lindonéia - Estratégias da Arte numa Era de Catástrofes
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lindonéia - Estratégias da Arte numa Era de Catástrofes
LINDONÉIA #02 1 LINDONÉIA #02 Capa:Lygia Pape, Roda dos Prazeres, 1968 Roda dos Prazeres, de Lygia Pape, é um círculo de tigelas com líquidos coloridos para o público experimentar o “sabor” das cores. Com o conta-gotas pode-se provar o amarelo, o azul, o vermelho e os demais tons disponíveis. Da mesma geração artística e filiação estética que Lygia Clark e Helio Oiticica, Lygia Pape pertenceu, como eles, ao Grupo Frente (1953), núcleo do Concretismo no Rio de Janeiro. Ao longo dos anos cinqüenta, junto aos demais artistas deste grupo, amadureceu as divergências poéticas com os concretistas de São Paulo, até chegarem à dissidência Neoconcreta, formalizada em manifesto e numa exposição, em 1959. 2 EXPEDIENTE Revista Lindonéia #2 - AGOSTO de 2013 Grupo de Estudos Estratégias da Arte numa Era de Catástrofes Escola de Belas Artes-UFMG - Belo Horizonte/MG/Brasil Contatos: [email protected] Site: www.estrategiasarte.net.br Coordenação do Grupo: Profa. Dra. Maria Angélica Melendi (Piti) Editora deste número: Fabíola Tasca Tradução do texto Trabajar en Arte Contemporáneo (Curatoria Forense) e Revisão do texto Los exquisitos cuerpos de la miséria (Ivan Mejía R.): Adolfo Cifuentes Revisão do texto O rato que ruge (José Schneedorf): Alice Costa Projeto gráfico e diagramação: Melissa Rocha Consultoria editorial: Hélio Alvarenga Nunes COLABORADORES Untitled (Go-Go dancing Plattform), p. 5 [Felix Gonzalez Torres é um artista natural de Cuba e naturalizado norte americano, reconhecido por sua militância a favor dos direitos do homossexuais; falecido em 1996] Juliana Mafra e Samir Lopes [Inventário das ideias feitas, p. 9 ] são membros do Grupo Estratégias da Arte numa Era de Catástrofes. Juliana Mafra é artista, professora e doutoranda na EBA/UFMG. Samir Lopes é artista visual formado pela EBA/UFMG, professor de desenho e pintura. Jorge Menna Barreto [dexistir, p.15 ] é artista e pesquisador, doutor em Poéticas Visuais pela ECA/USP. Práticas artísticas e discursivas se mesclam em sua trajetória, seja enquanto artista, crítico, tradutor, educador ou professor. Atualmente é professor convidado no curso de Arte: Curadoria, História e Crítica na PUC-SP. Paulo Rocha [“Trabalhadores de Todo Mundo Descansem”: Pequenas considerações sobre a superação da Arte e do trabalho, p.16 ] é membro do Grupo Estratégias da Arte numa Era de Catástrofes. Graduado em filosofia pela UFMG. Integrante do coletivo [conjunto vazio]. Nota: Optamos por iniciar a revista com os nomes dos colaboradores, em detrimento do uso habitual da organização via Sumário. Nada nos parece mais coerente com a proposta desse número do que sermos guiados pela força de trabalho que edifica a revista. Os autores Felix Gonzalez-Torres, Mierle Laderman Ukeles e Brian Eno tem suas colaborações antecedidas pelos títulos de seus trabalhos, diferentemente dos outros autores, cujas entradas são por seus nomes. Essa foi a maneira de sinalizarmos que, nesses três casos, a colaboração constituiu-se pela via da apropriação do trabalho em detrimento da negociação com o autor. A colaboração de Jessé Souza participa ativamente deste número, embora não possa ser encontrada aqui. O editorial disponibiliza as informações sobre o local onde o texto pode ser encontrado. Tal manobra nos permitiu acolher o texto de Souza, assinalando sua singularidade frente aos outros textos da revista, e convidar o leitor ao exercício de certos deslocamentos. O número dois da Revista Lindonéia opta por não diagramar textos teóricos separadamente de obras visuais, como o fez nos dois números anteriores. Esta opção parece-nos pertinente com a intenção de problematizar a canônica divisão social do trabalho. Assim, assumimos, com Walter Benjamin [O autor como produtor], que a fronteira entre imagem e texto/ prática e teoria é aquela que urge ruir. Por isso, textos e imagens/ensaios e obras visuais são aqui afáveis vizinhos, exercendo uma convivência horizontal e salutar. Tales Bedeschi [Mesa de trabalho, p.21 ] é membro do Grupo Estratégias da Arte numa Era de Catástrofes. Graduado pela UFMG com habilitação em Gravura (2006) e em Licenciatura em Artes Visuais (2009). Professor de audiovisual do Centro Pedagógico da UFMG. Atua frente a coletivos e redes de artistas como o PIA (Programa de Interferência Ambiental) e Kaza Vazia – galeria de arte itinerante. Cláudia Zanatta [A difícil arte de vender antenas, p.22 ] é artista e professora do Departamento de Artes Visuais da Universidade Federal do Rio Grande do Sul. Desenvolve atualmente pesquisas voltadas à arte participativa. Touch Sanitation Performance, p.28 [Mierle Laderman Ukeles é uma artista norte americana conhecida principalmente por seus trabalhos de Crítica Institucional. Em 1969 escreveu um manifesto intitulado Arte de Manutenção que discute o status artístico de atividades laborais ordinárias como cozinhar, limpar, lavar, etc.] Frederico Canuto [E., p.29] é arquiteto e urbanista. Doutor em Poéticas da Modernidade e professor da Universidade Federal de São João Del Rei. Tem como campo de pesquisa a questão do comum na contemporaneidade a partir de diversos campos disciplinares envolvendo o espaço, desde a arquitetura passando pela antropologia, arte, geografia, literatura e filosofia. Ariel Ferreira [Oferenda, p. 38 ] é membro do Grupo Estratégias da Arte numa Era de Catástrofes. Mestre em Artes pela EBA/UFMG e doutorando na mesma instituição. Participou de várias exposições, entre elas: Bolsa Pampulha 2008; Rumos Itaú Cultural, Trilhas do Desejo 2009-2009. Se Correr, Se ficar – individual na Galeria de Arte da CEMIG, 2004. Bárbara Ahouagi [Costura, p. 40] é membro do Grupo Estratégias da Arte numa Era de Catástrofes, bacharel em Gravura e licenciada em Artes pela Escola de Belas Artes da UFMG, mestranda em Artes Visuais pela mesma instituição. Atua como educadora no Curso de Figurino do NUFAC-MG, atuou como professora de Artes na Prefeitura de Betim e sua produção atual trafega entre a performance, fotografia, desenho e literatura. Fábio R. R. Belo [Estética da existência e psicanálise: da liberdade possível , p. 42] é professor adjunto de psicanálise na Universidade Federal de Minas Gerais. Ivan Mejía R. [Los exquisitos cuerpos de la miseria, p. 47] é doutor em História da Arte pela Universidad Nacional Autónoma de México. Atualmente realiza pós-doutorado na Universidad Autónoma de Barcelona. Jessé Souza [O que é a “dignidade humana”? Acerca da importância dos Direitos Sociais em uma Sociedade Desigual, p. 127-158] é professor titular de sociologia da UFJF, Diretor do CEPEDES (centro de estudos sobre a desigualdade da UFJF) e autor de diversos livros sobre teoria social e classes sociais no Brasil contemporâneo. Fabíola Tasca [em obra project, p.5 3 ] é membro do Grupo Estratégias da Arte numa Era de Catástrofes. Artista e pesquisadora. Doutora em Artes pela EBA/UFMG e professora na Escola Guignard/UEMG. Antonio Marcos Pereira [Sobre ser um crítico , p. 57] é doutor em Letras pela Universidade Federal de Minas Gerais, professor da Universidade Federal da Bahia e escreve crítica literária para O Globo. Melissa Rocha [Acertando os ponteiros, p. 66 e Trabalhando em estrelas p. 63-65] é membro do Grupo Estratégias da Arte numa Era de Catástrofes, bolsista de apotio técnico da FAPEMIG, mestre pela EBA-UFMG, artista e pesquisadora. Jairo dos Santos Pereira [p. 71-76] é membro do Grupo Estratégias da Arte numa Era de Catástrofes e graduado em Artes Visuais pela EBA/UFMG. 4 Curas milagrosas e a canonização de Basquiat, p. 77 [ Brian Eno é um músico, compositor, produtor musical, cantor e artista visual britânico, um dos maiores responsáveis pelo desenvolvimento da ambient music] Thislandyourland [Área a construir, p. 82-84 ] é formado pelas artistas Ines Linke e Louise Ganz e desenvolve trabalhos em diversas mídias que relacionam arte, natureza e cidade. Inês Linke é membro do Grupo Estratégias da Arte numa Era de Catástrofes. Artista plástica e cenógrafa. Graduada pela Universidade de Iowa, mestre e doutora pela EBA/UFMG. Profa. Adjunta do DELAC/UFSJ. Membro do grupo de pesquisa A.T.A. e coordenadora do projeto de extensão Urbanidades: intervenções. Louise Ganz é artista visual, arquiteta, professora na Escola Guignard/UEMG e doutoranda na EBA/UFRJ. Curatoria Forense [Trabalhar em Arte Contemporânea, p. 85] é um grupo multidisciplinar de trabalho dedicado à arte contemporânea na América Latina. Conduz uma investigação de longo prazo, desenvolve atividades de maneira colaborativa junto a gestões autônomas e assessora instituições culturais. Foi criado no ano de 2005 e atualmente é coordenado por Jorge Sepúlveda T. (curador independente e crítico de arte) e Ilze Petroni (investigadora de arte contemporânea). www.curatoriaforense.net Cayo Honorato [Imagens digitais como dispositivos de mediação, p. 89] é doutor em Educação/ Filosofia e Educação, pela FE/USP; mestre em Educação e bacharel em Artes Visuais pela UFG. José Schneedorf [O rato que ruge, p. 97] é membro do Grupo Estratégias da Arte numa Era de Catástrofes. Artista plástico, pesquisador e professor da EBA/UFMG e da Escola Guignard/UEMG. Mestre em Artes Visuais pela EBA/UFMG. Maria Angélica Melendi [Trabalhar Cansa, p. 114 ] é coordenadora do Grupo Estratégias da Arte numa Era de Catástrofes. Doutora em Literatura Comparada pela Faculdade de Letras da UFMG, professora associada do Departamento de Artes Plásticas da EBA/UFMG e pesquisadora do CNPq. Pesquisa as relações entre memória, política e artes visuais na América Latina, assunto sobre o qual tem publicado artigos em livros, jornais e revistas acadêmicas nacionais e internacionais. LINDONÉIA #02 Felix Gonzalez Torres Untitled (Go-Go Dancing Platform), 1991 madeira, lâmpadas, tinta acrílica e go go dancer em traje de banho prateado, tênis, e Walkman. 5 EDITORIAL por Fabíola Tasca O número dois da Revista Lindonéia chega atravessado por um tema, duas palavrinhas conectadas por uma partícula que sugere adição, insinuando, assim, a jurisdição de territórios distintos. Arte e Trabalho é o eixo problema desta edição, horizonte de expectativa, plataforma de discussão. Binômio complexo e instigante que nos convida a apreender certos desenhos da modernidade, constitui aqui baliza incontornável (eis a aposta) em relação às feições da contemporaneidade. Vizinha da racionalização do trabalho, a Arte Moderna interpelou as relações de produção capitalistas através de táticas como negação, crítica, encenação, etc. Conceber um trabalho que não seja entendido como condenação ou castigo (concepção não exclusiva da tradição judaico cristã) é algo que se apóia na existência da arte, uma vez que ela é historicamente compreendida enquanto uma forma paradigmática de trabalho não alienado, postulação, inclusive, de um não trabalho. 6 Como situar o fazer do artista hoje em relação a essa discussão tão espessa que une e separa arte e trabalho? Uma discussão cujas balizas não são mais aquelas que circunscreveram o território da arte moderna. Quais as especificidades do panorama institucional da arte na contemporaneidade e o modo como redescreve o campo de manobras no qual podem se dar articulações entre esses termos? Como artistas, obras e agentes do mundo da arte problematizam a produção artística atual em suas conexões com o mundo do trabalho? Os autores aqui reunidos responderam tanto sublinhando os vetores constitutivos do eixo problema, como prolongando suas linhas de força e de fuga rumo ao esgarçamento e ao desvio, certamente bem-vindos no contexto de uma publicação que pretende investir em diagramações contemporâneas. Diagramar esses vetores, seguir e perseguir as direções que insinuam implica manejar a convivência e o confronto de inúmeras possibilidades. Frederico Canuto responde à proposição de Lindonéia #2 apostando na multiplicidade do “e” em detrimento do essencialismo filosófico existencialista do “é”. Uma fórmula inclusiva, rítmica e múltipla desenha o percurso do texto “E.”. Trata-se da celebração de uma síntese de raciocínio que encoraja o acolhimento da pertinência do texto de Cayo Honorato, “Imagens digitais como dispositivos de mediação”, texto que se detém num esforço de análise acerca de um dos equipamentos culturais belorizontinos, o Memorial Minas Vale, abordando, nesse processo, questões que tem implicações incontornáveis para o trabalho dos mediadores, agentes proeminentes da cena artística e cultural na atualidade. Em “A difícil arte de vender antenas”, Cláudia Zanatta problematiza a relação entre arte e trabalho a partir de Jacques Rancière e Lilian Minsky, indagando sobre a potência da arte em intervir no desenho do comum. A crença nessa potência parece ser um ingrediente fundamental do trabalho antológico de Mierle Laderman Ukeles, ao qual aqui prestamos homenagem com a inclusão de uma imagem de “Touch Sanitation Performance”, ação na qual a artista incumbe-se do ritual de cumprimentar cada um dos funcionários do departamento de saneamento da cidade de Nova Iorque, algo em torno de 8.500 pessoas. As fotografias de Jairo dos Santos Pereira também nos dão a ver trabalhadores empenhados em tarefas de manutenção diária, são funcionários da Universidade Federal de Minas Gerais que, ali, parecem habitar o verbo intransitivo. Inês Linke e Louise Ganz (Thislandyourland) participam desta edição com imagens de “Área a construir”, temporária edificação que teve lugar no evento Noite Branca, em setembro de 2012, no Parque Municipal de Belo Horizonte. Em “Mesa de trabalho” Tales Bedeschi nos apresenta fragmentos de imagens de suas gravuras, nas quais insinua-se um labor específico. Ivan Mejían, no texto “Los exquisitos cuerpos de la miseria”, discute o que compreende como uma energía não regulada, não disciplinada e não mensurável: o caráter refratário dos “corpos/sujeitos em condição de pobreza”, instâncias que resistem à apropriação discursiva de elaborações teóricas e artísticas que antes os idealizam e ficcionalizam na tentativa de os compreender e representar. Em “Estética da existência e psicanálise: da liberdade possível”, Fábio Belo convoca o personagem Bartleby como aliado na evocação de uma paisagem imaginária que avistamos com a sugestiva expressão “liberdade possível”. O mini conto de Bárbara Ahouaghi, “costura”, nos acena com a presença iminente dessa paisagem: “soltou seu próprio fio e seguiu”. É ainda essa a paisagem que avistamos a partir do texto de Juliana Mafra e Samir Lopes, “Inventário das Ideias Feitas”? Antonio Marcos Pereira, no texto “Sobre ser um crítico”, discute a prática artística/crítica a partir de fronteiras internas e externas, um dentro e um fora. Faz, assim, do manejo desses limites impostos pelo discurso a potência da questão da alimentação recíproca entre enquadramento e experiência, questão corroborada pelo texto de Brian Eno que nos oferece em tradução: “Curas Milagrosas e a Canonização de Basquiat”. O texto de Eno é partícipe da multiplicidade e da inclusão celebradas pela fórmula “e”, recolocando a questão do trabalho artístico sob bases essencialmente (ops!) discursivas. Nessas bases, Jorge Menna Barreto comparece com “dexistir”, tapete, capacho, objeto-ponte para certas experiências espaciais. Em “Oferenda”, Ariel Ferreira conecta a noção de trabalho físico com o aspecto espiritual, introduzindo o termo “improdutivo” como indexador de especificidades relacionais entre arte e trabalho. Melissa Rocha, em “Acertando os ponteiros” focaliza trabalhos artísticos que incidem sobre a representação do elemento “tempo”, lançando mão de mecanismos de desaceleração como táticas de oposição à noção de tempo produtivo. Ilze Petroni e Jorge Sepúlveda (Curatoria Forense) participam com um texto em tom de manifesto, no qual apontam para a relevância atual de se compreender a origem histórica, política e ideológica da separação da esfera da arte daquela do trabalho. O texto de Petroni e Sepúlveda dirige-se à auto-consciência dos autores enquanto produtores, no sentido mesmo da advertência benjaminiana. O texto de Jessé Souza, “O que é a ‘dignidade humana’? Acerca da importância dos Direitos Sociais em uma Sociedade Desigual”, embora não possa ser encontrado nesta revista, dela é parte integrante. Publicado no livro Direitos sociais em debate, organizado por Cláudia Toledo, via editora da FGV/RJ e editora Campus, em 2012, o texto de Souza não percorre as sendas da arte mantendo-se nos trilhos da ciência e, por isso mesmo, pode nos oferecer elucidativos pontos de contato, na medida em que reconstrói, minuciosamente, gêneses do mundo moderno, residência da arte e do trabalho. O texto de Paulo Rocha,“‘Trabalhadores de Todo Mundo Descansem’: Pequenas considerações sobre a superação da Arte e do trabalho”, sinaliza a proeminência do estético no “novo espírito do capitalismo” e nos recorda a advertência de índole vanguardista: “não é possível mudar a vida sem mudar o mundo”. José Schneedorf, “O rato que ruge”, lança mão da produção do artista plástico contemporâneo Banksy – seus ratos em estêncil e grafite – como mote para rever o ideário sedimentado do artista enquanto trabalhador social. Se o número dois de Lindonéia abre seu expediente com um inventário de ideias feitas, vem encerrá-lo com um ensaio visual no qual encontramos uma listagem de verbos. Trata-se de uma anotação de trabalho que Richard Serra faz para si mesmo, em 1967-68, na qual o artista parece destilar sua atividade de ações físicas elementares, tais como: cortar, dobrar, rolar, vincar, torcer, etc. A explicitação destes procedimentos linguísticos corrobora a intenção de enfatizar o momento procedimental em detrimento de um momento intuitivo. As imagens que compõem o ensaio visual de Maria Angélica Melendi nos endereçam para esse momento no qual cada um dos artistas ali reunidos está engajado num esforço singular de formalização e enfrentamento. O número dois de Lindonéia dá ensejo ao lançamento da segunda edição de em obra project [2012 – 2016]. Neste projeto, venho me detendo nas tarefas de formalizar intuições, equacionar dúvidas e visitar uma curiosa motivação. O êxito que creio alcançar no exercício de tais atividades conecta-se delicadamente ao trabalho de cada um dos autores aqui reunidos e aos quais venho, em nome da Revista Lindonéia, agradecer. Fabíola Tasca Belo Horizonte, inverno de 2013. LINDONÉIA #02 INVENTÁRIO DAS IDÉIAS FEITAS PREFÁCIO Juliana Mafra e Samir Lopes O Inventário das Ideias Feitas é uma lista de ideias que já foram desenvolvidas em trabalhos de Arte Contemporânea, brasileiros ou não. Nele não há nenhuma informação sobre cada ideia e elas não se encontram sob alguma classificação. Elas são listadas uma após a outra, como num grande índice. Como anotou Barthes em seu pequeno livro sobre si mesmo: O índice de um texto não é somente um instrumento de referência; ele próprio é um texto, um segundo texto que constitui o relevo (resto e aspereza) do primeiro: o que há de delirante (de interrompido) na razão das frases1. O Inventário é assim. É apresentado o “resto” e a “aspereza” de um texto que não está ali, naquela lista. O “primeiro texto”, o que dá origem ao Inventário, não está escrito. Ele é cada trabalho de arte que o inspira. Em empalhar um animal, por exemplo, estaria contido um “primeiro texto”, o porco que Nelson Leirner enviou ao Salão em Brasília, em 1967; em construir lugares não repressivos para descanso, estão os Ninhos e também as Cosmococas de 1. BARTHES, Roland. Roland Barthes por Roland Barthes. Tradução Leyla Perrone-Moisés. São Paulo: Estação Liberdade, 2003. p. 108. 9 www.estrategiasdaarte.net.br Hélio Oiticica; assim como em Embrulhar, o trabalho de Christo e Jeanne-Claude. Mas não é sempre assim. Algumas vezes, essas ideias também foram inventadas. Foi numa conversa sobre o Dicionário das Idéias feitas, de Flaubert, que surgiu o desejo de fazermos como ele. Seu dicionário não chegou a ser concretizado, pois Flaubert faleceu antes, inclusive, de terminar o último capítulo de Bouvard e Pécuchet. Um seria a continuação do outro. No segundo livro, os dois personagens, depois de viverem todo tipo de experiência, terem estudado mais de 1500 livros sobre agricultura, história, química, física, teologia, filosofia, ginástica, hipnotismo, literatura, gramática, política, pedagogia... e só acumulado fracassos, voltariam a ser copistas. Nesse volume que não chegou a existir, nenhuma frase seria de autoria de Flaubert, tudo seria copiado. Entre os arquivos do escritor foram encontradas algumas pastas que continham listas que Flaubert organizava para a escrita de Bouvard e Pécuchet e também para o Dicionário das Ideias Feitas. Nelas podemos observar um agudo senso crítico sobre a sociedade que o rodeia. Flaubert parecia irritado com o que via e ouvia, as vezes até mesmo mal humorado. Sua vingança seria exaltar as convenções de sua época, levando-nos a rir de toda a mediocridade que ele observava. Numa dessas pastas se encontravam listados de A à Z, sob o título O Catálogo das Opiniões Chiques, assuntos ligados às opiniões que se deveriam ter sobre eles. Assim, para Ateu, se relacionava a seguinte opinião: um povo ateu não saberia subsistir; e, ainda na letra A, para Artistas encontramos: – todos farsantes. – Elogiar-lhes o desprendimento. – Espantar-se de que se vistam como todo mundo. – Ganham somas alucinantes, mas jogam tudo pela janela. – São sempre convidados para cear. – A mulher artista é sempre dissoluta. 10 Em outra pasta denominada Catálogo das Ideias Convencionais, foram encontradas as anotações: Defesa da escravidão, Escarnecer dos Sábios e, entre outros, Comentar a respeito de um grande homem: “Não é o que dizem!” Todos os grandes homens (não são o que dizem). Aliás, não há grandes homens. A terceira pasta continha os Trechos Extraídos de Autores Célebres, nos quais Flaubert reunia as parvoíces encontradas nos grandes mestres, que seriam copiadas por seus dois patetas. “Furiosos por não haverem encontrado na ciência a certeza que procuravam, vingar-se-iam sublinhando as tolices que, para o comum dos homens, tomam o lugar da ciência em sociedade.”2 Enfim, listas, listas e mais listas... Lembro-me das de Sei Shonagon3 : lista das “coisas desagradáveis”, lista das “coisas que fazem o coração bater mais forte”, lista das “coisas difíceis de dizer” ou da linda “lista das coisas elegantes”… Adoro listas! Gostaria de lembrar também a importância dada às ideias, por Marcel Duchamp. A Fonte, seu ready-made mais conhecido, se trata de um urinol fabricado pela indústria, virado de cabeça para baixo, assinado e datado por Duchamp, sob o pseudônimo R. Mutt, em 1917. Com este trabalho, o artista valorizava a ideia, em detrimento da habilidade manual ou plástica. A Fonte e outros objetos já feitos e que Duchamp transformou em arte, influenciaram toda a arte feita desde essa época. Mesmo quando se valorizou mais a expressão que a ideia, como no Expressionismo Abstrato, os críticos se posicionavam sobre essa possível influência. Com evidente parentesco com essas ideias de Duchamp, Sol LeWitt, escreveu os Os Parágrafos Sobre a Arte Conceitual, em 1967 e as Sentenças Sobre Arte Conceitual, em 1969, ambos definindo a Arte Conceitual, que é implementada pelas ideias. Para Sol LeWitt, “seja qual for a forma que possua no final, ele [o trabalho] deve começar com uma ideia4” . Foi tentando, por intuição, descobrir a ideia ou as ideias de cada trabalho de arte contemporânea 2. FLAUBERT, Gustave. Bouvard e Pécuchet. Tradução Galeão Coutinho e Augusto Meyer. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 1981. (Col. Grandes Romances). p. 310. 3. Filme: O Livro de Cabeceira (The Pillow Book). Peter Greenaway. 1996 4. LEWITT apud FERREIRA, Glória (org.). Escritos de artistas. Anos 60/70. Tradução Pedro Sussekind. Rio de Janeiro: Jorge Zahar. 2006. p.177 visto, que foi se formando esta nossa lista, O Inventário das Ideias Feitas. Para LeWitt, “as idéias não precisam ser complexas. Muitas idéias bem-sucedidas são ridiculamente simples (...) parecem inevitáveis.” Por fim, gostaria ainda de dizer que este inventário não está terminado, as ideias são infinitas, assim como os trabalhos já realizados, esta lista sempre será incompleta. 12 de outubro de 2011 Juliana Inventário das Ideias Feitas Juliana Mafra e Samir Lucas Empalhar um animal Homenagear Construir um altar para seu artista preferido Queimar e registrar Colecionar objetos que contenham a imagem de uma importante obra de arte Revirar e organizar arquivos públicos Utilizar cigarros ou embalagens de Criar uma máscara e usá-la em alguma situação Profanar imagens sacras ou sagradas Preparar uma receita utilizando todos os ingredientes de uma lista de compras encontrada num supermercado Enterrar objetos Fazer títulos que sejam trocadilhos Construir um objeto baseado em outro já existente usando um material diferente do original Fazer dobraduras com dinheiro Colecionar águas sujas Roubar Construir uma fonte Associar objetos Fotografar-se em cenas eróticas Utilizar uma ou mais cadeiras Fabricar bebidas Ressignificar obras antigas Fotografar objetos ao vento Construir um monumento a alguma pessoa de que você goste Colecionar objetos feitos durante conversas em bares e restaurantes Imprimir seu corpo na terra Desvendar o segredo de antigos mestres Refazer fotos conhecidas Registrar todos os dias alguma ação que você repita por muito tempo ao longo de sua vida Utilizar cabelo Partir objetos Representar uma escultura cantante Pendurar trabalho anônimo na parede de um museu Pintar a descrição de uma pintura Utilizar fósforos Fazer o espectador se ver através de um espelho Fazer escultura com pigmentos Repetir Fotografar idosos nus Transformar uma máquina de escrever Criar um manifesto Levar uma pintura para passear Cortar sua própria roupa Colecionar Repintar obras encontradas em feiras Apagar imagens ou palavras Tingir a neve Utilizar pombos Fazer bandeiras com materiais diversos Descobrir o volume cúbico das coisas e escrever nelas Fotografar pessoas pobres felizes ou tristes Realizar viagens Fazer um buraco portátil Destruir dinheiro Desenhar monstros Fazer carimbos Tricotar palavras Fazer denúncias Escrever/desenhar cartas Utilizar incenso Desenhar mapas Utilizar insetos Registrar suas ações em cartório Dispender energia pra nada Pedir várias pessoas para desenharem de memória Falar de amor Desenhar silhuetas Embeber tecido em látex Partir uma casa Se acorrentar ao seu parceiro Rasgar as roupas do vestuário Refazer uma foto com o pó da poeira de um museu Fazer luminosos de néon Catalogar Fotografar nuvens Pintar uma foto pixelada Pintar o canto superior direito de uma tela de preto Fotografar tatuagens Pintar uma pintura secreta Mover uma montanha Queimar uma obra de arte Soletrar palavras utilizando objetos Utilizar imagem de Jesus Cristo Fazer frases Copiar/ falsificar Roubar conceitos de outras áreas Jogar xadrez Transformar brinquedos Declarar / fazer declarações Coletar Classificar Retorcer arame 12 LINDONÉIA #02 Associar imagens sacras ao nazismo Refazer fotos com sementes Fazer chuva artificial Utilizar ímãs Pintar datas Listar diariamente todas as pessoas que encontrar Fazer calendários Fazer mapas das cidades em que esteve com marcação das ruas por onde passou Fazer esculturas com sangue congelado Recortar telas Enlatar sua própria merda Fazer uma fita de Moebius Inflar balões com o ar de pessoas diversas Construir máquinas Rasgar Se fotografar travestido Atirar garrafas de tinta Tomar sol com objetos sobre a pele, fazendo desenhos Pintar com seu próprio sangue Chicotear a parede com tinta Criar imagens com sua urina Construir lugares não repressivos para descanso Fotografar letras do alfabeto encontradas ao acaso Fotografar a trajetória de sua ejaculação Fazer poema plástico Utilizar o corpo como pincel Construir obras moles Pintar trabalhadores ou operários Pintar com o ânus/vagina Copiar o significado de uma palavra de cerca de uma dúzia de dicionários diferentes Utilizar animais Pintar uma linha interminável Fazer nada Desenhar com cinzas Pintar cenas históricas de seu país Fazer algo para ser visto de Marte Desenhar com fogo Fazer espirais Refazer fotos utilizando lixo Fotografar o processo de uma deterioração Construir ilhas Utilizar talco Fazer peças de gelo Fazer trouxas Utilizar luz Equilibrar objetos Embrulhar Produzir faixas Tingir a natureza Criar escultura com objetos do cotidiano Limitar o campo de visão Refazer fotos com chocolate Pintar frases Pintar fotos desfocadas Criar uma vestimenta/novos costumes Deixar objetos pelas ruas Desenhar na cabeça Enterrar Depreciar mitos Fotografar cães Gastar dinheiro 13 Construir um costume cubista Inutilizar um espaço Transportar um espaço Ficar em silêncio Não ficar em silêncio Libertar animais Construir jardins Se mudar para um museu Fazer retratos com açúcar Criar uma máscara sensorial Pintar sombras Convidar pessoas para dormir em sua cama e fotografá-las Elaborar um concurso de animais enfeitados por seus donos Abandonar uma mala num espaço expositivo e convidar os visitantes a transportarem-na aleatoriamente Reinaugurar lugares utilizando uma fita Construir barcos de papel e colocá-los para navegar Organizar o seu próprio enterro e o trajeto do féretro pelas ruas Realizar uma performance para a sua câmera Confeccionar carimbos Criar panfletos em mimeógrafo Fazer um livro Dormir em locais públicos Fotografar caixas d’água Se fotografar como uma fonte Seguir pessoas, fotografar e anotar Espalhar aleatoriamente guardas-chuvas por uma montanha ou vale Montar folhas verdes utilizando fragmentos de plásticos encontrados ao acaso Colecionar contas de restaurantes nas formas anacíclicas Escrever instruções Camuflar seu corpo na natureza e fotografar Fotografar a alteração de seu peso durante uma dieta Bordar provérbios Costurar palavras com fragmentos de brinquedos de pelúcia Construir torres Se fotografar com uma caveira Encher armários de concreto Desenhar sobre mapas Pintar listras Assinar objetos e pessoas Confeccionar uma ou mais bandeiras Desenhar ou pintar escadas Explorar e exibir as possíveis variações de uma forma geométrica Fotografar cadáveres Fotografar gambiarras 14 Introduzir genes de fluorescência em células reprodutivas LINDONÉIA #02 Jorge Menna Barreto, dexistir, 2011. 15 “Trabalhadores de Todo Mundo Descansem”: Pequenas considerações sobre a superação da Arte e do trabalho Paulo Rocha 16 LINDONÉIA #02 Ne Travaillez Jamais” Guy Debord “meu trabalho me escapa durmo para escapar do trabalho mais tarde escreveremos sobre os muros jamais trabalhem” Gil Wolman A história do trabalho revela seu paralelo com a tortura e a submissão, principalmente se tomarmos a origem das palavras “tripalium” e “labor”, um instrumento de tortura romano, um instrumento para a submissão dos homens por outros homens. Mesmo na narrativa mítica da Bíblia o trabalho é visto como uma condenação, já que antes da expulsão do Paraíso, Adão vivia da colheita generosa do que a natureza amigável fornecia, é por causa da queda por provar da fruta do conhecimento que Adão deve ganhar a sua vida com o suor e labor. Devemos lembrar que mesmo no Feudalismo o trabalho não é visto como um valor em si, sendo relegada a classe mais baixa, a classe servil. O tempo livre do Senhor era gasto com o dispêndio 17 www.estrategiasdaarte.net.br do que era produzido. É somente na modernidade, com a vitória da burguesia, que um novo tempo é brutalmente instaurado (o tempo da produção) e o trabalho passa a ser visto como um bem. Segundo Guy Debord: A burguesia é a primeira classe dominante para qual o trabalho é um valor. E a burguesia que suprime todo o privilégio, que não reconhece nenhum valor que não seja decorrente da exploração do trabalho, identificou a este o seu próprio valor como classe dominante, e fez do progresso do trabalho o seu próprio1. A promessa do trabalho adentra a contemporaneidade por duas emblemáticas portas, perversamente complementares, a de Auschwitz onde se pode ler no portão principal: “O Trabalho Liberta” e as portas das fábricas, cujo modelo fordista de trabalho alimenta a promessa da prosperidade que virá do trabalho dedicado (e não menos alienado e alienante). É na nossa modernidade tardia que a lógica do trabalho transborda e atinge o cotidiano. O que antes, na Idade Média era chamado de ócio, o tempo livre e o privilégio de uma vida folgada qual poucos usufruíam acaba atualmente confinada no mesmo processo alienante do trabalho. Os Situacionistas (seguindo uma indicação de Henri Lefebvre) afirmariam que é somente partir da negação do trabalho que se inicia a vida cotidiana, justamente o que resta da vida quando dela se retiram todas as atividades especializadas. Isso nos leva ao diagnóstico de que na sociedade burguesa a força de trabalho tornou-se mercadoria, e que todo trabalho é alienado. A esfera econômica da troca serviria como base da alienação, sendo assim há uma ampliação da reificação para outros âmbitos da vida, isso inclui a atividade especializada conhecida como “Arte” 2. 18 1. DEBORD, Guy. A Sociedade do Espetáculo. Tradução Tomás Rosa Bueno. Belo Horizonte: Coletivo Acrático Proposta, 2003. 1ª Edição Pirata. p. 60. 2. Para melhor entendimento do que aqui chamamos de “Arte” ver o verbete “Arte como Ideologia” do coletivo [conjunto vazio]: http://comjuntovazio.wordpress.com/2010/06/08/arteideologia. Se seguirmos Walter Benjamin, no mundo burguês, a obra de arte só pode ser duas coisas: ornamento e mercadoria3 . E é preciso aqui atentar para uma afinidade essencial entre a natureza do objeto artístico na contemporaneidade e a da mercadoria. Isso explica não só porque a Arte é tão facilmente mercantilizável, mas também porque cada vez mais nós temos a impressão de que é a vida cotidiana colonizada pelo capital que se torna mais e mais “estética”. O que significa transformar um objeto banal em um objeto artístico? Antes de qualquer outra coisa, é dissolver o seu uso comum e, em última instância, dissolver o seu uso ou tornar o uso o valor menos importante da coisa. Jamais respondemos para que serve um objeto de arte. Ele, ao contrário, nos confronta com um tipo de abertura que apenas de modo perverso conseguimos restaurar dentro de um uso qualquer. E realmente é como a perversão sexual: é preciso desviar o uso natural dos objetos para torná-los artísticos. Só podemos dizer que uma intervenção urbana é de algum modo “artística”, porque ela subverte o uso cotidiano do espaço. Ao mesmo tempo, a esperança é que ela se torne política quando o que determina o uso do espaço urbano é o poder. Chantal Mouffe em Artistic Ativism and Agonistic Space se pergunta corretamente se (...) práticas artísticas podem ainda exercer um papel crítico em uma sociedade onde a diferença entre arte e propaganda tem se tornado turva e onde artistas e trabalhadores culturais tem se tornado parte necessária da produção capitalista4 O problema não é apenas o fato de artistas e publicitários se dissolverem em um mesmo papel social, mas bem mais se a produção artística, mesmo a mais radical, não é cúmplice em seus procedimentos daquilo que ela pretende recusar. Por exemplo, 3. BENJAMIN. Walter. A obra de arte na era de sua reprodutibilidade técnica, Primeira Versão [1935/1936]. In: Obras Escolhidas I. Tradução Sérgio Paulo Rouanet. São Paulo: Brasiliense, 2011. 4. MOUFFE, Chantal. Artistic Activism and Agonistic Space. In: Art & Research: A Journal of Ideas, Contexts and Methods .Volume 1, 2007. LINDONÉIA não é certo que os efeitos de impacto e choque de uma intervenção urbana sejam essencialmente diferentes de uma publicidade (atualmente já se fala em “marketing de guerrilha”). Transformar um objeto qualquer em mercadoria significa também perverte-lo, tal dissolução desse uso comum do objeto também relega esse valor a um status secundário. Isso quer dizer que o objeto guarda propriedades para além da nossa apreensão empírica (“sutilezas metafísicas”, diria Marx n’O Capital). Não determinamos o que é o objeto na nossa relação direta com ele, mas todas as suas propriedades são determinadas por seu valor de troca. O uso é completamente submetido às leis de mercado, ao imperativo de circulação de mercadorias, por isso a relação de estranhamento tanto do trabalhador quanto do consumidor frente às coisas que povoam e controlam o seu mundo. É preciso, no entanto, instaurar uma mobilidade ilimitada no mundo dos objetos para que eles se submetam pacificamente às leis do capital. Eles podem ser usados para qualquer coisa. Há um verdadeiro espírito estético no capitalismo mais do que um espírito protestante5. Um exemplo disso é a possibilidade de reintegração daquilo que constrange a sociedade dentro da sua própria maquinaria. Há uma apropriação do linguajar das movimentações estéticas e libertárias pelas grandes empresas. Nessas configurações nos parece evidente que o problema do capitalismo no futuro será a utilização do tempo livre. O artista aparecerá então, não mais como um pária ou crítico (como querem alguns), mas como um organizador dos lazeres, cabendo a ele propor eventos e situações. Qualquer um que já visitou uma loja da Apple sabe que o vendedor, quase sempre misto de DJ e Designer, não vende o produto mas suas potencialidades de uso e criação. Empresas como o Google incorporam termos como “horizontalidade”, “participação”, “criatividade”, “prazer”... 5. Para uma análise profunda e contundente desse aspecto ver: BOLTANSKI, Luc; CHIAPELLO, Ève. O Novo Espírito do Capitalismo. Tradução Ivone C. Benedetti. São Paulo: WMF Martins Fontes, 2009. #02 As qualidades que, nesse novo espírito [do capitalismo], são penhores de sucesso – autonomia, espontaneidade, mobilidade, capacidade rizomática, polivalência (em oposição à especialização estrita da antiga divisão do trabalho), comunicabilidade, abertura para os outros e para as novidades, disponibilidade, criatividade, intuição visionária, sensibilidade para as diferenças, capacidade de dar atenção à vivência alheia, aceitação de múltiplas experiências, atração pelo informal e busca de contatos interpessoais – são diretamente extraídas do repertório de maio de 68. Mas esses temas, associados nos textos do movimento de maio a uma crítica radical do capitalismo (especialmente à crítica à exploração) e o anúncio de seu fim iminente, encontram-se, na literatura da nova gestão empresarial, até certo ponto autonomizados, transformados em objetivos que valem por si mesmos e são postos a serviço das forças cuja destruição eles pretendiam apressar. A crítica à divisão do trabalho, à hierarquia e à supervisão, ou seja, ao modo como o capitalismo industrial aliena a liberdade, está assim desvinculada da crítica à alienação mercantil, à opressão pelas forças impessoais do mercado, que, no entanto, quase sempre a acompanha nos textos contestadores dos anos 706. Tal previsão cria para aqueles que tiverem conhecimento, mesmo que mínimo, das vanguardas artísticas do século XX uma sensação de familiaridade e pavor já que as propostas de emancipação e utopia foram invertidas e incorporadas à lógica capitalista. O potencial disruptivo de tais vanguardas foi transformado em glamour e novas tendências disponíveis para todos os setores do consumo. Grande parte daqueles que são atravessados por esses problemas (artistas engajados, artistas políticos, artivistas ou outro nome qualquer que queiram dar) respondem a questão tentando conciliar um fazer crítico com o estético sem de fato atentar que em nossa época, as condições para a criação de relações anticapitalistas, criativas, divertidas e 6. BOLTANSKI; CHIAPELLO, 2009. p. 130. 19 www.estrategiasdaarte.net.br rizomáticas nunca foram tão propícias e estimuladas. Estaríamos então simplesmente encarcerados no próprio ciclo de produção que acreditávamos combater? As vanguardas artísticas acreditavam no ideal emancipatório e nas potencialidades do estético, assim como uma negação do trabalho7 , talvez essas promessas tenham sido esquecidas e provavelmente incorporadas na lógica dominante. Porém, é necessário não perder o momento de verdade que elas enunciavam com uma percepção muito clara que não é possível mudar a vida, sem mudar o mundo. Toda crítica da arte e sua ultrapassagem pretendida pelas vanguardas depende também de uma crítica do trabalho, do capitalismo e do uso do tempo livre. As vanguardas históricas (e também algumas vanguardas tardias) nos deixaram um importante legado, elas levaram até as ultimas consequências a destruição da linguagem e da comunicabilidade, assim como os levantes revolucionários levaram às últimas consequências a negação ao poder (e é por isso que elas radicalmente abriram novas potencialidades). Talvez as perguntas essenciais aqui sejam: O que fazer quando o capitalismo é muito mais divertido e estético que a própria Arte? O que fazer quando a Arte não carrega o potencial emancipatório que antes teve? Onde se encontra a resistência quando tudo já está vendido? Talvez essas questões não possam ser respondidas sem que nos atolemos nas inúmeras contradições, mas tampouco poderão ser evitadas por aqueles que acreditam que lidar com o estético carrega um germe da emancipação. Então não podemos ser ingênuos e fingir que todas essas contradições não estão à mostra. Há um legado, há uma problematização deixada pelas vanguardas estéticas e também políticas que foi posta de lado. Questões essas que são as mesmas e urgentes: ultrapassar a Arte e o capitalismo. * 20 7. Como mostra o livro: HOME, Stewart. Assalto a Cultura: Utopia, subversão e guerrilha na (anti) arte do século XX. São Paulo: Conrad Editora, 1999. LINDONÉIA #02 Tales Bedeschi, Mesa de trabalho, 2012. 21 A DIFÍCIL ARTE DE VENDER ANTENAS* Cláudia Zanatta O filósofo contemporâneo Jacques Rancière1 , no livro A partilha do sensível2 , propõe uma definição para o conceito de política a partir de uma separação baseada na posição e possibilidade de participação dos indivíduos na sociedade. Nas palavras do autor: … A política ocupa-se do que se vê e do que se pode dizer sobre o que é visto, de quem tem competência para ver e qualidades para dizer, das propriedades e dos possíveis do tempo. A política é a constituição de uma esfera de experiência específica em que certos objetos são colocados como comuns e certos sujeitos vistos como capazes de designar esses objetos e argumentar respeito a eles3. A partir de tais afirmativas, se depreende que alguns indivíduos estariam aptos (os que têm “competência para ver e qualidade para dizer”) a deliberar em relação a questões que tocam a uma coletividade; não todos os indivíduos. 22 * Texto originalmente publicado nos anais do 18º Encontro da ANPAP, Transversalidades nas Artes Visuais, 21 a 26/09/2009, Salvador, Bahia. 1. Jacques Rancière, teórico argelino nascido em 1940, formula seu pensamento a partir do contexto da recessão econômica e dos movimentos sociais contra o racismo aos imigrantes ilegais e (ou) sem trabalho, ocorridos na França, nos anos 90. 2. RANCIÈRE, Jacques. A partilha do sensível: estética e política. Trad. Mônica Costa Netto. São Paulo: Exo/ Editora 34, 2005, 69 p. 3. RANCIÈRE, 2005, p. 16, 17. LINDONÉIA As asserções propostas por Rancière têm suas origens no pensamento platônico. No livro A República4 , Platão relaciona a posição dos indivíduos na sociedade a atributos “naturais” (qualidades físicas e morais), à educação e a modos de vida específicos que possibilitariam a alguns estar mais preparados que outros a atuar em determinadas funções públicas. Por exemplo, segundo Platão, os filósofos, ao ter o tempo para estudar, ensinar e pensar, estariam em melhores condições de fundar e governar uma cidade, pois receberiam uma educação adequada para tanto que lhes permitiria “… ver mil vezes melhor do que os outros… pois teriam visto as verdadeiras realidades naquilo que estas possuem de belo, justo e bom.”5 uma função social ativa (deliberativa e decisória) seria oriundo das camadas da população vinculadas ao trabalho imaterial, ao pensamento. Quem faria política seria, portanto, o indivíduo que teria o tempo proporcionado pelas “mãos ociosas”, livres do trabalho manual. A sociedade ateniense ideal, para Platão, estaria dividida em três classes: a dos governantes (na qual figurariam os filósofos), a dos auxiliares e a do restante da população. Correto e adequado, na cidade modelo do discurso platônico é cada um cumprir o papel determinado pela função que exerce, seja ela a de governar, defender, filosofar ou produzir bens materiais. A adequação a esse modelo de sociedade calcada em divisões sociais bem definidas supostamente geraria uma hierarquia harmoniosa na cidade6 , harmonia que poderia vir a ser desestabilizada caso alguém aspirasse a posições sociais que não lhe correspondesse, posto que lhe faltasse preparação e instrução7 para exercer outras atividades que não fossem as do trabalho a que estivera “habilitado” a realizar. Em tal sociedade, ao trabalhador manual não lhe seria dado o tempo para desenvolver as competências para entender de assuntos que fugissem à suas atividades rotineiras, o que redundaria em dificuldades para participar de atividades políticas ligadas à governança, por exemplo. O sujeito político em A partilha do sensível diz respeito à experiência comum, aos modos de estar-junto humanos, a ‘um comum’ partilhado e aos ‘recortes que nele definem lugares e partes respectivas’. Nesse comum partilhado, definem-se lugares exclusivos, segundo funções determinadas, aos quais os corpos são assinalados e que indicam as maneiras pelas quais eles podem tomar parte nesse comum8. 4. Platão. A República. Brasília: Editora da Universidade de Brasília. São Paulo: Ática, 1989. Em A República Platão apresenta o projeto de uma cidade e sociedade modelos que seriam governadas por filósofos. 5. Platão, 1989, p. 46, 53. 6. Por isso (o legislador) introduz a harmonia entre os cidadãos mediante a persuasão ou a força, levando-os a compartilhar entre si os benefícios que cada um está em condições de oferecer à comunidade.” Platão, 1989, p. 54. 7. Não ter instrução, implica, no discurso platônico, em estar distanciado da verdade. Platão, 1989, p. 53. #02 É a partir dessas concepções do pensamento platônico que Rancière nos apresenta o que vai chamar de “partilha do sensível”, indicando que tal divisão tem como delimitadores sensíveis comuns compartilhados por indivíduos que ocupam espaços e tempos similares na sociedade: A noção de partilha do sensível é relevante no contexto artístico, pois, segundo Rancière, é justamente o “produtor de mimeses” (leia-se o artista), quem desloca a divisão do sensível ao ter sua prática vinculada tanto a um trabalho manual quanto intelectual. E o mais importante: o “produtor de mimeses” propiciaria uma partilha sensível democrática ao levar um trabalho privado a ser exibido em uma cena pública. Isso lhe permitiria sair de seu espaço doméstico de atuação e obter o tempo e a posição para participar politicamente no espaço público. O produtor de mimeses, portanto, teria os pés calcados em dois mundos: no mundo do trabalho manual e no mundo do trabalho intelectual, fazendo duas coisas ao mesmo tempo, o que perturbaria a ordem da sociedade modelo platônica, na qual não se espera que tais 8. RANCIÈRE, 2005, p15. 23 www.estrategiasdaarte.net.br atribuições sejam exercidas por um mesmo indivíduo. Deve-se a isso, segundo Rancière, o fato de que, no livro III da República, “o fazedor de mimeses” é expulso da cidade platônica ideal: mais que por reproduzir imagens falsas, ele é expulso por desconcertar a separação do sensível determinada na divisão da sociedade proposta por Platão, em que um trabalhador manual não se envolveria em atividades ligadas ao pensamento. A capacidade de mesclar trabalho manual e intelectual levará o artista a ser visto como um ser excepcional, apto a produzir obras geniais. Ou seja, o artista teria as condições para, a partir de um trabalho “ordinário”, produzir um trabalho com características “extraordinárias, excepcionais”, com outra ordem do sensível que não a que competiria ao trabalho manual ordinário e, além de tudo, incluiria esse trabalho em uma cena pública, o que lhe possibilitaria ocupar um lugar na coletividade, vinculado a uma participação política ativa. Tais situações são as que colocariam em xeque os limites que determinariam a divisão do sensível. Na contemporaneidade a noção do artista como um ser extraordinário é francamente contestada. No decurso da sua historia, a arte se torna um processo cada vez mais intelectualizado, que se afasta da manualidade e se distancia do trabalhador comum, seja no que se refere à produção como ao desfrute da arte9. Para constatar tal afirmativa basta ver que a arte quase sempre se caracterizou por ser uma produção realizada predominantemente pela classe média e alta; podemos afirmar que é produção de uma elite (especialmente nos países considerados do Terceiro Mundo). Compartilhar um determinado tipo de sensível oferecido pela arte só é possível a quem pode elevar o olhar da produção do trabalho que visa à manutenção das estruturas básicas de uma sociedade, “roubando” um tempo que seria destinado a essas atividades, posto que uma arte intelectualizada exige por parte de quem a produz, tempo e informação. 24 9. A arte como a entendemos aqui se refere a produções que estão inseridas no sistema das artes (galerias, museus, academias, mercado de arte). Muitas propostas em arte contemporânea, com base em preocupações que tocam a ideia da partilha do sensível, determinada em suas bases pela divisão entre trabalho manual e intelectual que dita lugares e tempos no social, atacam frontalmente essa questão, buscando religar, estabelecer conexões entre produtores de arte e público. Projetos em arte contemporânea participativa surgem na esteira da vontade de que o artista passe a ser considerado um produtor inserido na escala do trabalho e de que o trabalhador comum passe muitas vezes, da posição de um consumidor de arte, à de produtor de arte10. É a partir das assertivas provenientes do conceito da divisão do sensível e do intento de trabalhar com as fronteiras existentes entre produtores e espectadores que enfocamos a seguir uma ação proposta pela artista brasileira Lilian Minsky. Elegemos tratar aqui do trabalho de Minsky não por sua singularidade, mas justamente por pensar que ele indica como funciona grande parte das propostas artísticas que buscam a participação de quem está distanciado do “mundo da arte”: o trabalhador “comum”. É mediante o exemplo da proposta de Minsky que podemos verificar situações compartilhadas com outros artistas que se dedicam ao tema da arte pública participativa. 10. Um dos primeiros teóricos a pensar o trabalho artístico em relação a seus meios de produção foi Walter Benjamin que, em um texto de 1934, propõe “o autor como produtor”. A partir de um ponto de vista marxista, Benjamin propõe a posição do artista, como a de um produtor inserido em relações determinadas pela divisão do trabalho. Na ideologia marxista, as relações produtivas são o eixo das mudanças sociais e os meios de produção devem estar em função de uma coletividade. Portanto, o trabalho artístico é visto como fruto de uma práxis social, diretamente vinculado a uma cadeia de produção e consumo. Para Benjamin, o artista, como um trabalhador da escala produtiva, teria a responsabilidade e as ferramentas para atuar na transformação dos aparelhos culturais e ideológicos existentes. Caberia ao artista perceber e compreender o papel que ocupa em uma ordem hierárquica, identificando sua posição dentro de uma determinada ordem social. Para Benjamim, é a partir do momento em que reconhece qual é seu lugar e o lugar de sua obra em um dado sistema social, que o autor como produtor pode direcionar seus intentos em busca de transformar a sociedade, sendo responsável frente a uma coletividade pela sua atuação. A situação ideal no processo produtivo dos criadores se daria quando produtores e espectadores passassem a atuar em colaboração. Aqui teríamos a possibilidade da dissolução da linha divisória entre produtorespectador. Podemos perceber que muitas das iniciativas da arte participativa buscam exatamente eliminar essas fronteiras entre produtor-espectador, inibindo a aura do artista como alguém dotado de uma sensibilidade superior ou extraordinária. Quem frui é também quem produz, não estando estas duas instâncias claramente definidas. LINDONÉIA Trocações O trabalho de Minsky intitulado Trocações11 consta de uma ação realizada em 2006, no centro da cidade de Porto Alegre, RS. Na ação, a artista propõe a um vendedor ambulante de antenas para televisão uma troca de posições: Minsky ficará vendendo antenas em quanto o Sr. Paulo Roberto (o vendedor) irá visitar uma exposição em um “espaço de arte”12. nunca havia entrado no Santander Cultural, que é onde ocorreu parte de Trocações. “O Sr. Paulo Roberto trabalhava a menos de cem metros do prédio visitado; nunca havia entrado ali e nem sabia dessa possibilidade.”14 Minsky também jamais havia trabalhado como vendedora ambulante (isso dificilmente se esperaria de um artista?). #02 Trocações ilustra o que podemos entender por divisão do sensível, pois no caso específico aqui enfocado, artista e vendedor ambulante ocupam lugares bem definidos No Brasil, dados estatísticos de 2009, indicam no contexto social brasileiro, contextos que 93% da população jamais foi a uma que raramente estabelecem contato e que, exposição de arte13 e essa é a situação do Sr. portanto, não compartilham um sensível Paulo Roberto. Ainda que trabalhe todos os dias comum. Em Trocações, Minsky nos diz quase ao lado do principal museu de Arte do que está tratando com dois universos Rio Grande do Sul, o Sr. Paulo Roberto nunca geograficamente muito próximos e ao Fig. 1 Lilian Minsky vendendo antenas no centro havia entrado no museu, seja para ver uma mesmo tempo muito distantes. Poderíamos da cidade de Porto Alegre, RS. exposição ou simplesmente para conhecer o edifício. Também dizer, socialmente, culturalmente, sensivelmente distantes. 11. A ação foi realizada como parte do projeto Perdidos no Espaço do Centro de Porto Alegre, ocorrido em maio de 2006, em Porto Alegre, Brasil. Para mais informações, visitar o site em: <http://www6.ufrgs.br/escultura/workshop> 12. A ação com o Sr. Paulo Roberto (vendedor de antenas) veio a partir de uma proposta junto ao Perdidos para fazer trabalhos no centro de Porto Alegre, em maio de 2006, durante um workshop do Santander Cultural, do qual o Perdidos participava. Na realidade, já fazia tempo que eu desejava fazer um trabalho que tivesse o som do centro de Porto Alegre, com aquele caos sonoro. Muita informação em muito pouco tempo: ‘Vale, vale... fábrica de calcinha, vendo ouro, compro ouro’... e por aí vai. Sempre pensei em fazer uma ação envolvendo esses personagens tão presentes no centro da cidade e tive então a ideia de fazer uma ‘troca de posições’. Desse modo, eu estaria fazendo parte daquele caos sonoro e a pessoa que trocasse comigo também teria uma experiência diferente, criando uma ruptura em suas ações cotidianas, um devir, em um ambiente bastante frequentado por mim – uma exposição de arte. No dia marcado para a ação, uma pessoa foi escolhida no momento, o Sr. Paulo Roberto, vendedor de antenas para TV. Falei com ele, lhe perguntando se aceitava fazer a troca – eu ficaria vendendo antenas para ele e ele visitaria a exposição. E ocorreu a troca de ações. Fiquei a vender antenas enquanto o Sr. Paulo Roberto foi visitar a exposição no Santander, guiado por Fernanda Gassen, uma amiga fotógrafa. Na ação foram utilizadas duas câmeras de vídeo: uma na rua, comigo, e outra registrou o Sr. Paulo visitando a exposição. Na edição foram mescladas as duas situações, os dois universos tão geograficamente próximos e tão distantes”. Entrevista de Lilian Minsky à autora, março de 2009. 13. O Ministério da Cultura fez uma análise referente ao acesso à cultura no Brasil e constatou que 90% das cidades não tem cinema, teatro ou museus. Somente 14% dos brasileiros vão ao cinema e 93% jamais foram a uma exposição de arte. Dados provenientes de: <http://jornalnacional.globo.com/Telejornais/JN/0,MUL1055437-10406,00-GOVERNO+PROPOE +MUDANCAS+NA+LEI+ROUANET.html.> Acesso em: 23 mar. 2009. O que se detecta quando se trata de diminuir a distância existente entre posições que determinam divisões do sensível é que muitas propostas acabam justamente evidenciando a impossibilidade de termos um sensível compartilhado em situações nas quais o trabalho manual e intelectual estão separados. A ação de Minsky parece confirmar essa impossibilidade. Como o próprio título do trabalho indica, não há compartilhamento de posições, e sim, troca (“trocações”). Minsky e o Sr. Paulo Roberto somente compartilham o mesmo espaço no momento de estabelecer a negociação para começar a ação; ocasião em que a artista faz a proposta ao vendedor ambulante. Depois, cada um deixa de fazer o que está habituado e passa a exercer a função do outro por algum tempo, antes de 14. Entrevista feita pela autora a Lilian Minsky, março, 2009. 25 www.estrategiasdaarte.net.br retomar suas atividades corriqueiras. Embora ocorra a troca de posições, o espaço que cada um vai ocupar segue bem definido e separado. Ao vendedor de antenas, no caso de Trocações, não está aberta a possibilidade de produzir arte, e sim a possibilidade de fruir arte (com guia, diga-se de passagem). A visita do Sr. Paulo Roberto ao centro cultural é mediada por um monitor que vai orientar a visita à exposição. Já para Minsky, a venda de antenas não necessita de guia algum. Ou seja, a atividade intelectual de ver revela aqui a necessidade de apreensão de um código diferenciado (o da arte contemporânea) que exige tempo e informação para ser acessado. Cabe-nos perguntar: é devido a não necessitar de um código específico para ser executada que a atividade diária do Sr. Paulo Roberto não é considerada arte? E é por isso que ela é considerada arte quando Minsky assume o lugar do vendedor e passa a exercer sua atividade? O que está claro e que nem o vendedor ambulante nem a artista colocam em dúvida em Trocações é que há um acordo implícito de que a exposição no centro cultural se trata de arte. Quando a ação acaba, cada um dos envolvidos retorna à sua posição de trabalho habitual, com uma diferença: artista e vendedor de antenas tiveram sua rotina de trabalho interrompida. O Sr. Paulo Roberto visitou uma exposição de arte e, talvez, essa aproximação faça com que volte ao museu em outras ocasiões. A mudança de posições possibilita a ampliação de horizontes e de conhecimentos para ambos os lados implicados na situação de troca, ainda que provavelmente Minsky jamais volte a vender antenas (na realidade, não se espera isso dela. Espera-se sim, que o Sr. Paulo Roberto volte ao museu e visite outras exibições). A Minsky lhe cabe continuar o trabalho de outro modo. 26 Ao terminar a visita ao centro cultural, o Sr. Paulo Roberto volta a vender as antenas e está terminada sua participação em Trocações. Para a artista é justo no momento em que ela deixa de vender antenas que começa outra fase do trabalho: a edição do material fotográfico e videográfico, o relato, a divulgação e inserção do trabalho no sistema das artes por meio de narrativas e do registro das imagens, de exposições. E é aqui, no nosso entendimento, que o trabalho realmente se faz arte: nas instâncias de sua apresentação pública. Não antes disso; arte seria definida, portanto, sobretudo por sua apresentação em uma cena pública (especialmente na cena do sistema das artes). Ponto importante a considerar em trabalhos de arte participativa é o momento da produção de registros, relatos e sua publicização. Em Trocações, a produção de imagens fotográficas e videográficas são feitas pela artista; é também a artista quem solicita o direito de uso das imagens do registro das ações. “Depois do sim, ele assinou uma autorização para o uso da imagem, lhe perguntei se aceitava fazer a troca – eu ficaria vendendo as antenas e ele iria visitar a exposição. A instituição – Santander Cultural – já havia autorizado a captação de imagens durante certo período.”15 (Reparemos aqui que o Sr. Paulo Roberto não solicita o uso das imagens e não faz registros fotográficos ou vídeográficos da ação em que participa). No momento de tornar público proposições em arte participativa se constata que, na quase totalidade dos casos, a voz do artista passa a ser dominante: é o artista quem vai veicular tanto as imagens quanto o relato do que ocorreu; é ele também quem vai inserir o trabalho no mercado de arte ou prestar contas aos apoios públicos ou privados que eventualmente subsidiam suas ações. 15. Lilian Minsky em entrevista feita pela autora, em março de 2009 Fig.2 Sr. Paulo Roberto em visita ao Santander Cultural LINDONÉIA Outro ponto verificado é que raramente a iniciativa de começar as atividades em arte pública participativa parte de quem não ocupa a posição de artista. Depois, ao longo do processo, ocorrem participações de todos envolvidos, mas no começo (a ideia de fazer algo participativo) na quase totalidade dos casos, provém do artista. Dificilmente (tomando como exemplo o caso de Trocações) o vendedor de antenas procuraria um artista com a intenção de trocar de posição com ele. Tal possibilidade dificilmente lhe ocorreria. Por quê? Uma das respostas prováveis é que o vendedor de antenas não tem o tempo necessário para pensar em tal possibilidade ou para tentar acessar um discurso diferente ao que está habituado (discurso esse que define um determinado sensível). O que se percebe em grande parte dos casos, é que o artista planeja (pode ser que seja somente inicialmente e depois a continuidade do projeto seja realmente feita de decisões conjuntas) e busca os recursos para que o projeto ocorra. Isso se deve a que dispõe do tempo para tal? Ou se deve a outras implicações? que as posições (os lugares) de artistas e não artistas e as funções de cada um seguem francamente estabelecidas ao menos em dois momentos: #02 1-No início do processo (a decisão de fazer um trabalho participativo provém quase sempre do artista); 2-É o artista quem assume na quase totalidade dos casos a tarefa de inserir as propostas no sistema das artes. No início desse texto falamos que a separação de lugares e atribuições são pilares fundamentais sobre os quais se sustenta a partilha do sensível e que muitas propostas em arte buscam questionar tais separações. Mas o que se constata, na realidade, é que, mesmo na arte participativa, ainda que os artistas tentem continuamente apagar as fronteiras que estabelecem as divisões do sensível, tal partição se mantém. * Poderíamos perguntar por que, em algumas instâncias o sensível não é compartilhado. Uma das hipóteses é de que não há algo em comum, não há contato. Pode-se perguntar então o que é o em comum e quando há o em comum. Pensamos que o em comum é um acordo mínimo que deve existir entre as partes envolvidas nas propostas. No caso da arte pública participativa, esse comum tem como base um código compartilhado que vai permitir um acordo mínimo entre os implicados que lhes possibilite trabalhar conjuntamente. Diríamos que esse é o “comum” necessário, básico, fundamental. Sem uma compreensão e compartilhamento de um comum é impossível a participação nos processos. Mas tal acordo ocorre somente em determinadas instâncias. Não verificamos, por exemplo, nas obras participativas relatos nos quais o participante não artista peça o direito do uso de imagem do artista ou tenha assumido a instância da divulgação do trabalho como seu. Ou seja, o que percebemos em grande parte dos trabalhos de arte participativa é 27 Mierle Laderman Ukeles, Touch Sanitation Performance, 1977–1980 LINDONÉIA #02 E. Frederico Canuto E tudo parece-me deserto. Não, voltar a infância, isso nunca. Sofre-se. O mundo é grande. E há tanta curiosidade e paixão, tanta ignorância. Doloroso. Espera-se, está nas coisas, cegamente imiscuído nelas. Que angustiosa, esta voracidade, esta fusão analfabeta com a instável matéria do mundo! Agora sou inteligente. Existo, existe o universo. Duas realidades distintas, inimigas, inúteis. Sim, deite mais brandy. Sou um bêbado, claro1. 01.Proposta de Trabalho Neste pequeno trecho do conto Brandy de Os Passos em Volta, livro do poeta português Herberto Helder, a partícula E serve para dar ritmo. Mesmo que não esteja ao longo de todo o texto, desaparecendo no início, confere sonoridade. É a maneira do poeta de lidar formalmente com a “desordem despudorada da vida”, como dito em outro conto da obra, ou com o estágio alcoólico descontrolado deste conto: conferido-lhe ritmo e 1. HELDER, Herberto. Os Passos em Volta. Rio de Janeiro: Azougue, 2005, p. 140. 29 www.estrategiasdaarte.net.br constância através da linguagem. Mais ainda, aponta para uma multiplicidade e simultaneidade de sensações, possibilidades que se concretizam, literariamente, no texto escrito. E é palavra inclusiva porque é sempre soma. Partícula contra o reinado do “É”, de um essencialismo filosófico existencialista segundo Deleuze em Mil Planaltos2 , é afirmação de uma compossibilidade, convivência de inúmeras possibilidades, nas palavras da crítica Silvina Rodrigues Lopes3 quando confrontada pela poesia da multiplicidade do poeta português Herberto Helder. E é afirmação não pela negação, mas por sua irrestritividade, aceitando tudo. Nesse sentido, para pensar arte e trabalho para além de um par opositivo como normalmente elas são associadas – arte não é trabalho – ou mesmo de igualdade – arte é trabalho – como muitos fizeram ao longo do século XX ao discutir a arte como instituição de saber, de produção, de sentido, de consumo, propõe-se neste ensaio pensá-los a partir da partícula E em seus múltiplos significados abertos a partir do que ela provoca: novas formas de linguagem. Desta maneira, gostaria primeiramente de trazer uma frase-fórmula literária, equivalente ao E, escrita por Hermann Melville em seu livro Bartleby, O escrivão de Wall Street 4 e colocada em relevo de forma crítica por Deleuze em Crítica e Clínica5 e Agamben em Bartleby Escrita da Potência 6: “I would prefer not to”. O intuito é o de pensar contemporaneamente o par arte e trabalho como um que pode ser problematizado como linguagem, como o próprio E põe em discussão, para daí compreender seus impactos formais na arte. 2. DELEUZE, Gilles; GUATTARI, Félix. Mil Planaltos. Capitalismo e Esquizofrenia 02. Tradução Rafael Godinho. Lisboa: Assírio Alvim, 2007. 3. LOPES, Silvina Rodrigues. Inocência do Devir. Lisboa: Vendaval, 2002. 4. MELVILLE, Herman. Bartleby. O escrivão de Wall Street. São Paulo: Cosac Naify, 2009. 5. DELEUZE, Gilles. Crítica e Clínica. Tradução Peter Pál Pelbart. São Paulo: 34, 1997, p. 80-103; 143-153. 6. AGAMBEN, Giorgio. Bartleby o La Escrita da Potencia. Lisboa: Assírio Alvim, 2002. 30 02. Fórmula E Bartleby, escrivão de um escritório de advocacia, sempre foi trabalhador exemplar porque fazia o que se esperava dele, tal como descrito pelo advogado de foro, narrador do livro de Melville. Exemplar não em sua própria exemplaridade ou mesmo singularidade, como Agamben coloca em sua primeira obra que traz o personagem Melvilliano como questão, A Comunidade que Vem. Exemplar porque é qualquer um, sendo exemplo a ser seguido. Entretanto, num dia como outro qualquer7 , ao responder à necessidade do chefe advogado que precisava de uma cópia, o copista respondeu “I would prefer not to”. Para além de qualquer motivo, ou mesmo das consequências que tal ato provoca ao longo da narrativa, quero me ater na frase por si mesma – enquanto forma escrita literária. Essa frase, ou partícula, é aberta e fechada, coloca Delleuze em seu texto sobre a obra Bartleby ou a Fórmula. Aberta porque “to” é verbo que pede uma complementação. Ou seja, prefiro um a outro. Aberta a um complemento porque se endereça a outro. Fechada porque “prefer” é intransitivo, não precisando de complemento. Pode-se preferir não, simplesmente. Preferir a negação. Uma frase, uma forma, que põe em curto-circuito um modo de fazer e produzir discurso: a afirmação sempre como apontamento de uma possibilidade. “I would prefer not to” é potência porque não afirma o que é, mas também ainda não se configura no que virá. Potência em absoluto, como o filósofo italiano já colocou em vários ensaios em que liga a questão ou Fórmula Bartleby à filosofia aristotélica, assim como seus comentadores8 . Torna inoperante a língua porque ela não diz nada que não seja o que está dito. Assim, a frase de Bartleby não é manifesto político ou social, pois não é nada além do que é, em sua inacessibilidade. 7. AGAMBEN, Giorgio. Arte, Inoperatividade, Política. In: CARDOSO, Rui Mota (org.). Crítica do Contemporâneo. Conferencia Internacionais Serralves 2007. Porto: Fundação Serralves, 2007, p.85. 8. AGAMBEN, Giorgio. Nudez. Tradução Miguel Serras Pereira. Lisboa: Relógio D’água, 2010, p.107-120; PUCHEU, Alberto. Giorgio Agamben. Poesia, Filosofia, Crítica. Rio de Janeiro: Beco do Azougue, 2010; MIRANDA (s/d); SEDLMAYER, S.; GUIMARAES, C.; OTTE, G. O Comum e a Experiência da Linguagem. Belo Horizonte: EdUFMG, 2007. LINDONÉIA Em sua forma inacessível, coloca em relevo o discurso, em sua maneira de produzir uma língua, produz um povo que falta, dirá Delleuze9 . Estendendo tal raciocínio, partindo de uma análise arquitetônica, os próprios espaços narrativos do livro de Melville obedecem a essa mesma intenção materializada num padrão formal. O espaço do escritório, comum e ordinário como qualquer outro, porque lá se fazem cópias, vai se tornando, na narrativa, espaço do habitar de Bartleby até que ele seja levado a morar na rua, expulso. A passividade do personagem – não porque negação, mas potência ao não mover-se – torna-o imóvel e faz do local de trabalho sua morada/passagem. Espaços projetados para um fim cujo uso os refaz como espaço da vivência. Espaço como potência, pois, sua (in)transitividade se dá na sua própria forma, definida não apenas pela matéria, mas também conteúdo social, como colocarão diversos pensadores desde o século XIX: Fourier, acerca das passagens em Paris, explorado inclusive por Benjamin em Paris, Capital do Século XIX 10; passando pelos anos 1960 com Tschumi11 em sua obra Architecture and Disjunction, Lefebvre12 entre outros, até os anos 90 e o século XXI com Auge13 . Dirá Teyssot14 , a partir da análise de Walter Benjamin do termo die Schwelle, o espaço é limite mas, também limiar porque não são apenas contenedores ou limites da vida, mas também zonas onde vidas são produzidas. A própria parede, negação do outro lado e o dispositivo arquitetônico mais radical porque separa - o que é contra a natureza da arquitetura que é fazer conviver; ou o corredor e a rua, espaços do circular e não do enraizar-se, tornam-se, para Bartleby, as paisagens indiferentes descortinadas a sua 9. DELLEUZE, Gilles. Diálogos com Claire Parnet. Tradução José Gabriel Cunha. Lisboa: Relógio D’água, 2004. 10. BENJAMIN, W. Paris. Capital do Século XIX. In: LIMA, Luiz Costa (org.). Teoria da Literatura e suas fontes. Volume 02. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2002. p. 691-706. 11. TSCHUMI, Bernard. Architecture and Disjunction. New York: MIT Press, 1995. 12. LEFEBVRE, Henri. The Production of Space. Tradução Donald Nicholson. New York: Blackwell, 1992. 13. AUGE, Marc. Não Lugares. Por uma Antropologia da Supermodernidade. São Paulo: Papirus, 1996. 14. TEYSSOT, Georges. Da Teoria de Arquitectura: Doze ensaios. Tradução Rita Marnoto, Isabel Almeida, Telma Costa, Paulo Providência. Lisboa: 70, e|d|arq, 2010. p. 235. frente. Como novo desenho do mundo, um plano chapado de tijolos como o de seu escritório, ou de pessoas e/ou automóveis passando, como quando está na rua, prefere estar ali a olhar indefinidamente. Tudo que passa se apresenta como uma nova possível afirmação, potência não realizada. A parede de tijolos é potencial paisagem, ainda que não o seja como tal. #02 Nesta obra de Melville, afirmar é multiplicar para além de uma negativa passividade. 03. Arte E Trabalho: das condições da obra a obra em si Claire Bishop em seu texto A virada social: colaboração e seus desgostos15 faz justamente um tipo de crítica parelha a este raciocínio Bartlebiano. Bishop traça o potencial negativo para a arte quando compromissada com a política, interessada em justiça social, diminuição das desigualdades, entre outras asserções “politicamente corretas” ou definitivas. No primeiro parágrafo do texto, a autora enumera exemplares desta arte comprometida com questões que estão além da arte, estando na sociologia, política entre outros: O canal de tevê na internet para idosos envolvidos em um projeto de moradias em Liverpool (Tenantspin, 1999) do Superflex; Annika Eriksson convidando pessoas a comunicar suas idéias e habilidades na Feira de Arte Frieze (Do you want an audience?, 2003); A Parada Social, para mais de 20 organizações sociais em SanSebastián (Social Parade, 2004) de Jeremy Deller; Lincoln Tobier treinando moradores de Aubervilliers, a nordeste de Paris, para produzir programas de rádio de meia hora (Radio Ld’A, 2002); uma clínica de aborto flutuante, A-Portable, do Ateliê Van Lieshout (2001); o projeto de Jeanne van Heeswijk, que visa transformar um shopping center condenado em centro cultural para os moradores de Vlaardingen, em Roterdã (De Strip, 2001–2004); as oficinas de Lucy Orta em Joanesburgo (e em 15. BISHOP, Claire. A virada social: colaboração e seus desgostos. Concinnitas. Ano 09, vol. 01, n. 12, jul 2008. p. 145-155. 31 www.estrategiasdaarte.net.br outros lugares) que ensinam novas habilidades de costura e moda a desempregados e discutem solidariedade coletiva (Nexus Architecture, 1995–); um espaço para a vizinhança improvisado em um terreno vazio em Echo Park, Los Angeles (Construction Site, 2005) do coletivo Tempora-ry Services; Pawel Althamer tirando um grupo de adolescentes “difíceis” de seus lares, no distrito operário de Bródno, em Varsóvia, (inclusive seus próprios dois filhos) e os levando para passear em sua exposição retrospectiva, em Maastricht (Bad Kids, 2004);Jens Haaning, produzindo um calendário que apresenta retratos em preto-e-branco de refugiados na Finlândia que aguardam o resultado de seus pedidos de asilo (The RefugeeCalendar , 2002).”16 Arte política, arte participativa, arte engajada ou arte colaborativa são todos sinônimos quando confrontados com a questão do trabalho na contemporaneidade. Todas objetivam equacionar e produzir relações menos capitalistas e mais colaborativas, auto-conscientes e/ou engajadas no mundo. Relações mediadas cada vez menos pelo capital ou pelo consumo e sim por outros paradigmas, mais politicamente vinculados a uma vida comunitária e fraterna. E tal tendência se faz muito contemporânea a movimentos políticos, econômicos e sociais interessados em formas de trabalho menos desiguais, em direção ao que aponta as nove teses para formas alternativas de produção, texto-manifesto de Boaventura de Souza Santos presente na coleção por ele organizada: Reinventar a emancipação Social, no livro Produzir para Viver. Os caminhos da produção Não-Capitalista 17. Estes exemplares, citados por Bishop, atestam a virada para uma 32 16.BISHOP, 2008. p. 146. 17. São nove as teses de Santos: da necessidade de serem pensadas novas formas alternativas de produção econômicas, políticas, culturais e sociais interdisciplinarmente; a necessidade de tais formas estarem inseridas em redes de colaboração e apoio mútuo; as lutas e soluções devem ser criadas tanto dentro como fora do Estado; alternativas devem ser multi-escalares; devem vincular participação e democracia econômica; devem produzir formas alternativas de conhecimento; ser inclusivas e sinérgica com outras esferas da sociedade e da economia. SANTOS, Boaventura de Souza. Produzir para Viver. Os caminhos da produção Não-Capitalista. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2002, p. 64-74. arte na qual o processo mais igualitário, por princípio, torna-se o principal produto em detrimento da imagem produzida. Ou seja, uma arte de resistência ou de alternativa ao paradigma do biopoder contemporâneo, construída através de processos mais igualitários atribui valor ao objeto artístico. Uma exogenia artística, pois, todo valor vem de fora de si – da obra ao processo. Entretanto, ainda que tais objetivos políticos tenham relevância, é preciso pensar que tal nobreza dos fins não garante a qualidade poética da arte em si. A arte tem impactos políticos, mas, ela não pode se pautar pelo fazer política, cabendo a ela apenas lançar luz sobre. A arte não é “fazer justiça”, mas, lançar novas questões sobre a justiça. A arte não é trabalho, embora trabalhar faça parte do “fazer arte”. A arte é sempre possibilidade, não podendo ser decisória. O que é assinalado de forma contundente pela crítica inglesa é a responsabilidade da arte em abrir possíveis e não afirmar-se como alternativa a um status quo, pois, assim, pode acabar se tornando um novo. Serve a fórmula bartlebiana para compreender e articular com Bishop pois ambos afirmam irrestritamente os possíveis, da potência enquanto o que é, como tal, função da arte. Não é tarefa da arte propor uma alternativa, mas construir um olhar que permite pensar alternativas. Assim, arte e trabalho na contemporaneidade estão além de uma associação dada por pares, mas em sua consideração compossível, em sua afirmação múltipla de compreensão de ambos, inclusive como circunscritos fenômenos de linguagem – fenômenos pois são processos inscritos no espaço geo(-)gráfico e temporal – históricos. Para tal imbróglio, esmiuçado e criticado por Bishop, o artista belga Francis Allÿs, em seu vídeo feito em Lima, Peru, em 2002, denominado Quando a Fé Move Montanhas (When Faith Moves Mountains) traz importantes contribuições e maneiras de pensarmos acerca do trabalho e da arte e suas formas. LINDONÉIA 04.O trabalho como falso leit-motiv crítico Neste trabalho de Allÿs, o que assistimos é o artista contratar centenas de trabalhadores peruanos para, num dia e hora marcados, munidos de uma pá, escavarem a areia de uma montanha e deslocarem-na de um lugar para outro. Allÿs coloca em Figura 01: Francis Allys. When Faith Moves Mountains, questão as consequências do ato no 2002 (In collaboration with Cauhtemoc Medina and Rafael tempo histórico daquele lugar e uma Ortega). (in)visibilidade, ou nos termos aqui usados, sua condição ou Fórmula E. Figura 02: Francis Allys. The Making of Lima, When Faith Moves Mountains, 2002. (In collaboration with Cauhtemoc Medina and Rafael Ortega). Nesta obra, impossível de ser realizada solitariamente, Allÿs conclama e uniformiza - com uma camiseta branca - uma legião de moradores do local para “fazer acontecer” a sua obra. Numa primeira tentativa de asserção crítica sobre a obra, apoiada nos dois termos isoladamente (arte e trabalho), aparece já a polaridade instaurada, inclusive suas contradições com outras estratégias performativas da arte realizadas ao longo do século XX: 01.Arte é um trabalho. Logo, sendo um trabalho, deve ser pensada e realizada como tal: contrata-se e paga-se o trabalhador, que não deve, por sua vez, participar da obra, pois ali está somente prestando um serviço. Figura 03: Francis Allys. When Faith Moves Mountains, 2002. (In collaboration with Cauhtemoc Medina and Rafael Ortega). O problema deste raciocínio, ironicamente, é que os trabalhadores não deveriam estar uniformizados de branco ou sequer ser objeto de qualquer preocupação estética, visto que não fazem parte da obra. O uniforme não deveria ser uma questão estética pois não faz parte da obra. Usar ou não o uniforme é indiferente às pretensões do artista. #02 Ironia dupla porque o potencial imagético do trabalho está justamente na imagem de um número grande de trabalhadores uniformizados ao longo da encosta de uma montanha, perfazendo uma linha que faz poeira, produzindo uma nova linha, portanto. 02. Arte não é trabalho. Logo, é condenável um artista produzir uma obra e pagar outros para fazê-la. Lógica pouco interessante, visto que tal expediente é perpetrado por muitos artistas, cuja relação com a arte é dada pela ideia e não pela produção e materialização da mesma, a ser feita por terceiros, como no caso de muitos artistas cujos ateliês contam com trabalhadores contratados – de Damien Hirst a Jeff Koons. Assim, aqui está um pensamento sobre a arte como linha de trabalho na Modernidade que contribui numa (re)produção contínua de determinados hábitos de exploração e dominação do trabalho assalariado e, muitas vezes escravo, dentro de um sistema maior capitalista. Em ambas possibilidades de discussão, a arte está, e num âmbito mais geral, a obra em si, condicionada a uma análise exterior a si mesma. A “responsabilidade social” ou “politicamente correta” acaba tornando a arte refém das próprias questões sobre as quais ela pode lançar luz e novas possibilidades de pensamento. Sua inacessibilidade ou passividade potencial, possibilitadora de pensamento, torna-se indiferentemente passiva. Ao vestir os trabalhadores de branco e alinhá-los ao longo da montanha, uma linha se move vagarosamente e é isso que está em questão. Esta é a imagem dada. É deste contexto que qualquer 33 www.estrategiasdaarte.net.br análise deve partir. Ainda que o vídeo documente um processo, como será colocado adiante, a radicalidade da obra está em seus futuros possíveis. Nesta obra, o artista aposta na produção de um espaço a partir de um redesenho do existente: a montanha. Remodelando-a, tanto prática como politicamente, com seus trabalhadores, pela linha movente, fazendo-a não encaixar-se em discursos locais ou globais, Allÿs produz outros sentidos sobre os diferentes discursos pelo espaço. Ao deslocar montes de terra de um ponto a outro na montanha, potencialmente são alteradas coordenadas geográficas, histórias das pessoas com o lugar, eixos visuais até então imóveis. Reconstrói-se uma paisagem, redesenha-se a natureza, altera-se uma geografia dada como natural através de um fazer, em dois registros indissociáveis: pictórico e tectônico18 . A linha de uniformizados é esse movimento. No caso pictórico, ao mudar a montanha de lugar por alguns metros, o que Allÿs intercepta e distorce são as “medidas” e “referências” convencionais através de uma anulação da precisão e objetividade pragmática dos dispositivos cartográficos 34 18.. A arquitetura, desde a Grécia até o século XVIII, sempre foi atrelada a um discurso simbólico. Fazendo referência a discursos religiosos ou mesmo de uma aristocracia que foi perdendo poder, a arquitetura sempre teve uma dimensão para além dela mesma, vinculada a indissociáveis crenças, valores e rituais sócio-espaciais, como pode ser lido a partir das considerações de Christian Noberg-Schulz em seu livro História da Arquitetura Ocidental. No entanto, a partir do século XVIII a arquitetura redimensiona seu estatuto tendo em vista a morte de Deus e qualquer outra exterioridade referencial pela racionalidade iluminista. A partir do conhecimento produzido e centrado em si mesmo através de aparelhos óticos e modos de medição que permitiam produzir e pensar projetos antes da própria construção, como coloca Alberto Perez-Gomes em Architecture and the Crisis of Modern Science, a arquitetura se vê alçada a uma nova dupla condição: vista a distância como elemento senão escultórico, faz parte de uma paisagem enquadrada, pelo olhar principalmente – pictórica – e, em termos construtivos e estruturais, faz parte de uma paisagem funcional. Assim, sua pictoricidade é afirmada pela visualidade que ela é capaz de produzir, aproximando-a de um valor escultórico e até mesmo fotográfico; e sua tectonicidade – palavra etimologicamente ligada a construção – ligada ao modo como é produzida. Na arquitetura moderna, produzida em finais do século XIX até meados do século XX por Mies Van Der rohe, Walter Gropius e Le Corbusier, para citar os maiores expoentes, tal pictoricidade ficou atrelada a uma relação imagética, e a tectonicidade, ainda mais atrelada a questões estruturais ligadas ao funcionamento da edificação. No entanto, na contemporaneidade, vários autores redimensionam o estatuto tectônico do edifício não apenas a partir de seu funcionamento – considerado aqui como dimensão projetada e não vivida – mas também pelo uso de usuários, como Bernard Tschumi (Architecture of Disjunction), Aldo Rossi (L’architettura della città) e grupos de artistas como Situacionistas. Assim, a pictoricidade se revela potencial para pensar a dimensão imagética da arquitetura, dado os sentidos que ela pode produzir; assim como sua tectonicidade se vê hoje vinculada a noções corporais como apropriação, uso, intervenções, o que reflete diretamente na questão histórica. A arquitetura deixa de ser vista como exemplar histórico escultórico para ser pensado em termos de uso ao longo do tempo histórico. domésticos, porque já íntimos, como Googlearth©, por exemplo. O mapa ou imagem cartográfica que aparece na tela do computador mostra a montanha no mesmo lugar, embora ela não esteja mais lá. Alguns metros de deslocamento na tela do computador não aparecem. Alguns metros de terra deslocados dentro de um monte de terra, que é a montanha, é mover um grão de areia dentro de um saco de areia: invisível. Com a intervenção na paisagem feita pelo belga, o que aparece na tela é um traço de um apagamento. Ou seja, um resto de movimento, algo como um espasmo – um mover-se permanecendo no mesmo lugar: uma marca invisível. Ou seja, é um território novo porque a imagem produzida pela intervenção anula a dimensão global e a racionalidade a ela vinculada. O que se apresenta globalmente não condiz com o que há no local. Assim, a representação racional não condiz com a apresentação poética. Uma nova pictoricidade é alcançada pela mudança do traço de areia de registro documental para expressividade. A montanha vista pelo dispositivo Googlearth© é marca visível de um vazio, tornando-se poética. Do ponto de vista tectônico, o artista instala na realidade social e física da cidade um desvio. Um desvio de alguns metros que, através de novas rotinas e histórias surgidas com este trabalho, será absorvido pela cultura local. Uma ínfima mudança geográfica que destrói uma relação histórica nostálgica com o lugar já existente. A montanha deixa de ser o lugar imóvel que está presente a gerações a fio para se tornar objeto fabricado por um agente externo, in progress. Como o próprio artista comenta: When Faith Moves Mountains tenta traduzir tensões sociais em narrativas que operam e intervém na paisagem imaginativa de um lugar. A ação tem como objetivo infiltrar na história local e na mitologia da sociedade peruana (incluindo aí suas histórias da arte), inserir um outro rumor em suas narrativas. (...) Naquele momento, a intervenção tem como potencial se tornar um mito urbano ou fábula19. Assim, aquilo que não aparece representado pelo olhar racional progressista que cobre tudo, nem para os moradores que ali vivem, configura-se nesta singularidade. Uma arquitetura constituída de areia deslocada de sua origem é o que fica. Um novo território inscrito na cultura local é nova história e geografia. Uma nova implicação será requerida, tanto num nível pictórico quanto tectônico, dos moradores, através de suas novas histórias, assim como dos leitores cibernéticos. A linha branca de camisados não é nada senão expressão imagética ou rastro humano, não visto por satélite, da formação de um novo território. 05. Redesenho do Trabalho Durante a 30a Bienal de Arte de São Paulo, o artista mexicano Hector Zamora realizou a performance “Inconstância Imaterial” na galeria Luciana Brito, em setembro de 2012. Uma coreografia do trabalho manual transladada em sonoridade. De alguma forma, nessa mesma Bienal, já haviam sido expostas obras que problematizavam o trabalho a partir do potencial poético do mesmo, desde primórdios do século XX mais precisamente. A obra do artista Tehching Hsieh presente no evento, é exemplar. Feita nos anos 70, trata-se de uma performance de duração de um ano, onde a proposta foi fotografar a si mesmo de hora em hora numa mesma posição e com uma mesma roupa num mesmo lugar. Numa sala do pavilhão de exposições da Bienal temos a máquina onde o artista “batia seu ponto” a fim de dar veracidade às fotografias, os uniformes e outros materiais usados, além de todas as muitas fotografias horárias/diárias do ano em que ocorreu tal périplo. Uma maneira de pensar o trabalho pela arte 19. When Faith Moves Mountains attempts to translate social tensions into narratives that in turn intervene in the imaginal landscape of a place. The action is meant to infiltrate the local history and mythology of Peruvian society (including its art histories), to insert another rumor into its narratives. (...) At that moment, it has the potential to become a fable or urban myth”. DOHERTY, Claire (Ed.). Situation. Documents of Contemporary Art. London: MIT Press, 2009, p. 39-40. através da exaustão física, de uma repetição infindável de fotos que eram as mesmas, porém diferentes, porque o próprio artista às vezes estava sonolento, outras com cabelos desgrenhados, outras com o corpo visivelmente torto. Usando no campo da arte de práticas que aludem a um trabalho assalariado repetitivo, como uma obrigação diária, um trabalho a ser obsessivamente cumprido, possivelmente no espaço frio de uma fábrica, Hisieh construiu sua obra. Na sala da exposição, temos um documentário da vida de um artista que dedicou um ano de sua vida a este trabalho. E aqui, o que Hsieh faz é expor um modo de trabalhar onde aquele que se vê frente à obra fica impactado não com a obra, mas com o discurso político e mesmo com o esforço empreendido pelo artista. Há um escamoteamento: a poética surgida n(d)este excesso é o excesso factual e não a obra produzida. Nada estranho se pensarmos como as relações entre arte e Figuras 04 e 05: Tehching Hsieh. One Year Performance, 1980-81. Figura 06: Tehching Hsieh. One Year Performance, 1980-81. foi expor o modo como o canteiro de obras da construção civil é lugar da produção de mais-valia e exploração de mão de obra; e finalmente nos anos 1960, quando o Brasil viveu o auge econômico e pujança na construção civil: o Milagre Brasileiro), seu potencial reside na consideração do desenho técnico projetivo criador feito pelo arquiteto como elemento que reflete e supera a realidade do construir, seja num canteiro de obras de uma casa ou de um grande empreendimento. Ou seja, o meio – desenho técnico de arquitetura – suplanta de tal forma a realidade, que a escamoteia. vida nos anos 60 e 70 se tornaram mote para a primeira objetivar transformar a segunda, fazendo da imagem ou objeto de arte resultado supérfluo tendo em vista o processo empreendido pelo artista. Entretanto, Zamora traz novas considerações em relação à questão trabalho e arte na medida em que o trabalho é feito no lugar onde a própria obra ganha valor: a galeria de arte. Enquanto com Tehching Hsieh temos uma documentação extensiva da performance transformada em obra por meio de fotografias e materiais usados ao longo da atividade; com Zamora a documentação, o processo e a obra são todos produtos que transformam a galeria em espaço não apenas expositivo, mas também produtivo. Sérgio Ferro, arquiteto e autor nos anos 60 do texto emblemático O Canteiro e o Desenho20 faz a seguinte afirmação: “Desenho é bomba que separa”. No contexto em que foi proferida (primeiramente dentro de um núcleo da FAU/USP destinada à leitura das obras de Marx a fim de apreender as relações econômicas e a produção da arquitetura; depois, escrita num texto cujo objetivo 36 20. FERRO, Sérgio. O Canteiro e o Desenho (1976). In: __________. Arquitetura e Trabalho Livre. São Paulo: Cosac Naify, 2006. Figura 07 a 09: Hector Zamora. Inconstância Imaterial, 2012. Dessa maneira, a crítica radical de Ferro se apoiava na afirmação de que o desenho se tornara meio de exploração dos trabalhadores. O processo de produção de edifícios era abusivo, exploratório e desigual porque o desenho escondia relações sociais e de trabalho inerentes à realidade do canteiro de obras. E para Ferro era problemático o arquiteto não levar em conta justamente essa faceta do seu meio expressivo: não como representação, mas reprodução de uma realidade LINDONÉIA em termos organizacionais de produção, distribuição e consumo de um espaço a ser construído. Nesse sentido, a obra de Zamora coloca em questão tais condições do desenho ao transformar o processo de produção em obra de arte. Entretanto, não a glamuriza, nem muito menos a torna “politicamente correta”. Muito menos a transforma em documentário, ainda que haja um vídeo que registre tal processo. O que faz é expor a obra como produção redesenhando ou reorganizando, por sua vez, as condições próprias em que a realidade da construção se estrutura. O processo de construção civil que ocorre nas grandes cidades é feito por pedreiros e o objeto usual da construção, que é o tijolo, é passado de mãos em mãos para ser assentado a fim de construir uma parede. Ao expor tal processo e retirar dele o fim – construir algo – Zamora coloca o processo em loop infinito porque nunca termina. Sem término, sem utilidade, sem objetividade, numa inconstância porque ora os tijolos passam rapidamente, ora mais lentamente, ora caem no chão, despedaçando-se e ao som dos gritos dos trabalhadores, algo nunca se realiza senão o realizar mesmo. Os gritos dos trabalhadores, passando tijolos uns aos outros, recortado pelo som de tijolos caindo no chão transforma o processo numa produção performática sonora, sendo o som rastro momentâneo do desenho do canteiro. entendido, por sua vez, como ação quase performance: uma nova localização da montanha ou restos de tijolos quebrados ou pilhas dos mesmos numa galeria foram ambos gerados por um sistema de trabalho cujo objetivo foi o de organizar energia em recursos a fim de realizar uma obra. Entretanto, ao otimizar tal energia para realizar as obras, foram redesenhados ambos os contextos e estes adquiriram novos sentidos e imagens. Esta ação desestabilizadora consiste em tornar não-trabalho o que é comumente associado ao regime de trabalho: não um não trabalho, mas não-trabalho, uma fórmula E. O que ocorre nas duas obras é uma aproximação funcional que torna inoperante afetivamente o contexto “trabalho” pela arte. Arte E trabalho = não-trabalho. #02 Nessa fórmula, não há oposição, ironia, encenação ou qualquer outro tipo de consideração da arte como campo que diagnostica e expõe situações através da paródia ou de outros movimentos de positivação ou negação. Não há interpretação ou discussão, como se a arte fosse em si mesma um discurso sobre o mundo. O que há, e esta é a especificidade através da qual a arte pode se encaminhar a fim de deixar para trás resquícios polarizadores modernos ou transformações da vida em arte como se assiste hoje, com a segunda transformando-se em ativismo urbano, é uma re-apresentação do mundo como imagem potencial. * Ao terminar, os restos de tijolos jogados durante um tempo prédeterminado pelo artista são justamente o E. Não é resto, nem parede, é rastro de uma [in]transitividade ou da perpetualização de uma potência que ali está vibrando. 06. Não-trabalho Nas duas obras – When Faith Moves Mountains e Inconstância Imaterial – o rastro que permanece é o resto de um trabalho, este 37 www.estrategiasdaarte.net.br 38 Ariel Ferreira, Oferenda LINDONÉIA #02 * Ariel Ferreira A performance ocorreu em uma praia. Durante a maré baixa do dia 10 de fevereiro de 2013 carreguei vários sacos contendo sal até a beira do mar e despejei todo o conteúdo em um monte. Após a ação o monte se desfez aos poucos até desaparecer, absorvido pelas ondas que vinham lamber aquele torrão salgado. Minha intenção foi retornar ao mar algo que uma vez foi retirado do seu leito mediante o trabalho humano. O sal, tornado momentaneamente uma mercadoria, seria consumido e reintegrado, em uma quantidade considerável para um homem carregar sozinho, mas, de todo, insignificante se comparado à abundância da natureza. A ação não contou com a chancela do mundo artístico nem precisou de autorizações para ser feita. Seu sentido ambíguo percorre a indeterminação de três sentidos que podemos ter da palavra “trabalho”, neste caso: o esforço de carregar; a ação artística; a oferenda a uma entidade da natureza. Se o esforço é obviamente um trabalho físico ligado a um produto, enquanto uma oferenda é caracterizada pelo trabalho espiritual que pressupõe uma perda improdutiva: o trabalho de arte seria a prática de comunhão, e co-ação, do aspecto espiritual com o aspecto físico. 39 Bárbara Ahouaghi, Costura, 2013 LINDONÉIA #02 nos últimos meses passava ao menos vinte horas tecendo na esperança de findar. não sabia ainda de onde vinha aquele fio entregue numa tarde chuvosa por pessoa incógnita junto com quinhentos dinheiros e a ordem de serviço. o pão duro com café diário era fruto do longo inverno sem trabalho. não havia o que pensar. trabalho aceito. começo da costura. apenas um fio. apenas algumas horas. nada mais. aham. outro inverno aproximava-se, recusara outras propostas na esperança dos outros quinhentos prometidos ao término da insólita peça. mente fixa no resultado. quase não dormia. adquirira repugnante aspecto próximo de um babaji shivaísta. munido de suntuosa exaustão começou a indagar pelas origens de seu labor. a origem do fio. a identidade daquela pessoa estranhada qual não reconhecera nem o sexo. quase um ano preso a uma pequena ambição o cegara de todo e qualquer pensamento sensato. * Bárbara Ahouagi resolve então sair. abrir a porta, seguir aquele fio que se embrenhava em seus próprios pés. começou a seguir aquele fio que já se embrenhava nos próprios pés. ralos, cuspes, sandálias, flores, fumaças, gasolina, urina, pés, vidas. tudo aquilo começou a despertar certa percepção que transcendia os sentidos corpóreos. muita informação e a sensação de que não o fio apenas: estava curvado e das pessoas não enxergava mais que os joelhos. num impulso rápido e aflitivo se ergueu. a visão atroz. todos estavam curvados enrolados em costuras e fios andando pelas ruas cegos e corcundas. soltou seu próprio fio e seguiu 41 ESTÉTICA DA EXISTÊNCIA E PSICANÁLISE: DA LIBERDADE POSSÍVEL Fábio R. R. Belo 1. A conquista do neurótico obsessivo Numa análise, uma das coisas mais importantes que o neurótico obsessivo pode atingir é o reconhecimento de sua impotência. De maneira geral, o obsessivo é aquele que acredita tudo-poder, tudo-saber. Sua obsessão por organizar o mundo, dar sentido fixo às coisas, é sinal dessa onipotência de várias faces. 42 Giorgio Agamben recupera de forma exemplar a teoria da potência de Aristóteles para nos ensinar que só sabemos realmente de nossa potência quando podemos, efetivamente, poder não fazer. O exemplo é simples: o fogo pode apenas queimar. Ele não pode não poder queimar. Assim também é com a maior parte dos animais: podem apenas fazer o que determina sua potência particular: uma formiga não pode não-poder-fazer seus buracos na terra, mas o pianista pode não tocar seu piano. LINDONÉIA Nada torna tão pobre e tão pouco livre como esse desconhecimento da impotência. Aquele que é separado daquilo que pode fazer, pode, entretanto, ainda resistir, pode ainda não fazer. Aquele que é separado da própria impotência perde, por sua vez, antes de tudo, a capacidade de resistir. E como é apenas o irritante [incendiário...] reconhecimento daquilo que não podemos ser que garante a verdade do que somos, também é só a lúcida visão daquilo que não podemos ou podemos não fazer a que dá consistência ao nosso agir1. Ora, o que Agamben, via Aristóteles, está tentando demonstrar é que alguém compelido ao fazer, que não consegue se distanciar do que faz, é pobre em liberdade. Nossa liberdade é sempre marcada por esse negativo de poder não fazer. Na neurose obsessiva, preferir não fazer, finalmente, poder não-poder, é uma libertação. A compulsão do obsessivo – “ter que fazer”, “não poder não fazer” – acaba por transformar a pulsão num tipo de instinto. Aquilo que caracteriza a liberdade pulsional – poder ser e fazer, sempre mantida a possibilidade de poder não ser e não fazer – é recusado pelo obsessivo. Ao longo de seu processo analítico, o que se busca é justamente um pouco mais de espaço para o reconhecimento dessa impotência que se confunde com a liberdade. A liberdade pulsional, compreendida de forma idealizada, autorizaria a plena contingência do que somos e fazemos. Humanos podemos matar crianças e adotar bebês na mesma proporção. Podemos fazer arte e guerra: ao mesmo tempo. 1. Nulla rende tanto poveri e cosí poco liberi come questa estraniazione dell’impotenza. Colui che è separato da ciò che può fare, può, tuttavia, ancora resistere, può ancora non fare. Colui che è separato dalla propria impotenza perde invece, innanzitutto, la capacità di resistere. E como è soltanto la bruciante consapevolezza di ciò che non possiamo essere a garantire la verità di ciò che siamo, cosí è solo la lucida visione di ciò che non possiamo o possiamo non fare a dar consistenza al nostro agire. AGAMBEN, Giorgio. Su ciò che possiamo non fare. Nudità. Roma: Nottetempo, 2009. p. 67-70. Podemos prolongar a vida ou simplesmente suspendê-la. Pensemos na morte que desejamos e na que desejamos evitar. Voltarei a essa liberdade pulsional mais adiante no texto. Por enquanto, desejo apenas marcar que a pulsão é um conceito que nos permite pensar numa flexibilidade existencial, numa estética da existência bastante ampliada, cujos limites nunca serão completamente determinados. #02 Não seria também, no fundo, contra um terrível desejo de morte, que tudo desorganiza e confunde, que o obsessivo luta? Não seria por esse motivo sua compulsão a controlar a vida, no sentido de manter a vida viva, mais que vivê-la? Viver a vida de forma menos onipotente não seria abrir-se à contingência? Ao que pode ou não ser, inclusive no que tange a nós mesmos? Até que ponto estamos dispostos a sermos outro? Lição expandida para todos: a vida que temos não tem que ser vivida necessariamente. Se esse pensamento, inevitavelmente, traz a sombra terrível do auto-extermínio, precisamos dele, no entanto, para mudarmos de vida, escolher outros caminhos. E só conseguimos mudar quando reconhecemos que não precisamos, que não somos obrigados a continuar a viver como vivemos. Que há sim possibilidades – duramente conquistadas, fruto de muita elaboração psíquica – de poder não fazer, de poder não viver algumas formas de vida e de se autorizar, também no limite, a poder não saber o que nos espera. Mais uma vez, pinto com cores fortes esse quadro de liberdade idealizada. Evidentemente, “não saber o que nos espera” levado ao extremo é tão opressivo quanto desejar controlar todas as contingências que nos cercam. 2. Bartleby e o trabalho Gostaria de comparar, brevemente, o que disse acima sobre os neuróticos obsessivos e o personagem Bartleby, criado por Melville2 . O objetivo dessa comparação é simples: Bartleby talvez 2. MELVILLE, Herman. Bartleby, o escrivão. Tradução: Irene Hirsh. São Paulo: Cosac & Naify, 2005. 43 www.estrategiasdaarte.net.br seja o inverso de todo neurótico obsessivo. Quando o obsessivo é compelido ao fazer, Bartleby se recusa a trabalhar. A estória é bastante simples: Bartleby é um escrivão num escritório de advocacia em Wall Street – centro nervoso do capitalismo. Certo dia, ele simplesmente se recusa a trabalhar, respondendo a seu patrão com a seguinte fórmula, a toda ordem dada a ele: “prefiro não fazer” / “acho melhor não”. É também verdade que na neurose obsessiva é comum encontrarmos o sintoma da postergação, um não-fazer compulsivo. Não é disso que se trata no caso de Bartleby: há de fato uma suspensão do desejo, uma apropriação radical do desejo de não fazer, de não ser. Preferir não fazer, como faz o personagem de Melville, é o início de toda liberdade possível. Obviamente, não se trata de ir até onde Bartleby foi, isto é, poder inclusive poder não-viver. A literatura, mais uma vez, mostra o que está em jogo, de forma muito radical: a vida, como um todo, é determinada por esse distanciamento de nossa potência. Reconhecer essa impotência, poder não fazer, vale para todas as tarefas da vida, inclusive para o próprio viver. 3. Bartleby ou a contingência Agamben3 faz uma interpretação bem interessante do conto de Melville que pode nos ajudar a compreender a relação que desejo estabelecer entre o trabalho compulsivo do neurótico obsessivo e essa grande recusa de Bartleby. Agamben interpreta a fórmula de Bartleby “I would prefer not to”, como uma forma de dizer algo entre o ser e o não ser, algo que anuncia o que poderia ser, mas que não será; anúncio da potência formulado como impotência. Trata-se da fórmula da contingência: aquilo que pode ser ou não. 44 3. AGAMBEN, Giorgio. Bartleby o de la contingencia. In: DELEUZE, Gilles; AGAMBEN, Giorgio; PARDO, José Luis. Preferiría no hacerlo: Batleby el escribiente. Valencia: Pre-Textos, 2005. p. 93136. Bartleby é um copista. Bela metáfora da neurose obsessiva: copiar, repetir, fazer o mesmo, impedir o aparecimento da diferença, do novo. Ao renunciar à cópia e jogar-se no abismo no nada fazer, Bartleby mostra o outro lado da moeda obsessiva. O ideal de um fazer pleno – talvez um fazer de uma vez por todas, o fim do trabalho – é substituído pelo vazio absoluto do não fazer. Agamben recupera de forma magistral o fato de Bartleby ter trabalhado, antes de ir para o escritório de Wall Street, num “Dead Letter Office”, isto é, num escritório de cartas não reclamadas. Diz o filósofo: Impossível sugerir mais claramente que as cartas não reclamadas são a cifra de acontecimentos felizes que teriam podido chegar a ocorrer, mas que não se realizaram. Porque o que se realizou é, precisamente, a possibilidade contrária.4 Bartleby talvez deseje mostrar que toda carta é uma carta que pode nunca chegar ao seu destino. Ao contrário do obsessivo “clássico” que jamais admitiria uma carta perdida ou endereçada por engano. É também o obsessivo, entretanto, aquele que escreverá cartas nunca enviadas: porque são imperfeitas demais, porque nunca dizem o suficiente ou nunca claramente o que realmente precisa ser dito. Pensemos, com Jean Laplanche, na situação originária de todo bebê humano. Nós também somos, desde o início, intérpretes de cartas e mensagens, provenientes do outro. Essas mensagens sempre serão comprometidas com o inconsciente do outro, do adulto que cuida desse bebê. Para sempre teremos a tarefa de traduzir essas mensagens que vão compondo nossa própria narrativa subjetiva. Para sempre também teremos que conviver com a contingência própria a toda mensagem: poder ou poder não ser compreendida. E ainda: talvez, o ideal seja perceber que uma mensagem sempre guardará sua impossibilidade de tradução 4. AGAMBEN, 2005, p. 133. LINDONÉIA completa. Nesse sentido, é preciso pensar, como ideal de análise, algo no meio do caminho: nem tanto o obsessivo desejo de tudo saber, tudo traduzir; nem tanto a lassidão de Bartleby de poder apenas nada saber. 4. Trabalho de análise como estética da existência Há muitas maneiras de se pensar as relações entre a arte e o trabalho. Diversos artistas já criticaram o excesso de trabalho imposto pelo modo de produção capitalista. Jean Tinguely, faz máquinas trabalharem o tempo todo: do nada para o nada. Em diversas entrevistas, Tinguely admite que seu trabalho visa criticar o excesso do consumo, de um fazer que gera mais fazer, de um trabalho incessante5 . Na mesma direção que Tinguely, temos a obra de Arhtur Ganson que também produz máquinas que se movem incessantemente. Pensemos na peça Machine with Roller Chain6, por exemplo . Para além da crítica ao trabalho vazio imposto à classe trabalhadora, podemos pensar nessas obras de Tinguely e Ganson em termos mais individuais. Obras como as dos dois autores podem ser usadas como metáforas importantes desse trabalho psíquico próprio do neurótico obsessivo. Conseguimos perceber o lado cômico e o lado angustiante dessas obras7 . Assim como é possível rir do absurdo trabalho do obsessivo que lava as mãos vinte vezes assim que chega em casa, também conseguimos perceber sua agonia de não poder evitar sua compulsão, sua angústia de não poder não fazer. Disse mais acima que o fato de não sermos determinados 5. Algumas obras do autor em movimento: <http://www.youtube.com/watch?v=147VidSX6J4>. Acesso em: fev. 2013. 6. A máquina pode ser vista em movimento no seguinte endereço: <http://www.youtube.com/ watch?v=Tcw7IvGJG9s>. Acesso em: fev. 2013. 7. . Observem esse ossinho da sorte ambulante, de Arthur Ganson. Notem como estamos próximos do que Freud chamou Unheimliche, o estranho familiar, que produz algo de cômico, mas também nos angustia. Disponível em: <http://www.youtube.com/watch?v=p0sMj6xQXFI&noredirect=1>. Acesso em: fev. 2013. pelo instinto nos abre um infinito campo de possibilidades existenciais. Isso também é fruto de alegria e angústia. Ainda pintando um quadro com as cores fortes da idealização, o trabalho que podemos fazer sobre nós mesmos é um trabalho infinito. Podemos nos transformar e dar à nossa existência formatos inesperados. As contingências da “máquina do mundo” também podem nos obrigar a recompor nossa forma de vida de maneiras nunca pensadas. As grandes tragédias nos ensinam que há sim grande desejo de inércia e imutabilidade. Qual mãe não trocaria o terrível acidente que lhe retirou o filho pela muitas vezes tediosa repetição do dia-a-dia da maternagem? Ao mesmo tempo, qual mãe nunca desejou alguma libertação da repetição quase infinita do cuidado com as crianças? #02 Obviamente as possibilidades existenciais não são infinitas. Nossa história libidinal, por assim dizer, marca alguns eixos e trilhos difíceis de serem abandonados ou modificados. No limite, entretanto, acredito, a partir da psicanálise, que, por sermos sujeitos pulsionais, os limites de nossa flexibilidade existencial nunca poderão ser suficientemente demarcados8 . Se há algum elogio possível a ser feito a Bartleby – e acredito que haja – é esse: ele nos ensina, de forma trágica, evidentemente, que é possível poder não fazer. Pensar na liberdade como sustentada pelo reconhecimento dessa impotência, como retorno a um tempo originário marcado pela indecidibilidade da contingência, retorno ao momento em que sempre poderemos ser ou não ser, é fundamental para qualquer processo analítico. 5. Conclusão: a máquina do mundo Gostaria de concluir esse artigo fazendo um breve comentário à obra Máquina do Mundo, de Laura Vinci9 . Trata-se de uma 8. Cometi um curioso lapso, detectado por uma leitora atenta: escrevi “felixibilidade existencial”. O lapso revela a verdade do que quero dizer: alguma felicidade oriunda da flexibilidade. Importante pensar nessa metáfora e suas correlações morais, isto é, no que ela significa na prática ética cotidiana. 9. A obra pode ser vista no endereço que se segue, assim como uma entrevista com a artista: <http:// www.inhotim.org.br/arte/artista/view/125>. Acesso em: fev. 2013. 45 www.estrategiasdaarte.net.br máquina que leva pó de mármore de uma parte a outra. Como as máquinas de Tinguely e Ganson, Máquina do Mundo parece colocar em curso um trabalho infinito para nada ocorrer. Na entrevista que a artista concede, há duas observações preciosas. A primeira diz respeito à metáfora do mármore como elemento fundamental da história da arte e da história humana. Elemento que representa algo imutável, inflexível, intransigente. A dureza do mármore, na obra de Vinci, entretanto, é reduzida ao pó e põese em movimento. Ali onde deveríamos esperar imobilidade, nos deparamos com o movimento. Há algo de areia de ampulheta nesse pó docemente descarregado de um lado a outro. Talvez o tempo tenha sido o que restou de inflexível, o que permaneceu na montagem, representado por esse ir e vir incessante, porém esvaziado de todo sentido. A segunda observação presente na entrevista da autora é que sua obra nasce inspirada pelo poema homônimo de Drummond .10 Sem entrar em detalhes sobre esse complexo poema, gostaria de pensar no encontro daquele eu-lírico com a máquina do mundo. Como interpretar o fato do eu-lírico do poema recusar o sentido de tudo, que a máquina do mundo lhe oferece de forma tão plena e gratuita? Por que ele prefere baixar os olhos, prefere não saber o que, supostamente, todos gostaríamos de saber? Acredito que o eu-lírico “avalia o que perdera” certamente com alguma melancolia. Abrir mão, entretanto, da “ciência sublime e formidável”, da “completa explicação da vida” é também condição de possibilidade de todo trabalho psíquico, de todo trabalho que podemos fazer sobre nós mesmos, de todo trabalho ético a ser feito. Preferir não saber tudo para poder construir algum saber. Preferir não ter todas as respostas, mas poder se alegrar – mesmo que marcado por alguma melancolia – com a sedução dos enigmas. * 46 10. ANDRADE, Carlos Drummond. A máquina do mundo. In _______Poesia Completa. Rio de Janeiro: Nova Aguilar, 2002. p. 301-304. LINDONÉIA #02 Los exquisitos cuerpos de la miseria Iván Mejía R. Esta vida fuera de la ley es fascinante porque uno crea allí su propia excitación. Hay un sagrado aumento de la adrenalina. Se está obligado a ir hasta el extremo de uno mismo (...) El problema es que las cosas terminan escapándose de las manos. Larry Clark En el campo intelectual1, las condiciones de pobreza y los pobres han generado diversas ficciones teóricas visibles en cierta producción teórica, estética y artística que han hecho de ello un submundo al cual mirar, estudiar, objetualizar, como también excluir, desechar, esconder o exterminar; sujetos a quien temer, alguien a quien salvar, un cuerpo de estudio y de observación. Por ello, más que volver a estos lugares comunes habría que revisar la ideología que opera en estas construcciones; ya que como dice Rey Chow: [Hay] [...] un circuito de productividad que extrae su capital de la privación de los otros, a la par que se niega a aceptar 1. Que Bourdieu definió como un sistema de fuerzas o agentes que van definiendo su posición dentro del campo. En: BOURDIEU Pierre; Campo de poder, campo intelectual Itinerario de un concepto. Montressor, 1980 47 www.estrategiasdaarte.net.br su propia presencia en tanto que privilegiada [...] optan por ver en la impotencia de otros una imagen idealizada de sí mismos y se niegan a escuchar, en la disonancia entre el contenido y la forma de su discurso, su propia complicidad con la violencia2. Ciertamente no se puede personalizar ni tampoco responsabilizar a nadie en concreto de este tipo de violencia estructural ya que se trata de una trama de decisiones asumidas en pos de la producción de conocimiento en tanto capital simbólico3. Por ello resulta difícil reconocernos en ese entramado, porque tendemos a caer en el delirio de estar haciendo lo correcto, sin asumir que la exclusión es un fenómeno mucho más universal de lo que se admite, así como la incapacidad de constituirse uno mismo sin excluir al otro, o la imposibilidad de excluirlo sin desvalorizarlo. Situación que no hemos afrontado eficazmente porque resulta más cómodo glorificar nuestros relatos teóricos, académicos, o artísticos. Este campo intelectual, en tanto campo de poder, estudia a estos sujetos pero manteniéndolos lo más lejos posible mediante procesos invisibles de violencia institucionalizada. Cuando no, busca obsesivamente emprender campañas de salvación, domesticar a aquellos “salvajes”, poner a trabajar a los “ociosos” o disciplinar a los “criminales”, con la esperanza de que estas poblaciones algún día lleguen a “mejorar” sus circunstancias, normalizarlos e integrarlos a la sociedad y al mundo laboral. En este sentido, tendríamos que cuestionar los «paradigmas de 48 2. CHOW, Rey. Writing Diaspora, Bloomington, Indianapolis (IN), Indiana University Press, 1993, p. 14. 3. Bourdieu introduce la noción de “capital simbólico” que consiste en ciertas propiedades impalpables, inefables y cuasi-carismáticas que parecen inherentes a la naturaleza misma del agente. Tales propiedades suelen llamarse, por ejemplo, autoridad, prestigio, reputación, crédito, fama, notoriedad, honorabilidad, talento, don, gusto, inteligencia, etc. Según Bourdieu, el capital simbólico así entendido “no es más que el capital económico o cultural en cuanto conocido y reconocido” (BOURDIEU, Pierre. Choses dites, París: Ed. de Minuit., 1987. p. 160). En efecto, lejos de ser naturales o inherentes a la persona misma, tales propiedades sólo pueden existir en la medida en que sean reconocidas por los demás. Es decir, son formas de crédito otorgados a unos agentes por otros agentes (BOURDIEU, P. Creencia artística y bienes simbólicos. 1999 y en: BOURDIEU, P. (1987). ”Habitus, code, codification”, Actes de la Recherche en Sciences Sociales, núm. 64.) rescate»4 y las políticas de salvación que responden a la ansiosa y humanista tarea de “civilizarlos” mediante la cultura, el arte y los valores burgueses. Algo de esta violencia estructural puede percibirse en el burdo clasismo, pero hay otras formas más profundas y ocultas difícilmente percibidas como tales, por ejemplo al hacer de ciertos individuos objetos de estudio o soporte artístico; haciendo de ellos curiosidades etnográficas que terminan siendo refinados mecanismos de sometimiento; pues al reproducir las estructuras sociales existentes se reproducen por ende, la desigualdad5, represión y alienación a través de una violencia institucionalizada que se corresponde con las estructurales de clase. Poderes, todos ellos, que se inscriben en los cuerpos. Sin embargo, estas poblaciones con su extraña manera de mantenerse animadas en una especie de vida presocial, sabotean las pretensiones hiperfuncionalistas, haciendo imposible someterlas a un contrato social, educarlas, regularlas, controlarlas, medirlas y ordenarlas. Al intentar comprenderlas, teoría y práctica artística pocas veces son compatibles con la situación de aquella parte de la población para su subsistencia desarrolla actividades al margen de la legalidad, pues tal como dice Laclau, el campo de la representación es siempre: “un espejo turbio y roto, interrumpido constantemente por un “real” heterogéneo al cual no se puede dominar simbólicamente”6. Estos sujetos no son fácilmente aprehensibles, no saben de reglas ni de límites, viven en la indisciplina, la desobediencia, y en una 4. SUNDER, Rajan, Ra. Real and Imagined Women. Gender, Culture and Postcolonialism, Londres, Routledge, p. 6. 5. APUD en: FERNÁNDEZ, Herrería. (1993). “Violencia estructural”, Revista interuniversitaria, 22, 1995, pp- 21-38. 6. LACLAU, E.: op. Cit. 177. FIG. 01 .Grasa de cadáver embarrada sobre una persona, Teresa Margolles LINDONÉIA FIG. 02. Santiago Sierra, “LÍNEA DE 250 CM. TATUADA SOBRE 6 PERSONAS REMUNERADAS” Espacio Aglutinador. La Habana, Cuba. Diciembre de 1999 actitud de indiferencia hacia “personajes ejemplares”; pasan el tiempo delinquiendo como un impulso de desafío social. Disfrutan su muy particular cotidianidad, su vagabundeo predatorio, sus “buenas pasadas” en el orden construido por el “fuer¬te”; moviéndose en infinitas variedades de pasos sin sentido y sin objetivo. En tanto, el cuerpo y el deseo se vuelven tan temibles, fascinantes, y exquisitas para ojos ajenos como el campo teórico, académico y artístico. Por ejemplo, en el arte durante las últimas décadas hemos visto una frecuente presencia de estas poblaciones que ha causado gran interés o mera curiosidad: Francis Alÿs (Antwerp, Bélgica, 1959) ha fotografiado vendedores “Ambulantes” (1992-2002) de la Ciudad de México. Teresa Margolles (México 1963) ha embarrado grasa de cadáver a una persona a la que remuneró. Santiago Sierra (España, 1966) hizo que indígenas tzotziles aprendan el idioma español (“11 personas remuneradas para aprender una frase”, 2001); que invidentes tocaran y cantaran en una galería (“2 maraqueros”, 2002); o que un niño en condiciones de calle limpie el calzado de los asistentes a una inauguración (“Persona remunerada para limpiar el calzado de los asistentes a una inauguración sin el consentimiento de éstos”, 2000). También, Alexander Apóstol (Venezuela, 1969) ha fotografiado a delincuentes del Barrio de Antímano en Caracas, (“Them as a Fountain”, 2003) o videado transexuales que se prostituyen en Caracas, Venezuela (“Av. Libertador”, video, 4:30 min, 2006). Tomas Ochoa (Ecuador, 1969), representa la relación foucaltiana vigilancia-castigo-cuerpo de menores en el reformatorio en Mendoza, Argentina (“5 Puntos”, video Installation, 2005) y con emigrantes latinoamericanos aparentemente ‘integrados’ en el mercado laboral español (“Indios medievales parte 2”, 2008). El binomio de artistas Mauricio Dias (Brasil, 1964) & Walter Riedweg (Suiza, 1955) filma a bailarines funk de las favelas de Rio de Janeiro para establecer una conexión entre la escena del Funk Carioca y el libro: Verdadera historia y descripción de un país de salvajes, feroces y caníbales escrito en 1557 por Hans Staden (15271578) que funda en el imaginario europeo la representación del trópico salvaje y del caníbal (“Funk Staden”, video-instalación, 2007). Y el artista Juan Manuel Echeverría (Colombia, 1947) filma cantos de sobrevivientes campesinos, obligados a dejar su hogar, para entrar a formar parte del conjunto de indigentes en las urbes colombianas (“Bocas de ceniza”, video, 2003, 2004). #02 FIG. 03. Santiago Sierra, “LÍNEA DE 10 PULGADAS RASURADA FIG. 04. Santiago Sierra “10 PERSONAS REMUNERADAS SOBRE LAS CABEZAS DE 2 HEROINÓMANOS REMUNERADOS PARA MASTURBARSE”. Calle Tejadillo. La Habana, Cuba. CON UNA DOSIS CADA UNO”. Calle Fortaleza 302. San Juan Noviembre de 2000 de Puerto Rico, Puerto Rico. 2000 49 Mauricio Dias & Walter Riedweg “Funk Staden” video instalación 2007 temor, e incluso erotismo; y no están exentos de agujeros y fantasías, pues suelen proyectar determinadas ansiedades e idealizaciones sobre estos cuerpos/sujetos. En principio esta producción artística ha favorecido el aparecimiento de estos sujetos en los territorios centrales o intentos de inclusión de los desclasados para que adquieran visibilidad social y presencia pública pero ¿de qué manera? en realidad el emplazamiento de esta población ha sido un mero pretexto intelectual pero nunca será incluida en el mundo del arte ni en la historia en general más que desde el punto de vista de su capacidad para sustraerse al orden de los discursos dominantes. Más bien, al visualizar a esta población se transparentan los focos de poder que permiten el surgimiento de saberes transformados en discursos que siempre son un acto de poder; en el sentido en que determinan lo que es visible y cómo es visible. Al ir tras una población heterogénea compuesta por sujetos desclasados: indigentes, inmigrantes, refugiados, personas sin hogar, prostitutas, campesinos y demás individuos que fuera de los estratos sociales sobreviven en condiciones de inhospitalidad, rechazo, y exclusión, que forman guetos, favelas o ciudades perdidas cuando no se dispersan por todo el espacio social, los cuerpos quedan atrapados entre el voyerismo y un «paradigma del rescate»7 , estereotipos que oscilan entre los extremos de la victimidad/heroicidad, compasión/glorificación, prejuicio/ 50 7. Ra Sunder Rajan, Real and Imagined Women. Gender, Culture and Postcolonialism, Londres, Routledge, 1993, p. 6. Aquí me parece necesario echar un vistazo, más que a la noción de cuerpo o de sujeto, a las ficciones teóricas que se han construido sobre los cuerpos/sujetos en condiciones de pobreza. Es a finales del s. XVIII cuando esta se concretó como uno de los grandes temas para diversas disciplinas; mismas que pusieron énfasis en la distribución sobre los recursos más que en juicios morales sobre los pobres, y como problema social más que individual. Y es en los siglos XIX y XX cuando los pobres comienzan a ser idealizados en diversas figuras teóricas. Muchas de éstas se construyeron desde la filosofía, tal como lo expone Jaques Rancière en The pshilosopher and his poor8 , quien encuentra representaciones como “plebe”, “proletarios”, “masas” o “gente común”, articuladas por Marx, Sartre o Bourdieu, entre otros filósofos o sociólogos que dejan entrever cómo cada uno de ellos construyó su propio ideal del pobre. Se suman a este cuadro otros términos como “subalterno” articulado por Gramsci9 , retomado después por los estudios postcoloniales; los “condenados de la tierra” por Fanon10 ; “pueblo” utilizado por Laclau11 ; o “multitud” discutido por Hard, Negri12 y Virno13 . También, en el léxico de Bauman encontramos otros términos como “parias”, “población excedente”, “superflua”, “supernumeraria”, “innecesaria” y “desechable”, producida como una consecuencia inevitable de la modernización14. 8. RANCIÈRE, Jacques. The pshilosopher and his poor, Duke University Press, 2004. 9. GRAMSCI, Antonio. Selections from the Prison Notebooks, London, Lawrence and Wishart, 1973. Y GUHA, R “On some aspects of the historiography of colonial India” R. Guha (ed) Subaltern Studies I: Writings on South Asian History & Society, New Delhi: Oxford University Press, India, 1982. 10. FANON, Frantz. Los condenados de la tierra, Ed. Fondo de Cultura Económica, 2009. 11. LACLAU, Ernesto. La Razón Populista, FCE, Buenos Aires, 2005, p. 177. 12. HARDT, Michel. y NEGRI Antonio; Multitud. Guerra y democracia en la era del Imperio. Ed. Debate. 2004. 13. VIRNO, Paolo, Gramática de la multitud. Para un análisis de las formas de vida contemporáneas. Madrid: Traficantes de Sueños, 2003. 14. Zygmunt Bauman ha estudiado esta “población excedente” o “residuos humanos” en varios de sus LINDONÉIA en El dieciocho brumario de Luis Bonaparte18 y generó una muy seria discusión. #02 En dicho texto de 1852, Marx articuló el término “lumpenproletariado” para referirse a una población sin historia, el lastre de la humanidad, la “hez, el desecho y la escoria” de la sociedad; aquellos proletarios irredimibles y alienados que conformaban el “ejército de reserva”: Alexander Apostol (Caracas, Venezuela, 1969) From the series: “Them as a Fountain“, Fotografía Digital 100 x 100 cm. c/u. 2003 También viene al caso la noción de “vidas precarias” que sirve a Butler para observar la distinción entre aquellas vidas que merecen ser lloradas y aquéllas que no15. Así mismo, la figura de homo sacer que Agamben retoma del derecho romano, que refiere a una población producida a través de un complejo proceso legal que transforma a ciertos sujetos en “nuda vida”, “situada fuera de la jurisdicción humana”, desprovista de valor y al margen de la ley16. Resulta interesante observar que todas estas figuras relevan una oscilación entre dos valoraciones opuestas. Por un lado, encontramos figuras de pobres “dignos”, honestos, generosos, trabajadores, que representan la fuerza de la revolución. Y por otro, pobres “indignos”, antisociales, violentos, incívicos, criminales, ociosos e improductivos17 ; es decir, una astilla para el progreso. Estos últimos, conforman -en palabras de Marx- una masa informe, difusa y errante, cuyo punto de partida se encuentra libros, y para la elaboración de esta investigación se están consultando: (1996): Las consecuencias perversas de la modernidad. Barcelona. Anthropos. (1997): Legisladores e intérpretes: Sobre la modernidad, la postmodernidad y los intelectuales. Buenos Aires, Universidad Nacional de Quilmes. (1998): Homo Sacer. El poder soberano y la nuda vida. Pre-Textos. Valencia. (1999): La globalización: Consecuencias humanas. México, Fondo de Cultura Económica. (2000): Trabajo, consumismo y nuevos pobres. Barcelona, Gedisa. (2001): La postmodernidad y sus descontentos. Madrid, Akal. Y, (2005): Vidas desperdiciadas: La modernidad y sus parias. Barcelona, Paidós Ibérica, 15. BUTLER, Judith; Vidas precarias. El poder del duelo y la violencia. Editorial Paidós, 2006. 16. AGAMBEN, Giorgio. Homo Sacer. El poder soberano y la nuda vida. Pre-Textos. Valencia 1998, p. 32. 17. Para profundizar en este tema pude consultarse: PEREYRA, Guillermo. (2007). “Heterogeneidad, improductividad y ocio”. Revista de Investigación Social Andamios, junio/año vol. 3, número 006. Universidad Autónoma de la Ciudad de México. …libertinos arruinados, con equívocos medios de vida y de equívoca procedencia, junto a vástagos degenerados y aventureros de la burguesía, vagabundos, licenciados de tropa, licenciados de presidio, esclavos huidos de galeras, timadores, saltimbanquis, lazzaroni, carteristas y rateros, jugadores, alcahuetes, dueños de burdeles, mozos de cuerda, escritorzuelos, organilleros, traperos, afiladores, caldereros, mendigos; en una palabra, toda esa masa informe, difusa y errante... 19 En esta cita, pareciera que Marx repudiaba algo que no pudo delimitar conceptualmente y por lo tanto, enunciaba una larga lista de adjetivos para intentar referirse a algo que se le escapaba de las manos. Reaccionando contra Marx, Bakunin sostenía que ese lumpenproletariado era la población verdaderamente revolucionaria, ya que no tenía absolutamente nada que perder y por lo tanto podía llevar a cabo una insurrección totalmente destructora dirigida contra el Estado20. También Fanon vio en ese lumpenproletariado –figura que sustituyó por la de Los condenados de la tierra- una fuerza implacable dentro del orden social blanco y burgués: 18. Escrito durante Diciembre de 1851 a marzo de 1852. Primera Edición: En la revista Die Revolution, Nueva York, EEUU, 1852, con el título “Der Achtzehnte Brumaire des Louis Bonaparte”. Fuente: C. Marx y F. Engels, Obras escogidas en tres tomos, Editorial Progreso, Moscú 1979, Tomo I, páginas 404 a 498. Edición Digital: Por la Red Vasca Roja; digitalizado y preparado por José Julagaray, Donostia, Gipuzkoa, Euskal Herria, 25 de septiembre de 1997. Disponible en: http:// www.marxists.org/espanol/m-e/1850s/brumaire/brum1.htm 19. MARX, Karl. Op. cit. P. 137. Las cursivas son mías. 20. El anarquista Mijaíl Bakunin mantenía la opinión de que Marx exageraba la importancia de la clase trabajadora, al tiempo que sostuvo que los intelectuales, los estudiantes, el lumpenproletariado (los desclasados) y la clase media, representante de la democracia burguesa, eran los más probables agentes de la revolución. 51 producción22. Sin embargo, Peter Stallybrass23 – siguiendo a Otto Bauer24 - planteó que cuando Marx utiliza la categoría de lumpenproletariado no estaba caracterizando a un sujeto sino describiendo un proceso. Still from “5 DOTS”, Tomás Ochoa, Video Installation, 1 Channels / 11min. 2005. © Tomás Ochoa Imagen cortesía de Tomás Ochoa y Adriana Meyer La cuestión es que hay una problemática naturaleza al tratar de ir tras las huellas del pobre por la objetualización que la propia búsqueda acarrea. Si bien, las “descripciones” aludidas producen un fuerte efecto de verosimilitud, objetividad y neutralidad, es posible visualizar ciertas idealizaciones que corresponden más a la ideología del artista o del teórico que a la realidad del pobre. Tampoco hay que caer en la ilusión de que a través del arte y del discurso privilegiado se está ayudando a salvarlos25, e identificar los focos de poder que permiten el surgimiento de saberes transformados en discursos. Incluso, tendríamos que preguntarnos si es posible configurar un espacio para quienes han sido empujados a los márgenes de la historia o por contrario, asumir nuestro fracaso al intentar comprenderlos, representarlos, o describirlos, ya que nunca se puede estar en plena concordancia con ellos porque son el límite absoluto de la historia y de lo social y al incluirlos se opta por idealizarlos en relatos literarios26. Ese lumpen-proletariat que como una jauría de ratas, a pesar de las patadas, de las pedradas, sigue royendo las raíces del árbol (…) constituido y pesando con todas sus fuerzas sobre la “seguridad” de la ciudad significa la podredumbre irreversible, la gangrena (…) los rufianes, los granujas, los vagos, (…) esos subhombres (…) que oscilan entre la locura y el suicidio… 21 Paul Mattick se sumó a la discusión sustentando que solo la estrechez de miras de la pequeña burguesía – Marx indirectamente aludido – podía señalar con desprecio al lumpenproletariado. Pero que en esta figura podían ver la cara de su propio futuro sino redoblaban sus esfuerzos por cambiar las relaciones de 52 21.. FANON, Frantz. Los condenados de la tierra, Ed. Fondo de Cultura Económica, 2009. Traducción de Julieta Campos. Prólogo de Jean Paul Sartre. p. 80. Las reiteradas visitas a esta especie de vida presocial, supone un constante deseo voyerista de ver cómo es la vida de los que están “del otro lado” o “allá abajo”. No viene al caso diferenciar si este deseo es simple curiosidad o una búsqueda embelesada por una política de la salvación; el hecho es que confirman la imposibilidad de que estas poblaciones pudieran enunciarse a sí 22. MATTICK, Paul. (1935). “La hez de la humanidad”. La versión original, titulada “The scum of humanity”, apareció en la revista International Council Correspondence [Correspondencia Consejista Internacional] en marzo de 1935. La versión electrónica se puede consultar en la página del Círculo Internacional de Comunistas Antibolcheviques. Traducido y publicado digitalmente por el Colective Action Notes en: www.geocities.com/CapitolHill/Lobby/2379/ Y corregido por el Círculo Internacional de Comunistas Antibolcheviques http://members.fortunecity.com/cica/ p. 10. 1935. 23. STALLYBRASS, Peter. (1990) “Marx and Heterogeneity: Thinking the Lumpenproletariat”, en Representations, Vol. 0, num. 31, The margins of identity in Nineteenth-Century England, pp. 65-95 (p. 84). Hay una versión en español: STALLYBRASS, Peter. (2000). “Marx y la heterogeneidad” Pensando en el lumpenproletariado.. Ojo Mocho n º 15. Argentina. 24. Citado por: RODRÍGUEZ Esteban, en: Vida lumpen: bestiario de la multitud. Colección Sociales, Edulp, 2007. 25. R. Chow, Writing Diaspora, op. cit., p. 119 26. APUD en: Rey Chow, op. cit. p. 14. LINDONÉIA mismas27. Viene al caso la pregunta formulada por Gayatri Spivak “¿Pueden hablar los subalternos?”28 y una posible respuesta sería que la cuestión no es si los pobres puedan o quieran hablar o autoenunciarse, la cuestión más bien es que nadie está interesado en escucharles, sólo en observarles. Así, el estudio de la pobreza ha interesado sólo por el conocimiento que se pueda producir. No parece posible escapar de la postura antropológica que pretende mirar, observar y diseccionar al pobre bajo el manto del conocimiento científico; ni evitar las cómodas dicotomías de ellos/nosotros, bueno/malo, héroe/víctima, o escapar de la trampa lingüística de víctimas/criminales, al intentar referiros a esta población heterogénea. Una población que para su subsistencia, realiza actividades al margen de la legalidad y en la marginación social, que permanecen ajenos a la modernidad y el capitalismo, y no necesariamente son “víctimas colaterales”, como dice Bauman, aunque ciertamente si una “población excedente”, supernumeraria, innecesaria y desechable29. Su condición es la de estar negadas, sin un proyecto que los incluya o al que deseen sumarse, pues no tienen el ánimo de participar en un sistema que los ha hundido ya en el basurero de la historia. De igual manera, estos cuerpos se funden en la ansiedad de la metafunción del Estado, en tanto que suministran el fundamento para ejercicios de autoridad frente a la intensificación de los temores, ante la amenaza a la seguridad social y personal, ante el límite del proceso de descomposición, ante los parásitos, la escoria social, que si no son exterminados es por el simple hecho de que resultaría más costoso que simplemente dejarlos morir o que se maten entre ellos. #02 No hay posibilidad de negociación ni de diálogo con estos cuerpos indisciplinados que eluden todo compromiso con las convenciones sociales. Personajes anónimos que se dedican prácticas que la sociedad no tolera: prostitución, vagabundeo, delincuencia, ocio y que desprecia sus valores. Estas jóvenes vidas urbanas, fútiles, insustanciales e intrascendentes, no cuentan con un espacio visible ni con un proyecto global que pueda hacerse objetivo; operan allí donde no se le espera: en las circunstancias que el instante preciso de una intervención transforma en situación favo¬rable, en la rapidez de movimientos, creando una energía no regulada, no disciplinada, ni medible. Y desarrollan diferentes y extrañas maneras de mantenerse animadas; no son algo que deba ser rescatado, educado o dominado, son fuerzas y energías que desbordan cualquier figuración teórica o artística. * Por ello, las figuras de los pobres en el arte y en la teoría académica no representan una inclusión de lo excluido dentro de una ontología establecida. Aquellos que son irreales ya han sufrido la violencia de la des-realización, la ocultación y la exclusión. 27. PERIS, Blanes, Jaume; La imposible voz, Memoria y representación de los campos de concentración en Chile: la posición del testigo. Editorial Cuarto Propio, Chile, 2005. 28. G. C. Spivak, «Can the subaltern Speak?», en L. Grossberg y C. Nelson (eds.), Marxism and the Interpretation of Culture, Urbana y Chicago, University of Illinois Press, 1988. pp. 271-313. 29. Zygmunt Bauman ha estudiado esta “población excedente”, “residuos humanos” en varios de sus libros, pero para la elaboración de este texto se consultó: Modernidad y ambivalencia. En Beriain, Josetxo (Comp.), Las consecuencias perversas de la modernidad. Barcelona. Anthropos. 1996. Legisladores e intérpretes: Sobre la modernidad, la postmodernidad y los intelectuales. Buenos Aires. Universidad Nacional de Quilmes. 1997. Trabajo, consumismo y nuevos pobres. Barcelona. Gedisa. 2000. La postmodernidad y sus descontentos. Madrid. Akal. 2001. La globalización: Consecuencias humanas. México. Fondo de Cultura Económica. 1999. 53 Fabíola Tasca, em obra project, 2012-2016. LINDONÉIA em obra project - 2ª edição 1 8 (oito) títulos ocupacionais pintados sobre 8 (oito) camisetas. as camisetas não são vendidas, não são doadas, não são emprestadas e não devem ser compreendidas como alguma espécie de brinde. as camisetas constituem uma classe de objetos muito específica, como o são certos bilhetes de acesso. as camisetas não são destinadas a uma ou outra pessoa determinada, mas, estão prontas para serem adquiridas por um usuário que queira assumir a relação de compromisso descrita nos seguintes termos: 8 (eight) occupational titles painted onto 8 (eight) t-shirts. the t-shirts are not sold, are not donated, are not lent and should not be understood as some sort of giveaway. the t-shirts constitute a very specific class of objects, as are certain access tickets. the t-shirts are not meant for one or another particular person, but are ready to be acquired by any user who wishes to take on the relationship of commitment described in the following terms: 2 vestir a camiseta. enviar para a artista o seu relato sobre a(s) ação (ações) que você realizou enquanto usava a camiseta, lembrando-se de mencionar o tempo consumido na(s) tarefa(s). wear the t-shirt. send the artist your report on the action(s) that you performed while wearing the t-shirt, remembering to mention the time consumed on the task(s). 3 dúvidas frequentes: como posso adquirir a camiseta? o que é um relato? como devo enviar o meu relato? há algum formato para o relato? até quando posso enviar o meu relato? o que eu vou fazer com o seu relato? o que acontece se eu não enviar o meu relato? #02 frequently asked questions: how can I acquire the t-shirt? what is a report? how should I submit my report? is there any format for the report? until when can I send my report? what am I going to do with your report? what happens if I do not send my report? 4 as camisetas são cedidas mediante assinatura do Termo de Compromisso, conforme combinado com a artista. em caso de não recebimento do relato até o dia 31 de dezembro de 2013 não acontece nada e o seu nome não será mencionado como partícipe do projeto. the t-shirts are granted upon the signing of the Term of Commitment, as agreed with the artist. in the case of not receiving the report until December 31, 2013 nothing happens and your name will not be mentioned as a participant in the project. 5 receberei os relatos via e-mail e/ou correio e, desde já, agradeço pelo seu trabalho. I will be receiving the reports via e-mail and/or post, and I thank you in advance for your work. Fabíola Tasca Rua Califórnia 295 apt. 701, Sion. Belo Horizonte MG 30315-500 [email protected] 55 www.estrategiasdaarte.net.br 6 ajudante de derrubada/ clearcutting helper (Michelly Zorzal Sugui) instrutor de curso livre/ free course instructor (Barbara Mól) analista de areias em fundição / analyst in foundry sands desmembrador de mocotó dianteiro / separator of the cow´s front leg instalador de lodo para sondagem / installer of muck for the standart penetration test varredor de vias provisórias / sweeper of ínterim lanes modelador de corpos de prova / test body shaper selecionador de castanha de caju / cashew nut picker embalador de mudas e mudança / seedling and moving packer afiador de tesouras ambulantes / sharpener of traveling scissors 7 se estamos de pleno acordo com as condições deste Termo de Compromisso, assinamos o presente instrumento, na presença de 2 (duas) testemunhas, em 2 (duas) vias de igual teor e forma. if we fully agree with the conditions of this Term of Commitment, we sign the present instrument, in the presence of 2 (two) witnesses, in 2 (two) counterparts of same content and form. Revista Lindonéia #2 _________________________________________________________ Fabíola Tasca - artista responsável/ artist in charge 56 LINDONÉIA #02 Sobre ser um crítico Antonio Marcos Pereira Há algum tempo me dei conta de que não conhecia textos publicados aqui no Brasil que falassem sobre ser um crítico. Como funciona esse trabalho? Como alguém se forma para executar esse trabalho? Como um crítico é remunerado? Como se diferencia a qualidade desse trabalho? Qual pode ser o plano de carreira de um crítico? Encontrei discussões de outra ordem – sobre o problema do valor estético, sobre definições concorrentes de crítica – mas nada cujo foco estivesse em uma dimensão mais ordinária, mas que também tinha sua importância. Afinal, ninguém negaria que a crítica, além de ser uma dimensão do pensamento, é um exercício profissional: pessoas são contratadas e remuneradas como prestadoras de serviços especializados nessa capacidade, e respondem por ela na condição de autores de material para publicação, compiladores, jurados de concursos e avaliadores de propostas concorrentes a recursos distribuídos por editais públicos. Se tudo isso ocorre, esse exercício também pode ser descrito, analisado, comparado, debatido a partir de suas condições factuais de execução. Mas aí, curiosamente, ninguém parece querer meter a mão1 . 1. No mundo anglófono a situação é algo diferente: publicações como o livro organizado por H. Aram Veeser, Confessions of the Critics (New York: Routledge, 1996) e o conjunto de extensas entrevistas realizadas por Jeffrey J. Williams, Critics at work (New York: New York University Press, 2004) possibilitam uma retratação do exercício profissional dos críticos nos Estados Unidos que, embora precise de alguma atualização e de dar conta também daqueles que ocupam lugares menores 57 www.estrategiasdaarte.net.br Podemos levantar várias hipóteses sobre as razões disso. Uma seria que o exercício crítico, embora seja exercício profissional, não dá cobertor para ninguém, e bem poucos, aqui no Brasil, sobrevivem exclusivamente dele. Meu caso é típico: sou professor e crítico literário, e malgrado o prestígio talvez mais aparente do trabalho como crítico, é o labor docente que responde não só pela carga de trabalho maior, mas também pela remuneração mais relevante. Embora eu possa confirmar isso em meu círculo próximo de relacionamentos – no qual todos os críticos são ou jornalistas, ou professores, ou alguma outra coisa além de críticos literários – não tenho certeza quanto à impossibilidade, ou inexistência, de um crítico tout court em exercício no Brasil: não tive acesso a nenhum recenseamento do trabalho e de suas condições, e creio mesmo que ainda não existe tal coisa. Indico isso apenas para reafirmar minha crença de que a profissionalidade existe, mas sua fisionomia é invisível ou, na melhor das hipóteses, muito imprecisa e vaga entre nós. Tenho me esforçado para operar contra esse caráter enevoado da coisa procurando escrever a respeito de minha própria trajetória como crítico, para ver se o comentário a respeito do que escrevi diz se o que teve lugar comigo é paradigmático ou eventual. Em um texto anterior 2, comentei o que me parecia ser um momento esquecido porém importante, que é o momento em que emerge o desejo de ser crítico, em que você acolhe o desejo de ocupar o lugar de comentador da cultura a partir de um viés particular. Tentei elaborar algo em torno desse tema aludindo à tradição do Romance de Formação e à história, conhecida, de formação profissional de Lévi-Strauss (que dizia ter se tornado etnólogo graças a um telefonema). Esse tipo de preocupação me aproximou de um texto de Brian Eno, intitulado “Sobre ser um artista” 3. Nesse texto – na verdade, 58 na hierarquia da crítica, parece muito mais detalhado do que o que se poderia produzir no caso brasileiro. 2. O texto é “Eu era um crítico juvenil”, e foi publicado na coletânea organizada por Milena Britto de Queiroz, Leituras possíveis nas frestas do cotidiano (Salvador: FUNCEB, 2012, p. 29-43). 3. Em A year with swollen appendices (London: Faber and Faber, 1996, p. 373-374). um apontamento relativamente breve, parte dos apêndices que acompanham o diário que Eno escreveu durante o ano de 1995 – Eno busca distinguir duas dimensões da atividade artística, uma interna e uma externa, um “dentro” e um “fora”: Trabalhar dentro é lidar com as condições internas do trabalho – as melodias, os ritmos, as texturas, as letras, as imagens: todas as coisas normais e cotidianas que imaginamos que um artista faz.Trabalhar fora é lidar com o mundo que circunda o trabalho – os pensamentos, premissas, expectativas, lendas, histórias, estruturas econômicas, respostas críticas, questões legais e assim por diante. Você pode considerar que essas coisas são a moldura, o enquadramento do trabalho.4 Essa distinção, rudimentar e didática, é proposta apenas para ser problematizada por Eno: é sugerida como algo que se conforma ao nosso entendimento tradicional das dimensões do trabalho artístico, implicando em um conjunto de operações que constituiriam a fatura da arte de fato, seu núcleo, e outro conjunto que estaria à periferia, secundário, posterior. Uma coisa é a arte pra valer, e a outra já é parte das consequências ou efeitos da arte pra valer que foi feita. O texto prossegue encaminhando questões em sequência, sugerindo a existência de trabalhos que “são quase que só enquadramento, o que quer dizer que quase todo seu poder deriva daquilo que pode ser dito a respeito deles, daquilo que pode ser colocado em conexão com eles” (p.374), e apresenta como exemplo disso o conto de Borges, “Pierre Menard, Autor do Quixote”. Relendo esse texto de Eno recentemente, pensei se havia um paralelo possível entre o que ele elabora e o trabalho do crítico. Qual seria a distribuição tradicional de interno e externo para o trabalho do crítico? O que está “dentro” e o que está “fora”? Tentei 4. m A year with swollen appendices (London: Faber and Faber, 1996, (p. 373, tradução minha) LINDONÉIA várias alternativas, mas não consegui ir adiante. Consegui, todavia, recuperar um episódio esquecido que parecia ter uma conexão oportuna com essa discussão. Quando eu estava fazendo o doutorado, por volta de 2004, vi uma conferência do critico de arte Rodrigo Naves, na Escola Guignard: ele era o convidado especial de um evento que a Escola tinha promovido, e fez a conferência de encerramento. Não lembro de muitos detalhes: quem foi o professor ou professora que o apresentou, como ele introduziu os problemas, como os desenvolveu, exatamente que temas explorou e que obras exibiu e comentou. Mas lembro de alguns detalhes muito vividamente: como o auditório estava lotado, e a veemência com que ele conduziu a fala para uma peroração que era de fato um clímax, um ponto polêmico que se transformava no ápice do argumento de tal maneira que é quase apenas disso que me lembro com clareza. Obviamente não lembro exatamente do que ele disse, e não posso citar nada verbatim. Mas, por mais que a memória seja errática e falha, confio nela agora, e lembro que ele disse algo como “Leonardo Da Vinci, deixado na Praça Sete, sobrevive; Duchamp, não”. A Praça Sete, uma espécie de núcleo do centro de Belo Horizonte, com seu obelisco e suas várias faixas, pedestres, carros, ônibus e o frenesi gasto característico do centro velho das cidades grandes: imaginei a Mona Lisa na Praça Sete, e imaginei lá também o Urinol de R. Mutt. É claro que com isso Naves queria produzir uma taxonomia que era também uma hierarquia. Da Vinci, na visão dele, funcionaria “fora” do mundo da Arte, pois o que ele produziu era mobilizado e mobilizava algo que não era parasítico com relação a um espaço expositivo em particular, ou a condições preparadas de modulação da atenção como as que a gente encontra nos locais em que a Arte justifica a instituição que a abriga. Nesse sentido, Duchamp era o primo pobre e espertinho, que inventou uma traquinagem vampira, cujo funcionamento dependia totalmente do sistema da Arte que, por sua vez, construído por Arte maiúscula como a produzida por Da Vinci, poderia eventualmente fornecer algo do seu sangue para a sobrevivência da forma parasitária. Pendurado na Praça Sete, em seu conhecido obelisco, um ready made não produziria nada – mas a Mona Lisa produziria, insinuava Naves, um “Ohhh!”, ou alguma forma de encontro com o extraordinário, do qual ela mesma seria uma instância. #02 Essa classificação me incomodou muitíssimo à época, me pareceu injusta e equivocada. Tive muita vontade de fazer uma pergunta, propor um questionamento ao final – pois me parecia que há, sem dúvida, diferenças entre o urinol de Duchamp e um quadro de Da Vinci, mas talvez a coisa não seja tão simples assim. Ou, talvez, o custo maior da simplificação seja um certo embotamento de nossa capacidade de discriminação sutil, que é o que os leigos chamam de sensibilidade e que, supostamente, é algo que deveria ser apreciado e cultivado por nós, interessados em Arte. É bem possível, pensava eu, imaginando as obras lançadas na Praça Sete, que Da Vinci fosse muito ignorado também. Mesmo nos casos em que fosse reconhecido, tal não se deveria a qualquer imanência da obra que – digamos, apelando um pouco – exsudaria um aroma sedutor, capaz de capturar e reconduzir a atenção dos passantes. As pessoas que reconhecessem Da Vinci o fariam por força de educação, instrução, desenvolvimento de um jeito de prestar atenção que resulta na rotulação daquilo como Arte, e arte de um tipo em particular: esse tipo, que grafamos em maiúsculas, e diante do qual dizemos “Ohhh!”. Pela mesma via, observar um ready made como Arte, do mesmo jeito que se observaria uma tela de Da Vinci – ora, não era isso mesmo que se buscava pôr em xeque com o ready made? Nesse sentido, se o ready made fosse ignorado na praça, tudo estava correto e de acordo com o programado – pois não me parece que fosse o caso tampouco de contemplá-los lá no museu: um urinol, uma pá. Provavelmente Naves percebia a complexidade da coisa – antes de meu nascimento o homem já estava embrenhado com crítica de Arte, e há um sedimento de reflexão e autocrítica quase garantido, sustentando o que ele fazia na conferência, incluindo aí a peroração bombástica que tanto me incomodou. Eu queria 59 www.estrategiasdaarte.net.br debater, o que quer dizer que queria expor meu incômodo, ouvir mais a respeito, alcançar algum esclarecimento e, com isso, sair da perplexidade desagradada em que me encontrava – mas era o momento final da conferência e do evento, era a hora de muitos aplausos e eu, temeroso e estudantil, me contive. Silenciei, os dias passaram, os anos passaram, e o incidente retornou agora justamente porque eu desejava comentar o que Eno tinha escrito sobre artistas, produzindo um paralelo com os críticos. Se, há dez anos, não tive condições de responder ao que me incomodava, e traduzir esse incômodo sob a forma de uma interpelação dirigida ao crítico mais velho, colocaria agora a questão, nem que fosse obliquamente, operando a partir da longevidade do problema para mim. O que havia ali, no que Naves propunha, que poderia ser acoplado à distinção proposta por Eno para ser, depois, devidamente implodido, como Eno faz em seu texto? Onde estava o cerne contraditório, o pulso de ambivalência daquilo que eu recordava ter sido dito por Naves mas que depois, tantas vezes, reapareceu para mim? E, por esse vai e vem do pensamento, e talvez pela força do significante “moldura”, que aparece no texto de Eno, lembrei de um trabalho de Mark Tansey. FIG. 02. O mito da profundidade Tansey já gerou fortuna crítica abundante ; seu trabalho convida isso como poucos. Seus quadros parecem sempre aludir ou comentar algum incidente da história da arte ou da crítica; seu realismo é marcado pelo uso de clichês de fantasia e pela lógica da ilustração dedicada a produzir comentários a respeito de Barthes, Derrida, Greenberg, o estruturalismo e suas consequências e 5 FIG. 1. Mark Tansey, Descartando a moldura. 60 5. Cito apenas dois casos: um, que de certa forma se transformou na referência incontornável sobre Tansey, é o livro de Arthur C. Danto, Mark Tansey: Visions and Revisions (New York: Henry Abrams, 1992); outro, que é uma tentativa mais recente, e mais explícita, de explorar as conexões entre os trabalhos de Tansey e o pensamento pós-estruturalista, é o livro de Mark C. Taylor, The picture in question: Mark Tansey and the ends of representation (Chicago: The University of Chicago Press, 1999). LINDONÉIA outros temas do mesmo pacote. Vemos esses personagens, habitantes do nosso repertório histórico e crítico, aludidos nos títulos, aparecendo nos quadros, em situações que são insólitas e enigmáticas e, simultaneamente, cristalinas. Em “O mito da profundidade”, de 1984, vemos um barquinho salva-vidas cheio de gente no meio do oceano. No barquinho estão Rothko, Motherwell, Frankenthaler e Arshile Gorky e, inconfundível, Greenberg, que, com o dedo em riste, aponta para uma figura andando miraculosamente sobre as águas: é, obviamente, Pollock. Em “Derrida interroga DeMan”, de 1990, há dois homens, num enclave entre as montanhas, em uma situação precária e indecidível. Como chegaram ali? Estão se atracando? Estão dançando? Estão à beira de um precipício, e um exame mais cuidadoso FIG. 03 . revela que as montanhas são, aparentemente, feitas de texto, Derrida interroga de Man camadas e camadas de texto, texto sedimentado e compactado formando tudo que há ali como sustentáculo do que quer que estejam fazendo os protagonistas. Esses trabalhos são uma espécie de Gaia Ciência do comentário sobre a Arte: há jogo e provocação mesclados à erudição, que ao mesmo tempo aparece como um saber enciclopédico, consistente, incisivo e jocoso. Os “comentários” de Tansey à história e à crítica de Arte são realizados com meios da Arte que é, por sua vez, parte do comentário, em um mise en abyme que complica enormemente a tarefa de alguém que, como é meu caso neste momento, quer produzir um comentário ligeiro a seu respeito. No trabalho em que Greenberg aparece, a mensagem se insinua claramente: Pollock é capaz de operar milagres, e Greenberg aponta para esse fato, dirigindo o olhar dos outros artistas para o feito excepcional; o título, “Mito da profundidade”, parece apenas reiterar o que sabemos a respeito de um núcleo de valorização da obra de Pollock por Greenberg, que forja uma noção de “superfície” e a propõe como um mérito e conquista do Expressionismo Abstrato e da obra de Pollock em particular. Há, claro, um setor enigmático no barquinho e seu arranjo peculiar, um coletivo formado por um crítico e alguns artistas. Gorky e Frankenthaler? O que os explica ali? E Rothko? #02 Coisa semelhante ocorre com “Derrida interroga DeMan”, pois tudo parece se oferecer à interpretação de maneira cristalina. Assim, lembramos das complexas relações entre os dois críticos e teóricos, e dos impasses de afiliação e parceria que emergem a reboque da revelação do passado anti-semita de DeMan. A ambiguidade do envolvimento dos personagens parece traduzir precisamente isso, essa indecidibilidade entre dança e luta entre os dois. Por sua vez, as montanhas feitas de texto são alusão óbvia ao famoso “Não há nada fora do texto”, de Derrida. Perdura como problema a relação evidente entre o trabalho de Tansey e uma ilustração de Sidney Paget, de 1893, que representa o momento final de conflito entre Sherlock Holmes e seu arquirrival, o Professor Moriarty: quem, no jogo entre Derrida e DeMan, é análogo a Holmes? Seria o caso de determinar e discriminar precisamente a antinomia moral vitoriana, expressa na relação de Holmes com seu rival, na relação entre os críticos? Isso não seria perder de vista a pergunta, o interrogar presente no título mesmo da obra? O trabalho do qual recordei em particular – enquanto pensava sobre como comentar o fato de ter lembrado da conferência de Naves 61 LINDONÉIA enquanto comentava a distinção de Eno sobre possibilidades do trabalho do artista e sua eventual correlação com o trabalho do crítico – não foge dessa possibilidade de implicação didática. Intitulado “Descartando a moldura”, nele vemos duas figuras na entrada de uma caverna: água flui com força para dentro do precipício aberto na pedra, e à beira desse precipício vemos duas figuras. A cena como um todo parece reprisar o programa didático do platonismo no célebre Mito da Caverna: a caverna profunda, sujeitos postados à entrada, sombras projetadas na parede, nosso ponto de vista ligeiramente deslocado no fundo da caverna. Os dois homens parecem ter feito um enorme esforço para se desvencilhar da moldura, imensa, vazia, que acabaram de lançar nesse abismo escuro: está solta, no ar ainda, mal começou sua trajetória de declínio. Mas na sombra que projetam na parede da caverna o que vemos é um amálgama dos dois, uma entidade monstruosa e tentacular, e é como se ambos estivessem, ainda, nessa aparição metamorfoseada, aferrados à moldura. Como explorar ponto a ponto a extensão da semelhança entre o que vejo no quadro de Tansey e o que me parecia estar em jogo na situação em ouvi o Naves advogando o “descartar da moldura” de Da Vinci e Duchamp? Não me esqueço da veemência de Naves, e me pergunto hoje sobre o sustentáculo daquela necessidade, de conferir ênfase, de amparar o desempenho, enquanto conferencista, no traço forte e na ponta seca de uma oposição polar. Ao mesmo tempo, não esqueço minhas fragilidades, dificuldades e incompetências à época, tão disponíveis à lembrança quanto a voz de Naves se elevando ao final ao falar de “Leonardo”. Poderia, imagino, dizer que nessa tela de Tansey eu era um personagem e ele, outro, e que, no jogo que poderíamos ter praticado caso tivéssemos interagido naquele evento em 2004, teríamos certamente nos dissipado nessa sombra residual e enigmática, sem rosto ou assinatura, conformada pela moldura que constituía o próprio pomo da discórdia. Isso, por sua vez, me faria retornar ao trabalho de Eno, e à sua questão final, seu arremate entre jogar a toalha e lançar o problema para outro patamar resumindo tudo na pergunta “Será que há algo em um trabalho que não seja, de fato, moldura?” Seja arte, seja crítica – como responder a essa questão? #02 Mas talvez não seja esse o caso: talvez esse investimento – voltado para investigar os paralelos entre o que ocorreu comigo naquela conferência e o que penso sobre o tema a partir do trabalho de Eno e Tansey – resulte apenas na redução de uma potência ambígua que está na tela, em sua alusão ostensiva à uma narrativa mítica, fundadora, de oposição entre Realidade e Aparência, e que está também na situação que vivi, em sua conexão patente com duas escolas de compreensão da Arte e da, digamos, experiência estética. Talvez, penso hoje, o mais interessante, do ponto de vista da crítica e seu exercício, fosse justamente se esquivar da estruturação unilateral da resposta, recusar a escolha de um lado do problema, e acolher alguma forma de ambivalência não como malefício, mas como força. Se faço isso, então o que eu faço não é mais, nem menos, que recuperar algo da experiência e buscar o que faz com que aquilo tenha sentido, e o que permite que tal sentido seja comunicado – e se isso não é fazer crítica, não aprendi ainda o que é. * 62 Melissa Rocha, série Trabalhando em estrelas, 2013 Melissa Rocha, série Trabalhando em estrelas, 2013 Melissa Rocha, série Trabalhando em estrelas, 2013 Acertando os ponteiros Melissa Rocha Carlos trabalhou durante cinco anos em um estacionamento, localizado em um edifício, em regime fixo noturno, com uma jornada de 12 horas, em dias alternados. Ele controlava a entrada e a saída de veículos, mas era também sujeito a um tipo de controle especialmente rígido: a cada 25 minutos, deveria acionar um relógio, caso contrário, o mesmo emitiria um sinal e o traço deste sinal poderia ser recuperado pelo supervisor, configurando sua ausência naquele momento. Este instrumento de controle parece o ter afetado, profundamente, deixando sequelas importantes que permanecem e parecem se agravar. Atualmente, durante suas crises noturnas, Carlos só consegue se acalmar após “acionar” um relógio desenhado na parede do seu quarto, simulando o gesto que fazia, repetidamente, durante todas as noites dos cinco anos em que trabalhou naquele condomínio1 . O relato acima, com ares de ficção, na verdade aponta para uma situação pitoresca sobre um estudo de caso da psiquiatria, como o relato do advento de uma categoria de patologias relacionadas 66 1. Relato de estudo de caso em uma série de estudos sobre Saúde Mental e Trabalho. O nome, naturalmente, é fictício. ASSUNÇÃO, Ada; FRANCISCO, João Manuel; LIMA, Maria E. Aprisionado pelos ponteiros de um relógio: o caso de um transtorno mental desencadeado no trabalho. In: Codo, W & Jacques, M. G (orgs). Saúde Mental e Trabalho - leituras. Ed. Vozes, 2002. Disponível em: http://adesat.org.br/userfiles/file/PDF/estudodecaso.pdf às jornadas de trabalho, denominada Transtorno de Adaptação. Interessa destacar aqui, não o distúrbio apresentado pelo funcionário, mas, o apego ao ato desenvolvido ao longo da rotina marcada pelo ritmo dos ponteiros a cada quarto de hora. Para além do caráter opressor, imposto pela ditadura do tempo e das relações de trabalho, o prolongamento da ação de vida pregressa é a herança maldita que o condiciona ao cumprimento deste insólito ritual. Transladando o assunto para o âmbito das artes, tropeçamos no trabalho obsessivo de Tehching Hsieh. Confusa ou ausente, a margem que delimita os atos artísticos de sua própria vida nos revela uma produção incrivelmente volumosa que impressiona pelo período compreendido entre concretização e encerramento dos projetos. Um trabalho em particular, a sua segunda Performance de Um Ano (1980-81), tangencia a situação de Carlos descrita anteriormente. Ainda como imigrante ilegal nos EUA, o taiwanês Tehching Hsieh voluntariamente se submeteu ao mecanismo de controle direcionado aos trabalhadores oficiais do sistema, quando, diariamente, registrou sua imagem diante de um relógio de ponto que deveria acionar a cada hora. As diferenças entre o trabalho de Hsieh e o transtorno de Carlos residem sob dois aspectos, tanto na ausência de dias descanso, como também na frequência de acionamento do relógio, ampliando exageradamente o controle estabelecido para uma jornada de trabalho convencional: chegada, pausa para almoço e saída. Nas fotografias da performance iniciada em 11 de abril de 1980 e datada para se encerrar precisamente após 1 ano, observamos nitidamente a transformação diária da fisionomia do artista com o avanço da barba e cabelos sobre seu rosto. Outros mecanismos também foram utilizados na documentação de sua ação, como os cartões nominais que registravam os horários e o próprio relógio de ponto. A montagem expositiva das 365 fotos, perfiladas lado a lado, desnuda, diante dos nossos olhos, de maneira aguda, a apresentação diária de nossa rotina, da vida do cidadão médio, condicionada à execução de suas obrigações empregatícias, visando ao alcance e manutenção dos padrões sociais e econômicos de vida, desfrute e posição digna enquanto um membro produtivo e consumidor na sociedade. O ato repetido, diluído nos compromissos pessoais e profissionais aos quais estamos subordinados, não aparenta, através de uma visada superficial, a verdadeira dimensão de seu caráter massacrante. Na obra de Hsieh, a compilação fidedigna e sistematizada da automatização dos atos diários nivela essa conduta com a de um portador de um distúrbio compulsivo, escravo da satisfação patológica, de uma necessidade incontrolável e intermitente. Contudo, a ocupação do artista consistia em apenas viver em função dos horários, não havia nenhum trabalho específico a ser realizado ou um salário que recebesse em troca, a não ser o dever de seguir atentamente o regime dos ponteiros. Ainda que a ação não esteja situada em vínculo formal de trabalho, a obrigação de cumprir os mesmos protocolos a nivela com a rotina de todos os demais: FIG. 01 : Performance de 1 ano, Tehching Hsieh, 1980-81. O trabalho é indispensável porque produz riqueza. Mas nem todos os trabalhos, para produzi-la, obrigam a sofrer: alguns são agradáveis, até glorificantes; outros são cansativos, desagradáveis, repugnantes. Quase todos os trabalhos agradáveis são monopolizados pelas elites, os outros são delegados às máquinas ou aos animais ou são impostos aos escravos, aos forçados, aos estrangeiros, aos indigentes e, por último, às classes médias compostas de empregados, de funcionários e profissionais que se iludem de pertencer às classes dominantes mas que, de fato, representam uma nova forma de casta dominada2. Por outro lado, distante dos propósitos que movem o mundo capitalista, desvinculada de uma obrigação institucional e 2. DE MASI, Domenico. O futuro do trabalho: fadiga e ócio na sociedade pós-industrial. Tradução de Yadyr A. Figueiredo. Rio de Janeiro: José Olympio. 2001 67 FIG 04: Relógio de Flipar, Rivane Neuenschwander, 2005, 28ª Bienal Internacional de Arte de São Paulo www.estrategiasdaarte.net.br financeira que não somente o desejo pessoal do artista, a obra de Hsieh toca de forma potente todas estas questões envolvidas. A oposição entre o cotidiano real e o do trabalho artístico ocorre justamente no terreno de conflito entre desejo e dever, profano e ritualístico. Uma expressão popular ilustra de forma significativa a posição do regente do tempo: quem trabalha de graça é relógio e neste caso, também o artista. E novamente, Carlos em seu depoimento: FIG 02 e 03: Performance de 1 ano, Tehching Hsieh , detalhe da instalação na XXX Bienal Internacional de São Paulo O desenho do relógio foi depois que parei de trabalhar. Quando eu trabalhava eu dormia pouco, mas não desenhava ele não. Desenhava assim de brincadeira, em casa, mas eu não chegava a operar ele não... Agora, eu desenho e fico operando ele, depois rasgo. Desenho de novo, rasgo, desenho (...) 3 Assim como Carlos, outros artistas trabalharam na elaboração de seu próprio instrumento cronológico, porém resguardando diferenças óbvias entre estes mecanismos, como a finalidade e a postura crítica. Rivane Neuenschwander, em seu Relógios de Flipar (2005), deturpa a função essencial do mecanismo quando determina que sua marcação será fixa: todos os algarismos que o compõe são o zero. A aferição inexistente do tempo congela todos os momentos, meses e dias em uma única medição, ou melhor, em nenhuma. Se seguirmos o dito popular, tempo é dinheiro, este trabalho de Rivane paralisa qualquer contagem. A conduta de submissão aos recursos de monitoramento adequados à sociedade industrial, há muito já não condizem com as possibilidades de flexibilização proporcionadas pelo avanço tecnológico: 3. ASSUNÇÃO; FRANCISCO; LIMA, 2002, p. 24. 68 Embora das primeiras concentrações industriais até hoje tenham sido inventados o telefone e o fax, os celulares e o correio eletrônico, milhões de empregados e profissionais continuam a se mover entre a casa e o escritório, deslocandose para onde estão as informações, em vez de receber tais informações na própria casa ou onde mais lhes convier. A recusa do teletrabalho por parte das organizações é um LINDONÉIA O Grupo Poro opera na mesma linhagem destas obras, na medida em que propõe pequenas burlagens às relações de poder, subordinação e gerência com a disseminação de frases imperativas de teor subversivo, através de ocupações urbanas como faixas e panfletos. Em uma delas, se lê: PERCA TEMPO. A perda proposta, na verdade, tornar-se-á um ganho: de qualidade de vida, de ócio criativo e reflexivo. #02 Na suspensão destes padrões que constituem a realidade em que nos encontramos, quando o artista adapta o relógio correspondente simbólico do tempo - para operar segundo seu ritmo, evidencia-se uma subversão dos parâmetros de controle, uma perturbação nos padrões de orientação. A “realidade” que se estabelece moldada pelo contexto, segundo Guy Debord (1967), permanece ainda mais questionável: FIG 05 : A meianoite é também o meio-dia, Marilá Dardot, 2004. pecado contra a reconciliação do trabalho com a vida, isto é, contra o cumprimento da mais benéfica das revoluções permitidas pela sociedade pós-industrial. 4 Reincidente, a fuga dos parâmetros tradicionais de quantificação surge no relógio preguiçoso de Marilá Dardot, A meia-noite é também o meio-dia (2004), que pode ser visto através de sua duplaface, cuja aparência e presença são comuns nos ambientes nos quais é imprescindível se ter ciência do horário: em rodoviárias, estações de trem e fábricas. Contudo, uma particularidade de seu funcionamento restringe sua eficácia produtiva na qual o andamento dos ponteiros é forjado: a cada 2 segundos nos relógios convencionais este caminha apenas 1. Desta forma, com seu rendimento pela metade, apenas quando os ponteiros atingem a posição de 12hs a medição coincidirá com a do horário oficial, condição que dá título à obra. Este tempo dilatado, mais lento, está em completa oposição ao tempo produtivo, veloz, lucrativo, quantificado pela razão inversa entre produção/informação e tempo gasto. 4. DE MASI, 2001, p. 27 A materialização da ideologia provocada pelo êxito concreto da produção econômica autonomizada, na forma do espetáculo, praticamente confunde com a realidade social uma ideologia que conseguiu recortar todo o real de acordo com seu modelo .5 De maneira mais sutil, o Poro dissemina mensagens similares, desviando o conteúdo publicitário de seu assunto principal, o estímulo ao consumo. Questiona, com uma singela frase, toda a engrenagem que garantiria ao consumidor a satisfação de seus desejos: direcionar seu tempo na aquisição de divisas para gastá-las posteriormente, não necessariamente nesta ordem. Ao deixarmos de agir segundo o fluxo, estamos interrompendo-o ou criando obstáculos, realizando um detournement . 6 Apesar do mofo que repousa sobre a Sociedade do Espetáculo e o conceito de Detournement, situados na segunda metade do século passado, “a noção de Espetáculo continua sendo debatida 5. DEBORD, Guy. A sociedade do espetáculo. Rio de Janeiro: Contraponto, 1997 [original: 1967], p. 137 6. Uma tradução aceitável seria “desvio”, mas o termo também carrega o sentido de “rapto” ou “subversão”. DEBORD, 1956; INTERNACIONAL SITUACIONISTA, 1959. 69 www.estrategiasdaarte.net.br embebidos pela noção de desvio, pelo estabelecimento da antiarte e do território das negações. Tímida e institucionalizada, com a parte de sua potência amortizada e embalada para venda embora pertinente - a abordagem artística do trabalho como anti-trabalho ou não trabalho, atualmente, carrega certa poesia quimérica, gauche e uma aura de deslocamento temporal. * FIG 06: Intervenção do coletivo Poro nas ruas de Belo Horizonte como modelo para explicar algumas transformações promovidas pelo sistema capitalista no último século”7 , bem como suporte referencial para os ativistas contemporâneos e na formação de um repertório poético relevante. Ao observarmos a proliferação de movimentos ansiosos por ocupações do espaço público, objetivando manifestações diversas, do lazer ao protesto, das ações ativistas que se confundem com a noção de ato artístico na semelhança evidente entre a ideologia pretérita com a do presente, acentua-se a maneira por meio da qual essa diluição dos limites reforça esta retomada. O caráter político que o conceito de trabalho sustenta, contraditoriamente pode aproximá-lo do seu oposto: baderna, ócio e caos. E todos estes conteúdos nos remetem aos procedimentos, ainda pulsantes, do grupo Fluxus e dos situacionistas, ambos 7. ASSIS, Erico Gonçalves. Táticas lúdico-midiáticas no ativismo político contemporâneo, 2006, p. 29. Disponível em: http://pontomidia.com.br/erico/rodape/ericoassis-dissertacao.pdf 70 Jairo dos Santos Pereira Jairo dos Santos Pereira Jairo dos Santos Pereira Jairo dos Santos Pereira Jairo dos Santos Pereira Jairo dos Santos Pereira LINDONÉIA #02 CURAS MILAGROSAS E A CANONIZAÇÃO DE BASQUIAT Brian Eno Frequentemente penso na seguinte história: Nos séculos XVIII e XIX as pessoas estavam “tomando as águas” para uma grande variedade de doenças. A essa altura o aparato científico da medicina já estava bem desenvolvido, e já se fazia um registro cuidadoso das condições dos pacientes, de seus tratamentos e de seu progresso. Essa documentação era feita por médicos de reputação e caráter: o trabalho que realizavam em outras áreas nos permite fazer esse tipo de afirmação. Estavam interessados em descobrir as propriedades especiais das águas dos spas, e saber porque as curas eram, com tanta frequência, efetivas. Eles fracassaram nesse projeto, e a busca pelos agentes curativos foi gradualmente abandonada, a partir da premissa de que, qualquer que fosse o equilíbrio especial de minerais contido nas águas, era demasiado sutil para ser detectado pelos instrumentos da época. Os instrumentos contemporâneos são muito mais sensíveis, mas eles revelam (repetidamente) que não há diferença consistente 77 www.estrategiasdaarte.net.br entre a água dos spas e outros tipos de água. É apenas água, exibindo a variabilidade natural dessa substância. O efeito dessa não-descoberta (o repetido fracasso na identificação de qualquer propriedade especial na água dos spas) fez com que o interesse na cura pelas águas fosse diminuindo, o que já estava de qualquer maneira em curso desde o final do século XIX, quando tais curas começaram a sair de moda. Mas uma questão ficou sem resposta: “Será que aqueles médicos dos séculos XVIII e XIX estavam enganados, quer em sua observação quer em seus relatos, ou será que havia mesmo algo na água?” Uma solução possível apareceu alguns anos atrás. Descobriuse (um resultado colateral da exploração espacial) que períodos prolongados em condições anti-gravitacionais fazem com que o corpo precipite metais pesados para fora de si. Metais pesados são, em sua maioria, tóxicos. Viajantes espaciais retornam à Terra com menos desses metais (e, portanto, com menos toxicidade) em seus sistemas. Agora pense mais uma vez no processo de “tomar as águas”. Lembre que essas curas eram processos de longa duração: o comum era que as pessoas permanecessem na água por várias horas, todos os dias, por várias semanas ou meses. Na água, é claro, você se aproxima de uma condição anti-gravidade. Não seria possível que “tomar as águas” fosse uma maneira de limpar o corpo da toxicidade dos metais pesados? Não sei se é assim que a coisa funcionava, mas o que me interessa é que poderia ser assim. É uma resposta que passa ao largo do dilema implícito na questão original. A implicação era a seguinte: se os médicos estavam corretos (as pessoas estavam sendo curadas), então devia haver algo na água. Se não havia algo na água, então os médicos estavam errados (as pessoas não estavam, na verdade, sendo curadas). Mas agora uma nova possibilidade emerge: não havia de fato nada na água, mas os médicos estavam corretos. O que aconteceu foi que um novo conceito – dependente de uma propriedade da água que nada tem a ver com sua estrutura mineral – foi introduzido. 78 Há uma outra história, aparentada com a primeira: Havia um famoso xamã na Indonésia que curava as pessoas retirando de dentro de seus corpos massas sangrentas de alguma coisa, e que dizia que essas massas eram as causas de suas doenças. Essas sessões de cura eram conduzidas na penumbra, e em meio a muita cerimônia e encantamentos misteriosos. Certa feita, o xamã foi investigado por um grupo de médicos ocidentais, que utilizaram câmeras de infra-vermelho para revelar o que de fato ele estava fazendo – obviamente, ele estava retirando aqueles nódulos úmidos não do corpo dos pacientes, mas de algum lugar em seu próprio corpo. Era um truque. O único problema era que o truque funcionava: ele tinha uma taxa de cura muito elevada. Podemos dizer que isso não conta porque estava tudo na mente dos pacientes: o truque os levava a usar seu próprio poder para curar a si mesmos. Podemos não desejar aceitar esse tipo de cura como aceitável cientificamente porque ela demanda que acomodemos as complexidades da mente humana na equação médica. E mesmo que aceitemos que os pacientes não são simplesmente pessoas com as quais são feitas coisas até que eles melhorem, mas sim pessoas que são manobradas em um estado mental a partir do qual a cura irá prosseguir, será que podemos igualmente aceitar que, portanto, não importa se esse estado mental é produzido pela mais franca picaretagem? Até que ponto estamos dispostos a aceitar os “efeitos placebo”? Richard Williams é um jornalista britânico que durante muitos anos escreveu sobre música. Há uma história famosa (e verdadeira) do início dos anos setenta sobre como ele recebeu um disco de rótulo branco (uma prensagem de teste distribuída antes do lançamento) com gravações novas de John Lennon e Yoko Ono. Era uma exclusividade. Ele fez uma longa resenha do disco para a Melody Maker. O lado 1 tinha um formato bem normal – cinco ou seis músicas – mas o que chamou sua atenção foi o lado 2, que consistia em um tom contínuo de uns vinte minutos de duração – uma onda senoidal pura. Esse tipo de experimento radical era o que se podia esperar de John e Yoko e Wiliiams, claramente LINDONÉIA impressionado, fez uma longa e favorável resenha do trabalho. No final das contas, a faixa era apenas um teste de tom – Williams não sabia que era uma prática corrente entre os engenheiros de som produzir uma faixa de tom puro para testar a impressão do disco e monitorar coisas como a estabilidade do toca-discos e a qualidade do vinil. Todas as vezes que ouvi essa história, ela vinha acompanhada de um riso desdenhoso. O sentimento era que Williams havia sido pego: que ele deu mostras de ser tolo e fácil de ludibriar ao tomar um teste de tom – entre todos os sons, o mais deliberadamente privado de arte – por um trabalho artístico real. Eu percebia a situação de maneira um pouco diferente. De fato, era perfeitamente possível que John e Yoko tivessem lançado uma coisa daquelas. Mas, mais importante que isso, por que Williams não poderia ter tido uma experiência musical com um teste de tom? Será que o fato de que ele obviamente teve tal experiência não nos diz algo sobre a natureza das experiências artísticas em geral? Creio que temos dificuldade em aceitar isso porque nos coloca diante de um dilema muito semelhante ao que aparece na história do “tomar as águas”: se o crítico estava correto (se ele realmente teve uma experiência artística) então deveria haver algo no teste de tom. Mas nós sabemos que não há nada em testes de tom; logo, o crítico deve ter se enganado: ele obviamente não estava tendo uma experiência artística de fato. Ele só pensou que estava tendo uma – do mesmo jeito que os pacientes do xamã da Indonésia sentiam que haviam melhorado. Agora passemos a Robert Hughes, e a algo que ele escreveu sobre Jean-Michel Basquiat. Gosto muito de Hughes – acho que ele é um pensador articulado, claro e inteligente, e, nesse sentido, bastante incomum no universo dos que escrevem a respeito de arte. Mas eu também gosto de Basquiat, ao passo que Hughes não o tolera. Em seu livro “Cultura da Reclamação” (Culture of Complaint) Hughes discute a canonização de Basquiat: como ele foi elevado à condição de santo após passar por uma espécie de saga das belasartes-enquanto-rock-and-roll – descoberta, drogas, aceitação, rejeição, redescoberta, mais drogas, e uma morte precoce. Basquiat, é claro, também se beneficiou das distinções adicionais de ser negro e ser apresentado como alguém que veio de uma família pobre (o que não era exatamente a verdade). Mas, no final das contas, ele foi uma figura notável dos anos oitenta: uma vítima – de um racismo implícito e do abuso de drogas – e um outsider precocemente carismático. Hughes olha sem simpatia para as pinturas de Basquiat e as considera infantis e simplistas. O talento dele, diz Hughes, não está em sua habilidade de pintar em si, mas em sua habilidade de projetar a si mesmo (e tornar-se projetável, se é que essa é a palavra correta) como um evento da mídia – como uma estrela da arte. #02 Há várias linhas de pensamento aqui. Algumas estão mais claramente expostas que outras. Há a crítica à própria pintura de Basquiat, com a qual podemos concordar ou não. Eu, pessoalmente, gosto de suas pinturas. Eu também penso, entretanto, que “qualquer um poderia ter feito” aquilo, e que de fato muitas outras pessoas fizeram, de um jeito ou de outro, de maneira mais ou menos interessante, com maior ou menor compromisso. As pinturas expressam um sentimento de época, e alguém tinha de aparecer com algo semelhante. No mundo comum isso não seria uma crítica: o que está sendo dito é apenas que alguém é parte de uma cena e que, por razões de todo o tipo, um monte de gente fica interessada nos mesmos tipos de marcas e sons e implicações de estilo de vida mais ou menos na mesma época. Isso é o que se espera que aconteça, não é? Claro, mas a existência dessa osmose vernacular, tão perigosamente próxima da “mera moda”, constitui uma ameaça à mitologia do mundo da arte. Essa mitologia se apoia na ideia dos gênios, pessoas que são tão diferentes de todas as demais que suas conquistas devem ser separadas e protegidas e cercadas por um palavrório complicado. Sempre tive muitas suspeitas com relação a isso – e Hughes também – mas agora outra ideia me vem à cabeça. 79 www.estrategiasdaarte.net.br Será que essa produção de mitos é o processo pelo qual os adultos criam experiências de valor para si mesmos? Quero dizer, será que essa elaborada dança de romantização e manufatura de carisma, esse processo de canonização, não é a maneira que encontramos para construir para nós mesmos experiências que sejam suficientemente carregadas de ressonância e profundidade e autoridade para que sejamos desafiados e transformados por elas? Será que nós somos como os pacientes do xamã, cooperando com o artista ao criar uma atmosfera poderosa a ponto de permitir que um exercício de prestidigitação faça a mágica acontecer para nós? E será que ainda poderemos nos beneficiar se soubermos como a coisa funciona? Será que temos de ser “crentes” ao invés de “céticos” para alcançar o tipo correto de experiência? Será que Richard Williams teria utilizado o teste de tom se ele soubesse do que se tratava? E, afinal de contas, qual é exatamente o uso da experiência, de qualquer experiência? 80 Transformar a nós mesmos. Certamente é algo assim que estamos buscando quando observamos pinturas e assistimos filmes e ouvimos música. Isso soa mais new age do que realmente é. Transformar a nós mesmos é um processo que inclui atividades como ligar o rádio quando estamos entediados – com a intenção de mudar, e deixar de ser alguém que está entediado para se transformar em alguém que está menos entediado, ou entediado de uma maneira diferente. Mas é claro que preferimos pensar que a arte que veneramos faz mais que apenas nos alimentar de sensações que nos afastam da miséria de nossa existência cotidiana. (E por que iríamos preferir isso? O que está errado com a ideia oposta? Lembro de alguém dizendo que a criatividade humana é uma tentativa desesperada de ocupar o breve espaço, ou hiato sem fim, entre nascimento e morte.) Preferimos pensar que a arte nos refaz de alguma maneira, nos torna mais profundos, nos faz pessoas “melhores”. Certamente esse é o pensamento que nunca é explicitado por trás do conceito de espaços públicos subsidiados para a arte – não damos o mesmo tipo de endosso cultural de alto nível para espaços públicos para a prática de skate, ou discotecas públicas, ou zonas boêmias. Há ainda a crítica implícita na sugestão de que o único real talento de Basquiat era para a criação de carisma e a autopromoção. Cada uma dessas críticas é baseada em premissas que não são mencionadas: que Basquiat estava primariamente operando como um pintor no sentido que Hughes dá a isso; que o mundo da arte não deveria conspirar para criar “gênios” para si mesmo; e que a autocriação é uma tarefa que não cabe no terreno dos exercícios artísticos. Suponha algumas coisas. Pare de pensar nos trabalhos de arte como objetos, e comece a pensar neles como (para usar uma formulação de Roy Ascott) gatilhos para experiências. Isso resolve uma série de problemas: não temos mais que discutir se fotografias são arte, ou se performances são arte, ou se os tijolos de Carl Andre, a urina de Andres Serrano ou a canção Long Tall Sally de Little Richard são arte porque dizemos “Arte é algo que acontece, um processo, não uma qualidade, e todo tipo de coisa pode fazer a arte acontecer”. Agora suponha que o que torna um trabalho de arte um trabalho “bom” para você não é algo que já está “dentro” do trabalho, mas algo que acontece em você – assim, o valor de um trabalho de arte está na extensão em que ele é capaz de ajudar você a ter o tipo de experiência que você chama de arte. Dessa maneira é possível, no contexto das expectativas apropriadas, que um teste de tom se torne uma experiência musical. Também é possível que suas experiências sejam muito diferentes das minhas – o que não nos diz nada a respeito do teste de tom, mas nos diz tudo a respeito de nossas percepções individuais do teste, nossas expectativas e predisposições culturais distintas. Poderíamos então concordar que não há nada absoluto a respeito do valor ou não-valor estético de um teste de tom, e que não temos nem que considerar a questão do valor estético buscando alcançar uma resposta única: algo pode ter um valor para você e outro para mim, e valores diferentes para nós dois num outro momento. O valor pode mudar para cada um de nós. E o que é mais interessante é que também podemos dizer que não há nada de absoluto a respeito do valor estético de um LINDONÉIA Rembrandt ou de um Mozart ou de um Basquiat. #02 Suponha que você redescreva o trabalho do “artista” como sendo o de “uma pessoa que cria situações nas quais você pode ter experiências artísticas”. A partir daí você pode aceitar a noção de que um artista é alguém que lhe convence, de um jeito ou ou de outro, incluindo a mais cara-de-pau das falcatruas, que o teste de tom que você vai ouvir é de fato um trabalho musical. Suponha agora que essas estratégias utilizadas pelos artistas incluam a criação de “eventos midiáticos”, redes de acontecimentos e rumores que façam você acreditar que está na presença de algo especial – o evento em si mesmo é modesto, mas a energia circulando ao redor do evento é suficientemente poderosa para que você seja infectado com entusiasmo, e se divirta muito. Será que isso é ir longe demais? Suponha que você possa pensar em si mesmo como o evento midiático, como o próprio disparador da experiência, de tal forma que qualquer coisa para a qual você simplesmente dirija sua atenção seja misteriosamente transmutada em arte. E suponha que as pessoas desejem isso, e desejem acreditar nisso, e desejem ainda fazer com que outras pessoas creiam nisso. Quem é então o artista? Você ou eles? Quem está fazendo o paciente se sentir melhor? O xamã ou o paciente? Será que o valor da experiência artística poderá ser encontrado na falta de gravidade, na suspensão da descrença, e na entrega flutuante que o trabalho produz – em vez de em suas propriedades minerais objetivas? (1993/4) Texto retirado de A year with swollen appendices (London: Faber and Faber, 1996, p.364-369). Título original: Miraculous cures and the canonization of Basquiat Tradução: Antonio Marcos Pereira. 81 Thislandyourland, Área a construir,2012. LINDONÉIA #02 Thislandyourland, Área a construir, 2012. 83 Thislandyourland, Área a construir, 2012. LINDONÉIA #02 Trabalhar em Arte Contemporânea* Curatoria Forense Las penas y las vaquitas, se van por la misma senda El arriero Atahualpa Yupanqui Estávamos frente aos nossos computadores, a televisão estava acesa num canal de notícias por assinatura. Nós gostamos de manter acesa essa caixa que não é tão burra assim. De súbito escutamos que “.... dos 10.000 artistas que temos na Argentina só 200 conseguem viver da sua arte”. Tratava-se de uma entrevista, no Canal por assinatura C5N, a uma representante da Associação Argentina de Galerias de Arte (AGAA) na qual se falava sobre o auge do mercado na Argentina no ano de 2012. *Título original: Trabajar en Arte Contemporáneo. Tradução Adolfo Cifuentes. Desconhecemos a partir de que fonte era possível fazer essa afirmação, ou se ela estava baseada em pesquisas com pretensões mais ou menos científicas, se tinha existido algum tipo de método ou se se tratava de uma simples resposta a uma pergunta aberta. Finalmente, pouco importa, por que para nós esse número, esteja ou não baseado nos fatos, já seria suficiente como fazendo parte 85 www.estrategiasdaarte.net.br de um diagnóstico que não seria válido só para a Argentina, mas também para outros países da região. A frase foi tão contundente que ficamos pensando nela. Se esta associação que reúne 32 galerias, declara que só 2% do total estimado de produtores artísticos vivos, morando num país de 40 milhões de habitantes pode viver da sua produção, de que vive o restante 98%? Ficava claro que a participação dentro do sistema mercantil da arte é restritiva, não inclusiva, flutuante, segundo as tendências e modas, e altamente competitiva. Ficava claro também que a participação como artista dentro do fluxo do intercâmbio monetário de bens simbólicos (convertidos em mercadorias) não é a única forma de gerar recursos econômicos para garantir a reprodução material da vida. Ainda mais: sobretudo, ficava claro que o mercado da arte não é uma condenação escrita, ou uma promessa que tenha que ser inevitavelmente cumprida. As pessoas podem ainda viver (ou subsistir) de outras fontes de financiamento: bolsas ou subsídios públicos ou privados, circuitos de festivais e/ou residências artísticas, estímulos, prêmios, concursos, salões, projetos de gestão autônoma, etc. Estas alternativas ao circuito tradicional das galerias constituem outros modelos de mercado que funcionam sob lógicas diferenciadas, em função das regras particulares de cada tipo de jogo e elas não necessariamente se inscrevem nos moldes do capitalismo, seja este selvagem ou temperado. O que queremos dizer é que não importa como o artista contemporâneo sobrevive, o importante é que consiga fazê-lo através da especificidade das suas competências. Ou seja: fazendo arte. 86 Fazer arte não é outra coisa que participar como produtor de um processo indissoluvelmente material e social, enquanto que tanto a criação quanto a recepção (da arte contemporânea) pertencem ao processo social geral e não acontecem fora desse sistema. Eles são indissoluvelmente materiais, também, porque criação e recepção, em termos concretos, estão conectadas a processos materiais no contexto dos diversos sistemas sociais de uso e transformação dos materiais, e usam para isso meios materiais1. Isto quer dizer que ser artista é participar de um sistema de relações sociais de produção através de práticas especificamente significantes2 . Ou podemos dizer ainda de um outro modo: implica ao artista como trabalhador. Entretanto, existe uma resistência em reconhecer que o artista é um agente econômico (alem de simbólico) que estabelece relações de intercâmbio (troca) do tipo laboral/profissional com outros agentes e instituições do campo da arte. A recusa poderia se dar estritamente em termos teóricos ou conceituais, mas -e desde uma posição materialista - teoria e práxis são falas articuladas e indivisíveis. Por isso quem sustenta que as práticas artísticas contemporâneas são uma esfera separada dos processos produtivos (de trabalho) gerais estão reproduzindo a ideologia da arte (moderna) autônoma burguesa por que El burgués, que en su praxis vital se ve reducido a una función parcial (los asuntos de la racionalidad de los fines), en el arte se experimenta a sí mismo como «hombre», y aquí puede desplegar todas sus disposiciones, con la condición de que este ámbito quede rigurosamente separado de la praxis vital3. É dizer que, frente à alienação produzida pelo império da razão instrumental era requisitada uma manobra de ficcionalização que 1. WILLIAMS, Raymond: Cultura. Sociología de la comunicación y del arte. Barcelona: Paidós, 1981. 2. Práticas que não se reduzem à mera generalização de objetos susceptíveis de mercado. 3. BÜRGER, Peter. Teoría de la vanguardia. Barcelona: Península, 1987. p. 103. LINDONÉIA dividisse as práticas e destrezas úteis de outras que não as fossem porque presumia a imaginação, a criatividade e a expressão subjetiva ligadas ao exercício da liberdade. O processo é paradoxal. A dessacralização progressiva da arte (sua secularização) está vinculada, parafraseando a Pierre Bourdieu4 , a sua emancipação da supervisão social e ideológica, do apadrinhamento econômico e dos encargos éticos e estéticos da cúria e da monarquia. Em outras palavras: suas práticas e tematizações deixam de estar regidas por interesses institucionais externos. É assim que a arte fica liberada para experimentar em e através de sua própria linguagem, porque redimida da função de representação pode fazer o que lhe agrade. Esta conquista implica também a emergência de um campo autônomo que produza para si suas próprias regras de jogo, sua especificidade na divisão do trabalho, o seu status como instituição legitimante e legitimadora, sua própria ilusão e suas disputas materiais e simbólicas particulares. Mas o marco econômico-social do aparecimento da arte autônoma é o capitalismo industrial do século XIX. É por isso que o correlato ideológico imediato da nova esfera seja a necessidade de separar a criação simbólica do trabalho obreiro da manufatura. Esta noção de artista requer dividir o trabalho mercantil articulado pela fórmula valor de uso / valor de troca. Que o obriga a se abstrair das forças produtivas e da alienação social associada ao operário para conceber conceitualmente um espaço de liberdade: …las distinciones históricas entre diversos tipos de habilidades humanas y finalidades básicas variables de su uso está evidentemente relacionado con los cambios en la división concreta del trabajo y modificaciones fundamentales en las definiciones prácticas de los propósitos del ejercicio de la destreza5. 4.. BOURDIEU, Pierre. Creencia artística y bienes simbólicos. Elementos para una sociología de la cultura. Buenos Aires – Córdoba: Aurelia*Rivera, 2003. 5. WILLIAMS, Raymond. Palabras Clave. Un vocabulario de la cultura y la sociedad. Buenos Aires: Nueva Visión, 2000. p. 42. A destreza do artista, a habilidade criadora (um tanto demiúrgica) é a saída abstrata para defender o “eu” frente às novas massas obreiras. A ênfase posta na personalidade singular é o que possibilita essas defesas, tomando como base o ideário romântico e seu culto à paixão6. #02 É assim como se constrói a noção paroquiana – teológica - de arte que reclama para si valores de uma ritualidade pagã que gira em torno da genialidade, originalidade, autenticidade y perenidade transcendental. A um “eu” criador único e irrepetível. Isto – que pertence a um contexto histórico específico - segue operando no campo artístico contemporâneo porque é preciso reproduzir dito sistema de crenças já que El productor del valor de la obra de arte no es el artista sino el campo de producción como universo de creencia que produce el valor de la obra de arte como fetiche al producir la creencia en el poder creador del artista7. Acreditar – e fazer acreditar - nessa magia é parte de uma estratégia de supervivência do campo da arte e, mais especificamente, da “rede” institucional que se beneficia e financia através desta fé do carvoeiro. Nada mais econômica e simbolicamente eficiente que reproduzir valores sacrossantos que colocam ao produtor de arte (como aquele que possibilita a existência do campo) no espaço ilusório do espírito transformador afastado das minúcias da cotidianidade e das relações sociais materiais. A eficácia radica justamente na confusão: desconhecer a origem histórica / política / ideológica da separação da arte da esfera do trabalho só beneficia a um setor do campo (geralmente aquele 6. LIPOVETSKY, Gilles. Modernismo y Posmodernismo. En: La era del vacío. Ensayos sobre el individualismo contemporáneo. Barcelona: Anagrama, 1995. 7. BOURDIEU, 2005, p.339. 87 www.estrategiasdaarte.net.br que possui os recursos) e empobrece e desabilita (financeira e argumentativamente) aos outros. Reproduzir a crença da qualidade inefável e quase mística da arte e dos artistas é o que possibilita que não nos espantemos frente ao feito de que a maioria deles não pode reproduzir materialmente sua existência a partir de sua produção simbólica. Por que pediriam uma justa remuneração por seu trabalho se este pertence à ordem do excepcional? É preciso romper o feitiço que precariza o artista e que nos anestesia frente a notas como as da C5N. É urgente transparecer aqueles interesses que subjazem na reprodução da crença do gênio porque o trabalho e a condição do trabalhador não são propriedades do capitalismo nem implicam necessariamente converter todos os esforços em mercadoria. Viver dignamente e receber uma retribuição justa pelo trabalho que se realiza é uma reivindicação necessária. O dinheiro não suja os desejos, nem as pretensões críticas, nem os aportes a compreender como a sociedade e a cultura funcionam. Muitas vezes o dinheiro é uma intermediação que nos distancia favoravelmente, que desarticula o exercício direto da dominação de uns sobre outros. Postular e defender o direito pelo reconhecimento remunerado do trabalho do artista não é outra coisa mais que reconhecer que dentro do sistema de arte contemporâneo o produtor de arte estabelece vínculos profissionais de diversos tipos com outros agentes e instituições para a produção, circulação, difusão e comercialização da arte. E que estas relações necessitam ser explícitas e explicitadas para que o funcionamento do campo se dê no marco de boas práticas profissionais com o objetivo de dar conta que em... 88 El ‘rechazo’ de lo ‘comercial’ que es, de hecho, una denegación colectiva de los intereses y de los beneficios comerciales, las conductas más ‘anti-económicas’, las más visiblemente ‘desinteresadas’, aquellas incluso que, en un universo “económico” ordinario serían las más despiadadamente condenadas, encierran una forma de racionalidad económica (...) y de ningún modo excluyen a sus autores de los beneficios, aún económicos, prometidos a los que se conforman a la ley del universo.” 8 Isso supõe reconhecer que um grande número de artistas que não vivem de arte se encontram no limite já quase daquela obsolescência da arte pela arte porque sua predisposição ideológica (produto histórico do século XIX) os torna incapazes de administrar sua obra (ou de delegar sua gestão) e com isso subvencionam através de suas práticas e objetos a institucionalidade (pública e/ou privada). Ao se negar a cobrar por seu trabalho acabam solitários a espera de benefícios intangíveis do prestigio e do aplauso. Acabam nesses 98% do universo que evidencia que a concentração de capital não é, nem será, distribuída em tanto e em quanto não seja exigida desde suas bases. A reivindicação é uma forma de desconstruir as armadilhas da freguesia que pretende que a arte só tenha capacidade transformadora (em tanto momento afirmativo) no plano das práticas estéticas e não nas relações sociais de produção. Aqui nos encontramos. Jorge Sepúlveda T. e Ilze Petroni Curatoria Forense www.curatoriaforense.net 8. BOURDIEU, 2003, pp. 115-156. As marcas em negrito são nossas. LINDONÉIA #02 IMAGENS DIGITAIS COMO DISPOSITIVOS DE MEDIAÇÃO* Cayo Honorato Aos mediadores que se fazem contrapúblicos A presença crescente de imagens digitais nos museus e espaços de exposição já foi percebida por Boris Groys como um fenômeno contraditório, por confinar entre paredes o que justamente poderia ultrapassá-las, circulando e se multiplicando através dos meios de comunicação contemporâneos, sem nenhum controle curatorial ou museográfico.1 Entretanto, uma instância “original” dessas imagens, referida aos dispositivos materiais e simbólicos de sua exibição, tem sido utilizada na mediação de acervos virtuais, principalmente, como um recurso de aproximação desses acervos ao público jovem. *A pesquisa para a realização deste texto, feito a convite da comissão organizadora do 11o Encontro Internacional de Arte e Tecnologia na UnB, contou com o apoio do Programa Institucional de Apoio à Pesquisa da UEMG, em projeto com vigência de abril a dezembro de 2012, no qual a aluna Pompéa Auter Tavares participou ativamente como bolsista de iniciação científica. Todas as informações usadas neste texto se encontravam publicadas, no momento em que ele foi produzido. Pela colaboração, agradeço a Andrei Thomaz e Viviane Pinto. É o que parece praticar o Museu das Minas e do Metal, em Belo Horizonte. Com o intuito de contar a história econômica, social e cultural de Minas Gerais, através da história da atividade 1. GROYS, Boris. From image to image file – and back. In: ___. Art power. Cambridge; London: MIT Press, 2008, pp. 83-91. 89 www.estrategiasdaarte.net.br mineradora no estado, como algo que se estende “do ciclo do ouro à indústria dos microprocessadores”; o MMM se apresenta como um “museu de imagem”, um “museu de atrações”, um “museu contemporâneo”. Com quase 6 mil m2 de área distribuídos em 3 pavimentos, 18 salas de exposição e cerca de 50 atrações “lúdicas e tecnológicas em 2D e 3D”, o museu mostra seu acervo quase todo virtual por meio de “imagens cenográficas, efeitos holográficos (miragens) e atrações interativas”; como às vezes se anuncia: de “muita interatividade”. Para tanto, o projeto museográfico selecionou 11 minas históricas no estado de Minas Gerais, que abarcam a exploração de diferentes minerais: água, alumínio, calcário, diamante, ferro, grafita, manganês, nióbio, ouro, pedras coradas e zinco. Cada mina ou mineral é apresentado por meio de uma vídeo-instalação mais ou menos interativa; geralmente, um ou mais vídeos sincronizados são acionados por um toque na tela, um apertar de botão ou levantar de uma alça. Além disso, para que essas histórias saiam dos livros e “ganhem vida”, cada mina é apresentada por uma personagem fictícia ou histórica, com relevância para a história de Minas. Desse modo, O Imperador Dom Pedro II [ouro] desce em um elevador virtual até as profundezas da terra, revelando as raízes do Brasil; Dona Beja [?] conta a história da fonte que leva o seu nome; o Homem de Lata [zinco] tira uma lição filosófica e moral de improváveis experimentos químicos, e um Bandeirante [calcário] descreve o descobrimento de pedras preciosas e o desbravamento das terras do interior. 2 Ao menos é o que mais se divulga e isso não compreende todas as atrações. Em todo caso, a tais vídeo-instalações e personagens animados, credita-se a capacidade de oferecerem experiências “altamente imersivas”, supostamente marcadas por uma riqueza de sensações e memórias; em outros termos, acredita-se que uma ênfase na sensorialidade e na percepção seja capaz de potencializar 90 2. CCPL. Museu das Minas e do Metal. Disponível em: <http://www.circuitoculturalliberdade.mg.gov. br/museus-e-espacos/museu-das-minas-e-do-metal/museu-das-minas>, acesso em 09/09/12. a apreensão daqueles conteúdos históricos. Todavia, de que modo esses dispositivos concebem seu público, particularmente, o público jovem ao qual se endereça? Quais modos de subjetivação eles produzem, permitem ou estimulam? Como se mostram atentos a interações eventualmente divergentes? De fato, apesar de estarem no museu, isto é, em um espaço caracteristicamente exclusivo e apartado do cotidiano, essas imagens têm algo de amplamente reconhecível: elas imitam a linguagem da publicidade, dos programas de TV e dos vídeogames; como se atendessem às reivindicações dos educadores críticos, de que tais espaços monumentais e sacralizados fossem permeados por referências de baixa procedência, ou ainda, por referências mais próximas ao repertório cultural dos visitantes em geral. Porém, considerando-se que essas imagens também simulam algo da convergência digital (integração das mídias, mobilidade, desterritorialização), interessadas em algum momento na excitação que isso pudesse provocar, na verdade, elas se encontram instaladas no museu de um modo quase definitivo, estabilizadas no espaço e no tempo, impossibilitadas até mesmo de se contaminarem entre si. Dessa maneira, é possível prestar ao projeto museográfico em questão uma autoria: o poder de haver transformado o invisível em um visível a ser reverenciado3. Como se vê, em tais casos, não terá sido suficiente trocar “arte” (elitista) por “imagem” (democrática). Isso porque tais imagens de nenhum modo propiciam uma interação real. Certamente, elas não neutralizam por completo a ocorrência de processos cognitivos por parte dos visitantes, tais como a associação entre ideias presentes e ideias ausentes, a formação de hipóteses ou a solução de problemas; o que na verdade nenhuma imagem teria a capacidade de fazer. Mas elas não são capazes de objetivar, nem mesmo de favorecer tais processos. No máximo, diante delas, “[...] somos convidados a seguir associações pré-programadas, que existem objetivamente. Em suma, [...] somos convidados a confundir a estrutura mental de outra pessoa com a nossa”; o que 3. Boris Groys. From image to image file – and back, p. 85. LINDONÉIA para Lev Manovich é “[...] um tipo de identificação apropriado à era informacional do trabalho cognitivo”4. Contudo, em um caso específico, essa “estrutura mental” é drasticamente lobotomizada. Uma daquelas atrações tem como personagem um apresentador de TV animado, que dirige ao visitante o seguinte convite: “Quer se tornar um milionário FIG. 01. Arquivo pessoal hoje? É aqui mesmo!” Aos que se dispõem a ativá-la, com um simples toque na tela, o apresentador prossegue, no que logo se reconhece como um concurso de perguntas: “Valendo 100 mil diamantes [algo assim], na sua opinião, a grafita é...” As opções aparecem na tela: a) um metal, b) um vegetal, c) um mineral. O 4. Lev Manovich. On totalitarian interactivity. [1996] Disponível em: <http://www.manovich.net/ TEXT/totalitarian.html>, acesso em 09/09/12. apresentador espera pela resposta, que aparentemente pode ser escrita na tela com uma touch pen. Por alguns segundos, não mais se ouve sua voz empostada. Suas pálpebras baixas sugerem certo entorpecimento. Pode-se imaginar que estamos à beira da interação, mas não. #02 A lobotomia, no caso, não diz respeito ao caráter elementar da pergunta, que serviria à introdução de uma taxonomia, por exemplo; uma ciência eventualmente análoga à atividade dos museus. As perguntas que vêm em seguida podem até ser mais exigentes. É que, ao primeiro toque da caneta na tela, a resposta certa se completa automaticamente. Portanto, mesmo que se queira errar ou trapacear, somente será possível acertar; o que talvez não se descubra à primeira tentativa. E para cada acerto “seu”, é o apresentador quem recebe uma caudalosa chuva de diamantes; uma ironia exemplar. Como se sabe, a acumulação de pedras e metais preciosos, enquanto produção de riqueza em abstrato, não tem limites.5 Tudo isso nos faz entender que não haverá prêmio no final, que a possibilidade irrealizável de se tornar um milionário faz parte do jogo, que isso não passa de mentira. Em uma segunda visita ao museu, enquanto anotava as frases que o apresentador nos dirige, antes de se ativar o questionário, ouvi de uma monitora: “Se quiser ouvir outra pergunta, é preciso tocar na tela”. A situação me parece emblemática do tipo de “interação” que se tem aí, sinalizando a prioridade desses dispositivos de mediação auto-serviço; embora ela não faça justiça aos saberes que esses “monitores” (assim o museu os denomina) elaboram, por vezes de maneira divergente, nas fronteiras entre discursos institucionais tão ambíguos. Um recurso à memória: Quando era criança, no final dos 5. JAPPE, Anselm. A mineração e a busca do ilimitado. Disponível em: <http://www. canalcontemporaneo.art.br/arteemcirculacao/archives/005031.html>, acesso em 09/09/12. [texto produzido em colaboração com a artista Mabe Bethônico, para sua exposição Prática Desmembrada no CCSP, de agosto a outubro de 2012.] 91 www.estrategiasdaarte.net.br anos 1980, antes de conhecer um vídeo-game, conheci na casa de um vizinho um MSX. Trata-se de um dos primeiros microcomputadores pessoais a ser comercializado no Brasil. Mas ele não me parecia mais do que um vídeo-game, exceto por um programa: um chatterbot (um “robô que conversa”, provavelmente um Eliza)6, que me fazia perguntas e processava minhas respostas, como se entabulasse uma sessão psicoterapêutica. Em geral, tais programas devolvem perguntas prontas ou genéricas que, no entanto, podem parecer perguntas humanas, até que sua falta de entendimento se torne evidente. Em todo caso, eu tive medo da sua “perspicácia”, sobretudo, de que ele adivinhasse meus segredos de criança. Inaugurado em março de 2010 como política cultural do Governo de Minas Gerais, o Circuito Cultural Praça da Liberdade (CCPL) vem se afirmando como o maior conjunto integrado de cultura do Brasil. Atualmente, o projeto reúne 08 museus ou espaços culturais já abertos à visitação, além de outros 05 em processo de implantação, que se propõem oferecer: arte, cultura, ciência e tecnologia, entre outros recursos; em vista da educação e do entretenimento do visitante, do cidadão, da população de Belo Horizonte, do povo mineiro, de todas as pessoas. Assim o Circuito define sua missão: “ampliar o capital humano através da cultura, informação e educação, garantindo espaço para a inovação e divulgação da cultura”8. Isto não aconteceu, mas eu poderia ter perguntado àquela monitora o que agora pergunto a Eliza: — E se eu não tocar na tela? — Você acha que não tocar na tela é algo que se espera? — Não, penso exatamente que o esperado é que eu toque na tela. — Então por que não? — Eu tentei isso antes, mas me pareceu que eu estava sendo enganado. — E você estava de fato? — Eu estaria se tivesse acreditado naquilo. — Mas quais são as chances de que acreditasse naquilo? — Nenhuma. — Não estou certa de que o entendo completamente.7 A par de que tal vocabulário denote uma absorção da cultura empresarial por esta política cultural9, a visão “ampliada” que o Circuito tem de seus destinatários, com base em uma proposta de inclusão social que enfatiza a interatividade [sic], de algum modo pode ser explicada: além de uma suposta fonte de conhecimento para o público escolar, espera-se que ele seja um “pólo de atração de investimentos, de turismo e de criação de empregos e de renda”10; incluindo-se aí o que possa atrair os “exigentes turistas internacionais” que virão para a Copa do Mundo de 201411. De fato, o Circuito reitera um papel não inteiramente novo do governo na promoção da cultura: cortejar o mundo corporativo, captar recursos, gastar com a gestão cultural (quase R$ 4 milhões repassados a uma OSCIP, para que implemente um programa de trabalho com duração de um ano)12, a fim de reduzir o gasto direto com a cultura, bem como os protestos em contrário. Mais do que comparar essas diferentes tecnologias: de um lado, um algoritmo primitivo escrito nos anos 1960 e, de outro, a expressão de uma “concepção absolutamente vanguardista em ponto de museus”; parece-me importante, se possível, comparar as experiências que uma e outra permitiram. Em todo caso, a pobreza avarenta de experiências daquelas atrações me parece ostentosa, ainda que suas imagens, porque elas afinal não existem em si mesmas, possam nos dar o que discutir; quanto a isso, elas certamente nos serão generosas. *** 92 6. Natural Language Processing. Eliza. Disponível em: <http://nlp-addiction.com/eliza/>, acesso em 09/09/12. 7. Esse diálogo, com tradução minha, foi produzido em 09/09/12 em interação com o programa Eliza, mencionado na nota anterior. 8. CCPL. Termo de Parceria. Disponível em: <http://www.circuitoculturalliberdade.mg.gov.br/ parceiros/termo-de-parceria>, acesso em 06/09/12. [PDF] grifo meu. 9. Por certo, o conceito de inovação, antes de estar associado ao mundo corporativo, pode ser associado às vanguardas artísticas, mas justamente isso terá fornecido àquele mundo “um instrumento valioso de projeção de uma imagem de si próprio como uma força progressista liberal”. (Chin-Tao Wu, 2006, p. 148.) 10. CCPL. Perguntas frequentes. Disponível em: <http://www.circuitoculturalliberdade.mg.gov.br/ component/content/article/28-topo/86-faq>, acesso em 07/09/12. 11. A expressão aparece atribuída ao então secretário de Estado de Turismo, Agostinho Patrus Filho, quando em visita ao CCPL, em 30/06/11, segundo matéria publicada pela Imprensa Oficial. Cf. Imprensa Oficial. Disponível em: <http://www.iof.mg.gov.br/index.php?/destaques/destaque/Estadoquer-incentivar-visitas-ao-Circuito-Praca-da-Liberdade.html>, acesso em 06/09/12. 12. CCPL. Termo de Parceria. Disponível em: <http://www.circuitoculturalliberdade.mg.gov.br/ parceiros/termo-de-parceria>, acesso em 06/09/12. [PDF] LINDONÉIA Fruto de parcerias com a iniciativa privada, que no Brasil, nos últimos 20 anos, tornaram-se uma condição para a economia da produção cultural, o Circuito parece, no entanto, conferir uma notoriedade inaudita ao papel das empresas na sociedade; o que se pode pensar até mesmo em comparação ao legado dos governos Reagan e Thatcher, que nos anos 1980 transformaram as instituições culturais em agências de relações públicas, para a melhoria da imagem corporativa13. Em alguns casos, como no MMM e no futuro Museu do Automóvel, em parceria com a Fiat, o “patrimônio histórico e cultural” que se pretende preservar e valorizar se confunde com o próprio campo de negócios dessas empresas, resultando no que se poderia chamar de “museus em causa própria”. Em outros, como no Memorial Minas Gerais Vale, o nome do espaço (ao qual se agrega o nome da empresa como um verbo conjugado, significando “o que tem valor”) confundese com o próprio nome da empresa (que originalmente se refere a um substantivo, a uma formação geográfica), sugerindo uma indistinção entre suas finalidades; como se a memória do estado tivesse valor, na medida em passa pela atuação da empresa. Em tais casos, não se trata de simplesmente exibir a marca do patrocinador junto ao museu, nem de alocar espaços do museu para a exibição dos produtos da empresa; isto é, não mais se trata do velho modelo de patrocínio que se costuma praticar no Brasil. A EBX, uma holding que desenvolve negócios em “mineração, energia, logística, petróleo e gás, real estate, fontes renováveis e entretenimento”14, não faz um acordo com uma instituição cultural, conforme o esquema “os agentes culturais ganham dinheiro, a empresa ganha publicidade”. Isso porque, de certo modo, ela mesma é essa instituição e os agentes são todos seus funcionários, contratados ou estagiários. Na medida em que são providenciados pela empresa15, os próprios conteúdos do MMM podem ser lidos 13. WU, Chin-Tao. Privatização da cultura: A intervenção corporativa nas artes desde os anos 80; tradução de Paulo Cezar Castanheira. São Paulo: Boitempo, 2006. pp. 145ss. 14. CCPL. Parceiros. Disponível em: <http://www.circuitoculturalliberdade.mg.gov.br/component/ k2/item/76-parceiros#>, acesso em 08/09/12. grifo meu. 15. Isso só pode ser afirmado, sob a condição de que todos os profissionais envolvidos na concepção e realização do MMM, “alguns dos melhores profissionais do mercado”, são funcionários ou contratados da EBX. De fato, a lista desses profissionais abrange arquitetos, designers, montadores, museógrafos, pesquisadores, professores universitários, restauradores etc.; o que certamente indicia uma preocupação em legitimar os conteúdos do museu. Cf. Magnetoscópio. Projetos. Disponível em: como propaganda, seja do campo de negócios dessa empresa, da sua importância não só econômica, mas também sócio-cultural [sic]; seja de seus discursos, invariavelmente autopromocionais, sobre questões nas quais ela se vê “criticamente” implicada: trabalho, território, história, meio ambiente etc. Mais do que isso, (um exemplo constrangedor até de ser mencionado) o MMM exibe conteúdos ligados à própria pessoa do presidente da EBX, mantendo uma sala em homenagem a seu pai, cuja trajetória estaria marcada (é o que se lê em um totem nesta sala) por “incontestáveis contribuições para a construção de um Brasil melhor”16. #02 Certamente, não se poderia contestar que o MMM, nesse caso, não observa o princípio da impessoalidade na aplicação de recursos públicos. Afinal, ele parece mantido por recursos privados; seu único atenuante por enquanto. A EBX divulga ter investido na implantação e manutenção do museu cerca de R$ 30 milhões, sem nenhuma contrapartida fiscal;17 uma fração ínfima dos US$ 15,7 bilhões investidos pela empresa entre 2011 e 2012,18 e menor ainda se comparada ao patrimônio de seu presidente, avaliado em US$ 30 bilhões19. Porém, do mesmo modo como não mais se trata de patrocínio, tampouco se trata de um retorno ao mais velho ainda modelo do mecenato, da pura doação. Embora possa parecer uma bagatela (R$ 30 milhões equivalem, aproximadamente, a meio milésimo de US$ 30 bilhões), o negócio deve ter sua importância, a ponto de justificar a transferência do Rio de Janeiro para Belo <http://www.magnetoscopio.com.br/mmm.htm>, acesso em 07/09/11. 16.. Curiosamente, essa sala não aparece na apresentação do MMM no website do Circuito. Cf. CCPL. Museu das Minas e do Metal. Disponível em: <http://www.circuitoculturalliberdade.mg.gov. br/museus-e-espacos/museu-das-minas-e-do-metal/museu-das-minas>, acesso em 09/09/12. 17. Esse mesmo valor aparece tanto no balanço de 1 ano da atuação do MMM, quanto no de 2 anos, segundo diferentes fontes. Cf. CCPL. Museu das Minas e do Metal (MMM) comemora um ano de funcionamento com visitação expressiva e ações educativas marcantes. [27/06/11] Disponível em: <http://www.circuitoculturalliberdade.mg.gov.br/component/k2/item/164-museu-das-minas-edo-metal-mmm-comemora-um-ano-de-funcionamento-com-visita%C3%A7%C3%A3o-expressivae-a%C3%A7%C3%B5es-educativas-marcantes>, acesso em 07/09/11; Jornal Hoje em Dia. Museu das Minas e do Metal atrai 120 mil em dois anos. [31/07/11] Disponível em: <http://www. hojeemdia.com.br/noticias/economia-e-negocios/museu-das-minas-e-do-metal-atrai-120-mil-emdois-anos-1.16495>, acesso em 31/07/12. 18. EBX. EBX em números. Disponível em: <http://www.ebx.com.br/pt-br/grupo-ebx/Paginas/ EBXNumeros.aspx>, acesso em 08/09/12. 19. Forbes. Lists. World’s Billionaires. Disponível em: <http://www.forbes.com/profile/eikebatista/>, acesso em 08/07/12. 93 www.estrategiasdaarte.net.br Horizonte, da diretora de projetos sociais e culturais da empresa, que agora dirige a associação mantenedora do museu. Como se sabe, o investimento costuma cobrar retorno. Talvez seja esta a “inovação cultural” do Circuito: ele possibilita uma nova modalidade de parceria público-privado, que não só rende às empresas uma imagem pública mais consciente, socialmente responsável [sic]; mas que parece posicioná-las na conjunção de interesses públicos, licenciando-as a naturalizar e perpetuar seu patrimônio ideológico privado20, neste caso, com base no prestígio social de que ainda gozam os museus21. Conforme seu balanço de um ano de funcionamento, o MMM “mostrou ao público que veio pra ficar”22; uma pretensão que possivelmente seria avalizada pelo Governo do Estado. Em matéria da Imprensa Oficial, divulgando a importância dos museus em geral, para o enriquecimento do currículo escolar, lê-se: O Museu das Minas e do Metal é o retrato do processo de desenvolvimento econômico, social e cultural do Estado. Além de colocar a mineração e a metalurgia em perspectiva histórica, desvenda o papel do metal na vida humana, ilustrando sua diversidade, características, processos produtivos e presença no imaginário coletivo.23 Não bastasse o respaldo governamental, afirmações desse tipo, que chancelam a transformação da memória cultural em patrimônio de credibilidade das empresas, têm sido pouco notadas, e muito menos questionadas, por exemplo, dentre os artistas, músicos, atores, arquitetos, jornalistas e executivos, “brasileiros importantes” ou “grandes nomes”, que o website do 94 20. BETHÔNICO, Mabe & FONTE BOA, Maíra. Patrimônio ideológico. Revista Valise, v. 1, n. 2, ano 1. Porto Alegre: PPGAV/ UFRGS, dezembro de 2011, pp. 15-25. [online] 21. Embora se apresente como um museu, o MMM não não está subordinado à Superintendência de Museus e Artes Visuais, órgão vinculado à Secretaria de Estado de Cultura. Cf. Governo de Minas. Cultura. Transparência. Disponível em: <http://www.cultura.mg.gov.br/transparencia>, acesso em 08/09/12. Para saber como o MMM deturpa o sentido de museu, cf. Mabe Bethônico & Maíra Fonte Boa. Idem. 22. CCPL. Museu das Minas e do Metal (MMM) comemora um ano de funcionamento com visitação expressiva e ações educativas marcantes. [27/06/11] Op. cit. 23. Imprensa Oficial. Além da sala de aula. [18/05/11] Disponível em: <http://www.iof.mg.gov.br/ index.php?/destaques/destaque/Alem-da-sala-de-aula.html>, acesso em 06/09/12 Circuito destaca como seus apoiadores e entusiastas; muitos deles beneficiários pessoais do projeto.24 Um deles chega a comparar o momento com a Revolução Francesa, quando finalmente “o povo pôde se apropriar dos espaços do poder”; o que de resto traduziria a palavra liberdade. Desta vez, no entanto, essa apropriação é também um discurso do poder. Presente à inauguração de um desses novos espaços, o então Governador do Estado teria declarado: Essa praça foi concebida para ser a praça do poder há 120 anos, quando Belo Horizonte foi construída para ser a sede do Governo de Minas. Hoje, ela virou a praça do povo. Vamos ter, aqui, o mais importante circuito cultural do Brasil. E para quem está deixando o governo dentro de uma semana, nada mais emocionante do que poder andar pela praça e ver que a Praça da Liberdade, símbolo maior de Belo Horizonte, da nossa capital, vai virar esse Circuito. [...] Não dá para vocês imaginarem o que está acontecendo dentro de cada um dos [sic] desses prédios. Cada um deles tem uma concepção absolutamente vanguardista, o que tem de melhor no mundo em ponto de museus, enfim, de entretenimento, vai estar aqui entregue a vocês.25 Certamente, a Praça da Liberdade, em torno da qual se localiza a maioria dos espaços que integram o Circuito, é um dos lugares públicos mais antigos e emblemáticos de Belo Horizonte. Construída entre 1895 e 1897, quando se fundou a nova capital, a fim de exaltar o espírito republicano, a Praça sediou o Governo de Minas até 2010, momento em que o poder executivo e a administração pública estaduais foram transferidos para a recém inaugurada Cidade Administrativa (erguida com os royalties do nióbio extraído em Araxá), deixando sem destinação específica (para além de que seriam espaços culturais) parte dos prédios em que funcionavam o palácio, algumas secretarias e outros órgãos públicos. 24. CCPL. Depoimentos. Disponível em: <http://www.circuitoculturalliberdade.mg.gov.br/ depoimentos>. Acesso em 05/03/2012. 25. CCPL. Aécio inaugura Novo Espaço. [19/03/10] Disponível em: <http://www. circuitoculturalliberdade.mg.gov.br/component/k2/item/96-a%C3%A9cio-neves-inaugura-novoespa%C3%A7o>, acesso em 07/09/12. LINDONÉIA Para a implementação do Circuito, algumas dessas antigas edificações foram ou estão sendo restauradas e adaptadas, de modo a contemplar as necessidades dos novos espaços culturais, quais sejam: da oferta de condições de acessibilidade à vontade de lhes agregar “contemporaneidade”. Em todo caso, considerando-se que o conjunto arquitetônico e paisagístico da Praça é tombado, tanto em âmbito municipal (1994) quanto estadual (1977), o programa dessas intervenções nunca foi um consenso entre os especialistas.26 O prédio em que o MMM está instalado, a antiga sede da Secretaria de Estado de Educação, por exemplo, é um dos primeiros empreendimentos arquitetônicos da nova capital. Em sua adaptação, foram inseridos um volume semelhante a um container, na parte posterior do terraço, e um elevador panorâmico externo, que alteram a volumetria original do edifício; o que para alguns desses especialistas significa uma “descaracterização”. A propósito, salas do edifício podem agora ser alugadas para eventos empresariais, casamentos etc.27 De qualquer modo, chama a atenção que 05 das 13 “perguntas frequentes” registradas no website do Circuito se preocupem com justificar essas intervenções, que agora fazem parte do cardápio.28 Além disso, o MMM implicou a desmontagem e desalojamento de dois outros museus: o Museu da Escola de Minas Gerais, que funcionava no andar térreo do mesmo edifício, com um acervo de aproximadamente 6 mil peças, entre mobiliários, objetos, fotografias, documentos textuais e arquivos de depoimentos orais; e o Museu de Mineralogia Professor Djalma Guimarães (MMPDG), do qual recebeu parte do acervo em comodato: cerca de 3 mil amostras de minerais, rochas, gemas, meteoritos, fósseis etc. Dois anos antes da inauguração do Circuito, o Museu da Escola 26. Benedito Tadeu de Oliveira. Patrimônio e desenvolvimento em Belo Horizonte. Revista Arquitextos. Disponível em: < http://www.vitruvius.com.br/revistas/read/arquitextos/07.080/282>, acesso em 08/09/12. 27. MMM. Seu evento no MMM. Disponível em: <http://www.mmm.org.br/index. php?p=9&pa=ini&n=31>, acesso em 10/09/12. 28. CCPL. Perguntas frequentes. Disponível em: <http://www.circuitoculturalliberdade.mg.gov.br/ component/k2/item/86-perguntas-frequentes>, acesso em 08/09/12. foi parcialmente transferido para o Instituto de Educação, em que teve sede provisória até 2011, quando foi novamente transferido para a então criada Escola de Formação e Desenvolvimento Profissional de Educadores, situada a 5 km da Praça da Liberdade. 29 Por sua vez, o MMPDG, ligado à administração municipal, não mais aparece nem mesmo no website da Prefeitura.30 O prédio em que esse museu funcionava, o chamado “Rainha da Sucata” na mesma Praça, é agora ocupado pela administração do Circuito. #02 Em compensação, a museografia do MMM espera dar “nova vida” à coleção do MMPDG. Além disso, reserva uma sala em homenagem ao “importante geólogo mineiro”. Nela, a imagem igualmente animada do Professor aparece como um vulto, ou melhor, como saberia reconhecer a tradição popular: como assombração. *** Inúmeros são os desafios da mediação institucional (agora entendida como trabalho do educativo nesses espaços), parte deles em face da expansão das possibilidades comunicacionais, instaurada pelas tecnologias digitais. Esse processo vem minando a exclusividade das instituições culturais, enquanto depositárias de um saber privilegiado. No caso do MMM, é preciso reconhecer que suas articulações entre espaços físicos (história, localização e arquitetura do edifício) e espaços virtuais (evocados pelas atrações oferecidas aos visitantes) não se restringem às instalações do museu. Atento às críticas que se pudesse fazer à sua função afirmativa e reprodutora, o Educativo do MMM concebeu sua própria rede social na Internet.31 Com isso, ele apresenta o museu como um espaço absolutamente inclusivo, para “cada indivíduo”. Ao mesmo tempo, entende que estudar os públicos é fazer 29. Governo de Minas. Educação. MAGISTRA. Museu da Escola. Disponível em: <http://magistra. educacao.mg.gov.br/site/museu-da-escola>, acesso em 08/09/12. 30. PBH. Museus. Disponível em: <http://portalpbh.pbh.gov.br/pbh/ecp/comunidade.do?ev ento=portlet&pIdPlc=ecpTaxonomiaMenuPortal&app=enderecos&tax=16617&lang=pt_ BR&pg=6300&taxp=0&>, acesso em 08/09/12. 31. MMM. Rede MMM. Disponível em: < http://www.mmm.org.br/index.php?p=3>, acesso em 10/09/12. 95 www.estrategiasdaarte.net.br branding; o que significa, neste caso, capitalizar suas histórias e afetos para “tirar a mineração do senso comum da exploração”. 32 A propósito, outorgar publicidade à fala dos públicos, ou, como se tem dito, outorgar-lhes “agência” tem se generalizado enquanto ação mediativa dos educativos institucionais. Nem sempre, contudo, isso tem resultado em transformações efetivas, seja das instituições ou das políticas culturais. Em uma sociedade da informação, mais do que incluir todo tipo de informação, é preciso diferenciar essas informações quanto a sua relevância pública. Segundo Julian Assange, fundador do WikiLeaks, há três tipos de informação, enquanto pilares da história: aquela cuja circulação é mantida por um sistema econômico e produtivo; aquela que tende a desaparecer espontaneamente, sem que ninguém esteja interessado em destrui-la; e a “informação de terceiro tipo”, aquela em torno da qual há um trabalho intenso, que não é individual, para que ela não venha a se tornar pública. Esta é a informação que nos falta, para um engajamento mais inteligente com o mundo; também, para que tenhamos um mundo mais justo. 33 * 96 32. MMM. Rede MMM. Midiateca. “Case MMM” – Seminário Museus e Cidades Criativas. disponível em: <http://www.mmm.org.br/index.php?p=8&c=966&pa=tv&pfr=0>, acesso em 10/09/12. 33.. OBRIST, Hans Ulrich. In: conversation with Julian Assange, part I. In: e-flux journal, #25 – may 2011. Disponível em: <http://www.e-flux.com/issues/25-may-2011/>, acesso em 10/09/12. LINDONÉIA #02 O RATO QUE RUGE José Schneedorf Sozinho [...] naquela rua, [...] em todas as ruas do mundo, no mundo inteiro – sozinho; ele e o rato, natureza cinza equilibrada sobre quatro patas. [...] Estende a mão, mas o rato foge num movimento brusco. [...] Na sombra e no silêncio, o rato desliza manso, subindo a parede até alcançar novamente a viga que o sustenta. [...] O guarda o soltou e ele saiu caminhando de cabeça baixa, depois de ter jogado o cartaz na sarjeta: “O povo passa fome”. [...] Mas o rato voltou, sem que ninguém o veja. CAIO FERNANDO ABREU 1. RAIZ FIG. 01 – BANKSY. [sem título]. Adesivo. Fonte: BANKSY, 2005, p. 193. Radicado(s) na denteada espetacular – denteada salteada por seus contemporâneos desdobramentos que mais a fazem exclamar – o(s) artista(s) plástico(s) Banksy, grafiteiro(s) por certidão, responde(m) tanto à engrenagem quanto ao diapasão através de uma tradição setorial de sua prolífica obra: os ratos urbanos, sua alegoria primeira e maior, de furtadela, anonimato e pequeneza, de completa igualdade acenando para o agrupamento tanto quanto para a individuação. Como a face individual do corpo trabalhador, com seu predicado histórico de pulsão insurgente cidadã e citadina, representadas ambas em biografia confessa 97 www.estrategiasdaarte.net.br (a face) e obra professa (a pulsão), a assinatura Banksy não se observa singularmente, mas se observa. E observada observa, “pois naquele ponto escuro do musgo eu sou mortal e nos meus sonhos muitas vezes ali fareja, sem parar, um focinho híbrico”1, afirma o rato. elipses espetaculares e às consequentes honrarias meritórias dos meros, dos préstitos adonados, dos corsários urbanos, dos dignos metropolitanos licenciados, alçados a dignitários das artes: “cinqüenta anos depois, a prática que reinscreve a arte é o espetáculo”. 4 Reinscreve a arte, inscreve o grafite. Banksy: Tudo isso são cálculos bastante laboriosos e a alegria que a mente sagaz tem consigo mesma é algumas vezes o único motivo pelo qual se continua calculando. [...] Vivo em paz no mais recôndito da minha casa, e enquanto isso o adversário, vindo de algum lugar, perfura lento e silencioso seu caminho até mim. Não quero dizer que ele tenha um faro melhor que o meu; talvez ele saiba tão pouco de mim quanto eu dele.2 Eles existem sem permissão. Eles são odiados, caçados e perseguidos. Eles vivem em silencioso desespero em meio à imundície. E contudo eles são capazes de prostrar civilizações inteiras. Se você é sujo, insignificante e malamado, então ratos representam seu modelo definitivo.5 Não se vê como unidade(s) pessoal(is), mas se constata como persona unitária. Não se apresenta individualmente, mas deixa rastros de seus gestos, deixa indícios artísticos de sua camuflada, rata presença. Ainda na dissensão formal salutarmente permitida pela e na produção artística corrente, demonstra coesões de conteúdo e coesões plástiticas – além da coesão de uns para outras. É assinatura, a um só tempo, de sujeito e objeto: descoberta como obra e recoberta como indivíduo, acerto contemporâneo da tradição bissexta da anonímia autoral e/ou da transindividualidade dos coletivos artísticos. Ergueu a si própria primeiramente, por próprio esforço, mérito e risco – “instalei a construção e ela parece bem-sucedida. Por fora é visível apenas um buraco, mas na realidade ele não leva a parte alguma, depois de poucos passos já se bate em firme rocha natural. Não quero me gabar de ter executado deliberadamente essa artimanha”, 3 expõe o rato –, então foi erguida ao pódio das artes contemporâneas, decorrência do erguido pódio da grafitagem contemporânea, não mais exclusivamente rueira: representatividade geracional afluente, consenso crítico interinfluente, aposta mercadológica aferente e unanimidade pública deferente. Eferentes todos (geração, crítica, mercado, público e Banksy) a honras às 98 1. KAFKA, Franz. Um artista da fome / A construção. São Paulo: Companhia das Letras, 1998, p. 34. 2. KAFKA, 1998, p. 34. 3. KAFKA, 1998, p. 34. Como a metrópole, o espetáculo é superfície ratoeira, “como a sociedade [...], está ao mesmo tempo unido e dividido. Como a sociedade, ele constrói a sua unidade sobre o esfacelamento”.6 Como o espetáculo, a metrópole é superfície hospedeira, expediente e compromisso do grafiteiro, ensaiado no entendimento inato e aquisitivo do entorno, exercitado no senso de oportunidade, treinado na sobrevivência, formatado na agilidade assimilativa e na agilidade da prática, diplomado (e diplomadas estas) na ágil adaptação, temporal e espacial. Ubíquos metropolitanos, ratos são arquétipos dos labirintos subterrâneos – “existem também os que vivem dentro do chão. Nunca os vi ainda, mas as lendas falam a seu respeito e eu creio firmemente nelas”7 , alega o rato –, das admissibilidades e das subtaneidades, inevitáveis ambas; crias urbanas por adaptação, do assalto e do asfalto clandestinas, ligeiras e diligentes como aquele que as representa e que por elas se faz representar, Banksy: “ratos são chamados ratos porque eles farão qualquer coisa para sobreviver”. 8 Ratos desejosos e indesejados, ávidos, aquisitivos no saque e no estoque, o cada dia, a cada vez – “nessa praça do castelo reúno minhas provisões, acumulo aqui tudo o que capturo dentro da 4. FOSTER, Hal. Recodificação. Arte, espetáculo, política cultural. São Paulo: Casa Editorial Paulista, 1996a, p. 129. 5. BANKSY. Wall and piece. London: Random House, 2005, p. 83, tradução nossa. 6. DEBORD, Guy. A sociedade do espetáculo. Rio de Janeiro: Contraponto, 1997, p. 37. 7. KAFKA, 1998, p. 35. 8. BANKSY. Existencilism. London: Weapons of Mass Distraction, 2001, p. 23, tradução nossa. LINDONÉIA FIG. 02 – BANKSY. [sem título]. Estêncil e grafite. Fonte: BANKSY. Cut it out. London: Weapons of Mass Distraction, 2004, p. 27. construção acima das necessidades do momento”9 , declara o rato. Vileza estrategista supérstite, resistente e indomesticável; por tal perseguida, por tal também tolerada. Ratos em conformação e conformidade a uma rat-art, cunho a princípio coincidente e desapercebido do proveito semântico, posteriormente assim batizado, o nomeio do artista à sua musa, da inspiração à guia: “eu já vinha grafitando ratos por três anos antes de alguém dizer ‘é engenhoso isto ser um anagrama de arte’, e eu tive de fingir que sabia disso o tempo todo”.10 2. SOLO Tidos os ratos por arquetípicos dos subsolos das vias, das vilas e das vilanias, tida a rat-art por arquetípica de operações reflexivas, de réplicas que centralizam o periférico enquanto sustentam uma semiautonomia, de práticas de dignidade inclusiva, de integrações com integridade, de autonomeações autônomas, pulsantes de processos cicatrizantes sociais. De Banksy a ratart firmou-se seu maior distintivo. Seus ratos permanecem sua mais recorrente, revisitada e numerosa produção, nada restrita à obsessão monomaníaca dentre sua testada e atestada prolixidade; esta dentre os metamorfismos plásticos contemporâneos que alargam os continentes sem perdas autorais. Seus ratos permanecem também a sua mais autoralmente associável produção, causando um imediato reconhecimento, através da imediaticidade cognoscível do figurativo, nesse particular 99 9. BANKSY. Existencilism. London: Weapons of Mass Distraction, 2001, p. 23, tradução nossa. 10. KAFKA, 1998, p. 36. zoomórfico e nada afeito à palatabilidade representativa dos desenhos afetivos infantis, quase sempre transumano no vozeio: agora despidos dos balões que caracterizam tais desenhos, aforismos críticos dão-lhes a mesma fala humana, legendam as imagens sem deixar de pertencê-las como um todo compositivo, ou são por elas legendados, no tênue processo circular que pauta as relações ilustrativas entre imagem e texto, arriscando maior peso veicular para uma ou para outro. E transumano nos paramentos: desde os guerrilheiros de boinas, cigarrilhas e munições diversas até os munidos de giz e cartaz, ou pincel, aerossol, óculos protetores e máscara respiratória. Invariavelmente dotados de sugestivas antenas. A escala em tamanho natural, se não antrópico; e regularmente no nível do chão; nesse particular entendida a produção como expressão do excluído desabrido e não só, não mais extenuada numa euforia formal, superlativa, numa demasia onicolor muito presente na propedêutica grafiteira (e algo ainda presente, em subgrupo), que não permitia outra leitura que não epidérmica – e que tanto estigmatizou a prática. Urbes quaisquer delas avizinharam sempre entre si construções e construtos, avizinham hoje ainda mais, metropolitanas, convergentes, urgentes, concessoras e concessionárias dos #02 FIG. 03 – BANKSY. [sem título]. Estêncil e grafite. Fonte: BANKSY, 2001, p. 23. FIG. 04 – BANKSY. [sem título]. Estêncil e grafite. Fonte: BANKSY, 2005, p. 86. 99 www.estrategiasdaarte.net.br rápidos trânsitos e elos de ideias, obras e encontros, sobremaneira para aqueles que delas se valhem: os da arte súbita, provocativa, acareada em praça; os reflexivos, militantes por definição: o crítico e historiador da arte Paul Ardenne anuncia a tradição de origem britânica – como Banksy – de conceituar o artista como trabalhador social – como Banksy –, um protagonista em palco público apondo o cronista alerta, coadjuvante de exílios, ou mesmo o herói romântico e herói do verso, herói mnemônico e herói futurólogo. Expor no muro anuncia, por si. Expor no muro anuncia o antagonista – sempre detentor da fala inspirada – societário da micropolítica e da representação da voz minoritária, inclinado à esquerda ou aclimado à anarquia, de apreço ao manifesto: “a denúncia de uma aura de dominação com recheio de arte, a tendência à receptibilidade das massas [...] e a negligência do atrativo estético em favor da clareza políticodidática” 11 que está no semblante de simplicidade direta, objetiva, afirmativa da grafitagem contemporânea, “representante dessas massas e daquilo que as inspira em sua atitude revolucionária”.12 Expor na rua anuncia a adição de Ardenne13 da ambivalência à tensão, compreendidas as três pelo ativismo do imediato, relacionado à história momentânea, portanto sujeito à tempestuosidade e à efemeridade da rua e do instante, à solvência na realidade. Anuncia a imersão no concreto e na concretude, no ir-e-vir diário, no cotidiano surpreendido: a defrontação imediata, e não mediada, com o passante feito espectador, no neologismo “autrismo” 14 que Ardenne cria: a disposição da obra ao outro, o dever ao outro, o contato ao outro, o tocar o outro. E ao 100 11. ARDENNE, Paul. Arte contemporáneo y política: uma relación tensa y ambivalente. Revista ESSE, Montreal, n.8, set. 2003. ISBN 0831-859X, não paginado. Disponível em: <www.esse.ca> Acesso em: 18 nov. 2007. Entrevista a André-Louis Paré, tradução nossa. 12. BÜRGER, Peter. Teoria da vanguarda. São Paulo: Cosac & Naify, 2008, p. 89. 13. BENJAMIN, Walter. Magia e técnica, arte e política: ensaios sobre literatura e história da cultura. São Paulo: Brasiliense, 1994, p. 26. come. 2004. Rato empalhado – instalação clandestina no Museu de História 14. Autrisme no idioma original francês, relacionado ao autre – o outro – em propositada analogia ao autisme, o autismo: o desligamento psicológico da realidade externa para a criação mental de um mundo autônomo, e a vivência exclusiva neste mundo exclusivo, a impossibilidade da comunicação. A ressaltar que Ardenne entende os dois termos como pertencentes a diferentes âmbitos da reali . outro o direito. Ao outro competirá o enfrentamento da obra e o enfrentamento do inesperado da obra, caberá a administração de sua relação com ela: seu comportamento ante ela ou dentro dela, sua resposta pertence a si, igualmente pertence à obra. Essa mais nova supremacia do conceito grafiteiro, político, em muito explica a desafetação estética. A ideia, de fato nada excludente ao intramuros, é de um relacionamento mais literal e mais temporal, parte e partícipe – pauta da arte urbana, pauta da arte relacional, pauta da arte contextual, pauta da arte política – pretendida essa última sentença, seio das outras, menos como divisória, setor a termo do campo, limítrofe, e mais como fundamento explanatório de viés à literalidade específica, “pois a obra de arte não é simplesmente um instrumento para ser usado pela ou contra a ideologia: é em si mesma um ato ideológico”.15 É fato e dispensa prova, como é fato e dispensa prova serem intramuros e extramuros ambos espaços públicos, coextensivos para a arte. E extensivos para Banksy do caráter furtivo, do feitio sorrateiro; da ação de sorrate, pela calada, esquiva, tanto oportuna quanto oportunista: sorrateiro é termo derivado “do latim subreptu: ‘tomado por astúcia’, com influência de ‘rato’” 16 preeminente. Da vasta obra de solo contestatório, que realiza-se irônica, concisa, direta; e oblíqua, veloz, como conveio ao proibitivo de suas originais inserções apropriadoras e performáticas em reconhecidas galerias e museus de diversos fusos, admissões autoafirmadas artificiais no intramuros – admissibilidades autoafirmativas naturais do extramuros. Enxertias forçadas de suas obras: interferências por ele produzidas sobre cópias de obras renomadas do repertório histórico da arte; ou sobre trabalhos anônimos, de autoria desapegada ou desaparecida, preferencialmente de certo caráter acadêmico, adquiridos em feiras de garagem comuns nas ilhas; ou ainda paródias imagéticas de elaboração minuciosa, utilizando, por exemplo, amostras arqueológicas falsas, caixas entomológicas 15. FOSTER, 1996a, p. 85. 16. FERREIRA, Aurélio Buarque de Holanda. Novo dicionário da lingua portuguesa. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 1986, p. 1614. LINDONÉIA FIG. 05 – BANKSY. Pest control / Our time will come. Instalação no Museu de História Natural de Londres. Fonte: BANKSY, 2005, p. 152-153. ou ratos mortos empalhados, caracterizados tais exemplares com atributos antitéticos em precisas miniaturas – nesses últimos casos, objetivando as alegorias aos museus de Ciências e História Natural. A completar a farsa, adicionam-se as molduras correlatas e as respectivas etiquetas de identificação técnica, a ratar, a adonar-se do espaço até a descoberta institucional das peças, e sequente remoção ou propositada incorporação ao acervo, tanto pelo aceite humorado ao crescente apelo público de seu nome quanto pela subversão do subversivo. Crivos que ocorrem, dependendo do local, no intervalo de poucas horas da instalação até vários dias após. Burlarias, irônicas como é seu hábito, não apenas à vigilância, ao policiamento, mas igualmente ao acesso, ao processo seletivo, à autorização: “algumas pessoas representam autoridade sem jamais ter possuído qualquer autoridade própria”.17 Atos invasivos como os de um rato, ator evasivo como um rato, jamais capturado, ao contrário: capturada ali para si a primeira notoriedade. Atos de fôlego situacionista comparado também na herança adulteradora das pinturas de Asger Jorn (1914-1973), todo o conjunto de obras falsárias, intrusas, reuniu-se numa de suas várias individuais – termo aplicado à marca – em cubo branco, 17. BANKSY, 2005, p. 28, tradução nossa Crude Oils18 , de 2005, avisando já no texto de parede tratar-se de uma exibição de remixagens, obras-primas, vandalismos e parasitismos. Indistintamente. Aviso comprovado: o local – uma pequena loja londrina alugada por temporada, espaço expositivo próprio, característico do campo e do método – teve suas quatro paredes forradas com os encartados e/ou descartados, cópias originais ou cópias das cópias, via de reprodutibilidade também característica do campo e do método. No centro do cubo, em continuidade ao conteúdo invasivo, dispôs um plinto com um busto humanamente artificial, como um manequim de vitrine artesanalmente aprimorado, encapuzado à maneira dos guerrilheiros, apenas os olhos a nu – um autorretrato intitulado Banksy Busted. 19 E o chão, por sua feita, permaneceria por todo o período da mostra demasiada e livremente ocupado por ratos, bem cuidados e bem alimentados, por pré-requisito oriundo do particular apreço emblemático: sanduíches e batatas-fritas em embalagens abertas, típicas das cadeias de lanchonetes, espalhavam-se propositadamente pelo piso, alusivos aos restos ofertados pelas esquinas, padrão alimentar possível dos roedores urbanos. A comprovar os cuidados, lâminas acrílicas impediam que os animais escapassem; para evitar-lhes qualquer constrangimento de hábitos ou dano físico, aos visitantes só se permitia entrarem em grupos de três por vez. #02 Ano passado, eu pus duzentas ratazanas vivas em uma loja numa das ruas mais exclusivas de Londres [Westbourne Grove, que atravessa os pólos comerciais de Nothing Hill e Paddington]. Na noite da abertura, os vizinhos apareceram com alguns policiais e seis diferentes inspetores públicos de saúde e segurança, mas eles nunca conseguiram nos embargar. 20 18. Pinturas brutas. 19. Banksy surpreendido ou Banksy capturado, ou ainda, coloquialmente, Banksy arruinado, sem desprezar a alusão lipogramática a “busto”. 20. BANKSY. Absolute **** - beware, it’s Banksy – updated with location of Los Angeles show. LA Weekly, Los Angeles, 13 set. 2006, não paginado. Disponível em: <www.laweekly.com/art+books/ art/absolute-/14435> Acesso em: 08 ago. 2008. Entrevista a Roger Gastman, tradução nossa. 101 www.estrategiasdaarte.net.br O exclusivismo da região daria proveito não somente à ironia, mas à potencialidade tática: Banksy aproveitou para abrir a exposição no mesmo dia e horário da inauguração de um estúdio de cabeleireiros logo ao lado, de modo a misturar as audiências, acaso assegurar sua própria indistinção em meio a estas. Sentado próximo à porta, um esqueleto trajado com a indumentária típica (quepe e crachá inclusos) dos funcionários institucionais credenciados: atendentes, porteiros, seguranças – alvos artísticos de Banksy em igual medida aos fardados: são uniformizados ambos os grupos, estão ambos no empecilho potencial de suas ações intrusivas, portanto estão ambos na origem de seu constante desvencilhar, de sua contínua tarefa de superação, de renovação de estratagemas – “houve épocas felizes em que quase confiei a mim mesmo que a inimizade do mundo contra mim talvez tivesse cessado ou amainado”21, assevera o rato. A peça escultórica tinha pequenos pontos da face derretidos em sutil gotejamento – a reproduzir suor e/ou consumição ao fardo serviçal – e bem serviu como plataforma de escalada para os ratos, em hilárias rotas internas ao uniforme, de entrada pelas bainhas e saída pelos punhos ou pelo colarinho, neste último com a oportunidade de continuar ascendendo pelo crânio. Banksy mencionou utilizar os serviços do molde por considerá-lo tão FIG 06– Vistas parciais da exposição Crude Oils, Londres, 2005. Fonte: www. artofthestate. co.uk 102 21. KAFKA, 1998, p. 41. atento e tão bem remunerado quanto seus demais colegas nos museus londrinos. A celeuma com estes espaços, e com aqueles em suas portarias, também reverbera a seleção inerente ao custo da admissão: “Nada dispersa mais o entusiasmo que uma pequena taxa de ingresso”. 22 3. BRITA Na baliza entre afirmação ideológica e plenitude plástica – alternada de uma a outra na preponderância, delicada no equilíbrio – a pessoalidade elusiva de Banksy se inscreve, ou se descreve, numa elongação muito árdua de ser sustentada, FIG 7 – BANKSY. na longa temporada de caça midiática que vemos e vivemos, [sem título]. 2012. Estêncil. Fonte: exemplar ou mesmo sobrelevada pela sanha sensacionalista e detroitfunk.com persecutória de seus tabloides conterrâneos, e, na alternativa do coletivo, na manutenção de um convergido artístico, um núcleo de uniformidade confocal, porque um grupo completamente igualitário impulsionaria a exterioridade objetiva dos quarteirões da manifestação ativista, mas pesaria a interioridade subjetiva que alimenta as artes. A aceitação do processo – ou do simulacro – da individualidade convém. Além de útil, coerente: “há aspectos muito sugestivos no Individualismo”,23 maiusculizado dentro dos agrupamentos multitudinários contemporâneos, somatórios dos unos humanos, complementares entre si os ratos, alegorias estes da igualdade daqueles, antinomias entre os conceitos de ‘multidão’ (heterogênea, composta da somatória de unidades inteiras e completas em si) e de ‘povo’ (homogêneo, massa uniforme, unitária), perfilados ambos pelo todo, em que pese a contemporaneidade dar plena vantagem ao primeiro. Hoje é a “multidão” e já não o “povo” quem caracteriza todos os hábitos e as mentalidades da vida social: as modalidades 22. BANKSY, 2005, p. 72, tradução nossa. 23.. WILDE, Oscar. A alma do homem sob o socialismo. Porto Alegre: L&PM, 2003, p. 36. LINDONÉIA #02 de trabalho, os jogos de linguagem, as paixões e os afetos, as formas de conceber a ação coletiva. O “povo” é de natureza centrípeta, converge em uma vontade geral, é a interface ou o reflexo do Estado. Pelo contrário, a multidão é plural, admira-se da unidade política, não firma pactos com o soberano, não porque não lhe relegue direitos, senão porque é resistente à obediência, porque tem inclinação a certas formas de democracia não representativa. 24 Em seu princípio, o grafite emergiu do adensamento urbano, contexto que tem por natureza exceder o uno, o indivíduo; “o grafite irrompeu mesmo numa cidade de signos, ao mesmo tempo homogênea e fragmentada, não para ser consumido como esses signos, mas para atacar esse consumo em seu próprio campo”. 25 Por seus princípios, o grafite destina-se à consciência da significação paradoxal, dos vínculos da referência e do prover; no apuro, destina-se à consciência alheia e própria da ambivalência do compromisso supramencionada em Ardenne, ambivalência aqui exposta nas convenções da guerrilha urbana estarem em certa medida herdadas, previamente formatadas; é humano e é rato o manifesto do comprometimento ser também a manifestação do comprometido, e vice-versa. Como? Sua casa está protegida, fechada em si mesma. Você vive em paz, aquecido, bem alimentado, único senhor de um sem-número de corredores e recintos – e é de esperar que deseja não só sacrificar, mas em certa medida abandonar tudo? Na verdade, você tem a confiança de recuperar isso, mas não está-se-á permitindo uma jogada alta demais? Existiriam motivos racionais para tanto? Não, para algo dessa natureza não pode haver motivos racionais. 26 Para o cada um da multidão, o grafite, como tudo o mais, aponta: anzol do reparo, da atenção difusa das bandas em “ire-vir produto-consumista”.27 Desponta nos muros espessos da 24.VIRNO, Paolo. Gramática de la multitud – para um análisis de las formas de vida contemporâneas. Madri: Traficantes de Sueños, 2003, p. 130, tradução nossa. 25. FOSTER, 1996a, p. 79. 26. KAFKA, 1998, p. 40. 27. DEBORD, Guy. et al. Internacional situacionista, vol. I: la realización del arte. Madrid: Literatura FIG 7 – BANKSY. [sem título]. 2012. Estêncil e grafite. Fonte: www. banksy.co.uk. variedade exponencial do consumo, uma razão direta. Banksy parte daí, produto de seu tempo e de seu ambiente, consentâneo ao comunal, lúcido e ciente de que “um muro é uma arma muito grande. É uma das coisas mais obscenas com as quais você pode atingir alguém”.28 Entendo que ele se refira à reserva cultural da qual cada imagem é uma instância. [...] Tanto espacial como temporalmente, portanto, [...] sua atração para artistas de vanguarda que desejam perturbar tais ordenações do sujeito e da sociedade. [...] Localmente, a valência da arte [...], o ataque [,a] vocação, repensando a transgressão não como uma ruptura produzida por uma vanguarda heróica de fora da ordem simbólica, mas como uma fratura traçada por uma vanguarda estratégica, dentro da ordem. Desse ponto de vista, a meta da vanguarda não é romper de forma absoluta com essa ordem (esse velho sonho foi abandonado), mas o de expô-la em crise, registrando seus pontos não só de falência (breakdown), mas de passagem (breaktrough), as novas possibilidades que uma tal crise poderia abrir. [...] Gris, 1999, não paginado. Disponível em: <www.geocities.com/autonomiabvr>. Acesso em: 18 ago. 2007, tradução nossa 28. BANKSY. Banging your head against a brick wall. London: Weapons of Mass Distraction, 2002, p. 30, tradução nossa. 103 www.estrategiasdaarte.net.br Finalmente, um espaço-tempo para além da redenção? Ou o caminho mais rápido em direção à graça para estrategistassantos contemporâneos? 29 Raté adjetiva, no idioma francês, aquele que, faltante a sorte, a competência ou a ocasião, não alcançou êxito pessoal ou profissional. ‘Ratinhar’ verbaliza a economia exagerada. ‘Ratinheiro’ adjetiva aquele que pechincha, que regateia. ‘Ratice’ substantiva coloquialmente a excentricidade, a extravagância. ‘Ratinho’ substantiva cada um dos primeiros dentes de uma criança. ‘Ratificar’ verbaliza a autenticação, a validade. A ratart confirma uma iconografia do pensamento marxista inserta na persistência e na sujidade metropolitanas, uma tradução imagética da já imagética espetacularização debordiana, na qual à faina assoma-se um comodato contrapartido ao FIG 06– BANKSY. universo do trabalho, um contínuo compulsório, um estatuto de [sem título]. Estêncil compatibilidade que adula – e pressiona – para a pertença. e grafite. Fonte: tell-nobody.net Na mercadoria e no espetáculo, todas as marcas do trabalho produtivo e do suporte material são apagadas; elas nos fascinam porque nos excluem, nos colocam na posição passiva de sonhador, espectador, consumidor. No espetáculo, nós nos tornamos conscientes dessa manipulação mágica em cada ato de consumo. 30 Espetáculo exposto, explicitado, revisitado por Banksy, a “condescender por um momento com o velho argumento sobre a velha indústria cultural, tal como Adorno a propôs”,31 a revisar, e verter esteticamente, ratificando, que “têm razão Horkheimer e Adorno ao reiterar, em Dialética do esclarecimento, que o processo da civilização não pode ser separado da opressão”,32 Banksy abaixo-assina a predição marxista e debordiana de que a revitalização estaria latente no se e no quando o homem obtivesse esse esclarecimento, “como se o real, descartado por um pósmodernismo performático, tivesse sido mobilizado contra um mundo imaginário de uma fantasia capturada pelo consumismo”.33 Nascido no berço da indústria e de sua consequente necessidade sindical – a tradição grafiteira inalienável da tradição trabalhadora – Banksy, prolífero proletário mural, ajustado e confortável, orgulhoso até, na condição de plebe rude, salva na onipresença dos ratos o operário revolucionário em si e por si, ao mesmo tempo em que ressalva na onipresença dos ratos os inventários oficiosos, inventários de prestadio, de subserviência e de apatia, inventários de superindentificação com o ladeado enquanto cativo da monotonia cotidiana redutiva à inércia política, isolado e exilado no servilismo: o “espetáculo é a realização técnica do exílio”. 34 Esses pontos de vista são o equivalente, pode-se dizer, de um povo escolhido, ao qual o sentido da história encontrase supostamente atrelado, ou a uma classe específica, 104 29. FOSTER, Hal. The return of the real: the avant-garde at the end of the century. London: MIT Press, 1996b, p. 140-186 passim, tradução nossa. 30. FOSTER, 1996a, p. 118. 31. HUYSSEN, Andreas. Seduzidos pela memória: arquitetura, monumentos, mídia. Rio de Janeiro: Aeroplano, 2000, p. 23. 32. BÜRGER, 2008, p. 90. 33. FOSTER, 1996b, p. 166, tradução nossa. 34. DEBORD, Guy, 1997, p. 19. LINDONÉIA como o proletariado, destinado a ser o veículo do destino histórico, em contraste com o qual nenhuma outra classe ou pessoa – ou arte – possui um significado histórico decisivo e derradeiro. 35 No cerne, a individuação da contemporaneidade, uma adequação ambivalente: por um lado, operar em condição de súdito é carregar consigo a aura de dominação com recheio de arte, é usufruto, usurpação e uso dessa condição concomitantes. Por outro lado, é uma perspicácia atual em relação às circunstâncias, às oportunidades, ao possível; é uma destreza e uma consciência que superam o lutar pelo inelutável, o agir de fora, que fazem usança polar das construções políticas, em seus limites divisórios ou factuais – as formas imperativas escorrendo para representativas –, para idear, planear, em busca-vida delinearse e tratar “sempre de uma mesma familiaridade com o possível [...] do oportunismo contemporâneo, [...] captar uma espécie de aprendizagem da massa das novas condições do conflito [...]. Ambivalência da multidão” 36 de perícia correta para Banksy e para sua linhagem, aprendizes pois da abrangência e da resistência da vontade humana, da formatação da necessidade e do desejo às alternativas ofertadas somar, aos mecanismos de dominação, de coordenação e de consumo, um acômodo tectônico natural da vida em sociedade, da vida em grupo – “mas toda essa beleza não existe e eu preciso ir ao trabalho, quase contente com o fato de que ele está em conexão direta com a praça do castelo, pois isso me anima”. 37 Uma dinâmica de ascese para lá das estruturas, que põe elo de ocupação ao de sobrevivência, no autônomo coexistindo ao e no autômato, atenuada a convenção laboriosa na aptidão laboriosa, humana. Considerada, sobremaneira, a temporalidade perspéctica, prossecutora, processual: as condições do comum e do comunal distam das ideias, mas comparem-se a termos 35. DANTO, Arthur. Após o fim da arte: a arte contemporânea e os limites da história. São Paulo: EDUSP, 2006, p. 29. 36. VIRNO, 2003, p. 131, tradução nossa. 37. KAFKA, 1998, p.51. seculares essas e aquelas, também e portanto as opções e ciências, daí se convalesçam os ressarcimentos. Restituições paulatinas e esporádicas, aprimoramentos sazonalmente lentos, episódicos de solavancos. Surpresas da nau que não partem da tripulação nem dos ratos, tampouco da capitania, mas da energia de movimentação de todos eles, somada a ventos, tempestades e marés. Do movediço em si. Tudo indica: a continência na Era do Espetáculo concede a um traquejo, a uma interdependência na Era da Informação e/ou da Consequência. Especificamente o indica a rataria grafiteira urbana, na qual sobeja a dignidade e a ciência (de si e do outro) do trabalhador e do comunitário contemporâneos, ciência basal da pirâmide, mais informada que espetacular, trazida da última para a primeira, novidadeira nesses mesmos termos seculares. Enfim, assimilado qual o “grau de autonomia das audiências diante dos dispositivos de comunicação”38 e do peso crescente da cidadania e da opinião pública, que ampliamse no mesmo passo em que amplia-se a inumerável variedade de fontes (mais e mais acessíveis) nas quais se pode buscar – e dispor e contrapor e justapor – o mesmo dado, adentrando uma etapa de portabilidade, mobilidade, conectividade, simultaneidade, interatividade, velocidade – e de fragilidade, dados a dependência da alimentação energética e o sucateamento dos recursos: os novos Maios. 38. FILHO, João Freire. A sociedade do espetáculo revisitada. Revista FAMECOS: mídia, cultura e tecnologia, Porto Alegre, N.22, p.33-46, 2003. ISSN 1415-0549, p.45. #02 FIG 10 – BANKSY. Reject false icons. Instalação escultórica. Fonte: BANKSY, 2004, p. 30. 105 www.estrategiasdaarte.net.br 4. AREIA Reputada a malha da informação encontrar-se hoje em sua aurora, suas primeiras esquinas, indiciando conhecimentos individuais cada vez mais horizontais e menos verticais, e dobrando-se entre a potencialidade e a efetivação, ainda distante de sua plenitude de alcance a distintas circunstâncias globais e estágios civilizatórios diversos, persevera o valor da colaboração entre arte e trabalho, a arte trabalhadora no convés de que “nada no mundo é mais comum que pessoas malsucedidas com talento, abandonando o barco antes de encontrar algo pelo qual valha a pena ficar”.39 Colaboração fenomenológica atenta às inexoráveis sucessividades históricas e ao porvir que ensejam, atenta às tendências contemporâneas, aí inclusas as das artes plásticas, que deitam louros ao grafite. Não há no exame espetacular regressão ou retrodição, pela latência e pelo entendimento de seu devir estar na exata mensura de seu próprio entendimento, de suas potências negativas e positivas. Ainda presente, menos rente, menos epidérmico, ele possibilita: “as classes médias – que Debord vaticinara, antes, que seriam absorvidas pelo proletariado [...] – ocupavam, agora, todo o espaço social”. 40 A segunda moeda, o plenipotenciário petróleo, a partir de cujo esgotamento e cujo comprometimento ambiental se insinuam novas configurações econômicas globais, direcionando investiduras artísticas, investigações científicas e soberano capital – e então soberanias – no sentido das energias limpas, testemunha a capacidade histórica ímpar de renascer a si própria da conjunção do construto econômico capitalista ao construto social democrático, nesses seus primeiros capítulos. Fênix de artimanhas internas do capitalismo – Plano Marshall especificamente – satirizadas no Grão-Ducado de Fenwick, pequeno país – rato – europeu fictício apresentado na obra de Leonard Wibberley 41 da qual esse artigo se empresta o título. Reviravoltas 106 39. BANKSY, 2005, p. 205, tradução nossa. 40. FILHO, 2003, p. 41. 41. WIBBERLEY, Leonard. O rato que ruge. Lisboa: Bertrand, 1961 da capacidade daquelas (as artimanhas) e deste (o capitalismo) de fazer uso de si mesmo para perseverar sua própria sobrevivência: “Eu adoro o modo como o capitalismo acha um lugar – até para seus inimigos. Estamos definitivamente na alta da indústria do descontentamento. Quero dizer, quantas tortas são necessárias para o Michael Moore ir até o fim?”. 42 Tal conjunção muito acoberta e muito estratifica, mais e melhor admite, reconhece e mesmo se alimenta da diferença, da contraargumentação, da espontaneidade e da permissividade, vide qual o lado grafitado do extinto muro de Berlim, vide o apelo consumidor no aceite das minorias. Tal conjugação expande espaço. Expande Banksy. Agrega e, assim, relativiza. O artista produtor de imagens, ciente, pode fazer o mesmo, noutra subversão circular, e “essas especulações nos conduzem à economia de tais imagens e eventos nos dias de hoje [...] em relação a como essas imagens funcionam num discurso de ‘crise’ para reinjetar um sentido de realidade em nossas vidas”. 43 Banksy: Eu andei fazendo algumas coisas para pagar as contas, e [...] aí há uma distinção realmente importante a ser feita. Se for algo em que você realmente acredita, fazer um trabalho comercial não se transforma em merda tão somente por ser comercial. Por outro lado, você só pode ser um socialista rejeitando o capitalismo por completo, porque a ideia de que você pode casar um produto de qualidade com uma qualidade visual, e tornar-se parte daquilo mesmo considerando-o capitalista, é muitas vezes uma contradição com a qual você não pode conviver. Mas algumas vezes é perfeitamente simbiótico. 44 42. COLLINS, Lauren. Banksy was here – the invisible man of graffiti art.The New Yorker, New York, 14 maio 2007, não paginado. Disponível em: <www.newyorker.com/reporting/2007/05/14/070514fa_ act_collins?printable =true> Acesso em: 01 nov. 2007, tradução nossa. 43. FOSTER, 1996a, p. 126. 44. BANKSY, Banksy – the naked truth. Swindle magazine, V.8, Los Angeles, 22 set. 2006, não paginado. Disponível em: <swindlemagazine.com/issue08/banksy> Acesso em 19 maio 2008. Entrevista a Shepard Fairey, tradução nossa. LINDONÉIA para a astúcia, e vice-versa, a manutenção depender de si própria, a militância autogerir-se, o protesto-humor grafiteiro gerar recursos para si mesmo, para sua continuidade e expansão – “seja como for, preciso ter a garantia de que em alguma parte talvez exista uma saída fácil de alcançar, completamente aberta, onde, para me evadir, já não tenha mais de trabalhar”47, quadra o rato. A contemporaneidade comprovou sobremaneira que o sucesso e o risco do questionamento de um sistema (social, mercadológico, artístico, ou todos eles) está na precisa inserção nesse sistema, está em agir por (e de) dentro dele, “se você entrar totalmente no jogo talvez possa expô-lo, isto é, você talvez revele o automatismo ou mesmo o autismo desse processo, por meio de seu exemplo exagerado”.48 Retribuição ou reversão por via de inserção, via de proveito, via de oportunidade (percebida ou criada, ocasional ou ocasionada), via de apropriação, via de posse – vias caras à arte contemporânea ––, um presente desmuro, a ponderar, ou destilar, que os indivíduos “nem estão integrados (o [...] sujeito composto na contemplação), nem dispersos (o que é o efeito de grande parte da cultura popular: o sujeito entregue à intensidade esquizóide da mercadoria)”.49 FIG 11– BANKSY. [sem título]. Estêncil. Fonte: BANKSY, 2005, p. 87. “E não são apenas os inimigos externos que me ameaçam”45, dá-se o rato. De encontro ao espetáculo ou não, a produção de imagens da arte não é, estrita ou necessariamente, espetacular. Essa é sua valência. Sua lida imagética é linguagem. Se sim de encontro, valer-se das rachaduras, escavar o concreto, abrigar a lacuna, obter a fenda – funciona fazê-los espetacularmente, por interioridade sistêmica. Afrontas urbanas não só visam, questionam ou propõem outros termos ao sustento material dos pares e dos párias como, para praticá-lo, requerem para si o sustento, a manutenção, “a luta de classes, que um educado por Marx jamais perde de vista, é uma luta pelas coisas brutas e materiais, sem as quais não existem as refinadas e espirituais [que] se manifestam nessa luta sob a forma da confiança, da coragem, do humor, da astúcia”. 46 Assenta-se hoje do paradoxo 45. KAFKA, 1998, p. 35 46. BENJAMIN, 1994, p. 224. #02 Depuro debordiano quinquagenário é a hora, o eferente distanciamento qualifica uma anterioridade na objetificação das relações humanas, compreende um possível intercâmbio entre ingerência e inerência. Tudo já preexistia. Agora se pode associar a verificação da prova ao apogeu do réu, quando a soberba deixa pistas, quando “a aparência da mercadoria é mais decisiva que sua verdadeira utilidade, espontânea e não mediada, e seu empacotamento simbólico gera uma indústria da imagem e uma nova ‘estética da mercadoria’”.50 Quando dos produtos materiais do trabalho tornados agentes sociais – descritivos, definidores, representativos, condicionais, relativos: não obstante à aparência da mercadoria, a aparência do próprio homem, que aquela consome, usa, veste, vive, anima, entranha, na supremacia 47. KAFKA, 1998, p. 35. 48. FOSTER, 1996b, p. 131, tradução nossa. 49. FOSTER, 1996b, p. 136, tradução nossa. 50. FILHO, 2003, p.39 107 www.estrategiasdaarte.net.br das corporações, o poder de fato, que incita o uso das marcas, e marca com as marcas, num espetáculo que entende que “se a sobrevivência consumível é algo que deve aumentar sempre, é porque ela não pára de conter em si a privação”,51 numa frontalidade, num interposto criando completudes frágeis, intermediando vínculos nos quais o espetáculo “não é um conjunto de imagens, mas uma relação social entre pessoas, mediada por imagens”.52 Para Banksy, “cada imagem conta uma mentira”53. FIG 12 -BANKSY. [sem título]. Estêncil e grafite. Fonte: banksy. co.uk 108 Aparência, imagem e posse, reais ou representadas, e então posição e casta, limitantes ou excludentes, sempre integraram a condição humana, até a condição animal, bem como as integraram as faculdades outras. “Se a correção dessa hipótese se tivesse patenteado, eu teria ido embora, para construir em outra parte, uma vez que nunca fui dado à conquista nem afeito ao ataque. Sem dúvida, porém, eu era moço e ainda não tinha uma construção”54, desveste-se o rato. Mas nunca pareceram haver descontrolado em autoridade de aparência ilimitada como na contemporaneidade, impregnadas e interferentes a todo o tecido social – e desde o fim do milênio sinalizando uma extenuação, advertindo um esgotamento e pondo em cheque a sobrevivência estrutural da(s) espécie(s). Até mesmo a sobrevivência do planeta. Apresenta-se aí o limite. A insídia de avaliar (e julgar) o ser pelo ter sentenciada por Marx – ou pelo parecer ter, parafraseada por Debord – não 51. DEBORD, 1997, p. 32. 52. DEBORD, 1997, p. 14. 53. BANKSY, 2002, p. 36, tradução nossa. 54. KAFKA, 1998, p. 58. é algo assim tão novo nas relações humanas e em suas condutas. Tais códigos estão imemoriais de todos os dispositivos sociais, em maior ou menor grau – provavelmente estão a propósito da conjugação do verbo agrupar, humana sobremaneira, pois da rataria tanto grupo quanto dispositivos sociais prestam-se aqui à parábola, ou à hipérbole, ou ainda à metonímia. Nova é a independência das imagens. A independência dos objetos. A reificação. Novo é o Graal da celebridade: imagem súpera. Ainda mais nova é a histeria de substituição frequente dos bens muito antes de sua real obsolescência, “o tempo de permanência dos objetos de consumo nas prateleiras tem obviamente encurtado de uma maneira muito radical”;55 o tempo de consumo dos objetos também. Novíssimas, pois, são as consequências: “nós não precisamos mais de heróis, nós só precisamos de alguém para dar cabo do lixo reciclável”56. 5. HÚMUS Partilhas responsivas, responsabilidades partilhadas, agora se acautela “uma preferência bem nítida pela história que chora [na qual] o anúncio do ‘rumo ao pior’ jamais pode ser feito sem prazer”57, quiçá se avança “por meio da alegria que se desenvolverá o Individualismo do futuro”58. Agora a representatividade dos ratos bifurca-se de maneira plana, pouco interdita como é de se 55. HUYSSEN, 2000, p. 28. 56. BANKSY, 2005, p. 174, tradução nossa 57. DEBRAY, Régis. Vida e morte da imagem: uma história do olhar no ocidente. Petrópolis: Vozes, 1993, p. 159. 58. WILDE, 2003, p. 78. FIG 13 – BANKSY. [sem título]. Estêncil. Fonte: i.thisislondon.co.uk LINDONÉIA #02 FIG 14 – BBANKSY. [sem título]. 2008. Estêncil e grafite. Fonte: banksy.co.uk esperar das ruas, exorcizando papéis sociais na contemporaneidade: em viagem a Nova Iorque (tida capital ocidental, cultural e econômica, megacidade que Banksy regularmente visita de obras os muros), à ocasião das falências bancárias e da grande contração de índices da Bolsa de Valores norte-americana (2007-2009), uma nova série de ratos, agora agigantados e habilmente executados em sua enormidade, em painéis que chegam a completar a fachada lateral de um edifício, senão sobrepor-se aos costumeiros outdoors, críticos e (in)posicionais. Nesse primeiro suporte, o de maior repercussão: um rato de indumentária empresarial (punho branco e colarinho branco engravatado, crachá, guarda-chuva e maleta desprendendo, em virtude do excesso, cédulas de dinheiro, cuja pata que a segura está respingada de vermelho), sob o mote, também em vermelho, Let them eat crack – entre “Deixeos devorar o craque” e “Que eles engulam a quebra”, num triplo sentido de alusão à hiperatividade suspeita de seus operadores, à quebra da Bolsa e à polêmica (então célebre) frase atribuída à guilhotinada rainha francesa Maria Antonieta, supostamente proferida em 1788 em resposta aos protestos de que o povo não tinha pão para comer: “Se não têm pão, que comam brioches”. Grande parte da execução diretamente em aerossol, à mão livre, aparentemente sem desenho prévio, já seria virtuose nos pequenos formatos, e o é ainda mais nas corajosas escalas destas últimas rat-arts. A desafiadora monumentalidade muralista lhe é frequente e peculiar, mas raramente o fora para os ratos: seus regulares tamanhos naturais dão iconografia à esgueira, à astúcia, ao instinto de sobrevivência. Também ao reclame, ao proclame, ao conclame. Bem como ao âmbito, à insignificância, à minoridade. Primeira leitura de imagens: seu nome cresceu, seus ratinhos cresceram. Seu nome incluiu-se, seus ratinhos também. Segunda: superação imaginária da facticidade majoritariamente insuperável. Ou: nivelamento. 109 www.estrategiasdaarte.net.br Você pode até vencer a corrida de ratos, mas você continua sendo um. A corrida humana é uma competição injusta e estúpida. Muitos dos corredores não têm nem mesmo tênis decentes e água limpa para beber. Alguns corredores nasceram com ampla vantagem na largada, e ainda com possíveis ajudas mais à frente no caminho, e mesmo assim os juízes parecem estar do lado deles. Não é surpresa que muitos competidores desistam por completo, para sentar na arquibancada, comer porcarias e gritar ofensas. O que nós precisamos nesse páreo é de muito mais raias. 59 Talvez, para lá de mais paridade, menos competição e menos corrida. Ou menos natalidade. Rateio, rateação, rateamento: a divisão igualitária, a parte ou a quantia que cabe a cada um dos apostadores. A expressão ‘corrida de ratos’, coloquial e tradicional no idioma inglês, denomina as sugestivas rodas recreativas para roedores, que se exercitam e se cansam dentro de suas gaiolas, circulando sem sair do lugar. Em seu duplo sentido, fôra imortalizada na composição homônima de Rita Marley, gravada por seu marido Bob Marley em 1976: FIG 15 -BANKSY. [sem título]. 2004. Estêncil e grafite. Fonte: BANKSY, 2004, p. 5. 110 Ah! Muito violenta / [...] Esta é a corrida de ratos / Alguns para o bem, outros bastardos, alguns mascarados / [...] Alguns monstruosos, alguns bandidos, alguns provocadores / [...] Os ratos dançam / A violência política enche a cidade / [...] Corrida de ratos, corrida de ratos, corrida de ratos / Quando pensam que é tudo paz e segurança / Vem uma repentina destruição / Segurança coletiva, que certeza? / [...] Não esqueçam a sua história / Conheçam seu destino / 59. BANKSY, 2005, p. 90, tradução nossa. Quando a água é abundante / O estúpido morre de sede / Corrida de ratos, corrida de ratos, corrida de ratos / Oh, é uma desgraça ver a raça / Humana em uma corrida de ratos, corrida de ratos.60 Todos esses novos ratos – e seus novos agigantamentos – comungaram a personificação de outros perfis econômicos e sociais, seus antagonistas, e essa nova atribuição à rataria infere uma salutar superação, pois compreender-se como rato e empreender como rato também outorga autoridade à autoridade, e imputa a si próprio e, por procuradoria, a seus pares, uma inferioridade constitutiva, um espaço e uma tática periféricos. Uma inferioridade romântica. A revisão dos ratos itera que uma vontade geral e generalista – de um povo – está sendo ultrapassada na contemporaneidade por uma ação coletiva de indivíduos particulares – de uma multidão – ; a pertinente remodelação semântica elaborada pelo filósofo Paolo Virno, atravessada na rat-art – o individualismo como meio de atingir o socialismo, 60. MARLEY, Rita. Rat race. In: MARLEY, Bob. Rastaman vibration. Kingston: Island Records, 1976. FIG 16 – BANKSY. [sem título]. Estêncil e grafite. Fonte: www. banksyunmasked.co.uk LINDONÉIA que hoje bem licencia circunvolver a contingência, contraverter a asserção do escritor e dramaturgo Oscar Wilde: “é, portanto, por meio do Socialismo, que atingiremos o Individualismo”.61 Num aspecto, essa crença na capacidade de transformar pela vontade se apoiava numa crença [...] mais específica no ‘povo’, disposto a ser transformado e portanto a participar, criativamente e com toda a inteligência e engenhosidade [...], a visão essencialmente romântica de um artista. 62 Exatamente nesse ponto da argumentação se observa que “há sempre um instante em tais movimentos em que a tensão original da sociedade secreta precisa explodir numa luta material e profana pelo poder e pela hegemonia, ou fragmentar-se e transformar-se, enquanto manifestação pública”.63 Banksy itera a argumentação, a manifestação e a explosão, entranhando ao calabouço rueiro o afeto grafiteiro à “Quadrilha dos Ratos: como muitas pessoas, eu tenho a fantasia de que todo o pequeno perdedor impotente irá agrupar-se e conspirar. Que todo animal daninho adquirirá algum bom equipamento, e então o subterrâneo tomará o chão e arrasará esta cidade”. 64 Exatamente nesse ponto da argumentação [...] introduz a arte, à qual não atribui tarefa menor que a de tornar a unir as “metades” do homem que foram arrancadas uma da outra. Quer dizer, já dentro da sociedade da divisão do trabalho, a arte deve possibilitar a formação da totalidade das capacidades humanas que o indivíduo, em sua esfera de atividades, se vê impedido de desenvolver. 65 O hegemônico qual o seja está, por filosofia estrutural ou por 61. WILDE, 2003, p. 38. 62. HOBSBAWM, E. J. Era dos extremos: o breve século XX 1914-1991. São Paulo: Companhia das Letras, 1995, p.453-454. 63. BENJAMIN, 1994, p. 22. 64. BANKSY, 2001, p. 21, tradução nossa. O termo original inglês para ‘Quadrilha dos Ratos’ utilizado por Banksy, The Rat Pack, é uma analogia, em troça, ao conhecido grupo de atores dos anos dourados hollywoodianos, The Brat Pack (algo como ‘A Quadrilha Malcriada’ ou ‘A Quadrilha Sem Modos’), dentre os quais contavam-se Dean Martin, Sammy Davis Júnior e, especialmente, Frank Sinatra – atores de suspeitadas relações ou conivências com a Máfia italiana, então enormemente poderosa nos Estados Unidos. 65. BÜRGER, 2008, p. 99. estruturalismo filosófico, alicerçado também no escrúpulo, no receio, na discordância, na contestação – mesmo quando assim não se conceba. Qualquer hegemônico é predisposto ao escrutínio e à altercação, essa predisposição é seu próprio imperativo. Questionáveis são portanto e mais o discurso oligárquico e suas razões, não arriscar-se-ia a também sê-lo o discurso oclocrático, se em seu lugar? “’Utopia’ é um dos ideologemas mais corrompidos, exposto por Orwell e Huxley como compondo uma só coisa com a distopia, isto é, com o totalitarismo”. 66 #02 “Camaradas – disse ele – eis aí um ponto que precisa ser esclarecido. As criaturas selvagens, tais como os ratos e os coelhos, serão nossos amigos ou nossos inimigos? Coloquemos o assunto em votação. Apresento à assembléia a seguinte questão: os ratos são camaradas?”. 67 Orwell arrisca-se acima à justaposição dos ideários, senão indissociação, constatada, senão aceite, também por Benjamin: “Mas conseguem eles fundir essa experiência da liberdade com a outra experiência revolucionária, que somos obrigados a reconhecer, porque ela foi também nossa: a experiência construtiva, ditatorial, da revolução?”.68 À pura e simples substituição das tessituras e dos tecidos, não se pressagia cessão de espaço, no porvir, a outras circunstâncias de embate, de conduta, de postura? E de autoconsideração e desígnio? FIG 17 – BANKSY. [sem título]. Estêncil. Fonte: www.artofthestate. co.uk Entre a benfeitoria da oposição e o risco da aposição, a interrogação 66. FOSTER, 1996a, p. 133. 67. ORWELL, George. A revolução dos bichos. São Paulo: Companhia das Letras, 2007, p. 13. 68. BENJAMIN, 1994, p. 32. 111 www.estrategiasdaarte.net.br que reverte ao direito de ser instruído é: se, por um lado, o libelo é livre por definição, por outro, a quem compete, e a quem não, o direito a instruir? E com que nível de idoneidade, de preparo e de amadurecimento se pode exercer esse jus? Em que termos se mensura e legitima a habilidade, se classificam as aptitudes? Que parâmetros servem de medida para a homologação dessa classificação? Quem homologa? Será mais, às portas de outra era, diante do diante, pensar esses direitos – e deveres – nos termos históricos das bandas, dos grupos, dos coletivos, das comunidades ideológicas, dos partidos? Ou revê-los nas posições, disposições e exposições dos indivíduos? Assim, o Individualismo não exerce nenhuma coação sobre o homem. Diz-lhe, pelo contrário, que não permita que nenhuma coação se exerça sobre ele. [...] A Evolução é a lei da vida, e não há evolução senão rumo ao Individualismo. [...] O Individualismo será natural e altruísta. Afirma-se que uma das conseqüências da descomunal tirania da autoridade é [...] expressar o anverso de sua exata significação. O que é verdadeiro para a Arte, é verdadeiro para a Vida. A Arte é Individualismo, e o Individualismo é uma força inquietante e desagregadora. Nisto reside seu grande valor, pois o que procura subverter é a monotonia do tipo, a escravidão do costumeiro, a tirania do habitual e a redução do homem ao nível da máquina.69 Inquietante e desagregadora, a arte subverte a escravatura da repetição e do costumário, “sem dizer que, muitas vezes, um acaso conduz fácil à pista do distúrbio, ao passo que a busca sistemática pode malograr por longo prazo”,70 secunda o rato, e o acaso é ninhada da arte. (In)definir como ratos os do topo e os da base resenha a fábula A Construção, do escritor Franz Kafka 71 – que costura todo este artigo – na qual o rato narradorprotagonista atua como uno e solitário personagem, à exceção da ameaça etérea de um possível igual – “quero conceder, porém, que aí existe uma falha, como de resto sempre há uma falha onde 112 69. WILDE, 2003, p.50-74. 70. KAFKA, 1998, p. 48-49. 71. KAFKA, 1998, p. 34-60. se possui um único exemplar de alguma coisa”72. Igual ou maior, a um só tempo próximo e distante, que põe a pique suas crenças e sua fortaleza, o castelo subterrâneo continuamente construído, em tédio, privação e racionalização operários. E que nunca se apresenta – “mas tudo continuou inalterado”73 – gerando a tensão exponencial que serve ao incômodo do desconhecido tanto quanto do semelhante. O rato de Kafka indicia a si próprio como rato em imprecisos e raros momentos – “às vezes é como se meu pelo rareasse”74, ou: “mesmo que estejamos completamente saciados, mostraremos, sem sentir, nossas garras e nossos dentes um para o outro” 75 –, mas jamais anuncia a si próprio 72. KAFKA, 1998, p. 38. 73. KAFKA, 1998, p. 60. 74. KAFKA, 1998, p. 40. 75. KAFKA, 1998, p. 59. FIG 18 – BANKSY. [sem título]. 2011. Interferência em estêncil sobre placa viária. Fonte: banksy. co.uk LINDONÉIA como tal. Transita bipolar do sufocamento ao contentamento, trafega de tal modo pela dubiedade que tanto é entendido pela crítica como trabalhador ora cegado por construtos dos quais sequer se dá conta, ora satisfeito pela alienação – “esse consolo também faz parte dos contos de fadas” 76 –, quanto como um burocrata da mais alta patente, dado a limpar vestígios, às voltas com administração, regulamento, planos de defesa e rotas de fuga cada vez mais ensimesmadas, labirínticas em suas próprias fundações, aterrorizado pela iminência do outro resoluto. #02 Inquietante e aquietante, desagregadora e agregadora, a ratada de Banksy subverte a monotonia do tipo: igualar como ratos os do topo e os da base sócio-econômica propõe que a individuação corrente frutifica depor-se como antagonista, para repor-se – a si bem como a todo e qualquer um, na multidão de indivíduos suplantando a massa – como protagonista. A aguardar futuros desdobramentos da rat-art. O desenvolto envoltório Banksy conter um ou conter muitos resume a proposição contemporânea, emblema a contemporaneidade da proposta. Sua unicidade-pluralidade, corporificada de individuação, não se põe solucionada, mas provisória, é portanto perfeita sinopse para o “inventário do ir-remediável”77. A saber. * 76. KAFKA, 1998, p. 53 77. ABREU, Caio Fernando. Inventário do ir-remediável. Porto Alegre: Sulina, 1995. 113 Trabalhar Cansa* Maria Angélica Melendi *Para Cesare Pavese e Richard Serra 114 LINDONÉIA #02 DISCIPLINA O trabalho começa ao romper do dia. Mas nós começamos, um pouco antes do romper do dia, a reconhecer-nos nas pessoas que passam na rua. Ao descobrir os raros transeuntes, cada um sabe que está sozinho e que tem sono — perdido no seu próprio sonho, cada um sabe no entanto que com o dia abrirá os olhos. Quando a manhã chega, encontra-nos estupefactos a fixar o trabalho que agora começa. Mas já não estamos sozinhos e ninguém mais tem sono e pensamos com calma os pensamentos do dia até que o sorriso vem. Com o regresso do sol estamos todos convencidos. Mas às vezes um pensamento menos claro — um esgar — surpreende-nos inesperadamente e voltamos a olhar para tudo como antes do amanhecer. A cidade clara assiste aos trabalhos e aos esgares. Nada pode turvar a manhã. Tudo pode acontecer e basta levantar a cabeça do trabalho e olhar. Rapazes que se escaparam e que ainda não fazem nada passam na rua e alguns até correm. As árvores das avenidas dão muita sombra e só falta a erva entre as casas que assistem imóveis. São tantos os que à beira-rio se despem ao sol. A cidade permite-nos levantar a cabeça para pensar estas coisas, e sabe bem que em seguida a baixamos. Cesare Pavese, em Trabalhar Cansa (Lavorare Stanca) Tradução de Carlos Leite. 115 www.estrategiasdaarte.net.br Constantin Brancusi Em sua oficina, c. 1923-25 116 LINDONÉIA #02 Diego Rivera Em sua oficina, c. 1930 117 www.estrategiasdaarte.net.br David Smith Em sua oficina, c. 1945 118 LINDONÉIA #02 Marcel Duchamp Em sua oficina, c. 1950 119 Andy Warhol Trabalhando em Flowers, 1965 120 LINDONÉIA #02 Richard Serra Trabalhando em Splashing, 1968 121 Ligya Pape Roda dos prazeres, 1968 122 LINDONÉIA #02 Helen Frankenthaler Em sua oficina, 1969 123 www.estrategiasdaarte.net.br 124 Robert Smithson Trabalhando em Glue Pour, 1970 LINDONÉIA #02 Hélio Oiticica Em sua oficina, c. 1970 125 Michael Heizer Trabalhando em Circular Planar Displacement Drawing, to be erased by first rain. c. 1970 126 LINDONÉIA #02 Gordon Matta-Clark Trabalhando em um caminhão grafitado, 1973 127 www.estrategiasdaarte.net.br Mierle Laderman Hartford Wash: washing, 1973 128 LINDONÉIA #02 Anna Maria Maiolino Por um fio, 1976 129 www.estrategiasdaarte.net.br Anna Bella Geiger Brasil nativo/ Brasil alienígena, 1977 130 LINDONÉIA #02 Alfredo Volpi Em sua oficina, 1978 131 Giuseppe Penone Trabalhando em The hidden life within. c. 1980 132 LINDONÉIA #02 Joseph Beuys Trabalhando em 7000 carvalhos, 1981 133 José Leonilson Caderno de Anotações, 1981-83 134 LINDONÉIA #02 Marina Abramovic Balkan Baroque, 1997 135 www.estrategiasdaarte.net.br Lucian Freud Em sua oficina, 2005 136 LINDONÉIA #02 Seth Wulsin Trabalhando em 16 Tons, 2006 137 www.estrategiasdaarte.net.br 138 Richard Serra Verb list, 1967-68 LINDONÉIA #02 TO ROLL - rolar TO CREASE - vincar TO FOLD - dobrar TO STORE - armazenar TO BEND - dobrar TO SHORTEN - encurtar TO TWIST - torcer TO DAPPLE - salpicar TO CRUMPLE - enrugar TO SHAVE - barbear TO TEAR - rasgar TO CHIP - desbastar TO SPLIT - dividir TO CUT - cortar TO SEVER - romper TO DROP - soltar TO REMOVE - remover TO SIMPLIFY - simplificar TO DIFFER - diferir TO DISARRANGE - desarranjar TO OPEN - abrir TO MIX - misturar TO SPLASH - espirrar TO KNOT – laçar TO SPILL - derramar TO DROOP - inclinar TO FLOW - fluir TO CURVE - curvar TO LIFT - levantar TO INLAY - inflar TO IMPRESS - impressionar TO FIRE - incendiar TO FLOOD - inundar TO SMEAR - difamar TO ROTATE - girar TO SWIRL - rodar TO SUPPORT - suportar TO HOOK - conectar TO SUSPEND - suspender TO SPREAD - espalhar TO HANG - pendurar TO COLLECT - coletar OF TENSION – de tensão OF GRAVITY – de gravidade OF ENTROPY – da entropia OF NATURE – da natureza OF GROUPING – de agrupar OF LAYERING – de camadas OF FELTING - feltragem TO GRASP - compreender TO TIGHTEN - apertar TO BUNDLE - agrupar TO HEAP - amontoar TO GATHER - reunir TO SCATTER - espalhar TO ARRANGE - organizar TO REPAIR - reparar TO DISCARD - descartar TO PAIR - emparelhar TO DISTRIBUTE - distribuir TO SURFEIT - fartar TO COMPLIMENT - elogiar TO ENCLOSE - delimitar TO SURROUND - cercar TO ENCIRCLE - circundar TO HOLE - furar TO COVER - cobrir TO WRAP - embrulhar TO DIG - cavar TO TIE - atar TO BIND - amarrar TO WEAVE - tecer TO JOIN - unir TO MATCH - combinar TO LAMINATE - laminar TO BOND - vincular TO HINGE - depender TO MARK - marcar TO EXPAND - expandir TO DILUTE - diluir TO LIGHT - iluminar TO MODULATE - modular TO DISTILL - destilar OF WAVES – por ondas OF ELECTROMAGNETIC – de eletromagnética OF INERTIA – da inércia OF IONIZATION – por ionização OF POLARIZATION – da polarização OF REFRACTION – por refração OF TIDES – das marés OF REFLECTION – por reflexão OF EQUILIBRIUM – de equilíbrio OF SYMMETRY – da simetria OF FRICTION – da fricção TO STRETCH – esticar TO BOUNCE - saltar TO ERASE - apagar TO SPRAY - pulverizar TO SYSTEMATIZE - sistematizar TO REFER - referir TO FORCE – forçar OF MAPPING – de mapeamento OF LOCATION – de localização OF CONTEXT – do contexto OF TIME – do tempo OF CARBONIZATION – da carbonização TO CONTINUE - continuar 139 www.estrategiasdaarte.net.br 140 *