Musharraf renuncia no Paquistão

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Musharraf renuncia no Paquistão
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TERÇA-FEIRA, 19 DE AGOSTO DE 2008
O ESTADO DE S.PAULO
Geórgia critica lentidão
de retirada russa
INTERNACIONAL
EUA acusam Moscou de instalar
plataformas de lançamento de
mísseis na Ossétia do Sul q PÁG.15
ÁSIA
Musharraf renuncia no Paquistão
Isolado internamente e sem apoio do maior aliado externo, os EUA, presidente sai para evitar processo de impeachment
EMILIO MORENATTI/AP
Jogo duplo do
presidente
pode ter sido
seu erro fatal
Jane Perlez
THE NEW YORK TIMES
ISLAMABAD
ADEUS – Pervez Musharraf deixa o palácio presidencial em Islamabad após renunciar: ‘Não importa se saio ganhando ou perdendo; a nação paquistanesa certamente perderá’
PROTAGONISTAS DA QUEDA
+ISLAMABAD
● 7/10/1998 – O premiê Na-
waz Sharif nomeia Musharraf
para a chefia do Exército
● 12/10/1999 – Musharraf depõe Sharif em um golpe de Estado e assume o poder
● 11/09/2001 – A Al-Qaeda
ataca os EUA. Musharraf promete apoio aos EUA em sua
luta contra o terror, enfurecendo os radicais islâmicos
REUTERS–24/10/2004
REUTERS–7/8/2008
REUTERS–7/8/2008
Após nove anos no poder, Pervez Musharraf renunciou ontem à presidência do Paquistão
para evitar um processo de impeachmentorquestradonoParlamentoporumacoalizãoopositora.
“Não importa se eu saio ganhando ou perdendo. A nação
paquistanesa certamente perderá”, disse Musharraf durante um discurso de uma hora,
transmitido pela TV, no qual
anunciou a renúncia. “A honra
e a dignidade do país serão afetadas.”
A saída de Musharraf, um general da reserva de 65 anos, já
era esperada. Ele vinha enfrentando, há meses, pressão para
deixar o cargo. Na semana retrasada, uma coalizão liderada
pelo ex-premiê Nawaz Sharif –
deposto num golpe militar comandado pelo próprio Musharraf em 1999 – e por Asif Ali Zardari, viúvo da ex-premiê Benazir Bhutto, deu início a um processo de impeachment contra o
ex-presidente que seria votado
nos próximos dias pelo Parlamento.
No pedido, os opositores alegamqueoex-presidentemergulhou o país numa crise política e
econômica sem precedentes,
além de ter violado a Constituição. No ano passado, Musharraf destituiu dezenas de juízes
da Suprema Corte (incluindo
seu presidente, Iftikhar Chaudhry) e depois decretou estado
de emergência, provocando
uma onda de protestos.
Sua situação política começou a se deteriorar em novembro, quando, sob pressão, abriu
mão do comando do Exército
(que acumulava com a chefia de
Estado), tornando-se um presidente civil.
Emfevereiro, sofreumais um
golpecomaderrotadeseuspartidários nas eleições legislativas. Sem maioria no Parlamento e sem apoio do Exército – que
passouanãointerferirnaspressões por sua renúncia –,
Musharraf perdeu as únicas garantias que teria para sobrevi-
CRONOLOGIA
● Nawaz Sharif: Ex-premiê, depos-
● Asif Zardari: Após o assassinato
● Iftikhar Chaudhry: Demissão do
to por Musharraf num golpe em
1999, articulou frente política pelo
impeachment do general
de sua mulher, Benazir Bhutto,
Zardari assumiu a liderança do
PPP, principal partido da oposição
presidente da Suprema Corte, em
2007, abriu caminho para protestos contra Musharraf
ver ao impeachment. Outra alternativaseriadissolveroParlamento, opção arriscada que ele
preferiu não adotar.
Além de ter ficado isolado internamente, Musharraf vinha
perdendoapoio de seu principal
aliado externo, os EUA – fruto
do fracasso do líder paquistanês no combate ao terrorismo
islâmico. Desde que o processo
de impeachment veio à tona, a
Casa Branca não o respaldou,
alegando que essa era uma
“questãointerna”doPaquistão.
FUTURO INCERTO
Ainda não há definição sobre
quem ocupará a presidência. O
presidente do Senado, MohammedmianSoomro, ficainterinamente no cargo até que o Parlamento escolha um novo presidente – o que deve ocorrer entre 30 e 60 dias.
Há especulações de que Sharif e Zardari, os líderes da coalizão opositora, almejam à presidência. Os dois, que comemoraram a saída de Musharraf, reuniram-se ontem em Islamabad
para discutir sobre os passos
que deveriam tomar, mas não
chegaram a um acordo e se reunirão novamente hoje.
Zardari disse que era um dia
histórico para o Paquistão porque o povo poderia agora se ver
livre da ditadura. “A democracia é a melhor vingança”, disse
o viúvo de Benazir Bhutto – a
ex-premiênegociavaumaaliança com Musharraf pouco antes
de ser assassinada em 27 de dezembro, num atentado suicida
atribuído a grupos ligados à AlQaeda.
Especialistas consultados
pelo Estado concordam com
Zardari no que diz respeito à vitória da democracia, mas alertam para vários empecilhos.
que o ex-presidente seja julgado, já que esse seria o único caminhopara estabelecerademocracia. Já Zardari e seus partidários acreditam que a decisão
cabe ao Parlamento.
ONDE FICA
N
ÁREAS
TRIBAIS
AFEGANISTÃO
Islamabad
PAQUISTÃO
ÍNDIA
MAR DA
ARÁBIA
Área
População
PIB
796.095 km²
165 milhões
US$ 143,8 bilhões
(2007)
PIB per capita
US$ 849 (2007)
Crescimento
8,7% (2007)
Forças Armadas 619 mil
Ogivas nucleares Entre 30 e 60
(estimativa)
INFOGRÁFICO/AE
“Apesar da renúncia de
Musharraf, ainda há vários riscos que podem levar o país de
volta à instabilidade”, afirmou
Simon Henderson, especialista
emÁsia do Washington Institute. “Zardari e Sharif brigam pelo poder no Paquistão; até que
resolvam essa disputa, o futuro
político do país é incerto.”
Segundointegrantesdacoalizão, o ex-presidente teria feito
um acordo para não ser processado pela Justiça comum e poder permanecer no país. Mas,
Musharrafnegouemseudiscurso ter negociado sua saída: “Não
queronadadeninguém.Nãopreciso disso. Deixo meu futuro nas
mãos da nação e do povo paquistanês.” Chaudhry Shujaat Hussain, líder do principal partido
pró-Musharraf, disse que o expresidente não deixará o país e
vai se mudar para uma fazenda
nos arredores de Islamabad.
O partido de Sharif defende
REFORMA
Para Daniel Markey, ex-conselheiro do Departamento de Estado dos EUA sobre políticas
no Sudeste Asiático, a questão
agoraése oslíderespaquistaneses conseguirão construir instituições democráticas sólidas a
longo prazo: “Ainda há muito
trabalho a ser feito antes que o
Paquistão de fato tome os rumos da democracia. Os partidospolíticosprecisamserreformados – e democratizar o modo
como selecionam seus líderes.”
Mark Schneider, vice-presidente do International Crisis
Group, acredita que a renúncia
representa uma vitória para os
governantes civis eleitos democraticamente em fevereiro. Para o especialista, “o próximo
presidentedeveagirmaisfirmemente em relação aos militantes extremistas, pois Musharraf era apoiado por líderes religiosos e creio que seu sucessor
não terá esse tipo de restrição.”
Emváriascidadesnopaís,paquistaneses saíram às ruas para comemorar a renúncia do
presidente. “É ótimo saber que
Musharrafcaiu”, disseMohammed Said, dono de uma loja em
Peshawar. “Ele tentou enganar
o país até mesmo em seu último
discurso, exaltando seus feitos
econômicos, enquanto a vida de
pessoas como nós se tornou um
verdadeiro inferno”, disse Said,
em referência aos problemas
econômicos que assolam o país,
como a inflação de 25% ao ano. ●
MARIANA DELLA BARBA,
COM AP E REUTERS
● 30/04/2002 – Musharraf
realiza referendo para obter
apoio a um novo mandato de
cinco anos
● 10/10/2002 – Eleições, con-
sideradas fraudulentas por observadores, instalam um Parlamento pró-Musharraf
● 14/12/2003 – Atentado
destrói ponte em Rawalpindi
antes da passagem do automóvel em que o presidente viajava. Dias depois, Musharraf sobrevive a um duplo atentado
com carros-bomba na mesma
estrada
● 30/12/2004 – Musharraf
recua em sua promessa de deixar a chefia do Exército, mas
ganha respaldo parlamentar
para ficar no poder até 2007
● 6/10/2007 – Parlamento
reelege Musharraf em votação
boicotada pelos partidos de
oposição
● 3/11/2007 – Musharraf declara estado de emergência,
suspendendo a Constituição e
demitindo juízes independentes quando a Suprema Corte se
preparava para decidir sobre a
legalidade de sua reeleição
● 28/11/2007 – Após uma sé-
ria de protestos, Musharraf deixa a chefia do Exército
● 15/12/2007 – Musharraf suspende o estado de emergência
● 27/12/2007 – Ex-premiê
Benazir Bhutto é morta em
atentado
● 18/02/2008 – Eleições par-
lamentares colocam partidos
de oposição no poder
● 8/08/2008 – Líderes da coalizão governista anunciam que
vão tentar obter o impeachment de Musharraf
● 18/08/2008 – Musharraf
anuncia sua renúncia
Homem de decisões freqüentemente impetuosas e soldado de
coração, Pervez Musharraf inverteu sua posição após o 11 de
Setembro e se juntou aos EUA,
tornando-se um dos aliadoschave de Washington na sua
campanha contra o terrorismo.
Foi uma jogada ousada que
reforçou o governo de George
W.Bush emsua guerracontra a
Al-Qaeda e o Taleban no Afeganistão e permitiu que os EUA
detivessem importantes membros da Al-Qaeda no Paquistão.
Mas a poderosa agência de espionagem paquistanesa jamais
rompeu os laços com o Taleban.
Noveanos mais tarde, o TalebanestácombatendoferozmenteosEUA noAfeganistão. Rejuvenescido,oTaleban agoracontrola virtualmente a região tribal paquistanesa,fronteira com
oAfeganistão,eestáabrindocaminho pelo restante do Paquistão, ameaçando a estabilidade
da potência nuclear, de 165 milhões de habitantes.
“Musharraf continuou a acobertar o Taleban, mas mesmo
assim conseguiu convencer os
EUA durante anos de que não
fazia jogo duplo”, disse Ahmed
Rashid, um especialista paquistanês em Taleban.
O feito foi executado com tal
maestria que Musharraf recebeu mais de US$ 10 bilhões em
ajuda militar americana para
seu Exército, além de ajuda secreta. Boa parte do dinheiro foi
realocado para oorçamento geral do Paquistão, mas o governo
Bush estava tão ansioso em
manter Musharraf como aliado
que decidiu não reclamar.
Musharraf deixou a chefia do
Exércitoemnovembro,passando o cargo para o general
Ashfaq Parvez Kayani, que se
manteve acima da disputa sobre a abertura do impeachment contra o presidente.
Depois de depor o primeiroministro Nawaz Sharif, em outubrode1999, Musharrafcomeçousuapresidênciacomoimenso apoio de um público cansado
de uma década de governo civil
fraco e corrupto. Em março de
2007, com a perspectiva de enfrentareleições,Musharrafdestituiu o chefe do Judiciário, Iftikhar Muhammad Chaudhry,
aparentemente temendo que o
juiz prejudicasse sua reeleição,
já que ele ainda acumulava a
chefia do Exército, algo proibido pela Constituição. Protestos
tomaramopaís,emumavibrante campanha anti-Musharraf.
IMPOPULAR
Em novembro, Musharraf decretou estado de emergência e
demitiu 60 juízes. Quando finalmenterevogouodecreto,emdezembro,eravistocomo um ditador impopular. E seus principais opositores políticos, BenazirBhuttoe NawazSharif,jáhaviam retornado ao Paquistão
para disputar as eleições.
Benazir foi assassinada em
27 de dezembro. O viúvo de Benazir, Asif Ali Zardari, assumiu
a chefia do Partido Popular do
Paquistão que foi o mais votado
nas eleições de fevereiro.
Ao final, segundo Rashid, o
fracasso de Musharraf em administrar seu jogo de manter os
americanos a seu lado e fechar
osolhosaosextremistas religiosos pode ter sido seu erro fatal,
e deixando o Paquistão numa
posição mais precária. ●