da grande maioria (quase 80%),
as preocupações com a perda de peso e a discrepância entre o
corpo real e a percepção que têm do próprio corpo(3).
92
artigo recomendado
recommended article
ucts, gambling games) might be considered inappropriate for
the intended audience (i.e., teenagers) of the Web site. People who were a part of advertisements were generally female,
young, thin, and attractive. Advertisements for games, weight
loss products, and cosmetic and beauty products strongly focused on appearance and laid emphasis on the thin ideal.
Conclusions: Like advertisements in mainstream media,
advertising on the Internet perpetuates the stereotypical ideal
of feminine beauty. Adolescents using the Internet are likely
to be exposed to numerous advertisements that reinforce the
importance of beauty and thinness, which could have a detrimental impact on how they feel about their bodies
Keywords: Internet; Advertising; Content analysis; Adolescent development; Body image
O corpo, nos adolescentes, é por vezes excessivamente
valorizado como fonte de auto-estima e de sucesso nas relações
sociais. Se o corpo que é publicitado nos meios de comunicação
social não corresponde ao corpo real, ou ao corpo tal como é
percepcionado, pode compreender-se a insatisfação gerada e
possíveis problemas emocionais. Vários autores têm referido o
risco da generalização de um corpo feminino ideal, frequentemente inatingível para a maioria dos jovens, e por vezes muito
pouco saudável.
A publicidade é, neste aspecto, um forte transmissor deste
tipo de estereótipos, e a internet é, no momento actual, um meio
importante de difusão. Comparando com as revistas, rádio ou
televisão, é uma forma de comunicação e informação junto dos
adolescentes mais invasiva, acessível e sujeita a menor controlo
parental.
Através de uma empresa que disponibiliza informação acerca da utilização dos sítios de rede (a Alexa), os autores analisaram vários parâmetros destes anúncios, presentes em 14 sítios –
o seu conteúdo, a existência de pessoas e suas características,
a ênfase na aparência e ideal de magreza ou ideal muscular.
Nos resultados, verificaram que, em média, cada sítio apresenta, e abrindo os seus maiores tabs, mais do que 45 anúncios,
o que é um número que traduz a grande exposição à publicidade a que os adolescentes ficam sujeitos. Comparando com
as outras formas de veicular publicidade, os autores salientam
algumas características daquela que surge na internet: o poder
ser interactiva, o poder aparecer lado a lado com o conteúdo
NASCER E CRESCER
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ano 2012, vol XXI, n.º 2
ou emergir, dominando-o, ou até mesmo confundindo-se com o
conteúdo do próprio sítio, e ser quase impossível evitá-la. Estas
características permitem-lhe um maior poder de impacto sobre
os adolescentes do que outra formas tradicionais de publicidade. Para além do grande número de anúncios, constataram que
promoviam uma grande variedade de produtos, mas os mais
frequentes diziam respeito a cosméticos e produtos de beleza.
Alguns dos produtos poderiam ser potencialmente perigosos,
como aqueles que se destinam a perder peso (5,7% do total) ou
inapropriados, como os anúncios de encontros ou de jogos de
sorte e azar. Relativamente à presença de pessoas no anúncio,
verificaram que era habitualmente uma pessoa do sexo feminino, jovem, magra e atraente. A utilização de partes do corpo,
sobretudo também do corpo feminino, com propósitos estéticos
era também corrente. Em geral os anúncios punham uma grande
ênfase na atracção e na magreza, mesmo quando os produtos
eram de outra natureza, como é o caso dos jogos. Alguns dos
sítios referidos ou jogos encontram-se traduzidos para o português, como é o caso do Evony(4).
Embora a pressão sociocultural para a magreza não seja
considerada como necessária ou suficiente para explicar as perturbações alimentares - quer porque existem descrições antigas
quer também porque existem em sociedades não ocidentalizadas, a pesquisa actual reconhece a importância dos factores biológicos e psicológicos, quer em separado quer em interacção,
na génese das perturbações do comportamento alimentar(5). O
ideal de beleza magro e a sua valorização na sociedade ocidental colocam as raparigas em maior risco para o desenvolvimento
de perturbações alimentares, relativamente aos rapazes. Está
também reconhecido o especial papel das dietas na indução de
perturbações alimentares(6).
Deste modo, parecem estar identificados riscos inerentes
ao tipo de publicidade que a internet veicula junto dos jovens.
Dada a sua omnipresença e as características mais invasivas
desta forma de publicidade, há então que esperar alguma forma
de regulação e controlo deste tipo de publicidade junto de públicos vulneráveis, como são os adolescentes.
BIBLIOGRAFIA
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Maria do Carmo Santos1
Nascer e Crescer 2012; 21(2): 92-93
__________
1
Departamento de Pedopsiquiatria do Hospital Maria Pia / CH Porto
artigo recomendado
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93
NASCER E CRESCER
revista do hospital de crianças maria pia
ano 2012, vol XXI, n.º 2
Consentimento e discernimento
Rosalvo Almeida1
RESUMO
O autor aborda questões relacionadas com a aplicação do
estatuto do consentimento informado às crianças, apontando algumas condicionantes práticas e apelando à reflexão dos profissionais de saúde.
Palavras-chave: Autonomia, consentimento informado,
discernimento.
Nascer e Crescer 2012; 21(2): 94-95
Quando falamos em consentimento informado para intervenções de saúde, sejam cirurgias altamente invasivas ou simples prescrições de comprimidos, estamos a falar da autonomia
do destinatário dessas intervenções.
Porém, a verdade é que, no pensamento de muitos, a primeira ideia que surge é ainda a que associa o consentimento informado a uma questão de responsabilidade. Algumas pessoas,
influenciadas pela velha designação de “termo de responsabilidade”, consideram que o “consentimento informado”, nomeadamente se passado a escrito, é um instrumento de defesa do profissional de saúde. Creem que, na posse de um papel que diga
“consinto”, aqueles ficam livres de qualquer acusação se algo
correr mal. Embora esta interpretação seja, felizmente, cada vez
mais rara, admitimos que no dia-a-dia das nossas instituições de
saúde subsistem numerosos exemplos de falta de respeito pelo
princípio ético da autonomia.
O princípio a que nos referimos exige que haja uma adequada informação como condição para o adequado consentimento e, como tal, deve estar sempre presente no relacionamento entre os profissionais de saúde e os destinatários das suas
ações. Por outras palavras, só com informação feita em «moldes
simples, concretos, compreensíveis, suficientes e razoáveis [e
com] com o objetivo de esclarecer sobre o diagnóstico, alcance,
envergadura e consequências (diretas e indiretas) da intervenção ou tratamento»(1) é que se pode falar em consentimento livre
e esclarecido.
__________
1
Neurologista aposentado
94
perspectivas actuais em bioética
current perspectives in bioethics
Acresce que, além do acima dito, há situações em que, por
razões legais ou outras, se impõe que o consentimento seja feito
por escrito. Também aqui são frequentes os casos de práticas
indevidas, seja por falta ou insuficiência de informação, seja por
outras razões. Casos há em que o consentimento é pedido depois do ato praticado (!) e outros em que o documento não contém a assinatura e identificação da pessoa que informa e pede o
consentimento. Raras vezes se entrega à pessoa que consente
uma cópia do que ela acabou de assinar e quase nunca é dado
tempo para reflexão ou se explica que todo o consentimento é
revogável.
Uma outra questão, da maior importância, deve ser também merecer a nossa atenção. Trata-se de saber se, mesmo que
a informação prévia seja adequadamente prestada, mesmo que
todos os trâmites sejam corretamente seguidos, a pessoa que
consente tem capacidade para o fazer. «A iliteracia, o analfabetismo ou as manifestações de incompreensão não são razões
para deixar de tentar obter um consentimento livre e esclarecido, antes obrigam a melhores explicações e a mais adequada
informação.»(2)
Mas, se a autonomia pressupõe esclarecimento (informação adequada), ela também requer liberdade (ausência de coação)(3) e discernimento. É por tais razões que, quando estamos
perante menores de idade ou incapazes por deficiência mental,
importa refletir um pouco mais e tomar certas precauções derivadas não só do legalmente estabelecido mas, sobretudo, dos
imperativos éticos.
No plano jurídico, a capacidade para consentir é definida
pela idade(4), contudo a própria lei introduz o conceito de discernimento como complemento. No plano ético, o discernimento deve
também ser tido em conta mesmo antes de cumprido o pressuposto etário – ou seja, a criança, desde que tenha discernimento,
qualquer que seja a sua idade, merece conhecer um mínimo de
informação, adequada a cada situação, sobre o ato de saúde
que lhe é destinado e o profissional deverá tentar que a execução do mesmo seja feita com o seu assentimento.
Por outro lado, se a «opinião do menor é tomada em consideração como um fator cada vez mais determinante, em função
da sua idade e do seu grau de maturidade»(5), não se deverá deixar de pensar que pedir um consentimento, tanto a uma criança
como a um adulto capaz, implica aceitar também o correspondente direito à recusa. Deste modo, manda a prudência que a
abordagem seja feita de modo a que, sobretudo em casos de
especial gravidade em que haja risco de lesão séria ou perigo de
NASCER E CRESCER
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ano 2012, vol XXI, n.º 2
morte, o pedido de consentimento para ato médico seja formulado usando mais a persuasão empática do que a mera confrontação entre o tudo ou nada. Não havendo aparelhos que meçam o
discernimento, cabe dizer que o bom senso, sendo algo que tem
muito de intuitivo, também se aprende e treina.
Naturalmente que estas breves considerações sobre o
“consentimento” para atos de saúde se aplicam também à participação de crianças em estudos, sejam observacionais ou
experimentais(6), sendo que foram redigidas com o objetivo de
estimular a reflexão por parte dos seus leitores sobre assuntos
que constantemente necessitam de atenção e de serem revisitados.
CONSENT AND UNDERSTANDING
ABSTRACT
In this opinion paper, the author addresses aspects of the
informed consent issues in children, describing some practical
determinants and calling health professionals to a reflection.
Keywords: Autonomy, informed consent, understanding.
Nascer e Crescer 2012; 21(2): 94-95
BIBLIOGRAFIA
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2. Idem
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RF, Luce MF. The concept of voluntary consent. Am J Bioeth, 2011; 11: 6-16.
4. Decreto-lei n.º 400/82, de 23 de setembro (Código Penal) –
Artigo 38.º - Consentimento (Lei n.º 59/2007, de 4 de setembro) – «3. O consentimento só é eficaz se for prestado por
quem tiver mais de 16 anos de idade e possuir discernimento
necessário para avaliar o seu sentido e alcance no momento
em que o presta.»
5. Resolução da Assembleia da República n.º 1/2001 - Convenção [de Oviedo] para a Proteção dos Direitos do Homem e
da Dignidade do Ser Humano face às Aplicações da Biologia
e da Medicina.
6. Almeida, R. Carta aberta a um jovem investigador clínico.
Rev Port Clin Geral, 2011, 27: 499-500.
CORRESPONDÊNCIA
Rosalvo Almeida
e-mail: [email protected]
perspectivas actuais em bioética
current perspectives in bioethics
95
NASCER E CRESCER
revista do hospital de crianças maria pia
ano 2012, vol XXI, n.º 2
Doença de Addison em idade pediátrica
– um caso clínico
Liliana Franco1, Helena Vieira1, Paula Vieira1, Irene Rebelo1
RESUMO
Introdução: A insuficiência supra-renal primária de etiologia auto-imune, também designada Doença de Addison, é uma
patologia rara, sobretudo em idade pediátrica.
Caso clínico: Apresenta-se o caso de uma adolescente de
14 anos, internada por vómitos, diarreia e prostração de agravamento progressivo, com desidratação hiponatrémica grave
associada a hipercaliemia e hipocloremia. Referia queixas de
anorexia, astenia e perda ponderal com três meses de evolução.
No exame objectivo apresentava-se obnubilada, mal perfundida
e com ligeira hiperpigmentação cutânea e das mucosas. O estudo realizado confirmou o diagnóstico de insuficiência supra-renal
primária, de etiologia auto-imune. Iniciou terapêutica com hidrocortisona e fludrocortisona, com boa evolução clínica.
Discussão: A insuficiência supra-renal primária apresenta-se frequentemente de forma insidiosa, sendo os seus sintomas
e sinais iniciais muitas vezes inespecíficos. A forma de apresentação aguda constitui uma verdadeira emergência médica, pelo
que o grau de suspeição clínica deve ser elevado.
Palavras-chave: Doença de Addison, hipercaliemia, hiponatremia, supra-renal.
Nascer e Crescer 2012; 21(2): 96-98
INTRODUÇÃO
A insuficiência supra-renal pode classificar-se em primária,
secundária ou terciária. Designa-se primária, quando a causa
reside na própria glândula supra-renal. Nestes casos, existe habitualmente um défice de produção de glucocorticóides e mineralocorticóides. Na insuficiência secundária e terciária as causas
são, respectivamente, hipofisária (défice de ACTH ou anomalia
do seu receptor) e hipotalâmica (défice de secreção de corticotrofin releasing hormone), sendo predominantemente afectada a
produção de glucocorticóides 1. As manifestações clínicas e os
achados laboratoriais permitem estabelecer o diagnóstico diferencial.
Em 1855, Thomas Addison descreveu pela primeira vez a
Doença de Addison, que englobava todas as causas de insu-
__________
1
S. Pediatria, H. São Francisco Xavier, CH Lisboa Ocidental
96
casos clínicos
case reports
ficiência supra-renal primária, sendo a tuberculose a principal
etiologia 2.
Actualmente, o termo “Doença de Addison” designa a insuficiência primária do córtex supra-renal de etiologia auto-imune
ou idiopática 3. Trata-se de uma doença rara, sobretudo na idade
pediátrica. Em Portugal registam-se cerca de 500-600 novos casos/ano, com predomínio na idade adulta 4.
Outras etiologias, menos frequentes, de insuficiência supra-renal primária incluem doenças congénitas (défices hormonais
ou enzimáticos), infecciosas, infiltrativas, traumáticas e iatrogénicas 5.
A forma de apresentação da doença pode ser aguda ou
insidiosa, sendo a forma aguda rapidamente fatal se não tratada
atempadamente. As manifestações clínicas são frequentemente inespecíficas, surgindo quando pelo menos 75% do tecido
supra-renal está destruído 2. A hiperpigmentação muco-cutânea,
que é mais marcada nas superfícies extensoras, pregas de flexão, aréolas mamárias e mucosas, é observada em mais de 90%
dos doentes. Alguns indivíduos têm apetência pelo sal (“salt craving”). Analiticamente, a existência de hiponatremia, hipercaliemia, hipoglicemia e acidose metabólica deve fazer suspeitar de
insuficiência supra-renal 3.
Esta doença pode ocorrer de forma isolada ou associada
a outras endocrinopatias auto-imunes 6. A Síndroma Poliglandular auto-imune do tipo I (Síndroma de Withaker) caracteriza-se
pela existência de pelo menos duas de três doenças: candidíase
muco-cutânea crónica, hipoparatiroidismo e insuficiência supra-renal. O tipo II (Síndroma de Schmidt), mais frequente que o
tipo I, manifesta-se geralmente na idade adulta e associa doença
tiroideia, diabetes mellitus e insuficiência supra-renal. Em ambos
os casos podem existir outras doenças auto-imunes associadas
(doença celíaca, hepatite crónica, anemia perniciosa, vitiligo, entre outras) 7.
A Doença de Addison requer tratamento de substituição
hormonal com corticóides (glucocorticóides e mineralocorticóides) ao longo da vida, sendo necessário ajuste das doses farmacológicas em situações de doença aguda 5.
CASO CLÍNICO
Adolescente do sexo feminino, raça caucasiana, 14 anos
de idade, filha única de pais não consanguíneos. Pai alcoólico.
Sem doenças heredofamiliares relevantes.
A gestação foi de 36 semanas, vigiada e decorreu sem intercorrências. O parto foi eutócico, hospitalar, com índice de Ap-
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revista do hospital de crianças maria pia
ano 2012, vol XXI, n.º 2
gar 9 e 10 ao primeiro e quinto minutos respectivamente. Antropometria ao nascimento adequada à idade gestacional. Efectuou
rastreio endócrino-metabólico, sem alterações. Sem história de
alergias ou intolerâncias alimentares, seguindo actualmente uma
dieta equilibrada. Desconhecemos a evolução estaturo-ponderal,
mas na data da observação tinha peso inferior ao percentil 5 e altura entre o percentil 10 e 25. Desenvolvimento psicomotor adequado, frequentando actualmente o 8º ano com razoável aproveitamento. É acompanhada em Consulta de Psicologia desde
os sete anos por alterações do comportamento que surgiram na
sequência da situação de disfunção familiar. Sem outros antecedentes patológicos com excepção de internamento de curta
duração, duas semanas antes da admissão, por desidratação
hiponatrémica no contexto de gastroenterite aguda.
Cerca de três meses antes do internamento iniciou queixas
de astenia, anorexia, perda de peso de 13% e humor depressivo. Nos dois dias anteriores ao internamento surge também com
vómitos, diarreia e prostração de agravamento progressivo. Sem
febre ou outra sintomatologia acompanhante.
Na admissão apresentava-se com mau estado geral, obnubilada, peso 34 Kg (<P5), estatura 153 cm (P10-25), IMC 14,5
Kg/m2 (<P5), TA 79/40 mmHg (<P5), FC 53 bpm, mal perfundida,
com mucosas secas e olhos encovados, sinal da prega, discreta
hiperpigmentação cutânea e mucosa, estádio IV de Tanner. Sem
outros dados relevantes ao exame objectivo.
No estudo analítico inicial com hiponatremia (120 mmol/L),
hipercaliemia (6,0 mmol/L), hipocloremia (89 mmol/L), hipoglicemia (32 mg/dL) e ureia aumentada (85 mg/dL), com creatinina
normal (0,89 mg/dL). Gasimetria do sangue venoso com acidose metabólica ligeira (pH 7,20, bicarbonatos 14,8 mmol/L, pCO2
39,4 mmHg). Hemograma sem alterações e proteína C reactiva
inferior a 0,3 mg/dL.
Considerando as manifestações clínicas e o resultado da
avaliação analítica, admitiu-se o diagnóstico de insuficiência
supra-renal, tendo efectuado estudo endocrinológico (quadro 1).
A prova de Mantoux foi negativa. A Tomografia Computorizada das glândulas supra-renais não revelou alterações. A pesquisa de anticorpos anti-supra-renal foi positiva. A investigação
de síndroma poliglandular autoimune foi negativa (anticorpos
anti-tiroideus, anti-paratiroideus, anti-factor intrínseco, anti-ovário, anti-pancreáticos, anti-endomísio, anti-gliadina e anti-transglutaminase).
Os exames realizados permitiram concluir tratar-se de uma
insuficiência supra-renal primária, de etiologia auto-imune.
Iniciou terapêutica com fluidoterapia endovenosa e hidrocortisona endovenosa. Após aquisição de tolerância oral iniciou
fludrocortisona.
A evolução clínica foi favorável, com alta hospitalar após
quinze dias, orientada para as Consultas de Endocrinologia Pediátrica, Adolescentes e Pedopsiquiatria. Manteve terapêutica de
substituição por via oral com hidrocortisona 15 mg/m2/dia de 8/8
horas e fludrocortisona na dose de 100 mcg/dia (em 2 tomas).
Ficou assintomática cerca de 2 meses após a alta hospitalar.
Verificou-se aumento gradual do peso e 2 meses depois ocorreu
a menarca.
DISCUSSÃO
A Doença de Addison é uma patologia rara na idade pediátrica e que pode ser rapidamente fatal, se não for diagnosticada
e tratada atempadamente 3. Nesta doente, o quadro de desidratação grave desproporcional às perdas estimadas, a apetência
pelo sal e a hiperpigmentação cutânea e mucosa, permitiu colocar a hipótese de diagnóstico de insuficiência supra-renal. A presença de hiponatremia, hipercaliemia e hipoglicemia apoiaram
este diagnóstico.
O facto da adolescente ser acompanhada em Consulta de
Psicologia desde os sete anos por alterações de comportamento, e o aparecimento três meses antes de sintomas que podiam
ser interpretados como um quadro depressivo, levou a que inicialmente também se tivesse colocado a hipótese de Perturbação Depressiva Major.
A insuficiência supra-renal primária pode apresentar-se de
forma insidiosa, com queixas inespecíficas de fadiga, astenia,
anorexia e má progressão ponderal. Menos frequentemente,
surge de forma súbita, com compromisso hemodinâmico, muitas
vezes precipitado por um episódio de doença aguda 8.
O diagnóstico é confirmado laboratorialmente pela associação de um valor sérico de cortisol normal ou baixo e de um valor de ACTH aumentado 2. A realização de prova de estimulação
com ACTH torna-se dispensável nas formas de apresentação
aguda e emergente, como neste caso.
Após confirmação do diagnóstico de insuficiência supra-renal primária é necessário determinar a sua etiologia. A causa
auto-imune é a mais frequente nesta faixa etária, como no caso
da nossa doente, sendo muito menos frequentes as causas infecciosas, infiltrativas, traumáticas ou iatrogénicas, que no entanto devem ser consideradas.
Quadro 1 - Resultados do estudo da insuficiência suprarrenal
Cortisol sérico
<1,00 μg/dL (VR: 8,8-24,0)
ACTH
>1250 pg/dL (VR: <46)
Renina
> 900 μU/mL (VR: 2,80-39,9)
Aldosterona
< 1,1 ng/dL (VR: 5,0-14,5)
TSH
3,81 μU/mL (VR: 0,46-4,68)
T4 livre
11,6 pmol/L (VR: 10,0-28,2)
FSH
4,41 mUI/mL (VR: 1,98-11,6)
LH
1,64 mUI/mL (VR: <0,5-0,93)
Testosterona total
<20ng/dL (VR: 15-40)
17-Hidroxiprogesterona
0,18 ng/mL (VR: 0,03-0,90)
Delta-4-Androstenediona
<0,3 ng/ml (V.R. 0,3-3,3)
Anticorpos anti-supra-renal
Positivos
ACTH – corticotrofina, TSH – tirotrofina, T4 – tiroxina, FSH – hormona
folículo-estimulante, LH – hormona luteotrófica, VR – valores de referência
casos clínicos
case reports
97
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revista do hospital de crianças maria pia
ano 2012, vol XXI, n.º 2
O diagnóstico de Doença de Addison obriga a investigar
uma Síndroma Poliglandular auto-imune. Apesar de nesta doente essa investigação ter sido negativa, a possibilidade de outros auto-anticorpos poderem surgir só mais tardiamente, implica
manter vigilância clínica e laboratorial a longo prazo.
O tratamento da Doença de Addison utilizando corticóides
(glucocorticóides e mineralocorticóides) em doses de substituição é feito durante toda a vida. Os adolescentes e os pais devem
ser ensinados a proceder aos ajustes terapêuticos necessários
em situações de stress/doença aguda 6.
Os doentes devem ter sempre consigo um cartão ou outro
documento que identifique a sua doença, para que nas situações de descompensação o tratamento possa ser mais rápido
e adequado.
CONCLUSÕES
O diagnóstico de insuficiência supra-renal requer um elevado grau de suspeição clínica, uma vez que os sintomas e
sinais iniciais são frequentemente inespecíficos. Nestes casos,
os achados laboratoriais de desidratação hiponatrémica, hipercaliemia e hipoglicemia, acompanhados de hiperpigmentação
cutâneo-mucosa, devem fazer suspeitar deste diagnóstico.
ADDISON DISEASE IN PEDIATRIC AGE – A CLINICAL CASE
ABSTRACT
Introduction: The autoimmune primary adrenal insufficiency,
also known as Addison disease, is a rare condition, especially in
paediatric age.
Case report: We present the case of a fourteen-year old
adolescent, admitted in the sequence of vomiting, diarrhoea and
progressive prostration, accompanied with severe hyponatremic
dehydration, hyperkalemia and hypochloremia. She complained
of anorexia, weakness and weight loss for the past three months.
In the clinical examination she was obnubilated, with inadequate
peripheral perfusion and slightly hyperpigmented skin and
mucous membranes. The investigation confirmed the diagnosis of
autoimmune primary adrenal insufficiency. She began treatment
with hydrocortisone and fludrocortisone, with favourable clinical
response.
98
casos clínicos
case reports
Discussion: The primary adrenal insufficiency often
presents insidiously, with nonspecific signs and symptoms. Its
acute presentation is a true medical emergency, so the degree of
clinical suspicion should be high.
Keywords: Addison disease, hyperkalyemia, hyponatremia,
adrenal.
Nascer e Crescer 2012; 21(2): 96-98
BIBLIOGRAFIA
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NASCER E CRESCER
revista do hospital de crianças maria pia
ano 2012, vol XXI, n.º 2
Incontinentia Pigmenti – caso clínico
Sónia Santos1, Rita S. Oliveira1, Vítor Bastos1, José Matos2, Isabel Andrade1
RESUMO
Introdução: A Incontinentia pigmenti (IP) é uma rara genodermatose neuroectodérmica, com uma incidência de 1:50.000
nascimentos, sendo tipicamente letal no sexo masculino, in
utero.
Caso Clínico: Os autores apresentam o caso de um recém-nascido, com lesões papulo-vesiculosas desde o nascimento
sugestivas de IP. A evolução, a anatomo-patologia e o estudo
genético permitiram estabelecer o diagnóstico.
Conclusão: A IP é uma entidade clínica potencialmente grave que requer um diagnóstico precoce e um seguimento
multidisciplinar. A suspeita clínica é fundamental para chegar ao
diagnóstico.
Palavras-chave: Incontinentia Pigmenti, recém-nascido,
lesões papulo-vesiculosas.
CASO CLÍNICO
Recém-nascido (RN) do sexo feminino, de pais consanguíneos (primos em terceiro grau), fruto de uma terceira gestação
(aborto espontâneo na primeira gravidez às sete semanas) vigiada e sem intercorrências. Nasceu às 40 semanas de gestação,
por parto eutócico, com Apgar de 9/10 e peso, estatura e perímetro cefálico nos percentis 25,50 e 25, respectivamente. Logo ao
nascimento foi visualizado um exantema papulo-vesiculoso com
base eritematosa, de padrão linear a nível dos antebraços com
generalização posterior, mas poupando a face (Figura 1), sendo
o restante exame clínico sem alterações. Perante a suspeita de
“exantema infeccioso” realizou estudo analítico (hemograma e
proteína C reactiva) do qual se destacou apenas a presença de
discreta eosinofilia (4,4%). As lesões foram-se generalizando,
sempre com disposição linear, algumas com aspecto verrucoso
(Figura 2). Teve alta ao sétimo dia de vida sob aleitamento materno, com rastreio auditivo normal e consultas de seguimento
Nascer e Crescer 2012; 21(2): 99-101
INTRODUÇÃO
A Incontinentia Pigmenti (ou Síndrome de Bloch-Sulzberger)
é uma genodermatose de transmissão dominante ligada ao cromossoma X(1), com uma incidência de 1:50.000 nascimentos(2),
sendo habitualmente letal no sexo masculino, in utero(1). Foi descrita pela primeira vez por Bloch em 1926 e, posteriormente, por
Sulzberger em 1928(1). As alterações cutâneas estão geralmente
presentes ao nascimento e evoluem ao longo de quatro estadios: vesicular, verrucoso, hiperpigmentar e hipopigmentar(1). Em
50-80% dos casos há envolvimento extracutâneo: dentário, ungueal, ocular, neurológico ou ósseo(3). O diagnóstico é clínico(1),
sendo confirmado pela biópsia cutânea. O estudo molecular
complementa o estudo(4,5). Por se tratar de uma doença rara,
descrevemos um caso cujas manifestações cutâneas estavam
presentes ao nascimento e cujo follow-up tem demonstrado a
ausência de envolvimento extra-cutâneo, apesar de expressa a
mutação mais comum na IP.
Figura 1 – Exantema papulovesiculoso de
padrão linear, observado em D1 de vida.
__________
1
2
S. Pediatria, CH Tondela - Viseu
S. Dermatologia, CH Tondela - Viseu
Figura 2 – Exantema nos antebraços com
aspecto verrucoso.
casos clínicos
case reports
99
NASCER E CRESCER
revista do hospital de crianças maria pia
ano 2012, vol XXI, n.º 2
programadas (Neonatologia e Dermatologia). Os antecedentes
familiares eram irrelevantes e o irmão, de nove anos, saudável.
Perante a evolução clínica foi colocada a hipótese de IP e ao
15º dia de vida foi realizada biópsia cutânea. O exame anatomopatológico revelou vesículas intra-epidérmicas e infiltrados
de eosinófilos na derme papilar, confirmando o diagnóstico de
Incontinentia Pigmenti em fase vesicular (Figura 3). A ecografia transfontanelar solicitada revelou alterações inespecíficas:
“pequenos focos hiperecogénicos nos gânglios da base, sugerindo microvasculopatia discreta”. Foi pedida também a colaboração de Oftalmologia, cuja avaliação seriada foi normal.
O estudo molecular revelou deleção nos exões quatro a dez
no gene IKBKG/NEMO, sendo posteriormente pedido o estudo
molecular à mãe que foi negativo. Aos três meses apresentava
algumas lesões hiperpigmentadas nas coxas com padrão reticulado (Figura 4). Tem tido um desenvolvimento normal, sem
manifestações extra-cutâneas até ao momento, nomeadamente oculares ou neurológicas.
Figura 3 – Vesículas intra-epidérmicas e infiltrados de eosinófilos na derme papilar (gentilmente cedida pela Dra. Helena Garcia (CEDAP).
Figura 4 – Lesões hiperpigmentadas na coxa.
100
casos clínicos
case reports
DISCUSSÃO
As manifestações cutâneas da IP estão geralmente presentes ao nascimento(1), como se verificou no caso descrito. A evolução destas, verifica-se ao longo de quatro estadios, cujo início
e duração apresentam uma grande variabilidade individual(5).
Todavia, a pessoa afectada pode não experimentar todos os
estádios(5) ou estes podem até coexistir simultaneamente(6). O
lactente apresentou as lesões cutâneas típicas dos três primeiros. O estadio I ou vesicular, apresenta-se sob a forma de vesículas lineares, pústulas e bolhas com eritema ao longo das
linhas de Blaschko, presentes ao nascimento, mas que podem
recorrer na infância ou nas intercorrências infecciosas febris(1).
Acompanha-se frequentemente de eosinofilia(1), que pode atingir os 65%(7), embora no caso descrito a eosinofilia fosse ligeira.
O estadio II ou verrucoso consiste em lesões verrucosas, com
pápulas e placas queratóticas que ocorrem entre a 2ª e a 8ª semana de vida(1), desaparecendo por volta dos seis meses em
mais de 80% dos casos(6). O estadio III ou de hiperpigmentação
caracterizado por lesões maculares hiperpigmentadas ao longo
das linhas de Blaschko, sobretudo nas virilhas, axilas e mamilos,
ocorre entre a 12ª e a 40ª semana de vida(1) e desaparece por
volta da segunda década de vida(7). Finalmente o último estadio
de hipopigmentação, caracterizado por lesões lineares hipopigmentadas associadas ou não a lesões cutâneas atróficas, decorre desde a infância até à idade adulta(1).
Em 65-90% ocorrem anomalias dentárias e maxilares como
atraso da erupção dentária, cáries, anodontia parcial, hipodontia, microdontia, micrognatia, prognatia, dentes cónicos(1). Em
40-60% pode surgir onicodistrofia ou displasia ungueal (e mais
raramente tumores queratóticos sub-ungueais) (1) e em 35-70%
alopécia do vertex(1). Em 30-60% podem surgir anomalias oculares (geralmente unilateral)(7): alterações pigmentares da retina,
microftalmia, cataratas, leucocoria, estrabismo, atrofia óptica ou
hipoplasia da fovea, glaucoma congénito, anomalias dos vasos
periféricos da retina, cegueira(1). As anomalias do sistema nervoso central ocorrem em 10-40% dos casos(1) sendo variados: microcefalia (4%), atraso mental (12%), espasticidade (11%), convulsões (13%), ataxia, encefalopatia, hiperactividade, derrames
cerebrais(7,8,9). Em 14% surgem anomalias ósseas (geralmente
associadas a anomalias cerebrais graves) (1): hemivertebras, escoliose, espinha bífida, sindactilia, costelas supra-numerárias,
deformidades do crânio. Em 1% podem surgir anomalias da
mama: hipoplasia mamária ou mamilo supra-numerário(1) e até
aplasia(7). Apenas o follow-up seriado desta criança poderá concluir pelo aparecimento das manifestações referidas.
O diagnóstico é feito com base na evolução das lesões
cutâneas(1) e a confirmação faz-se por biópsia cutânea, correspondendo a cada um dos estadios alterações histopatológicas
específicas(1). No caso descrito, revelou alterações típicas da
fase vesicular. Cada estadio pode mimetizar outras doenças,
impondo o respectivo diagnóstico diferencial, que no vesicular
faz-se com: Impétigo bolhoso, Dermatose bolhosa, Pênfigo bolhoso, Eritema Tóxico, Dermatite Herpetiforme, Herpes Zoster(10)
e Sífilis congénita(1,3); e no estadio IV faz-se com a Hipomelanose
de Ito e com Vitiligo.
NASCER E CRESCER
revista do hospital de crianças maria pia
ano 2012, vol XXI, n.º 2
A neuroimagiologia, com recurso a Tomografia Axial Computorizada ou Ressonância Magnética Crânio-Encefálica, só se
justifica quando ocorrem alterações no exame neurológico ou no
desenvolvimento, convulsões ou vasculopatia da retina(1), o que
até à data não ocorreu.
O estudo molecular revela maioritariamente, uma mutação
no gene IKBKG/NEMO do cromossoma X, sendo encontrada
deleção dos exões 4-10 em 60-80% dos casos(5,11,12), como se
verificou neste. Quando não existe história familiar de IP, importa
testar a mãe dada a grande variabilidade fenotípica, e caso a
mutação esteja presente o aconselhamento genético é importante, pela possibilidade de diagnóstico pré-natal(5). Em mais de
65% dos casos estão reportadas mutações esporádicas(12).O
gene referido intervém na protecção celular contra a apoptose
celular(4), registando-se, desta forma, uma maior susceptibilidade
a neoplasias (leucemia mielóide aguda, tumor de Wilms, retinoblastoma) (1).
Não existe tratamento específico(1). Na fase vesicular as lesões devem permanecer intactas e limpas para evitar a sobreinfecção bacteriana(1).
O follow-up destas crianças deve envolver uma equipa
multidisciplinar: Oftalmologia, Neonatologia/Pediatria, Medicina
Dentária, Genética e Neurologia (se alterações neurológicas)(1).
O prognóstico neste caso é bom, uma vez que não surgiram até à data, lesões oculares ou do Sistema Nervoso Central.
CONCLUSÃO
A IP, embora rara, exige um elevado índice de suspeição,
pois devido aos seus diferentes estadios pode mimetizar diferentes doenças. Devido ao seu envolvimento extra-cutâneo, o
follow-up por uma equipa multidisplinar torna-se crucial.
INCONTINENTIA PIGMENTI – A CASE REPORT
ABSTRACT
Introduction: Incontinentia pigmenti (IP) is a rare genodermatosis neuroectodermal multisystem disorder. This disease
has an incidence of 1:50.000 births and is typically lethal in males, in utero.
Case report: The authors present a clinical case of IP in a
newborn with papulovesiculous eruptions observed on the first
day of life. The evolution, anatomopathology and genetic study
findings established the diagnosis.
Conclusion: The IP is a potentially serious clinical entity,
which requires an early diagnosis and multidisciplinary follow-up.
Keywords: Incontinentia pigmenti, newborn, papulovesiculous eruptions.
BIBLIOGRAFIA
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CORRESPONDÊNCIA
Sónia Santos
E-mail: [email protected]
Nascer e Crescer 2012; 21(2): 99-101
casos clínicos
case reports
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NASCER E CRESCER
revista do hospital de crianças maria pia
ano 2012, vol XXI, n.º 2
Síndrome de Overlap entre colangite esclerosante
primária e hepatite auto-imune – um caso com
apresentação sequencial ao longo dos anos
Teresa São Simão1, Marta Rios1, J Ramón Vizcaíno2, Fernando Pereira1, Ermelinda Santos Silva1
RESUMO
Introdução: Dentro do espectro das doenças hepáticas
auto-imunes alguns doentes apresentam-se com características
tanto de uma doença colestática (isto é, colangite esclerosante primária de grandes ou de pequenos ductos, ou cirrose biliar
primária, esta última uma entidade não descrita em idade pediátrica), como de hepatite auto-imune. Estas situações são difíceis
de classificar e designam-se por síndromes de overlap. As características do overlap incluem sintomas, achados no exame físico,
testes bioquímicos, anomalias imunológicas, e/ou histológicas.
Há vários tipos de relação entre as várias doenças hepáticas auto-imunes que atingem um mesmo doente.
Caso clínico: Os autores descrevem o caso de uma criança com apresentação de colangite esclerosante primária de
pequenos ductos, sem resposta favorável à terapêutica imunossupressora (prednisolona + azatioprina) associada ao ácido ursodesoxicólico, seguida alguns anos mais tarde de características sugestivas de hepatite auto-imune com resposta bioquímica
favorável à mesma terapêutica.
Discussão: Este caso alerta-nos para a necessidade de manter uma vigilância permanente no seguimento destes doentes, tanto
na reavaliação diagnóstica e como na intervenção terapêutica.
Palavras-chave: doença hepática auto-imune, síndrome
de overlap, colangite esclerosante primária, hepatite auto-imune,
idade pediátrica, ácido ursodesoxicólico.
Nascer e Crescer 2012; 21(2): 102-106
INTRODUÇÃO
A hepatite auto-imune (HAI) engloba 2-5% da doença hepática crónica em idade pediátrica. É uma hepatopatia de origem
inflamatória de etiologia desconhecida, tipicamente caracterizada por enzimas hepáticas elevadas, hipergamaglobulinemia,
presença de autoanticorpos específicos, e histologicamente por
infiltrado celular mononuclear nos espaços porta com hepatite de
interface(1). O tratamento com prednisolona, associado ou não ao
uso de azatioprina, pode alterar o curso desta entidade clínica
que, sem tratamento atempado progride para cirrose(1).
Alguns pacientes com HAI apresentam características
de doença colestática como a colangite esclerosante primária
__________
1
2
U. Gastrenterologia Pediátrica, H Maria Pia, CH Porto
S. Anatomia Patológica, H Santo António, CH Porto
102
casos clínicos
case reports
(CEP) ou cirrose biliar primária (CBP). Estas entidades clínicas são denominadas de síndromes de overlap (SO) e podem
manifestar-se de várias formas: apresentação concomitante de
duas doenças distintas; apresentação de uma doença com aspectos característicos de outras; apresentação sequencial de
duas doenças; e alguns autores consideram as SO como uma
entidade nosológica própria(2-5).
As características do overlap incluem aspectos clínicos,
bioquímicos, imunológicos e histológicos.
Na idade pediátrica é particularmente frequente o overlap
HAI-CEP. Nestes casos alguns autores usam a designação alternativa de “Colangite esclerosante Auto-imune” (CAI)(6-8). Descrevemos um caso de overlap HAI-CEP com apresentação sequencial ao longo de vários anos.
CASO CLÍNICO
Este doente de sexo masculino, caucasiano, nascido em
12/12/1992, era o único filho de um casal saudável, não consanguíneo, e tinha uma avó paterna com cirrose biliar primária diagnosticada aos 35 anos de idade; esta avó, medicada com ácido ursodesoxicólico (AUDC), manteve doença hepática crónica estável
por mais de 30 anos, sem necessidade de transplante hepático,
tendo falecido recentemente de carcinoma hepatocelular.
O doente começou a ter prurido no 1º ano de vida, atribuído
a “alergias alimentares”. Apresentava xerose cutânea acentuada e os testes cutâneos a alimentos revelaram uma positividade
múltipla, por provável sensibilidade cutânea, não alérgica. Foi-lhe
recomendada a evicção de alimentos libertadores de histamina.
A partir dos 4-5 anos de idade começou a ter surtos de prurido de maior intensidade, na ausência de manifestações cutâneas, oculares, nasais ou brônquicas. Nesta altura efectuou pela
primeira vez análises que mostraram elevação das enzimas hepáticas (AST – 193 UI/L, ALT – 309 UI/L, GGT – 208 UI/L). Efectuou investigação complementar (resultados não disponíveis) e
foi tratado com prednisolona durante cerca de um mês; esta terapêutica foi abandonada por “ausência de resposta”, e nos anos
__________
ABREVIATURAS:
AST – Aspartato aminotransferase; ALT – Alanina aminotransferase;
AASLD – The American Association for the Study of Liver Diseases;
AUDC – Ácido Ursodesoxicólico; CAI – Colangite esclerosante Autoimune;
CBP – Cirrose biliar primária; CEP – Colangite Esclerosante Primária;
Colangio RM – Colangio- Ressonância Magnética; EASL – European
Association for the Study of the Liver; HAI – Hepatite Autoimune; IAIHG
– International Autoimune Hepatitis Group;
NASCER E CRESCER
revista do hospital de crianças maria pia
ano 2012, vol XXI, n.º 2
seguintes o doente não efectuou nem exames complementares
nem tratamentos.
Foi admitido na consulta de Hepatologia do Hospital de
Crianças Maria Pia aos 11 anos de idade. Mantinham-se os episódios recorrentes de prurido, sem icterícia. O exame objectivo
era sem particularidades, nomeadamente sem estigmas de doença hepática crónica.
Efectuou investigação complementar da qual se destacam
os seguintes resultados: bilirrubina total – 0,60 mg/dl, bilirrubina
conjugada – 0,20 mg/dl, AST – 96 UI/L, ALT – 165 UI/L, GGT
– 219 UI/L, FA - 577 UI/L, IgG – 1440 mg/dl, ANA`s – 1/1280,
anti-músculo liso – 1/40, anti-mitocôndrias, anti-LKM, anti-SLA e
anti-LC1 – negativos; Alfa-1-antitripsina e ceruloplasmina séricas,
e doseamento de cobre urinário de 24 horas normais; ecografia
abdominal – fígado com dimensões e ecoestrutura normais, sem
dilatação das vias biliares, cálculo vesicular único de 7 mm; endoscopia digestiva alta – sem varizes esofágicas ou gástricas;
histologia hepática – alargamento de alguns espaços-porta por
fibrose e formação de septos finos inter-portais, infiltrado portal
misto com linfócitos e eosinófilos, sem hepatite de interface ou
lobular, esboço de fibrose peri-ductal e neoformação ductular;
cobre hepático – 46,7 microgramas/g/fígado seco. Cumpriu terapêutica imunossupressora durante seis meses (prednisolona 2
mg/kg/dia 1 mês e depois em doses decrescentes + azatioprina
1,5 mg/kg/dia) sem melhoria significativa dos parâmetros analíticos, pelo que se suspendeu e, nos anos seguintes, pela hipótese
de se tratar de uma colangite esclerosante primária, o doente foi
tratado apenas com AUDC 10-15 mg/kg/dia.
Aos 15 anos de idade começou a registar-se uma maior
elevação das enzimas hepáticas (Gráfico 1), e um ano mais tarde houve aparecimento de icterícia e agravamento do prurido
com os seguintes parâmetros analíticos: bilirrubina total – 3,34
mg/dl, bilirrubina conjugada – 2,96 mg/dl, AST – 194 UI/L, ALT –
543 UI/L, GGT – 310 UI/L, FA - 388 UI/L, IgG – 1700 mg/dl (vr:
793 – 1590 mg/dl), ANA`s – 1/640, SMA – 1/40, ANCA`s – negativo. Nesta altura a histologia hepática mostrava actividade necro-inflamatória de interface (Figura 1) e intra-lobular focal (Figura
2), para além do infiltrado inflamatório polimórfico nos espaços-porta e de fibrose portal moderada com formação de septos e
pontes porta-portais (Figura 3). Por cumprir critérios de diagnós-
tico definitivo de HAI (Tabela I) iniciou tratamento imunossupressor (prednisolona 1 mg/kg/dia + azatioprina 1,5 mg/kg/dia) tendo
sido posteriormente aumentada também a dose de AUDC para
20 mg/kg/dia, com resposta francamente favorável (desaparecimento do prurido, normalização completa das bilirrubinas e das
transaminases, e diminuição acentuada da GGT).
Figuras 1 e 2 – Histologia hepática (19/12/2008) evidenciando actividade necro-inflamatória de interface e intra-lobular focal
Gráfico 1 - Elevação das enzimas hepáticas
casos clínicos
case reports
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NASCER E CRESCER
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ano 2012, vol XXI, n.º 2
Em Fevereiro de 2010 (17 anos de idade) efectuou ColangioRM que mostrou ligeira hepatomegalia sobretudo à custa do
lobo esquerdo, globalmente homogénea, sem alterações relevantes da morfologia ou calibre das vias biliares intra ou extra-hepáticas, e cálculo vesicular único de 18 mm (Figuras 4 e 5).
Concluímos estar perante um caso de overlap de apresentação sequencial (CEP de pequenos ductos-HAI), situação
alternativamente designada por alguns autores como “colangite
esclerosante auto-imune”(6-8).
DISCUSSÃO
O IAIHG sugere que os doentes com doença hepática auto-imune devem ser classificados de acordo com as características
predominantes de AIH, CBP, CEP de grandes e de pequenos
ductos, respectivamente, e que aqueles com características de
Figura 3 - Histologia hepática (19/12/2008) mostrando fibrose portal moderada com formação de septos e pontes porta-portais
Tabela I – Critérios de diagnóstico de HAI (Score validado4)
PONTUAÇÃO
(aos 11 anos)
PONTUAÇÃO
(aos 15 anos)
Sexo feminino
0
0
FA / AST ou ALT
-2
+2
↑IgG
0
+1
Autoanticorpos
ANA, SMA, LKM1
AMA +
+3
0
+3
0
Serologias víricas negativas
+3
+3
História de hepatotóxicos negativa
+1
+1
Consumo de álcool <25g/dia
+2
+2
Histologia hepática
Hepatite de interface
Inf. linfoplasmocitário
Lesão ductos biliares
0
+1
-3
+3
+1
0
Outras doenças AI`s
(no doente ou em parentes em 1º grau)
0
0
Outros auto-anticorpos
0
0
Não efectuado
Não efectuado
0
0
+2
0
5
16
5
18
CRITÉRIOS
HLA DR3 ou DR4 +
Resposta terapêutica (completa)
Recaídas
Score Diagnóstico
Antes do tratamento
Provável > 10 - 15; Definitivo >15
Após o tratamento
Provável > 12 - 17; Definitivo >17
104
casos clínicos
case reports
Figuras 4 e 5 – Ressonância magnética hepatobiliar (08/02/2010) - ligeira hepatomegalia sobretudo à custa do lobo esquerdo, globalmente
homogénea, sem alterações relevantes da morfologia ou calibre das vias
biliares intra ou extrahepáticas; cálculo vesicular 18 mm
NASCER E CRESCER
revista do hospital de crianças maria pia
ano 2012, vol XXI, n.º 2
overlap não devem ser considerados como tendo entidades nosológicas distintas(3). Apesar disso, pode haver necessidade de
considerar terapêuticas específicas para esses doentes(3).
O score do IAIHG(9-11) para o diagnóstico de HAI tem sido
largamente utilizado para diagnosticar as síndromes de overlap
mas não foi concebido para esse efeito e não está provado que
para esses casos seja uma ferramenta útil.
Num doente com diagnóstico confirmado de CEP, a presença de características de HAI associadas pode levar à classificação de síndrome de overlap CEP-HAI. Esta condição parece ser particularmente frequente nas crianças onde tem sido
exaustivamente estudada(6-8,12-14). Estes doentes, ao contrário do
que é frequente nos adultos, podem beneficiar de tratamento
imunossupressor(15).
Alguns autores introduziram a designação de “Colangite esclerosante Auto-imune” (CAI) para designar o grupo de crianças
com CEP que também apresentam características sugestivas de
HAI(6-8). Sugerem que nestes casos a HAI e a CEP se encontram
dentro do espectro da mesma doença, que designam por CAI(15).
A CAI parece ser a contrapartida na idade pediátrica da síndrome de overlap HAI-CEP nos adultos, com a mesma prevalência
da HAI tipo1(7).
Num estudo prospectivo de seguimento a longo prazo de
52 crianças com colangite esclerosante primária, verificou-se
que 35% (14/40 com biópsia) vieram a cumprir critérios de HAI
definitiva ou provável(14), tal como aconteceu no caso que descrevemos.
O nosso doente apresentou-se na infância com um quadro
clínico de doença colestática associada a marcadores imunológicos positivos; sem anomalias imagiológicas e com histologia
mostrando infiltrado portal de linfócitos e eosinófilos, e lesões
dos ductos biliares (esboço de fibrose peri-ductal e neoformação
ductular), sugerindo o diagnóstico de CEP de pequenos ductos.
Anos mais tarde, na adolescência, registou-se uma alteração
do padrão analítico (alteração da relação FA/AST e elevação
da IgG), seguida do aparecimento de icterícia e mais uma vez
agravamento do prurido; nesta altura a histologia mostrava aspectos que poderiam sugerir HAI (hepatite de interface, mas com
infiltrado portal polimórfico) e o doente apresentava um score de
diagnóstico definitivo para HAI (Quadro 1).
A questão que se coloca é se estamos perante a associação de duas doenças hepáticas auto-imunes sequencialmente no mesmo doente, ou se se trata de uma mesma entidade
apresentando-se com aspectos de uma doença (CEP) progredindo para aspectos de outra doença (HAI), sendo mais adequada a designação proposta por alguns autores de “Colangite
esclerosante Auto-imune” (CAI)(6-8).
Outros investigadores têm classificado os doentes pediátricos como tendo síndrome de overlap HAI-CEP, tal como nos
adultos(8). Estes autores sugerem que a expressão da CEP nas
crianças se manifesta como uma apresentação hepatítica em
vez do perfil colestático dos adultos. Deste modo, a possibilidade
de CEP deve ser considerada em todas as crianças com HAI, e
consequentemente deve ser realizada uma colangiografia (ColangioRM ou CPRE). Publicamos previamente o caso de outra
doente com overlap HAI-CEP(16), que ilustra bem a importância
desta recomendação, sobretudo quando há aspectos que chamam à atenção para lesão das vias biliares em concomitância.
Neste caso o overlap manifestou-se desde o início da apresentação clínica. A doente reunia um score de diagnóstico para HAI
provável (score = 15) e apesar da resposta bioquímica favorável
à terapêutica imunossupressora, como apresentava dilatação
das vias biliares intra-hepáticas (em ecografia), e a histologia
incluía proliferação ductular, foi realizada uma CPRE que confirmou a presença de aspectos sugestivos de CEP. Nesse caso, tal
como no que aqui descrevemos, estiveram presentes duas doenças hepáticas auto-imunes com apresentação concomitante
ou sequencial, uma doença (HAI) com aspectos característicos
de outra (CEP), ou uma entidade nosológica diversa reunindo
características de ambas (CAI)?
Os resultados do tratamento de doentes com características combinadas de HAI e CEP são variáveis. Em algumas publicações mais antigas(13,17,18), num número reduzido de doentes,
observou-se uma melhoria clínica e bioquímica após tratamento
com corticoesteróides e azatioprina, por vezes em associação
com AUDC. Porém, mais recentemente foi observada doença
progressiva em doentes com características de HAI-CEP, apesar
da terapêutica combinada de imunossupressores com AUDC e
melhoria bioquímica inicial(19).
O prognóstico dos doentes com síndrome de overlap HAI-CEP pode ser mais favorável que o dos doentes com a CEP
clássica, mas menos favorável que o dos doentes com HAI
isolada(19). A resposta à terapêutica imunossupressora parece
ser melhor em crianças com síndrome de overlap HAI-CEP (ou
CAI) do que em adultos(6,20).
As guidelines da EASL recomendam que os doentes com
síndrome de overlap HAI-CEP sejam tratados com AUDC e imunossupressores, mas destacam que esta recomendação não é
baseada na evidência(20). As guidelines da AASLD sobre a CEP
também recomendam o uso de corticoesteróides e de outros
imunossupressores em doentes com síndrome de overlap HAI-CEP(21).
O caso que descrevemos não respondeu inicialmente à
terapêutica imunossupressora (prednisolona + azatioprina) associada ao AUDC, mas anos mais tarde, e quando apresentou
aspectos característicos de HAI houve resposta favorável à mesma terapêutica.
A litíase vesicular neste doente está em provável relação
com a presença de estase biliar associada à doença hepática
crónica colestática, predispondo a uma composição mais litogénica da bile (supersaturação em colesterol). A nossa atitude tem
sido expectante, dado tratar-se de um cálculo vesicular único
num doente sem sintomas associados(22).
Este caso de síndrome de overlap de doença hepática
autoimune, inicialmente com aspectos sugestivos de CEP de
pequenos ductos, progredindo anos mais tarde para HAI (apresentação de tipo sequencial), alerta-nos para a necessidade de
manter uma vigilância permanente no seguimento destes doentes, em termos de reavaliação do seu diagnóstico e de eventuais
intervenções terapêuticas.
casos clínicos
case reports
105
NASCER E CRESCER
revista do hospital de crianças maria pia
ano 2012, vol XXI, n.º 2
PRIMARY SCLEROSING CHOLANGITIS OVERLAPPING
WITH AUTOIMMUNE HEPATITIS – A CASE WITH
SEQUENTIALLY PRESENTATION OVER THE YEARS
ABSTRACT
Introduction: Within the spectrum of autoimmune liver
disease some patients present with features of both cholestatic
disease (primary sclerosing cholangitis of large or small ducts, or
primary biliary cirrhosis, the latter not described in children) and
autoimmune hepatitis. These situations are difficult to classify and
are called overlap syndromes. The characteristics of the overlap
include symptoms, findings on physical examination, biochemical
tests, immunological abnormalities, and / or histology.
There are several types of associations between the various
autoimmune liver diseases affecting the same patient.
Case report: The authors describe the case of a child with
sequential presentation of primary sclerosing cholangitis of small
ducts without favourable response to immunosuppressive therapy (azatioprine + prednisolone) combined with ursodeoxycholic
acid, followed some years later of characteristic features of autoimmune hepatitis with favourable biochemical response to the
same therapy.
Comments: This case emphasizes the need of careful long
term follow up of these patients to validate the diagnosis and plan
the adequate management.
Keywords: autoimmune liver disease, overlap syndrome,
primary sclerosing cholangitis, autoimmune hepatitis, paediatric
age, ursodeoxycholic acid.
Nascer e Crescer 2012; 21(2): 102-106
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106
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CORRESPONDÊNCIA
Ermelinda Santos Silva
[email protected]
NASCER E CRESCER
revista do hospital de crianças maria pia
ano 2012, vol XXI, n.º 2
Pâncreas heterotópico numa criança com
Trissomia 8 em mosaico: uma associação acidental?
Gisela Silva1, Isabel Couto Guerra1, Lurdes Morais1, Virgílio Senra1, Fernando Pereira2
RESUMO
Introdução: O Pâncreas heterotópico (PH), definido pela
presença de tecido pancreático em local não usual, é uma malformação congénita rara, habitualmente assintomática. O diagnóstico pré-operatório é dificultado pela semelhança com os tumores da camada submucosa.
Caso clínico: Os autores relatam o caso de uma criança do
sexo masculino com Trissomia 8 em mosaico, divertículo de Meckel e onfalocelo, com pâncreas ectópico na pequena curvatura
gástrica, cuja forma de apresentação foi a hemorragia digestiva
alta. O doente foi submetido a exérese cirúrgica da lesão.
Discussão/Conclusão: O Síndrome da Trissomia 8 em
mosaico é uma anomalia cromossómica frequente, mas até à
data não está descrita a associação desta entidade com o PH
ou com outras anomalias gastrointestinais. No entanto, é reconhecida a associação do PH com outras malformações gastrointestinais, como a atrésia esofágica, o onfalocelo e o divertículo
de Meckel.
Palavras-chave: Hemorragia digestiva, pâncreas heterotópico, Trissomia 8 em mosaico.
Nascer e Crescer 2012; 21(2): 107-109
INTRODUÇÃO
O Pâncreas heterotópico (PH) foi descrito pela primeira vez
em 1727, aquando da sua identificação num divertículo ileal(1).
O PH é uma anomalia congénita rara, que consiste em tecido
pancreático diferenciado sem conexão anatómica ou vascular
com o pâncreas.
Em autópsias, a prevalência varia de 0,6 a 14%(2),
localizando-se mais frequentemente no antro gástrico, duodeno,
jejuno e divertículo de Meckel(2). O diagnóstico é difícil, porque
raramente é sintomático. Contudo, pode tornar-se clinicamente
aparente quando surge alguma complicação, como inflamação,
hemorragia, obstrução ou transformação maligna(2). O diagnóstico pré-operatório é particularmente difícil, porque na maioria dos
casos os PH têm um aspecto macroscópico similar aos tumores
da camada submucosa, apresentando-se como massas submucosas bem delimitadas com uma área de umbilicação central,
correspondendo esta última ao canal pancreático rudimentar(3).
__________
1
2
S. Pediatria, H Maria Pia, CH Porto
S. Gastroenterologia Pediátrica, H Maria Pia, CH Porto
CASO CLÍNICO
Criança do género masculino, fruto de uma segunda gestação e primeiro gémeo de um casal jovem não-consanguíneo,
com diagnóstico pré-natal de onfalocelo e uropatia malformativa
à esquerda relacionada com Trissomia 8 em mosaico (47,XY, +8
/ 46 XY). Parto às 34 semanas de gestação com somatometria
adequada à idade gestacional. No primeiro dia de vida, foi submetido a correcção cirúrgica de onfalocelo e enterectomia, com
exame histológico compatível com Divertículo de Meckel.
De acordo com a cromossomopatia identificada no período pré-natal apresentava: dismorfias faciais (fronte proeminente
e larga, hipertelorismo e base nasal alargada); atraso grave do
desenvolvimento psicomotor; má evolução ponderal; uropatia
malformativa; cardiopatia congénita sem repercussão hemodinâmica (defeito do septo ventricular e estenose apical pulmonar); e
criptorquidia à direita.
Aos três anos de idade, o doente recorreu ao serviço de
urgência por vários episódios de vómitos e hematemeses. Ao
exame objectivo apresentava palidez mucocutânea acentuada,
sem outras alterações. Analiticamente de salientar uma anemia
ferropénica; a contagem plaquetária e o estudo sumário da coagulação não revelaram alterações. A Endoscopia digestiva alta
(EDA) mostrou uma tumefacção submucosa polipóide, séssil,
com umbilicação central, com cerca de 3 cm de diâmetro, localizada à porção mais alta da pequena curvatura gástrica, junto à
transição do corpo gástrico para a parede posterior (Figura 1).
Figura 1 – Endoscopia digestiva alta: tumefacção polipóide séssil na camada submucosa gástrica com umbilicação central (ver seta)
e coágulo recente (ver cabeça de seta).
casos clínicos
case reports
107
NASCER E CRESCER
revista do hospital de crianças maria pia
ano 2012, vol XXI, n.º 2
A tomografia axial computorizada (TAC) abdominal revelou um
espessamento da parede gástrica na pequena curvatura, sem invasão dos tecidos adjacentes. Foi realizada ressecção cirúrgica,
que decorreu sem intercorrências. O exame histológico da peça
cirúrgica (Figuras 2 e 3) foi compatível com PH com arquitectura
lobular. Posteriormente, o doente manteve-se assintomático.
DISCUSSÃO
O PH é definido pela presença de tecido pancreático fora
da sua localização anatómica habitual. Foram propostas duas
teorias para a patogénese desta entidade. Uma delas atribui a
presença desta ectopia à migração de tecido pancreático fetal e
a outra à diferenciação errónea do epitélio da mucosa gástrica
em tecido pancreático(4).
Figura 2 – Exame histológico da peça cirúrgica: Lóbulos
pancreáticos heterotópicos localizados na camada submucosa gástrica e recobertos por mucosa gástrica de aspecto
normal (H&E, ampliação original, x200).
Figura 3 – Exame histológico da peça cirúrgica: Tecido
pancreático normal (ácinos, ductos e ilhéus de Langerhans)
(H&E, ampliação original x 400).
108
casos clínicos
case reports
A localização mais habitual do PH é o duodeno e o estômago, correspondendo a 70%-90%(2,5) de todos os casos. As lesões
gástricas, na maioria dos casos, estão confinadas ao antro (em
85%-95%), sendo a localização mais frequente a grande curvatura gástrica(2,5). À semelhança do caso apresentado, o tecido
pancreático ectópico é identificado mais frequentemente na camada submucosa (73%)(6).
A classificação histológica do PH de acordo com Heinrich
(1909) inclui três tipos. Em 1973, esta classificação foi modificada por Gaspar-Fuentes adquirindo a sua forma final: Tipo I,
heterotopia completa, que consiste em tecido pancreático típico
(ácinos, ductos e ilhéus); Tipo II, heterotopia canalicular, composta apenas por ductos pancreáticos; Tipo III, caracterizada
apenas por ácinos (heterotopia exócrina); e tipo IV, apenas com
ilhéus de Langerhans (heterotopia endócrina)(7). Segundo esta
classificação, este caso corresponde a PH de Tipo I.
A grande maioria dos doentes com PH é assintomática.
Quando presentes, os sintomas são inespecíficos e dependentes
do tamanho, localização e possíveis complicações. Em 75% dos
casos as lesões têm um tamanho inferior a 3 cm de diâmetro(2,5),
mas quando as dimensões são superiores a 1,5 cm apresentam
maior probabilidade de serem sintomáticas(7). Efectivamente o doente descrito apresentava uma lesão gástrica com maior risco de
sintomas (cerca de 3 cm de diâmetro), que se tornou clinicamente
evidente pelo aparecimento de uma hemorragia digestiva.
A EDA revelou uma lesão submucosa com umbilicação típica; no entanto, este dado não foi suficiente para estabelecer o
diagnóstico, pela semelhança com os tumores da submucosa.
Tendo em conta a elevada percentagem de falsos negativos,
pela dificuldade em biopsar a camada submucosa, a biópsia endoscópica não foi efectuada. A Ecoendoscopia seria um exame
útil na avaliação da localização e extensão da massa, evitando
uma exérese mais extensa. No entanto, existem importantes limitações na utilização desta técnica na população pediátrica e o
seu uso é ainda muito restrito(8).
São várias as opções terapêuticas disponíveis. No entanto,
de acordo com a maioria dos autores o tratamento cirúrgico deve
ser realizado caso surjam complicações e ainda pelo risco, ainda que baixo, de degeneração maligna destas lesões na idade
adulta(9). Neste caso, a TAC revelou uma lesão localizada, pelo
que foi realizada tumorectomia. Uma vez que os achados dos exames pré-operatórios não foram específicos de PH o diagnóstico
definitivo baseou-se no exame histopatológico da peça cirúrgica.
O Síndrome de Trissomia 8 em mosaico é uma anomalia
cromossómica relativamente comum, mas subdiagnosticada devido à grande variabilidade fenotípica. Até à data não está descrita na literatura relação entre o PH, ou outras malformações
gastrointestinais, e esta cromossomopatia(10).
Outro aspecto relevante é a associação já descrita entre o
PH e várias malformações gastrointestinais, incluindo a atrésia
esofágica, o onfalocelo e o divertículo de Meckel (as duas últimas
presentes no doente apresentado). A explicação para esta associação é ainda desconhecida, mas poderá envolver alterações
em moléculas de sinalização expressas durante o desenvolvimento do tracto gastrointestinal e outros órgãos associados(10).
NASCER E CRESCER
revista do hospital de crianças maria pia
ano 2012, vol XXI, n.º 2
CONCLUSÕES
O PH é uma causa rara de hemorragia gastrointestinal, sendo mesmo, na maioria dos casos, uma lesão assintomática. No
entanto, deverá ser considerado como uma etiologia possível,
em particular nos doentes que apresentem outras malformações
gastrointestinais.
Até à data, a presença de PH em doentes com Trissomia 8
em mosaico não está descrita na literatura, sendo esta a primeira
descrição desta associação. Assim, a relação causal desta cromossomopatia com esta entidade não pode ser estabelecida.
HETEROTOPIC PANCREAS IN A CHILD WITH TRISOMY 8
MOSAICISM SYNDROME: AN ACCIDENTAL ASSOCIATION?
ABSTRACT
Introduction: Heterotopic pancreas is a rare congenital
malformation, usually asymptomatic. It is defined as pancreatic
tissue found outside the usual anatomic location of the pancreas.
The preoperative diagnosis is difficult because most of the cases
have an appearance similar to submucosal tumours.
Case report: We report the case of a three-year-old male
with 8 trisomy mosaicism, Meckel´s diverticulum and omphalocele
with an ectopic pancreatic lesion. It was located in the stomach
less curvature, and presenting as gastrointestinal bleeding.
Discussion/Conclusion: Trisomy 8 mosaicism syndrome
is a relatively common chromosomal abnormality but so far there
is no known relationship between HP or other gastrointestinal
malformations and this chromosomopathy. Nevertheless, there is
a relationship between HP and various gastrointestinal malformations, including esophageal atresia, omphalocele and Meckel´s
diverticulum.
Keywords: Gastrointestinal bleeding, heterotopic Pancreas, Trisomy 8 mosaicism.
Nascer e Crescer 2012; 21(2): 107-109
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CORRESPONDÊNCIA
Gisela Silva
E-mail: [email protected]
casos clínicos
case reports
109
NASCER E CRESCER
revista do hospital de crianças maria pia
ano 2012, vol XXI, n.º 2
Eritroblastopenia transitória da infância:
atitude expectante face a uma anemia grave
Marco Pereira1, Rui Bergantim2, Emília Costa3, Lurdes Morais4, Vasco Lavrador4, José Barbot3
RESUMO
Introdução: A eritroblastopenia transitória da infância (ETI)
é uma condição aguda caracterizada por anemia moderada a
grave e reticulocitopenia, secundárias a uma supressão temporária da eritropoiese. A etiologia é desconhecida, embora ocorra
associação com uma infecção vírica em cerca de metade dos casos. Tipicamente, apresenta um curso benigno e auto-limitado,
necessitando apenas de vigilância da evolução clínica.
Caso clínico: Descreve-se o caso clínico de uma menina
com três anos de idade, internada por infecção respiratória alta
e ETI. O seu quadro hematológico era caracterizado por anemia
com hemoglobina de 7.1 g/dl e reticulocitopenia, sem alterações
nas outras linhas celulares. A evolução foi favorável, com recuperação espontânea ao fim de três semanas.
Conclusão: O reconhecimento desta entidade hematológica benigna, distinguindo-a de outras formas de anemia arregenerativa, pode evitar o recurso a procedimentos diagnósticos e
terapêuticos desnecessários.
Palavras-chave: Anemia, anemia aplásica, eritroblastopenia transitória da infância.
Nascer e Crescer 2012; 21(2): 110-112
INTRODUÇÃO
A Eritroblastopenia Transitória da Infância (ETI) é uma forma de anemia arregenerativa temporária, descrita pela primeira
vez em 1970(1,2). É uma condição adquirida, auto-limitada e de
instalação progressiva. Caracteriza-se por supressão transitória
da produção eritróide, com eritroblastopenia medular e reticulocitopenia no sangue periférico, resultando numa anemia normocítica/normocrómica moderada a grave(1-3).
A ETI afecta sobretudo crianças previamente saudáveis,
com idades compreendidas entre um e quatro anos, grupo etário
em que ocorrem 80% dos casos(1,2). É uma condição pouco frequente, com uma incidência estimada de 4,2 casos por 100000
crianças. No entanto, a incidência real é difícil de estabelecer,
atendendo ao número indeterminado de casos não diagnosticados com evolução sub-clínica(2).
__________
1
2
3
4
Dep. Mulher, da Criança e do Jovem, H Pedro Hispano, ULS de
Matosinhos
S. Hematologia Clínica, CH de São João
U. Hematologia Pediátrica, H Maria Pia, CH Porto
S. Pediatria, H Maria Pia, CH Porto
110
ciclo de pediatria inter hospitalar do norte
paediatric inter-hospitalar meeting
A etiologia permanece por esclarecer, tendo sido propostos mecanismos infecciosos e imunes(1,2). Em cerca de metade
dos casos identifica-se uma infecção vírica nos dois meses precedentes, sobretudo afectando o tracto respiratório ou gastrointestinal. Contudo, o facto de não mostrar variação sazonal bem
como a elevada prevalência de infecções víricas neste grupo
etário, dificultam o estabelecimento desta relação causal(1-3). As
infecções mais frequentemente associadas com a ETI são as
causadas por vírus herpes humano tipo 6, ecovirus 11 e parvovírus B19. Outros mecanismos propostos relacionam-se com a
presença de inibidores séricos, como auto-anticorpos IgG direccionados aos progenitores eritróides, ou a supressão da eritropoiese por mediação celular(2-4). A descrição de vários casos
familiares de ETI, incluindo em gémeos monozigóticos, sugere
a possibilidade da existência de uma predisposição genética,
resultando esta anemia de uma resposta anormal transmitida
a um desencadeante ambiental comum, como a presença de
vírus ou toxinas(4-5).
A apresentação mais comum consiste em palidez e astenia
de instalação progressiva. O exame objectivo é inocente, para
além das possíveis alterações secundárias à anemia. A hemoglobina (Hb) pode atingir níveis entre 2 e 9 g/dl, com média de
5,6 g/dl, associada a reticulocitopenia marcada(1). As outras linhas celulares não são habitualmente afectadas, embora possa
ocorrer em alguns casos neutropenia ou trombocitose transitórias. O diagnóstico diferencial faz-se com outras formas de anemia arregenerativa.
Tipicamente apresenta um curso benigno e auto-limitado,
necessitando apenas de vigilância da evolução clínica e analítica. O suporte transfusional raramente é necessário, estando
apenas indicado no caso de compromisso hemodinâmico(1,2). A
recuperação é completa e ocorre num período de um a dois meses. No momento de diagnóstico, até 10% dos casos encontram-se já em fase de recuperação. A recidiva de ETI é extremamente
rara(1-3).
CASO CLÍNICO
Criança do sexo feminino, caucasiana, com três anos de
idade, segunda filha de pais jovens e não consanguíneos. Sem
antecedentes patológicos ou familiares relevantes. Admitida por
um quadro com uma semana de evolução caracterizado por sintomas das vias aéreas superiores, associados a febre e vómitos
desde o dia anterior ao internamento. Retrospectivamente, referência a palidez com um mês de evolução, sem astenia para as
NASCER E CRESCER
revista do hospital de crianças maria pia
ano 2012, vol XXI, n.º 2
actividades habituais. Foram negadas perdas hemáticas e hábitos medicamentosos.
Ao exame objectivo apresentava palidez cutâneo-mucosa,
evidenciando boa vitalidade. A tensão arterial, frequência cardíaca e saturação transcutânea de oxigénio eram normais. Na
auscultação pulmonar eram audíveis roncos e crepitações bilateralmente. A auscultação cardíaca era normal. Não apresentava
outras alterações ao exame objectivo, nomeadamente dismorfias, icterícia ou organomegalias.
O estudo analítico inicial revelou anemia normocítica/normocrómica (hemoglobina - 7,1 g/dl; MCV – 75 fl; MCH – 27 pg),
associada a reticulocitopenia (3500 reticulócitos/mm3). O leucograma (11450 leucócitos/mm3) e a contagem de plaquetas
(348000 plaquetas/mm3) eram normais e não apresentava elevação da proteína C reactiva (18,7 mg/L). O exame virulógico de
secreções nasofaríngeas foi positivo para Vírus Sincicial Respiratório (VSR). A hemocultura foi negativa, bem como a pesquisa do vírus da gripe H1N1. A radiografia torácica mostrava um
infiltrado intersticial difuso, sem imagem de hipotransparência ou
alargamento do mediastino.
Na investigação subsequente, o esfregaço de sangue periférico não mostrava alterações e os parâmetros bioquímicos de
ferro eram normais (ferro sérico – 72 μg/dl; saturação de transferrina – 24%; ferritina – 64 ng/ml). Não apresentava marcadores
de hemólise ou de sofrimento medular (sem macrocitose; hemoglobina F normal) e a prova de Coombs directa era negativa. A
eritropoetina encontrava-se elevada (850 U/L, normal: 3,7-19.4
U/L), bem como a velocidade de sedimentação (VS), 86 mm/h.
A doente ficou apirética a partir do segundo dia de internamento, com melhoria progressiva da sintomatologia respiratória.
Apresentou-se sempre hemodinamicamente estável e com boa
adaptação à anemia. Considerou-se como diagnóstico mais provável a ETI, contudo decidiu alargar-se o estudo atendendo à VS
sustentadamente elevada. As serologias víricas para Parvovírus,
Vírus Epstein-Barr, Citomegalovirus, Vírus da Hepatite A, B e C
e Vírus da Imunodeficiência Humana foram negativas. O doseamento sérico de imunoglobulinas e complemento encontrava-se nos limites da normalidade e o estudo de auto-imunidade foi
negativo. Realizou uma ecografia abdominal que não evidenciou
alterações.
Assumiu-se o diagnóstico de ETI e adoptou-se uma atitude conservadora, com vigilância da evolução clínica e analítica.
Apresentou evolução favorável com normalização da VS, recuperação da produção eritrocitária, com emergência de reticulócitos a partir do sétimo dia, e resolução espontânea da anemia ao
fim de três semanas (Quadro 1).
DISCUSSÃO
Considerando o grupo etário, a ausência de antecedentes, a
apresentação clínica e, posteriormente, conhecida a evolução benigna, trata-se de um caso clássico de ETI. Contudo, no momento
da apresentação é importante o rigoroso diagnóstico diferencial
com outras causas de anemia. A abordagem inicial corresponde
ao estudo de uma anemia de causa desconhecida, com recurso à
história clínica, exame objectivo e um estudo analítico básico.
A presença de anemia associada a reticulocitopenia
caracteriza-a como anemia arregenerativa, cujo diagnóstico diferencial se apresenta no Quadro 2(1,2). Tendo em conta este diagnóstico diferencial, as causas que cursam com diminuição da
produção de eritropoetina ficaram desde logo excluídas. O mecanismo de substituição medular era improvável, pela benignidade do esfregaço de sangue periférico e pelo atingimento apenas
da linhagem rubra. A aplasia rubra congénita era também pouco
provável atendendo ao grupo etário, quadro clínico sub-agudo e
à ausência de marcadores de sofrimento medular. Esta anemia
enquadrava-se numa aplasia rubra adquirida e, considerando o
contexto clínico, na ETI.
Neste caso, realizou-se um estudo mais alargado pela
presença de uma VS sustentadamente elevada. Nos casos típicos de ETI, um estudo compatível que inclua hemograma com
contagem de reticulócitos, esfregaço de sangue periférico, marcadores de hemólise, parâmetros bioquímicos de ferro, eritropoetina e, eventualmente, serologias víricas, é suficiente para o
Quadro 1 – Evolução analítica durante o tempo de seguimento
Dia 1
Dia 4
Dia 7
Dia 9
Dia 15
Dia 22
Hb (g/dl)
7.1
7.3
8.2
9.5
9.5
10.9
MCV (fl)
75
73.8
75.7
76.9
82.3
81.4
Ret (%)
0,13
0.08
3,86
8.25
4,22
2,1
Ret
(mm3)
3500
2500
127700
299000
203600
82800
VS
(mm/h)
86
89
18
Quadro 2 – Diagnóstico diferencial da anemia arregenerativa
Insuficiência medular
Aplasia Rubra Pura Congénita
Anemia de Blackfan-Diamond
Síndrome Aase
Aplasia Rubra Pura Adquirida
Doença auto-imune (LES, AR, ARJ)
Infecção (PV, EBV, VIH, HHV6, VHA, VHB, VHC)
Fármacos (PHT, INH, VPA, PCA, CHL)
Eritroblastopenia Transitória da Infância
Substituição medular
Tumoral
Mielofibrose
Osteopetrose
Diminuição da produção de eritropoetina
Hipotiroidismo
Insuficiência renal crónica
Malnutrição
Anemia da doença crónica
ciclo de pediatria inter hospitalar do norte
paediatric inter-hospitalar meeting
111
NASCER E CRESCER
revista do hospital de crianças maria pia
ano 2012, vol XXI, n.º 2
diagnóstico(2,6). O mielograma e biopsia medular podem não ser
necessários nos casos característicos. Contudo, a sua realização deve ser fortemente considerada nos doentes em que subsistem dúvidas quanto ao diagnóstico definitivo, nomeadamente
na suspeita de aplasia rubra congénita ou anemia por substituição medular(1,2).
A doente apresentava também uma infecção respiratória
por VSR, que não parece ter relação causal com a ETI pela
ordem temporal das queixas. Contudo, terá contribuído para o
diagnóstico por motivar a procura de cuidados médicos. De outra
forma, a ETI poderia ter decorrido de forma sub-clínica e não ser
reconhecida.
A apresentação deste caso clínico pretendeu relembrar
esta entidade relativamente incomum e sub-diagnosticada, que
pode cursar com anemia grave mas, tipicamente, com evolução
benigna e auto-limitada. O suporte transfusional raramente é necessário, não estando também indicada a corticoterapia(1,6). A ETI
deve ser sempre considerada nos casos de anemia normocítica/
normocrómica com reticulocitopenia em crianças previamente
saudáveis, sobretudo no grupo etário entre um e quatro anos. O
reconhecimento e melhor compreensão da história natural desta
doença podem evitar o recurso a procedimentos diagnósticos e
terapêuticos desnecessários.
TRANSIENT ERYTHROBLASTOPENIA OF CHILDHOOD:
“WAIT-AND-SEE” APPROACH
ABSTRACT
Introduction: Transient erythroblastopenia of childhood
(TEC) is an acquired, acute disorder, characterized by moderate
to severe anemia and reticulocytopenia, secondary to a temporary suppression of red blood cell production. The etiology of TEC
remains unknown, although an association with viral infections
has been proposed. It is self-resolving and careful observation is
the only medical support needed in most cases.
Case report: The authors describe the case of a three-yearold girl who was admitted with an upper respiratory tract infection
and TEC. Initial signs were anemia, with a 7.1 g/dl hemoglobin
112
ciclo de pediatria inter hospitalar do norte
paediatric inter-hospitalar meeting
level and reticulocytopenia, without another hematologic abnormality. Spontaneous recovery occurred after three weeks.
Conclusion: A better knowledge of this benign hematologic
disorder of childhood, distinguishing TEC from other causes of
non-regenerative anemia, can prevent unnecessary diagnostic
procedures and treatment.
Keywords: Anemia, aplastic anemia, transient erythroblastopenia of childhood.
Nascer e Crescer 2012; 21(2): 110-112
BIBLIOGRAFIA
1. Alter BP. Transient Erythroblastopenia of Childhood. In: Nathan DG, Orkin SH, Ginsburg D, Look AT. Nathan and Osky’s
Hematology of Infancy and Childhood. 6th edition. Philadelphia: WB Saunders; 2003: 328-331.
2. Bomgaars L. Anemia in children due to decreased red blood
cell production. In: UpToDate, Basow DS (Ed). UpToDate,
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3. Glader B. Acquired Pure Red Blood Cell Anemias. In: Kliegman RM, Behrman RE, Jenson H, Stanton B. Nelson Textbook of Pediatrics. 18th edition. Philadelphia: WB Saunders;
2007: 2007-2008.
4. Cherrick I, Karayalcin G, Lanzkowsky P. Transient erythroblastopenia of childhood. Prospective study of fifty patients.
Am J Pediatr Hematol Oncol 1994; 16:320-4.
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identical twins. Am J Dis Child 1981; 135:937-40.
6. Tordecilla C, Vega A, Tordecilla R. Eritroblastopenia Transitoria de la Infancia: Presentacion de Tres Casos Clínicos. Rev
Chil Pediatr 2009; 80:539-44.
CORRESPONDÊNCIA
Marco Pereira
E-mail: [email protected]
NASCER E CRESCER
revista do hospital de crianças maria pia
ano 2012, vol XXI, n.º 2
Caso estomatológico
José M. S. Amorim1
RASN, sexo masculino, de oito anos de idade foi enviado à
consulta externa de Estomatologia da Unidade Pediátrica Maria
Pia devido ao não aparecimento do dente definitivo incisivo superior esquerdo.
Ao exame objetivo apresenta o dente incisivo superior central direito e persistência do incisivo superior decíduo central esquerdo.
Boa higiene oral e cáries nos molares decíduos.
Realizou ortopantomografia (OPG) (Figura 1) que revelou
a presença de um mesiodens incluso e de um supranumerário
entre o incisivo central definitivo superior esquerdo e o respectivo decíduo.
Face ao descrito:
Qual o seu diagnóstico?
Qual a sua atitude?
Figura 1
__________
1
Serviço de Estomatologia Hospital Maria Pia / CH Porto
caso estomatológico
oral pathology case
113
NASCER E CRESCER
revista do hospital de crianças maria pia
ano 2012, vol XXI, n.º 2
COMENTÁRIOS
A situação clínica acima exposta é semelhante a outras já
aqui observadas e referenciadas. Trata-se da não erupção de dentes definitivos devido à existência de dentes supranumerários.
Neste caso existem dois dentes supranumerários, um dos
quais mesiodens incluso.
O mesiodens é o dente supranumerário mais comum na
arcada dentária, situado na linha média da maxila, entre os incisivos centrais superiores.
A etiologia dos dentes inclusos e supranumerários bem
como a sua incidência e as repercussões sobre a oclusão foram
abordados no número anterior da Revista Nascer e Crescer.
ABSTRACT
An eight year-old boy was referred to the Department of
Stomatology due to the absence of the permanent left central
incisor.
A panoramic radiography revealed the presence of an impacted mesiodens and a supernumerary tooth in the position of
the maxillary central incisor between the primary and the deciduous.
Keywords: Panoramic radiography, supernumerary tooth,
impacted mesiodens.
Quando um dente definitivo não faz a sua aparição na arcada dentária no tempo devido é de suspeitar que o dente não
existe – agenesia dentária –, ou está incluso, havendo para a
inclusão dentária múltiplas causas.
O diagnóstico de dente supranumerário e/ou incluso é feito
com a realização de uma ortopantomografia, sendo este o exame a realizar para se estabelecer o diagnóstico em definitivo e se
planear o respetivo tratamento.
O tratamento passa pela exérese dos dentes supranumerários e aguardar a erupção do dente definitivo.
Nascer e Crescer 2012; 21(2): 113-114
114
caso estomatológico
oral pathology case
BIBLIOGRAFIA
1. Leache EB. Odontopediatria. Barcelona. Masson 2003; 60-8.
2. Regezi J, Sciubba J, Pogrel M. Atlas of Oral and Maxillofacial
Pathology. Philadelphia: Saunders, 2000: 147.
NASCER E CRESCER
revista do hospital de crianças maria pia
ano 2012, vol XXI, n.º 2
Caso radiológico
João Miguel Nascimento1, Lurdes Morais1, Filipe Macedo2
Criança de 4 anos e 6 meses internada por segundo episódio de anemia grave (Hb – 5,3 g/dl) microcítica e hipocrómica,
tendo o primeiro episódio ocorrido aos 4 anos.
Pela análise dos histogramas foi possível concluir a existência de um eritropoiese ferripriva de instalação recente.
O estudo efectuado que incluiu laparotomia exploradora por
lesão suspeita do íleon terminal identificada em exame de videocápsula foi inconclusivo.
Regime alimentar adequado. Sem história familiar de anemia, icterícia ou litíase vesicular.
Pelo contexto de febre com 12 horas de evolução e episódio
único de tosse com expectoração hemoptóica, realiza radiografia
torácica no serviço de urgência realiza radiografia de tórax no
serviço de urgência (indisponível). Efectuou TAC torácica para
esclarecimento imagiológico (Figura 1).
Figura 1
__________
1
2
S. Pediatria, CH Porto
Especialista em Radiodiagnóstico – SMIC, Porto
caso radiológico
radiological case
115
NASCER E CRESCER
revista do hospital de crianças maria pia
ano 2012, vol XXI, n.º 2
Qual o seu diagnóstico?
ACHADOS
Observa-se um quadro de opacidades alveolares bilaterais
e difusas, relativamente mal definidas, com componente de consolidação e de opacidades em vidro despolido.
DIAGNÓSTICO
A conjugação dos aspectos clínicos e imagiológicos é compatível com hemorragia alveolar difusa, no contexto de hemossiderose pulmonar ideopática. O lavado bronco-alveolar revelou
macrófagos alveolares com hemossiderina. O estudo imunológico e os exames culturais foram negativos.
DISCUSSÃO
A hemossiderose pulmonar ideopática é um doença rara,
de etiologia desconhecida, caracterizada por hemorragia intera-alveolar difusa.
Ocorre frequentemente com episódios recorrentes de queixas respiratórias, com tosse,pieira, e dispneia e anemia ferripriva. Pode apresentar-se sob a forma de hemoptises.
IMAGIOLOGIA
1 – Radiografia de tórax
É o primeiro exame. No caso de hemorragia aguda,
observam-se opacidades parenquimatosas mal definidas, com
áreas de consolidação e em vidro despolido, bilaterais e difusas, semelhantes a edema pulmonar(1). A história inicial é de
recuperação após cada episódio, mas com as recorrências vai-se depositando hemossiderina nos septos pulmonares com
desenvolvimento de um padrão mais crónico de tipo reticulo-
116
caso radiológico
radiological case
-nodular(2).
2 – TC do tórax
Os achados são semelhantes aos da radiografia, embora
com informação muito mais detalhada e completa, nomeadamente no que respeita ao diagnóstico diferencial.
3 – Ressonância magnética do tórax
Pode ser útil devido à sua capacidade de demonstrar a presença de sangue e hemossiderina nas opacidades pulmonares.
ABSTRACT
We present a case of a four year-old child with a second
episode of iron deficiency anaemia. Following fever, cough and
hemoptysis a chest X-ray and chest CT were performed. Bilateral
and patchy areas of ground glass and consolidation were noted
in the setting of intrapulmonary hemorrhage. The final diagnosis
was idiopathic pulmonary hemosiderosis
Keywords: Intrapulmonary hemorrhage, idiopathic pulmonary hemosiderosis.
Nascer e Crescer 2012; 21(1): 115-116
BIBLIOGRAFIA
1. Kirks DR. Practical Pediatric Imaging: diagnostic radiology of
infants and children. 3rd Ed. Lippincott-Raven publishers, Philadelphia 1998; 771-2.
2. Baert AL, Sartor K. Emergency Pediatric Radiology. Springer-Verlag Berlin Heidelberg New York 2002; 98.
NASCER E CRESCER
revista do hospital de crianças maria pia
ano 2012, vol XXI, n.º 2
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Intravenous Immunoglobulin for prevention of sepsis in preterm and low
birth weight infants. Pediatr Infect Dis 1986; 5:622-65.
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c) Livros: Nome(s) e iniciais do(s) autor(es). Título do livro. Número da edição. Cidade e nome da casa editora, ano de publicação e número de
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118
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given in references to (a) journals, (b) chapters of books by other authors, or (c)
books written or edited by the same author:
a) Journals: Names of all authors (except if there are more than six, in which
case the first three are listed followed by “et al.”), the title of the article,
the name of the journal (using the abbreviations in Index Medicus), year,
volume and pages. Ex: Haque KN, Zaidi MH SK,et al. Intravenous Immunoglobulin for prevention of sepsis in preterm and low birth weight infants.
Pediatr Infect Dis 1986; 5:622-65
b) Chapters of books: Name(s) and initials of the author(s) of the chapter or
contribution cited. Title and number of the chapter or contribution. Name
and initials of the medical editors, title of book, city and name of publisher, year of publication, first and last page of the chapter. Ex: Phillips
SJ, Whisnant JP. Hypertension and stroke. In: Laragh JH, Brenner BM,
editors. Hypertension: pathophysiology, diagnosis, and management. 2nd
ed. New York: Raven Press; 1995. p. 465-78.
c) Books: Name(s) and initials of the author(s). Title of the book. City and
name of publisher, year of publication, page. Ex: Berne E. Principles of
Group Treatment. New York: Oxford University Press, 1966:26.
Tables and Figures: All illustrations should be in digital format of high
quality. Each table and figure should be numbered in sequence, in the order in
which they are referenced in the text. They should each have their own page
and bear an explanatory title and caption when necessary. All abbreviations and
symbols need a caption. If the illustration has appeared in or has been adapted
from copyrighted material, include full credit to the original source in the legend
and provide an authorization if necessary. Any patient photograph or complementary exam should have patients’ identities obscured and publication should
have been authorized by the patient or legal guardian.
The total number of figures or tables must not exceed eight for original
articles and five for case reports. Figures or tables in colour, or those in excess
of the specified numbers, will be published at the authors’ expense in the paper
version
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be clearly and completely identified in an Acknowledgment section of the manuscript.
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Modifications and revisions: If the paper is accepted subject to modifications, these must be submitted within fifteen days of notification. Proof copies
will be sent to the authors in electronic form together with an indication of the
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Failure to comply this deadline will mean that the authors’ revisions may not be
accepted, any further revisions being carried out by the Journal’s staff.
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