anais dos grupos de trabalho
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anais dos grupos de trabalho
Ricardo Marcelo Fonseca Luis Fernando Lopes Pereira Ivan Furmann Organizadores ANAIS DOS GRUPOS DE TRABALHO DO V CONGRESSO BRASILEIRO DE HISTÓRIA DO DIREITO Curitiba 2013 Créditos dos Anais. Organização e recebimento dos textos: Ricardo Marcelo Fonseca e Luís Fernando Lopes Pereira Formatação, Layout e Editoração gráfica: Ivan Furmann Crédito da Capa: Afresco de Ambrogio Lorenzetti (c. 1290 - c. 1348). Alegoria do Bom Governo (c. 1337-1340). Afresco, 296 x 1398 cm. Siena, Palazzo Pubblico, Sala dei Nove. Arte da Capa: Carina Furmann V CONGRESSO BRASILEIRO DE HISTÓRIA DO DIREITO As Formas do Direito Ordem, Razão, Decisão Experiências jurídicas antes e depois da modernidade Com a concessão do título de Doutor “Honoris Causa” da Universidade Federal do Paraná ao Professor Paolo Grossi Realizado entre os dias 29/08/2011 e 02/09/2011 Auditório da Reitoria da UFPR Curitiba – Paraná – Brasil DIRETORIA DO IBHD (2009-2011) COMISSÃO ORGANIZADORA DO EVENTO Diretor Presidente Ricardo Marcelo Fonseca Presidência do IBHD e da Comissão Organizadora Ricardo Marcelo Fonseca (UFPR) Diretor Vice-Presidente de Assuntos Institucionais Antonio Carlos Wolkmer Diretor Vice-Presidente de Assuntos acadêmicos Arno Dal Ri Junior Secretário Geral Andrei Koerner Tesoureiro Luis Fernando Lopes Pereira Conselho fiscal Martonio Montalverne Barreto Lima Airton Cerqueira Leite Seelaender. DIRETORIA DO IBHD (2011-2013) Diretor Presidente Ricardo Marcelo Fonseca Diretor Vice-Presidente de Assuntos Institucionais Arno Wheling Diretor Vice-Presidente de Assuntos Acadêmicos Samuel Rodrigues Barbosa Secretário Geral Airton Cerqueira Leite Seeaender Tesoureiro Christian Lynch Conselho fiscal Luis Fernando Lopes Pereira Cristiano Paixão. Comissão Científica Airton L. Cerqueira Leite Seelaender (UFSC) André Peixoto de Souza (UFPR) Andrei Koerner (UNICAMP) Antonio Carlos Wolkmer (UFSC) Arno Dal Ri Júnior (UFSC) Giberto Bercovici (USP) Luis Fernando Lopes Pereira (UFPR) Samuel Rodrigues Barbosa (USP) Sergio Said Staut Junior (UFPR) Walter Guandalini Junior (UFPR) Comissão executiva Anderson Paz Andressa Regina Bissolotti dos Santos Breezy Miyazato Vizeu Danielle Wobeto Araújo Douglas da Veiga Nascimento Guilherme Amintas Ivan Furmann João Paulo Arrosi Juliano Rodriguez Torres Liliam Ferrarese Bighente Luize Navarro Mauricio Galeb Oriana Balestra Ozias Paese Neves Michael Dionisio de Souza Paulo Drummond Priscila Soares Crocetti Raphael Moraes Rebeca Fernandes Dias Sonia Martins de Oliveira Vanessa Massuchetto Thais Pinhata de Souza Thayse Fedalto Thiago Hoshino SUMÁRIO Grupo de Trabalho: Teoria e Metodologia da História do Direito ........................................... 10 Grupo de Trabalho: Filosofia da História do Direito ............................................................. 140 Grupo de Trabalho: Ensino e Cultura Jurídica ....................................................................... 245 Grupo de Trabalho: Justiça, Administração e Governo ......................................................... 394 Grupo de Trabalho: Direito e Práticas Punitivas .................................................................... 613 Grupo de Trabalho: Direito e Trabalho .................................................................................. 726 Grupo de Trabalho: Iniciação Científica ................................................................................ 776 Apresentação Esta publicação é fruto da apresentação de trabalhos ao V Congresso Brasileiro de História do Direito, ocorrido em Curitiba entre 29 de agosto e 30 de setembro de 2011, na Universidade Federal do Paraná, promovido pelo Instituto Brasileiro do História do Direito (IBHD), ocasião em que o professor Paolo Grossi recebeu o título de doutor honoris causa da instituição. Novamente contando com a presença de pesquisadores europeus e nacionais de alto nível, pertencentes a instituições prestigiadas e tradicionais nas áreas de Teoria e História do Direito, o evento refletiu a intensificação dos diálogos e o crescimento significativo que a área tem tido junto aos pesquisadores brasileiros. Há que se destacar como fator determinante para tal, as ações da Instituição promotora. Não somente o Congresso, mas também da publicação de seus anais. O núcleo de historiadores do Direito formado ao redor do IBHD tem se caracterizado como a base de sustentação de uma proliferação de pesquisas dos mais diversos matizes teóricos e com as mais variadas contribuições para a área histórico jurídica. Isso fica perceptível aqui nessa coletânea de ensaios. Neles encontramos uma linha dada pelos pesquisadores do IBHD que são bastante referenciados pelos autores dos textos que seguem, fundamentando suas pesquisas em diálogo com um acúmulo construído por professores como Ricardo Marcelo Fonseca, Antônio Carlos Wolkmer, Airton Cerqueira Leite Seelaender, Cristian Lynch, Arno Wehling, Samuel Rodrigues Barbosa e Gilberto Bercovici, para ficar nos exemplos mais evidentes. Ainda, os textos apontam para um uso bastante significativo dos autores que tem dialogado não apenas nos Congressos do IBHD, mas em várias outras iniciativas criadas pela área, no Brasil, na Alemanha, Espanha, Portugal e Itália. Entre os autores mais citados estão Paolo Grossi, António Hespanha, Pietro Costa, Massimo Meccarelli e Carlos Petit, além de clássicos como Mario Sbricoli, Franz Wieacker, John Glissen e Reinhart Koselleck. Percebemos nesse diálogo a maior solidez metodologica verificada nos trabalhos aqui apresentados, que tem tido maior clareza em perceber os caminhos a serem trilhados na construção de uma relativa autonomia para a área de pesquisa histórico jurídica. Isso exige a melhor definição das particularidades da disciplina em relação a história geral, grande contribuição de todos os autores acima citados e que são utilizados pelos pesquisadores aqui apresentados como referência precisamente para tais procedimentos. Assim, percebe-se a contribuição particular de um campo de pesquisa, que ao calibrar o enfoque de forma mais precisa consegue desvelar faces ignoradas por outras perspectivas historiográficas que não focam no fenômeno jurídico. A percepção, recepcionada pela história grossiana prioritariamente, de uma dimensão específica do jurídico e sua busca ficam evidentes nos trabalhos aqui apresentados, mesmo os que não fezem explícita referência a tal questão. Com isso a história do Direito não pretende se arvorar como a detentora de uma verdade histórica diversa daquela da história geral e combater aquela visão. Trata-se, ao contrario, de tornar a pesquisa histórica mais complexa porque atenta a um fenômeno que tem sido negligenciado, mas que tem se demonstrado (nas pesquisas aqui apresentadas, por exemplo) como elemento estruturante da sociedade. Inserir o jurídico é complexificar o olhar historiográfico e revelar seus ângulos desprivilegiados. A maturidade acadêmica revelada nos trabalhos que se seguem demonstram uma maior segurança da área das pesquisas e maior ousadia na ampliação de fontes e na pluralidade de enfoques e temas. Podemos ter um bom quadro desse debate a partir da leitura dos trabalhos aqui apresentados, divididos em seis grupos (Teoria e Metodologia da História do Direito; Filosofia da História do Direito; Ensino e Cultura Jurídica, Justiça, Administração e Governo; Direito e Práticas Punitivas e Direito e Trabalho) e um esecífico para a Iniciação Científica que demonstra a inserção da área já entre os alunos pesquisadores de graduação. Mas, de outro lado, não se faz aqui a velha história do Direito, talvez excessivamente autônoma e mesmo pouco historicizada, meramente laudatória a juristas e ao meio social dos operadores do Direito. Os trabalhos aqui revelam também a utilização de instrumentais historiográficos de forma adequada, visando garantir de certa forma, uma coerência científica para as pesquisas, que fazem uso requintado e profundo de instrumentais e ferramentas ofertadas pelo diálogo com clássicos da historiografia como Marc Bloch, Le Roy Ladurie, Jacques Le Goff, Fernand Braudel (todos da historiografia francesa dos Annales, predominante nos referenciais). Embora tenham desprestigiado o Direito, metodologicamente são os mais utilizados, em particular na busca daquilo que se consolida como jurídico na longa duração e em seu teor crítico em relação ao positivismo histórico. Há que se destacar também o uso de autores ingleses como Perry Anderson, Edward Thompson e Eric Hobsbawm. Embora de raiz marxista, os autores relativizam o determinismo econômico e defendem a autonomia relativa da superestrutura, sendo adequados ao uso em um estudo que centra em um objeto pertencente a superestrutura, como o Direito. Mas o uso desses autores também se intensificou pelo debate cultural, o que remete a outros clássicos citados como Carlo Ginzburg, Roger Chartier, Michel de Certeau, Michel Foucault, Robert Darnton, Walter Benjamin, Pierre Bourdieu e Mikhail Bakhtin. O diálogo entre esses autores e os historiadores do direito acima citados permitiu a apresentação de temas complexos e variados que englobam debates dos mais atuais no campo da historiografia, como a questão do estatuto da verdade histórica, o papel da narrativa, a crítica ao testemunho, a questão da experiência jurídica, o conceito de cultura jurídica e suas utilizações, a história das representações, o pensamento jurídico, o moderno e a modernidade, a relação entre o juiz e o historiador, a relação entre história do direito e história da cidade, etc. Merece destaque também o uso feito nos trabalhos apresentados de farta bibliografia nacional, de clássicos antigos e novos da historiografia brasileira ou de brasilianistas, como Emilia Viotti da Costa, José Murilo de Carvalho, Ronaldo Vainfas, Nelson Werneck Sodré, Thomas Skidmore, Nicolau Sevcenko, Lilia Moritz Schwarcz, Boris Fausto, Sérgio Buarque de Holanda, Roberto Damatta, Charles Boxer e Lenine Nequete. A partir deles, temas da história jurídica nacional foram problematizados, seja para a desconstrução das visões tradicionais e meramente elogiosas, como nas análises sobre Sílvio Romero, Tobias Barreto e Campos Sales, ou temas mais gerais como a problematização acerca do papel dos intelectuais e jusristas na construção da cultura jurídica brasileira do século XIX, a relação entre Estado e História, o bacharelismo e as representações políticas. Ou recortes mais específicos de análises que problematizam o discurso fundador do direito civil, as deposições de governadores na República Velha, os debates acerca do Código Civil de 1916, a Doutrina de Segurança Nacional, o Estado de Exceção de 1964, a relação entre Ditadura e Ensino e entre juristas e ditadura, além da questão da ordem na Primeira República, a relação entre juristas e medicos na criminologia do início do século XX, a Almotaçaria, a reforma judiciária de 1841, o direito lusitano e brasileiro no início do XIX, além do Iluminismo penal. De outra lado, seguindo a tentativa de resgate de excluídos da história e de uma história do direito vista de baixo, a recuperação do tratamento jurídico dado aos escravos nas Ordenações, a educação das mulheres no Império, a cultura jurídica abolicionista, a política indigenista da Coroa Portuguesa, os direitos territoriais indígenas de João Mendes Junior, a justiça do Trabalho, a gênese do direito administrativo brasileiro, o etc. É perceptível também nos trabalhos a ampliação das fontes históricas utilizadas. De um lado, o uso de fontes doutrinárias tradicionais para, em uma leitura a contrapêlo, a desconstrução dos mitos erguidos pela historiografia celebratória; de outro, a busca de novas fontes que revelem facetas menos evidentes da cultura jurídica, como os processos judiciais, as revistas jurídicas e mesmo uma história do livro jurídico e sua difusão e uso no século XIX. Temas que resvalam de uma mameira ou de outra no eixo central do Congresso: Experiências jurídicas antes e depois da modernidade. Prof. Dr. Luís Fernando Lopes Pereira Grupo de Trabalho: Teoria e Metodologia da História do Direito ANAIS DO V CONGRESSO BRASILEIRO DE HISTÓRIA DO DIREITO 11 CINCO PONTOS PARA UMA HISTÓRIA CRÍTICA DO DIREITO A PARTIR DA OBRA DE E. P. THOMPSON FIVE POINTS FOR A CRITICAL HISTORY OF LAW FROM THE WORK OF E. P. THOMPSON Adailton Pires Costa* Resumo: A partir do pensamento do historiador E. P. Thompson, em especial de sua lógica histórica proposta no livro Miséria da Teoria, pretende-se analisar cinco pontos que contribuem para a realização de uma História crítica do Direito. O objetivo é demonstrar como a prática da História do Direito está acompanhada de pressupostos teóricos, filosóficos e metodológicos que explicitam se a pesquisa histórica é oficial e tradicional ou é uma pesquisa crítica. Busca-se, a partir desses cinco pontos, denunciar os limites de uma história do Direito oficial e hegemônica na cultura jurídica e, por outro lado, anunciar a possibilidade de uma outra história vista a partir de baixo, a contrapelo, crítica. Palavras-chave: Lógica histórica, E.P. Thompson, História Crítica do Direito, História do Direito oficial. * Graduado em Direito pela UFSC. Mestrando do Programa de Pós-Graduação em Direito da Universidade Federal de Santa Catarina, Área de Concentração em Teoria, Filosofia e História do Direito, e bolsista do CNPQ. Endereço eletrônico: [email protected]. 12 CINCO PONTOS PARA UMA HISTÓRIA CRÍTICA DO DIREITO A PARTIR DA OBRA DE E. P. THOMPSON Introdução Raramente a distância entre reflexão metodológica e prática historiográfica efetiva foi tão grande nos últimos decênios. (Carlo Ginsburg, 2002) A herança bacharelesca no Brasil insiste em requisitar a presença em cada monografia, dissertação e tese de Direito, como ornamento retórico, do famigerado “Breve escorço histórico”. Sabido é que esse fato apenas legitima uma História oficial, tradicional e acrítica e que, às vezes, por mais crítico que possa ser o trabalho, a História oficialesca está ali, na introdução da pesquisa, como eterno resgate às origens da fundação de Roma. Não obstante essa realidade, existem esforços de combate a esse discurso tradicional da História. Para contribuir nesses combates em defesa de uma História do Direito com um viés crítico, utilizar-se-á a obra de Edward Palmer Thompson, em especial o livro “A Miséria da Teoria”. Particularmente no capítulo VII, Thompson apresenta uma análise a partir do materialismo histórico sobre Teoria da História, apontando 8 proposições para o que ele denomina de lógica histórica. Entretanto, deve-se ressaltar que Thompson nunca foi um autor de consensos teóricos, pois ele sempre foi um a(u)tor da prática, seja da prática histórica ou da política.1 Em sua vida inteira, evitou ao máximo fazer teorizações e esteve sempre em confronto com o academicismo abstrato, com a ortodoxia marxista filosófica e com as teorias da História oficialesca. Por isso, falar em teoria da História em Thompson é falar não em um conjunto de dogmas ahistóricos, mas em métodos próprios da disciplina História que permitam realizar a pesquisa historiográfica efetiva. Logo, para esse historiador, Teoria da História sem prática histórica é um engodo. Contudo, isso não significa que seja um adepto de um empirismo sem mais. Pelo contrário, ele reconhece as contribuições da teoria, principalmente a marxista – faz exatamente uma defesa do materialismo histórico2 - e exatamente por isso se propõe, num debate dentro da tradição marxista, expor um conjunto de proposições teóricas de utilidade para a reflexão crítica e prática de todo historiador. É a partir das proposições da lógica histórica apresentada por Thompson que se pretende desenvolver cinco pontos necessários para a realização de uma História crítica do Direito que permita, por um lado, criticar e denunciar os pressupostos da história oficial e tradicional do Direito e, de outro lado, desenvolver outros pressupostos teóricos e metodológicos para a realização de uma história vista a partir de baixo, a contrapelo, crítica. 1 A História como tribunal da verdade histórica: em defesa da verdade na História e da especificidade da lógica histórica Agora, pois, vemos apenas um reflexo obscuro, como em espelho [...] Agora conheço em parte [...]. (I Coríntios 13:12) A partir da obra de E. P. Thompson, o primeiro ponto para se caracterizar uma “História Crítica do Direito” refere-se aos pressupostos do conhecimento histórico, ou seja, sobre o posicionamento em relação à verdade na História e à especificidade do método histórico, que Thompson define como “Lógica Histórica”. Para os cultores da história oficial, a verdade é tudo ou nada: “tudo” diz a história positivista, que ainda é a predominante na prática da academia, com a crença de um acesso 1 Thompson destaca que a lógica histórica é uma disciplina central para a prática do historiador e reconhece que a variedade de entendimento sobre essa temática é tão grande que fica difícil “apresentar qualquer coerência disciplinar” (THOMPSON, 1981, p. 47-48). 2 Para Thompson, o que diferencia o materialismo histórico de outros métodos é a característica específica de seus conceitos e hipóteses (e procedimentos) articulados em torno de uma totalidade conceitual. (THOMPSON, 1981, p. 54 e 61) ANAIS DO V CONGRESSO BRASILEIRO DE HISTÓRIA DO DIREITO 13 neutro, avalorativo, completo e objetivo ao conhecimento; “nada”, falam os historiadores pósmodernos (herdeiros de um historicismo cético), que, num relativismo extremo, tornam narrativa fictícia toda história, negando qualquer verdade histórica. De um lado, os positivistas identificam conhecimento histórico com conhecimento científico, submetendo esses ao crivo da lógica empírica da ciência natural para verificar toda a verdade dos fatos históricos; por outro lado, os pós-modernos, combinando as “lógicas” da filosofia e da literatura, sepultaram, por meio de teorias, a verdade histórica, na acusação de que a verdade em si mesma não existe, é uma ficção “histórica”. Distante desses absolutos de ambas as correntes da história oficial, Thompson destacará que a mediação da práxis histórica só permite acessos provisórios (parciais) a um passado que existiu e que é verdadeiro e, por isso, tem um status ontológico da verdade. Para o historiador, os processos acabados da mudança histórica, com sua complicada causação, realmente ocorreram, e a historiografia pode falsificar ou não entender, mas não pode modificar, em nenhum grau, o status ontológico do passado. O objetivo da disciplina histórica é a consecução dessa verdade da história. (THOMPSON, 1981, p. 51). Afirma ainda que o historiador está autorizado em sua prática a fazer, uma suposição provisória de caráter epistemológico: a de que a evidência que está utilizando tem uma existência ‘real’ (determinante), independente de sua existência nas formas de pensamento, que essa evidência é testemunha de um processo histórico real, e que esse processo (ou alguma compreensão aproximada dele) é o objeto do conhecimento histórico. Sem tal suposição, o historiador não pode agir: deve sentar-se numa sala de espera à porta do departamento de filosofia por toda a sua vida. (THOMPSON, 1981, p. 37- 38) No livro “Miséria da Teoria”, Thompson apresenta 8 proposições que compõem a Lógica Histórica, sendo que na quinta proposição o historiador marxista inglês assevera: “[...] o objeto do conhecimento histórico é a história ‘real’” (THOMPSON, 1981, p. 50),3 que é depurada não por métodos filosóficos ou científicos, mas por um método próprio da História, denominado de Lógica Histórica4. Na primeira proposição, ainda ratifica que “o objeto imediato do conhecimento histórico [...] compreende ‘fatos’ ou evidências certamente dotados de existência real, mas só se tornam cognoscíveis segundo maneiras [procedimentos] que são e devem ser a preocupação dos vigilantes métodos históricos.” (THOMPSON, 1981, p. 49) Ou seja, as evidências só se tornam cognoscíveis pelos métodos históricos. Ademais, afirma Thompson que a relação de conhecimento entre o real e o real” pode ainda perfeitamente ser uma relação real e determinante, isto é, uma relação da apropriação ativa por uma parte (pensamento) da outra parte (atributos seletivos do real) e essa relação pode ocorrer não em quaisquer termos que o pensamento prescreva, mas de maneiras que são determinadas pelas propriedades do objeto real: as propriedades da realidade determinam tanto os procedimentos adequados de pensamento (isto é, sua 3 Thompson elogia Marc Bloch (“formidável praticante do materialismo histórico”), pois, com robusta confiança, o historiador francês afirmou o caráter objetivo de seu material: “O passado é, por definição, um dado que nada no futuro modificará”. (THOMPSON, 1981, p. 28-29). Ao escrever essa passagem, M. Bloch continua com a seguinte afirmação “Mas o conhecimento do passado é uma coisa em progresso, que incessantemente se transforma e aperfeiçoa”. (BLOCH, 2001, p. 75). De outro marco, Carlos Ginsburg, numa crítica aberta ao relativismo céptico dos pós-modernos, afirma que “As fontes não são nem janelas escancaradas, como acreditam os positivistas, nem muros que obstruem a visão como pensam os cépticos: no máximo poderíamos compará-las a espelhos deformantes. A análise da distorção específica de qualquer fonte implica já um elemento construtivo. Mas a construção [...] não é incompatível com a prova” (GINSBURG, 2002, p. 44-45). 4 Sobre a caracterização da História como uma ciência, Thompson entende “que a tentativa de designar a história como ‘ciência’ sempre foi inútil e motivo de confusão.” (THOMPSON, 1981, p. 50) 14 CINCO PONTOS PARA UMA HISTÓRIA CRÍTICA DO DIREITO A PARTIR DA OBRA DE E. P. THOMPSON ‘adequação’ ou ‘inadequação’) quanto seu produto. Nisto consiste o diálogo entre a consciência e o ser. (THOMPSON, 1981, p. 26) Por conseguinte, verifica-se, então, que o objeto da História impõe as suas propriedades e a sua lógica ao historiador, enquanto que o historiador impõe suas “ferramentas mentais”, suas habilidades e sua concepção, modelo, teoria. Portanto, consoante o autor, a lógica da História é de um tipo diferente, distinta de todas as outras. Ela não se enquadra nos critérios de verificação experimental da lógica da física, nem nos critérios da lógica analítica da filosofia. A diferença é que na História se analisam fenômenos reais humanos5 que estão sempre em movimento, com manifestações contraditórias, “cujas evidências particulares só podem encontrar definição dentro de contextos particulares”. (THOMPSON, 1981, p. 48) Assim, compreendemos que, em Thompson, o material por excelência do historiador é a evidência (não é um fato isolado) de comportamento (regularidade particular) acontecendo (processual–não estático) no tempo. Em resumo, o historiador marxista define a lógica histórica como “um método lógico de investigação adequado a materiais históricos, destinado, na medida do possível, a testar hipóteses quanto à estrutura, causação, etc., e a eliminar procedimento autoconfirmadores (‘instâncias’, ‘ilustrações’)”. (THOMPSON, 1981, p. 49). Na oitava proposição da lógica histórica, Thompson conclui que “A história em si é o único laboratório possível de experimentação e nosso único equipamento experimental é a lógica histórica.” (THOMPSON, 1981, p. 58) As conseqüências práticas dessa conclusão é que o historiador deve verificar empiricamente (perante as evidências), na prática histórica, se o seu modelo analítico é sustentável. No referir do autor, Na medida em que uma noção é endossada pelas evidências, temos então todo o direito de dizer que ela existe ‘lá fora’, na história real. [...]. O que estamos dizendo é que a noção (conceito, hipótese relativa a causação) foi posta em diálogo disciplinado com as evidências, e mostrou-se operacional; isto é, não foi desconfirmada por evidências contrárias, e que organiza com êxito ou ‘explica’ evidências até então inexplicáveis. Por isto, é uma representação adequada (embora aproximativa) da sequência causal, ou da racionalidade, desses acontecimentos, e conforma-se, (dentro da lógica da disciplina histórica) a um processo que de fato ocorreu no passado. Por isso, essa noção existe simultaneamente como um conhecimento ‘verdadeiro’, tanto como uma representação adequada de uma propriedade real desses acontecimentos. (THOMPSON, 1981, p. 54) Percebe-se, então, que esse processo de experimentação no laboratório da História exige uma autocrítica permanente, chamado de “Tribunal de recurso disciplinar”. Para Thompson, o “tribunal de recursos final da disciplina” não é uma teoria pré-dada que determina o que é ou não é verdade histórica, mas é, na verdade, a evidência sob uma forma probatória. Cabe salientar que também não é a evidência em si mesma, mas sim a lógica histórica, ou seja, é a evidência interrogada pelos métodos dessa lógica. (THOMPSON, 1981, p. 49). Além da forma probatória de verificação das evidências6, o Recurso disciplinar ainda pode tomar uma forma teórica “referente à coerência, adequação e consistência dos conceitos, e a sua congruência com o conhecimento de disciplinas adjacentes” (THOMPSON, 1981, p. 55). Contudo, “ambas as formas de recurso, porém, só podem ser encaminhadas dentro do vocabulário da lógica histórica” (THOMPSON, 1981, p. 55). 5 Thompson vai afirmar que “o diálogo entre a consciência e o ser torna-se cada vez mais complexo [...] quando uma consciência crítica está atuando sobre uma matéria prima feita de seu próprio material: artefatos intelectuais, relações sociais, o fato histórico” (THOMPSON, 1981, p. 27). 6 Para Thompson, “o falso conhecimento histórico está, em geral, sujeito à desconfirmação.” (THOMPSON, 1981, p. 50) ANAIS DO V CONGRESSO BRASILEIRO DE HISTÓRIA DO DIREITO 15 Vê-se, então, que Thompson se utiliza de uma linguagem figurada para explicar que as novas pesquisas historiográficas (os recursos) se tornam um resgate aproximado da verdade histórica, na prática empírica da disciplina historiográfica (experimentos no laboratório da História), por meio de métodos de pesquisas próprios (lógica histórica). E nesse “laboratório” é possível uma multiplicidade mesma dos “experimentos” e uma congruência mútua; contudo, por ser histórico, possui uma parte negativa: um elemento contingente negligenciado pode alterar completamente os resultados (THOMPSON, 1981, p. 59). Aplicado ao Direito, a lógica histórica de Thompson afronta tanto a versão positivista da historiografia jurídica que pretende revelar cristalinamente, como “fatos sobre a mesa” (THOMPSON, 1981, p. 49), o que foi o Direito no passado, quanto a versão pós-moderna que torna ficção e ilusão toda tentativa de aproximação da verdade histórica. Portanto, a História Crítica do Direito deve realizar uma história que, ao explicitar e problematizar seus pressupostos teóricos e seus procedimentos metodológicos, se posicione em defesa da verdade histórica. Da mesma forma, a prática da historiografia crítica no Direito deve apontar a especificidade empírica da lógica histórica, desmitificando a completude do discurso oficial no Direito que tenta impingir o caráter definitivo do passado histórico nas evidências – transitórias e incompletas - do conhecimento desse mesmo passado. 2 Explicitação do método (lógica histórica) e superação da divisão entre relações sociais e normas jurídicas (O que é o Direito?) Uma prática freqüente na história oficial do Direito é a ocultação do método de pesquisa utilizado que oculta e nega seus valores e pontos de vista, impróprios, porém inevitáveis, que permeiam toda pesquisa. Não raro, o historiador até faz um discurso crítico na sua escrita da história, entretanto, na sua pesquisa empírica o verdadeiro método é oculto e a história apresentada é, na verdade, a visão oficial do Direito na História. Contra essa versão oficial, a história crítica deve, então, não somente aplicar a lógica histórica, mas também explicitá-la. Sobre essa exigência, Thompson faz a seguinte ressalva: As operações efetivas dessa lógica não são visíveis, passo a passo, em cada página do historiador. Se o fossem, os livros de história esgotariam qualquer paciência. Mas essa lógica deveria estar implícita em cada confronto empírico, e explícita na maneira pela qual o historiador se posiciona ante as evidências e nas perguntas propostas. (THOMPSON, 1981, p 61-62). Portanto, segundo o autor, explicitar o método histórico é explicitar a relação do historiador com as evidências e com as perguntas propostas. Na sua sexta proposição da lógica histórica, Thompson entende a investigação da História como processo, como ‘desordem racional’, que acarreta “noções de causação, de contradição, de mediação e de organização (por vezes estruturação) sistemática da vida social, política, econômica e intelectual” (THOMPSON, 1981, p. 53). Nota-se, então, que, embora exista diferença entre o método de análise e o método de exposição, o pesquisador deve expor as mediações, causações, organizações e contradições presentes no diálogo entre as perguntas propostas e as evidências existentes durante a prática histórica. Segundo o historiador inglês, a lógica histórica é composta de evidências de causas necessárias, mas nunca suficientes, pois está sempre suscetível às contingências do processo social e econômico (THOMPSON, 1981, p. 48). A História não é governada por regras, não trata de absolutos e não pode apresentar causas suficientes. (THOMPSON, 1981, p. 60-61). Assim, essa constante provisoriedade do conhecimento histórico, conformada pelos processos sociais e econômicos, tem que ser explicitada como uma das características do método histórico. 16 CINCO PONTOS PARA UMA HISTÓRIA CRÍTICA DO DIREITO A PARTIR DA OBRA DE E. P. THOMPSON Diante desse entendimento, por óbvio que o historiador do Direito também não pode omitir o contexto social e econômico que permeia as evidências jurídicas. A historiografia deve ir para além da simples norma, superar a divisão positivista entre relações sociais e normas jurídicas, demonstrando o Direito como expressão de fontes de juridicidade não desvinculados das outras esferas do social como a política, a economia, a cultura, as classes sociais etc.7 A história do Direito não pode ser realizada nos limites das fontes oficiais do Direito. Para explicar a “sequência particular de causação” (THOMPSON, 1981, p. 57) que forma e define o fenômeno histórico, a história do Direito não pode limitar a pesquisa nas “fontes históricas” apenas aquelas “fontes oficiais do Direito” - lei, doutrina, jurisprudência pela qual a cultura jurídica oficial diz que provém o Direito. À contrapelo dessa versão tradicional das “fontes do direito”, deve-se resgatar as experiências não-oficiais de expressão de juridicidade.8 Na análise das fontes da história e, principalmente, das fontes do direito, é preciso verificar o “diálogo” necessário, presente na lógica histórica de E. P. Thompson, entre o ser social e a consciência social, representado na experiência humana. Para o historiador, a experiência de classe é “determinada em grande medida pelas relações de produção” (THOMPSON, 1987, p. 10), enquanto que a consciência de classe (que é um subtipo de experiência) é a “forma como essas experiências são tratadas em termos culturais: encarnadas em tradições, sistemas de valores, idéias e formas institucionais. Se a experiência aparece como determinada, o mesmo não ocorre com a consciência de classe” (THOMPSON, 1987, p. 10). Assim, Thompson (1981B, p. 405-406) afirma que “a experiência é um conceito de junção, o que realiza a ligação entre a cultura e a não-cultura, estando metade dentro do ser social, metade dentro da consciência social”. Nesse sentido, distingue dois níveis de experiência: a experiência I – a experiência vivida – e a experiência II – a experiência percebida, A experiência I está em eterna fricção com a consciência imposta. Quando ela irrompe, nós, que lutamos com todos os intricados vocabulários e disciplinas da experiência II, podemos experienciar alguns momentos de abertura e de oportunidade, antes que se imponha mais uma vez o molde da ideologia. (THOMPSON, 1981B, p. 406). Assim, a partir da noção de experiência, é possível compreender homens e mulheres como sujeitos com relativa autonomia e voz na História. Contudo, ressalva Thompson, [...] não como sujeitos autônomos, ‘indivíduos livres’, mas como pessoas que experimentam suas situações e relações produtivas determinadas como necessidades e interesses e como antagonismos, e em seguida ‘tratam’ essa experiência em sua consciência e sua cultura [...] e em seguida [...] agem, por sua vez, sobre sua situação determinada. (Thompson, 1981, p. 182) 7 Para Pashukanis “o direito, enquanto conjunto de normas, não é senão uma abstração sem vida” [...] “a escola normativa, liderada por Kelsen, nega completamente a relação entre os sujeitos, recusando considerar o direito sob o ângulo da sua existência real e concentrando toda a sua atenção sobre o valor formal das normas.” (PACHUKANIS, 1988, p. 47) 8 Estas experiências são encontradas, inclusive, nas falas não explicitadas dos documentos escritos. Mikhail Bakhtin fez os historiadores se voltarem para a percepção das várias vozes não explícitas existentes nos documentos históricos, concentrando-se em compreender a polifonia que estes carregam. Ver: BAKHTIN, Mikhail. A cultura popular na Idade Média e no Renascimento: o contexto de François Rabelais. São Paulo: Hucitec; Brasília: Ed. Da UnB. 1987._____; Marxismo e Filosofia da Linguagem. 12ª Edição. São Paulo: HUCITEC, 2006. ANAIS DO V CONGRESSO BRASILEIRO DE HISTÓRIA DO DIREITO 17 Desse modo, pela introdução da idéia de “experiência”, Thompson supera o determinismo a-histórico do marxismo ortodoxo e transmuda a “estrutura material” em processo histórico, reinserindo o sujeito, a classe e sua cultura dentro da História. Na história oficial do Direito, verifica-se que a cultura e as relações sociais das pessoas reais são omitidas na caracterização do que é o Direito. Essa omissão é feita por uma depuração que limita e naturaliza as fontes do Direito às fontes normativas oficiais. Essa depuração da realidade jurídica, feita especialmente pelo monismo estatal positivista, afasta o Direito da história social. Ao reproduzir, na prática histórica, essa divisão dogmática e estanque entre relações sociais e normas jurídicas, a história oficial já pré-conceitua sua noção de Direito. Portanto, a História oficial do Direito, ao mesmo tempo em que omite seu método próprio, nega a possibilidade de pesquisa de “fontes do Direito” não tradicionais - separando o Direito da vida real, congelando a realidade no monismo legalista. Contra essa versão tradicional, a história crítica deve demonstrar que a pesquisa do Direito não se limita às leis, aos juristas e aos Tribunais, ela abarca também outras expressões da realidade do Direito como: formas de juridicidade não-estatais, os atores atingidos pelas normas e seus valores, as ideologias contraditórias do e sobre o Direito, etc. A essa altura, a pergunta inescapável surge ao leitor: então, o que é o Direito? Acompanha-se Thompson. Para o marxista inglês, no livro “Senhores e Caçadores” (THOMPSON, 1987B, p. 358), o Direito na História se apresenta essencialmente sobre duas dimensões: como lei, por meio de “regras e procedimento formais” e como ideologia, enquanto campo de conflito, mediação, arena central de luta social. A primeira dimensão (como lei) pode ainda ser dividida em dois aspectos: como instituição e seus agentes (“os tribunais com seus teatros e procedimentos classistas” e “os juízes, os advogados e os Juízes de Paz”) (THOMPSON, 1987B, p. 350); e como regras e procedimentos próprios (a lei enquanto lei, exprimindo sua lógica interna). (THOMPSON, 1987B, p. 351) Normalmente, a História do Direito se limita a analisar o Direito como Lei. Thompson afirma que essa abordagem do Direito não é a que mais lhe interessa. (THOMPSON, 1987B, 352). Essa discordância decorre da pesquisa histórica feito pelo Autor do papel do Direito na Inglaterra do século XVIII, em que ele verifica uma outra dimensão histórica do Direito existente no século XVIII, a dimensão ideológica. Ele questiona, então, tanto a concepção liberal do Direito que vê um “Rule of Law” consensual, quanto a concepção do marxismo ortodoxo que reduz o Direito a um mero instrumento da classe dominante.9 Em resumo, não aceita nem a versão liberal oficial de um “Rule of Law” imparcial nem a versão marxista ortodoxa de “Rule of Class” Tout Court. Assim, para além do Direito como Lei e do Direito como instrumento de classe, Thompson resgatará, pela análise histórica, a existência de uma dimensão ideológica costumeira (não consensual) do Direito. Em primeiro lugar, ressalta que essa ideologia (que não é falsa consciência, mas sim prática cultural, político-social)10 não se restringe à 9 Na contracorrente da tradição marxista hegemônica, para Thompson existe uma enorme diferença entre o “Rule of Law” e o “poder extralegal arbitrário”. (THOMPSON, 1987, p. 356-357). Inclusive, para espanto de alguns marxistas, ele considera a restrição ao poder imposta pelo “Rule of Law” um “bem humano incondicional”. (THOMPSON, 1987, p. 357). 10 A noção de Ideologia utilizada por Thompson é próxima da utilizada por A. Gramsci para definir ideologia necessária. Para o marxista italiano, as ideologias são realidade objetivas “na medida em que são historicamente necessárias, as ideologias tem uma validade que é uma validade ‘psicológica’: elas ‘organizam as massas humanas, formam o terreno sobre o qual os homens se movimentam, adquirem ciência de sua posição, lutam, etc”. (GRAMSCI, 1978, p. 62-63). 18 CINCO PONTOS PARA UMA HISTÓRIA CRÍTICA DO DIREITO A PARTIR DA OBRA DE E. P. THOMPSON ideologia da classe dominante (THOMPSON, 1987B, p. 352).11 Logo, nega essa dimensão do Direito como simples mediação ideológica legitimadora das relações de classe (THOMPSON, 1987B, p. 354). Afirma que o Direito tem “suas características próprias, sua própria história e lógica de desenvolvimento independente.” (THOMPSON, 1987B, p. 353). Por aceitar essa dimensão histórica do Direito para além das determinações da classe dominante, o historiador visualiza a existência de “normas alternativas [...] dos habitantes das florestas” (THOMPSON, 1987B, p. 352) como um espaço de conflito que, ao invés de simples mecanismo de consenso, constitui-se no próprio campo social onde o conflito se desenvolve. (THOMPSON, 1987B, p. 358) Assim, concebe uma dimensão ideológica do Direito em que as pessoas confrontam o Direito legal oficial com um Direito de práticas costumeiras desde tempo imemoriais, que se tornam insurgentes num espaço de confronto de classes. Assim, na obra “Senhores e Caçadores”, Thompson verificou que “o Direito costumeiro não-codificado inglês”, ofereceu uma notação alternativa de Direito no séc. XVIII inglês. (THOMPSON, 1987B, p. 359) Ademais, o historiador marxista destaca a complexidade paradoxal do Direito como campo de conflito (THOMPSON, 1987B, p. 361), pois, de forma contraditória, no processo histórico, pode gerar tanto um acúmulo de conquistas sociais no âmbito do “Rule of Law” (THOMPSON, 1987B, pp. 355, 356, 358), quanto relegitimar o poder desse próprio sistema, reproduzindo o “Rule of Class”. (THOMPSON, 1987B, p. 356) Ademais, salienta que as “formas e a retórica da lei adquirem uma identidade distinta que, às vezes, inibem o poder e oferecem alguma proteção aos destituídos de poder”. (THOMPSON, 1987B, p. 358). Conclui-se, então, que para realizar uma História crítica do Direito são necessárias a explicitação do método histórico e a ultrapassagem da divisão, na pesquisa jurídica, entre relações sociais e normas jurídicas (lei, doutrina, jurisprudência), o que leva ao posicionamento do historiador sobre o que é o Direito. Ao contrário da história oficial, que naturaliza o método histórico e separa a história social da história das normas, ocultando a sua concepção de Direito, a história crítica do Direito deve explicitar seus pressupostos metodológicos da prática histórica e deve, ainda, superar a utilização apenas de fontes tradicionais do Direito, tendo como conseqüência a exposição de uma concepção de Direito crítica, imbricada nas relações sociais, que não se limite à norma estatal, revelando práticas históricas de juridicidade plurais, alternativas, insurgentes. 3 “A História não conhece verbos regulares”: reconhecimento da incompletude e dos limites do conhecimento histórico Que é história? [...] se constitui de um processo contínuo de interação entre o historiador e seus fatos, um diálogo interminável entre o presente e o passado. (Edward Hallet Carr) Como visto anteriormente, a história oficial, ao limitar a pesquisa do conhecimento histórico do Direito às fontes “jurídicas” oficiais, determina, de antemão, a completude da história do Direito nos limites da lei, doutrina e jurisprudência, o que elimina a verificação dos reais limites do conhecimento histórico do Direito em outras fontes do direito e, por conseqüência, em outras fontes da história. Por isso, a história oficial do Direito geralmente esconde-se na falsa completude do Direito monista estatal atual e limita-se unicamente às evidências das fontes jurídicas oficiais. 11 Thompson concorda que o Direito pode ser visto “instrumentalmente como mediação e reforço das relações de classe existentes e, ideologicamente, como sua legitimadora.” Entretanto, ressalta que “devemos avançar um pouco mais em nossas definições”. (THOMPSON, 1987p. 353) ANAIS DO V CONGRESSO BRASILEIRO DE HISTÓRIA DO DIREITO 19 Contra essa abordagem, uma História crítica do Direito deve partir do pressuposto de que a pesquisa da realidade histórica não deve estar limitada e se completar nas fontes oficiais do Direito e da História; deve, portanto, reconhecer outras fontes jurídicas e históricas, fazendo com que o conhecimento histórico se apresente, diante destas últimas, como incompleto, provisório, limitado e seletivo (porém, não inverídico). Na sua segunda proposição da lógica histórica, Thompson expressa exatamente esse raciocínio: O conhecimento histórico é, pela sua natureza, (a) provisório e incompleto (mas não, por isso inverídico), (b) seletivo (mas não, por isso, inverídico), (c) limitado e definido pelas perguntas feitas à evidência (e os conceitos que informam essas perguntas), e, portanto, só verdadeiro dentro do campo assim definido. (THOMPSON, 1981, p. 49) Da mesma forma, salienta, na quinta proposição da lógica histórica, que “o objeto do conhecimento histórico é a história ‘real’, cujas evidências devem ser necessariamente incompletas e imperfeitas”. (THOMPSON, 1981, p. 50). Portanto, visto que o conhecimento histórico “[...] é provisório e aproximado, com muitos silêncios e impurezas” (THOMPSON, 1981, p. 61), a relação entre interrogação e resposta no método histórico deve ser como um diálogo mutuamente determinante, mediado pelo historiador. Nesse diálogo, a incompletude e os limites do conhecimento histórico aparecem em face das perguntas do interrogador (num determinado tempo) dirigidas a determinadas evidências (disponíveis em certa época). Para o historiador inglês, os termos gerais de análise (isto é, as perguntas adequadas a interrogação da evidência) raramente são constantes e, com mais freqüência, estão em transição, juntamente com os movimentos do evento histórico: assim como o objeto de investigação se modifica, também se modificam as questões adequadas. (THOMPSON, 1981, p. 48) Assim, o princípio basilar do método histórico deve ser o diálogo entre o conceito e a evidência, a hipótese e a pesquisa empírica, o conteúdo da interrogação e o interrogado, a pergunta e a resposta, as teorias e as fontes. E, nesse diálogo entre a interrogação e o interrogado, o interrogador é a própria lógica histórica utilizada pelo pesquisador. Esse é, na verdade, o segundo diálogo do método histórico apresentado por Thompson (o primeiro foi analisado no ponto anterior), visto que o conhecimento histórico na obra do historiador marxista inglês é o resultado de um duplo diálogo “a partir dos quais se forma o nosso conhecimento: primeiro, o diálogo entre o ser social e a consciência social, que dá origem a experiência; segundo, o diálogo entre a organização teórica (em toda a sua complexidade) da evidência, de um lado, e o caráter determinado do objeto [que é a própria evidência], do outro.” (THOMPSON, 1981, p. 42) Na segunda parte de sua quarta proposição, reitera que “A interrogação e a resposta são mutuamente determinantes e a relação só pode ser compreendida como um diálogo”. (THOMPSON, 1981, p. 50). Dessa forma, no âmbito da prática histórica, toda análise teórica deve ser apreendida na prática do “agir humano” e na medida do diálogo entre conceito (modelo) e evidência (prova). E, “na medida em que uma tese (o conceito, ou hipótese) é posta em relação com suas antíteses (determinação objetiva não-teórica) e disso resulta uma síntese (conhecimento histórico), tem-se o que poderia chamar de dialética do conhecimento histórico”. (THOMPSON, 1981, p. 54, grifo nosso) Nessa dialética, o conceito é uma categoria não-estática e histórica, com generalidade e elasticidade, mais como expectativa do que como regra. (THOMPSON, 198, pp. 56-7). Um exemplo disso na obra de Thompson é a historicidade vista na análise do conceito “classe social” na obra “A Formação da Classe Operária Inglesa”. Para ele, o “conceito” (sinônimo de hipótese) na história, é definido como uma “organização conceptual das evidências para 20 CINCO PONTOS PARA UMA HISTÓRIA CRÍTICA DO DIREITO A PARTIR DA OBRA DE E. P. THOMPSON explicar determinados episódios de causação e relação”. (THOMPSON, 1981, p. 22112). Portanto, o conceito não surge de forma abstrata da cabeça do pesquisador, ele já retira as suas hipóteses de pré-pesquisas em fontes históricas, que apresentam evidências preliminares. Sendo assim, todo conceito, por mais abstrato que seja, surge de um diálogo empírico com as evidências. Nesse sentido, destaca Thompson que Toda noção, ou conceito, surge de engajamentos empíricos e por mais abstratos que sejam os procedimentos de sua auto-interrogação, esta deve ser remetida a um compromisso com as propriedades determinadas da evidência, e defender seus argumentos ante juízes vigilantes do ‘tribunal de recursos’ da história. (THOMPSON, 1981, p. 54) O limite do conceito está nas propriedades determinadas do objeto histórico, descobertas no diálogo da pesquisa, pois, “o ‘pensamento (se é ‘verdadeiro’) só pode representar o que é adequado às propriedades determinadas de seu objeto real, e deve operar dentro desse campo determinado” (THOMPSON, 1981, p. 27). Por outro lado, já os limites das evidências só serão descobertos na própria análise empírica dessas evidências em confronto com “o diálogo, proposto pela lógica histórica, com o conceito” e com outras pesquisas. Na prática da história oficial do Direito esses dois limites acima expostos não são verificados. A naturalização e a falsa completude dos conceitos utilizados pelo Direito estatal moderno impedem um diálogo ilimitado (como propõe Thompson), por causa da aridez formal dos conceitos jurídicos. Da mesma forma, a limitação das fontes de juridicidade às tradicionais do direito moderno estatal também impede o diálogo histórico das evidências. Por isso, a falsa noção de completude do direito oficial não permite que sejam verificados os reais limites do conhecimento histórico – limites estes que não são conhecidos a priori, mas na aplicação prática da lógica histórica. Em confronto com essa completude normativa da história oficial, a história crítica do Direito tem que conceber o conhecimento histórico como um diálogo em que nem no conceito/hipótese, nem nas evidências/fontes (históricas ou jurídicas) sejam impostos falsos limites pela carapuça do direito moderno estatal. Portanto, no diálogo da pesquisa critica do Direito, as perguntas/hipóteses são definidas (limitadas), sim, mas o seu limite último não é definido (numa falsa completude) pela disciplina acadêmica “Direito” ou “História do Direito” e suas fontes jurídicas oficiais. O limite das hipóteses é paulatinamente conhecido na prática histórica (no Direito ou fora dele) diante da impossibilidade, verificada empiricamente, de se pensar outras hipóteses/conceitos naquele tempo histórico. Igualmente, as evidências são, sim, limitadas, mas não unicamente pelas fontes históricas oficiais, mas em decorrência da disponibilidade das evidências históricas em um determinado período. Desse modo, o limite último da fonte possível para a pesquisa histórica não é o rol completo de fontes (jurídicas ou históricas) determinado pelo discurso oficial, mas sim pelas repetidas aproximações da descoberta do que é o objeto “Direito” na História. 4 Desvinculação da História aos objetivos do direito oficial do presente e desmitificação da História isolada no passado [...] os fatos não podem falar enquanto não tiverem sido interrogados. (E.P. Thompson) 12 Refere-se à nota de rodapé nº 42 do livro. ANAIS DO V CONGRESSO BRASILEIRO DE HISTÓRIA DO DIREITO 21 [...] eu penso que nunca segui um comportamento histórico que não tivesse como ponto de partida uma questão colocada pelo presente. (Philippe Áries) Na história oficial do Direito, os interesses institucionais do presente determinam a pesquisa do passado. Por meio da historia-narração, a pesquisa tradicional tenta demonstrar como o direito atual é resultado lógico e coerente do Direito na história. Nela, utiliza-se a forma narrativa para vincular o passado aos interesses do presente de duas formas: pela história das fontes do Direito, pela qual é descrita no tempo uma mera sequência de normas; pela historia da dogmática, na qual se apresenta uma sequência coesa de teorias jurídicas interligadas. (HESPANHA, 1982, p. 11-13) Assim, na história oficial, embora seu discurso aponte no passado seu amparo, as determinações do conhecimento histórico está nos interesses institucionais do presente.13. Contra essa abordagem evolucionista da história oficial, pode-se apontar o que diz Thompson na primeira parte da quarta proposição de sua lógica histórica: a relação entre o conhecimento histórico e seu objeto não pode ser compreendida em quaisquer termos que suponham ser um deles função (inferência de, revelação, abstração, atribuição ou ‘ilustração’) do outro. (THOMPSON, 1981, p. 50). Assim, os interesses institucionais do presente não podem condicionar os objetos históricos do passado. Todavia, quando a história oficial não vincula o passado ao presente, faz o erro contrário: isola “ilhas do passado” em relação ao presente, como se fosse possível resgatar o tempo passado “isento” das escolhas feitas acerca dos problemas do presente. Esse erro foi muito bem apontado por Marc Bloch que, em seu método regressivo, já alertava para o fato de que os temas do presente condicionam e delimitam o retorno, possível, ao passado. Segundo Bloch, “a incompreensão do presente nasce fatalmente da ignorância do passado. Mas talvez não seja menos vão esgotar-se em compreender o passado se nada se sabe do presente”. (BLOCH, 2001, p. 65). Destarte, os problemas do presente influenciam, sim, na pesquisa histórica. Os Historiadores que viram as costas para os problemas do presente normalmente se escondem atrás das fontes históricas para justificar uma história conservadora, tradicional, que limpa do campo de visão os problemas e as pessoas reais que foram vítimas ontem e são vítimas hoje do poder. Geralmente, o historiador tradicional se exime do papel de agente coconstituiente do conhecimento, arrogando às fontes históricas a direção da pesquisa. Contra essa visão positivista, Thompson afirma que “A evidência histórica existe, em sua forma primária, não para revelar seu próprio significado, mas para ser interrogada por mentes treinadas numa disciplina de desconfiança atenta” (THOMPSON, 1981, p. 38)14. Consoante Bloch (2001, p. 79), “os textos e os documentos arqueológicos, mesmo os aparentemente mais claros e mais complacentes, não falam senão quando sabemos interrogá-los.” 13 O sociólogo e pesquisador do ISEB, Álvaro Vieira Pinto, já observava a “pressurosa atenção com que se volta para os institutos e órgãos do ensino superior a solícita e generosa colaboração das fundações estrangeiras, o oferecimento e envio de missões e especialistas para reorganizar o nosso ensino, o despacho de pedagogos para os nossos institutos de pesquisa educacionais e tantas outras modalidades de infiltração imperialista, todas com o fim de impedir que as nossas universidades adquiram a única autonomia pela qual nunca se interessaram, a de ser expressão dos exclusivos interesses da cultura e da economia brasileira”. (PINTO, 1986, p. 45) 14 Thompson afirma que as evidências podem ser interrogadas de seis maneiras diferentes (discurso da prova): 1) como evidências sujeitas à confirmação de suas credenciais como fatos históricos: “como foram registrados? Com que finalidade? Podem ser confirmados por evidências adjacente?”; 2) como evidências portadoras de valorações (cultura); 3) como evidências isentas de valor (estatística) ; 4) como elos numa série linear de ocorrências (narrativa) [diacronia]; 5) como elos numa série lateral (comparação dos fatos sociais do passado entre si) [sincronia]; 6) como evidências (a espécie fatos isolados) que sustentam uma estrutura maior. (THOMPSON, 1981 p. 38-39) 22 CINCO PONTOS PARA UMA HISTÓRIA CRÍTICA DO DIREITO A PARTIR DA OBRA DE E. P. THOMPSON Portanto, para Thompson, as preocupações de cada geração têm um conteúdo normativo, valorativo, que influencia as perguntas (THOMPSON, 1981, p. 51). Contudo, alerta que, ao reconstituir o processo histórico, os historiadores apontam mutuamente suas falhas e devem (dentro das possibilidades da disciplina histórica) controlar seus próprios valores. (THOMPSON, 1981, p. 52) Mas, uma vez constituída essa história, tem-se a liberdade de oferecer nosso julgamento a propósito dela. Mas esse julgamento deve estar ele mesmo sob controles históricos e mister ser adequado às propriedades determinadas das evidências. (THOMPSON, 1981, p. 52). Assim, após a reconstituição do processo histórico, O que podemos fazer é nos identificar com certos valores aceitos pelos atores do passado, e rejeitar outros. [...] estamos dizendo que esses valores, e não aqueles, são os que tornam a história significativa para nós, e que esses são os valores que pretendemos ampliar e manter em nosso próprio presente. (THOMPSON, 1981, p. 53) O marxista inglês sintetiza a necessidade de desvinculação da História aos objetivos dos interesses da ordem oficial do presente sem, por outro lado, mitificar a história isolada em ilhas do passado, por meio do seguinte excerto: Não deveríamos ter como único critério de julgamento o fato de as ações de um homem se justificarem ou não, à luz da evolução posterior. Afinal de contas, nós mesmos não estamos no final da evolução social. Podemos descobrir [no passado], em algumas das causas perdidas do povo da Revolução Industrial, percepções de males sociais que ainda estão por curar. Além disso, a maior parte do mundo ainda hoje passa por problemas de industrialização e de formações de instituições democráticas, sob muitos aspectos semelhantes a nossa própria experiência durante a Revolução Industrial. Causas que foram perdidas na Inglaterra poderiam ser ganhas na Ásia ou na África. (THOMPSON, 1987, p. 13) A historiografia oficial julga a História pelo discurso da “evolução até o presente”. Contra esse modelo, Thompson reformula a função da História ao apontar que causa perdidas no passado poderiam ajudar a resolver os problemas “encontrados” no presente. Conforme afirma o professor José Reinaldo de Lima Lopes, “Uma história crítica mostra que as coisas foram diferentes do que são e podem ser no futuro também muito diferentes” (LOPES, 2000, p. 20). No mesmo sentido, o marxista inglês aponta que “Qualquer processo histórico é ao mesmo tempo resultado de processos anteriores e um índice da direção de seu fluxo futuro. (THOMPSON, 1981, p. 58). Continua ao afirmar que “A explicação histórica não revela como a história deveria ter se processado, mas porque se processou dessa maneira e não de outra” (THOMPSON, 1981, p. 61). Ou seja, a História mostra uma possibilidade de alternativa para o futuro ao relativizar ou estranhar a ordem social do presente com exemplos do passado. Não obstante essa relação entre História e os problemas do presente, ressalva o autor que “o processo não é arbitrário, mas tem sua própria regularidade e racionalidade; que certos tipos de acontecimentos [...] relacionaram-se não de qualquer maneira [...] mas de maneiras particulares e dentro de determinados campos de possibilidades”. (THOMPSON, 1981, p. 61). Em sua terceira preposição da lógica histórica, consigna que “A evidência histórica tem determinadas propriedades. Embora lhe possam ser formuladas quaisquer perguntas, apenas algumas serão adequadas” (THOMPSON, 1981, p. 50). Em outra passagem, afirma que a disciplina histórica supõe que o historiador está empenhado em algum tipo de encontro com uma evidência que não é infinitamente maleável ou sujeita a manipulação arbitrária, que há um sentido real e significante no qual os fatos ‘existem’, e que são determinantes, embora as questões que possam ser propostas sejam várias e elucidem várias indagações. (THOMPSON, 1981, p. 40) ANAIS DO V CONGRESSO BRASILEIRO DE HISTÓRIA DO DIREITO 23 Em resumo, para Thompson, o historiador, embora possa (e deva) exprimir o anseio pelo resgate daqueles que não tem voz na História, tem que trabalhar para ouvir a voz dos fatos e seus atores e não a sua própria voz (de historiador), “mesmo que aquilo que podem ‘dizer’ e parte de seu vocabulário seja determinado pelas perguntas feitas pelo historiador”. (THOMPSON, 1981, p. 40) Logo, ao mesmo tempo em que a pesquisa histórica não pode ser um busca de “ilhas de história” isoladas no passado, também não se pode vincular a pesquisa diretamente aos problemas da realidade do presente, pois uma pesquisa crítica não pode subsistir nem no “leito de origem” nem no “leito de procusto”. Desse modo, para evitar os dois perigos acima expostos, uma historicidade crítica no Direito tem que se utilizar do diálogo exposto pela lógica histórica, no qual nem as perguntas do presente determinam as evidências do passado, nem as evidências do passado definem completamente quais perguntas serão feitas pelo historiador do presente. 5 História vista a partir de baixo (ponto de vista dos vencidos) em contraponto à História dos vencedores Os becos sem saída, as causas perdidas e os próprios perdedores são esquecidos. (E. P. Thompson) A história vista a partir de baixo (“History from below”)15 é maneira de fazer história pelo qual Thompson ficou conhecido. Obviamente que essa é uma proposta de história engajada, comprometida com o resgate de experiências dos explorados, oprimidos, excluídos, em suma, das vítimas do capitalismo. Nesse sentido, o objetivo de uma História do Direito a partir de baixo é, por um lado, denunciar o passado de exploração e os silêncios não escritos pela história oficial do Direito e, por outro lado, ouvir a cultura dos vencidos (pessoas reais que pensaram a sua realidade) por suas próprias vozes e anunciar ao presente a existência de um passado de práticas jurídicas insurgentes, mais justas e igualitárias.16 Thompson explica que em cada época, ou cada praticante pode fazer novas perguntas à evidência histórica, ou pode trazer à luz novos níveis de evidência. Nesse sentido, a ‘história’ (quando examinada como produto da investigação histórica) se modificará, e deve modificar-se, com as preocupações de cada geração ou, pode acontecer de cada sexo, cada nação, cada classe social. Mas isso não significa absolutamente que os próprios acontecimentos passados se modifiquem a cada investigador, ou que a evidência seja indeterminada. (THOMPSON, 1981, p. 51) Então, fica explícito que as preocupações dos “de baixo”, dos vencidos, modifica a compreensão da história, pois joga uma nova luz sobre as evidências. Obviamente que isso não modifica o que é a verdade histórica, mas sim o nosso conhecimento sobre ela. Fica claro, também, que, fazer história do ponto de vista dos vencidos, não gera uma fragmentação da própria História (do objeto real), pois “embora os historiadores possam tomar a decisão de selecionar essas evidências, e escrever uma história de aspectos isolados do todo [...] o objeto real continua unitário” (THOMPSON, 1981, p. 50). Diante desse desafio de fazer uma história vista de baixo, ressalta Carlo Ginsburg que 15 Thompson cunhou a expressão “History from bellow” no artigo de mesmo nome publicado em 1966 no The Times Literary Supplement, 7/4/1966, pp. 278-80. Esse artigo foi traduzido para o português e publicado no seguinte livro: NEGRO, Antonio Luigi e SILVA, Sergio (orgs.). As Peculiaridades dos Ingleses e outros artigos. Campinas: Editora da Unicamp, 2001. 16 Marc Bloch afirmava que “A ignorância do passado não se limita a prejudicar a compreensão do presente; compromete no presente a própria ação.” (BLOCH, 2001, p. 63) 24 CINCO PONTOS PARA UMA HISTÓRIA CRÍTICA DO DIREITO A PARTIR DA OBRA DE E. P. THOMPSON [...] ao avaliar as provas, os historiadores deveriam recordar que todo ponto de vista sobre a realidade, além de ser intrinsecamente seletivo e parcial, depende das relações de força que condicionam, por meio da possibilidade de acesso a documentação, a imagem total que uma sociedade deixa de si. Para ‘ escovar a história ao contrário’ (die Geschichte gegen den Strich zu bürsten), como Walter Benjamin exortava a fazer, é preciso aprender a ler os testemunhos às avessas, contra as intenções de quem os produziu. (GINSBURG, 2002, p. 43) Dessa forma, em contraponto à história oficial vista de cima, dos grandes eventos e dos vencedores, uma história crítica deve buscar realizar uma história a contrapelo para, assim, conhecer a história dos vencidos. No Direito, o objetivo é escutar a atuação jurídica dos oprimidos e as dimensões do Direito destruídas pela cultura dos vencedores. Assim, ao invés da história dos grandes juristas, busca-se escutar a história das pessoas desconhecidas (ou não reconhecidas) que viveram o Direito ou a falta dele. Por exemplo, uma história crítica do Direito no Brasil tem que se lembrar das juridicidades não-oficiais nos quilombos, nas tribos indígenas, nas missões, nas colônias anarquistas, nas organizações operárias e camponesas. Destarte, em busca de uma historiografia crítica no Direito, relacionemos a história da burocracia colonial com a história das juridicidades indígenas e das reduções jesuíticas; conectemos as instituições do império português com o direito extra-oficial dos quilombos dos ex-escravos; compreendamos as regras das colônias anarquistas diante das leis penais que as desconstituíram; esqueçamos um pouco o mito da relação entre a Carta Del Lavoro e a CLT e nos lembremos da formação em meio a greves do “direito operário” e do papel dos trabalhadores na conquista dos direitos sociais e na criação “sui generis” da Justiça do trabalho. No mesmo sentido, Thompson (1987, p. 13) declarou no prefácio do livro “A formação da classe operária inglesa”: estou tentando resgatar o pobre tecelão de malhas, o meeiro ludista, o tecelão do “obsoleto” tear manual, o artesão “utópico” e mesmo o iludido seguidor de Joanna Southcott, dos imensos ares superiores de condescendência da posterioridade. Seus ofícios e tradições podiam estar desaparecendo. Sua hostilidade frente ao novo industrialismo podia ser retrógada. Seus ideais comunitários podiam ser fantasiosos. Suas conspirações insurrecionais podiam ser temerárias. Mas eles viveram nesse tempo de aguda perturbação social, e nós não. Suas aspirações eram válidas nos termos de sua própria experiência; se foram vítimas acidentais da história, continuam a ser, condenados em vida, vítimas acidentais. No âmbito do Brasil e da América Latina, resgatar a história dos vencidos está também estritamente vinculado ao resgate da história das vítimas da modernidade ocidental européia, o que leva à necessidade da realização de uma denúncia ao colonialismo na história da América Latina. Enrique Dussel é um dos pesquisadores latinoamericanos que tentam resgatar a história dos Outros encobertos pelo descobrimento, os oprimidos das nações periféricas que pagaram com sua morte a acumulação do capital e desenvolvimento dos países centrais (DUSSEL, 1993). Em seu livro “Política de la liberacion: historia mundial y critica” (DUSSEL, 2007, p. 11-13), Dussel aponta sete limites que impedem a realização de uma história realmente autônoma que expresse a realidade latinoamericana: helenocentrismo (no Direito, pode-se chamar romanismo), ocidentalismo, eurocentrismo, periodização européia (no Brasil, podemos falar periodização portuguesa), colonialismo mental e relato equivocado da modernidade. Portanto, tomar em conta a “peculiaridade” latinoamericana da História Geral e do Direito é uma das pré-condições de uma pesquisa crítica de História do Direito no Brasil, que tenha como ponto de vista os de baixo, os vencidos, os colonizados pela modernidade européia. ANAIS DO V CONGRESSO BRASILEIRO DE HISTÓRIA DO DIREITO 25 Conclusão Pelo estudo da Teoria e Metodologia da História proposta por Thompson na sua Lógica Histórica, buscou-se compreender como a prática da História do Direito está acompanhada de pressupostos teóricos e metodológicos que explicitam se a pesquisa histórica é oficial e tradicional ou é uma pesquisa crítica. Verificou-se, portanto, que, em combate à história oficial do Direito que se propõe realizar um “relato descritivo dos fatos jurídicos do passado”, uma história crítica deve propor uma pesquisa problematizadora das expressões de juridicidade do homem no tempo que promova um duplo movimento: de um lado, uma denúncia (pelo auscultar as vítimas) das práticas, discursos, conceitos, instituições e atores que fizeram o Direito opressor no processo histórico passado e das falsas ilhas de juridicidades que são criadas pelo historiador oficial do presente; por outro lado, um anúncio das insurgências, vozes, edificações e povos que tentaram juridicidades insurgentes de libertação no processo histórico passado e das ilhas de crítica ao Direito presente feitas pelos historiadores comprometidos com a transformação social hoje. Assim, a partir da obra de E. P. Thompson, pretendeu-se apresentar cinco pontos que contribuem para a realização de uma História crítica do Direito que reconstitua, explique e compreenda a história real, mas que também se proponha a: problematizar o conhecimento do processo histórico passado para compreender e transformar a realidade do presente; explicitar a existência de posicionamentos do historiador na realidade do presente que interferem na compreensão da realidade do processo histórico passado; e desmitificar a versão oficial da História do Direito, “relativizando-a”, para criar alternativas que superem o discurso oficial do Direito presente. Em suma, o principal objetivo da apresentação desses cinco pontos foi explicitar a existência de alguns pressupostos que possibilitam a superação dos limites teóricos e metodológicos da história oficial, permitindo a realização de uma história crítica do Direito que faça uma crítica-denúncia permanente à historiografia oficial e, ao mesmo tempo, anuncie e reescreva a existência de Outra História vista de baixo. Referências BLOCH, Marc. Apologia da História ou o Ofício do Históriador. Rio de Janeiro: Zahar Ed, 2001. DUSSEL, Enrique. 1492 – O Encobrimento do Outro. Petrópolis: Vozes, 1993. _______. Política de la liberación: historia mundial y crítica. Madri. Trotta, 2007. GINSBURG, Carlo. Relações de força. História, Retórica e Prova. São Paulo: Cia das Letras, 2002. GRAMSCI, Antonio. Concepção Dialética da História. Rio de Janeiro, Civilização Brasileira, 1978. HESPANHA, Antonio M. História das Instituições: época medieval e moderna. Coimbra: Almedina, 1982. NEGRO, Antonio Luigi e SILVA, Sergio (orgs.). As Peculiaridades dos Ingleses e outros artigos. Campinas: Editora da Unicamp, 2001. PACHUKANIS, Evgeny Bronislavovitch. Teoria geral do direito e marxismo. São Paulo: Acadêmica, 1988. 26 CINCO PONTOS PARA UMA HISTÓRIA CRÍTICA DO DIREITO A PARTIR DA OBRA DE E. P. THOMPSON PINTO, Álvaro Vieira. A questão da Universidade. São Paulo: Cortez: Autores Associados, 1986. LOPES, José Reinaldo de Lima. O Direito na história: lições introdutórias. São Paulo: Max Limonad, 2000. THOMPSON, E. P. A Formação da Classe Operária Inglesa. Rio de Janeiro, Paz e Terra, 3 vols, 1987. __________. A Miséria da Teoria ou um Planetário de Erros: uma crítica ao pensamento de Althusser. Rio de Janeiro, Zahar, 1981. __________. Senhores & Caçadores: a origem da lei negra. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1987B. ___________. The Poverty of Theory and Other Essays. London: Merlin, 1978. __________. Whigs and Hunters: the origin of the black act. New York: Pantheon Books, 1975. THOMPSON, Edward Palmer. The politics of theory. In: SAMUEL, Raphael. (ed.) People’s history and socialist theory. London: Routledge. 1981B. ANAIS DO V CONGRESSO BRASILEIRO DE HISTÓRIA DO DIREITO 27 HISTÓRIA, VERDADE E TESTEMUNHO: OS LIMITES DA REPRESENTAÇÃO E A NARRATIVA DAS VÍTIMAS SOBRE PERÍODOS DE OPRESSÃO HISTORY, TRUTH AND TESTIMONY:THE LIMITS OF REPRESENTATION AND THE VICTIMS’ NARRATIVE ON PERIODS OF OPPRESSION Claudia Paiva Carvalho* Resumo: O presente trabalho pretende investigar as relações entre história, verdade e testemunho, com enfoque na utilização dos relatos das vítimas na reconstrução histórica de períodos de opressão, como as experiências totalitárias e autoritárias do século XX. Dedica-se, num primeiro momento, aos limites de representação e ao estatuto da verdade no trabalho histórico. Para tanto, a relação entre história e ficção, ou história e literatura, é analisada a partir dos debates sobre a capacidade cognitiva da história. Num segundo momento, problematiza-se o estatuto da prova na operação historiográfica e, mais especificamente, a contribuição que os testemunhos das vítimas podem oferecer ao trabalho de análise e reconstrução de passados traumáticos, levando em consideração a necessidade de uma crítica do testemunho e a possibilidade de explorar os fragmentos e os detalhes contidos nos relatos dos sobreviventes a partir do paradigma indiciário (GINZBURG). Por fim, coloca-se em questão o papel da história de lutar contra o esquecimento, aproximando-se da memória e valendo-se das narrativas das vítimas para confrontar as versões oficiais com aquilo que elas deixaram de lado, ignoraram ou ocultaram. * Mestranda em Direito, Estado e Constituição pela Universidade de Brasília (UnB). Membro do grupo de pesquisa Percursos-Fragmentos-Narrativas – História do Direito e do Constitucionalismo (Plataforma LattesCNPq). Email: [email protected]. 28 HISTÓRIA, VERDADE E TESTEMUNHO: OS LIMITES DA REPRESENTAÇÃO E A NARRATIVA DAS VÍTIMAS SOBRE PERÍODOS DE OPRESSÃO “Tornam-se-me odiosas as coisas verossímeis quando elas me são apresentadas como infalíveis. Gosto das palavras que adoçam e moderam a temeridade das nossas afirmações: ‘talvez’, ‘de certo modo’, ‘algum’, ‘diz-se’, ‘eu penso’ e outras semelhantes.” Ensaios – Montaigne “Fatos que povoam o espaço e que chegam ao fim quando alguém morre podem maravilhar-nos, mas uma coisa, ou um número infinito de coisas, morre em cada agonia, a não ser que exista uma memória do universo, como conjecturam os teósofos. No tempo houve um dia que apagou os últimos olhos que viram Cristo; a batalha de Junín e o amor de Helena morreram com a morte de um homem. O que morrerá comigo quando eu morrer, que forma patética ou perecível o mundo perderá?” A testemunha – Jorge Luis Borges Introdução Pensar a função do testemunho e sua contribuição para o conhecimento histórico é uma tarefa complexa e, no mínimo, difícil, que suscita questões teóricas e metodológicas as mais relevantes. Ainda mais complicada é a tarefa quando se tem por objeto períodos de opressão, como foram os regimes totalitários na Europa e as ditaduras militares na América Latina ao longo do século XX, e quando o testemunho é dado pelas vítimas que sobreviveram a perseguições e violências praticadas nos campos de concentração e centros de tortura. Reinhart Koselleck vai dizer que todo documento, todo texto sobre o passado é encarado pelo historiador como um testemunho de algo que está para além do próprio texto e remete aos fatos em si, alcançados apenas indiretamente. Em seu debate com Gadamer, Koselleck defende que a história não se confunde com a linguagem e não pode ser tratada como “um subcaso da hermenêutica” porque existem categorias metahistóricas e metalinguísticas que dizem respeito às condições de possibilidade do conhecimento histórico, abrigadas pela Historik (KOSELLECK, 1997, 70). Além disso, muitos eventos históricos não são apreensíveis por meios linguísticos ou captáveis pelo léxico, seja pela falta de consciência dos atores de determinada época sobre o significado de suas experiências, seja pelo caráter inenarrável de alguns acontecimentos. Isso tem relação com o debate aqui proposto, que tematiza a capacidade da história de representar o passado, bem como os limites e possibilidades do testemunho enquanto fonte histórica. Não obstante essa opção de considerar toda fonte histórica como um testemunho de algo que aconteceu, o presente trabalho se direciona ao papel dos testemunhos na história enquanto relatos daqueles que sobreviveram a experiências de opressão. Vale a pena relembrar brevemente os sentidos que a ideia de testemunha pode expressar. Segundo Giorgio Agamben, a testemunha pode ser tomada como tertis, isto é, um terceiro em relação a certo conflito ou disputa, capaz de exprimir um juízo imparcial a seu respeito; como superstes, aquele que sobreviveu a algo e é capaz de referi-lo aos outros; e enquanto auctor, no sentido daquele que integra um ato imperfeito preexistente, que precisa ser convalidado ou certificado por outro para ter força ou realidade (AGAMBEN, 2008, 150). Agamben trabalha com esse último sentido a fim de chamar atenção para o papel ético dos sobreviventes dos campos de concentração de falar em nome daqueles que não podem nem poderão testemuhar mas que, paradoxalmente, são a testemunha autêntica ou integral do que aconteceu: os muçulmanos, que viveram a fundo a experiência do campo e, por isso mesmo, não sobreviveram a ela. O sentido adotado aqui é da testemunha enquanto superstes, voltando o olhar para o relato das vítimas que sobreviveram à repressão sofrida de diferentes maneiras. Uma primeira questão que se coloca é aplicável, todavia, a qualquer testemunha, e mais amplamente, à própria história, na medida em que problematiza a pretensão veritativa da narrativa testemunhal, mas também da narrativa histórica como um todo. A primeira pergunta, ANAIS DO V CONGRESSO BRASILEIRO DE HISTÓRIA DO DIREITO 29 portanto, é se a história pode conhecer o passado, se é capaz de alcançar alguma verdade sobre o que se passou, ou se, aproximando-se da literatura, pode apenas oferecer metáforas e ficções, mas nunca a realidade. Em um segundo momento, pergunta-se como o relato dos sobreviventes pode contribuir na reconstrução de períodos traumáticos, marcados por violações de direitos humanos e também por mentiras “oficiais”, sustentadas por discursos hegemônicos. Esse momento se desdobra em dois: o primeiro busca explorar as dificuldades de narração de eventos considerados, por excelência, singulares e inacessíveis à fala, bem como as possibilidades de os relatos testemunhais, marcados pelo caráter individual e concreto, contribuírem com as investigações históricas, sem descurar, mas antes valendo-se da crítica do testemunho; o segundo visa enfatizar o papel do testemunho das vítimas na incorporação de vozes que foram silenciadas ou ignoradas pelas versões dominantes, num movimento de aproximação entre história e memória que se mantêm, contudo, como domínios separados. As teses centrais que o trabalho busca enunciar são, primeiramente, a capacidade cognitiva da história, apta a fazer uma reconstrução – o mais fiel possível – do que aconteceu no passado (que é, em si, inalcançável), mas atenta aos limites da representação, que muitas vezes diluem as “certezas históricas” em “possíveis” e “prováveis”, e também à historicidade do próprio discurso histórico. Em segundo lugar, propõe-se que o testemunho das vítimas de períodos de opressão pode oferecer uma contribuição específica e servir para iluminar fenômenos históricos mais amplos do que a própria experiência individual dos sobreviventes, além de abrir o horizonte da pesquisa para perspectivas até então excluídas da narrativa histórica. Duas reflexões se entrelaçam, portanto, e remetem às duas epígrafes que abrem o trabalho. A primeira refere-se ao potencial cognitivo da narrativa histórica, que se afirma contra os relativismos epistemológicos e contra a transformação do “verossímil” em “infalível”, tida como “odiosa” para Montaigne. A segunda trata do estatuto da prova na investigação histórica e aborda a qualidade da testemunha, assinalada por Borges, de poder falar do que seus olhos viram, tendo em conta os limites da representação do passado, especialmente quando traumático, e o valor da perspectiva das vítimas para a construção de uma narrativa que desafie a história dos vencedores. 1 Debates entre história e ficção: o estatuto da verdade na representação do passado História e literatura se relacionam de diferentes maneiras: ambas se apresentam sob a forma linguística, a história conta com elementos de ficção, e a literatura pode conter componentes de realidade. Dentre outros autores, Koselleck discorre sobre o percurso de aproximação entre a res factae e a res fictae, partindo da oposição entre poesia e história que predominou até o século XVII, com a valorização de um campo em detrimento do outro. Enquanto para alguns a história teria mais valor porque traduzia a verdade, enquanto a poesia induzia à mentira, para outros, com apoio em Aristóteles, a poesia teria primazia porque se aproximava da filosofia, visando o possível e o geral, enquanto a história estaria presa aos fatos crus, muitas vezes aleatórios (KOSELLECK, 2006, 247). As divisas entre os campos se diluíram a partir do século XVIII e do movimento iluminista, com o surgimento do conceito reflexivo de história, que passa a se expressar por meio de um singular coletivo, tornando-se, a um só tempo, sujeito e objeto (KOSELLECK, 2004, 143). Do lado dos poetas e romancistas em especial, a referência à realidade histórica passou a ser um importante recurso de atração e convencimento. Do lado do historiador, 30 HISTÓRIA, VERDADE E TESTEMUNHO: OS LIMITES DA REPRESENTAÇÃO E A NARRATIVA DAS VÍTIMAS SOBRE PERÍODOS DE OPRESSÃO passou-se a exigir que extraísse unidade e sentido da história, valendo-se, para tanto, de teorias, fundamentações e hipóteses (KOSELLECK, 2006, 248). Ou seja, para conferir sentido à confusa realidade histórica, opaca e não raro contraditória, o historiador se viu impelido a usar de recursos fictícios. Este movimento em direção à imaginação histórica coloca em questão a própria possibilidade de um conhecimento científico sobre a realidade. Vale lembrar que foi para combater o predomínio de uma história literária, afeiçoada à literatura e particularmente aos romances históricos, que a chamada escola metódica se destacou pela defesa da história como ciência. Grandes representantes dessa escola, em fins do século XIX, Langlois e Seignobos enfatizaram a importância do rigor metodológico no processo de conhecimento, visando demonstrar como se poderia fazer história cientificamente. Para tanto, os autores buscaram se distanciar das filosofias da história, marcar a diferença da história com relação a outras ciências sociais que tratavam com leis e regularidades e, ainda, separar a história do gênero literário (LANGLOIS; SEIGNOBOS, 1944, 5-14). Com todas as críticas a que foi submetida1, a escola metódica teve o mérito de contribuir significativamente para a consolidação da história como campo científico autônomo, para a profissionalização do historiador e para a crítica aos documentos, então inaugurada. Mas a relação entre história e literatura não ficou no passado. Para Koselleck, a mistura entre ficção e facticidade decorre de dois movimentos crescentes na modernidade: a estetização e a consciência histórica da necessidade da teoria e da impossibilidade de acessar o que de fato aconteceu. Seguindo Chaldenius, o passado não pode ser capturado por nenhuma representação, mas apenas reconstruído (KOSELLECK, 2006, 248). Mas foi, sobretudo, a percepção de um tempo genuinamente histórico que aproximou a res factae da res fictae ao inserir a força da perspectiva na análise histórica, que se torna condicionada ao tempo, na medida em que é sempre de novo rearticulada e remete a um passado que já desapareceu (KOSELLECK, 2006, 250)2. Este entrelaçamento entre história e ficção traz, como dito, fortes consequências do ponto de vista epistemológico e vai animar vivos debates ao longo das décadas de 80 e 90. Dois grandes protagonistas destes debates são Carlo Ginzburg e Hayden White, que assumem posicionamentos contrários. Em Meta-história, White procura elementos artísticos na historiografia realista oitocentista, analisando as obras de Michelet, Ranke, Tocqueville e Burckhardt (WHITE, 1995). Ressaltando o núcleo fabulatório presente em tais narrações, pretensamente científicas, White considera as obras analisadas como exemplos de “imaginação histórica”, recusando-lhes a pretensão de verdade. Nesse sentido, o fato de o discurso histórico se estruturar verbalmente como uma narrativa em prosa condicionaria não só a forma como também o conteúdo do que é dito. Com isso White busca “estabelecer os elementos inconfundivelmente poéticos presentes na historiografia e na filosofia da história em qualquer época que tenham sido postos em prática” (WHITE, 1995, 13). Em última análise, a leitura de White suprimi a diferença entre narração histórica e ficcional, retirando da história a possibilidade de conhecer a realidade. Contra esse relativismo epistemológico presente em White, Ginzburg vai defender que o reconhecimento da dimensão literária é compatível com o caráter científico da historiografia 1 A escola dos Annales, aderindo à crítica iniciada pelas ciências sociais a partir de François Simiand, ataca diversos supostos da escola metódica, como o insulamento da história como se fosse um campo que se sustentasse sozinho, o tratamento das fontes com uma pretensa neutralidade, a ênfase na história événementielle e o não reconhecimento da historicidade do próprio discurso histórico. A este respeito, vide (BLOCH, 2001). 2 A este respeito, nas palavras do autor: “O intervalo temporal força o historiador a fingir a realidade histórica, sem falar do ‘acontecer’ de alguma coisa. Ele está obrigado a servir-se basicamente dos meios linguísticos da ficção para apoderar-se de uma realidade cuja atualidade já desapareceu” (KOSELLECK, 2006, 251). ANAIS DO V CONGRESSO BRASILEIRO DE HISTÓRIA DO DIREITO 31 (GINZBURG, 1989, 194). Não há, para Ginzburg, no campo histórico, uma contraposição entre o verdadeiro e o inventado, de modo que o inventado ou imaginado historicamente viesse a impedir a cientificidade do discurso.3 A narração histórica trata, isso sim, da integração entre realidade e possibilidade, o que traz à tona o apelo de Montaigne aos “talvez”, “de certo modo” e “diz-se”. Ou seja, o que a historiografia não pode afirmar como verdadeiro, sustentado em provas, ela pode apresentar como verossímil, pautado em possibilidades, guardando a preocupação de distinguir aquilo que é narrado enquanto algo certo ou real daquilo que é induzido e é, portanto, conjectural (GINZBURG, 1989, 183)4. Esse caráter conjectural de parte do conhecimento indireto sobre o passado torna inevitável uma dose de plausível e provável, confirmando a limitação do conhecimento histórico que lida, de forma constante e inafastável, com o erro5. Mas o diálogo mantido com as fontes e o objetivo de buscar o real, seja narrando ou conjecturando, impedem que se confunda história com ficção. Para Ginzburg, portanto, White procura convergir as narrações literária e histórica “no plano da arte e não no da ciência” (GINZBURG, 1989, 194). Como consequência, White assume uma postura relativista que coloca em xeque a possibilidade cognitiva da historiografia. No entanto, ao reduzir a complexa operação historiográfica à ação do imaginário histórico, White ignora a possibilidade de se avaliar e questionar, a partir das provas, o grau de correspondência da narração com a realidade. Assim resume Ginzburg: Um controlo das pretensões à verdade inerentes às narrações historiográficas implicaria a discussão de problemas concretos ligados às fontes e às técnicas de investigação que cada historiador utilizou no seu trabalho. Quando se descuram estes elementos, como faz White, a historiografia identifica-se com um puro e simples documento ideológico. (GINZBURG, 1989, 195). A afirmação do princípio da realidade, ainda que entrelaçado com a ideologia e com a projeção de problemas do presente para o passado ao longo de todo o trabalho historiográfico, é indispensável nas investigações e reconstruções históricas de períodos de repressão. A se reduzir a história à imaginação ou mesmo à opinião dos autores, estar-se-ia abrindo espaço para teses revisionistas que intentam negar a ocorrência das atrocidades perpetradas pelos Estados sob regimes totalitários ou autoritários. Contra a ideia preconizada por White de que não há fatos, mas apenas metáforas, a capacidade cognitiva da história possibilita a rejeição de versões ou reconstruções do passado que não resistam a um controle filológico ou de provas mais rigoroso. Aqui se anuncia a importância do estatuto da prova na investigação histórica. O passado é tirano daqueles que o investigam, vai dizer Marc Bloch, na medida em que determina o que dele é-lhes dado conhecer (BLOCH, 2001, 75). Por isso o acesso ao passado é apenas 3 Segundo Henrique Espada Lima: “Ginzburg afirma com suas investigações o exato oposto daqueles que gostariam de diluir a história na literatura, abolindo de ambas qualquer relação com a realidade: ao contrário, ele reivindica que uma maior consciência da dimensão narrativa não implica uma atenuação das possibilidades cognitivas da historiografia, ao contrário, sua intensificação” (LIMA, 2007, 111). 4 É bastante enfática, nesse sentido, a citação que Ginzburg traz de Manzoni: “Faz parte da miséria do homem o não poder conhecer mais do que fragmentos daquilo que passou, mesmo no seu pequeno mundo; e faz parte da sua nobreza e da sua força o poder conjecturar para além daquilo que pode saber”, e continua: “a história abandona então a narrativa, mas para se ajustar, da única maneira possível, àquilo que é objeto da narrativa. Conjecturando ou narrando, tem sempre em mira o real: aí reside a sua unidade” (MANZONI apud GINZBURG, 1989, 197). 5 Estabelecendo a diferença do erro para o historiador e para o juiz, de um lado, Ginzburg fala de erros fecundos no trabalho histórico, que levam a pesquisa a se aprofundar e se imergir no contexto em que ocorrem os fatos ou eventos estudados. Já na perspectiva judiciária, o erro representa uma falha irremediável na prestação da justiça no caso concreto submetido a julgamento. 32 HISTÓRIA, VERDADE E TESTEMUNHO: OS LIMITES DA REPRESENTAÇÃO E A NARRATIVA DAS VÍTIMAS SOBRE PERÍODOS DE OPRESSÃO indireto, por meio dos fragmentos, vestígios e rastros deixados. No entanto, não obstante essa subordinação ao passado, o mesmo Bloch afirma que, no fim das contas, conseguimos saber dele muito mais do que ele julgara sensato nos dar a conhecer, e arremata: “é, pensando bem, uma grande revanche da inteligência sobre o dado” (BLOCH, 2001, 78). Uma das pistas encontradas quando se analisa um passado recente são as testemunhas que vivenciaram aquele período, agora objeto de estudo, com todas as dificuldades impostas à história contemporânea, que troca o distanciamento pela proximidade, apresenta um narrador diretamente implicado nos fatos ou nos seus efeitos e lida, não raro, com “passados presentes”. Passo, com isso, ao tópico seguinte, que versa sobre a contribuição dos testemunhos para a reconstrução de passados traumáticos referentes a períodos de repressão política. 2 Crítica e potencialidade do testemunho: o estatuto da prova na investigação histórica Principalmente a partir das experiências catastróficas do século XX, em que o homem praticou e foi submetido a um nível até então inimaginável de violência, passa-se a falar do compromisso da história não com a realidade, mas com o real, entendido como aquilo que não se diz e que resiste a toda representação. Assim ficaram marcadas as experiências traumáticas nos campos de concentração e centros de tortura: como inenarráveis, irrepresentáveis, inimagináveis. É a aporia de Auschwitz descrita por Agamben como “uma realidade que excede necessariamente os seus elementos factuais” (AGAMBEN, 2008, 20). Neste contexto, a verdade se desencontra dos fatos, e “a verdade inteira é muito mais trágica, ainda mais espantosa” (LEWENTAL apud AGAMBEN, 2008, 20). Diante desses limites da representação é que Adorno vai afirmar a “impossibilidade de se escrever poesia após Auschwitz”. Isso porque os conceitos de arte, estética ou beleza seriam incompatíveis com a barbárie do genocídio, com o terror do holocausto. Na medida em que se concede existir expressões artísticas do holocausto do povo judeu, a própria memória da Shoah estaria sendo transgredida ou violada porque não admitiria ser objeto de qualquer prazer estético (FAINGOLD, 2009). Por trás disso está a oposição de Adorno à transformação da cultura em objeto de consumo e, mais especificamente, à mercantilização da memória do holocausto, o que enseja sua manipulação ideológica e a distorção do real significado da experiência de horror que foi a Shoah, que acaba sendo minimizada, quando não banalizada. Sob tais considerações, os sobreviventes enfrentam o difícil “dilema entre o imperativo de testemunhar, de preservar a memória, ética e politicamente fundamentado, e o veto à representação do Holocausto, estetica e filosoficamente motivado” (KIRSCHBAUM, 2007)6. Mas seja pelo compromisso ético-político ou pela necessidade psicológica de falar7, o fato é que diversas memórias sobre o holocausto e os campos de concentração foram narradas e publicadas em diferentes intervalos temporais. Algumas memórias foram lançadas quase 6 Nesse mesmo sentido, (FAINGOLD, 2009): “À primeira vista, ambos os conceitos, poesia e Auschwitz, parecem excludentes. Se há poesia não há morte. Ou seja, proibir a arte e, ao mesmo tempo, perpetuar a memória são atitudes excludentes. A representação do Holocausto do povo judeu está enquadrada em dois conceitos paradoxais, sustentados por pilares irreconciliáveis: a obrigação de lembrar e a proibição de representar.” 7 Vale lembrar que o ato de contar a experiência traumática aos outros é sentido pelas vítimas como algo necessário para superar a violência e reestabelecer as pontes com o mundo e com os outros. Inclusive, Primo Levi descreve em É isto um homem? o sonho que tinha – e que depois descobriu ser partilhado por vários prisioneiros – em que retornava para casa e sentava-se à mesa com os seus, ansioso por contar o que havia acontecido, mas o interlocutor se levantava da mesa e saía, deixando o narrador sozinho e desesperado por ser ouvido. ANAIS DO V CONGRESSO BRASILEIRO DE HISTÓRIA DO DIREITO 33 imediatamente, como Primo Levi em É isto um homem?, outras demoraram quase meio século para sair, como as de Ruth Klüger em Paisagens da Memória. Estes dois exemplos são também representativos do fenômeno de literalização do trauma, ao qual se opunha Adorno, mas pelo qual o recurso à arte e à literatura se tornou recorrente como forma de expor aquilo que a narrativa convencional não alcançava, o que remonta às relações história x ficção e história x linguagem já mencionadas. Na contramarcha da afirmativa de Adorno, também Agamben vai convocar a discussão e o enfrentamento desses períodos sombrios, sustentando que o silêncio poderia surtir o efeito perverso de dar apoio às teses revisionistas. Nas palavras do autor: Dizer que Auschwitz é “indizível” ou “incompreensível” equivale a euphamein, a adorá-lo em silêncio, como se faz com um deus; portanto, independente das intenções que alguém tenha, contribuir para a sua glória. Nós, pelo contrário, “não nos envergonhamos de manter fixo o olhar no inenarrável”. Mesmo ao preço de descobrirmos que aquilo que o mal sabe de si, encontramo-lo facilmente também em nós. (AGAMBEN, 2008, 42) Em todo caso, é indiscutível a dificuldade ou mesmo impossibilidade com a qual as vítimas se debatem para narrar os acontecimentos traumáticos e contar o inimaginável. Mas ainda assim elas narram, e ainda assim o relato é considerado verdade. Por questões até mesmo éticas ou morais, não se questiona o conteúdo do que é dito pelas vítimas, não se desconfia da veracidade do seu relato. No entanto, para além do campo da memória, ou mesmo do campo jurídico, já que as vítimas foram muitas vezes testemunhas em julgamentos contra agentes repressivos, há que se perguntar qual o papel que esses testemunhos exercem na construção da narrativa histórica, estejam eles na forma literária, como depoimentos dados em tribunais ou coletados em entrevistas. Beatriz Sarlo demonstra uma postura crítica relativamente ao aproveitamento dos relatos testemunhais das vítimas de repressão pela disciplina histórica, e a primeira consideração que opõe é justamente o status de verdade que a narrativa testemunhal ostenta e que, para Sarlo, seria aceitável enquanto utilizada nos julgamentos, servindo aos princípios de reparação e justiça, mas não poderia ser transposta para o campo histórico, que não se coaduna com uma espécie de fonte protegida por uma “blindagem interpretativa” (SARLO, 2009, 46-48). Para a autora argentina, as prerrogativas de confiança e intangibilidade dos testemunhos das vítimas deveriam se restringir à esfera dos julgamentos, pois, na medida em que se aciona a disciplina histórica, não há e não pode haver uma fonte imune à crítica. Com efeito, não se deve assumir as narrações dos sobreviventes automaticamente como “verdades históricas” e nem é essa a contribuição que se espera dos testemunhos para a história. Segundo Kirschbaum (2007), “é inegável que a distância temporal borra os contornos dos eventos, se não os próprios eventos; em princípio, isso não tem maior importância, uma vez que estamos, os leitores, não em busca da verdade dos fatos, mas da verdade das vivências”. Ou seja, os testemunhos fornecem algo para além dos fatos, e os fatos – muitas vezes suficientemente conhecidos por outras fontes – não dão conta daquela experiência histórica em sua plenitude. Portanto, o valor do testemunho de vítimas da repressão é menos a verdade que carrega do que a própria vivência partilhada que, com todos os particularismos e efeitos do tempo, contribui para se representar uma imagem mais completa desses eventos traumáticos. Corroborando essa ideia: Diante do realismo das imagens explícitas, a testemunha da Shoah, mais do que representar, evoca um momento. Fazendo oposição à dramatização dos fatos, a testemunha aparece como se estivesse participando de um encontro com suas pegadas, sua resistência e seu presente. (...) O depoimento do sobrevivente se situa no meio do caminho entre a história e a literatura, entre a memória e a arte. Essa 34 HISTÓRIA, VERDADE E TESTEMUNHO: OS LIMITES DA REPRESENTAÇÃO E A NARRATIVA DAS VÍTIMAS SOBRE PERÍODOS DE OPRESSÃO ambivalência entre objetividade e expressividade, entre literal e poético, constitui a força para se tentar compreender a realidade do Holocausto. (FAINGOLD, 2009) Nada obstante, Sarlo chama atenção para outras características da retórica testemunhal que a afastariam ou até incompatibilizariam com a disciplina histórica. Se o testemunho, enquanto discurso em primeira pessoa, pretende narrar o que aconteceu, apoiando-se para isso na memória e na subjetividade, a história, por seu turno, dedica-se a explicar e compreender (SARLO, 2009, 49). Daí afirmar que o relato individual não pode ocupar o lugar da análise. Aceita a ponderação, ela não impede, entretanto, a utlização dos testemunhos como fonte de provas e possibilidades para a investigação histórica. Inclusive, o próprio Primo Levi vai dizer: “ter estado implicado pessoalmente não me oferece elementos de explicação; posso proporcionar dados, mas razões não” (apud FERNÁNDEZ, 2008, 66). Isso reafirma a ideia de que não se espera dos testemunhos que contenham a verdade nem que ofereçam explicações bem amarradas do que aconteceu. Ao contrário, como vai dizer Kirschbaum (2007), apoiado nas memórias de Klüger, “as vivências, em sua forma bruta, não explicam o que aconteceu; pelo contrário, podem levar à perda da razão”; o que não quer dizer, em absoluto, que percam importância por isso. Afora este limite às pretensões da narração testemunhal, Sarlo sublinha que o testemunho se estrutura num modo realista-romântico que estabelece de antemão um sentido teleológico à narrativa, à qual se acomodam a profusão de detalhes incluídos no relato. O discurso testemunhal se ancora no particular e concreto, girando em torno do indivíduo e sua experiência, contrapondo-se em tudo à preocupação da disciplina história com o específico, que não corresponde a um “simples detalhe verossímil”, mas sim a um “traço significativo” “que pode compor a intriga” (SARLO, 2009, 51). Nessa perspectiva, embora Beatriz Sarlo reconheça que “a verdade está no detalhe” (SARLO, 2009, 52), não parece enxergar contribuições efetivas a partir dos relatos testemunhais, que não poderiam passar de “fatos de memória” para “interpretação da história” sem se submeterem à crítica e à interpretação. Neste ponto, é de se indagar se os testemunhos oferecem, junto ou por meio das vivências das vítimas, elementos para a construção do saber histórico sobre essas experiências traumáticas, o que Sarlo enxerga com ceticismo, ou mesmo descrédito. Se, por um lado, as vivências narradas permitem-nos aprofundar no que foi a experiência de proximidade com a morte, as relações entre os prisioneiros e entre vítima-carrasco, por exemplo, por outro lado, coloca-se em questão até que ponto um relato concreto, particular e pormenorizado, como enfatiza Beatriz Sarlo, também dá margem a uma análise histórica, contribuindo para a reconstrução do passado traumático. Em primeiro lugar, reitera-se que os relatos testemunhais não devem se inserir no domínio da história como verdades inquestionáveis, nem podem ser tomados como se exprimissem a realidade. Vale lembrar a afirmação de Croce de que “O homem que age é um fato. E o homem que conta é outro fato. [...] Todo depoimento dá testemunho apenas de si mesmo, do seu momento, da sua origem, do seu fim, e de nada mais” (apud GINZBURG, 2007, 272). Assim, o fato de os testemunhos serem afetados pelo passar do tempo, pelas lembranças alheias, pela visão parcial ou pelos acontecimentos posteriores não os desautorizam naquilo que exprimem em si, nem impedem que eles conservem fragmentos e rastros que auxiliem na reconstrução do passado. Mas é certo que, tomado como fonte histórica, uma crítica do testemunho é necessária e pode se valer de diferentes artifícios, como contrastá-lo com outros testemunhos e com outras fontes, a fim de constatar erros ou mentiras; requerer sua reiteração após certo intervalo de tempo para identificar o que ficou marcado mais fortemente e o que se transformou no relato; distinguir depoimentos voluntários e involuntários, atentando ao que se narra de forma ANAIS DO V CONGRESSO BRASILEIRO DE HISTÓRIA DO DIREITO 35 espontânea, às vezes até inconsciente; dentre outros (RICŒUR, 2008, 173-174; PROST, 2008, 59; BLOCH, 2001, 92; POLLAK, 1992, 206; CATROGA, 2001, 45). A este respeito, Michael Pollak desenvolveu um trabalho importante sobre o uso e a credibilidade da história oral e chegou a resultados no mínimo interessantes sobre os desvios das memórias e relatos dos que viveram ou foram afetados por certos acontecimentos com relação aos dados objetivos da história (POLLAK, 1992). Em segundo lugar, com relação ao caráter individual e concreto dos relatos testemunhais que, para Sarlo, os distancia de uma preocupação genuinamente histórica, recorro ao paradigma indiciário trabalhado por Carlo Ginzburg para demonstrar como, a partir de testemunhos de experiências particulares, é possível a compreensão de fenômenos mais amplos, e como, a paritr de detalhes narrados pelas vítimas, aparentemente banais ou sem maior importância, é possível se extrair uma realidade mais profunda. O paradigma indiciário aparece como um método que, ao invés de olhar para o todo e visar uma sistematização generalizante, se volta para o individual e para o que, à primeira vista, seria uma particularidade insignificante, na busca de uma chave explicativa mais útil. Ginzburg expõe como esse método passa do campo artístico, com Morelli, que o empregava na atribuição de obras de arte, para as técnicas indutivas de investigação dos romances policiais de Sherlock Holmes, chegando na psicanálise médica em Freud e na medicina semiótica (GINZBURG, 1989). Nesse percurso, alcançará as ciências humanas e a história, em particular. Duas ideias centrais estão na base do paradigma indiciário: o reconhecimento de que a realidade não é acessível ou experimentável diretamente e a proposta de que o conhecimento dela deve ser travado a partir das pistas, rastros e fragmentos encontrados. Parte-se do pressuposto de que “quando as causas não são reproduzíveis, só resta inferi-las a partir dos efeitos” (GINZBURG, 1989, 169). E a investigação desses efeitos ou sintomas demonstra que alguns indícios mínimos são reveladores de fenômenos mais gerais. A própria psicanálise, diz Ginzburg, se constitui “em torno da hipótese de que pormenores aparentemente negligenciáveis pudessem revelar fenômenos profundos de notável alcance” (GINZBURG, 1989, 178). Dentro dessa perspectiva, os testemunhos das vítimas ganham um novo espaço na análise histórica, na medida em que, o que antes era considerado um detalhe secundário ou uma minúcia desimportante, agora merece uma atenção mais detida porque pode indicar uma realidade mais ampla, como a visão de mundo das vítimas e sua interpretação dos fatos (que extrapola os fatos em si). Assim, o relato de uma experiência individual, afetado pelo efeito corrosivo do tempo e impregnado de outras lembranças, pode servir ao trabalho histórico naquilo que contém de mais marginal e periférico, pois são as pistas, talvez infinitesimais, que vão permitir captar de forma mais profunda o que aconteceu. O mundo das vítimas em suas particularidades também é de interesse da micro-história, que reduz a escala de observação para enfocar fenômenos de alcance mais restrito que, à primeira vista, poderiam não corresponder à condição de um “traço significativo” que possa “compor a intriga”, como afirmado por Beatriz Sarlo. A partir dos relatos, é possível analisar, por exemplo, em que medida as experiências das vítimas correm paralelamente às estruturas mais amplas dos aparelhos de repressão, e em que medida elas se encontram. Não se trata de analisar fragmentos isolados, desconectados do contexto, mas antes, como assinala Ginzburg, a dificuldade e riqueza da micro-história está em reconhecer que “a realidade é fundamentalmente descontínua e heterogênea” (GINZBURG, 2007, 269) e que “não se podem transferir automaticamente para um âmbito macroscópio os resultados num âmbito microscópio (e vice-versa)” (GINZBURG, 2007, 277). Com isso, os testemunhos das vítimas 36 HISTÓRIA, VERDADE E TESTEMUNHO: OS LIMITES DA REPRESENTAÇÃO E A NARRATIVA DAS VÍTIMAS SOBRE PERÍODOS DE OPRESSÃO abrem novos horizontes de investigação que podem explorar novos nexos e relações causais, mais representativos da complexidade da realidade. Por fim, o testemunho das vítimas tem a prerrogativa específica de dar a palavra àqueles que, submetidos à repressão e à violência, tiveram suas vozes emudecidas por relatos e memórias oficiais que ocultaram ou ignoraram os episódios e experiências mais sombrias do passado traumático. A seguir, levanta-se a possibilidade do testemunho dessas vozes silenciadas servir à luta contra o esquecimento, partindo da relação entre história e memória. 3 O testemunho das vozes silenciadas: a relação entre história e memória O trabalho com o testemunho das vítimas desperta na história uma outra dimensão pela qual, sem negar, mas aliando-se à função cognitiva, ela assume o papel de redimir ou libertar o passado, ao dar voz aos que foram oprimidos e excluídos da narração. É uma tarefa, diz Jeanne-Marie Gagnebin, polêmica, controversa e constrangedora esta do historiador: ele deve lutar contra o esquecimento e a denegação (GAGNEBIN, 2006, 44). Por meio dos relatos das vítimas que sobreviveram, a história pode se abrir aos brancos e buracos, ao esquecido e ao recalcado, “para dizer, com hesitações, solavancos, incompletude, aquilo que ainda não teve direito nem à lembrança nem às palavras” (GAGNEBIN, 2006, 55). Benjamin vai dizer que “nada do que um dia aconteceu pode ser considerado perdido para a história” (BENJAMIN, 1994, 223). Encarna, nesse sentido, uma postura contra a reificação do passado, que deve manter-se aberto a reconstruções e às evocações da memória que desejam transformar o passado para acabar o que nele ficou inacabado. O anjo da história de Benjamin, narrado na célebre tese nona do ensaio Sobre o Conceito da História, encara com espanto e horror as ruínas que se amontoam sob seus pés enquanto ele segue em direção ao futuro, impelido por uma tempestade que nada mais é que o progresso (BENJAMIN, 1994, 226). Essas ruínas são constituídas pelos mortos e pelos fragmentos que ficaram para trás, e permanecem invisíveis aos olhos de narrativas que, preocupadas com o continuum da história, não hesitam em se omitir sobre seus próprios escombros e destroços. Essas narrativas apresentam a perspectiva dos vencedores e revelam o antigo privilégio que eles tinham de contar a história à revelia das vítimas, como explica Todorov: Se sabe que la Historia siempre ha sido escrita por los vencedores, pues el derecho de escribir la Historia era uno de los privilegios que concedía la victoria. Durante nuestro siglo se ha pedido, a menudo, que en vez de o, al menos, junto a esta historia de los vencedores, figure tambiém la de las víctimas, la de los sometidos, la de los vencidos. Esta exigencia es más que legítima en el plano estrictamente histórico, puesto que nos invita a conocer grandes jirones del pasado antes ignorado. (TODOROV, 2002, 171). Com relação a essa exlcusão das vítimas, Kirschbaum comenta a percepção de Ruth Klüger de como os que não viveram o pesadelo concentracionário tentam silenciar os sobreviventes e preservar depoimentos e monumentos devidamente esterilizados por um discurso hegemônico (KIRSCHBAUM, 2007). Aqui se coloca de forma insofismável o problema da apropriação da memória da Shoah, que se aplica a outras memórias traumáticas, em que se impõe a exclusão dos sobreviventes e a transformação dos campos em museus, lançando mão de comemorações e de abusos da memória, que subvertem e sujeitam essa mesma memória a manipulações ideológicas, usos estratégicos e instrumentais, como já havia advertido Adorno e como alertam os trabalhos de autores como Ricœur (2007) e Todorov (2002). A relação entre história e memória apresenta-se, portanto, com contornos imprecisos e consequências díspares conforme o uso/abuso da rememoração sirva ao propósito de resgatar ANAIS DO V CONGRESSO BRASILEIRO DE HISTÓRIA DO DIREITO 37 o que ficou esquecido no passado ou confirmar interpretações hegemônicas que passam ao largo da perspectiva dos que sofreram e foram excluídos. Para não cair no risco de confunfir memória e história, a despeito de reconhecer paralelismos entre elas8, importa fazer algumas distinções. A memória tem, de um modo geral, uma formação mais espontânea e emotiva, guiada por aspectos que se inscrevem de forma mais profunda na mentalidade de um grupo ou da sociedade, e que constituem parte da sua identidade coletiva (POLLAK, 1992, 204). Já a história se preocupa com a objetividade do relato, com a busca do real e com o preenchimento de lacunas e buracos, ainda que conviva com todas as fragilidades presentes no esforço de representação de um passado que desapareceu, como já abordado nos tópicos anteriores. Sob outra perspectiva, por um lado, a memória pode ser objeto de pesquisa do historiador que, tomando-a como fonte histórica ou como fenômeno histórico, pode trabalhar uma “história da memória” ou uma “história social da recordação” (FERNÁNDEZ, 2008, 49). Por outro lado, o historiador sofre pressões e influência da memória9 e, neste ponto, é importante garantir que a memória institucional compartilhe o espaço público com uma pluralidade de memórias sociais que podem entrar em competição direta com ela (FERNÁNDEZ, 2008, 58; POLLAK, 1992, 209). Nesse último sentido, o testemunho das vítimas serve para pressionar a história a incorporar o que foi ocultado, deixado de lado ou ignorado. Não significa que a narrativa histórica deva assimilar acriticamente os relatos das vítimas, mas abrir-se a versões diferentes que desafiam uma história oficial que sacraliza ou naturaliza o passado. O testemunho dos sobreviventes deve permitir uma leitura da história a contrapelo, que pretende reanimar o passado para cuidar das ruínas que nele se acumularam (BENJAMIN, 1994, 225). Enquadrase neste propósito a figura do narrador sucateiro pensada por Benjamin, que Gagnebin descreve como aquele que “não tem por alvo recolher os grandes feitos. Deve muito mais apanhar tudo aquilo que é deixado de lado como algo que não tem significação, algo que parece não ter importância nem sentido, algo com que a história oficial não sabe o que fazer” (GAGNEBIN, 2006, 54). Para além do que é deixado de lado, a narrativa das vítimas serve para desmistificar muitas interpretações oferecidas pela história oficial, pautada em mentiras cuidadosamente costuradas a fim de esconder os reais propósitos, métodos e amplitude da opressão. Embora se trate de episódios sombrios e odiosos da história de um país, uma sociedade, e da humanidade como um todo, a tarefa de lembrar serve para atuar no presente e evitar repetições no futuro. Catroga fala da importância de lembrarmos, muitas vezes, aquilo que queremos esquecer, e afirma, sobre o historiador: Ética e deontologicamente, ele não deve recusar partir à procura dos esqueletos nos armários da memória, apesar de saber que, ao fazê-lo, corre o risco de estar a ocultar, mesmo inconscientemente, alguns dos que transporta dentro de si. Apesar disso, a sua missão tem de ser análoga à do remembrancer, designação atribuída ao funcionário inglês que, nos finais da Idade Média, tinha a odiosa tarefa de ir, de aldeia em aldeia e nas vésperas do vencimento dos impostos, lembrar às pessoas aquilo que elas desejavam esquecer (CATROGA, 2001, 66). 8 Nesse sentido, (SILVA FILHO, 2010, 208-209): “a historiografia contemporânea se distancia do enfoque cientificista e se aproxima da memória, na medida em que ambas compartilham importantes características. Em primeiro lugar, as duas possuem pretensões veritativas, o que as diferencia da mera imaginação. Além disso, são seletivas e manipuláveis nas suas tentativas de representar o passado. Assim como a memória, a historiografia é filiada às tropas que combatem o esquecimento”. 9 Jacques Le Goff afirma, a este respeito, que “toda a evolução do mundo contemporâneo, sob pressão da história imediata em grande parte fabricada ao acaso e pela media, caminha na direção de um mundo acrescido de memórias coletivas e a história estaria, muito mais que antes ou recentemente, sob a pressão dessas memórias coletivas” (LE GOFF, 1990, 474). 38 HISTÓRIA, VERDADE E TESTEMUNHO: OS LIMITES DA REPRESENTAÇÃO E A NARRATIVA DAS VÍTIMAS SOBRE PERÍODOS DE OPRESSÃO Intenta-se, com isso, realizar o que Benjamin anunciou como um trabalho de solidariedade com relação aos que foram oprimidos, buscando saldar as dívidas com o passado. Em suas palavras, “só à humanidade redimida o passado pertence inteiramente” (BENJAMIN, 1994, 223). Essa libertação não pode prescindir da participação ativa dos que sofreram e que têm direito de ser ouvido, de fazer ecoar sua narração para não admitir que versões oficialescas privatizadas por determinados grupos escamoteiem o que aconteceu, abrandando a violência e a repressão, desvirtuando a resistência, distorcendo o projeto político subjacente aos regimes de força, criando tramas e causalidades que não existiram. E a história tem responsabilidade sobre a forma como vai absorver e interpretar esses relatos das vítimas que devem encontrar, acima de um sentimento de compaixão, que pode esconder um repúdio que conduz ao silenciamento e à exclusão, uma interlocução efetiva por parte dos que ouvem.10 4 Conclusão Ao final de períodos de opressão, com a normalização política e o retorno das garantias individuais, as demandas de uma justiça de transição emergem com exigências de verdade, justiça e reparação. A primeira dessas exigências foi o tema do presente trabalho, mas a própria possibilidade da verdade – que se assume histórica e incompleta, incapaz de alcançar o passado em si e de se reduzir a uma versão unilateral – depende de se afastar postulados pós-modernos que se apoiam em ceticismos e relativismos epistemológicos para dizer que não há verdade, não há conhecimento efetivo do passado que possa ser oferecido pela história; o que há são apenas metáforas, ficções, imaginação, invenção. Busquei defender, nessas breves reflexões, que a história não se confunde com o gênero literário porque ela se guia por um princípio de realidade que perpassa toda a pesquisa e permite que uma investigação histórica e sua crítica se encontrem no diálogo com as fontes. Não é possível que o historiador trabalhe apenas com fatos certos e determinados pautados em provas, mas ele deve lidar também com conjecturas, com possibilidades que lhe permitem emitir um juízo de verossimilhança sobre o que provavelmente aconteceu, não mais que isso. Esse limite ínsito à representação do passado que, pela própria semântica, consiste em tornar presente algo ausente, não significa, contudo, nenhum prejuízo à cientificidade ou ao compromisso da história com o real. A diluição da história na literatura se torna ainda mais perigosa quando se trata de períodos de opressão, marcados pela prática de atrocidades e das violações mais bárbaras contra a pessoa humana, atingindo níveis de violência, degradação e dessubjetivação nunca antes imaginados. É mais perigosa porque tende a equiparar quaisquer versões que se apresentem sobre os fatos, podendo dar acolhida a teses revisionistas e negacionistas que se manifestam em diferentes níveis ou graus. A capacidade cognitiva da história é essencial, portanto, para se desconstruir narrativas que criam verdadeiros mitos e caricaturas sobre esses passados traumáticos, sem nenhum respeito à memória política, muito menos à memória das vítimas. E a contribuição das vítimas, justamente, com seus testemunhos, foi outra parte central desse artigo. Pretendi demonstrar como os relatos testemunhais constituem uma fonte rica a ser explorada pelo historiador. Antes disso, no entanto, a elaboração dos relatos das vítimas se esbarra novamente em um limite da representação e religa outra vez história e literatura. 10 Ruth Klüger fala dessa angústia por que passam os sobreviventes: “Mas as pessoas não querem ouvir, ou somente o fazem com uma certa pose, uma certa atitude, não como interlocutoras e sim como pessoas que se submetem a uma tarefa desagradável, em uma espécie de reverência que facilmente se transforma em repugnância, duas sensações que em todo caso se complementam. Pois tanto o objeto da reverência, como o da repugnância, é sempre mantido a distância”. (KLÜGER, 2005, 102). ANAIS DO V CONGRESSO BRASILEIRO DE HISTÓRIA DO DIREITO 39 Muitas das experiências traumáticas são inalcançáveis pela linguagem; talvez só o silêncio as possa expressar. Não obstante, as vítimas sentem-se impelidas em repartir suas memórias, seja em nome de um dever ético e político, seja em razão de uma necessidade psíquica de falar. Neste ato de memória, elas recorrem com certa frequência a recursos literários, embora alguns defendam que apenas o silêncio pode dar conta do que não se pode dizer ou que as memórias traumáticas deveriam ser reconstituídas apenas por meio dos discursos de sobriedade, utilizando fotografias reais e palavras em sentido literal, ao invés de pintura, arte e poesia, para narrar o que aconteceu. Voltando às manifestações das vítimas, elas se apresentam sob diferentes formatos, mas sempre como atos de fala e, enquanto tais, tem seu lugar no estudo da história. Assim, abertas as falas das vítimas, seu testemunho pode servir à história enquanto fonte das vivências daqueles que sofreram a repressão, mas também como fonte de detalhes e minúcias, aparentemente marginais e sem importância, mas que são potencialmente reveladores de realidades mais amplas e profundas, como trabalhado pelo paradigma indiciário e pelos estudos da micro-história. Desse modo, encarado como aquilo que é em si mesmo, o testemunho das vítimas pode auxiliar na reconstrução dos períodos de opressão. Finalmente, para além dessas possibilidades de investigação, as narrativas testemunhais têm a prerrogativa de possibilitar ao historiador o acesso – sempre indireto – às ruínas do passado sobre as quais o presente se ergueu. Num gesto de solidaridade com os oprimidos e excluídos que se perderam nessas ruínas, a história tem o papel, controvertido porque adentra no âmbito cívico e político, de impedir o esquecimento (que não raro incide sobre o que, de fato, não se quer lembrar). Este papel é sintoma (ou causa) de uma aproximação entre história e memória: de um lado, a história pode ser instrumentalizada por abusos da memória, por outro, a história pode ser oxigenada por exercícios de memória, como os que fazem as vítimas. Neste caso, é importante se explorar os depoimentos das vítimas, valendo-se da devida crítica do testemunho, a fim de desconstruir as mentiras criadas e sustentadas pelos discursos hegemônicos. Entrecruzaram-se, no presente trabalho, problemas de ordem teórico-metodológica, ética, estética, política e moral. Não há como, efetivamente, uma ciência que trata do passado, dos homens e do tempo, fugir de questionamentos complexos que ativam debates não menos complicados porque concernem a nossa maneira de agir, de lidar com o outro, com o passado, e de usá-lo no presente. Não se pode esperar da história que supere seus limites de representação, que se esbarram na própria irreversibilidade do tempo e no passado desaparecido; mas não se deve, tampouco, subestimar sua força de transformação do presente e de abertura para novos futuros. Bibliografia AGAMBEN, Giorgio. O que resta de Auschwitz. São Paulo: Boitempo, 2008. BORGES, Jorge Luis. O Fazedor. São Paulo: Companhia das Letras, 2008. BENJAMIN, Walter. Magia e técnica, arte e política: ensaios sobre literatura e história da cultura. 7ª ed. São Paulo: Brasiliense, 1994. – (Obras escolhidas; v. 1) BLOCH, Marc Leopold Benjamin. Apologia da história, ou, O ofício de historiador. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Ed., 2001. CATROGA, Fernando. Memória, História e Historiografia. Coimbra: Quarteto Editora, 2001. 40 HISTÓRIA, VERDADE E TESTEMUNHO: OS LIMITES DA REPRESENTAÇÃO E A NARRATIVA DAS VÍTIMAS SOBRE PERÍODOS DE OPRESSÃO FAINGOLD, Reuven. O Holocausto nas artes: os limites da representação. In: Arquivo Maaravi: Revista Digital de Estudos Judaicos da UFMG, Volume 1, n. 5 – outubro, 2009 FERNÁNDEZ, Paloma Aguilar. Políticas de la Memoria y Memoria de la Política. Madrid: Alianza Editorial, 2008. GAGNEBIN, Jeanne Marie. Lembrar Escrever Esquecer. São Paulo: Editora 34, 2006. GINZBURG, Carlo. Micro-história: duas ou três coisas que sei a respeito. In: O Fio e os Rastros: verdadeiro, falso, fictício. São Paulo: Companhia das Letras, 2007. GINZBURG, Carlo. Provas e possibilidades à margem de “Il ritorno de Martin Guerre”, de Natalie Zemon Davis. In: GINZBURG, Carlo et al. A micro-história e outros ensaios. Rio de janeiro: Bertrand Brasil, 1991. GINZBURG, Carlo. Sinais: raízes de um paradigma indiciário. 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Brasília: Ministério da Justiça, Comissão da Anistia, 2010. ANAIS DO V CONGRESSO BRASILEIRO DE HISTÓRIA DO DIREITO 41 TODOROV, Tzvetan. Memoria del Mal, Tentación del Bien: indagación sobre el siglo XX. Barcelona: Ediciones Península, 2002. WHITE, Hayden. Meta-história: a imaginação histórica do século XIX. 2ª ed. São Paulo: Editora da Universidade de São Paulo, 1995. 42 A MODERNIDADE JURÍDICA E O JUSNATURALISMO MODERNO:A SUPERAÇÃO DA EXPERIÊNCIA MEDIEVAL E A CONSTITUIÇÃO DE UM NOVO PARADIGMA A MODERNIDADE JURÍDICA E O JUSNATURALISMO MODERNO: A SUPERAÇÃO DA EXPERIÊNCIA MEDIEVAL E A CONSTITUIÇÃO DE UM NOVO PARADIGMA LEGAL MODERNITY AND MODERN NATURAL LAW: THE OVERCOMING OF MEDIEVAL EXPERIENCE AND THE CONSTITUTION OF A NEW PARADIGM Felipe de Faria Ramos* Resumo: O presente artigo tem por objetivo indicar a relação da doutrina contratualista – aqui visceralmente ligada ao jusnaturalismo moderno – com o processo de centralização do Estado durante a Idade Moderna, apontando que tal movimento, fungível do ponto de vista político, é um dos primeiros passos para, na penosa superação do direito plural característico do medievo, a constituição de um direito objetivo e racionalizado, advindo completa e soberanamente da entidade estatal. Palavras-Chave: História do Direito. Contratualismo. Direito Natural. Centralização Política. Ordem Jurídica Medieval. Modernidade. Abstract: This article aims to indicate the relation of Contractualist theory – this doctrine is intrinsically connected to the modern Natural Law – with process of centralization of the state during Modernity. Then, here we point out that movement, fungible in political terms, contributed to - considering the painful overcoming of plural Law, typical in Middle Ages - the establishment of a streamlined and objective Law, that arises from the state entity, completely and sovereignly. Keywords: Legal History. Contractualism. Natural Law. Political Centralization. Medieval Legal Order. Modernity. * Mestre em Direito (PPGD-UFSC), pesquisador do grupo de pesquisa História da Cultura Jurídica (CNPq/UFSC). ANAIS DO V CONGRESSO BRASILEIRO DE HISTÓRIA DO DIREITO 43 Introdução A chamada Idade Moderna – período compreendido, linhas gerais, entre o século XV e XVIIII – é visto como entretanto em que, no campo político, o Estado toma efetivo corpo, vindo a desenvolver-se e centralizar-se numa espiral ascendente. Consequência desse processo é a figura do Estado Moderno, construção teórica que, num primeiro momento, se relaciona com o absolutismo monárquico, em que a figura do rei toma para si o poder político, enfeixando em suas mãos tarefas que, reflexo direto do que se hodiernamente entende por soberania, variavam entre o comando do exército, a distribuição de justiça, o decreto da legislação, a arrecadação de tributos etc. O presente artigo tem por fim indicar que esse caráter absoluto com que é desenhada a figura estatal da época – nas oscilações que encontrou segundo variações de tempo e lugar durante aqueles três séculos – não tem arrimo, no exagero com que inadvertidamente é talhado, nas fontes históricas. Mais do que isso: tencionam estas linhas apontar, diante de um quadro sociopolítico desfavorável à penetração do ente estatal, para o papel da doutrina contratualista nesse esforço levado a efeito pelo grande Leviatã para efetivamente fazer-se presente na realidade políticosocial da época, para a qual ele era figura absolutamente estranha, excêntrica mesmo para os padrões então vigentes. Assim, quer este trabalho enxergar na doutrina específica de Hobbes e Locke – verificação perfeitamente transponível para autores contratualistas como Grotius, Puffendorf ou Rousseau (evidentemente que, em cada um deles, em maior menor medida) - certa “estratégia política” (acentuada, aqui, em seu teor) que acaba por justificar teoricamente a figura do Estado perante a longa tradição medievalista que em nada lhe era favorável, processo este que mais tarde haverá de possibilitar a constituição de um direito embasado somente na vontade legislativa estatal, verdadeiro traço central da Modernidade Jurídica. Se, num campo mais estrito, o intento deste pequeno trabalho desenha-se pontual (revelar como o discurso da doutrina contratualista serviu historicamente às pretensões do Leviatã no seu movimento de consolidação durante a Idade Moderna), vistas em maior escala, estas páginas pretendem alinhar-se com determinada postura epistemológica que, desconfiada da neutralidade dos conceitos, visa a mostrar o papel político por eles desempenhado, indicando ainda como as interpretações que são feitas de tal ou qual teoria, longe da imparcialidade, têm, sim, direta relação com os interesses postos em jogo no conflito político social. 2. Desenvolvimento 2.1 O Jusnaturalismo Moderno e a Varredura da Ordem Jurídica Medieval O processo de centralização do poder ocorrido durante a Idade Moderna1, somente quando encarado de forma idealizada, pode ser enxergado como uma tarefa de fácil execução. 1 Processo este do qual a Revolução Francesa, longe de ser uma ruptura, representa verdadeiro apogeu: “A própria centralização foi o sinal e o começo da revolução. E acrescentaria ainda que, quando um povo destruiu a aristocracia, ele persegue, por si próprio, a centralização. Nessas circunstâncias, é preciso muito menos esforço para precipitá-lo sobre este plano inclinado que para impedi-lo de cair. Em seu seio, todos os poderes tendem naturalmente para uma unidade e só com muita habilidade se pode mantê-lo divididos. A revolução democrática embora destruísse tantas instituições do antigo regime, deveria, deste modo, consolidar a centralização, pois esta encontrava seu lugar de modo tão natural na sociedade que a revolução havia criado que se poderia tomá-la facilmente como uma de suas obras”. (TOCQUEVILLE. Alexis de. O Antigo Regime e a Revolução. Coleção 44 A MODERNIDADE JURÍDICA E O JUSNATURALISMO MODERNO:A SUPERAÇÃO DA EXPERIÊNCIA MEDIEVAL E A CONSTITUIÇÃO DE UM NOVO PARADIGMA Não é todo desarrazoado dizer que o quadro social e político legado pela Idade Média – que vai perdurar na Europa, segundo variações geográficas, até o século XVIII2 – em nada colaborava com as pretensões de um Estado que se pretendia absoluto e supremo perante o quadro social de então. O primeiro dado que merece menção é a precariedade do aparelho institucional com que, naquela época, contava a entidade estatal. A imprensa ainda incipiente3, a grande distância entre a corte e as províncias (sobretudo as ultramarinas), a falta de representantes do soberano nas localidades4, e a própria ausência de um aporte financeiro apto a respaldar o fortalecimento estatal, tudo isso fazia do rei alguém distante, de limitado poderio frente a instituições que, tradicionais, tinham seu vigor embasado no longo costume advindo do medievo. A pluralidade de ordenamentos espraiados por toda a Europa de então5 – consequência, também ela, da tradição medieval – fazia por atrapalhar o direito pretensamente posto pelo rei através das nada sistemáticas ordenações. De fato, a precariedade dessa forma de legislar (de duvidosa capilaridade) via-se ladeada pelo Direito Romano6, vicejante por toda a Europa através do movimento da Os pensadores. Seleção de textos de Francisco C. Weffort. trad. Leônidas de Gontijo de Carvalho et al. 2. ed. São Paulo: Abril Cultural. 1979. p. 342/343, grifo nosso). 2 É o caso de países da Península Ibérica, em que, por força da tradição da Igreja Católica (refratária aos ideais liberais), tardou a chegar o pensamento fundante dos movimentos revolucionários que invadiram Inglaterra e França durante os séculos XVII/XVIII. Nesse sentido, admoestação de PEREZ VALIENTE endereçada a acadêmico de Valência em 1749: “Tambíen tú debes conmoverte y destruir esa falsa opinión publicando tus libros, cuyo estilo es tan elegante y adaptado a las reglas de la verdadera latinidad, que me parece Haber leído los escritos de Ciceron sobre las leyes. Enriquecidos de ellos, nuestros españoles no tienen por qué envidiar su Gravina a los italianos y su Hugon a los franceses. No hablo de Pudendorf y Hobbes, que escribieron de derecho natural y de gentes no para enqirquecimiento de la relublica, sino para su perturbación e subversion, ni de quien há escrito em estos últimos años um libro titulado De l’esprit d´lois (El Espíritu da Las Leyes), del que no se te oculta cuáles y cuan grandes errores lo llenan y que, buscado com avidez e aplauso, podrá penetar em nuestras fronteras no sin detrimento de nuestros costumbres” (PÉREZ VALIENTE. Pedro José. Derecho Público Hispânico. Madrid: CEC, 2000. p. 38). 3 LADURIE, não é à toa, vai indicar a forma por que a mídia, à época escrita, teve papel importante nas atividades de que se valeu a Monarquia no processo de penetração social: “As novas mídias sustentam a difusão de um saber universitário, colegial e mesmo primário; ele é indispensável para a formação dos funcionários da categoria; e para a dos agentes modestos, às ordens do Estado ou das comunidades. O número desses homens, nos mais diversos níveis, vai aumentar. [...] Certas necessidades são irredutíveis: a realeza, do século XVI ao XVIII, faz amplo uso do pequeno cartaz com inúmeros exemplares, da circular e do formulário administrativo, os três saídos das prensas e das oficinas. Não há função pública, sobretudo real, que não tenha seus inoressores, oficiais ou oficiosos”. (LADURIE. Emmanuel Le Roi. O Estado Monárquico. São Paulo: Companhia das Letras, 1994. p. 35/36). 4 “Por certo, esse monarca e mesmo seus sucessores ou subordinados tiveram a pretensão, por momentos, à onipotência. Mas, apesar do culto da personalidade que cerca os soberanos e compensa de fato as reais fraquezas de seu poder, a monarquia clássica permanece objetiva e subjetivamente descentralizada, em todo o caso nitidamente menos centralizada que os sistemas políticos que a lesa sucederão no século XIX” (ibid, p. 16). 5 Quanto ao conceito de Pluralismo Jurídico, consulte-se: HESPANHA. Antônio Manuel. Cultura Jurídica Européia: Síntese de um Milênio. Florianópolis: Fundação Boiteux, 2005, p. 161. Em pormenor, já agora numa analise pormenorizada da Ordem jurídica medieval: GROSSI. Paolo. El Orden Jurídico Medieval. trad. Francisco Tomás y Valiente y Clara Álvarez. Madrid: Marcial Pons, 1996, p. 50/58 6 Na experiência portuguesa, observe-se trecho da Lei de 18 de agosto de 1769, lei da Boa Razão surgida na Era Pombalina, em que se bradava contra a tradição romanística ainda vicejante: “mando que as glossas, e opiniões dos sobreditos Accursio, e Bartholo não possão mais ser alegadas em juízo, nem seguidas na prática dos julgadores; e que antes muito pelo contrário em hum, e outro caso, sejam sempre as boas razões acima declaradas [...referia-se antes que seguindo somente meus tribunais e magistrados seculares nas materias temporaes e de sua competencia as leis pátrias, e subsidiarias, e os louváveis costumes e estylos legitimamente estabelecidos, na forma que por esta lei tenho determinado...], e não as auctoridades daquelles, ou de outros ANAIS DO V CONGRESSO BRASILEIRO DE HISTÓRIA DO DIREITO 45 Recepção,7 pela força do Direito Canônico e principalmente por um vigoroso direito consuetudinário local – iura propria8 - que dava suporte às ordens locais. Em seus rigores, essas últimas, embasadas na tradição feudal, mantinham de pé os privilégios estamentais sempre avessos ao reconhecimento de uma normatização alienígena, descompassada com aquilo que, então, era entendido por Direito. Aliás, a própria concepção de Direito então vigente em nada colaborava com o programa de instalação da entidade estatal. É que, longe de ser expediente de modificação do status quo, o Direito, como legado pela Idade Média, é entendido como reflexo de uma ordem natural predeterminada9, como algo que deve espelhar o que já está disposto naturalmente no campo social. O dever-ser, em termos mais atuais, devia então identificar-se com o ser, de forma que a atuação do Direito, sempre pontual, teria de limitar-se aos casos em que, por alguma razão, aquela ordem predeterminada fosse acintosamente desobedecida. Assim – identificando o direito com uma natureza manifestada pelo social –, a concepção medieval de direito reservava-lhe aplicação para os casos de desordem, de ameaça àquela ordenação preestabelecia. Direito bom, então, era sinônimo de direito tradicional, cabendo ao rei medieval o papel do juiz conservador da ordem jurídica advinda de uma sociedade regrada natural e espontaneamente (HESPANHA, 2005, p. 162). Tal concepção do Direito – que, prolongando-se, ultrapassa a Idade Média – fazia por barrar as pretensões de um ente que, trazendo consigo propostas absolutamente inovadoras, ainda não tinha aporte na tradição, nem naquilo que, entendido como estabelecido espontaneamente de forma natural, grassava do bojo social. Por fim, vale citar ainda que o próprio direito do Estado – e suas concepções – não tinha espaço nas academias de então. Vale dizer, a formação dos juristas da época era calcada não na legislação emitida pelo soberano, mas nas antigas fontes romanas – tidas por universalmente aplicáveis. Intuitivo, pois, que a prática levada a efeito por aqueles de formação jurídica resistisse à aplicação das ordenações que, somente mais tarde, tiveram vez nos currículos das universidades de direito10. semelhantes doutores da mesma escola, as que hajão de decidir no foro dos casos ocorrentes...”. (Ordenações Filipinas, 663,65 - III, LXIV) 7 Interessante perceber, por outro lado, como o próprio Direito Romano, em passagens sobretudo advindas do império, também foi utilizado pelos teóricos da soberania – defensores de um estado absolutista – como expediente legitimador da uma monarquia onde o rei seria a lei viva, ou na qual o rei estaria acima/fora da lei. 8 Confira-se, igualmente, outro excerto da mesma Lei da Boa Razão, agora contra o costume: “e reprovando como dolosa a supposição notoriamente falsa de que os Principes Soberanos são ou podem ser sempre informados de tudo que passa nos foros contenciosos em que transgressão das suas leis, para com esta supposição se pretextar a outra igualmente errada, que se presume pelo lapso do tempo o consentimento, e approvação, que nunca se estendem ao que se ignora; senod muito mais natural a presumpção, de que os sobreditos Príncipes castigarão antes os transgressores das suas leis, se houvessem sido informados das transgressões dellas nos casos ocorrentes” (Ordenações Filipinas, 663,65 - III, LXIV). 9 Nesse sentido, nos aconselhamentos ao príncipe quanto ao modo por que se deve governar, SAAVREDA FAJARDO, após indicar que a multiplicidade das leis é muito danosa à República e que a complacência seria uma qualidade do monarca diante do castigo a ser imposto ao súdito, lecionara: “se pudieran remediar los dos excesos dichos: el primero, el de tantos libros de jurisprudencia como entran em España, prohibiéndolos; porque ya más son para sacar el dinero que para enseñar, habiéndose hecho trato y mercancís ls imprenta. Com ellos se confunden los ingenios, y queda embarazado y dudoso el judicio. Menores daños nascerán de que cuando faltan leyes escritas com que decidir alguna causa, sea ley viva la razon natural, que buscar la justicia em la confusa noche de las opiniones de los doctores , que hacen por la uma y outra parte , com que es arbitraria y se da lugar al soborno y a la pasion” (SAAVREDA FAJARDO. Diego de. Empresas Políticas. Barcelona: Planeta. 1988. p. 145). 10 “De certo modo, o currículo universitário e o apego às fontes tradicionais tenderiam até a desprestigiar, na prática jurídica e na doutrina, os direitos não letrados, as normas de “polícia” urbana e mesmo o direito legislado 46 A MODERNIDADE JURÍDICA E O JUSNATURALISMO MODERNO:A SUPERAÇÃO DA EXPERIÊNCIA MEDIEVAL E A CONSTITUIÇÃO DE UM NOVO PARADIGMA Na precariedade com que era levada ao conhecimento da comunidade jurídica, principalmente daquela afastada da Corte, a falta de sistematização das ordenações verdadeiro depósito da legislação emitida pelo rei - também não colaborava para formação de um corpo de textos jurídicos que pudesse ser analisado de modo mais sistematizado, segundo as feições acadêmicas11 acostumadas até então com a suposta lógica de que dotada a experiência jurídica canônico-romana. Destarte, claras parecem ser as dificuldades encontradas em diversos flancos pelo Estado Moderno para fazer-se efetivamente soberano diante daquelas concepções que, calcadas na experiência do período medieval, reduziam as possibilidades de penetração dessa ainda incipiente experiência político-jurídica. 2.2 A superação da experiência jurídica medieval Diante desta grande pluralidade de ordenamentos, dessa imensa gama de ordens jurídicas existentes, o embasamento com que contava o Direito tinha variadas faces: poderia ser justificado na tradição, na história por todos aceita e jamais negada (às vezes elevada em seu status por eventual ligação que tivesse com os textos romanos); poderia ainda vir de um Direito Natural ainda ligado à religião; ou então poderia ter por estribo a própria ordem local em seus privilégios ratificados pela experiência feudal. Nesse passo, algo é certo: somente de forma subsidiária é que poderia um jurista tradicional da época conceber que o Direito tivesse por sustentação a lei posta pelo Estado. Ou seja, a própria fundamentação do Direito – majoritariamente ao largo do legislado pelo soberano – tinha por fonte instâncias outras que não a vontade do rei, o que sobremaneira impedia que o direito estatal superasse aquelas outras ordens jurídicas12. E é justamente nesta luta por saber quem é que dá sustentação ao Direito – se o costume/tradição/história, ou se o direito emanado pelo monarca – que a doutrina contratualista, partindo do Jusnaturalismo Moderno13, exerceu importante papel em favor dos pelos reis. [...] Na Espanha, a resistência passiva das faculdades ainda inviabilizou, por volta de 1713, o plano de lhes impor o ensino do direito pátrio. [...] Somente nos anos 70, porém, é que começariam a surgir espaços curriculares próprios para o ensino das leis reais. Na França, a criação das cátedras correspondentes se deu só em 1679 – não por acaso em pleno reinado de Luís XIV, o ativo rei-legislador das Ordonnances. Em Portugal, a Universidade de Coimbra ainda rejeitava, em 1623, a proposta da Coroa de ali se instituir o ensino do direito pátrio. A matéria só foi introduzida em 1772, ou seja, no mesmo período em que o corpo docente tradicionalista era desmantelado pela Reforma Pombalina”. (SEELAENDER. Airton Cerqueira Leite. O Contexto do texto: notas introdutórias à história do direito público na idade moderna. Seqüência: estudos jurídicos e políticos. Florianópolis: Fundação Boiteux. Ano XXVII, n. 55, dez. de 2007. P.257/258). 11 Panorama esse que, relativizado, contudo, em países como a França, se revela pontual em Portugal, na Espanha e nos territórios alemães onde vicejara o movimento da contrarreforma. 12 Conturbada, nesse sentido, a já indicada relação existente entre o costume e o direito posto pelo soberano. Afinal, – inapto a derribar as práticas consuetudinárias o poderio monárquico - mantinham-se elas de pé por sua força própria? Ou, era por concessão do monarca que elas subsistiam? a resposta que se pretenda dar a dito questionamento terá direta relação com a concepção – se alinhada a concepções realistas, ou não – que se tenha da realidade jurídica de então. 13 Se o caráter laico - para além da célebre frase de Grotius: “o que acabamos de dizer [...manifestava-se sobre o direito de natureza, ou seja, o direito da natureza humana...] teria lugar [...] mesmo quando Deus não existisse” (GROTIUS, Hugo. O Direito da Guerra e da Paz. Coleção Clássicos do Direito Internacional. trad. Círio Mioranza: Ijuí, 2004, p. 39/40. Tomo I) - não é incontroversamente uma marca capaz de apartar o jusnaturalismo de que ora se trata daquele antigo/medieval – já que “o Direito Natural é profano desde nascença, desde Aristóteles” (VILLEY, Michel. A Formação do Pensamento Jurídico Moderno. trad. Cláudia Berliner. São Paulo: Martins Fontes, 2005, p. 648) -, justifica-se o adjetivo “moderno” ao menos como forma de acentuar que, para o jusnaturalismo de que se cuida, o direito natural pertence ao indivíduo em si, decorrendo deste último em sua essência, de modo absolutamente despregado de qualquer outra coisa senão da própria existência individual. ANAIS DO V CONGRESSO BRASILEIRO DE HISTÓRIA DO DIREITO 47 interesses do ente estatal que, como se viu, ainda se defrontava com os ordenamentos consuetudinários que então se espalhavam por toda a Europa. Ora, ao conceber a existência de um direito naturalmente existente – deveras divorciado de um chão historicamente verificável14 – e, mais do que isso, ao entender que todo aquele direito natural deve ser agora posto para dentro da lei do Estado (não é outra a função dela senão defendê-lo até mesmo do soberano), o contratualismo enquanto teoria política – nas gradações existentes em cada um dos autores daquela corrente – fez justamente por estabelecer que nenhuma outra sustentação pode ter o direito senão o ordenamento estatal. É a partir do contratualismo que o Estado – entendido em maior ou menor medida como ente artificial criado por um consenso existente entre os homens – passa a ser entendido como o único – único! – ente capaz de fazer respeitar por meio de sua legislação – até mesmo contra a figura do monarca – o verdadeiro direito pertencente naturalmente aos homens. Advindo embora da metafísica “natureza humana”, esse direito, cujo exercício a ninguém pode ser negligenciado, passa a ter por campo de proteção somente a normatização estatal, e nenhuma outra ordem jurídica pode ser invocada, seja para confrontá-lo, seja para enunciá-lo. O Direito Natural passa a ser protegido exclusivamente por dentro dos textos legais advindos do Estado, e tudo quanto refuja a este último cadinho não goza do status de Direito15. O paradigma sustentado pelos autores contratualistas – ou seja, existência de um núcleo de prerrogativas advindas da essência própria do homem (independentes, pois, do Estado) cuja proteção é o motivo da existência da legislação artificialmente pelos homens -, dito modelo faz por varrer qualquer alinhavo de ordenamento que busque legitimidade em outra instância que não naquele Direito Natural. Dessa forma, tal arranjo conceitual – ao tonar abstrato o fundamento último do Direito, reservando-lhe proteção apenas através do ordenamento estatal – acaba por abrir espaço na teoria jurídica para essa legislação estatal, ainda em estágio inicial naquele momento histórico. 2.3 A fungibilidade do Direito Natural Antes de prosseguir, importante firmar neste passo certeira premissa: a concepção contratualista, permeada que está pelo Direito Natural, não carrega consigo necessariamente a defesa de interesses antirrealistas ou (à falta de melhor designação) protoliberais. É que, ainda que seja impossível negar o aspeto revolucionário desta teoria16, essa concepção serviu de forma ambígua tanto para aqueles alinhados às concepções realistas 14 De fato, expediente abstratamente concebido, é na figura de espécie de pressuposto teórico que o estado natural é visto na obra contratualista, conforme se fará vera adiante nas obras específicas de Hobbes e Locke (ver nota 34). 15 É que se lê, v.g., do preâmbulo da Constituição Francesa de 3-9-1791, ao vedar que títulos de nobreza, ordens de cavalaria, corporações ou condecorações pudessem dar base a distinção entre homens, a partir de entçao concebidos como iguais – não distintos – em essência (GOEDECHOT. J. (org). Les Constitutions de la France depuis 1789. Paris. Garnier, 1993, p. 35). 16 De fato, se comparada às teorizações que enxergam no poder do monarca, simplesmente, a vontade de Deus, as idéias contratualistas – mesmo as vindas de Hobbes – trazem consigo notável diferencial, na elaborada concepção artificial do pacto que, entregando ao soberano o poder da espada, se volta à proteção de direitos naturais (naquele autor, aliás, o plural utilizado não se justifica, porque, em Hobbes, a esfera de resistência ao soberano com base num suposto direito natural, além de mínima, goza de pouca relevância prática como se verá adiante). É propriamente esse corte de finalidade – com os olhos voltados a um Direito que, natural, tem por origem a individualidade mesma do homem – que aparta a doutrina cá destrinçada das posições teóricas que, então, intentavam justificar o poder político. 48 A MODERNIDADE JURÍDICA E O JUSNATURALISMO MODERNO:A SUPERAÇÃO DA EXPERIÊNCIA MEDIEVAL E A CONSTITUIÇÃO DE UM NOVO PARADIGMA quanto para aqueles de idéias mais “liberais”. Vale dizer, firme em que esse arranjo teórico teve certeira participação no movimento de fortificação da entidade estatal perante as ordens consuetudinárias17, não é possível conferir dali posições que rumem necessariamente veredas antimonarquistas18. Com efeito, na criação de uma espécie de “tábula rasa política” – parte-se doravante de um Direito Natural universalmente válido sem resquícios histórico-sociais –, o que passa importar não é tanto o conteúdo da ordem jurídica artificialmente engendrada para proteção daquelas pretensões naturais, nem a elasticidade destas últimas – daí a defendida fungibilidade (STOLLEIS, 2008, p. 341) -, antes o que enfeixa relevância é seu caráter de exclusividade para aqueles fins de resguarde daqueles direitos. Somente tendo por foco essas premissas, é que se poderão ladear teorias tão antípodas como a de Hobbes e a de Locke, cabendo aqui algumas comparações pontuais a fim de estabelecer as discrepâncias existentes entre a posição de ambos os autores. 2.3.1 Um pacto de conteúdo vário, uma só consequência jurídica A fim de indicar de modo mais preciso o que está neste ponto sendo exposto, serão aqui indicados alguns aspectos que, na obra de dois conhecidos autores igualmente contratualistas Hobbes19 e Locke20 –, se mostram claramente contraditórios. O núcleo firme de direitos a respeito dos quais a ninguém, até mesmo ao soberano, é dado malferir é evidentemente diferente em extensão nos dois autores, mostrando-se claramente mais alargado em LOCKE (1978, § 135, p. 87), muito embora seja impossível desconsiderá-lo, ainda que em seu teor mínimo, em HOBBES21. É à proteção desses direitos22 que se presta o pacto firmado entre os homens – realizado este último não em razão de uma força externa (natureza humana, vontade divina e 17 Não é outra a interpretação que ora se propõe: enxergar na doutrina contratualista, sim, um movimento de centralização de poderes em torno da figura estatal, sem ligá-la de forma determinante a pensamentos políticos pré-determinados. 18 De fato, “Sia l' assolutismo che i suoi oppositori - ceti, città, confessioni - si sono serviti del suo arsenal e hanno legittimato e criticato l´autorità sempre partendo de ciò che consideravano li ‘diritto naturale’ nella particolare situazione politica. Nè l'ideologia né la critica all'ideologia poterono fare a meno del topos suggestivo nella ‘natura’” (STOLLEIS. Michael. Storia del Diritto Pubblico in Germania. trad. Cristina Ricca. Milano: Giuffrè Editore, 2008. p. 351). 19 HOBBES. Thomas. Leviatã ou Matéria, Forma e Poder de um Estado Eclesiástico e Civil. Coleção Os pensadores. trad. João de Paulo Monteior et al. São Paulo: Nova Cultural, 1997. 20 LOCKE, John. Segundo Tratado Sobre o Governo. Coleção Os Pensadores. trad. E. Jacy Monteiro et al. 2. Ed. São Paulo: Abril Cultural, 1978. 21 “Há alguns direitos que é impossível admitir que algum homem, por quaisquer palavras ou outros sinais, possa abandonar ou transferir. Em primeiro lugar, ninguém pode renunciar ao direito de resistir a quem o ataque pela força para tirar-lhe a vida, dado que é impossível admitir que através disso vise a algum benefício próprio”. (p. 115). “[...] O consentimento de um súdito ao poder soberano está contido nas palavras eu autorizo como minhas, todas as suas ações, nas quais não há nenhuma espécie de restrição a sua antiga liberdade natural. Porque ao permitir-lhe que me mate não fico obrigado a matar-me quando ele mo ordena. Uma coisa é dizer mata-me, ou a meu companheiro, se te aprouver; e outra coisa é dizer matar-me-ei, ou a meu companheiro. Segue-se, portanto, que ninguém fica obrigado pelas próprias palavras a matar-se a si mesmo ou a outrem [...]”.(HOBBES, 1997, p. 176, grifo no original) 22 O fim último, causa dos desígnios dos homens (que amam naturalmente a liberdade e o domínio sobre os outros), ao introduzir aquela restrição sobre si mesmos sob a qual os vemos viver nos Estados, é o cuidado com sua própria conservação e com uma vida mais satisfeita”. (op. cit., p. 41). A seu turno, em Locke: “Essas circunstâncias [referia-se à incerteza existente no estado de natureza quanto à fruição dos direitos garantidos pela natureza humana...] obrigam-no [...o homem...] a abandonar uma condição que, embora livre, está cheia de temores e perigos constantes; e não é sem razão que procura de boa vontade juntar-se em sociedade com outros que já estão unidos, ou pretendem unir-se, para mútua conservação da vida, da liberdade e dos bens a que chamo ANAIS DO V CONGRESSO BRASILEIRO DE HISTÓRIA DO DIREITO 49 quejandos), mas por causa da vontade dos homens mesmos, de um cálculo racional entre meios e fins. (HOBBES, 1997, p. 143; LOCKE, 1978, § 99, p. 72). Neste passo, parece evidente que quanto menor for a extensão de direitos naturais maior será o campo de intervenção do soberano; bem assim, quanto mais terrível for o estado de natureza, mais fáceis parecem ser justificativas da maior elasticidade do poder sobrenado (sempre tendo por limite, naturalmente, aqueles prerrogativas inerentes à condição humana23). Hobbes, vendo como inato à natureza humana somente o direito à autodefesa, faz derivar todos os outros direitos – incluída aí a propriedade (HOBBES, 1997, p. 148) – do próprio poderio estatal arquitetado por sobre aquele mínimo direito natural. É certamente esse ‘exagero’24 que lhe possibilita, dentro de uma visão contratualista, defender serem do soberano tão amplos poderes.25 Aliás, é na doutrina hobessiana – a fazer derivar do soberano prerrogativas tradicionalmente justificadas pelo costume26 – que se vê a clara substituição das ordens consuetudinárias advindas do medievo pelo poder estatal, na esteira do que defende pontualmente este artigo. Por sua vez, Locke, em sua tendência protoliberal (vencedora historicamente, bem se sabe), torna bem mais diminutos e teleologicamente direcionados27 os direitos enfeixados [...note-se aqui a amplitude do conceito....] propriedade. O objetivo grande e principal da união dos homens em comunidade, colocando-se eles sob governo, é a preservação da propriedade”. (LOCKE, 1978, §§ 123, 124 p. 82, grifo nosso). 23 Em Hobbes, as misérias do estado de natureza - retoricamente descritas para chegar à conclusão de que em tal condição “não há sociedade” (HOBBES, 1997, p. 109) – são aptas, pois, a justificar qualquer eventual incômodo político que se possa ter perante o soberano: “Mas poderia aqui objetar-se que a condição de súdito é muito miserável, pois se encontra sujeita aos apetites e paixões irregulares daquele ou daqueles que detêm em sua mão um poder tão ilimitado. [...] E isto sem levar em conta que a condição do homem nunca pode deixar de ter uma ou outra incomodidade, e que a maior que é possível cair sobre o povo em geral, em qualquer forma de governo, é de pouco monta quando comparada com as misérias e horríveis calamidades que acompanham a guerra civil, ou aquela condição dissoluta de homens sem senhor, sem sujeição às leis e a um poder coercitivo capaz de atar suas mãos, impedindo a rapina e a vingança” (ibid., p. 151). 24 Confira-se a nota 24, na qual se vê que para o autor a própria sociedade deriva do poder soberano. 25 Tão necessária é a figura do soberano que, mesmo nos casos de desrespeito à lei de Deus, não é dado ao súdito resistir: “[...] e está fora de controvérsia que a mesma obediência é devida nos assuntos temporais, até por um súdito cristão, a qualquer príncipe que não seja cristão; mas, nos negócios do espírito, isto é, naquelas coisas que se referem ao culto de Deus, ele deverá seguir uma doutrina cristã. [...] Mas, então, devemos resistir aos príncipes, quando não pudermos obedecer a eles? Certamente que não, porque isso será contrário ao pacto civil. Então, o que devemos fazer? Ir a Cristo pelo martírio. E, se isso parecer muito duro a alguém, então é certíssimo que ele não acredita de todo o coração que Jesus é o Cristo vivo (pois, se acreditasse, ele desejaria ser dissolvido, para estar com Cristo), porque fingindo a fé cristã ele bem será capaz de faltar com a obediência que prometeu submeter-se à cidade”. (HOBBES. Thomas. Do Cidadão. Coleção Clássicos. trad. Renato Jeanine Ribeiro. São Paulo: Martins Fontes, 1992. p. 376). 26 Como, por exemplo, a magistratura - o juiz nada mais faz senão “representar” a pessoa do soberano (HOBBES, 1997, p. 148/149 e 192/193), e as condecorações e títulos nobiliários (ibid., 149). 27 “Embora os homens quando entram em sociedade abandonem a igualdade, a liberdade e o poder executivo que tinham no estado de natureza, nas mãos da sociedade, para que disponha deles por meio do poder legislativo conforme o exigir o bem dela mesma; entretanto fazendo-o cada um apenas com a intenção de melhor se preservar a si próprio, à sua liberdade e à sua propriedade – pois que nenhuma criatura racional pode supor-se que troque a sua condição por uma pior – o poder da sociedade ou o legislativo por ela constituído não se pode nunca supor se estenda mais além do que o bem comum, mas fica na obrigação de assegurar a propriedade de cada um [...] E assim sendo, quem tiver o poder legislativo ou o poder supremo de qualquer comunidade obrigase a governá-la mediante leis estabelecidas, promulgadas e conhecidas pelo povo, e não por meio de decretos extemporâneos; por juízes indiferentes e corretos, que terão de resolver as controvérsias conforme essas leis; e a empregar a força da comunidade no seu território somente na execução de tais leis [...]” (LOCKE, 1978, § 131 p. 83/84). Neste passo, diante de um legislativo tirânico, cabe, sim, - ao contrário do martírio aconselhado por 50 A MODERNIDADE JURÍDICA E O JUSNATURALISMO MODERNO:A SUPERAÇÃO DA EXPERIÊNCIA MEDIEVAL E A CONSTITUIÇÃO DE UM NOVO PARADIGMA pelo soberano diante das prerrogativas mais infladas possuídas universalmente pelos homens desde o estado de natureza28. Realmente, ao entender um pouco menos miserável a condição humana no estágio anterior à estatalidade,29 a constituição da entidade estatal por meio de um pacto passa a ser entendida, sem os arroubos hobbesianos, como ajustadora das inaptidões30 que o estado de natureza possui para fins de proteção da propriedade, objetivo mor da constituição da sociedade por meio do pacto. Contudo, também o Locke propulsor de idéias nada absolutistas31 faz por apagar a tradição que se ponha para além do poderio estatal, porque em sua teoria, exatamente nos moldes contratualistas já indicados, tudo quanto não esteja apoiado no indicado pelo legislativo, poder cuja extensão tem por fim a proteção dos já indicados direitos naturais, não goza de status jurídico32. De fato, ao propugnar o caráter supremo do legislativo – sempre vinculado aos fins por que estatuído o Estado –, logo se percebe que o autor, também ele, faz por desautorizar Hobbes - a deposição daqueles que se comportam contra os fins perseguidos pelo estabelecimento do Estado: “[...] sendo o legislativo um poder somente fiduciário destinado a entrar em ação para certos fins, cabe ainda ao povo um poder supremo para afastar ou alterar o legislativo quando é levado a verificar que age contrariamente ao encargo que lhe confiaram. Porque, sendo limitado qualquer poder concedido com encargo para conseguir certo objetivo, por esse mesmo objetivo, sempre que se despreza ou contraria manifestamente esse objetivo, a ele se perde o direito necessariamente, e o poder retorna às mãos dos que o concederam, que poderão colocá-lo onde o julguem melhor para garantia e segurança próprias.” (ibid.,§ 149, p. 93). 28 “Não é, nem poderia ser [o poder legislativo] absolutamente arbitrário sobre a vida e a fortuna das pessoas, porquanto, sendo ele simplesmente o poder em conjunto de todos os membros da sociedade, cedido à pessoa ou grupo de pessoas que é o legislador, não poderá ser mais do que essas pessoas tinham no estado de natureza antes de entrarem em sociedade e o cederem à comunidade; porque ninguém pode transferir a outrem mais poder do que possui, e ninguém tem poder arbitrário absoluto sobre si mesmo ou sobre outrem, para destruir a própria vida ou tirar a vida ou a propriedade de outrem” (LOCKE, 1978, § 135. p. 86/87). 29 Para Locke - longe de constituir-se o estado de natureza como o estado hobbesiano da guerra de “todos os homens contra todos os homens” (HOBBES, 1997, p. 109) - ambos os conceitos (estado de natureza e estado de guerra) não se confundem (LOCKE, 1978, § 19. p. 41). 30 Pontuando que “O objetivo grande e principal, portanto, da união dos homens em comunidade, colocando-se eles sob governo, é a preservação da propriedade”, Locke atenta a que no estado de natureza não há (a) uma lei “estabelecida, firmada, conhecida, recebida e aceita mediante um consentimento comum, como padrão do justo e injusto e medida comum para resolver quaisquer controvérsias entre os homens”, sem que exista (b) “um juiz conhecido e indiferente com autoridade para resolver quaisquer dissensões, de acordo com a lei estabelecida”, na ausência, outrossim, de um (c) “poder que apóie e sustente a sentença quando justa, dando-lhe a devida execução” (LOCKE, 1978, §§ 124, 125 e 126, p. 82). 31 “[...] É evidente que a monarquia absoluta, que alguns consideram o único governo no mundo, é, de fato, incompatível com a sociedade civil, não podendo por isso ser uma forma de governo civil, por que o objetivo da sociedade civil consiste em evitar e remediar os inconvenientes do estado de natureza que resultam necessariamente de poder cada homem ser juiz do próprio caso, estabelecendo-se uma autoridade conhecida para a qual todos os membros dessa sociedade podem apelar por qualquer dano que lhe causem ou controvérsia que possa surgir, e à qual todos os membros dessa sociedade terão de poder estabelecer. Onde quer que existem pessoas que não tenham semelhante autoridade a que recorrerem para decisão de qualquer diferença entre eles, estarão tais pessoas no estado de natureza; e assim se encontra qualquer príncipe absoluto em relação aos que estão sob seu domínio” (LOCKE, 1978, § 90. p. 68). 32 “A primeira lei positiva e fundamental de todas as comunidades consiste em estabelecer o poder legislativo; como a primeira lei natural fundamental que deve reger até mesmo o poder legislativo consiste na preservação da sociedade e, até o ponto em que seja compatível com o bem público, de qualquer pessoa que faça parte dela. Esse poder legislativo não é somente o poder supremo da comunidade, mas sagrado e inalterável nas mãos em que a comunidade uma vez o colocou; nem pode qualquer edito de quem quer que seja, concebido por qualquer maneira ou apoiado por qualquer poder que seja, ter a força e a obrigação da lei se não tiver sanção do legislativo escolhido e nomeado pelo público; porque sem isto a lei não teria o que é absolutamente necessário à natureza de lei: o consentimento da sociedade sobre a qual ninguém tem o poder de fazer leis senão por seu próprio consentimento e pela autoridade dela recebida” (§ 134. p. 86). ANAIS DO V CONGRESSO BRASILEIRO DE HISTÓRIA DO DIREITO 51 qualquer outra espécie de normatividade que retire sua legitimidade de uma fonte não estatal (LOCKE, 1978, § 141, p. 90). Logo se vê, por isso, que, em ambos os autores, o Estado soberano é a fonte exclusiva do Direito, posição teórica essa que, sem dúvida, possibilitou ao direito estatal, agora com sustentação teórico-política, flanco de atuação capaz de fazer frente a toda a experiência jurídica pré-estatal, a qual, doravante, haverá de ser desconsiderada. 2.4 Um novo quadro político, um novo paradigma do Direito Destruídos eventuais marcos jurídicos histórica e socialmente determinados anteriores à estatalidade (de fato, o que antecede o ente estatal é a abstrata noção de um estado de natureza)33, o contratualismo passou a possibilitar o pensamento de um novel quadro político, cujos rigores, justificados embora por uma concepção que entende universais certos direitos, haverão de ser concretizados numa realidade normativa de ordem absolutamente contingente, emanada simplesmente do acordo de vontades dos cidadãos, e derivada diretamente de cada um dos Estados, à época em franca ascensão . Esse novo paradigma há de possibilitar que cada Estado possa repensar, a partir de um marco inicial desgarrado de tudo quanto até então era entendido por Direito, sua própria normatização; o quadro político, a partir de então, é alterado, como exata conseqüência das modificações operadas nas fontes do Direito34. Com efeito, ao reunir nas mãos do soberano, limitada que se encontra pela existência de um ‘direito natural’, toda a prerrogativa de criar Direito – agora a ser arranjado em sua completude de modo sistematizado dentro de uma codificação -, mostra-se evidente a sistematização da atividade jurídico-normativa que o contratualismo implica. Não mais se trata de analisar o fundamento do direito com base em origens tão contraditórias (ordem estamental, leis fundamentais, costumes etc), cuida-se em verdade de um novo Direito, canal de veiculação tão-só da vontade soberana única expressada numa lei, tida por completa (fora dela Direito não existe), objetivamente clara (a ninguém é dado alterála por meio de expedientes interpretativos) e destituída de contradições (afinal ela é conseqüência da vontade de uma só pessoa35). Os meios por que esse processo vai tomar rumo histórico, complexos nas veredas que percorridas, passam pelo movimento de codificação, pela redução do objeto de conhecimento do jurista (entendido cada vez mais exclusivamente como a norma posta pelo Estado), pela interligação lógica operada entre os textos de lei e os conceitos jurídicos (pressuposto de um sistema fechado em si, destituído de lacunas e contradições) num arranjo teórico capaz de fazer do fenômeno jurídico algo visceralmente coligado ao marco da legalidade. Esse desenrolar histórico certamente não seria possível sem que, neste primeiro passo, os rigores contratualistas fizessem superar a tradição jurídico-medievalista, dando angustos limites ao que, dali em diante, passaria a ter status jurídico. 33 Em Hobbes: “Poderá porventura pensar-se que nunca existiu tal tempo nem condição de guerra como esta, e acredito que jamais tenha sido assim no mundo inteiro; [...] seja como for, é fácil conceber qual seria o gênero de vida em que os homens que anteriormente viveram sob um governo pacífico costumam deixar-se cair numa guerra civil” (HOBBES, 1997, p.110). Em Locke: “Pergunta-se muitas vezes como objeção relevante: ‘Onde estão ou onde estiveram alguns dias esses homens em tal Estado de natureza? ’ Ao que pode bastar por enquanto como resposta que, como todos os príncipes e governantes de estados independentes por toda a parte do mundo se encontram em um estado de natureza, claro que o mundo nunca esteve, nem nunca estará, sem ter muitos homens nesse estado” (LOCKE, 1978, § 14. p. 39). 34 Veja-se ainda: STOLLEIS, 2008, p. 351. 35 Em Hobbes tal panorama fica claro em: HOBBES, 1997, p. 210. 52 A MODERNIDADE JURÍDICA E O JUSNATURALISMO MODERNO:A SUPERAÇÃO DA EXPERIÊNCIA MEDIEVAL E A CONSTITUIÇÃO DE UM NOVO PARADIGMA Nesse sentido, as idéias contratualistas fizeram, sim, por colaborar com a empreitada estatal, fazendo com que, ainda quando limitado o poder do soberano por ditos direitos naturais, a centralidade política se centrasse na figura do Estado, independentemente do conteúdo da ordem legal a ser erigida. 3 Conclusão Nas dificuldades de inserção enfrentadas pelo Estado por entre aquela dificultosa teia dos vários ordenamentos medievais, indicou-se ser o contratualismo um dos expedientes teóricos que, já no campo concreto das relações de poder, fez por colaborar para introdução do Estado e seu direito na ordem jurídica de então. À proporção que apagavam de sua teoria a tradição em que embasado o que constituía o jurídico de então, autores como Locke e Hobbes, fazendo de um abstrato Direito Natural o fundamento último de qualquer norma jurídica, colocaram todo o conteúdo do Direito dentro da legislação estatal, agregando aportes teóricos para fazer do Estado, em menoscabo de qualquer outra instância, o único centro de criação do Direito. Assim – em colaborando nesse processo de centralização do qual a Revolução Francesa foi o verdadeiro ápice –, serviu a doutrina dos autores indicados como espeque para a formulação de uma sistematização racionalizada do direito, cujos rigores, advindos doravante de uma só fonte, estão aptos a ser objeto de um método específico, sem indesejáveis interferências externas que ultrapassem o nexo necessário entro o jurídico e o legal. Nesse trilhar histórico, a doutrina contratualista pode ser entendida como um dos primeiros passos, um engatinhar fundamental que fez esquecer a ordem jurídica do medievo entregando ao Estado a exclusividade na constituição do jurídico, a romper de forma revolucionária com os paradigmas jurídicos de então. Na fungibilidade de seu discurso, é certo que dita doutrina serviu como expediente de centralização política, mesmo quando estivesse a propugnar limites à pessoa do Soberano, o qual passa a ser, então, fonte estúltima única do Direito, a varrer todo o conteúdo jurídico do direito até então concebido segundo ideias pré-modernas. Referências GOEDECHOT, J. (Org). Les Constitutions de la France depuis 1789. Paris. Garnier, 1993. GROTIUS, Hugo. O Direito da Guerra e da Paz. Coleção Clássicos do Direito Internacional. trad. Círio Mioranza: Ijuí, 2004. Tomo I. HESPANHA, Antônio Manuel. Cultura Jurídica Européia: Síntese de um Milênio. Florianópolis: Fundação Boiteux, 2005. HOBBES, Thomas. Do Cidadão. Coleção Clássicos. trad. Renato Jeanine Ribeiro. São Paulo: Martins Fontes, 1992. ________, Thomas. Leviatã ou Matéria, Forma e Poder de um Estado Eclesiástico e Civil. Coleção Os pensadores. trad. João de Paulo Monteior et al. São Paulo: Nova Cultural, 1997; LADURIE, Emmanuel Le Roi. O Estado Monárquico. São Paulo: Companhia das Letras, 1994. LOCKE, John. Segundo Tratado Sobre o Governo. Coleção Os Pensadores. trad. E. Jacy Monteiro et al. 2. Ed. São Paulo: Abril Cultural, 1978. SAAVREDA FAJARDO, Diego de. Empresas Políticas. Barcelona: Planeta. 1988. ANAIS DO V CONGRESSO BRASILEIRO DE HISTÓRIA DO DIREITO 53 SEELAENDER, Airton Cerqueira Leite. O Contexto do texto: notas introdutórias à história do direito público na idade moderna. Seqüência: estudos jurídicos e políticos. Florianópolis: Fundação Boiteux. Ano XXVII, n. 55, dez. de 2007. STOLLEIS, Michael. Storia del Diritto Pubblico in Germania. trad. Cristina Ricca. Milano: Giuffrè Editore, 2008. TOCQUEVILLE, Alexis de. O Antigo Regime e a Revolução. Coleção Os pensadores. Seleção de textos de Francisco C. Weffort. trad. Leônidas de Gontijo de Carvalho et al. 2. ed. São Paulo: Abril Cultural. 1979. PÉREZ VALIENTE, Pedro José. Derecho Público Hispânico. Madrid: CEC, 2000. VILLEY, Michel. A Formação do Pensamento Jurídico Moderno. trad. Cláudia Berliner. São Paulo: Martins Fontes, 2005. 54 O PENSAMENTO JURÍDICO E SUA “HISTORIOGRAFIA PARTICULAR”: A JURIDICIDADE NO ESTILO FLORENTINO O PENSAMENTO JURÍDICO E SUA “HISTORIOGRAFIA PARTICULAR”: A JURIDICIDADE NO ESTILO FLORENTINO. THE LEGAL THOUGHT AND IT’S “SPECIFIC HISTORY”: THE LAW IN THE FLORENTINE STYLE. Fernando Cáceres* Resumo: A “historiografia jurídica”, assim como o pensamento jurídico como um todo, tem passado por mudanças de estatuto teórico no todo relevantes para a atual “compreensão de direito”, de modo que suas inferências têm condão de contribuir tanto ao desenvolvimento crítico da “história do direito” propriamente dita quanto para os estudos de “teoria do direito”. O presente trabalho pretende enfrentar algumas questões pontuais da historiografia jurídica hodierna. A intenção é desenhar a arquitetônica da proposta hermenêutica que vai inserta no estilo florentino de fazer história do direito. Para tanto, lançaremos mão em nossa caminhada do mapa teórico de que nos prime Pietro Costa. Intentaremos, com isso, esclarecer algumas de suas categorias básicas, como as de “textos jurídicos” e de “historiografia particular”. Como veremos, superada a “leitura global” que se firma com as assim chamadas “grandes narrativas”, as “historiografias particulares” ganham centralidade na compreensão histórica, despontando dentre elas também a historiografia jurídica. Os problemas que a partir daí se abrem, mormente no que toca a metodologia da análise histórica, são vários. O que pretendemos aqui – sem intento de exaurirmos sua discussão – é enfrentar alguns deles sob o olhar do marco teórico (hermenêutico) referido. * Mestrando em Teoria do Direito e Filosofia do Direito no Curso de Pós-graduação da Faculdade de Direito da Universidade Federal do Paraná; e-mail: [email protected] ANAIS DO V CONGRESSO BRASILEIRO DE HISTÓRIA DO DIREITO 55 Introdução O discurso do jurista e o pensamento no horizonte do qual o direito ocorre, isto é, o pensamento jurídico, há muito se percebem a auferir outro estatuto teórico que não aquele que tradicionalmente lhe fora conferido. A certeza de que o fenômeno jurídico não se realiza em sua prática histórica sem a participação reflexiva (também histórica) daqueles que nele são iniciados parece mesmo uma premissa banal 1. A história do direito nos atesta, entretanto, que tais inferências não se encontram, ainda hoje, no todo assentadas. Em verdade, ao que parece, grande parte dos “estudos jurídicos” – seja em suas frentes mais dogmáticas, seja ainda nos espaços mais afeitos à reflexão crítica, ou seja, atentos aos “fundamentos do fenômeno jurídico” – não apreenderam ainda quanto à premência de se admitir, e quiçá de uma vez por todas, que o direito decorre do próprio trabalho dos juristas: não é raro ouvirmos a asserção, ainda de uma cultura cognitivista e normativista, de que o direito é um “objeto” (o direitoobjeto) diante do qual o pensamento jurídico, porque verdadeira ciência, coloca-se à interpretação objetiva e distanciada. Acontece que há muito isso deixou de ser uma “verdade verdadeira”. Os influxos causados pela nova hermenêutica, mormente em sua disposição filosófica, bem como pelos mais coevos “estudos epistemológicos” asseguram que na “relação sujeito-objeto” o segundo não persiste em-si sem que os olhos do primeiro se mantenham abertos. Assim também com o direito, de sorte que não haveria falarmos em direito-objeto não fosse a persistência de um direito-pensamento. Como já adiantado, a intenção deste trabalho é perquirir a arquitetônica – não a fim de exauri-la, haja vista as dimensões destes escritos – que corresponde à proposta historiográfica do estilo florentino de fazer história do direito. Para tanto, pretendemos caminhar com um guia-mapa bastante específico, qual seja o historiador do direito italiano Pietro Costa e sua proposta hermenêutico-historiográfica dos textos jurídicos. As contribuições que daí decorrem podem ser alocadas ou estruturadas no âmbito daquilo que se chama genericamente de Metodologia Jurídica, e, mais especificamente, no que tange já propriamente a historiografia jurídica, traz também contributos centrais ao desenvolvimento crítico da assim chamada “metodologia de análise da história do direito”. Em suma, está em questão a própria “historiografia jurídica”, seu campo e seu instrumental de trabalho, bem como o seu ator ou artífice fundamental, o historiador do direito. Lançaremos mão, nessa benfazeja empreitada, de alguns “conceitos-chave”, os quais, porque verdadeiramente esclarecedores do texto que se segue, merecem citação desde logo: a “grande narrativa” que, no entanto, se nos mostrará superada e hoje substituída por um olhar atento à miríade de “narrativas particulares”; a historiografia jurídica, portanto, como “historiografia particular”; o “objeto” de análise histórica já não mais assente qual se um simples e objetivo “fato da realidade” fosse, mas como “textos interpretáveis”. Em resumo, o historiador do direito nos aparecerá como verdadeiro intérprete dos textos jurídicos, assim demarcados por aquilo que se chamara de standard de juridicidade, cuja aferição hermenêutica não abrirá mão de um diálogo atento com a semiótica e, por conseguinte, com a pragmática. Dessarte, ao final assenta-se que as preocupações hodiernas com a historiografia jurídica não podem deixar de dar atenção também à metalinguagem da história, de sorte que se faz forçoso admitirmos que a linguagem por meio da qual a história se expressa – como nos 1 “È infatti difficile immaginare il funzionamento di un ordine giuridico, in qualsiasi reatà sociale relativamente complessa, senza ipotizzare l’intervento di un discorso di sapere: alla creazione degli apparati normativi e instituzionali, all’interpretazione e all’applicazione delle norme, alla formazione di un ceto giuridico professionale il sapere giuridico affre un stromentario insostituibile.” COSTA, Pietro. Semantica del potere politico nella pubblicistica medievale (1100-1433). In. IURISDICTIO. Milano: Giuffrè Editore. 2002, p. XCIV. 56 O PENSAMENTO JURÍDICO E SUA “HISTORIOGRAFIA PARTICULAR”: A JURIDICIDADE NO ESTILO FLORENTINO ensina Pietro Costa 2 – é no toda delimitada pelas teorias e pré-compreensões (as “visões de mundo”) que o historiador carrega consigo e que opte por adotar no enfrentamento com o seu objeto. Essa, afinal, a “dimensão hermenêutica” infungível da história do direito. Lidar com ela é sem dúvida trabalho árduo, o qual, todavia, não pode o historiador do direito deixar de lado, sob pena de falhar-se metodologicamente na apreensão da alteridade com que o passado jurídico nos atinge. 1 O caráter hermenêutico da historiografia: da “grande narrativa” às “narrativas particulares”. É hoje notória a “dimensão dogmática” que foi conferida aos saberes sociais no desenrolar do século XIX – e prevalente ainda em grande parte do século XX – com a crescente especialização das disciplinas e respectivas frentes de atuação no âmbito das ditas “ciências sociais” 3. Com a historiografia, e mais especificamente com a historiografia jurídica que ora nos toca perquirir, não ocorreu de forma diferente. Balizada pelo ambiente cultural então predominante, também ela se viu abreviada em suas investigações, restando às voltas com pesquisas carregadas de análise documental e de pretensão densa de objetividade (como cientificidade) ante o “fato histórico”. Embora o horizonte teórico pressuposto não parecesse abrir qualquer vazão às reflexões e aos questionamentos de que a filosofia nos prime 4– e isso sobretudo em razão da densificação daquela “dimensão dogmática” –, esse mesmo horizonte como que preparava e estendia um pano de fundo conceitual que garantia aos pesquisadores, ante aos seus específicos objetos de análise, a legitimidade (cientificidade) de seu labor 5. É a isso que se dá o nome de “grande narrativa” dos saberes humanos. Os saberes sociais, que em verdade se encontram no todo abertos às experiências várias que o devir da sociabilidade enceta, encontravam seus mapas de trabalho, em cada uma de suas frentes 2 Essa diferenciação será tratada de forma mais pontual no correr do trabalho, mas é interessante percebermos desde logo que: “Il metalinguaggio, insomma, non è che un programma di operazioni; il suo rapporto con il linguaggio-oggeto si spiega secondo una logica rigorosamente operazionale (...).” COSTA, Pietro. Semantica del potere politico nella pubblicistica medievale (1100-1433). Op.Cit., p. 57. 3 No âmbito dos estudos jurídicos, essa “dimensão dogmática” é exemplificada com a relativa redução do material normativo tido como “material jurídico”. Especificamente, trata-se de retirar um tanto da autonomia normativa da doutrina jurídica, no que toca as decisões jurídicas, para vincular esta última a partir do direito do Estado. Como diz Manuel Hespanha: “A doutrina continua a ser, de facto, a principal fonte inspiradora das decisões judiciais; em todo caso, não lhe costumava ser reconhecida uma força normativa autónoma, já que, no plano de uma certa teoria do direito, estabelecida e dominante a partir dos inícios do séc. XIX, os jurisconsultos elaborariam as suas construções com base nos dados do direito posto pelo Estado. HESPANHA, A. Manuel. O caleidoscópio do direito. O direito e a justiça nos dias e no mundo de hoje. Coimbra: Almedina, 2007, p. 43. 4 Daí a sentença crítica de Ginzburg: “Normalmente, os historiadores não se mostram muito interessados em explorar as implicações teóricas do seu trabalho. (...) Por outro lado, as reflexões sobre metodologia, mesmo dirigidas por historiadores contemporâneos, parecem às vezes ingénuas ou confusas a espíritos filosoficamente formados. Este divórcio entre a prática e a teoria explica porque certas discussões sobre conceitos tais como causalidade, narração, etc., são – com algumas excepções – um pouco decepcionantes.” GINZBURG, Carlo. Ekphrasis e citação. In. A micro-história e outros ensaios. Lisboa: DIFEL, 1989. 5 “Ello implica en sustancia una teoría fuerte del conocimiento científico y una teoría débil de la subjetividad. Por lo que se refiere al conocimiento científico, en efecto, ello incluye al menos los siguintes corolarios: a)la ciencia, es, aunque sea a modo de asíntota, productora de verdad porque es capaz de conocer la realidad <<objetivamente>>, por lo que es; b) el conocimiento científico es objetivo en la medida en que se fundamenta em procesimientos de la lógica y en laobservación de los hechos; c) los hechos se ofrecen ante cualquiera como directamente observables y constatables. En lo que respecta al papel al papel del sujeto em el proceso cognoscitivo, en cambio el paradigma positivista impone la desaparición de la subjetividad apenas se abre el discurso de la ciência.” COSTA, Pietro. Discurso jurídico e imaginación. In. Pasiones del jurista. Amor, memória, melancolía, imaginación. PETTI, Carlos (org.). Madrid: centro de Estudos Constitucionales, 1997, p. 165. ANAIS DO V CONGRESSO BRASILEIRO DE HISTÓRIA DO DIREITO 57 especializadas, já previamente demarcados por essa “grande narrativa”. Concebida como espécie de “enciclopédia geral” do conhecimento científico, cada uma daquelas frentes via-se então projetada como um seu capítulo, isto é, como mais “um momento” ou tópico daquela “grande narrativa” firmada como compreensão teórica global da realidade social. Nas palavras de Pietro Costa: É no horizonte de uma visão global da sociedade que o historiador de um modo geral concebeu e praticou sua profissão. As filosofias sociais totalizadoras forneciam ao historiador dois importantes instrumentos de orientação: de um lado, ofereciamlhe um repertório lexical e conceitual empregável no trabalho de revelação, sistematização e narração dos dados; de outro, e respectivamente, assinalavam à sua disciplina um local preciso no mapa do saber, legitimando-a como componente de uma “enciclopédia” geral.6 Pontue-se que quando falamos aqui em “grande narrativa” não nos é permitido ler tal expressão no singular, em verdade se impondo que falemos também aí no plural, e, portanto, em grandes narrativas, uma vez que é do embate de amplos e tradicionais modelos de análise social que se está a falar. Daí que se diga que a cultura (teórica) do século XIX e de grande parte do século XX seja o resultado dos influxos desses grandes embates, ora prevalecendo um olhar, ora outro 7. De qualquer maneira, o que se percebe comum a essas “grandes narrativas” é a intenção de elaboração de um conhecimento global, coerente e de abrangência total, crentes ainda no possível “progresso da história” 8. Acontece que a atualidade das discussões em torno da epistemologia em seus debates mais coevos atesta-nos acerca da impossibilidade de seguirmos às cegas com projetos ou modelos globais de compreensão do social: uma micro-análise se faria afinal infungível 9. Não é à toa que, no tocante à historiografia e à Escola dos Annales, aquilo que hoje se considera como a sua “terceira fase” salienta principalmente a desintegração daqueles grandes modelos, bem como a necessidade de um olhar mais “minimalista” e do resgate do indivíduo ou do evento histórico na análise historiográfica. O que cai por terra com as atuais contendas epistemológicas é, primordialmente, a referência à cisão categórica (inabalável na tradição oitocentista) entre o “objeto” de análise e o “sujeito” do conhecimento, com o que também a noção tradicional de “método” se vê prejudicada. Nesse contexto, porque não se admite atualmente uma tal “cisão absoluta”, aceitando-se mesmo o sujeito sempre perpassa o objeto de análise, carreando-o com isso de sentidos e interpretações pré-instaladas em sua “subjetividade”, o caráter hermenêutico do conhecimento humano ganha centralidade indiscutível. Também assim na historiografia geral 6 COSTA, Pietro. Soberania, Representação, Democracia. Ensaios de história do pensamento jurídico. Curitiba: Juruá Editora, 2010, p. 17. 7 “Entre essas grandes narrativas, é o marxismo que provavelmente manteve até os nossos dias, mais que os outros velhos concorrentes, o fascínio de uma compreensão teórica global da realidade social. Mas também esta grande narrativa entrou, em anos recentes, em uma crise significativa: uma crise que certamente não é a primeira em seu mais que centenário percurso, mas, que é, entretanto, particularmente relevante, ligada provavelmente não apenas (como se repetiu demasiadamente) à mudança do cenário internacional, mas também à percepção da impotência, não apenas pragmática, mas igualmente de “diagnóstico”, da teoria freten à complexidade da realidade. É, em fim, uma crise sobre a qual pesa uma difusa e crescente desconfiança com relação às “grandes narrativas”.” COSTA, Pietro. Soberania, Representação, Democracia. Ensaios de história do pensamento jurídico. Op.Cit., p. 18. 8 Na verdade, não obstante se tratasse mesmo de embates teóricos entre grandes modelos, cada qual trazendo suas especificidades analíticas e teóricas, eles compartilhavam esse otimismo do conhecimento humano, da ciência humana. É, porém, justamente esse otimismo que hoje se vê sob o fogo cruzado das discussões epistemológicas e hermenêuticas, como logo veremos. 9 Para um estudo acerca da micro-análise no âmbito da historiografia, conferir: GINZBURG, Carlo. A microhistória e outros ensaios. Op.Cit. e, do mesmo autor: GINZBURG, Carlo. Relações de força. História, retórica, prova. São Paulo: Companhia das Letras, 2002. 58 O PENSAMENTO JURÍDICO E SUA “HISTORIOGRAFIA PARTICULAR”: A JURIDICIDADE NO ESTILO FLORENTINO e na historiografia jurídica, como parece percebê-lo o assim chamado estilo florentino de fazer história do direito. Embora a demarcação desse caráter hermenêutico da historiografia jurídica não almeje desamparar de objetividade suas análises, até porque no que toca o estilo florentino propriamente dito nós veremos se delinear um espaço bastante específico para esse trabalho, fato é que a confiança na “pureza do fato histórico” já não se sustenta. No trabalho do historiador não se colhe o “fato” em sua límpida objetividade, como se fosse possível mantêlo isento de qualquer quadro pré-figurativo da compreensão do analista. Esse trabalho sempre opera, em verdade, alguma seleção analítica, como que a fazer mediar em suas pesquisas de campo (na análise dos “fatos”) alguma camada de linguagem prévia, a dimensão cultural em que se insere o pesquisador, as teorias que este estuda e toda uma miríade de informações que inevitavelmente se inscreverá no resultado do conhecimento histórico. A historiografia, portanto, não é a descrição de coisas ou estado de coisas, mas atribuição de sentido; portanto, interpretação. Uma relação entre historiografia e hermenêutica é uma relação de espécie e gênero: aquela operação intelectual que chamamos historiografia é compreensível enquanto reconduzível à lógica da interpretação. Não toda interpretação é historiografia, mas toda operação historiográfica, como decifração de textos, testemunhos, sinais, como reconstrução de um “sentido”, é interpretação: refletir sobre a historiografia significa então colher dela os essenciais significados hermenêuticos, na linha de uma tradição que, a partir de Schleiermacher, tematiza o nexo entre interpretação e historiografia. 10 Dessarte, se nos é possível concluir algo, ainda que provisoriamente, deve-se salientar que o historiador não está em seu trabalho simplesmente a “descrever fatos”, mas a interpretálos e dar-lhes sentido. Na esteira da proposta de uma historiografia de inspiração hermenêutica, como ensina Pietro Costa, essa interpretação deve recair, ademais, sobre textos e não propriamente sobre “fatos”: de modo que o historiador, além de não descrever a realidade em sua facticidade plena, antes mediando-a hermeneuticamente (dando-lhe assim sentido histórico), não interpreta quaisquer objetos, mas especificamente o que ele faz é interpretar textos. Como o historiador do direito italiano salienta, com isso não se está a resolver ou dar cabo aos problemas epistemológicos da historiografia como instância crítica de “acesso ao mundo”, mas tão-só fazendo-os emergir de forma mais clara e precisa. A dificuldade que a partir daí se abre ao trabalho do historiador é de fato imensa e merece não ser ignorada, mormente porque esses textos não se nos dispõem de forma categórica, contínua ou retilínea, como se poderia crer. Eles surgem, entrementes, como pontos de vista fragmentados e descontínuos, tal qual uma miríade de possíveis testemunhos 11. De outro lado, não se deve perder de vista que a interpretação deles possível dificilmente será unívoca, afirmando-se aí uma inevitável “mutabilidade da verdade histórica”. Esclareça-se, todavia, que sob o espectro hermenêutico-historiográfico não se colocará a questão epistemológica da verdade do texto, interessando primacialmente o seu “funcionamento concreto” e a normatividade social que venha a estabelecer. Daí dizer-se que a historiografia assim compreendida mais se aproxima das indagações da semiótica do que propriamente da epistemologia: não está em questão, portanto, a representação da realidade enquanto tal, mas a dimensão pragmática que esses testemunhos históricos atingem. A 10 COSTA, Pietro. Soberania, Representação, Democracia. Ensaios de história do pensamento jurídico. Op.Cit., p. 21. 11 “Uma característica atual do conhecimento histórico é, de fato, de ser não um objeto, mas um ponto de vista: todo aspecto da realidade humana pode ser objeto do conhecimento histórico. (...) Cada uma dessas historiografias afronta aspectos específicos da experiência e deve, portanto, dispor de conhecimentos adequados à compreensão do seu objeto.” COSTA, Pietro. O conhecimento do passado: dilemas e instrumentos da historiografia. Curitiba: Juruá Editora, 2007, p. 09. ANAIS DO V CONGRESSO BRASILEIRO DE HISTÓRIA DO DIREITO 59 questão fulcral do historiador, diante disso, diz com o conteúdo e a forma dessas narrativas, bem como com os efeitos e ações sociais que elas operam, em suma, com as transformações sócio-comportamentais que elas determinam. Assim, Pensar em termos hermenêuticos a historiografia significa dar um passo atrás da realidade ao texto: a historiografia não se debruça diretamente sobre a realidade, mas trabalha indiciariamente sobre os textos. Renunciar às grandes teorias onicompreensivas impõe proceder na pesquisa sabendo não dispor de uma visão sistemática e predeterminada da realidade para acomodar as peças do mosaico isoladas cansativamente recolhidas. Deste ponto de vista, pensar hermeneuticamente a historiografia é um exercício da socrática consciência de não saber: não sabemos a priori em qual capítulo da “grande narrativa” os textos interpretados se inserem porque não dispomos mais de nenhuma “grande narrativa”. A realidade não aparece mais disposta em uma ordem da qual conhecemos a trama geral, faltando-nos justamente a consciência aproximada dos particulares: a realidade se apresenta como um entrelaçamento, uma confusão de ações e interações cuja complexidade não é reduzir por uma teoria geral. 12 Note-se que com essa fragmentação da textualidade da história o que está em verdade a ocorrer é o abandono daquela “grande narrativa” (como instância de legitimação), cujo desmonte ou desmembramento desemboca numa sua substituição categórica: seu discurso como grande texto (ou grande livro) ideológico e ordenador do conhecimento e da verdade, que estava a atingir toda a “rede de conhecimentos sociais”, vê-se então substituído por inescapável miríade de textos. Diante disso, importa percebermos que essa miríade de textos, como testemunhos práticos, aparece-nos como que a representar a “contra-face” daquela visão global e até então dominante. Grosso modo, a “grande narrativa” sai do palco da história para que entrem em ação outras formas de narrativas, como expressão de testemunhos mais locais e comunitários, as assim chamadas “narrativas particulares”. 2 Uma “narrativa particular”: a compreensão da juridicidade no pensamento jurídico. Cada uma dessas diferentes e específicas narrativas particulares, como resultados de concretas operações historiográficas, destina-se a interpretar a um diferente tipo de texto e eles orientam diferentes questionamentos: elas formam assim suas diferentes visões de mundo. É isso que garantirá a especificidade de cada uma delas frente às demais. Problema central a um arranjo mais global dessas diversas historiografias particulares refere-se à dificuldade de se redesenhar sua relação, antes assegurada pelas grandes narrativas. Se é que ainda se poderá falar em “historiografia geral”, isso não poderá perder de vista que, uma vez assentada sua dimensão hermenêutica, bem como a certeza de que aquela grande narrativa não está mais legitimada a assentar a cientificidade global dessas diferentes “visões de mundo”, nenhum texto ou nenhuma textualidade é hoje vista, a priori, como detentora de melhor perspectiva explicativa. Os textos a que se destina o historiador não têm “valor em-si”. Eles valem, em verdade, por aquilo que dizem frente ao jogo de perguntas que o historiador lhe infere, ganhando aí o seu sentido histórico. Com isso, o que se quer salientar é que não há como se determinar previamente ao diálogo com os próprios textos qual é aquele que melhor explica dada realidade, sobretudo porque – numa visão hermenêutica da historiografia – o sentido de cada texto é conquistado sempre a posteriori. Diante disso, não há se falar que a “historiografia x” explica melhor a realidade social do que a “historiografia y”, se elas têm cada uma um diferente objeto de análise: “a história do arado não explica mais, ou menos, que a história da 12 COSTA, Pietro. Soberania, Representação, Democracia. Ensaios de história do pensamento jurídico. Op.Cit., p. 26. 60 O PENSAMENTO JURÍDICO E SUA “HISTORIOGRAFIA PARTICULAR”: A JURIDICIDADE NO ESTILO FLORENTINO metafísica ocidental e a história das receitas de cozinha não é uma história necessariamente “menor” (mas nem “maior”) que as histórias das batalhas.” 13 Cuida-se de perceber, portanto, que com o desmantelamento da “grande narrativa” aboliram-se, em ato contínuo, quaisquer níveis hierárquicos pretensamente insertos na operação historiográfica. É tendo isso mente que importa considerarmos algumas especificidades da “historiografia jurídica”, ora percebida como mais uma dentre tantas outras historiografias possíveis: como mais uma “historiografia particular”, a historiografia jurídica não se diferencia das demais “visões de mundo” (as “narrativas particulares”) em termos de se assumir como uma “melhor ou pior” forma de compreensão da realidade social, senão que somente pelo tipo de textos sobre os quais deita suas atenções. Saliente-se, dessa forma, que é a textualidade de cada historiografia particular que lhe garantirá sua especificidade frente às demais, de modo que – sob esse enfoque – a historiografia jurídica não tem condão de produzir narrativas mais ou menos importantes do que as “narrativas particulares” que se produzem por qualquer outra historiografia. O trabalho que então se impõe ao historiador do direito, mormente àquele que tenciona uma compreensão e uma escrita propriamente jurídica da realidade social, sem que com isso se anule as demais pretensões historiográficas, é o de se voltar aos modos como a própria história do direito tem se representado o seu próprio trabalho correr dos tempos: trata-se, como ensina Pietro Costa, de lançar um olhar para si mesmo, a fim de perceber as mudanças internar do seu esforço historiográfico, seja vinculado aos grandes modelos, seja deles liberto. Nesse movimento compreensivo de “autorepresentação da história do direito”, Pietro Costa aponta como ponto de partida obrigatório, concebendo-o como verdadeira arché, o pensamento jurídico de Friedrich Von Savigny: Savigny criou, por assim dizer, um idioma próprio do historiados do direito: um idioma que se enriqueceu e complicou no curso do tempo, mas que continuou a ser falado, em alguma medida, até a tempos recentes. É singular, pois, que o idioma savigniano goze de uma tal duração como dialeto, não como língua: quero dizer, sem metáfora, que, enquanto a imagem savigniana do desenvolvimento histórico em geral teve uma sorte, tudo somado, modesta (pense-se ao contrário, por contraste, no historicismo hegeliano e em todas as sucessivas revisitações), o modo savigniano de pensar o direito, o pensamento jurídico e a sua história assinalaram verdadeiramente uma longa estação da historiografia jurídica. 14 O que aqui importa restar claro, e especificamente com essa passagem, não é tanto a escolha do autor-jurista e do pensamento jurídico referenciado pelo historiador do direito (como o modo savigniano de pensar o direito), mas a metodologia à qual se está a chamar atenção. Cuida-se de um olhar que recai sobre as “continuidades normativas” que o próprio pensamento jurídico estabelece a cada tempo como necessárias: “o pensamento jurídico se desenvolve no tempo, mas não procede por saltos e fraturas, mas por continuidade e acumulação progressiva” 15. Uma historiografia jurídica atenta – sob esse olhar – é aquela que, assumindo o espaço do pensamento jurídico como seu ambiente próprio de trabalho, volta-se àquelas reflexões e respectivos “modos de pensar o direito” que ganharam vulto 13 É por isso que: “É necessário individualizar, no entrelaçamento não dominável de “todos” os textos, um grupo de textos que possa cada vez aparecer relativamente homogêneo; e é necessário, respectivamente, formular as perguntar “corretas”, determinar os critérios de uma leitura que dê sentido ao texto valorizando-lhe a coerência. Trata-se em resumo, de ajustar os instrumentos lingüístico-conceituais em torno aos quais organizar a própria narrativa.” COSTA, Pietro. Soberania, Representação, Democracia. Ensaios de história do pensamento jurídico. Op.Cit., p. 28. 14 COSTA, Pietro. Soberania, Representação, Democracia. Ensaios de história do pensamento jurídico. Op.Cit., p. 29. 15 Ibidem, p. 29. ANAIS DO V CONGRESSO BRASILEIRO DE HISTÓRIA DO DIREITO 61 normativo no âmbito desse mesmo pensamento jurídico 16. Com isso não se ignora, ao mesmo tempo, a possibilidade de um estudo que se destine àqueles “modos de pensar” que, diferentemente, não galgaram tal continuidade 17. E, nessa esteira, uma historiografia jurídico-brasileira que assuma essa como sua metodologia caminha no espaço que se abre com o pensamento jurídico brasileiro, em sua formação própria. Ainda assim, não se elimina a possibilidade de se intentar conectar com o pensamento jurídico estrangeiro que também aqui conquistou aquela continuidade. A referência a Savigny e ao “historicismo hegeliano” é tomada, no texto transcrito, como exemplos de “modos de pensar” que podem, ou não, ser considerados pelo historiador do direito. Não nos toca, aqui, fazer uma análise detida do “modo de pensar savigniano”, mas convém transcrevermos mais uma passagem de Pietro Costa a ele referente, uma vez que esclarece a centralidade metodológica que se dá ao pensamento jurídico: Um tema importante é a convicção da substancial absorção do direito no pensamento jurídico. Estou ressaltando as tintas por comodidade de exposição. Não quero dizer que Savigny ignorasse modalidade do jurídico diversas do pensamento dos juristas: basta pensar nos costumes e em sua relação romântica “íntima” com o Volk. Quero dizer apenas que toda a sua representação da experiência jurídica se alavancava não sobre a legislação, não sobre a jurisprudência, nem ao menos sobre os costumes, mas sobre o jurista como produtor de textos de saber: é em torno a isso e graças a isso que os outros elementos tornaram-se inteligíveis como forças operantes do ordenamento. É o pensamento jurídico, é a obra de reflexão e de elaboração empreendidas pelo jurista que recolhe para si, concentra e exalta a unidade da experiência jurídica. 18 É o pensamento jurídico e a tradição reflexiva da qual ele é partícipe que então aparecem como “campo de trabalho” orientado a uma historiografia propriamente jurídica 19: no que toca especificamente a proposta savigniana, é sabido que sua intenção de harmonizar de forma plena direito e história – espécie de perfeito harmonia entre teoria jurídica e história do direito – fora logo rechaçada, “mas o espelho no qual a história do direito reflete a própria imagem é ainda o espelho de Savigny.” 20 Trata-se do “mesmo espelho” porque, embora os modelos subseqüentes, dentre eles aquele que mais ganhou vigor teórico, o positivismo 16 “É claro que quem fala de pensamento jurídico, não por mera ocasião retórica, mas conscientemente, afirma implicitamente que não tem nada a partilhar nem com uma visão redutiva do direito, nem com uma concepção positivista da ciência jurídica e do jurista. O direito não pode, sob essa ótica, ser reduzido a instrumento do poder político ou a um acumula normativo mais ou menos ordenado sistematicamente; e a ciência jurídica, alforriada de toda servidão exegética, liberada do condicionamento necessário da vontade do legislador, é individuada como intérprete no significado mais intenso do termo, não como tecedeira de argumentações lógicas no interior de um sistema fechado que ela não contribui a construir e do qual ela simplesmente sofreu incidência, mas sim como mediadora entre as exigências sociais e culturais gerais e a cultura jurídica.” GROSSI, Paolo. Pensamento Jurídico. In. Crítica Jurídica Revista latinoamericana de política, filosofia y derecho, Curitiba> Unibrasil, 2005, p. 16. 17 “A rigor, portanto, existem não a história do direito, mas tantas histórias do direito quanto são as narrativas historiográficas que a cada vez se redigem: a história do direito não é o espelho de uma experiência já definida e em si mesma fechada, mas simplesmente um contraponto linguístico capaz de contrapor todas aquelas narrativas historiográficas (diversas entre si, ainda que incomparáveis) que se organizam em torno de algum standard de juridicidade, mesmo que compreendida”. COSTA, Pietro. Ibidem., p. 36. 18 Ibidem, Idem. 19 Fique claro desde logo que admitir essas continuidades, as quais em última análise configuram aquilo que se tem como tradição no âmbito de cada disciplina jurídica, não desemboca na obrigatoriedade de um tratamento dogmático e repetitivo dessa mesma tradição. Daí Pietro Costa falar da necessidade de uma “pitada de anarquismo metodológico”: “significa olhar os textos disciplinares jurídicos sem se pôr necessariamente dentro da tradição, sem inserir-se no bettiano processo circular que transcorre do presente ao passado na inalterável unidade da ciência jurídica e do seu circular desenvolvimento.” Ibidem, p. 40. 20 COSTA, Pietro. Soberania, Representação, Democracia. Ensaios de história do pensamento jurídico. Op.Cit., p. 30. 62 O PENSAMENTO JURÍDICO E SUA “HISTORIOGRAFIA PARTICULAR”: A JURIDICIDADE NO ESTILO FLORENTINO oitocentista, tenham optado por operar uma descontinuidade nessas reflexões, encontrando de fato outros e novos espaços para a reflexão jurídica, tal opção se faz no âmbito do próprio pensamento jurídico. São as próprias descontinuidades que se operam dentro do pensamento jurídico – e pensemos aqui no deslocamento positivista das atenções de um direito como “pensamento” para um direito como “objeto” – que em verdade garantem a sua continuidade. Seja assumindo-se numa perspectiva autônoma, seja aderindo a uma “grande narrativa”, quem está aí a seguir num ou noutro caminho é, ainda, o próprio pensamento jurídico. Daí a “metáfora do espelho” vir bem a calhar: o reflexo da realidade social, sob o olhar de uma historiografia jurídica – que, como já se salientou, não é mais ou menos adequada do que qualquer outra historiografia particular –, adere, de uma forma ou de outra, no espelho do pensamento jurídico. O uso da dogmática hodierna é, assim, instrumento de intelecção do direito passado: mas, gostaria de dizer, um instrumento de intelecção no sentido forte. O pensamento jurídico não vale para o historiador do direito simplesmente como um critério de seleção dos textos, um repertório de perguntar, um léxico empregável na própria “narrativa”; a dogmática hodierna serve ao jurista para compreender historicamente aquela que é a verdadeira e própria essência do objeto “direito”, tanto no presente quanto no passado. A dogmática hodierna serve, assim ao historiador do direito para compreender os elementos essenciais, os significados ocultos da experiência jurídico do passado: a dogmática jurídica é o “nome” melhor para “coisa” jurídica do passado.21 Mais à frente, referindo-se a diferenciação aqui já referida entre um “direito-objeto” e um “direito-pensamento”, assim prossegue Pietro Costa: Ora, que a história do direito assuma o direito como seu objeto parece uma tautologia banal. Vendo-se bem, entretanto, a tautologia é mais aparente que real: quando a historiografia jurídica obstina-se em fundar a própria identidade referindose ao objeto “direito”, ela, via de regra, pressupõe uma asserção teórica muito complexa, ainda que subentendida; pressupõe que “direito” valha como uma estrutura da experiência, capaz de a identificar na sua objetividade e unidade. Ora, creio que uma história do direito de inspiração hermenêutica, que tente se pensar além da crise dos “grandes” modelos omniexplicativos, possa duvidar da necessidade (e demonstrabilidade) de tal pressuposição. O historiador não se encontra, na realidade, frente ao direito como frente a um bem delimitado setor da experiência, que ele antes compreende em sua objetividade e unidade e depois, se quiser, insere no contexto social global, domínio de competência do historiador geral. O historiador do direito, como qualquer outro historiador, se encontra simplesmente frente a diferentíssimos tipos de textos: o problema comum, ao historiador do direito como a qualquer outro é historiador, é compreender que coisa diz o texto e como o texto diz aquilo que diz. A juridicidade não é uma estrutura do texto (e tanto menos obviamente uma estrutura da realidade), uma qualidade que o intérprete constata decidindo consequentemente se o texto em questão é tarefa sua ou é de competência do colega. O intérprete atribui um significado ao texto e nos conta o texto, constrói uma narrativa através do texto e sobre o texto; esta narrativa tem uma coerência e inteligibilidade na medida em que fala de alguma coisa, na medida em que tem um tema e coordena os próprios enunciados em torno a ele; se o tema em questão é definível como jurídico em qualquer significado que esta 21 “A dogmática jurídica, portanto, exprime a essência da experiência jurídica em todo o arco de seu desenvolvimento e torna possível o diálogo entre presente e passado sob a insígnia da continuidade da tradição; respectivamente, a história do direito se move a partir do saber jurídico enriquecendo-o com os outros aportes da tradição por ela revisitada e reconstruída.” COSTA, Pietro. Soberania, Representação, Democracia. Ensaios de história do pensamento jurídico. Op.Cit., p. 33. ANAIS DO V CONGRESSO BRASILEIRO DE HISTÓRIA DO DIREITO 63 expressão possa assumir no nosso hodierno léxico teórico, a narrativa pode dizer-se uma narrativa histórico-jurídica. 22 Não se pode perder de vista, tanto no âmbito dos estudos historiográficos voltados ao direito quanto nos estudo nos estudos propriamente filosóficos da juridicidade (com o que se incluem os estudos de “teoria do direito”), esta premissa central: a intenção objetividade do direito, como que a estabelecer a “paisagem jurídico” como objeto, também ela demanda um pensamento jurídico. Não é possível que se queira crer, ainda hoje, num trabalho estritamente descritivo no campo jurídico. Sobretudo porque o direito não se nos apresenta como uma objetividade em-si, quando se pretende inferir um tal direito-objeto, por trás há, inescapavelmente, um direito-pensamento (como pensamento jurídico) que assim o concebe 23. 3 A homogeneidade no texto jurídico. Como, a rigor, não há tão-só uma história do direito, senão uma miríade de possíveis análises, tudo a depender das narrativas historiográficas que pretendam assumir-se como jurídicas, e assim assumam o standard da juridicidade, impõe-se saber quando é que essa assunção garante alguma homogeneidade aos textos jurídicos 24. Em suma, impõe-se saber quando é que se atinge esse “standard da juridicidade”. Essa problemática ganha, ainda, em complexidade quando tomamos conta de que, como dito, a “experiência jurídica” não representa uma unidade sistematicamente reunida no “objeto direito”. Estando a “experiência jurídica” no todo aberta às orquestras que as mais variadas teorias ou simplesmente fragmentos de teorias jurídicas lhe venham imputar, de modo tal que a história do direito não pode limitar o seu trabalho a referir-se a um “objeto unitário”, essa homogeneidade textual não pode ser identificada em termos estruturais, mas de temática. Embora cada pesquisa se coloque questões distintas e com isso produza diferentes “leituras textuais”, não é equivocado inferir que – no âmbito de uma historiografia jurídica – os textos referenciados pelos interpretes não são absolutamente ou no todo diferentes. Ainda que sejam múltiplos, verdadeira miríade de possíveis caminhos, não têm eles tamanha diferença que os impeça de ser elencados ou coligados entre si como que num mesmo “grupo reflexivo”. Como já dissemos, as variadas historiografias se diferem em razão dos “tipos de textos” de que tratam: não está em questão, todavia, identificar uma “estrutura” que fosse a eles semelhante, mas antes perceber que, quando analisados de perto, esses textos indicam uma temática comum 25. É aí que os textos interpretandos conquistam aquele “caráter 22 COSTA, Pietro. Soberania, Representação, Democracia. Ensaios de história do pensamento jurídico. Op.Cit., p. 35. 23 “La iuspublicística, também y precisamente la iuspublicística como <<ciência>> rigurosa, no describe el Estado como el resultado objetivo de una seria de normas simplesmente constatadas, sino que construye el Estado, convierte el Estado en tema a través de una tupica red de metáforas, lo ritiene dentro del círculo mágico del mito y de este modo, en términos a un mismo tiempo analítico y metafórico, descriptivo y valorativo, <<científicos>> y <<míticos>>, lo asume como campo teórico propio. El saber jurídico, en un momento <<alto>> de tensión cogoscitiva, se organiza como discurso eficaz em la medida en que conduce por un mismo cauce metáforas, imágenes, esquemas rigorosamente lógicos: en resumidas cuentas, en la medida en que construye e imagina el próprio objeto en el momento en que pretende describilo. ” COSTA, Pietro. Discurso jurídico e imaginación. Op.Cit., p. 182. 24 “(...) es con esta atribuición de sentido, es con esta operación interpretativa como se atribuye al texto, si se la atribuye, el carácter de la juridicidad. La juridicidad no es una cualidad objetiva del texto, sino un standard atribuido a um texto en mitad de un intrincado itinerario interpretativo.” COSTA, Pietro. Discurso jurídico e imaginación. Op.Cit., p. 177. 25 “O que torna estes textos homogêneos? Antes de tudo, a organização da mensagem e a sua destinação: são textos que produziram e nos comunicam um saber; não nos dizem o que devemos fazer ou não fazer; não querem simplesmente divertir-nos ou nos informar; propõem-se como textos capazes de aumentar os nossos conhecimentos. O que os torna, em termos gerais, homogêneos é o seu componente essencialmente cognitivo, o 64 O PENSAMENTO JURÍDICO E SUA “HISTORIOGRAFIA PARTICULAR”: A JURIDICIDADE NO ESTILO FLORENTINO homogêneo”, isto é, quando se encontram às voltas – e cada qual com o seu olhar e sua leitura própria – com as problemáticas de uma mesma temática 26. Dessarte, são textos especializados e voltados a questões imanentes ao desenrolar das disciplinas jurídicas em suas especificidades que então se impõe cunharmos de textos jurídicos: nesse sentido, deve ser sublinhado o caráter também funcional desses textos, posto serem eles elaborados e destinados à resolução de “problemas concretos”, tanto teóricos quanto práticos. “Indagar sobre a matriz de uma disciplina significa em substância tentar individualizar naqueles elementos que permitem a uma disciplina existir e funcionar: antes de tudo a definição de objeto teórico da disciplina, do tema central sobre o qual os vários textos disciplinares convergem, o ponto de vista sobre a realidade que a disciplina intenciona transmitir por esta via; e depois o método recomendado pela disciplina em função da resolução dos concretos problemas que ela vem enfrentando; enfim, o estilo argumentativo adotado e as escolhas de valor imanentes na tradição disciplinar.” 27 Assim como os demais textos aos quais se atentam outras historiografias, os textos referidos na historiografia jurídica representam uma “visão de mundo”, uma compreensão da realidade social como que “consolidada” pelos membros de cada uma dessas disciplinas. Interessa notar que com isso não se formam apenas as interpretações ou os pontos de vista divididos comunitariamente (comunidade formada por aqueles membros), mas também estratégias de um específico grupo social, de cuja institucionalização teórica, por meio da tradição, desdobra-se sua “autoridade”. Não se pode perder de vista, portanto, que estamos a tratar de textos que – como salientado de início – atingem relevante grau de “normatividade social”, modificando comportamentos com suas informações e seus saberes especializados. Não à toa que se fala do homo juridicus como alguém “iniciado”: diferentemente do que ocorre com nossos familiares e “amigos desde sempre”, o direito demanda uma iniciação, isto é, requer que aquele que queira conhecê-lo a fundo e em suas especificidades (sua juridicidade) passe por “estágios de apresentação” sem os quais dificilmente saberá do que está a falar 28. Aqui afinal a tão temida “górgona do poder”, intrínseca mesmo à “ocorrência jurídica” 29: (...) põe-se com urgência, como para os textos de saber jurídico, o problema dos seus efeitos pragmáticos; põe-se, isto é, a exigência de compreender de que modo um texto de saber “faz coisas com palavras”, modifica os comportamentos, legitima ou deslegitima coalizões de interesses e estratificações de poder. O saber-poder de foucaultiana memória, o saber que inclui necessariamente um momento de poder, adquirida, pelos textos de saber jurídico, uma capacidade de sugestão e uma persuasividade particular, em muitos direções, seja pensando-se na relação entre os seu organizar-se em cadeias argumentativas e demonstrativas em função da “verdade”.” COSTA, Pietro. Soberania, Representação, Democracia. Ensaios de história do pensamento jurídico. Op.Cit., p. 37. 26 “Dentro destes textos de saber, portanto, formam-se ulteriores ligames de afinidade e respectivas marcas de diferença: alguns textos se coligam preferivelmente a outros textos, reclamam-se um ao outro, formam no curso do tempo uma espécie de longa cadeia, vêm a construir uma específica tradição. Dentro delas, os tendem com maior freqüência a reclamar-se, a coligar-se um ao outro, vindo a constituir, por assim dizer, os pontos de uma linha ininterrupta. A conduzir o leitor ao longo desta linha estão os mesmo textos, através do jogo cominado de citações abertas e algumas remições dissimuladas; e o que deles impressiona é a sua “área de família”, a intuitiva reconhecibilidade de traços comuns, apenar de neles distinguirem-se alguns aportes individuais, nas mudanças das modas e dos usos.” Ibidem., Idem.. 27 Ibidem, p. 38. 28 DA CUNHA, Paulo Ferreira. Introdução à Teoria do Direito. Porto: Résjurídica, 1988. 29 Górgona do poder essa da qual tentou fugir o normativismo jurídico, cuja arquitrave teórica é sem dúvida a teoria pura do direito, mas não conseguiu, como salienta MARIO LOSANO. Nesse sentido, Cfr.: LOSANO, Mario G. Sistema e Estrutura no Direito, Volume 1, São Paulo: Martins fontes, 2010, pp. ANAIS DO V CONGRESSO BRASILEIRO DE HISTÓRIA DO DIREITO 65 textos de saber e a comunidade disciplinar, seja pensando-se na relação entre o jurista e os seus vários, inevitáveis comitentes políticos. 30 Colocado diante de seus textos, o historiador do direito pergunta-se – sob o olhar da historiografia ora aventada – de que modo esse saber funcionou na realidade social, como ele produziu efeitos, se de fato os produziu, como afinal enfrentou e resolveu os problemas a que se destina, qual a sua compreensão da realidade social, dentre outras perguntas cuja dimensão pragmática deve ser salientada. Nesse trabalho, ele não adere a uma ou outra teoria ou doutrina, de modo que não se lhe impõe dizer acerca da “verdade” (do acerto) ou não das teorias em questão. Como um “entomologista” que segue o caminho de suas abelhas, o historiador do direito diligentemente persegue, com certo distanciamento, as teorias e doutrinas que se embatem a cada novo problema, sem deixar de perquirir qual delas teve sua propulsão concretamente realizada. 4 Os textos jurídicos e a opção hermenêutica. Como visto, o estilo florentino – aqui representado por Pietro Costa – admite a historiografia como operação contínua de compreensão hermenêutica de textos, de sorte que cada “historiografia particular” se volte aos seus específicos textos. Nessa esteira, a histórica do direito decorre da interpretação de textos jurídicos, estes prenhes, portanto, de uma suposta “natureza jurídica”. Quando se coloca a questão acerca de um “critério” que nos indique essa natureza e, por conseguinte, esses textos, duas são as abordagens possíveis: de um lado, há uma possível abordagem objetivista, cuja premissa basilar diz quanto à necessidade de se considerar “o texto em si”, como que a apostar numa “essência estrutural” do próprio texto a identificar sua natureza jurídica; de outro lado, há também a possibilidade de uma abordagem subjetivista, a salientar a inevitabilidade do sujeito e sua história naquela identificação. É com essa segunda abordagem que se desenrola o olhar hermenêutico-historiográfico ao qual estamos chamando atenção: O intérprete de um texto é um indivíduo historicamente confinado. Ele não é um espírito puro nem um eco passivo do texto, como se o texto fosse um arca cheia de significados fixos e predeterminados. O texto é uma estrutura flexível, aberta a um indefinido número de significados, e ´r o intérprete quem atribui sentido ao texto e o reescreve. A interpretação é um discurso de segundo nível, um discurso sobre um discurso. O discurso interpretativo que construo é composto de linguagem, valores e expectativas que compartilho com a sociedade, os grupos, a comunidade profissional a que pertenço. Essas são as pressuposições culturais que em uníssono determinam e permitem cada discurso interpretativo.31 O “processo hermenêutico”, na atualidade sobremaneira referido como círculo hermenêutico, já não é estranho ao jurista do nosso século: diz ele, em suma, que nossas pressuposições e pré-compreensões existenciais são condição infungível para o nosso contato com o mundo, bem como com os textos e signos aos quais nos dirigimos, firmando-se desde sempre um momento prévio e interpretativo ao conhecimento objetivo. O passado que assim nos chega impresso em textos não se descola, portanto, dessa “condição infungível”. Sua leitura pressuporá, desde sempre (o “immer schon” heideggeriano), uma sua antecipação préteórica, isto é, no momento mesmo em que o historiador a ele se volta sua leitura é antecipada por uma série de pré-compreensões nele insertas. Assim também se dará na identificação dos ditos “textos jurídicos”. Dizer o que é e o que não é um texto jurídico implica, entrementes, uma leitura hermenêutica, um “filtro 30 COSTA, Pietro. Soberania, Representação, Democracia. Ensaios de história do pensamento jurídico. Op.Cit., p. 40. 31 COSTA, Pietro. Soberania, Representação, Democracia. Ensaios de história do pensamento jurídico. Op.Cit., p. 44. 66 O PENSAMENTO JURÍDICO E SUA “HISTORIOGRAFIA PARTICULAR”: A JURIDICIDADE NO ESTILO FLORENTINO cultural” mínimo que nos assegure estarmos, ou não, diante de um texto jurídico. Ademais, é aqui que ganha centralidade metodológica a noção já referida de “tradição”: é mesmo a “tradição jurídica” – que de modo algum merece ser confundida com certo “tradicionalismo jurídico” – que nos apontará se estamos ou não frente a textos jurídicos 32. De mesma forma que quaisquer outros “tipos de textos” necessitam, para serem identificados como “políticos”, “filosóficos” ou “literários”, de alguma tradição que assim os epigrafe, assim também os textos jurídicos serão assim considerados por alguma tradição jurídica. Interessante perceber que essa tradição não acorre como critério de forma neutra ou meramente descritiva, tendo função verdadeiramente prescritiva ou normativa no interior do pensamento jurídico. Assim, é a tradição que, atuando como uma de nossas pressuposições culturais, nos diz qual texto é ou não jurídico. Os textos jurídicos não o são por possuírem quaisquer propriedades estruturais; textos jurídicos são aqueles que uma tradição denota como tais. A tradição é apenas um critério de reconhecimento de textos. 33 Dito isso, não se deve perder de vista a possibilidade de considerarmos também outros textos, que não aqueles assim considerados pela tradição, como verdadeiros textos jurídicos. Isso abre vazão para caminhos e perspectivas críticas no campo da historiografia jurídica, não obstante seus passos e olhares devam ainda incidir no âmbito do pensamento jurídico: ao que parece, a aposta de uma visão crítica, nessa toada, deve tentar trabalhar com essa categoria central (pensamento jurídico), ora ampliando-o ora dinamizando-o materialmente. É porque a hermenêutica ensina a percebermos que o conhecimento (como metalinguagem) está desde sempre aberto ao correr dos tempos que tal intento não pode ser ignorado, e tampouco poderá ser rejeitado em termos metodológicos. Daí a conclusão de Pietro Costa: Podemos escolher entre diferentes metalinguagens, mas não podemos evitar a escolha de uma delas. Não podemos ficar sem uma linguagem que nos permita contar nossa narrativa e entender a linguagem das fontes históricas, nossa linguagem-objeto: não podemos evitar traduzir a linguagem do passado na linguagem (em uma ou outra linguagem) do nosso presente. Podemos adotar as categorias que as tradições dominantes nos recomendaram e entregaram, ou tentar construir nossa metalinguagem de outra forma. Um passo necessário da pesquisa histórica é, contudo, a formulação e o emprego de uma linguagem através da qual a compreensão e a tradução do discurso passado em nossa cultura presente se tornem possíveis. A história como linguagem (objeto) e a história como metalinguagem (analista) compõem juntas, e dialeticamente, a expressão histórica. Certamente, a aparição da históriaobjeto é no todo dependente – a ponto de se fazer forçosa a premissa de que “não há uma história, mas sim uma miríade de possíveis histórias” – da história que o analista pretende estudar e contar. Isso quer dizer, em última análise, que a linguagem da história não se 32 Perceba-se que a “tradição jurídica” não merece ser confundida com um “tradicionalismo jurídico” porquanto aquela categoria não está a referir qualquer necessidade de “tomada de posição” política ou teórica no âmbito do pensamento jurídico. A “tradição” compõe, em verdade, o vocabulário de uma filosofia hermenêutica, em nada se confundindo com qualquer tradicionalismo. Assim como a tradição nos indica quais são os textos jurídicos, assim também a tradição nos indicará quais são os textos filosóficos, literários ou políticos. Trata-se de um filtro cultural que tem aqui caráter metodológico. 33 COSTA, Pietro. Soberania, Representação, Democracia. Ensaios de história do pensamento jurídico. Op.Cit., p. 45. Na página seguinte, assim prossegue o historiador do direito italiano: “A tradição funciona como qualquer outra pressuposição hermenêutica: ela fornece ao intérprete aquilo de que precisa, ou seja, alguma idéia prévia de direito, com base na qual possa atribuir uma qualidade jurídica a um texto. Se recorremos à tradição, atribuímos -lhe a tarefa de determinar a idéia prévia de direito que nos permite construir um corpus de textos cuja pertinência a uma pesquisa jurídico-histórica pode ser presumida.” (...) “Não podemos evitar o recurso a algumas lentes, a alguma idéia de direito, mas nada nos compele a adotar exatamente as lentes fornecidas pela tradição dominante, e nada nos impede de desenvolver um instrumento diferente, de determinar livremente nosso ponto de partida, nossa ideia inicial de direito.” ANAIS DO V CONGRESSO BRASILEIRO DE HISTÓRIA DO DIREITO 67 expressa por si só senão que por meio de uma (sendo por ela mediada) metalinguagem. A importância desta última é de fato fulcral. Daí a necessidade de o historiador se manter atento às suas “visões de mundo” quando colocado diante do seu objeto: perceba-se que, em última análise, quem cria o objeto de análise (a própria “linguagem da história”) é, sob um enfoque metodológico hermenêutico, o analista e a teoria que este venha a adotar em suas pesquisas (a “metalinguagem da história”). 5 A tensão essencial da historiografia contemporânea: a alteridade do passado frente à “propulsão normativa” que o presente impõe. Nesse contexto, o papel dos “estudos historiográficos” ganha vulto talvez até então inimaginável. Na medida, porém, em que se admite (como verdadeira “inevitabilidade epistêmica”) o historiador como intérprete ativo e criativo da linguagem histórica, como que a revelá-la em sua própria historicidade, isto é, dando sentido contemporâneo ao passado a partir do seu próprio “tempo”, é posta em xeque a possibilidade de uma compreensão do passado e da apreensão de sentido e valor autônomos. Se o historiador sempre “vai às coisas nelas mesmas” – parafraseando o adágio hermeneuta heideggeriano –, de modo que o sentido e o valor do passado são aqueles que o presente do historiador lhes imputa, coloca-se em dúvida a “necessidade” ou simplesmente “objetividade” do trabalho historiográfico. Sem dúvida tocamos num dos pontos mais incômodos da hermenêutica. Por um lado, o intérprete compreende o passado na medida em que se movimenta desde o mundo cultural e linguístico de seu presente e pressupõe os padrões conceituais que compartilha com a sociedade e os grupos profissionais a que pertence. Por outro lado, o intérprete-historiador apenas atua como tal se é sensível às sugestões de textos diferentes e distantes, e tenta respeitar e perceber sua alteridade. Nessa perspectiva, o processo hermenêutico é uma ponte (por mais estreita e frágil que seja) entre o presente e o passado. Mas a existência real da ponte é questionável. 34 Porque não é necessário seguir o “caminho desconstrucionista” 35– a pretender anular o passado no presente, como se não houvesse qualquer autonomia ao “texto interpretando” – que abre mão da linguagem histórica para subsumi-la no todo em sua metalinguagem, a proposta metodológica da qual estamos a tratar não ignora uma intencionalidade própria do texto histórico. Com isso, embora sob um olhar hermenêutico e historicizante, não se abre mão da tarefa específica do historiador, como tentativa constante de compreensão do significado dos textos objeto de apreciação no âmbito contextual historicamente demarcado 36. Assume-se assim que a adequada atenção ao passado, considerado em sua alteridade frente o devir do presente, é condição indispensável da compreensão histórica: de sorte que a própria metalinguagem da história perderia sentido não fosse pensada com olhos à sua linguagem, isto é, ao passado como alteridade. Se é, entretanto, uma condição necessária, não é suficiente. Porque a historiografia envolve um trabalho hermenêutico, não é possível que se limitem os questionamentos 34 COSTA, Pietro. Soberania, Representação, Democracia. Ensaios de história do pensamento jurídico. Op.Cit., p. 48. 35 Sobre esse caminho, que aqui não será trilhado, conferir: COSTA, Pietro. O conhecimento do passado: dilemas e instrumentos da historiografia. Op.Cit., p. 13 e seguintes. 36 “O problema com que nos preocupamos é principalmente a história dos textos jurídicos como tais. Estas duas áreas de pesquisa não se encaixam perfeitamente, porque textos dedicados à formulação e transmissão de conceitos jurídicos (e políticos) básicas constituem apenas uma subclasse entre as várias classes possíveis de que textos jurídicos são compostos. Mesmo se essas duas áreas se sobrepõem, podemos extrair algumas sugestões gerais de seus pontos de junção. A principal mensagem que podemos obter dos últimos trinta anos de debate sobre a história intelectual, além da variedade de abordagens, é o reconhecimento intrínseco do passado.” COSTA, Pietro. Soberania, Representação, Democracia. Ensaios de história do pensamento jurídico. Op.Cit., p. 52. 68 O PENSAMENTO JURÍDICO E SUA “HISTORIOGRAFIA PARTICULAR”: A JURIDICIDADE NO ESTILO FLORENTINO metodológicos quanto à “linguagem histórica”, desconsiderando sua “metalinguagem”. Com efeito, se assim fosse, estar-se-ia a falhar metodologicamente. O relacionamento entre o “intérprete” e o “objeto” do processo hermenêutico não deixa de expor, sobretudo quando apreendido como processo criativo, haver aí não um, mas dois momentos. Assim como não é passível de se deixar de lado a consideração da alteridade da linguagem histórica, da mesma forma não se pode perder de vista a arquitetônica que dele visa dar conta. Tão importante quanto a assunção daquela alteridade, é a admissão de que não há história sem alguém para lhe contar: não é tarde para lembrarmos que o historiador não é um espectador passivo. Dessarte, o historiador não está a considerar de forma absolutamente exterior as redes e os jogos de linguagem que o passado simplesmente dispõe à análise, como se o objeto saltasse por si só à sua frente, antes compreendendo-os a partir do presente e do próprio contexto linguístico (e teórico) em que está inserido. Como um “tradutor”, o historiador traduz em sua linguagem (presente) aquela que para ele é uma “outra linguagem”, prenhe de alteridade, a linguagem do passado. Assim: Não é suficiente que respeitemos a natureza histórica do texto que tentamos entender. Devemos nos assegurar de que nossa linguagem esteja bem equipada para seu trabalho. O objetivo, ou menor, o desafio do historiador é também manter um equilíbrio difícil e incerto entre os dois mundos diferentes, entre o presente e o passado, a linguagem através da qual ele fala e a linguagem sobre a qual ele fala. O trabalho do historiador pressupõe um relacionamento fundamental, ou de preferência uma tensão, ente o presente e o passado. Se abolimos um desses termos, sugerimos uma visão parcial e incompleta da historiografia. Devemos, pelo contrário, reforçar a relação entre passado e presente. Como podemos caminhar sobre esta trave escorregadia? 37 6 Ensaio de conclusão-encaminhamentos: o que é afinal manter-se atento à metalinguagem do historiador? De início, dito o que se disse, não se deve ignorar o fato de que a metalinguagem da história tem um papel estritamente instrumental, a ser assumido como filtro por meio do qual se apreende o objeto de análise, e como fim em si mesmo. De qualquer maneira, sob um olhar hermenêutico, a teoria que então será adotada – e no âmbito de uma historiografia jurídica, a perspectiva de direito que se adote – ganha mesmo centralidade. Uma vez, todavia, que a hermenêutica aqui cumpre um “papel subserviente”, a teoria seguida não poderá ser tão rígida e inflexível a ponto de tomar conta, em sua totalidade, do horizonte analítico do que parte o historiador: perceba-se que, adotando-se uma teoria excessivamente rígida e sistemática, pouco espaço sobra para a “aparição do passado”, de sorte que, nesse caso, a história resta escravizada na própria teoria. Lembremos que a história somente se apresenta ao historiador nos limites permitidos pela teoria adotada, daí sua instrumentalidade. Nas palavras de Pietro Costa: (...) os instrumentos conceituais e lingüísticos que utilizamos (e não podemos evitar utilizar) de modo a compreender o passado e falar sobre ele devem ser redefinidos e utilizados em uma perspectiva operacional. Em outras palavras: quando nós, historiadores, usamos a linguagem do presente, não buscamos teorias verdadeiras, simplesmente buscamos a melhor maneira de formular questões. Em minha opinião o historiador se beneficia de um pouco de ceticismo: é aconselhável que coloque entre parênteses o problema da verdade, o problema do valor cognitivo dos enunciados conceituais que utiliza. O historiador não é o campeão de uma teoria 37 COSTA, Pietro. Soberania, Representação, Democracia. Ensaios de história do pensamento jurídico. Op.Cit., p.53. E, categoricamente, na página anterior: “Devemos estar conscientes não apenas da linguagemobjeto, a linguagem sobre a qual falamos, mas também da metalinguagem, a linguagem através da qual falamos.” ANAIS DO V CONGRESSO BRASILEIRO DE HISTÓRIA DO DIREITO 69 filosófica, mas um experto em propor questões. (...) Podemos imaginar a ponte hermenêutica entre presente e passado como um diálogo, em que o historiador propõe para o passado questões às quais os textos do passado são respostas (suas respostas). 38 Daí Pietro Costa propor, sob o influxo da filosofia lingüística e da etnometodologia, uma definição do estatuto dos enunciados metalingüísticos utilizados na pesquisa historiográfica como “locuções indexicais”. Trata-se de locuções cujo significado varia de acordo com o contexto, espaço-temporal, em razão de sua indeterminação semântica. Diante disso, o problema passa a ser “como” utilizar as categorias do presente para a compreensão de uma alteridade que se distancia no tempo: em termos não mais temporais, como uma alteridade apenas antropológica, também pode se utilizar de tal ferramenta. Assim, o “direito como categoria indexical” surge ao historiador como termo ou categoria flexível que admite uma série de diferentes leituras 39. Diante dessa miríade de possíveis leituras, o historiador trabalha como que a unir materiais e sugestões no mais das vezes no todo distintos, como um verdadeiro bricoleur. Daí a expressão “historiador-bricoleur”, também referenciada na proposta historiográfica de Pietro Costa, no “estilo florentino”, e a enfatizar um arranjo analítico que não se organiza mais por sobre as tradicionais e sólidas bases do cientismo 40, mas tampouco, no labor em torno da juridicidade, com respaldo numa estrita doutrina jurídica sistemática e tida como “verdadeira”. Não é por outro motivo que se fala que o historiador, nesse contexto, inventa e reinventa sua metalinguagem não num feitio teorético ou filosófico, ou simplesmente epistemológico. Antes ele a pensa (em sua “reescrita analítica”) como ferramental adequado temporariamente, utilizável em sua empreitada pessoal. Identificado o espaço de atuação do historiador, por exemplo, o direito, o seu “escrever a história do direito” deve ser percebido como verdadeiro escrita através do direito: assim também “a história da sociedade, liberdade ou cidadania é, ao mesmo tempo, uma história através da soberania, liberdade ou cidadania” 41. O que se enfatiza com isso é que as formulações do historiador levam consigo algumas definições infungíveis, definições prévias referentes a esses termos (ou textos), de modo que a narrativa que decorrerá de sua análise escreverá uma história marcada a ferro por sua metalinguagem. Em suma, é a definição (prévia) estabelecida no plano da metalinguagem o que de fato sustentará e guiará a pesquisa empírica: perceba-se, para finalizarmos em definitivo, que se assim se dá no âmbito próprio da história do direito e da historiografia jurídica, da mesma forma se dá nos estudos jurídicos como um todo. Chegados até aqui, gostaríamos de concluir este texto – e para tanto pedimos licença ao leitor – com uma derradeira transcrição daquele que foi nosso guia e assim nos permitiu esta 38 Ibidem, p. 54. 39 “Quais são as principais características de tal uso do termo “direito”? Primeiramente, devemos abandonar uma visão holística do direito e enfatizar apenas alguns aspectos específicos do fenômeno complexo que chamamos de “direito”. em segundo lugar, precisamente porque os aspectos ressaltados do direito não exaurem o fenômeno jurídico como tal, podem ser usados de forma conjuntiva ou disjuntiva e gerar muitas questões diferentes e específicas. Em terceiro lugar, as definições empregadas devem ter um caráter formal e aberto, de modo que possam ser aplicadas a diferentes contextos.” Ibidem, p. 56. 40 Sobre o cientismo e o positivismo nos estudos jurídicos, conferir: HESPANHA, Manuel. Cultura Jurídica Européia: síntese de um milênio. Florianópolis: Editora Boiteux, 2005, pp. 373 e seguintes. 41 Para o estudo do conceito de cidadania, conferir o impressionante trabalho de Pietro Costa: COSTA, Pietro. Civitas. Storia della cittadinanza in Europa. 1. Dalla civilta comunale as settecento. Italia: Editori Laterza, 1999. E, transcrevendo passagem sensacional, à p. 21: “E ancora: civitas, soprattuto per i giuristi, è tanto questa città quanto la città, sta ad indicare sia gli ordinamenti particolari che l’ordinamento universale, l’Impero, che costituisce il fondamento di validità di quelli; ed ecco allora che, puntualmente, il termine ‘patria’ accompagna l’intero dispiegarsi dei significati di civitas: la città sarà patria singularis, distinta da una possibile patria communis e Roma in particulare, la città universale, il simbolo dell’Inpero, varrà come patria di tutti.” 70 O PENSAMENTO JURÍDICO E SUA “HISTORIOGRAFIA PARTICULAR”: A JURIDICIDADE NO ESTILO FLORENTINO “experiência do vocabulário florentino”. E isso porque, depois de tudo o que se disse, poderíamos afinal perguntar-nos de que vale tudo isso. Não querendo crer que a Faculdade de Direito – no feitio acadêmico e universitário – possa ser extinta ou simplesmente substituída por cursos cujo primado da “técnica pela técnica” se imporia a serviço de alguma “engenharia social”, acreditamos que o direito tem ainda hoje, e talvez sobretudo hoje, um papel importante a se cumprir ante as empreitadas que com ele concorrem a fim de substituí-lo: trata-se de com o direito assumirmos a possibilidade, senão necessidade, de um projeto humano alternativo frente à frieza que as redes de poder (político-econômico) hoje impõem 42. E, para tanto, um jurista atento será, certamente, chave central 43. Concluamos, portanto, com os dizeres de Pietro Costa: Poderíamos, quando muito, perguntarmo-nos se é inevitável cairmos no primado da técnica e na atitude que torna o direito uma engenharia. É certo que neste ponto todos os jogos devam ser jogados? Deveríamos talvez discutir mais a fundo não apenas sobre o currículo do futuro jurista, mas também sobre sua identidade intelectual. Deveríamos, em suma, decidir qual seja o nosso jurista ideal do futuro: um jurista conformado à lógica de Humpty Dumpty (para quem as palavras significam aquilo que o patrão quer), ou então um jurista interessado em alargar o leque das possibilidades e em imaginar alternativas. Se olhássemos para este último tipo de jurista, poderíamos, sim, confirmar que a história não serve para nada; mas poderíamos acrescentar que é exatamente a sua inutilidade que a torna indispensável.44 Referências AROSO LINHARES. A. Introdução ao pensamento jurídico contemporâneo. Coimbra: Policopiado. (no prelo). COSTA, Pietro. Semantica del potere politico nella pubblicistica medievale (1100-1433). In. IURISDICTIO. Milano: Giuffrè Editore. 2002. COSTA, Pietro. Soberania, Representação, Democracia. Ensaios de história do pensamento jurídico. Curitiba: Juruá Editora, 2010. COSTA, Pietro. O conhecimento do passado: dilemas e instrumentos da historiografia. Curitiba: Juruá Editora, 2007. COSTA, Pietro. Civitas. Storia della cittadinanza in Europa. 1. Dalla civilta comunale as settecento. Italia: Editori Laterza, 1999. COSTA, Pietro. Discurso jurídico e imaginación. In. Pasiones del jurista. Amor, memória, melancolía, imaginación. PETTI, Carlos (org.). Madrid: centro de Estudos Constitucionales, 1997. 42 AROSO LINHARES. A. Introdução ao pensamento jurídico contemporâneo. Coimbra: Policopiado. (no prelo). 43 Dito isso, não nos esqueçamos: “Paolo Grossi coloca o historiador do direito como um jurista (jurista teórico) que deve estar em diálogo permanente com os demais juristas práticos, como aquele que desempenha um papel de consciência crítica dos que se afundam na cotidianeidade prática. Aqueles das disciplinas aplicadas – desde que tenham sensibilidade cultural para tanto – são chamados a participar de um diálogo a partir de uma linguagem de fundo comum. Grossi nos ensina que o estabelecimento de uma dualidade – como se vê tanto aqui no Brasil – entr disciplinas formativas ou propedêuticas de um lado, e disciplinas “aplicadas” de outro, é procedimento culturalmente artificial e que pode levar a conseqüências esterelizantes para o conhecimento.” MARCELO, Ricardo. Laudatio. In. Doutorado Honoris Causa a Paolo Grossi. Curitiba: UFPR, 2011, p. 16/17. 44 COSTA, Pietro. Soberania, Representação, Democracia. Ensaios de história do pensamento jurídico. Op.Cit., p. 78. ANAIS DO V CONGRESSO BRASILEIRO DE HISTÓRIA DO DIREITO 71 DA CUNHA, Paulo Ferreira. Introdução à Teoria do Direito. Porto: Résjurídica, 1988. GINZBURG, Carlo. Relações de força. História, retórica, prova. São Paulo: Companhia das Letras, 2002. GINZBURG, Carlo. Ekphrasis e citação. In. A micro-história e outros ensaios. Lisboa: DIFEL, 1989. GROSSI, Paolo. Pensamento Jurídico. Trad. MARCELO, Ricardo. In. Crítica Jurídica Revista latinoamericana de política, filosofia y derecho, Curitiba: Unibrasil, 2005. HESPANHA, Manuel. Cultura Jurídica Européia: síntese de um milênio. Florianópolis: Editora Boiteux, 2005. HESPANHA, A. Manuel. O caleidoscópio do direito. O direito e a justiça nos dias e no mundo de hoje. Coimbra: Almedina, 2007. LOSANO, Mario G. Sistema e Estrutura no Direito, Volume 1, São Paulo: Martins fontes, 2010. MARCELO, Ricardo. Laudatio. In. Doutorado Honoris Causa a Paolo Grossi. Curitiba: UFPR, 2011. 72 CONSTITUCIONALISMO, TIRANIA E DIFICULDADE CONTRAMAJORITÁRIA: RAÍZES E CONEXÕES CONSTITUCIONALISMO, TIRANIA E DIFICULDADE CONTRAMAJORITÁRIA: RAÍZES E CONEXÕES. CONSTITUTIONALISM, TYRANNY AND COUNTERMAJORITARIAN DIFFICULTY: BASES AND CONNECTIONS. Gabriela Carneiro de A. B. Lima* Resumo: O presente trabalho se insere no campo da teoria da constituição, buscando compreender os fundamentos do constitucionalismo norte-americano a partir das raízes do federalismo e da dificuldade contramajoritária. Para tanto, mobiliza estudos historiográficos já realizados sobre o tema, de maneira a delinear grandes molduras temporais, através do desenvolvimento de uma trajetória conceitual relativa à construção das percepções quanto à necessidade de um governo central. Da mesma forma, abordam-se pensamentos em torno da criação de um novo desenho institucional, destinado a controlar a danosa atuação dos grupos facciosos. Por último, investiga as conexões entre a afirmação do judicial review e a ascendência do criticismo contramajoritário, assim como os obstáculos à afirmação da soberania nacional. Abstract: The present work, encompassed by the scholar field of constitutional theory, aims at understanding the foundations of north-american constitutionalism from the bases of federalism and countermajoritarian difficulties. For that purpose, it makes use of earlier historiographical studies developed about the topic in order to outline great temporal frames through the development of a conceptual path relevant for the construction of perceptions concerning the necessity of a central government. Similarly, this study intends to approach ideas about the creation of a new institutional design, meant to control the jeopardizing action of factious groups. At last, the connections between the affirmation of judicial review and the ascendency of counter-majoritarian criticism are investigated, as well as the obstacles to the affirmation of national sovereignty. * Gabriela Carneiro de Albuquerque Basto Lima. Mestranda em Filosofia e Teoria Geral do Direito na Universidade do Estado de São Paulo – FD-USP. Graduou-se em Direito pela Universidade Federal Fluminense – FD-UFF. [email protected] ANAIS DO V CONGRESSO BRASILEIRO DE HISTÓRIA DO DIREITO 73 Introdução Trata-se, o presente trabalho, de uma síntese dos principais argumentos e dados levantados em sede de monografia de fim de curso de graduação em Direito, na Universidade Federal Fluminense (UFF-2010). Orientada pelo professor Rogério Dultra dos Santos, a pesquisa envolveu compreender aspectos teóricos fundamentais que envolvem a fundação constitucional norte-americana, e os ciclos históricos seguintes. Desse modo, o trabalho buscou investigar as raízes e conexões de dois pilares centrais da teoria constitucional estadunidense, quais sejam, federalismo e dificuldade contramajoritária. Para tanto, primeiramente, desenvolveu uma abordagem à luz do judicial review realizado pela Suprema Corte, elencando conflitos a ela submetidos ou relacionados, de maneira a alcançar uma moldura conceitual. Buscou, em seguida, analisar a extensão das relações forjadas entre a trajetória da afirmação da supremacia da revisão judicial e o nascimento da dificuldade contramajoritária, tal como a concorrência entre as disputas federativas e a oscilação do criticismo alimentado frente à jurisdição constitucional. Pretendeu-se demonstrar, assim, que a história da ascensão da dificuldade contramajoritária esteve diretamente interligada à questão da supremacia judicial para revisão das leis. Constatou-se, por exemplo, que quando as decisões judiciais não são supremas, podem ser ignoradas, não atraindo para si grande criticismo, enquanto que, sendo supremas, não podendo ser ignoradas portanto, passam a tornar-se alvo mais frequente de crítica. No que diz respeito ao suscitado criticismo, em livro publicado em 2004, Larry Kramer, sobre a atualidade dessa questão constitucional, sentencia “In politics, the people rule. But not in the Law.”1. Tal crítica, direcionada aos arranjos contramajoritários, hoje sedimentados na interpretação realizada pelos tribunais, não é de todo nova. A pesquisa envolveu perceber como, desde a decisão da Corte Marshall em Marbury vs. Madison, inseriu-se o Judiciário em uma larga e inacabada disputa política, permeada por discussões que vão desde a sua legitimidade, ou ausência de, à percepção de como se devem comportar os Poderes em uma democracia. Por outro lado, ao virarmos o eixo de atenção para a realidade brasileira, é possível constatar uma relevante guinada no papel desempenhado pelo Supremo Tribunal Federal após o advento da Constituição de 1988. Dessa forma, sendo-lhe atribuído a função de Corte Constitucional, além de tribunal superior, em um contexto de redemocratização e de aprofundamento do fenômeno ao qual convencionou-se chamar por judicialização da política, tem-se popularizado cada vez mais os temas de sua pauta, e o teor de seus julgamentos. A respeito dessa difusão, e das múltiplas divergências existentes, o tribunal tem buscado amparo no postulado contramajoritário como fundamento de sua legitimidade. Todavia, o presente trabalho partiu do pressuposto de não existir no Brasil uma transferência abrangente do debate correlacionado, sendo o mesmo assimilado de maneira seletiva, e descontextualizada. E, ainda, além da seletividade com que se costuma tratar os debates constitucionais exógenos, cuja transferência merece cautela, o trabalho parte ainda da crença na necessidade de se dispensar maior atenção às peculiaridades do Estado brasileiro, cujo federalismo, de tendência centralizadora, possui desafios próprios. Assim propusemo-nos a investigar, justamente, a complexidade do debate acima apresentado, e de algumas de suas variáveis, 1 KRAMER, Larry D. The People Themselves: Popular Constitutionalism and Judicial Review, New York, NY: Oxford University Press, 2004. 74 CONSTITUCIONALISMO, TIRANIA E DIFICULDADE CONTRAMAJORITÁRIA: RAÍZES E CONEXÕES comprometendo-nos com o enriquecimento do campo da teoria constitucional, e oferecimento de subsídio àqueles que porventura pensem os fundamentos do constitucionalismo. Para a realização desse objetivo, o trabalho foi desenvolvido em torno de três eixos principais. O primeiro buscou apreender o contexto da revolução e da pós-revolução norteamericanas, procurando investigar o sentido do federalismo defendido, especialmente, por Madison e Hamilton. Esse primeiro eixo destinou-se, ainda, a delinear a preocupação manifestada, no Federalista de nº 10, quanto ao temor das facções, potencialmente tirânicas e, contra elas, a utilidade da União como elemento de salvaguarda. Já num segundo momento, em continuidade ao inicial, buscou-se encarar especificamente a trajetória da questão federativa à luz do judicial review, destacando os conflitos entre centralização e descentralização, supremacia nacional e soberania dos estados. Foi pesquisada e elencada, assim, uma série de decisões e de acontecimentos relevantes a respeito do tema, sendo promovido um esforço, pela autora, na busca da construção de uma narrativa que delineasse os arranjos conceituais estruturados conforme as já estabelecidas grandes Eras, sem ignorar as permanências e as interrupções porventura ocorridas. O capítulo buscou adotar, por fim, uma perspectiva interna, priorizando as interpretações realizadas pela Corte. Num terceiro momento, procurou-se fechar o ciclo proposto e, após apresentação dos temas federalismo, facções e judicial review, desenvolver os aspectos pertinentes à dificuldade contramajoritária. Desse modo, buscou-se não apenas definir o seu conceito mas, sobretudo, apresentar as múltiplas faces assumidas pela oscilante tensão entre a vontade do povo, ou sua maioria concreta, e a Suprema Corte, e sua interpretação, ao longo da história estadunidense. Por fim, é apresentada a conexão entre os tópicos em questão: federalismo, temor às facções, supremacia do judicial review, soberania da União. Como é possível observar, o trabalho não teve por objetivo promover uma investigação historiográfica específica mas, a partir de narrativas já consolidadas (com especial destaque para os trabalhos de Lêda Boechat Rodrigues e Barry Friedman), a partir de “histórias longas”, perceber as oscilações teóricas acima mencionadas. Assim sendo, as páginas que se seguem ambicionam apresentar uma síntese dos principais argumentos desenvolvidos ao longo da pesquisa e, não sendo possível apresentar todas as eras investigadas (cerca de dois séculos, cinco eras), optei, motivada pelo rigor científico, a trabalhar, neste artigo, com apenas uma era (a Roosevelt, momento-chave tanto para a afirmação da supremacia do judicial review quanto para a ascensão do criticismo contramajoritário). 1. Federalismo: o problema das facções e a necessidade da União como salvaguarda É notória a importância assumida, historicamente, pelos momentos da independência e da pós-independência norte-americanas. Especialmente, no que se refere aos debates que precederam a ratificação2 de uma nova e inédita Constituição, de conteúdo federalista, a criar um novo liame político-jurídico entre os Estados até então confederados. O grande debate, que pode ser apresentado de maneira didática através da oposição entre federalistas e antifederalistas, defensores da centralização e da descentralização, envolveu diversos aspectos que acabaram por tornar-se clássicos, e cujas divergências não se 2 Dentre os principais temas debatidos, sublinhamos as questões relativas ao comércio e às dificuldades militares. HAMILTON, Alexander; MADISON, James; JAY, John. American State Papers – The Federalist. Chicago: William Benton, 1952. ANAIS DO V CONGRESSO BRASILEIRO DE HISTÓRIA DO DIREITO 75 extinguiram no nascedouro. Em vista disso, tais aspectos têm se desdobrado através dos dois últimos séculos e permanecido objeto de grande disputa, assim como exercido grande influência sobre os movimentos constitucionalistas, com especial destaque para os ocorridos na América Latina3. Assim sendo, reconhecida a relevância da founding era4 e dos fouding fathers, e desejando-se conhecer o pensamento dos federalistas, destacam-se duas fontes: As atas dos debates constituintes, realizados a portas fechadas, e os artigos de autoria de John Jay, Alexander Hamilton e James Madison, reunidos em “O Federalista” – publicados originalmente com o objetivo de convencer a cidadania nova-iorquina da necessidade de ratificar a Constituição (GARGARELLA, 2006, p. 174). Dentre outras preocupações desenvolvidas na última obra, há uma específica, sobre a qual se debruça uma importante tradição da teoria constitucional e política, qual seja: A necessidade de serem construídas, e oferecidas, garantias frente ao risco da tirania5. Dessa maneira, a primeira etapa da pesquisa, destinada a delinear conceitualmente a questão federalista e o problema das facções, estruturou-se basicamente em torno de quatro eixos principais. O primeiro buscou abordar o conflito pós-independência entre Confederação e Estados, cujas tensões teriam alimentado uma generalizada sensação de crise, pelas elites revolucionárias, e percepção de saturação do modelo vigente. O segundo demonstrando como, dessa insatisfação, derivaram uma série de novas propostas, que podem ser divididas de maneira didática entre federalistas e antifederalistas, a orbitar entre dois pólos principais - centralização e descentralização. Tal percepção de desgaste, aliada à emergência de novos desenhos institucionais, culminará na realização da Convenção da Filadélfia, e nos debates que precederam a ratificação de seu texto constitucional. A partir daí, para o terceiro ponto, investigou-se a perspectiva federalista, e a preocupação central de Madison no artigo nº 10, a defender a vantagem de uma União frente aos riscos da tirania e da anarquia decorrentes da livre atuação das facções. Objetivou-se demonstrar o perfil garantista da suscitada teoria a partir, principalmente, da comparação com a então controversa anexação de uma Bill of Rights. Por último, servimo-nos da conclusão de Madison sobre a natureza desafiadora do controle das facções, principal tarefa, em sua visão, das legislaturas modernas. Portanto, além da relevância da problemática, descortina-se, ainda, a perene fragilidade com que se comporta o desejado equilíbrio entre o resguardo dos bens públicos e dos direitos privados; da manutenção do espírito, e da forma, popular de governo. 3 GARGARELLA, Roberto. Em nome da constituição. O legado federalista dois séculos depois. In: Filosofia política moderna. De Hobbes a Marx Boron, Atilio A. CLACSO, Consejo Latinoamericano de Ciencias Sociales; DCP-FFLCH, Departamento de Ciencias Politicas, Faculdade de Filosofia Letras e Ciencias Humanas, USP, Universidade de Sao Paulo. 2006. 4 Trata-se a noção de Fouding Era, ou “Era da Fundação” em português, de conceito-chave para os estudos de Teoria da Constituição e de Ciência Política norte-americanos. 5 Nesse primeiro momento, a pesquisa se debruçou, essencialmente, sobre três obras. Com o objetivo de compreender o contexto da independência, e dos sentimentos por ela alimentados, primeiramente utilizou-se o estudo de Gordon S. Wood, professor de história da Brown University, Rhode Island, intitulado A Revolução Americana.(WOOD, Gordon S., A Revolução Americana: história breve. Lisboa: Círculo de Leitores, 2004). Num segundo momento, em busca da importância do movimento federalista, e de seu legado para a Teoria Constitucional contemporânea, utilizamos algumas reflexões desenvolvidas por Roberto Gargarella. Por último, mas central, investigamos a teoria desenvolvida por James Madison no papel federalista nº 10, cuja imediata preocupação diz respeito à ameaça dos grupos facciosos em uma República. 76 CONSTITUCIONALISMO, TIRANIA E DIFICULDADE CONTRAMAJORITÁRIA: RAÍZES E CONEXÕES Desse modo, na visão do pai fundador, sendo o grupo faccioso formado por uma minoria, poderá criar instabilidades, contudo não estará capacitado a derrubar a Constituição, não ameaçando sua integridade. Entretanto, sendo a facção composta por uma maioria, poderá acabar por sacrificar o bem público, ou os direitos de outros cidadãos. From this view of the subject it may be concluded that a pure democracy, by which I mean a society consisting of a small number of citizens, who assemble and administer the government in person, can admit of no cure for the mischiefs of faction. A common passion or interest will, in almost every case, be felt by a majority of the whole; a communication and concert result from the form of government itself; and there is nothing to check the inducements to sacrifice the weaker party or an obnoxious individual. Hence it is that such democracies have ever been spectacles of turbulence and contention; have ever been found incompatible with personal security or the rights of property; and have in general been as short in their lives as they have been violent in their deaths. (MADISON, 1952, p. 60) Assim sendo, diante da questão sobre os meios a serem utilizados para fins de combate às facções, em um novo desenho institucional então em vias de elaboração, o pensamento federalista renegou qualquer possibilidade de serem erigidas garantias morais ou religiosas, pois, diante da oportunidade e do assédio, seu fracasso seria inevitável. Na visão de Madison, inclusive, seria essa a principal causa de instabilidade e de derrocada das chamadas “democracias puras” (MADISON, 1952, p. 60). A salvaguarda contra as facções, por conseguinte, poderá dar-se apenas numa República, a diferenciar-se do modelo democrático puro, principalmente por: 1) Delegação do governo a uma minoria eleita e 2) Maior abrangência do mesmo devido à maior extensão territorial. É possível afirmar, portanto, inclusive à luz de outros arranjos presentes na pauta federalista, tais como o sistema de freios e contrapesos e o bicameralismo legislativo, que a democracia ideal, na visão dos estudados teóricos, possui estrita ligação com a estabilidade do sistema político (GARGARELLA, 2006, p. 181). 2. Federalismo e judicial review Nos seus longos anos de existência, descontados os onze iniciais em que, carente de liderança, viveu uma vida apagada e descolorida, a Suprema Corte é uma peça fundamental da engrenagem política americana. Louvada ou destratada, defendida ou atacada, ela esteve, quase sempre, na crista dos acontecimentos internos mais importantes, e conseguiu superar numerosas crises sofrendo danos relativamente diminutos.6 A princípio, a atividade do controle de constitucionalidade realizada pelo judiciário poderia despontar como uma consequência lógica, e natural, de sua atividade jurisdicional fim7. Afinal, e quanto a esse aspecto parece não existir grande controvérsia, destina-se a tutela jurisdicional justamente à interpretação das leis, em sua ampla e sistêmica estrutura. Dessa forma, antes mesmo do advento da Suprema Corte norte-americana, pode-se constatar o difundido exercício da revisão judicial das leis pelas cortes estaduais, à luz de suas constituições locais (WOOD, 2004, p.141-152). 6RODRIGUES, Lêda B. A Corte de Warren (1953 – 1969): A Revolução Constitucional. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 1991. 7 CAPPELLETTI, Mauro. Judicial Review in Comparative Perspective. California Law Review,Vol. 58, nº 5. pp. 1017-1053. 1970. Neste caso, pressupõe-se o texto constitucional como rígido. ANAIS DO V CONGRESSO BRASILEIRO DE HISTÓRIA DO DIREITO 77 A respeito das razões históricas para o controle difuso realizado nos Estados Unidos, Mauro Cappelletti demonstra como as colônias britânicas, em contraste ao espírito francês (CAPPELETTI, 1970, p. 1028), já possuíam um Judiciário comprometido com a defesa dos direitos individuais de liberdade contra eventuais investidas opressoras promovidas pelo Governo: “(...) most retained a residual feeling that the long established principles of the common law were in some way superior to statutory innovations.” (CAPPELETTI, 1970, p. 1029). Em conformidade, se posiciona relevante parte da tradição teórica constitucional norteamericana, que enxerga, em seu judiciário, um antigo defensor dos direitos individuais frente ao arbítrio do governo8. Capelletti demonstra ainda, em seu estudo sobre o poder de revisão judicial, como a existência de regulamentos comerciais expedidos pela Coroa vinculava a interpretação realizada pelo Judiciário da Colônia sobre toda legislação local, de maneira inclusive a anulála em caso de inconformidade. Tal cultura, na visão de Cappelletti, será tão enraizada que acabará por ensejar as múltiplas criações de Constituições estaduais após a independência. Todavia, muitos seriam os obstáculos percorridos pela Corte Constitucional na busca pela afirmação da supremacia de seu judicial review, cuja pedra fundamental será lançada em Marbury vs. Madison. Por conseguinte, a questão federativa estará intimamente relacionada a esse percurso, seja através dos conflitos submetidos a sua jurisdição, seja através de sua inserção política como mais um ator, nesta complexa dinâmica entre governos locais e federal, interesses públicos e privados. Lêda Boechat Rodrigues, em sua investigação historiográfica acerca das raízes do direito constitucional norte-americano, e a Suprema Corte9, separa, didaticamente, a apresentação de seus períodos em quatro, aos quais, considerando a publicação do livro no ano de 1958, optei por adicionar mais um, subsequente. Cada período engloba um perfil de jurisdição constitucional próprio, sendo inclusive, muitas vezes, denominados como Eras pela teoria constitucional e pela ciência política Utilizou-se, portanto, sua organização para sublinhar aspectos concernentes à relação entre a trajetória do judicial review e a construção da percepção dos arranjos federalistas. No que diz respeito ao presente artigo, cujo objetivo é indicar os principais apontamentos do trabalho, como anunciado na introdução, optei por selecionar o período que vai de 1937 a 1957 como parâmetro, por tratar-se de um momento chave tanto para a afirmação da supremacia do judicial review quanto para a ascendência do criticismo contramajoritário. 2.1 A Era Roosevelt Sabe-se, que após a grande depressão de 1929, há uma importante guinada nos rumos do pensamento econômico. Eleito em 1932, reeleito em 36, 40 e 44, Franklin Delano Roosevelt viria, através de seu New Deal, a refundar as bases do governo norte-americano. De maneira oposta ao amplo liberalismo até então praticado, será seu governo o responsável por promover o Welfare State, ou Estado de bem-estar social, cujos compromissos sociais demandavam larga intervenção estatal. Desse modo, à luz da tradição hermenêutica anteriormente estabelecida pela Suprema Corte, caracterizada pelo laissez faire, não surpreenderá o choque ocorrido entre essa e a transformadora ideologia propagada pelo New Deal. 8 MCILWAIN, Charles. Constitutionalism: ancient and modern. Indianapolis: Amagi, 2007. 9 RODRIGUES, Lêda B. A Corte Suprema e O Direito Constitucional Americano. Rio de Janeiro: Forense, 1958. 78 CONSTITUCIONALISMO, TIRANIA E DIFICULDADE CONTRAMAJORITÁRIA: RAÍZES E CONEXÕES Assim, é interessante notar que, onde a presidência via benefícios sociais, a Suprema Corte enxergava inconstitucionalidade, à luz de seus paradigmas interpretativos, bloqueando diversos projetos de iniciativa da presidência de Roosevelt. Em 1937 é apresentado, então, o plano de reorganização judiciária que viria a ser conhecido como Pack the Court ou, em português, “lotear a corte”, destinado, em princípio, a reorganizar toda magistratura federal mas cujo maior alvo, sabe-se, mirava justamente a Suprema Corte. Entretanto, apesar de o projeto não ter frutificado, encontrando resistência no Senado, casa à qual fora apresentado após recusa dos líderes da câmara dos deputados, virá a ocorrer , na mesma Corte, progressiva mudança nas interpretações por ela realizadas, cujas decisões passariam a encontrar maior harmonia com a doutrina praticada pela Administração. É abandonado o Laissez faire constitucionalista em prol de uma interpretação alargada dos direitos fundamentais (novas concepções de igualdade, por exemplo, e inclusão de outros, como os trabalhistas); sendo substituída ainda a doutrina do federalismo dual, estática, por uma mais dinâmica, que virá a ser conhecida como federalismo cooperativo. A) West Coast Hotel vs. Parrish (1937) É justamente em West Coast Hotel vs. Parrish que restaria caracterizada a referida reviravolta jurisprudencial e o fim da denominada era Lochner10, cuja defesa da liberdade de contrato fora levada a problemáticos extremos. Assim, apresentado o conflito empregado-empregador à Suprema Corte, estando em jogo a liberdade de contrato entre os mesmos, indagou-se ao tribunal se a remuneração abaixo do mínimo legal de algum modo ofendia aos preceitos constitucionais do devido processo legal e da liberdade. Do seguinte modo pronunciou-se a Corte, através do juiz Hughes “What is this freedom? The Constitution does not speak of freedom of contract. It speaks of liberty and prohibits the deprivation of liberty without due process of law. In prohibiting that deprivation, the Constitution does not recognize an absolute and uncontrollable liberty. Liberty in each of its phases has its history and connotation. But the liberty safeguarded is liberty in a social organization which requires the protection of law against the evils which menace the health, safety, morals, and welfare of the people. Liberty under the Constitution is thus necessarily subject to the restraints of due process, and regulation which is reasonable in relation to its subject and is adopted in the interests of the community is due process.” 11 Em vista disso, marca-se uma grande reviravolta nos entendimentos realizados pela Corte a respeito da dinâmica federativa. Desponta, dessa maneira, uma nova compreensão do direito constitucional de liberdade, agora contrabalançado a outro, trabalhista, de cunho social. B) A concepção cooperativista: United States VS. Darby Em relação ao “redesenho” do federalismo norte-americano, cuja interpretação dualista viria a ser substituída por uma progressiva concepção cooperativista, e dinâmica, pode-se identificar seu grande precedente em United States vs. Darby onde, rompendo-se com o estabelecido em Hammer vs. Dagenhart, conclui-se que a edição de normas regulatórias, em matéria de comércio, pela União, não reflete inconstitucionalidade. 10 Trata-se de precedente onde a Suprema Corte decidiu pela liberdade de contrato em detrimento da regulamentação laboral aprovada pelo estado de Nova York. 11 Íntegra disponível em: <http://caselaw.lp.findlaw.com/cgi-bin/getcase.pl?court=us&vol=300&invol=379>. Acesso em 02 de nov. de 2011. ANAIS DO V CONGRESSO BRASILEIRO DE HISTÓRIA DO DIREITO 79 O caso dizia respeito à legislação trabalhista promulgada pelo Congresso em 1938, orientada à garantia de salários mínimos, regulação de turnos de trabalho e proibição de trabalhos infantis “opressivos”. Sendo multada uma empresa do estado da Geórgia, a mesma recorreu à Corte, reclamando pela inconstitucionalidade da lei congressual. Dessa forma, é estabelecido novo paradigma federativo, à luz do judicial review, cujo último intérprete redefinia suas molduras da seguinte maneira12 “Hammer v. Dagenhart has not been followed. The distinction on which the decision was rested that Congressional power to prohibit interstate commerce is limited to articles which in themselves have some harmful or deleterious property-a distinction which was novel when made and unsupported by any provision of the Constitutionhas long since been abandoned. (…)The conclusion is inescapable that Hammer v. Dagenhart, was a departure from the principles w hich have prevailed in the interpretation of the commerce clause both before and since the decision and that such vitality, as a precedent, as it then had has long since been exhausted. It should be and now is overruled”. Assim, inicia-se a superação do modelo predominante, cuja separação entre as esferas da União e dos Estados era, relativamente, mais rígida. Não foram poucos os teóricos, segundo Lêda, que viram nesse movimento um sintoma de declínio do federalismo (RODRIGUES, 1958, p. 128). 3. A ascensão do criticismo e da dificuldade contramajoritária Conceito delineado por Bickel13, a chamada dificuldade contramajoritária surge primeiramente como um sentimento no entre-guerras para, depois, entre as décadas de 40 e 70, ganhar corpo e adesão teórica.14 Caracteriza-se pela percepção de que, às vezes, para promover anseios democráticos, seja necessário bloquear a vontade da maioria, pressupondo-a como potencialmente tirana ou facciosa. Em The least dangerous branch, ou, em livre tradução, “O poder menos perigoso”, Bickel inicia a obra citando passagem do artigo 78 federalista, de autoria de Alexander Hamilton, onde o Poder Judiciário é comparado aos demais (BICKEL, 1986. p. vi) “Whoever attentively considers the different departments of power must perceive, that, in a government in which they are separated from each other, the judiciary, from the nature of its functions, will always be the least dangerous to the political rights of the Constitution; because it will be least in a capacity to annoy or injure them. The Executive not only dispenses the honors, but holds the sword of the community. The legislature not only commands the purse, but prescribes the rules by which the duties and rights of every citizen are to be regulated. The judiciary, on the contrary, has no influence over either the sword or the purse; no direction either of the strength or of the wealth of the society; and can take no active resolution whatever. It may truly be said to have neither FORCE nor WILL, but merely judgment; and must ultimately depend upon the aid of the executive arm even for the efficacy of its judgments.” O momento em que Bickel redige seu texto é o do final da década de 1950, onde a ordem do dia incluía a busca de novos fundamentos para o judicial review, preocupação essa, 12 Justice STONE, íntegra da decisão disponível em: <http://caselaw.lp.findlaw.com/scripts/getcase.pl?navby=CASE&court=US&vol=312&page=100>. Acesso em 2 de nov. 2010. 13 A noção de dificuldade contramajoritária apresenta-se na obra de BICKEL, Alexander. The Least Dangerous Branch. 2 ed. New Haven: Yale University Press, 1986. 14 WHITE, Edward G. The arrival of history in constitutional scholarship. Virginia Law Review. 88(3):485633, 2002. 80 CONSTITUCIONALISMO, TIRANIA E DIFICULDADE CONTRAMAJORITÁRIA: RAÍZES E CONEXÕES por sua vez, derivada de sua incessante busca por legitimidade. Assim, a emergência do conceito da função contramajoritária, a ser realizada pela jurisdição constitucional, teve nascimento a partir das inquietudes decorrentes de sua natureza não democrática. Dessa maneira, no que diz respeito à ascendência da questão contramajoritária, a pesquisa envolveu cinco pontos principais, servindo como linha mestra do estudo as investigações realizadas por Barry Friedman acerca da trajetória do referido criticismo, percebendo como sua emergência estará intrinsecamente relacionada aos ataques políticos sofridos pela Suprema Corte. Primeiramente pretendeu-se apresentar a problemática entre a aplicação do postulado e a plena realização da democracia, além das manifestações preocupadas com a legitimidade política das cortes constitucionais. Também se buscou indicar como a essência do criticismo esteve vinculada à corrente percepção de governança democrática. Num segundo ponto, foi apresentado o primeiro período histórico, desde 1800 até a Guerra Civil, apontando a relação entre a afirmação do judicial review e o movimento de centralização da República, além dos conflitos ocorridos entre a presidência de Jefferson e a Corte, e as mudanças ocorridas na transição para a era Jackson. No período seguinte, procurou-se delinear o lapso que vai desde a guerra civil até o New Deal de Roosevelt, cujo precedente Lochner, como destacado no item anterior, será o maior representante do laissez faire constitucionalista que viria a dominar a Corte da virada do século. Em sequência, sobre a terceira época, buscou-se apresentar finalmente a maior tensão vivida entre a Suprema Corte e a Presidência, entre as percepções da legitimidade da jurisdição constitucional e a vontade do povo, ou sua maioria. Finalmente floresce, portanto, de maneira intensa, a dificuldade contramajoritária, durante o rearranjo institucional promovido por Roosevelt. Porém, o criticismo passará a apresentar conteúdo diverso do anterior, praticado na Era Lochner. Assim, ao invés de considerar-se a revisão judicial como algo essencialmente usurpador, e ilegítimo, a crítica passará a focar a interpretação realizada, sugerindo existir formas corretas possíveis. Desse modo, a partir de 1935 um grande debate será provocado pelas sucessivas declarações de inconstitucionalidade, pela Suprema Corte, de legislações de conteúdo regulatório aprovadas pelo Congresso, ou pelas legislaturas estaduais, compreendendo-se a controvérsia, inclusive, como o grande tema editorial, pela imprensa, do ano.15 Assim, dá-se uma transformação na percepção do conceito de democracia, e da relação entre povo e governo, ocorrida na era Roosevelt. Marcada pelas conseqüências da grande depressão de 1929, constata-se a concessão de grande poder ao governo central, com objetivo de alcançar uma rápida solução dos problemas sociais e econômicos existentes. O conceito de democracia deixa de ser visto sob o fundamento de uma mais abstrata vontade do povo para passar a ganhar similitude com uma mais concreta majoritariedade16. 3.1 O choque Em março de 1937, após a apresentação do projeto que buscava refundar a estrutura das cortes norte-americanas, principalmente a da corte constitucional que, como vimos no 15 FRIEDMAN, Barry. The History of the Countermajoritarian Difficulty, Part Four: Law’s Politics, 148 U. Pa. L. Rev. 971 (2000). pp. 991-993. Ref.: Nota de rodapé nº 83 Biggest News Rose in Supreme Court, N.Y. TIMES, Dec. 26, 1935, at 19 16 A respeito, destacamos a elaboração da Emenda Constitucional n° 17, cujo conteúdo versa sobre as eleições diretas para o Senado, adotada em 1913. ANAIS DO V CONGRESSO BRASILEIRO DE HISTÓRIA DO DIREITO 81 capítulo anterior, no tópico referente ao período que vai de 1937 a 1957, mais tarde viria a fracassar no Senado, Roosevelt: “Last Thursday I described the American form of Government as a three horse team provided by the Constitution to the American people so that their field might be plowed. The three horses are, of course, the three branches of government – the Congress, the Executive, and the Courts. Two of the horses are pulling in unison today; the third is not.”17 O criticismo passará a focar, portanto, o sentido da interpretação realizada pelas Cortes, apontando sua necessidade de adequação aos novos tempos, e não mais caracterizando-a como, necessariamente, ou essencialmente, ilegítima. Grande enfoque será dado, então, pela crítica, por exemplo, à avançada idade dos juízes. Nas palavras do Senador Norris, em 1937: “Our Constitution ought to be construed in the light of the present-day civilization instead of being put in a straitjacket made more than a century ago” (FRIEDMAN, 2000, p. 1020) Todavia, após a reorientação jurisprudencial ocorrida na Corte, citada no item 2 desse artigo, pelo precedente Coast Hotel Co. vs. Parrish, tendente inserir a pauta dos direitos sociais em sua interpretação, afastando o outrora papel prioritário da liberdade de comércio e de contrato, diminuirá a pressão crítica que sobre a mesma pairava e, por tabela, a necessidade da reforma defendida por Roosevelt. 4. O temor Será, entretanto, a partir do maior enfrentamento ocorrido entre o Governo e o Judiciário norte-americanos que irá emergir, com vigor, o espírito contramajoritário da interpretação constitucional. Se, inicialmente, no período, já se pode constatar a embrionária preocupação, pela opinião pública, da garantia de independência aos juízes, posteriormente, principalmente com o advento dos regimes nazi-fascistas europeus, tal preocupação se aprofundará. “No people ever recognize their dictator in advance. He never stands for election on the platform of dictatorship. . . . Since the great American tradition is freedom and democracy you can bet that our dictator, God help us! will be a great democrat, through whose leadership alone democracy can be realized. And nobody will ever say 'Help to him or 'Ave Caesar' nor will they call him 'Führer' or 'Duce.' But they will greet him with one great big, universal, democratic, sheeplike blat of 'O. K., Chief! Fix it like you wanna, Chief! Oh Kaaay!” (FRIEDMAN, 2000, p. 1045). Desse modo, difunde-se o temor a uma eventual guinada totalitária do governo de Roosevelt, despontando a Corte como um necessário mecanismo de proteção à opressão. Preocupação essa que se consubstanciará, ainda, através do cuidado dispensado pela Corte à proteção dos direitos das minorias, inclusive religiosas. Observa-se, assim, a coexistência de sentimentos ambíguos diante da interpretação constitucional. Se por um lado, é desaprovado o teor de suas decisões, por outro, resiste-se à sua modificação, rejeitando-se o plano apresentado por Roosevelt. Na verdade, a essas impressões tem-se atribuído suas raízes no medo, generalizado, de que a concentração de poderes de governo pudesse facilitar uma ditadura. A Corte aparece, portanto, como uma maneira de contrabalançar essa possibilidade, ou, ainda, como uma espécie de última trincheira no que se refere à defesa da liberdade. Tal mudança, contudo, não se deu sem motivos. A maior abrangência da proteção aos direitos civis pode ser vista, também, como fruto, resultado, da sua incessante busca pela 17 Íntegra do dirscurso, transcrita e em áudio. Disponível em <http://www.hpol.org/fdr/chat/>. Último acesso: 2 de nov. de 2011. 82 CONSTITUCIONALISMO, TIRANIA E DIFICULDADE CONTRAMAJORITÁRIA: RAÍZES E CONEXÕES construção de sua legitimidade, em um jogo político onde atuam diversos atores, sob regras em perene tensão. Da seguinte maneira, portanto, em julgamento símbolo da guinada, pronunciava-se a Corte: Employees in industry have a fundamental right to organize and select representatives of their own choosing for collective bar gaining, and discrimination or coercion upon the part of their employer to prevent the free exercise of this right is a proper subject for condemnation by competent legislative authority. (…) But we are not at liberty to deny effect to specific provisions, which Congress has constitutional power to enact, by superimposing upon them inferences from general legislative declarations of an ambiguous character, even if found in the same statute. The cardinal principle of statutory construction is to save, and not to destroy. We have repeatedly held that, as between two possible interpretations of a statute, by one of which it would be unconstitutional and by the other valid, our plain duty is to adopt that which will save the act. Even to avoid a serious doubt, the rule is the same.18 Dessa forma, pode-se notar a drástica mudança ocorrida na orientação interpretativa realizada pela Suprema Corte norte-americana. De um tribunal pautado pelo liberalismo, passará a assumir progressivamente, no período, uma postura claramente comprometida com realização de direitos entendidos como sociais, a despeito dos até então hegemônicos, relativos à propriedade e à liberdade de contrato. Assumirá ainda, no período do New Deal de Roosevelt, uma declarada preocupação frente ao perigo das maiorias facciosas, firmando de vez o pilar do postulado contramajoritário. Conclusão Por fim, após o exposto nos parágrafos anteriores, parece possível apontar algumas conclusões. Primeiramente, destaque-se, restou confirmada, ao longo da pesquisa, a íntima conexão entre as trajetórias da ascensão dificuldade contramajoritária, da afirmação da supremacia do judicial review e da soberania da União. Reitera-se, assim, a constatação de que, não possuindo a Suprema Corte supremacia em sua revisão, o criticismo alimentado contra a sua atuação tenderá a diminuir, posto que suas decisões poderão ser ignoradas. Todavia, firmando-se como competente último para anular as leis, os ataques tenderão a aumentar. Desse modo, quanto mais forte a União, e mais ampla a jurisdição constitucional por ela promovida, maior será o criticismo fundado na vontade popular. Nesse sentido, considerando-se a teoria de Madison quanto à necessidade de se estabelecerem garantias frente ao risco das facções, despontam as maiorias tirânicas como o grupo de maior potencial ofensivo à integridade da Constituição. Não será surpreendente, portanto, a consolidação, cerca de um século e meio após a fundação norte-americana, do postulado contramajoritário pelas Cortes, de maneira a se tentar resguardar os direitos individuais frente a eventuais assédios populares. Todavia, pode-se observar que tais orientações, assumidas pela corte constitucional ao longo de sua história, não foram sempre assimiladas de maneira consensual pela opinião pública, ou acadêmica, estadunidenses. Em vista disso, sua trajetória estará marcada pelo recebimento de duros ataques, cuja dialética virá a construir o sentido de sua legitimidade. Em relação a isso, outras questões se apresentam. No campo da incessante discussão quanto à legitimidade do exercício da jurisdição constitucional, há vasto debate sobre, por 18 NLRB vs. Jones & Laughlin Steel Corp. (1937) <http://supreme.justia.com/us/301/1/case.html> último acesso 2 nov 2011. íntegra disponível em ANAIS DO V CONGRESSO BRASILEIRO DE HISTÓRIA DO DIREITO 83 exemplo, a natureza, e as razões, da investidura dos juízes de uma corte constitucional. É interessante observar que, se de um lado a cidadania deseja comandar o seu governo, e não submeter-se a decisões que supõe arbitrárias, por outro, não vê sentido em abdicar da garantia de independência oferecida à atuação dos juízes. Dessa forma, pode-se dizer que a maioria dos cidadãos gostaria de viver em um mundo onde a política fosse separada da justiça, sendo a independência dos juízes um dos principais pilares da teoria da separação dos poderes. Todavia, o que a história da interpretação constitucional revela é que, se tal pressuposto já encontra obstáculos para sua plena realização no pequeno dia-a-dia da justiça, maior dificuldade ainda encontrará no campo da interpretação constitucional. Em razão disso, é possível afirmar que, além das recíprocas determinações provocadas entre os campos da política e do direito, tal interação se realizará de maneira mais intensa, e sensível, no campo da Constituição, tendo em vista sua notável ambivalência jurídico-política. Desse modo, à luz dos aspectos abordados, conclui-se que a discussão encontra-se, ainda, diretamente relacionada à percepção de como deve operar a democracia, e o papel a ser desempenhado pelo Judiciário nela. Tal debate, conforme apontado ao longo do trabalho, não se iniciou hoje, remontando suas raízes à época da fundação norte-americana. Além disso, por mais que se deseje justificar a atividade da revisão judicial das leis do ponto de vista lógico, e assim se tentou legitimar muitas vezes a corte, parece inafastável a tensão natural entre o controle de constitucionalidade e a abstrata vontade do povo já que, em um argumento bastante simples, derivam as leis, em tese, de um congresso constantemente renovado, através de eleições. 84 O MITO DO DIREITO ROMANO: EM BUSCA DE UM DISCURSO FUNDADOR PARA O DIREITO BRASILEIRO O MITO DO DIREITO ROMANO: EM BUSCA DE UM DISCURSO FUNDADOR PARA O DIREITO BRASILEIRO THE MYTH OF ROMAN LAW: SEARCHING FOR A FOUNDING DISCOURSE FOR BRAZILIAN CIVIL LAW Giscard Farias Agra* Resumo: Quando se fala em direito privado no Brasil, a referência ao direito romano parece ser inevitável. O Código Civil de 1916 era cantado pelos nossos civilistas como tendo influência direta do direito romano em mais de 80% dos seus dispositivos, na clássica conclusão a que chegou Abelardo Lobo. Alguns de nossos atuais juristas, como José Cretella Júnior e José Carlos Moreira Alves, enfatizam que a influência dos institutos romanísticos continuou no Código Civil de 2002, fazendo a clara defesa da necessidade dos estudos de direito romano em nossas faculdades como meio de perceber a íntima ligação entre o nosso ordenamento do século XXI e normas romanas da Antiguidade Clássica, há pelo menos quinze séculos. Se isto parece ser lugar comum majoritário no campo jurídico, no campo historiográfico, percebe-se uma forte crítica a essa postura, que exporia não uma verdadeira relação direta de influência e continuidade, mas uma construção histórica discursiva pautada em uma série de elementos teóricos que não encontram mais respaldo na própria historiografia desde o início do século XX, ou seja, tal relação estaria baseada em pressupostos teóricos historiográficos que a própria história já rejeitou há décadas, e que encontra ainda legitimidade tão somente na tradição dogmática da história do direito que, apesar de supostamente estabelecer um encontro entre as duas áreas, em geral, assim não o faz, analisando a história a partir de concepções oitocentistas. Desta maneira, no presente texto, pretendo analisar criticamente a construção desse lugar na história jurídica brasileira tradicional, utilizando-me das ferramentas metodológicas que os novos domínios da historiografia me possibilitam, em destaque, os domínios da História dos Discursos, da História das Ideias e da História dos Conceitos, bem como de alguns pensadores do campo do direito que, por aceitarem estabelecer um real diálogo com os novos domínios do campo historiográfico, aproximam as metodologias e os enunciados produzidos em cada um, sendo responsáveis pela produção de uma nova história do direito, menos presa aos dogmas tradicionais, mais crítica e mais consciente. Palavras-chave: Renovação historiográfica. Mitologia jurídica. Direito Romano. * Professor assistente do curso de Direito, campus Santa Rita, da Universidade Federal da Paraíba (UFPB), é mestre e doutorando em História pela Universidade Federal de Pernambuco (UFPE). ANAIS DO V CONGRESSO BRASILEIRO DE HISTÓRIA DO DIREITO 85 Introdução O papel do Direito Romano na formação do ordenamento jurídico brasileiro já é estudado por nossos juristas há décadas. Enfatizam, eles, que é imprescindível compreender as noções civilistas cunhadas pelos antigos romanos para que possamos compreender o que somos hoje. Afirmam que somos herdeiros da riqueza cultural produzida pelos romanos, tendo dado continuidade a, pelo menos, doze séculos de evolução jurídica que estaria consubstanciada na divisão entre direito público e direito privado, nos campos normativos de direito das pessoas, direito das coisas, direito das sucessões, etc., na preservação de institutos como o usucapião, a posse, a detenção, e assim por diante. Para os romanistas brasileiros, não há dúvida do importante papel que o Direito Romano exerce na gênese de nosso direito civil nacional, tendo sido dele que extraímos todos os modelos de pensar as questões privatísticas, preservando, inclusive, os nomes e as categorias dos institutos originalmente criados pelos juristas romanos. A conclusão a que chegou, no início do século XX, Abelardo Lobo – de que cerca de 80% dos dispositivos do Código Civil brasileiro eram direta ou indiretamente influenciados pelas normas do Direito Romano –, é propagada ainda hoje em nossas doutrinas e, mesmo com a entrada em vigor de um novo Código Civil em 2002, a afirmação persiste. Chega-se a afirmar que, entre o Código de 1916 e o de 2002, existe um elo de continuidade de maneira tal que, mesmo que ainda não se tenha feito uma investigação mais profunda, já se pode afirmar de antemão que o novo Código preservou a influência do Direito Romano (ALVES, 2007). Em seu livro de Direito Romano, o nomeado civilista brasileiro José Cretella Júnior, tentando justificar o porquê da necessidade de se estudar o direito dos antigos italianos, afirma ... numerosos institutos do direito romano não morreram: estão vivos, ou exatamente como foram, ou com alterações tão pequenas que se reconhecem, ainda, nos modernos institutos de nossos dias que lhes correspondem. Para dar exemplos, apenas no campos das obrigações, podemos citar diversos tipos de contratos (a compra e venda, o mútuo, o comodato, o depósito, o penhor, a hipoteca), ainda existentes nos sistemas jurídicos de hoje (CRETELLA JÚNIOR, 2009, p. 08). Tal orientação, entretanto, não se refere apenas à experiência jurídica brasileira, mas refere-se a um conjunto de Estados que vinculam a origem de seus direitos positivos locais à influência, em menor ou maior grau, do direito dos romanos. Nestes países, especialmente Alemanha, Itália, Espanha, Portugal, o estudo de Direito Romano nas faculdades jurídicas ainda permanece enquanto disciplina obrigatória, tal qual era durante o período das monarquias modernas da Europa, apesar de um histórico recente de contestações em torno desta permanência. René David utiliza o conceito de “Família Romano-Germânica” para referir-se ao conjunto de países que basearam a sua produção jurídica a partir das noções inventadas pelos romanos (DAVID, 1998). Este posicionamento utiliza a história para se justificar: os países de direito da família romano-germânica são países que produziram o seu direito tendo por base o pensamento jurídico das universidades que, partindo de Bolonha, na atual Itália, a partir do século XII, e espalhando-se pelos demais territórios europeus até o século XIV, fizeram “renascer” o Direito Romano por meio do resgate, da leitura, da exegese e da interpretação da principal compilação de normas jurídicas romanas, o Digesto de Justiniano, propondo, a partir daí, modelos normativos baseados no estilo romano de pensar o direito, construindo ordenamentos jurídicos romanísticos que se expandiram para além da Europa por meio da conquista e da colonização das Américas, da África, da Ásia e da Oceania, entre os séculos XV e XX. Entretanto, se passarmos a pensar este movimento por um viés mais crítico, possibilitado pelos novos modelos de produção do conhecimento historiográfico, a construção 86 O MITO DO DIREITO ROMANO: EM BUSCA DE UM DISCURSO FUNDADOR PARA O DIREITO BRASILEIRO teórica dos parágrafos anteriores não se sustenta. Diz respeito, por outro lado, bem mais a uma relação inventada, a uma tradição produzida, a uma construção ideológica interessada, a uma história manipulada, do que a uma experiência historicamente demonstrável. O que pretendo discutir neste artigo diz respeito exatamente a este objetivo: desconstruir a ideia de continuidade que estabelece essa relação necessária entre o Direito Romano do passado e o Direito Civil contemporâneo, especificamente no contexto da experiência brasileira. 1. Tradição Analisando o papel do direito romano na formação dos juristas contemporâneos, o historiador português António Manuel Hespanha identifica dois argumentos usados como justificativas do estudo dogmático da disciplina direito romano nas faculdades: o da perfeição do direito romano e o da importância do seu legado ainda no direito atual. Pelo caráter de perfeição, os romanistas tentam estabelecer que os romanos, por terem sido governantes de praticamente todo o mundo conhecido de então, e por terem tido que encontrar soluções jurídicas tanto para os próprios cidadãos quanto para peregrinos que habitassem o seu território, acabaram produzindo pensamentos jurídicos não próprios de uma única sociedade, mas de vários povos diferentes, chegando mais próximos da elaboração de um conceito universal de justiça. Por outro lado, o legado costumeiramente citado que o direito romano teria deixado ao direito atual diz respeito a um suposto ininterrupto movimento de interpretação dos institutos de direito romano cristalizados especialmente na compilação produzida pelo Imperador Justiniano, na primeira metade do século VI, e que teria sido trazida novamente à tona no século XII pela ação das universidades. Teria sido por meio da interpretação de tais institutos, presentes no Digesto de Justiniano, que as universidades teriam podido produzir, entre os séculos XIII e XV, um pensamento teórico jusfilosófico comum a toda a Europa continental que iria paulatinamente influenciando a produção de leis positivas internas a cada reino, até a eclosão do período das grandes codificações do século XIX, onde todos os institutos de direito passaram a necessariamente compor os códigos legais de cada Estado a fim de que fossem reconhecidos pelos julgadores. Institutos, esses, diretamente baseados naquela produção jurídica europeia que deitava raízes no que “de melhor havia” do direito romano, preservado pela compilação do imperador Justiniano. No caso brasileiro, essa herança romana teria vindo por intermédio da colonização portuguesa iniciada no século XVI, que para esse país teria trazido administração colonial, exploração econômica e culturas linguística, religiosa e jurídica. A tradição jurídica portuguesa, por sua vez, produzida em meio às discussões universitárias da Europa continental do final da Baixa Idade Média, consubstanciava-se nas Ordenações do Reino, em suas versões Afonsinas (1446), Manuelinas (1521) e Filipinas (1603), que, transpostas ao Brasil desde o início de sua colonização, foram tendo alguns de seus dispositivos revogados pela produção de certos códigos nacionais, como o Código Criminal de 1830 e o Código de Processo Criminal de 1832, mas foram apenas plenamente revogadas com a entrada em vigor do Código Civil de 1916. Esta codificação cível brasileira, apesar de revogar as Ordenações do Reino de Portugal, não teria rompido com a tradição romanística aí presente, e repetiria a influência dos dispositivos de direito romano que influenciaram as codificações europeias ao longo da modernidade. É clássica a análise do Código de 1916 realizada pelo romanista Abelardo Lobo, de que se passarmos em revista os 1.807 artigos do nosso Código Civil, verificaremos que mais de quatro quintos deles, ou seja, 1.445, são produtos de cultura romana, ou diretamente aprendidos nas fontes da organização justinianéia, ou indiretamente das ANAIS DO V CONGRESSO BRASILEIRO DE HISTÓRIA DO DIREITO 87 legislações que ali foram nutrir-se largamente, como aconteceu a Portugal, a Alemanha, a França e a Itália, que fizeram do Direito Romano o manancial mais largo e mais profundo para mitigar sua sede de saber (LOBO, 2006, p. 17). Esse enunciado, produto de uma investigação realizada por Abelardo Lobo, passou a ser repetido à exaustão pelos romanistas brasileiros, como forma de utilizar essa pesquisa como legitimadora da pretensão da ligação do direito brasileiro com o direito romano, demonstrando a suposta continuidade que este estabelecia com aquele. Usos, estes, nem sempre muito cuidadosos, como é possível ser visto nesta passagem extraída da obra da historiadora Flávia Lages de Castro: Em um sentido mais objetivo, a importância do estudo do Direito Romano faz-se óbvia quando comparamos o Direito Romano com nosso Direito Civil. Nada menos que oitenta por cento dos artigos de nosso Código foram confeccionados baseandose direta ou indiretamente nas fontes jurídicas romanas (CASTRO, 2009, p. 78) A autora, especificamente, termina a sua fala indicando, em nota de rodapé, a leitura da obra de Abelardo Lobo de onde ela teria retirado os “dados objetivos” apresentados. Entretanto, esquece-se que a passagem citada do jurista maranhense refere-se ao Código Civil de 1916, e não ao Código de 2002, contexto no qual ela reproduz acriticamente a fala que Lobo elaborou para o Código anterior. Outro jurista, José Carlos Moreira Alves, é mais cuidadoso ao utilizar o enunciado citado acima. Reconhece a herança do romanismo no Código de 1916 mas reconhece que ainda não há estudos aprofundados sobre o Código de 2002 que possam levar à conclusão da mesma herança neste novo documento legislativo (ALVES, 2009). O papel do direito romano na formação dos juristas, desta maneira, baseia-se nos dois pilares apontados por Hespanha, consubstanciando-se na tradição jurídica privatística ocidental. Entretanto, quando se passa o olhar sobre tais argumentos, percebe-se que a tradição não se sustenta, que o ideal de perfeição já foi abandonado há algumas décadas nos estudos das humanidades, e que a noção da importância do legado do direito romano não se deu de maneira direta, mas a partir de uma série de fraturas, de acidentes, de interrupções e reinterpretações ao longo da história. 2. O ideal de perfeição A ideia de que os romanos teriam produzido um direito mais próximo da perfeição baseia-se na pretensão de estabelecer que há uma verdade universal, atemporal e imutável, comum a todos os povos humanos, e os antigos romanos, por terem expandido seu território por todo o mundo conhecido de então, chegaram o mais próximo do que seria essa verdade coletiva (HESPANHA, 2003). Tal pensamento foi basilar na produção da filosofia antiga da Grécia, politicamente oposta ao pensamento produzido pelos sofistas, que afirmavam não existir a possibilidade de alcançar a verdade absoluta, então seria papel do intelectual retoricamente construir seus argumentos e convencer os outros de suas verdades, sem estarem presos a nenhum elemento fora do discurso. A filosofia grega nasce, desta maneira, como preocupação ética e política de limitar a possibilidade de produção de discursos, condenando a elaboração irrestrita de verdades e estabelecendo que o limite ao discurso se encontrava na Natureza, no Cósmos. Apesar das diferentes visões que a filosofia ocidental lançou às suas questões fundamentais, a base platônico-aristotélica manteve-se presente nas elaborações posteriores, impondo o limite à produção do conhecimento como sendo a Verdade, possível de ser encontrada por meio da Filosofia, num primeiro momento, e da Ciência, num segundo momento. 88 O MITO DO DIREITO ROMANO: EM BUSCA DE UM DISCURSO FUNDADOR PARA O DIREITO BRASILEIRO Isto posto, pelo argumento dos romanistas, o direito romano representaria exatamente a produção jurídica de um povo que, ao expandir o seu território por todo o mundo então conhecido, entrou em contato com culturas as mais diversas, o que o possibilitou a produzir um ordenamento que, congregando juridicidade sobre povos de diferentes origens – patrícios, plebeus, clientes, equites, latinos, peregrinos, etc. –, refletisse a cultura jurídica não de apenas uma sociedade militarizada expansionista como era a romana, mas que contivesse valores jurídicos comuns a várias sociedades, aproximando o direito romano, especialmente o campo denominado IVS GENTIVM, de valores universalmente válidos ou, em outras palavras, de ideias essenciais, atemporais, a-históricas – verdadeiras, no sentido platônico, por excelência (HESPANHA, 2003). Observa-se, entretanto, que tal pensamento embasa-se na tradição ocidental, que estipula a possibilidade de se atingir a verdade absoluta, desde que sejam utilizados os métodos científicos de investigação. Essa tradição, por sua vez, passou a ser radicalmente contestada em suas premissas a partir do século XIX, inicialmente dentre do campo filosófico, espalhando-se, num segundo momento, aos vários campos das chamadas Ciências Humanas, No século XIX, tecendo severas críticas à crença de que a Filosofia e a Ciência seriam capazes de revelar a Verdade, Nietzsche afirmou que toda verdade era fruto de uma convenção humana, não tendo nenhuma relação natural com o elemento do mundo concreto que fazia representar. Para o filósofo alemão, todo enunciado nasce de processos consecutivos de metaforização do mundo concreto: sua transformação em impulso, imagem mental abstrata, sons, símbolos, signos linguísticos, palavras escritas, conceitos, enunciados. A relação existente, desta maneira, não é natural, mas estética, não havendo uma correspondência inescapável entre o enunciado e a realidade concreta que ele representa, mas tão somente uma vinculação construída pelos humanos como forma de dar inteligibilidade e organizar o mundo ao redor (NIETZSCHE, s.d.; FOUCAULT, 2002). Diferentemente da tradição platônica, portanto, em que os conceitos existiriam como verdades absolutas no Mundo Inteligível e que o conhecimento se daria por meio do reconhecimento das coisas do mundo sensível com aquelas ideias perfeitas, na tradição que nasce com Nietzsche os conceitos seriam produtos de atribuição humana arbitrária, convencionados histórica e socialmente por grupos de poder, havendo produção de conhecimento quando os conceitos previamente elaborados fossem usados como constitutivos de novos conceitos, por meio do estabelecimento de novas relações entre as coisas. Toda a produção de conhecimento, portanto, numa visão nietzscheana, é relativa e frágil, pois depende das condições sociais, políticas, econômicas, religiosas e culturais, e baseia-se na crença de que o instrumental conceitual anterior, usado para o estabelecimento das novas relações, seja, em si, verdadeiro. Havendo a negação a um dos pressupostos básicos de laboração de conhecimento, pode todo um sistema de pensamento vir a ruir. Por outro lado, Nietzsche critica ainda a postura tradicional da filosofia que, na pretensão de fazer crer que esse conhecimento não seja relativo nem temporário, mas absoluto e permanente, leva ao apagamento da historicidade da produção das verdades, fazendo com que os enunciados, ao repetirem-se à exaustão, consolidem-se no tempo, naturalizando-se e tornando-se inquestionáveis. Com o apagamento desses rastros, o enunciado, validado pelos grupos de poder, passa a ser visto como única possibilidade possível, historicamente comprovada, visto que teria resistido ao tempo e se imposto devido à própria racionalidade de sua constituição, quando, em verdade, o que havia antes era uma pluralidade de projetos possíveis dos quais apenas um conseguiu prevalecer perante os outros por motivos os mais diversos possíveis, não implicando necessariamente num caráter maior de verdade para com os outros, mas em interesses nem sempre restritos ao campo das ciências, mas também político, econômico, religioso, etc (JAY GOULD, 1999). ANAIS DO V CONGRESSO BRASILEIRO DE HISTÓRIA DO DIREITO 89 Pela abordagem nietzscheana, que não ficou restrita apenas a esse pensador, mas foi restaurada a partir da década de 1960 por filósofos, historiadores e antropólogos, tais como Michel Foucault, Michel de Certeau, Gilles Deleuze, Paul Veyne, Clifford Geertz, etc., devese considerar que toda verdade é uma convenção social e humanamente produzida e legitimada por grupos de poder. Não há, portanto, a possibilidade de se pensar em uma verdade que seja atemporal ou universalmente válida. As verdades, desta forma, têm histórias, não são elementos desencarnados, válidos pela sua essencialidade ou pela sua perfeição, mas são válidas porque socialmente se convencionou que assim o fossem. Da mesma maneira, quando perderem sua validade perante a sociedade que a construiu, serão descartadas como moeda que perde o seu valor (NIETZSCHE, s.d). Cada sociedade, por sua vez, convenciona diferentes verdades, não implicando em que uma esteja mais próxima de uma pretensa “verdade essencial” – categoria, nesta abordagem, abandonada – do que outras, mas tão somente que esses valores sejam produzidos a partir dos interesses próprios que cada formação humana tenha na sua enunciação. Repondo, agora, a questão do direito romano segundo essa perspectiva, deve-se considerar que o ordenamento dos antigos romanos consistiu de normas, regras, decisões, julgados, etc., produzidos em um momento histórico determinado, para responder a necessidades específicas, a partir de valores próprios de uma cultura que se desenvolve desde os primeiros tempos, no séc. VIII a. C., quando os romanos não passavam de pequenos grupos de camponeses politeístas tentando sobreviver em suas terras, até os derradeiros, no séc. V d. C., quando haviam se tornado militares imperialistas cristãos. Crer que o ordenamento produzido por esse povo tenha chegado mais próximo da perfeição jurídica, portanto, seria crer na existência de valores universalmente válidos, o que hoje é um posicionamento em grande parte rejeitado pelos estudos nos campos das humanidades. Compreender o direito romano em sua condição de cultura jurídica, como propõe Hespanha, é compreendê-lo antropologicamente, como elemento em fluxo, em constante (re)elaboração a fim de se adequar aos tempos no qual é usado. As necessidades jurídicas dos romanos em seus primórdios constitutivos da Realeza não são as mesmas de seus tempos finais de Império, muito menos aquelas de seu período áureo de expansão militar republicano. Para cada momento histórico, os romanos produziram uma série de normas jurídicas a fim de acompanhar as suas necessidades de ordenação de então. O direito, portanto, produzido pela IVRISPRVDENTIA romana, não pretendia buscar regras gerais, universalmente válidas, essencialmente perfeitas; pretendia, tão somente, conseguir se adequar à lógica cultural de cada período histórico, casuisticamente responder às questões que se impunham. O caráter generalista que se conhece do direito romano, por sua vez, não provem dele mesmo, mas provem da leitura que sobre ele se impôs a partir do século XII, quando do fenômeno denominado “renascimento do direito romano”, que foi menos um “renascimento” do que a invenção de um novo direito romano, que funcionará como mito de origem e legado para os ordenamentos jurídicos europeus e latino-americanos. 3. O legado para o Ocidente O papel de Roma na constituição jurídica dos Estados ocidentais é exemplar de uma abordagem altamente problemática da história da qual ainda hoje muitos de nossos juristas fazem uso acrítico. Historicamente, houve sociedades que se constituíram sob o discurso sacralizador de Roma, legitimando-se enquanto continuadoras do “legado romano”, fosse este cultural, político, religioso, linguístico ou mesmo jurídico: Bizâncio buscou se estabelecer enquanto a parte do Império romano que não havia sucumbido aos germânicos no século V; depois de sua queda para os otomanos em 1453, o papel de “terceira Roma” passou para 90 O MITO DO DIREITO ROMANO: EM BUSCA DE UM DISCURSO FUNDADOR PARA O DIREITO BRASILEIRO Moscou; o Sacro Império Romano de Carlos Magno se instituiu enquanto o renascimento do Império Romano por meio da ação unificadora dos francos; já o Sacro Império RomanoGermânico de Oto I se colocou como sucessor do Império Carolíngio e, portanto, continuador de Roma; os reinos cristãos da Península Ibérica, que iriam originar Portugal, no século XII, e Espanha, no século XV, insistiam na ideia de que cabia a eles a responsabilidade de levar adiante a cultura religiosa que havia nascido no Império e da qual eles, por terem sido constituídos por povos federados aliados a Roma, eram legítimos descendentes. Legitimandose enquanto herdeiros do legado romano, tais povos também se legitimavam na busca por tentar “recuperar” os territórios “perdidos”, então ocupados por outros povos. Isto levou, dentre outras consequências, à expansão territorial de tais povos e a batalhas entre francos e bizantinos, visigodos e suevos, cristãos e muçulmanos. Por sua vez, os reinos da Península Itálica justificavam-se no elemento territorial para ligar o seu presente ao passado romano. E foi aí, em território italiano, que, no século XII, outro fator passou a compor a lista de elementos que eram alegados para ligar as duas temporalidades: o nascimento das universidades fez com que o direito romano “renascesse” pelo trabalho acadêmico da universidade de Bolonha, liderada por Irnério (DAVID, 1998). O direito romano, enquanto elemento que está na base dos ordenamentos de vários Estados nacionais da contemporaneidade, estava bem distante de representar o direito que era experienciado em Roma. O direito romano que “renasce” no século XII em Bolonha é, de fato, uma representação do direito positivo que vigorava em Roma elaborado e alterado por ordem do imperador bizantino Justiniano, entre 529 e 533, compilado em quatro livros e posteriormente denominado de Corpus Juris Civilis. O principal livro denomina-se Digesto, que reúne uma série de pareceres proferidos pelos jurisconsultos da época clássica do direito romano (entre os séculos II a. C. e III d. C.). O trabalho de compilação de tais pareceres, que ficou a cargo de um grupo de jurisconsultos bizantinos liderados por Triboniano, estabeleceu recortes drásticos no direito positivo de Roma a que os jurisconsultos de Justiniano tiveram acesso: houve uma seleção dos prudentes que iriam compor o Digesto, daí uma seleção dos pareceres dos jurisconsultos e, por fim, a interpolação de trechos presentes nesta última seleção, com a subtração, o acréscimo ou a alteração de certas palavras do texto original. Isto fez com que o Digesto não representasse uma compilação do direito romano, mas com que ele se constituísse como um olhar, uma representação, do Império do Oriente sobre o direito positivo do Império do Ocidente que estava em vigor séculos antes de sua fragmentação política. Ou seja, as universidades da Baixa Idade Média não estudavam o direito romano enquanto experiência histórica vivida, mas nomearam de “direito romano” aquela série de pareceres que estavam presentes na imagem que Justiniano havia produzido sobre o direito positivo do Ocidente, que há muito já deixara de ser experienciada. Por sua vez, o que as universidades fizeram desde então foi elaborar estudos sobre o direito romano justinianeu buscando nele justamente aquilo a que ele não se prestava: o estabelecimento de regras gerais abstratas. Cada escola que se seguiu, dentre elas, a dos Glosadores (sécs. XII-XIII), a dos Comentadores (sécs. XIV-XV), a Escola Humanista (séc. XVI), o Jusnaturalismo racionalista (séc. XVII), a Escola Histórica (séc. XVIII) e o Juspositivismo (séc. XVIII), utilizando como principal base o Corpus Juris Civilis, mas também outros documentos e outras leis que foram sendo paulatinamente recuperados da experiência romana e comparados com o que se tinha no Digesto, foi elaborando uma nova imagem de direito romano, que não era igual às imagens anteriores, nem mesmo igual ao texto de Justiniano, nem também igual à complexidade do direito vivido enquanto experiência em Roma, mas era um direito romano novo, completamente distorcido e alterado, produto do olhar lançado a ele pelos novos pensadores. ANAIS DO V CONGRESSO BRASILEIRO DE HISTÓRIA DO DIREITO 91 Sobre tais alterações na trajetória do direito romano no Ocidente, na tentativa de adequar o Digesto aos novos tempos, afirma René David que já nos sécs. XIV e XV “(...) ensina-se, sob o nome de usus modernus Pandectarum, um direito romano profundamente deformado” (DAVID, 1998, p. 35). Já no Oriente, local onde o Digesto havia sido produzido no séc. VI, o desenvolvimento do pensamento jurídico que se seguiu à compilação justinianeia levou à elaboração de várias interpretações à obra do Imperador Bizantino, desta vez, adequando-as à experiência da cultura de Constantinopla, de base grega e cristã ortodoxa, dentre elas, as mais importantes consistiram na Écloga Isáurica, de Leão Isáurico (740); no Próchiron, de Basílio I (879); e nos Basiliká, de Leão VI (séc. X), além de vários elementos reformadores presentes nestas obras (chamados de “escólios”) que faziam com que o direito experienciado em Bizâncio se distanciasse cada vez mais das soluções romanas contidas no Digesto (LOSANO, 2007). Analisando a interpretação de “direito romano” contida nos Basiliká, Mario Losano afirma: “a compilação justiniana, as intervenções de Triboniano, as versões gregas, os escólios: a essa altura, nessa obra encontra-se apenas uma sombra do direito romano clássico” (LOSANO, 2007, p. 44). Desta maneira, a justificação do legado do direito romano que estaria contido nos ordenamentos jurídicos europeus e latino-americanos, supostamente oriundo de uma continuidade jurídica no tempo que teria levado a que o direito romano clássico tivesse permanecido incólume pelos séculos que separam o fim do período clássico (século III d. C.) ao tempo das codificações (século XIX), também não se legitima. O direito romano, enquanto experiência e cultura histórica, morreu com os antigos romanos. O direito clássico, entendido como o tempo de maior apogeu da IVRISPRVDENTIA romana, já havia sucumbido desde a crise do século III que levou ao fim do Principado e ao início do Dominato imperial. A tentativa de “salvar” o direito clássico, empreendida na campanha de Justiniano na Península Itálica não fez outra coisa senão produzir um outro direito, diferente do direito romano clássico – até mesmo porque não havia condições de compilar tudo do direito positivo de Roma de três séculos antes, muito havia sido perdido com os constantes saques à cidade que se sucederam ao longo do século V. Crer que o Digesto, elaborado no séc. VI, conseguiu preservar o que de mais rico juridicamente Roma havia produzido entre os séculos II a. C. e III d. C. é ignorar todos os conflitos militares que levaram à queda do Império do Ocidente entre o fim do período clássico e a ocupação bizantina, e pensar que os documentos jurídicos passarem incólumes a tais eventos. O percurso que o ordenamento produzido em Roma seguiu após o fim do Império do Ocidente abriu-se para caminhos diferentes: de um lado, o Oriental, Justiniano realizou a “compilação” e os seus sucessores produziram atualizações dessa obra, adequando as suas normas à realidade e à temporalidade bizantina dos séculos que se seguiram, levando a um distanciamento cada vez maior da obra de Justiniano para com o que se passou a produzir no Império do Oriente, como atestado por Losano; do lado Ocidental, o direito romano paulatinamente se fundiu ao direito dos povos dominadores, chamados genericamente de “germânicos”, produzindo novas e múltiplas versões de ordenamentos jurídicos, resultados das misturas de direito romano com direito germânico. O pluralismo jurídico aí gestado foi reflexo da própria situação política dos territórios do Império do Ocidente, fragmentado em múltiplos reinos sob o comando de povos germânicos – francos, burgúndios, ostrogodos, visigodos, suevos, vândalos, anglos, saxões, etc. No Ocidente, foi apenas no século XII que o direito romano presente no Digesto passou a ter alguma importância perante o pensamento jurídico. Serviu como modelo de pensamento jurídico na tentativa de superação do pluralismo jurídico europeu e invenção de um direito 92 O MITO DO DIREITO ROMANO: EM BUSCA DE UM DISCURSO FUNDADOR PARA O DIREITO BRASILEIRO comum da Europa Continental, ou Jus Commune. Entretanto, para realização de tal empreendimento, os dispositivos do Digesto precisaram passar por diversas adequações e atualizações, o que levou as universidades a produzirem um pensamento jurídico que, apesar de afirmar ser oriundo dos pareceres da obra de Justiniano, afastava-se em muito dela, pois distorcia o sentido buscando interpretações mais gerais e universais, pretensões que extrapolavam o conteúdo daquela obra. Michel Villey, estudioso da história e da filosofia do direito, analisando a produção do Digesto e a ação das universidades em sua interpretação, afirma: Infelizmente esses filósofos [da Baixa Idade Média] as interpretaram [as definições do Digesto] de maneira progressivamente falsa. O idealismo substituiu a ciência jurídica romana por uma outra ciência, uma outra linguagem, apresentadas como as únicas racionais, e impostas de uma vez por todas pela razão pura. Os romanistas caíram na armadilha. Expõem-nos as soluções romanas transpondo-as para as categorias modernas de propriedade, de contrato, de direito, de lei, de justiça etc.; perdem o essencial e o mais útil (VILLEY, 2008, p. 89). Para Villey, assim como para Hespanha, o grande problema no estudo do direito romano é a tentativa de transpô-lo para as mesmas categorias de nossos dias, como se séculos houvesse passado, sem que o direito produzido pelos romanos tivesse sido alterado, mas tivesse permanecido em nossos ordenamentos. Tanto Hespanha quanto Villey propõem uma análise menos idealista, insistindo na perspectiva culturalista de análise de um ordenamento jurídico – compreender a cultura romana da antiguidade e as formas de inteligibilidade que os romanos davam ao mundo, dentre elas, os sentidos de palavras como propriedade, escravidão, lei, justiça, a fim de não naturalizá-las, pensando possuírem os mesmos sentidos que essas mesmas palavras possuem hoje. Compreender a historicidade dos conceitos, os diversos sentidos dados às palavras ao longo do tempo e as maneiras como os homens organizavam o seu mundo a partir desses significados – tal é a proposta que ambos os autores fazem, com o fito de compreender o quão diferentes, e não mais iguais, somos dos romanos; o quanto nos distanciamos do ordenamento produzido pela Roma antiga. Não negam, entretanto, que ainda hoje utilizamos certas palavras e institutos semelhantes, mas, na medida em que respondem a anseios e valores diferentes, eles próprios se diferenciam dos seus homônimos do passado, visto que a continuidade das palavras não implica na continuidade das práticas ou dos significados atribuídos a institutos semelhantes (HESPANHA, 2003; KOSELLECK, 1999). A obra de Paolo Grossi sobre a propriedade é um dos exemplos possíveis que posso citar nesse direcionamento mais crítico de análise cultural dos significados dos institutos jurídicos (GROSSI, 2006). A não compreensão dessa historicidade, por sua vez, implica em uma leitura metodologicamente viciada, acrítica, tomando a história ou como um discurso progressista unilinearmente evolutivo e, portanto, conformador, ou idealizador dos dogmas e da tradição do passado e, portanto, conservador, romantizado (MACIEL & AGUIAR, 2008). Nesta posição, encontram-se muitos de nossos romanistas pátrios, ao idealizarem o direito romano e tentarem vincular o Direito Civil brasileiro do século XXI ao direito romano da antiguidade clássica de mais de quinze séculos atrás, idealizando uma “idade de ouro” do direito privatístico (GIRARDET, 1987), estabelecendo relações de continuidade e permanência para com este período, como foi visto pelas citações presentes no início deste texto. Considerações Finais O Império Romano, desde a sua dissolução política data de 476, ocupou em vários espaços culturais o lugar de autoridade na construção de mitos legitimadores em campos os mais diversos, como político, religioso e jurídico. ANAIS DO V CONGRESSO BRASILEIRO DE HISTÓRIA DO DIREITO 93 Politicamente, houve sociedades que utilizaram da autoridade do Império para estabelecer conexões com esse passado e legitimarem-se enquanto continuadoras de uma tradição subitamente desaparecida; religiosamente, o cristianismo, religião oficial do último século imperial, fez com que a sua preservação parecesse ser a continuação da própria cultura latina romana, autorizando sociedades a estabelecerem-se enquanto continuidade desse traço cultural; já juridicamente, a produção de normas jurídicas para organizar as sociedades da Idade Média e da Idade Moderna, supostamente colocando o Digesto como livro a partir do qual tais normas puderam ser pensadas, mesmo com a maior parte dos autores hoje admitindo que as novas produções legislativas se distanciavam cada vez mais das soluções contidas na obra de Justiniano, tanto no Oriente quanto no Ocidente, e o que foi produzido tendo como “base” aquele livro continha tão somente esparsas sombras do que havia sido, um dia, “direito romano”. Historicamente, percebe-se muito essa tentativa de estabelecimento de uma continuidade como meio de autorizar a produção social em vários reinos e Estados modernos. Entretanto, essa legitimação pela autoridade do Império consegue ser vista ainda nos dias de hoje, e em sociedades que nunca fizeram parte de Roma, mas que buscam afirmar a ligação de maneira retórica, pelo estabelecimento de laços que aproximem uma sociedade a outra, mesmo que temporalmente uma tenha sido constituída apenas mais de um milênio depois da queda da outra. Refiro-me, especificamente, ao contexto brasileiro. Estabelecer essa ligação com Roma e o seu legado jurídico serviu e serve ainda hoje como elemento que legitima certos espaços de fala. Acriticamente, existem autores, dentre eles juristas e mesmo historiadores, que exaltam o papel e o esplendor de Roma e estabelecem a ligação para com esta civilização por meio da tradição jurídica. No Brasil, já foi muito forte essa postura que, apesar de problematizada nas últimas décadas, é encontrada ainda hoje em vários discursos da jusprivatística, discursos que circulam nas academias e nos livros de história do direito. Exemplo disso é o trecho que segue, extraído do livro História do Direito Geral e Brasil da historiadora Flávia Lages de Castro, que ressalta a suposta ligação entre brasileiros e romanos, entre ordenamento brasileiro e direito positivo romano, fazendo inclusive uso de reticências num tom até mesmo nostálgico. A História de Roma é a história de todos nós... história que perpassa todo o ocidente e nos faz oriundos dos mesmos pais... Latinos, antes de tudo. Isto com todos os defeitos e qualidades que possam ser atribuídos à latinidade. Isto com todas as formas dos seres humanos, iguais a nós, que conquistaram o mundo inteiro de então... (...) Somos romanos até quando falamos, nossa língua é filha do latim, somos romanos na nossa noção urbana, somos romanos em nossa literatura, somos romanos mesmo quando temos uma noção de patriotismo. Somos romanos quando falamos em Direito, quando fundamos nossa sociedade em um Estado de Direito. Direito este sistematizado pelos romanos antigos (CASTRO, 2009, p. 77). Roma, portanto, aos romanistas brasileiros, parece dar um ar de legitimidade e importância ao direito nacional. Pelo nosso direito civil, de base, conforme eles insistem, romanística, parecemos estar mais próximos do “grande legado cultural” que foi o legado jurídico romano. Tal ligação parece legitimar o nosso ordenamento, dar-lhe uma importância histórica, mostrar-nos enquanto continuidade daquela tradição. O que faz, entretanto, é negar a possibilidade de enxergarmos a diferença, a autenticidade, a originalidade de nossas respostas. Nega a experiência histórica brasileira que possibilitou que o ordenamento nacional fosse constituído de tal maneira, e não de outra. Ao atrelar-se o direito brasileiro ao direito romano, submete-se aquele a este, constrói-se o direito romano enquanto elemento que irá 94 O MITO DO DIREITO ROMANO: EM BUSCA DE UM DISCURSO FUNDADOR PARA O DIREITO BRASILEIRO fornecer as respostas às lacunas do brasileiro, enquanto elemento que coordena a própria formação deste último. Tal discurso conscientemente ignora todo o movimento histórico que separa o direito de Roma na antiguidade do direito do Brasil no século XXI. Fazer crer que o direito teria sido preservado incólume por dois mil anos é desconhecer todas as alterações feitas a ele, desde aquelas feitas no próprio espaço da Roma antiga àquelas que levaram à produção do Digesto, continuando daí para frente com as várias interpretações das várias universidades ocidentais que se sucederam, transformando um emaranhado de pareceres casuísticos romanos em um sistema ordenado e generalista de direito romano. É, por sua vez, ignorar também todas as demais culturas jurídicas que incidiram na formação social brasileira durante os cinco séculos de história que este país teve desde a ocupação portuguesa (dentre elas, as influências alemã, espanhola, francesa, holandesa, italiana, polonesa, portuguesa e, até mesmo, de ordenamentos não vinculados à tradição romano-germânica, como o direito inglês). E é também, por fim, ignorar a própria autonomia jurídica brasileira, que, como toda cultura estrangeira, foi forjada no seio de uma pluralidade de influências estrangeiras, mas que soube apropriar-se de tais influências ativa e criativamente, lendo-as a partir da tradição local e dando funcionalidades específicas a tais questões, não as recebendo passivamente, mas usando-as ativamente (CHATIER, 1990; CERTEAU, 1994). A complexidade da experiência vivida, possibilitadora da formação original de um direito novo que descende de uma série de relações entre povos os mais diversos que contribuíram em maior ou menor medida para a atual situação, simplesmente é negada e simplificada quando metodologicamente continua-se a pensar o direito atual como evolução contínua e linear de um passado sacralizado, idealizado e mitológico. Referências bibliográficas ALVES, José Carlos Moreira. Direito Romano. 14 ed. Rio de Janeiro: Forense, 2007. ______. Estudos de Direito Romano. 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São Paulo: Martins Fontes, 2008. 96 EXPERIÊNCIAS E ANTROPOFAGIAS JURÍDICAS: UM DEBATE COM A HISTÓRIA DO DIREITO EXPERIÊNCIAS E ANTROPOFAGIAS JURÍDICAS: UM DEBATE COM A HISTÓRIA DO DIREITO EXPERIENCES AND LEGAL ANTHROPOPHAGY: A DISCUSSION WITH LEGAL HISTORY Gustavo Silveira Siqueira* Resumo: Neste artigo o autor tenta propor um conceito de experiências jurídicas que possa ser utilizado em uma história do direito plural e problematizante. Discutindo com pensadores que tradicionalmente escreveram sobre o tema, a intenção foi demonstrar uma inadequação destes conceitos tradicionais de experiência jurídica e propor um conceito aberto e plural. No mesmo patamar é introduzido o conceito de antropofagia jurídica, como um pensar crítico e questionador das doutrinas importadas e aplicadas sem uma discussão e uma “digestão” para seu uso no Brasil. Abstract: In this article the author tries to propose a concept of legal experience that can be used in a plural and problematizing legal history. Discussing with thinkers who have traditionally written about the subject, the intention was to demonstrate an inadequacy of traditional concepts of legal experience and propose a concept opened and plural. At the same time is introduced the concept of legal anthropophagy, as a critical thinking of the doctrines imported and applied without a discussion and a “digestion” for the use in Brazil. * Doutor em Direito pela UFMG. Professor Adjunto da UERJ. E-mail: [email protected] ANAIS DO V CONGRESSO BRASILEIRO DE HISTÓRIA DO DIREITO 97 “É, a gente quer viver pleno direito A gente quer é ter todo respeito A gente quer viver uma nação A gente quer é ser um cidadão (…) A gente quer viver a liberdade A gente quer viver felicidade É…” Gonzaguinha, “É” Introdução O presente texto discute um conceito de experiências jurídicas que atenda às pluralidades e multiplicidades do direito e de uma história crítica e problematizante desse. A intenção é construir um conceito provisório, falho, mas que possa auxiliar a compreensão do direito e suas experiências, evitando os rótulos de “integral”, “unitário” ou “fechado.” Buscase aqui uma pluralidade de elementos, que juntos, nas suas diferentes proporções e medidas, podem contribuir para as diversas experiências jurídicas (termo utilizado sempre no plural) coexistentes na história do direito. Nesse mesmo sentido, também será discutido como a antropofagia, na sua utilização política dada por Oswald de Andrade, pode contribuir para essa pluralidade de experiências, percebendo como os conceitos jurídicos devem ser pensados para realidades distintas e, essencialmente, problematizados. 1 Experiências jurídicas plurais A palavra experiência tem origem na palavra latina experientia, que significa ensaio, prova ou tentativa. Línguas como português, italiano, espanhol, catalão e o inglês possuem esse vocábulo com um significado semelhante (SILVEIRA SIQUEIRA, 2011, p. 1444): Contemporaneamente a palavra experiência é relacionada ao ato de experimentar, a um ensaio, uma tentativa, mas também ao conhecimento adquirido pela prática, estudo ou observação ou ao conhecimento das coisas da vida, da vivência humana nos mais variados ramos. Ter experiência é ter vivido, é ter vivências . As experiências serão utilizadas como sinônimos de vivências jurídicas, para deixar claro que tanto as vivências jurídicas como suas experiências são múltiplas. É necessário um conceito de experiências jurídicas que possa conhecer as múltiplas vivências jurídicas coletivas e individuais, pois são destas que existe e se alimenta a história do direito. A partir do momento que a história do direito passa a acrescentar os mais diversos elementos para o debate dos fenômenos jurídicos, cresce a necessidade de agregar, dentro das experiências jurídicas, todos esses elementos. Daí a importância de entender a história do direito como um complexo de relações entre as diversas experiências jurídicas existentes em um determinado período histórico. Experiências que podem se contradizer, negarem-se, mas que fazem parte de um imenso complexo de vivências que são as experiências jurídicas. Tão imenso que seu conhecimento será sempre parcial, limitado, pois é sempre reconstrução de um passado que já foi. E se o contraste explica, ajuda a entender, como lembra Arthur José Almeida Diniz (DINIZ, 1979, p. 443), a tentativa é dissertar sobre um conceito de experiências jurídicas discutindo com autores que trabalharam o tema de formas diferentes, mas que comparados, podem ajudar na compreensão da tese que aqui se pretende desenvolver. Não se propõe um 98 EXPERIÊNCIAS E ANTROPOFAGIAS JURÍDICAS: UM DEBATE COM A HISTÓRIA DO DIREITO conceito melhor, nem pior, mas apenas diferente que possa contribuir para as discussões sobre o direito. É na consciência e na vontade de agir, conforme determinada orientação do indivíduo, que Giuseppe Capograssi funda a experiência. Esta, para o italiano, é o resultado e a existência da tensão entre o agir e a consciência do indivíduo. O pensar, a vontade e a ação são a experiência (CAPOGRASSI, 1959, pp. 10-11). As ideias que regulam e que influenciam as ações, constituem a experiência do sujeito do mundo (CAPOGRASSI, 1959, p. 38-224). Capograssi consegue captar a pluralidade de ideias e ações que podem constituir a existência do sujeito no mundo, suas experiências. E, nesse sentido, o direito é percebido, antes de tudo, “como experiências, isto é, como dimensão da vida” (GROSSI, 2005, pp. 35-36). Por outro lado, busca-se problematizar a experiência jurídica para que ela possa perceber as múltiplas experiências possíveis, pois elas são, além de individuais, coletivas. As experiências devem conter as ações coletivas, mesmo pensadas de diversas formas e construídas de diversas maneiras pelos seus integrantes. Sendo assim, as experiências nunca são apenas individuais, elas são individuais e coletivas, e existem, relacionando umas com as outras. As experiências jurídicas individuais são sempre compartilhadas com o outro e a experiências coletivas são sempre compostas de indivíduos. Nesse patamar as experiências não são apenas o indivíduo que de “fronte ao mal” não se abate1 ou a ação para preservar o sujeito dentro do sistema (CAPOGRASSI, 1959, p. 12-13), as experiências também são a violação, a violência, o crime, o abuso, o desvio. Elas são todas as experiências dos sujeitos nada está fora das experiências tudo pode ser um elemento para sua construção e sua discussão.2 Miguel Reale acredita que o conceito de experiência jurídica de Capograssi constitui “instrumento na totalidade da vida orgânica” e que essa e “compreensão unitária e problemática são conceitos que se exigem reciprocamente” (REALE, 1968, p. 34). Para Reale “reconhece-se na experiência jurídica a polaridade de ser e dever ser”, sendo a “experiência jurídica uma forma de experiência cultural”, de tutela do que é valioso, “um instrumento de civilização” (REALE, 2000, p.128,218-219). Percebe-se que o autor aproxima-se do conceito de Capograssi, acreditando ser a experiência jurídica um elemento de resguarde dos valores da sociedade, da “civilização.” A presente intenção não é definir a experiência jurídica como um conceito total (como apresentado), integral ou unitário. Experiências não constituem um todo orgânico, mas são diversas, contraditórias, opostas e críticas umas das outras. Um conceito integral exige a dilaceração de uma parte, do que aqui se entende como elemento também constitutivo das experiências jurídicas. Integralizar pode ser um argumento para negar elementos da vida jurídica como elementos de direito, é retirar as incongruências e as contradições tão comuns e, muitas vezes, esquecidos da vida humana. E se é possível aproveitar a lição de Paolo Grossi, entendendo que a experiência jurídica de Capograssi “nada mais é do que a história, um passado que se faz presente e em um presente que se faz futuro” (GROSSI, 2010, p. 142), utiliza-se essa para perceber uma concepção diferente de experiência. 1 “Tutta l’esperienza è la dimostrazione profonda e perpetua che il soggetto di fronte al male invece di lasciarsi abbattere e distruggere afferma che non sarà sommerso, afferma che la vita sará salvata.” (CAPOGRASSI, 1959, p. 12) 2 Capograssi situa no plano da Ciência Jurídica as lacerações e duplicidades que as experiências jurídicas podem conter. Para o autor, aquela é a esfera de luz na qual se pode ver manifesta a vida obscura e intima que rege a experiência. (CAPOGRASSI, 1937, pp.233-236.) ANAIS DO V CONGRESSO BRASILEIRO DE HISTÓRIA DO DIREITO 99 Reinhart Koselleck afirma que “a experiência é o passado atual, aquele no qual os acontecimentos foram incorporados e podem ser lembrados” (KOSELLECK, 2006, p. 309). Koselleck acredita que na experiência se fundem elaborações conscientes e inconscientes, sendo “a história [é] sempre a de experiências vividas e de esperas dos homens que agem e sofrem” (REIS, 1994, p.82). As histórias são as experiências vividas e percebidas pelos homens. Logo, elas podem ser revistas, recolhidas (KOSELLECK, 2006, p. 311) e reconstruídas. As experiências não são dados estanques, “mas categorias de conhecimento suscetíveis de ajudar a fundar possibilidades de uma história” (REIS, 1994, p. 82). Assim, percebe-se aqui, as experiências jurídicas como categorias transitórias, mutáveis, que ajudam e permitem a construção de um entendimento da história do direito. Elas são elementos base da história do direito, ao passo que pode-se afirmar que a história do direito são as experiências vividas em determinado período. As experiências não são a história, mas um grupo de experiências constituem esta. O passado constitui elemento da experiência jurídica atual, mas ele pertence essencialmente à experiência jurídica anterior. O passado continua existindo, mas diferentemente, ele é um passado-presente, percebido de uma outra forma. O que foi, já não é, mas pode (ou não) influenciar (não determinar) a experiência jurídica atual. Por isso essas devem ser sempre testadas, criticadas, pois só assim podem ser compreendidas. As experiências jurídicas não são dados exatos ou imutáveis. Para Guido Fassò, toda a história é cheia de juridicidade, a história é o direito, o direito concreto, vivido, verdadeiramente natural, logicamente e historicamente anterior ao direito abstrato, que é traduzido em imperativo das leis (FASSÒ, 1953, p. 97). Mas é claro que não é possível reduzir a história apenas ao direito, nem aceitar piamente que o direito é natural, absolutamente necessário ou indisponível. O direito é uma constatação na história, uma construção histórica, mas que não pode ser encarado como um absoluto ou determinante, pois as experiências jurídicas poderão demonstrar o quanto esse pode ser manipulável, contraditório e oposto aos ideais teóricos. A história do direito3 é composta de diversas experiências jurídicas, que juntas podem ajudar a compor um quadro com muitas cores, com vários formatos de uma, dentre as várias possíveis, histórias do direito. E se os “tempos históricos são plurais, como são plurais as sociedades” e “cada época mantém relações diferentes com seu passado e seu futuro, cada presente constrói ritmos históricos diferenciados”, deve, qualquer noção de experiências jurídicas, preparar-se para as diversas manifestações que se apresentam, se contradizem e dialogam (REIS, 1994, pp.83-84). É nesse sentido que o direito pode ser visto não apenas como instrumento de civilização mas também como instrumento de barbárie (BENJAMIM, 1986). O direito e suas experiências (como aqui se pretende entender) não estão alheios ao desvalor, “ao injusto”, a violência que a norma também pode conter. Essas são experiências jurídicas possíveis pois o limite do direito e de suas experiências são as ações humanas. É por isso que as experiências jurídicas também serão entendidas aqui como a incoerência humana4, como as contradições da vida e das suas ações. O crime, a violação a 3 Guido Fassò relaciona experiência jurídica e história do direito. Para italiano, a experiência jurídica está integralmente imersa na história e entende o direito como forma necessária e natural na história. Baseando-se nos conceitos de Capograssi e Cesarini Sforza, Fassò procura entender como a experiência jurídica como experiência humana está imersa dentro da experiência histórica (FASSÒ, 1953, p. 12 e 96). 4 Em outro sentido apresenta-se Capograssi:“Dell’esperienza giuridica, che non è altro che l’azione umana rivelata nella sua sostanza, realizzata nella sua profonda volontà unitaria e coerente com tutta la vita del soggetto, sviluppata concretamente e esplicitamente in tutto il movimento delle sue esigenze e dei suoi fini vitali” (CAPOGRASSI, 1959, p. 116). 100 EXPERIÊNCIAS E ANTROPOFAGIAS JURÍDICAS: UM DEBATE COM A HISTÓRIA DO DIREITO lei, os sentimentos de justiça (e de injustiça), para além do direito positivo, também fazem parte das experiências jurídicas de uma sociedade. Experiências jurídicas são todas as manifestações individuais e coletivas, que tem relação com um sentimento de juridicidade. Não são apenas os sentimentos relacionados com o cumprimento da lei, do bem (acredita-se aqui que bem e mal, antes de tudo, são dois pontos de vista, que podem se alterar de acordo com o observador), da conduta socialmente aceita ou da doutrina. É tudo isso e mais. Dessa forma o conceito de experiência jurídica apresentando aqui aproxima-se do conceito desenvolvido por Wadir Cesarini Sforza. Para ele a experiência jurídica é um ato de vontade ou um ato legislativo, que acontece dentro da fórmula normativa. Mas um ato que não se exaure dentro dessa fórmula (como nos artigos da lei), mas se identifica com a multiplicidade de atos normativos, ou seja, com as manifestações concretas da vontade dos homens de tornarem jurídicas o mundo das ações humanas (CESARINI SFORZA, 1958, p. 65). Assim, a experiência jurídica que é o efetivo desenvolvimento da vida do direito no cotidiano das relações humanas e percebe que cada ato normativo ou imperativo faz surgir uma relação concreta (CESARINI SFORZA, 1958, p. 108). Sforza entende que a manifestação dos homens de tornarem suas ações jurídicas, percebendo o direito no cotidiano, constitui base essencial do direito e conteúdo especial da experiência jurídica. A diferença entre os conceitos se percebe, pois, Cesarini Sforza, tal qual os teóricos que o influenciaram, como Capograssi e Enrico Opocher, foca a experiência jurídica na ação do individuo, no sentimento que o mesmo tem ou na sua ação, ao passo, que aqui as experiências jurídicas são os complexos de todas as relações jurídicas humanas. Esses autores focam a experiência do homem que age, aqui o foco é no conjunto das relações humanas, obviamente, sem desprezar o homem, elemento essencial, muito bem percebido por esses autores. O direito é um componente das experiências jurídicas. Essa afirmação pode ser levada a cabo mesmo nos diversos conceitos sobre que é direito. Direito natural, direito positivo, redução do direito às leis positivas ou as decisões judiciais, todos esses conceitos de direito, podem ser percebidos dentro de um conceito de experiências jurídicas, se tomar-se como base, que nessas, podem coexistir todos os elementos que possuem o “sentimento de jurídico.” Independentemente do que se pensa que é direito, esse pode estar dentro, junto com outros elementos, nas experiências jurídicas. Para as experiências jurídicas, esse sentimento é perceptível quando os atores sociais reivindicam ou agem acreditando que esses anseios e desejos, são jurídicos. O que caracteriza um elemento que passa a fazer parte das experiências jurídicas, não é o elemento em si, mas a utilização jurídica que é feita dele. Um objeto passa a fazer parte das experiências jurídicas quando sua propriedade é regulada, reivindicada (torna-se objetivo de luta ou defesa) ou simplesmente tutelada. A definição sobre o que é jurídico ou não para sua inserção dentro das experiências jurídicas, depende da observação de uma sociedade, dos sentimentos, das suas lutas e vivências cotidianas. É o direito sentido no cotidiano, na vida das pessoas, como leciona António Manuel Hespanha (HESPANHA, 2009). A experiência (e consequentemente a juridicidade) deixa de ser algo dado, concreto, imutável ou constante, e passa a ser entendida como uma construção de cada sociedade, nas suas diversas realidades. O conceito de experiências jurídicas passa a ser um conceito aberto, passível de aceitar novas interpretações sobre antigos objetos históricos. Assim, fica preparado para uma história plural, interdisciplinar e em constante (re) construção. E se foi possível afirmar que a experiência jurídica era situada como uma experiência histórico-social de natureza ética, normativa e que tem “como valor fundante o bem social da ANAIS DO V CONGRESSO BRASILEIRO DE HISTÓRIA DO DIREITO 101 convivência ordenada, ou o valor do justo” (REALE, 2000, p. 273), a tentativa é subverter esse conceito, percebendo que a experiência histórico social pode conter o que não é ético, a violação a norma, sentimentos de jurídicos não positivados e desvalores que caminham junto com os mais diversos valores. Até porque os valores do justo e do injusto mudam constantemente e ambos podem coexistir: “dialeticamente, no interior da vida e além dela, a justiça e suas percepções plurais se (re) constroem cotidianamente, como possíveis horizontes de sentido, referenciais normativos escolhidos, buscas provisórias de agir e pensar de modo justo” (BARROS, 2009, p. 135). Expõe Juliano Napoleão Barros: A ausência de fundamentos definitivos não admite nem nega por completo toda e qualquer fundamentação da justiça: exige o compromisso cotidiano de (re) construção recíproca de suas diferentes fundamentações. Desse modo, o reconhecimento do caráter relativo das perspectivas sobre a justiça precisa coincidir com o reconhecimento do caráter universal da justiça (ou, ao menos, da busca de seu sentido). Em decorrência, as perspectivas e a justiça – na interação em que reciprocamente se constituem – não podem ser satisfatoriamente interpretadas mediante um enfoque relativista ou universalista. É preciso reconhecer a tensão permanente entre a pluralidade histórica das perspectivas e a justiça que, universalmente, as transcende. Reconhecer a relatividade – sem ser relativista – e a universalidade – sem ser universalista. (BARROS, 2009, p. 25) Marcelo Cattoni lembra que: Em Derrida já se pode falar, da perspectiva da justiça como desconstrução ou possibilidade permanente de desconstrução, não apenas numa justiça por vir, no seu caráter hiperbólico, extra-vazador e insaturável, mas também num direito por vir. Um direito cujo fundamento não está simplesmente deslocado do passado para o futuro, mas aberto ao por vir, sem condições. Um direito que somente terá sentido no futuro se for presença de uma ausência, e a justiça, como permanente possibilidade de desconstrução, que não se esgota em si mesma, se for evanescente. (CATTONI DE OLIVEIRA, 2011, p. 2011) Assim não é possível pensar na justiça, nem nas experiências jurídicas como conceitos eternos ou imutáveis. A justiça e o direito são construções e reconstruções constantes, são objetos históricos culturais que se alteram no tempo e espaço. Não se deve compreender uma experiência jurídica com valores unitários, pois as sociedades são plurais, os valores são plurais. Os valores de propriedade dos senhores de escravos não comungavam com os valores de liberdade dos escravos. São experiências jurídicas diferentes que conviveram em tensão. Deve-se perceber que as experiências jurídicas são essas tensões, esses diversos valores, normas e culturas que existem em uma sociedade. Qualquer tentativa de reduzi-las, é reduzir os elementos das vivências jurídicas, das múltiplas formas do direito se manifestar em uma sociedade. 3. A Experiência jurídica pré-categorial Para Capograssi, o direito e suas experiências jurídicas vêm da vida. As experiências jurídicas vêm das experiências sociais. O que qualifica, para o italiano, essas experiências como jurídicas é a juridicidade (o sentimento do que é direito, certo, correto, bom) usualmente tutelada na lei. Aqui se pretende qualificar o jurídico com o emprego, com o uso que é dado a determinado objeto ou sentimento (que não necessariamente é a lei). O sentimento de jurídico, independentemente do “certo ou errado”, “ruim ou bom,” qualifica um objeto como jurídico. Já as experiências jurídicas serão as múltiplas relações com o que é jurídico: negando, afirmando ou contradizendo esses sentimentos. É possível perceber uma ressonância entre a lei e a experiência jurídica em Capograssi: “a lei deve entrar em toda experiência jurídica e ali coexistir” (GROSSI, 2010, p. 153), a experiência para ele é o sentimento do jurídico, do cumprimento das regras, muitas vezes 102 EXPERIÊNCIAS E ANTROPOFAGIAS JURÍDICAS: UM DEBATE COM A HISTÓRIA DO DIREITO capitaneadas, positivadas em lei: “a lei poderá e deverá ser respeitada somente se na verificação da experiência jurídica demonstra ser portadora dos valores assumidos pela experiência na sua fundação” (GROSSI, 2010, p. 153) A experiência é a conduta que deve ser seguida e a lei deve ser correspondente a essa conduta. É assim que “a velha e obtusa legalidade se torna um princípio geral de juridicidade, ou seja, de conformidade dos princípios que estão na base da ordem jurídica” (GROSSI, 2010, p.153). Esse sentimento, essa captação, é de extrema importância, mas ela não pode deixar de apagar os outros diversos sentimentos de juridicidade, muitas vezes não comuns, não pacíficos, mas existentes na sociedade. Para Capograssi esse sentimento que constitui o jurídico constitui a experiência jurídica. Por outro lado, aqui se utiliza o sentimento de jurídico como um elemento da experiência jurídica, que convive suas outras visões e até mesmo outras interpretações do que ele é. Por outro lado, a positivação é apenas um fator que não exclui as experiências jurídicas não positivadas e não reguladas pelo direito. Criar uma categoria como a experiência précategorial (defendida por Reale, na qual os elementos anteriores a positivação são préjurídicos - REALE, 1968, p. 47), é retirar das experiências jurídicas aquilo que não é do direito positivo ou é anterior a ele. Aqui se defende que as experiências jurídicas não positivadas são elementos constitutivos e essenciais das experiências jurídicas de uma época. A não positivação de um direito não impede que esse exista nas formas plurais da sociedade, nem impede que o mesmo faça parte das experiências jurídicas de um período. A discussão de uma lei, a fundamentação da sua positivação, seus recortes, seus vetos e votos contrários fazem parte das experiências jurídicas de um período. Assim, se para Capograssi a experiência jurídica são as ações que influenciam os indivíduos ao agir para o “bem”, para o “justo”, aqui as experiências jurídicas são as diversas percepções (e suas diversas decorrências) do jurídico (mesmo que essas se contradigam) em uma sociedade.5 3.1 Experiências jurídicas, o Estado e a lei Sobre a experiência jurídica Miguel Reale assevera que ”o momento dogmáticonormativo é parte essencial, integrante e constitutivo, mas não até ao ponto de eliminar os demais fatôres, sem os quais, aliás, perderia êle a sua consistência ôntica e seu significado axiológico” (REALE, 1968, p.06). Giuseppe Capograssi acredita que é na formulação legislativa que se realiza a totalidade das determinações jurídicas, reportando a experiência jurídica necessariamente a uma verdade que é a lei, (CAPOGRASSI, 1959, PP. 143-144 e 158) sendo essa o momento central daquela (ZACCARIA, 1976, p. 90). Nesse sentido, o imperativo jurídico seria o princípio da experiência e seu próprio conteúdo e a posição típica da experiência jurídica é a sua posição como lei (CAPOGRASSI, 1959, pp. 164-165). 5 Nesse sentido aproxima-se do que Widar Cesarini Sforza percebeu na teoria de Enrico Opocher, que o direito não se revolve na norma (positiva ou ideal), nem nas relações jurídicas, nem nas instituições ou condutas legais, o direito como experiência é tudo isso junto, tudo que possa se observar na realidade da vida (CESARINI SFORZA, 1984, p. 483). Ocorre que Enrico Opocher vê a experiência jurídica como filosofia do direito. O foco da experiência jurídica é o pensamento sobre o jurídico, seu exercício de pensamento, não o entendimento da experiência jurídica como um complexo de relaçãos jurídicas em um tempo histórico. Dessa forma, Opocher, de certa forma tem uma aproximação com o conceito de Capograssi que pode ser percebida em OPOCHER, 1983, pp. 16-17. ANAIS DO V CONGRESSO BRASILEIRO DE HISTÓRIA DO DIREITO 103 O conceito de experiências jurídicas defendida nessa tese se afasta do pensamento desses autores. Aqui a lei não é vista apenas como a totalidade das determinações jurídicas, nem como a grande protetora das ações humanas, ela pode ser isso, mas também pode ser corrupta, violenta, criminosa. A tentativa é possibilitar a verificação de que a lei – como em alguns momentos ela é – pode existir em oposição à alguns sentimentos jurídicos. A lei não necessariamente condiz com o sentimento jurídico de uma maioria ou de partes da sociedade. O fato de ser lei positiva não garante a sua adequação os preceitos de uma época, esse precisa ser testado, problematizado. Até porque os preceitos, os sentimentos de uma época, são múltiplos. Por outro lado, a lei é uma parte importante das experiências jurídicas, isso não pode ser negado, mas a sua relação com as outras experiências também é de singular importância. A diferença de pensamento com os autores citados se estabelece, pois aqueles acreditam que a experiência jurídica são os sentimentos, os valores que influenciaram a positivação da lei e pautarão a conduta dos cidadãos. Aqui defende-se que as experiências jurídicas não são apenas as ações que ocorrem dentro do imperativo da lei ou dos sentimentos positivados por elas. Defende-se que as experiências jurídicas são todas as relações possíveis com o sentimento de jurídico (incluindo suas violações e interpretações contraditórias), para além das leis e para além dos valores e sentimentos positivados (ou não) por elas. Não se pretende negar esses valores, nem a importância das leis para as experiências jurídicas históricas, mas simplesmente afirmar que elas são elementos que convivem com outros em uma pluralidade. Por exemplo, para Capograssi, se um agente que tem um dever de agir e nega esse imperativo, toda a experiência jurídica é negada (CAPOGRASSI, 1959, p. 168). Aqui se pensa diferente: se um agente nega uma lei, nega um dever jurídico, essa não é a negação da experiência jurídica, mas uma das experiências jurídicas possíveis. As violações e as leis fazem parte dessas experiências. É por esse motivo que o Estado não pode ser aceito como “verdadeira posição ou verdadeira vontade comum” (CAPOGRASSI, 1959, p. 141). ou “verdadeira formação da experiência jurídica” (CAPOGRASSI, 1959, p. 142). 6 O Estado é um lugar privilegiado da experiência jurídica. São sobre suas regulações, leis, fóruns e palcos de discussão que muitas experiências ocorrem. Mas há de se afirmar que ele não é o único palco ou o único autor das experiências jurídicas. Nem mesmo a “verdadeira vontade comum,” porque existem várias vontades comuns e várias verdades. O Estado possui verdades que vivem em tensão e em embate. As verdades, dentro e fora do Estado, são muitas. A ação do Estado também pode ser negação da vontade comum e negação dos sentimentos jurídicos de uma parte da sociedade. Ele pode ser deturpado, criminoso e negar o seu próprio direito positivo. Mas nem por isso suas ações deixam de fazer parte das experiências jurídicas. Pode-se dizer que o Estado guarda as liberdades, mas não se deve esquecer que ele, muitas vezes, também as viola. Um conceito de experiências jurídicas deve ser capaz de perceber as contradições nas ações estatais, que são ações humanas. E se a filosofia do direito não é apenas um pensamento abstrato, mas um desenvolvimento, um pensar crítico sobre a 6 Por outro lado Giuseppe Zaccaria, pôde perceber, em escritos de Capograssi, posteriores de Declaração Universal dos Direitos Humanos, uma crítica ao monismo do Estado e a uma percepção da sua insuficiência em resolver todos os problemas emergentes, descrevendo Zacarria, de certa forma, um pluralismo jurídico no pensamento de Capograssi. ZACCARIA, 1976, pp. 173-174. Por outro lado Paolo Grossi afirma que, na experiência atual do direito, o monismo dominante deverá tornar-se pluralismo dando plena efetividade a soberania popular. GROSSI, 1997, pp. 175-191. 104 EXPERIÊNCIAS E ANTROPOFAGIAS JURÍDICAS: UM DEBATE COM A HISTÓRIA DO DIREITO experiência jurídica (CONTU, 1988, p. 74), deve a filosofia do direito estar preparada para as multiplicidades de experiências jurídicas que podem existir em sociedade. Sendo assim, qualquer tentativa de representar o Estado com a unidade, integralidade ou a totalidade da experiência jurídica (CAPOGRASSI, 1959, p. 165) é uma experiência falha, pois despreza os valores marginais, paralelos e não-majoritários, que muitas vezes um Estado “violento”, “ditatorial” ou “democrático” pode combater ou violar. 3.2 Experiência jurídica e valores Miguel Reale afirma que experiência jurídica ou direito como experiência “significa concretude de valoração do direito”, sendo suas “normas deontológicamente inseparáveis do solo da experiência humana” (REALE, 1968, p. 31). Nesse sentido o direito como “realidade histórico cultural” estaria “presente à consciência em geral”, acolhendo valoração e comportamentos, “atribuindo-lhes um significado suscetível de qualificação jurídica no plano teorético, e correlatamente, o valor efetivo das idéias, normas, instituições e providências técnicas vigentes em função daquela tomada de consciência teorética e dos fins humanos a que se destinam” (REALE, 1968, p.31). Dessa forma a experiência jurídica seria concebida “como um processo de concreção axiológica-normativa” no qual “já está implícita a sua exigência de unidade e totalidade.” (REALE, 1968, pp.31-32). Sim, o direito estabelece normas comportamentais e as valora. Mas isso não significa que esses valores correspondam os anseios ou a “consciência em geral.” O direito (positivo, por exemplo) pode também ser reflexo da positivação de um desvalor, pode ser um instrumento de violência, de imoralidades. Aqui não se pretende negar o fator político que pode estar mascarado na instituição de normas positivas, nem ser inocente ao acreditar que o direito é sempre liberdade, valor ou consciência geral. O direito é o reflexo de uma sociedade, com seus vícios e máculas. Não é um Deus perfeito do Olimpo, nem uma estátua de ouro para ser glorificada. Ele tem em si a sociedade e os homens que o constrói e qualquer tentativa de entender o direito nas múltiplas faces que ele pode apresentar, deve ser munida de conceitos preparados para perceber essas multiplicidades. Quiçá que o direito fosse perfeito, mas ele não é! A análise aqui é do ser, para a discussão, partindo desse, de como fazer o “dever-ser”. Como as experiências jurídicas são partes das experiências sociais, são dessas que aquelas colhem seus elementos. Mas isso não significa que exista uma fronteira precisa entre elas. O que existem são vários formatos de relações, que estão em constante transformação, modificação, esses vários formatos permitem diversas formas de migração através de pontes, muros ou abismos. As fronteiras retas não existem, a imprecisão, a indeterminação do limite exato é a característica das relações entre as ciências. A interdisciplinaridade, a relação entre as disciplinas, fomentam essa multiplicidade de fronteiras e as plurais formas de relações entre elas. É por isso que não é possível falar em unidade ou totalidade das experiências jurídicas e de seus valores, pois os valores, como as vivências do direito e suas formas de manifestação, são plurais, não estão pré-determinadas, muitas vezes se contradizem, se opõe e constroem, a cada dia, um direito diferente, nascente no seio de cada sociedade. E se a experiência jurídica pôde ser pensada como integração entre fato, norma e valor7, é necessário, em comunhão com o que se defende aqui, acrescentar-se o desvalor, a violação da norma, as normas não positivas, os sentimentos de justiça, a aplicação na norma… para comporem-se as diversas experiências jurídicas. 7 Para Miguel Reale: “fato, valor e norma se dialetizam, a meu ver segundo a dialética de complementaridade e, não a de oposição aplicada por Hegel” (REALE, 2003, p. 49). ANAIS DO V CONGRESSO BRASILEIRO DE HISTÓRIA DO DIREITO 105 Assim, a experiência jurídica não deve conhecer apenas a integração entre esses fatores, mas também a percepção da desintegração e da oposição entre eles. Pois toda tentativa de integralização ou de totalização (como alguns autores apresentam) é uma exclusão de uma parte de sentimentos jurídicos e de normatividades. A história do direito não pode aceitar essas totalidades ou integralidades, ela deve se pautar em conhecer as pluralidades, as contradições, as tensões e, especialmente, aquilo que não foi conformidade, pacífico ou consensual. O que aqui pretende-se conhecer são os obscuros, as violências não contadas, as experiências sentidas em silêncios, os mundos ocultos nos subterrâneos da história. 3.3 Experiências jurídicas e a História do Direito Se “a história do direito é o ramo do saber que se ocupa do passado jurídico” (FONSECA, 2010, p. 33), pretende-se afirmar que a esse passado são as experiências jurídicas vividas em um momento histórico. E por mais que isso possa parecer um extremo subjetivismo histórico, são justamente essas incertezas que tornam maravilhosa a vida humana. E é nesse momento que se prefere substituir o termo subjetivismo, por intersubjetividade, por diálogo.8 A faculdade de duvidar, criticar, tudo que está posto, a abertura a um diálogo constante, enriquece as ciências e a vida em sociedade. E se como lembra Paolo Grossi: Ao historiador, sempre serão repugnantes isolamentos e compartilhamentos, porque a vida – a vida jurídica em um momento histórico determinado – revela-se antes de tudo como um emaranhado intrincado de relações e correlações. Múltiplas e diversas, manifestam-se também as dimensões de uma experiência jurídica, mais precisamente como manifestações diferentes e particularizadas que afundam suas raízes em uma sólida substância unitária. (GROSSI, 2005, pp. 39-40) Cresce dessa maneira a necessidade de não se isolar a história do direito, de não reduzila. Fomenta-se ainda mais a consciência de mantê-la em contato com outras disciplinas e com conceitos que podem permitir o diálogo interdisciplinar. E se falar de experiêncisa jurídicas significa estar atento – aproveitando-se de termos que Paolo Grossi usa para descrever a experiência jurídica, influenciado por Capograssi – para todas as forças como as econômicas e sociais que cercam a vida do direito, significa também perceber que as experiências jurídicas não são estáticas, que estão em constante movimento e transformação, como a sociedade e o direito (GROSSI, 1968, pp. 04-06). Assim é possível compreender as experiências jurídicas nas suas plurais dimensões que não são apenas (mas também) sociais e históricas (SCHILLACI, 2009, p. 04). É nesse patamar que as ciências dialogam. A antropologia, a sociologia e a história do direito se misturam, quebram barreiras e problematizam, cada vez mais, as realidades humanas. 3.4 Antropofagias jurídicas. Oswald de Andrade deu, no manifesto antropofágico, uma conotação política e ideológica à antropofagia (ANDRADE, 2011) O ato do canibal que come seu inimigo para ganhar suas qualidades é reconstruído. A antropofagia transforma-se em uma ação cultural no 8 Gonçal Mayos descreve esse sentido: “Hemos visto las dificultades de hablar rigurosamente en términos de subjetivo y objetivo, especialmente respecto a los fenómenos históricos o culturales. Es mejor hablar en términos de intersubjetividades en diálogo y de las condiciones bajo las cuales estas son definidas” (MAYOS, 2007, p. 23). 106 EXPERIÊNCIAS E ANTROPOFAGIAS JURÍDICAS: UM DEBATE COM A HISTÓRIA DO DIREITO mundo político. Não são mais os homens que são comidos, mas as culturas: “é a partir da deglutição e devoração desse estranho que faremos algo diferente” (SILVA, 2011). Publicado em 1928 o manifesto antropofágico era uma tentativa de construir uma tradição nacional que pudesse dialogar com as vanguardas européias (BITARÃES NETO, 2004, p. 16), levantando-se “contra todos os importadores de consciência enlatada,” (ANDRADE, 2011)9 contra a inibição do pensamento crítico e digestivo dos homens.10 Sem capacidade de assimilar de forma crítica as teorias estrangeiras, o Brasil, para o autor, era um corpo enfermo (BITARÃES, 2004), que simplesmente ingeria as teorias, culturas e doutrinas. A antropofagia seria uma forma de unir o povo, um reconhecimento das raízes (“Só a antropofagia nos une. Socialmente. Economicamente. Filosoficamente)” (ANDRADE, 2011) e um questionamento de uma realidade (e também de uma história e cultura) dada, determinada, muitas vezes comprada de outras culturas, sem a devida digestão. Assim, o manifesto é uma tentativa de crítica, mas essencialmente de consciência, de uma sociedade que viveu e vive nos contrastes, nos conflitos, nas violências: “o texto não pretende resolver as questões, mas colocá-las a nu sob uma nova perspectiva, ou chave interpretativa. Podemos afirmar sem temor que a antropofagia é uma teoria do conflito” (MOTA, 2011). E nada mais interessante para analisar uma sociedade que seus conflitos, suas contradições, seus opostos, para compreender as diversas realidades existentes. O Manifesto Antropofágico é uma forma de “reciclagem, ampla e abrangente de todas as culturas e crenças possíveis para a estruturação de uma cultura de caráter nacional,” (SOUZA, 2009, p. 07) é aceitação do que pode ser utilizado após sua digestão (crítica) e a rejeição daquilo que não interessa, daquilo que não condiz com as realidades do país. Aqui a intenção também é uma pequena subversão, agora do conceito de Oswald de Andrade. A tentativa é discutir, partindo das premissas acima, uma antropofagia para o direito, uma antropofagia jurídica.11 Nesse sentido, busca-se perceber que fazer uma antropofagia do direito é também digerir criticamente o direito: “perguntei a um homem o que era o Direito. Ele me respondeu que era a garantia do exercício da possibilidade. Esse homem chamava-se Galli Mathias. Comi-o” (ANDRADE, 2011). Fazer antropofagia do direito é criticar o direito, suas doutrinas, suas experiências e não simplesmente engoli-lo. É por o direito a prova das diversas realidades que o cercam. Dessa forma, procura-se lembrar, que para a construção de qualquer teoria crítica e problematizante do direito, exigem-se a ingestão de conceitos, de histórias, de teorias, com a 9 “Não se trata, evidentemente, da negação xenofóbica do ‘exterior’, e da retomada da idéia de originalidade. Antes, a proposta é de substituir a transplantação integral – leia-se, imitação – de culturas ‘estrangeiras’ pela apropriação crítica delas (NODARI, 2007, p.13). 10 “Não adianta ignorarmos o que está acontecendo e fingir que somos donos de verdades e certezas. Não podemos ficar desatentos (as) às mudanças que estão ocorrendo, pois são elas que nos indicarão os caminhos a serem seguidos. Cada caminho é único, e à medida que ele vai se revelando, temos que ir criando alternativas para ‘lidar’ com os desafios apresentados. A cópia de modelos que deram certo no percurso de um caminho nem sempre dará certo no outro, porém não precisamos ignorar o que já nos é conhecido, mas, sim, devorá-lo e, a partir da ‘fusão’ do velho e do novo criarmos algo próprio” (SILVA, 2011). 11 O Ministro do STF Eros Roberto Grau usa antropofagia jurídica, sem promover uma grande discussão sobre seu significado, no voto proferido na Reclamação 4335-5 (Acre): “Sei bem do perigo da importação de doutrinas jurídicas e exemplos estrangeiros para o e no debate sobre o direito brasileiro. Tenho insistido em que não existe o direito, existem apenas os direitos. E o nosso direito é muito nosso, próprio a nossa cultura. A ponto de afirmarmos a necessidade de uma antropofagia jurídica, à moda de OSWALD DE ANDRADE.” Disponível em http://www.jurisciencia.com/pecas/reclamacao-4335-5-acre-voto-vista-do-ministro-eros-grau/82/ Acesso em 08 de Agosto de 2011. ANAIS DO V CONGRESSO BRASILEIRO DE HISTÓRIA DO DIREITO 107 consciência crítica. Não basta engolir, é preciso digerir, é “através desse diálogo devorativo, feito sobre a realidade de cada espaço, que surge a ‘gosma antropofágica’ resultante desse processo” (SILVA, 2011). É através desse processo que surge o novo, o (re) criado, o antropofágico. A metáfora ajuda a entender: “para Oswald, o canibalismo, como metáfora, insere o homem na cultura, já que ele absorve através de uma ‘devoração’ crítica” (BITARÃES, 2004, p. 55). A “maior prova da selvageria” é utilizada para levar o homem “a civilização.” Daí percebe-se que civilização e a barbárie coexistem no mesmo homem, coexistem na mesma sociedade, o direito é a civilização e a barbárie, é o certo e o errado. 12 A antropofagia exige essa percepção, essa sensibilidade ao mundo multicultural, pluralista. A antropofagia é a aceitação do outro como diferente e também igual, é a aceitação das pluralidades de realidades, das diversas experiências jurídicas, das diversas realidades humanas.13 Mas é também uma crítica a história: “contra as histórias do homem que começam no Cabo da Finisterra. O mundo não datado. Não rubricado. Sem Napoleão. Sem César” (ANDRADE, 2011). Sim, o mundo é mais do que os imperadores e os grandes feitos históricos. O direito é mais do que as leis positivas e suas histórias precisam sempre ser objeto de antropofagia. Percebendo isso, pode a história do direito evitar a “reificação da significação dos valores, categorias ou conceitos”, percebendo que esses sofrem (e devem sofrer) “permanentes modificações do seu sentido (contextual)”(HESPANHA, 2005, p. 40). Pode a história do direito perceber a mudança constante dos conceitos, das sociedades e dos direitos. No direito a antropofagia vira a necessidade de não simplesmente engolir as teorias, as doutrinas nacionais (e estrangeiras), mas sim de problematizá-las, criticá-las, pensá-las diante do mundo em que se vive. É a necessidade de opor os conceitos, os paradigmas, os pressupostos das teorias, às realidades nas quais se pretende aplicá-la. É tentar colocar o direito em alteridade, em intimidade com a sociedade, ao mesmo tempo em que também pode ser autocrítica do direito, autofagia da sua própria essência. Para tanto, a antropofagia jurídica dialoga com as teorias da recepção, pois o discurso também deixa de ser entendido apenas no sentido desejado pelo autor e passa a ser dado também pelo leitor (JAUSS, 1993, p.47). E tal qual a antropofagia teve o manifesto de Oswald de Andrade, a teoria da recepção tem a obra “Literatura como provocação” de Hans Jauss, como um manifesto. Muito a teoria da recepção pode acrescentar aos objetivos da antropofagia jurídica, pois recorda a necessidade de perceber para “quem o autor escreve.” O destinatário do texto, percebido através de referências, exemplos, obras citadas, é essencial também para entender o texto, tal qual a análise do autor e a interpretação do leitor. Os textos passam a ser entendidos nas suas construções e interpretações. A “vontade do autor” (e do legislador, para o caso jurídico) perde certa autonomia para uma realidade que bate a porta e refresca os textos. Esses passam a ser interpretados de acordo com os contextos em que foram escritos e que serão aplicados. Os escritos e seus entendimentos, tornam-se plurais, múltiplos. Teorizando sobre a história da literatura e sobre as obras de arte, Jauss pôde perceber que uma obra vive enquanto ela pode receber uma multiplicidade de significações, não sendo 12 Não se pode esquecer das palavras de Walter Benjamin, escritas nas Teses sobre o conceito de História e imortalizadas no seu túmulo em Portbou: “Todo documento de cultura, é também um documento de barbárie.” 13 “Por isso (a antropofagia), não se trata de xenofobia ou ufanismo, não é justificativa em uma essência, uma pureza, mas é ainda a partir da contribuição das diferenças culturais ou da aceitação da mestiçagem que devemos criar uma maneira de estar-no-mundo: numa filosofia do encontro, da alteridade, porque todo povo é mestiço” (PINTO, 2011). 108 EXPERIÊNCIAS E ANTROPOFAGIAS JURÍDICAS: UM DEBATE COM A HISTÓRIA DO DIREITO ela um objeto determinado, certo, perfeito, mas oferecendo a cada observador, a cada momento, uma diferente aparência (JAUSS, 1993, p.47 e 62). É nesse sentido que o “processo de produção e recepção” se tencionam (JAUSS, 1993, pp. 62-63). E a teoria da recepção pode aqui contribuir. Uma obra, uma teoria, uma história, devem ser abertas “à maior participação do receptor,” buscando um “processo interativo entre o público e obra” (MIRANDA, 2007, p. 11), contra aqueles que acreditavam “que o significado de um texto era direito exclusivo do autor” (MIRANDA, 2007, p. 18). A tentativa da antropofagia jurídica é uma aproximação entre realidade e teoria pelo intérprete, entre sociedade e doutrina… percebendo que o leitor não é simplesmente passivo, ele também constrói as doutrinas quando as aplica (com sua interpretação) no mundo da vida. O texto passa a existir em um processo dialético de produção e recepção, no qual o leitor também participa do processo de construção de sentido, interagindo com o texto, interagindo com a sua interpretação, com o que ele pensa, com o que ele critica e entende do que foi escrito (HOLUB, 1992). Nesse sentido as experiências jurídicas que são compartilhadas, também podem ser interpretadas, reconstruídas e vivenciadas de formas diferentes. Deve-se verificar quando as teorias podem ser utilizadas em “contextos” diferentes daqueles que elas foram pensadas. A questão não é apenas entender, mas problematizar o texto, as doutrinas. A aceitação passiva de teorias fracassou e a missão da antropofagia jurídica é uma mensagem ao “jurista sonâmbulo,” conclamando-o a criticar os direitos, que foram abandonados ou que jamais foram aplicados (ou que aplicados “corretamente não funcionam”) e que tanto incomodam quando confrontados com a realidade (NODARI, 2007, p. 149). Assim a antropofagia Jurídica é a consciência da falibilidade das doutrinas e da necessidade do constante (re) pensar das mesmas de acordo com os contextos históricos, sociais, econômicos… e, fundamentalmente, é a consciência que o direito é humano, demasiadamente falho, contraditório e humano, passível de eternas críticas e digestões. Resta destacar a antropofagia jurídica como elemento interno da história do direito pelos movimentos sociais. Aquela reforça um olhar crítico (e que pensa o Brasil) sobre os conceitos e teorias utilizados para o construir histórico. A antropofagia jurídica permite ao pesquisador problematizar os métodos e teorias utilizados para fazer as pesquisas e discutir a influência desses nas análises das experiências jurídicas, nos resultados das pesquisas. Permite pensar as teorias para o Brasil, antes de pensar o Brasil com essas teorias. Referências ANDRADE, Oswald de. Manifesto antropofágico. Disponível em http://www.fafich.ufmg.br /manifestoa/pdf/manifestoa. 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ANAIS DO V CONGRESSO BRASILEIRO DE HISTÓRIA DO DIREITO 111 CRUZANDO DISCURSOS: TEORIA E MÉTODO PARA REVELAÇÃO DA CULTURA JURÍDICA ABOLICIONISTA CROSSING DISCOURSES: THEORY AND METHOD FOR DISCLOSURE OF ABOLITIONIST LEGAL CULTURE Luiz Gustavo Vieira Santos* Resumo: O A partir da análise de diferentes discursos, que se alimentam, criando uma circularidade polifônica, tem-se a conformação de uma determinada cultura, a qual pode ser exposta em diferentes textos e suportes ou por meio de uma única narrativa detentora de toda essa pluralidade. Essa abordagem é possível também quando se trata da cultura jurídica, pois o discurso jurídico não é conjunto semântico exclusivo dos bacharéis, não se limita ao corpo institucional proveniente das academias de direito, ao contrário, permeia a sociedade de forma abrangente, exprime-se por meio de diferentes falas, demonstra e fomenta os embates de seus interlocutores. Essa interação é uma das formas viáveis de se construir a história, sobretudo, a história de um pensamento, no caso, jurídico e, assim, revelar a cultura jurídica de um recorte espaço-temporal. Para a investigação discursiva que se propõe, e conseqüente culminação no feitio da cultura jurídica de uma época, elege-se o final do século XIX, do qual se extraí a questão abolicionista, sobretudo exposta pela análise do conjunto das nove primeiras crônicas da série Bons Dias!, de Machado de Assis, publicadas em abril e maio de 1888, e do periódico em que se insere, o jornal Gazeta de Notícias. A ampla cultura jurídica abolicionista é, enfim, perquirida por meio de falas múltiplas existentes tanto nas crônicas, quanto no suporte em que se inserem. * Mestrando em História do Direito – Programa de Pós-Graduação Stricto Sensu da Faculdade de Direito da Universidade de São Paulo. [email protected] 112 CRUZANDO DISCURSOS: TEORIA E MÉTODO PARA REVELAÇÃO DA CULTURA JURÍDICA ABOLICIONISTA “Marco Polo descreve uma ponte, pedra por pedra. – Mas qual é a pedra que sustenta a ponte? – pergunta Kublai Khan. – A ponte não é sustentada por esta ou aquela pedra – responde Marco –, mas pela curva do arco que estas formam. Kublai Khan permanece em silêncio, refletindo. Depois acrescenta: – Por que falar das pedras? Só o arco me interessa. Polo responde: – Sem pedras o arco não existe.” Italo Calvino. As cidades invisíveis Apresentação A análise que se apresenta é fruto do trabalho final desenvolvido para a disciplina “Metodologia da História do Pensamento Jurídico”, do Programa de Pós-graduação stricto sensu em Filosofia e Teoria Geral do Direito da Faculdade de Direito da Universidade de São Paulo, do qual faz parte o pesquisador. Pretende-se tomar a História dos Discursos – e todo o seu arcabouço filosófico, pautado no estudo da linguagem – como matriz teórica para a pesquisa previamente proposta junto ao Departamento de Filosofia e Teoria Geral do Direito. Para que fique clara a adoção da teoria e do método explorados no projeto de mestrado a partir também da bibliografia elencada na disciplina, é necessário apontar algumas características do projeto inicial, indicando o percurso pelo qual passou até essa fase. Esboçado inicialmente como um estudo interdisciplinar entre direito e literatura, o projeto (cuja temática central é a análise de nove crônicas abolicionistas da série Bons Dias! publicadas, anonimamente, por Machado de Assis, no periódico Gazeta de Notícias entre abril e maio de 1888) privilegiava, em sua origem, a crítica literária de Antônio Cândido e Roberto Schwarz. A partir da análise da estrutura textual, propunha-se entender a irônica narrativa machadiana como subversiva do discurso dominante e denunciadora do desleixo como se dava a questão abolicionista, tangenciando, assim, o debate jurídico sobre o tema. Muito embora a proposta tenha sido aprovada e recebida com interesse pelo orientador, foram apontados problemas teóricos e metodológicos no projeto. Tanto por escapar a fundamentação teórica de matrizes caras ao universo jurídico, quanto por não ter sido especificada a metodologia plausível para se chegar ao objetivo do projeto, foi remetido o pesquisador a buscar a história do discurso, mais especificamente, John Greville Agard Pocock, para que reformulasse as bases do projeto acadêmico. Tido o primeiro contato com o autor, sentiu-se o pesquisador debilitado quanto às raízes do pensamento exposto por Pocock, bem como carecedor de outras formas de história para que elegesse qual seria o tipo de estudo e conseqüente método compatível com a idéia original do projeto. Nesse momento, inscreve-se para o curso sobre Metodologia da História do Pensamento Jurídico, onde procurava encontrar – e de fato ocorreu – as bases perquiridas. Fomentado pelos debates do curso e com o orientador, chegou-se à idéia do projeto como um mapeamento de discursos e de seus cruzamentos, dos quais resulta a cultura jurídica da época estudada. Recebidas as premissas filosóficas sobre a relação entre linguagem e direito, o pesquisador passa a permear diferentes campos (direito, história e literatura) com mais rigor, tornando a interdisciplinaridade possível sem desrespeitar os limites do programa de mestrado em que se insere, mas, também, sem deixar de trazer elementos, sobretudo referentes à crítica literária, pouco explorados nas academias de direito. ANAIS DO V CONGRESSO BRASILEIRO DE HISTÓRIA DO DIREITO 113 O presente trabalho é, portanto, uma breve e inicial incursão nos estudos da linguagem e no discurso político no intuito de aplicá-los ao projeto de mestrado do pesquisador, mais especificamente, como referência e base para confecção dos capítulos atinentes à matriz teórica e metodológica da dissertação de mestrado. Introdução É comum imaginar que o discurso jurídico é produzido por bacharéis, uma verdade. No entanto, a cultura jurídica não tem como sujeito apenas o indivíduo imerso nas academias de direito, já que permeia a sociedade de forma mais abrangente. Tem-se, assim, uma produção discursiva, em âmbito jurídico, também a partir dos leigos. A História do Pensamento Jurídico ocupou-se, tradicionalmente, da cultura jurídica letrada, sobretudo bacharelesca. Isso porque é o direito uma instituição com linguagem própria, que gera um corpo social que o domina e o produz, aliás, raro estrato da população que é responsável por sua gênese e oficial difusão, elite detentora do poder e formadora de “uma ilha de letrados num mar de analfabetos” concentrada na “formação jurídica” como já demonstrava José Murilo de Carvalho em A construção da ordem1. No entanto, todo esse discurso (letrado e bacharelesco) pode ser recepcionado pela sociedade em sentido amplo, possuidora de idéias próprias de direitos, o que causa aproximações, apropriações e também descompassos. Nesse sentido, a pesquisa procura não apartar os diferentes discursos, mas descobrir a circularidade, a interação entre diversas falas que compõem a cultura jurídica. Toma, pois, como referência, a produção de Susan S. Silbey, que analisa como é trabalhado o direito pela sociedade, expondo um julgamento crítico, porque independente da autoridade e de interesses das instituições legais. Nas palavras da pesquisadora estadunidense: “Law is not merely a resource or tool but a set of conceptual categories and schema that produce parts of the language and concepts people use for both constructing and interpretating social interactions and relantionships.” (SILBEY, 2003: 862). Uma das dificuldades para elaboração da história do pensamento jurídico dos leigos é que, em tese, não deixaram escritos sistematizados. Esse pensamento pode ser buscado através de documentos da época estudada, tais como produções de bacharéis nas quais repercutiam o pensamento não-especializado (desde que expressamente o fizessem), ou produções de leigos que não são do gênero literário em que se inserem os manuais de direito. Periódicos e outros gêneros literários em que constavam discursos de leigos, bem como de bacharéis, com temática jurídica, são fontes que possibilitam o estudo da cultura jurídica de uma época. Assim como também é possível essa leitura a partir de documentos burocráticos, produzidos por não-bacharéis (embora se tenha em mente que, via de regra os quadros burocráticos sempre foram preenchidos por letrados advindos das academias de direito de Portugal, São Paulo e Pernambuco), conforme realizado por Sidney Chalhoub, que trabalhou com o pensamento abolicionista na obra de Machado de Assis a partir de documentos elaborados pelo escritor enquanto atuou na Secretaria da Agricultura à época da Lei do Ventre Livre (CHALHOUB, 2003). A pesquisa possui, como fonte primária, o jornal Gazeta de Notícias dos meses de abril e maio de 1888, tendo como fonte nuclear nove crônicas de Machado de Assis da série Bons 1 O assunto é tratado por diversos historiadores, mas sempre com foco no privilegiado e dominante ambiente jurídico, considerado detentor da “alta cultura juíridica” (LOPES, 2010), no qual circulavam os detentores do poder e seus herdeiros. Conferir: CARVALHO, 2003; DUTRA, 2004; HESPANHA, 2006; LOPES, 2010. 114 CRUZANDO DISCURSOS: TEORIA E MÉTODO PARA REVELAÇÃO DA CULTURA JURÍDICA ABOLICIONISTA Dias!, que foi publicada e anotada por John Gledson, na década de 1990, que inclusive aponta: As primeiras nove crônicas da série são, na verdade, o seu cerne, e expõem os argumentos centrais do autor. Constituem um processo em que as questões mais importantes são tratadas, desenvolvidas, e finalmente chegam a um clímax, embora, claro, nunca sem ironia. (GLEDSON, 2009: 28). A partir dessa escolha, reconstruimos o pensamento abolicionista (e também o contrário às reformas servis) que permeava a sociedade brasileira no final do século XIX. Trata-se, portanto, de uma investigação baseada não em apenas um determinado rastro, mas num conjunto de pistas, de caminhos que se cruzam e originam o mapeamento da cultura jurídica brasileira no que tange à abolição do regime escravocrata: uma encruzilhada discursiva. Várias falas compõem as crônicas e o jornal em que são publicadas e o conjunto dessa pluralidade resulta em uma única cultura jurídica. A pesquisa, a partir da metodologia que será exposta, por meio da análise das fontes, angaria dados para discutir a questão da passagem de um regime escravocrata para um modo de produção gerador de dependentes, numa falsa tentativa de ilustrar (baseada nas luzes que vinham do além-mar) o conservador comportamento brasileiro, conforme elucida Roberto Schwarz, quando fala que “Esta complementariedade entre instituições burguesas e coloniais esteve na origem da nacionalidade e até hoje não desapareceu por completo.” (SCHWARZ, 2008b: 38) e Sidney Chalhoub: a concentração do poder de alforriar exclusivamente nas mãos dos senhores fazia parte de uma ampla estratégia de produção de dependentes, de transformação de exescravos em negros libertos ainda fiéis e submissos a seus antigos proprietários. (...) Machado está enfatizando aqui a continuação da exploração, a abolição como um não fato do ponto de vista das relações sociais.(CHALHOUB, 2011: 122). GLEDSON não diverge em sua interpretação acerca dos movimentos da sociedade: “A abolição não é um movimento da escuridão para a luz, mas a simples passagem de um relacionamento econômico e social opressivo para outro.” (GLEDSON, 2009:31). Ao contrário de GLEDSON – que discorreu plenamente sobre o conjunto de crônicas em análise – e de CHALHOUB – que explora a historicidade de algumas das crônicas –, SCHWARZ não deu, em sua produção, atenção específica a essa série machadiana. No entanto, características apontadas pelo autor, ao se referir a Machado, ou, mais especificamente, ao romance Memórias Póstumas de Brás Cubas, encaixam-se perfeitamente à leitura que se propõe das crônicas, sobretudo porque tratam não só da obra, mas da narrativa machadiana como espelho (mesmo que distorcido) da sociedade oitocentista2, razão pela qual seus ensinamentos serão também parâmetro para essa pesquisa. Em suma, o projeto sustenta-se sobre um mosaico de referências, amalgamadas pela temática discursiva. Em SILBEY, temos a base para explorar a ampla conformação da cultura jurídica a partir de vários discursos (abandonando, assim, dicotomias como alta vs. baixa; 2 A tese de SCHWARZ que melhor cabe às crônicas diz respeito à volubilidade da narrativa como resultado da discricionariedade da classe dominante. Inicia a exposição sobre a obra machadiana considerando que “É claro que não se tratou aqui de escrever uma história do Brasil, mas de expor com brevidade o travejamento contraditório da experiência que seria figurada e investigada pela literatura de um grande autor.” ( SCHWARZ, 2008b: 40) e explica que “O móvel da volubilidade é imediato e personalista. Seu primado impede que a norma burguesa vigore, embora não a prive de prestígio. Este é indispensável à idéia civilizada que a volubilidade machadiana faz de si, também para mostrar aos outros. [...] Se não erramos, Machado elaborava um procedimento literário cuja constituição objetiva punha a vida do espírito em coordenadas compatíveis com a realidade nacional, independentemente de convicções a respeito desta ou daquela doutrina.” (SCHWARZ, 2008b: 57). ANAIS DO V CONGRESSO BRASILEIRO DE HISTÓRIA DO DIREITO 115 letrados vs. não-letrados etc.); em CHALHOUB, SCHWARZ e GLEDSON, encontramos a perspectiva de Machado como atento intérprete de sua época, fazendo aqueles autores a ponte para transformar a narrativa machadiana em discurso político passível de análise; e, por fim, temos na proposta de estudo discursivo de POCOCK (que será explorada à frente) o alicerce metodológico para viabilizar a demonstração de interações discursivas e ideológicas. O estudo proposto justifica-se pela necessidade de entender a cultura jurídica como um corpo valorativo plural, conformado por diferentes atores e opiniões, para então jogar luz na produção de pensamento de não-bacharéis com vistas à melhor compreensão da sociedade, já que é formada, em sua maioria, por indivíduos que não freqüentaram as academias, mas que são também os destinatários do debate jurídico e que demonstram em seu discurso (consciência, para SILBEY) uma postura de recepção ou resistência3. Os discursos sob análise não são especificados, num primeiro momento, como pertencentes a esta ou aquela categoria. Apenas a partir da análise da narrativa e de seu suporte é que se pode apontar a quem pertence um determinado discurso. No caso das crônicas machadianas, não é assinalada sua autoria – já que, à época, eram anônimas –, mas anotados os diversos discursos nelas contidos. A mesma leitura se faz do suporte em que se inserem: de quem eram aqueles discursos? A escolha do suporte é abonada por serem os periódicos o veículo de informação por excelência na época sob análise4. Os jornais foram o espaço de exposição tanto de atos oficiais, quanto de manifestações (contrárias ou favoráveis), razão pela qual são a fonte primária deste trabalho, que não deixará de contemplar fontes outras 5 para elucidar a concepção das crônicas consideradas, inclusive de acordo com a metodologia eleita para esta pesquisa. O Gazeta de Notícias é periódico que muito contribui para a análise pretendida. É de fácil acesso6, possuía grande circulação no período, com uma tiragem de 24.000 exemplares (a segunda maior entre os principais jornais da época: Jornal do Commercio, O País e o próprio Gazeta de Notícias) e vendido de forma avulsa, o que facilitava sua distribuição, e era 3 “Legal consciousness traces the way in wich law is experienced and interpreted by specific individuals as they engage, avoid or resist the law and the legal meanings.” (SILBEY, 2001: 8626) e “The study of legal consciousness emerges out of, even as it shapes, social structures contested in ideological struggles or subsumed in hegemonic practices. The study of legal consciousness is the search for the forms of participation and interpretation through which actors construct, sustain, reproduce, or amend the circulating (constested or hegemonic) structures of meanings concerning law.” (SILBEY in JACOBS, 2005: 330). Esse entendimento vai ao encontro das teorias utilizadas nessa pesquisa acerca da história da linguagem e da história do discurso, no que tange à mudanças paradigmáticas a partir da inovação na linguagem. 4 Ainda são importantes espaços de divulgação, no entanto, com o advento de novas mídias (rádio, televisão e internet) e maior alcance da indústria editorial, não se pode dar à imprensa impressa a exclusiva importância que tinha à época da abolição. 5 A busca por diários, cartas e até material de trabalho de Machado, estudo que já foi feito e reconhecido (conferir CHALHOUB, 2003), será demanda constante ao longo da pesquisa, que os utilizará à medida de sua pertinência ao estudo. A importância dessa investigação justifica-se pela tentativa de escape ao círculo hermenêutico, como elucida POCOCK: “Quanto mais provas o historiador puder mobilizar na construção de suas hipóteses acerca das intenções do autor, que poderão então ser aplicadas ao texto ou testadas em confronto com o mesmo, maiores serão as suas chances de escapar do círculo hermenêutico, ou mais círculos desse tipo seus críticos terão de construir na tentativa de desmontar essas hipóteses.” ( POCOCK, 2003: 27). 6 Os jornais estão disponíveis tanto na Biblioteca Nacional do Rio de Janeiro, quanto no arquivo Edgard Leuenroth da Unicamp, através de microfilmes (localização: MR/0967 e MR/0968. Pesquisa através do endereço http://segall.ifch.unicamp.br/site_ael/), o que facilitou o acesso ao conteúdo objeto deste projeto. As imagens microfilmadas foram digitalizadas e gravadas em formato PDF e então impressas, no intuito de auxiliar a leitura dos periódicos. 116 CRUZANDO DISCURSOS: TEORIA E MÉTODO PARA REVELAÇÃO DA CULTURA JURÍDICA ABOLICIONISTA um jornal de ideologia liberal/abolicionista, o que pode explicar o espaço reservado às crônicas de Machado (GLEDSON, 2009: 14). Bons Dias! são crônicas ímpares na produção literária do autor. É uma série anônima de Machado, em virtude da busca7 por maior liberdade em expressar sua opinião acerca da abolição, e iniciou-se em período imediatamente anterior à Lei Áurea, tornando-se, assim, legado do discurso político8 da época. A temática abordada nas crônicas também auxilia na descoberta do cruzamento de discursos, ou de sua circularidade na composição da cultura jurídica da época, uma vez que a abolição foi discussão política que afetou diretamente o cotidiano da sociedade, de bacharéis e leigos, de senhores e escravos. Não se pode deixar de abrir parênteses, neste ponto, para retomar a questão da incongruente sociedade da época: admiradores das ideologias mais liberais e avançadas, os que balizavam a política nacional continuavam a refutar reformas mais drásticas e a conservar o regime já decadente da escravidão; conforme sintetiza SCHWARZ: “as idéias liberais não se podiam praticar, sendo ao mesmo tempo indescartáveis.” (SCHWARZ, 2008:26). A opção por Machado justifica-se pela ampla bibliografia produzida e disponível, inclusive com estudos sobre a questão intertextual em crônicas, dos quais destacamos a contribuição permanente de John Gledson para a divulgação da obra machadiana: “[as crônicas] têm uma percepção aguda dos eventos – em si muito importantes – que acompanham; e exploram a relação do cronista com o leitor, ao expandi-la e até subvertê-la” (GLEDSON, 2009: 13). Entretanto, ainda não há estudos sistematizados no que tange à contribuição de Machado para a história do discurso ou da cultura jurídica da época. Nesse sentido, poderemos observar o subsídio machadiano à formação da cultura jurídica, já que suas crônicas representam a circularidade discursiva (tanto nelas contidas, como na interação com o suporte) que se defende como composição ideológica de uma época. Dessa maneira, apresenta-se uma nova abordagem, a partir de um programa da área do direito, já que “um trabalho novo sobre o jornalismo, principalmente no caso de um escritor tão estudado quanto Machado de Assis, precisa justificar o que poderia parecer, à primeira vista, simples repetição.” (GRANJA, 2000: 18). A literatura específica acerca das crônicas sob análise, sobretudo John Gledson; e a respeito da leitura abolicionista, mormente pela obra de Sidney Chalhoub, são imprescindíveis 7 John Gledson indica que “É impossível exagerar a importância desse verdadeiro anonimato para a série; não se trata apenas de um novo pseudônimo [...]. Parece claro que Machado ia dizer coisas duras, mesmo sob a capa da ironia, e queria poder dizer essas coisas com uma margem extra de liberdade, sem sofrer consequências mais imediatas.” (GLEDSON, 2009: 20). Há, em outros autores, diferentes considerações sobre o anonimato, mas que, em virtude de serem acompanhadas por análises das quais não se compartilha no que tange ao papel político de Machado na abolição, não são privilegiadas neste momento da pesquisa. Não se trata, por outro lado, de Lúcia Granja, que diz: “...as crônicas de Machado são, no mínimo, surpreendentes, pelo desvelamento do homem e do escritor, pelo compromisso que implicam com o cotidiano da vida social, política e cultural do país, pela verdadeira militância que traduzem em face os problemas da época...” (GRANJA, 2006: 386); além de autores que começaram a traçar a importância da narrativa machadiana para a questão abolicionista, como MAGALHÃES JÚNIOR, 1970; E BROCA, 1983. 8 POCOCK salienta que ao falar de linguagens, seriam “retóricas mais do que linguagens no sentido étnico” e que “Esses idiomas ou jogos de linguagem variam também na origem e, consequentemente, em conteúdo e caráter. Alguns terão se originado nas práticas institucionais da sociedade em questão: como os jargões profissionais de juristas [...] e todos aqueles que se tornaram reconhecidos como integrantes da prática política e entraram para o discurso político.” (POCOCK, 2003: 31, grifo meu). Nesse último nicho, encontra-se Machado. ANAIS DO V CONGRESSO BRASILEIRO DE HISTÓRIA DO DIREITO 117 para o desenvolvimento do projeto e possibilitaram sua feitura desde sua concepção. Os próprios autores comentam as produções: O livro de Gledson (...) demonstra de forma convincente que o romancista comentou intensamente as transformações sociais e políticas do seu tempo. A crônica sobre a alforria do bom Pancrácio aparece no texto de Gledson para reforçar o argumento de que Machado percebia a abolição da escravidão como uma questão muito relativa, pois o que estaria ocorrendo era simplesmente a passagem de um tipo de relacionamento social e econômico injusto e opressivo para outro. ( CHALHOUB, 2011:118-9). Enfim, além de estudos acerca da cultura jurídica – sobretudo suas novas perspectivas, para além do ambiente elitizado –, aspectos inerentes à interpretação da produção machadiana, como a estrutura narrativa, a contextualização e a importância historiográfica constituem fundamento da pesquisa. Apresentado o trabalho e feita a introdução à pesquisa desenvolvida pelo discente, expõem-se, adiante, as bases teóricas e o método eleito para a jornada acadêmica. Bases teóricas: direito como linguagem As bases teóricas que serão apresentadas restringem-se à parte da pesquisa que tangencia a formação de um discurso e sua colocação como realidade institucional. Um outro arcabouço teórico, que não é o objeto nuclear deste trabalho – e por isso não explorado devidamente neste momento – e que será tangenciado ao longo da exposição, relaciona-se à conformação da cultura jurídica no país. Passa-se ao exame das primeiras premissas teóricas. Para além de sua restrita concepção como preceito legal, é examinada a natureza do direito para encaminhar o estudo desenvolvido na pesquisa. Ou seja, busca-se, a partir de pressupostos filosóficos, contornar o objeto de estudo, no caso, o direito como linguagem, parte constitutiva de fatos. Isso porque o direito é prática social expressa por linguagem própria, o que leva ao direito como realidade institucional, que abriga diferentes manifestações e linguagens, conjunto que é o verdadeiro objeto do estudo histórico. John Rogers Searle, filósofo da linguagem, é um dos pressupostos deste trabalho, já que disseca o trajeto entre fato real e fato institucional, em que são presentes elementos como intencionalidade e razão. A partir da soma da intencionalidade intrínseca a um fato (ontologicamente subjetiva e independente de observadores), com a linguagem pela qual tal intencionalidade é expressada, tem-se a intencionalidade derivada, dependente de observação alheia, que, por seu turno, quando em conjunto com a expressão de outros indivíduos, forma a intencionalidade coletiva, considerada como fato social. Ao lhe ser atribuída função específica (função de status, que pressupõe teleologia), a manifestação introduz normatividade e conforma uma realidade institucional. A partir da reiteração de realidades institucionais e interação entre elas, tem-se uma poderosa estrutura institucional. No caso da pesquisa, o direito e os discursos que o compõem. Esse percurso sucintamente exposto é apenas uma base para entendermos o direito como produto da relação entre objeto (fato/realidade), linguagem, institucionalização e poder (SEARLE, 2000: 105-125). Tendo em mente a gênese da relação entre linguagem e poder, pode-se avançar na trajetória a respeito do discurso. Robin George Collingwood, filósofo e historiador, trabalha, na mesma linha de SEARLE, com a distinção entre pensamento inconsciente e consciente (reflexivo); e interior e exterior de eventos, sendo o exterior a ação (ou discurso) e o interior a tradução de pensamento, o qual, por seu turno, é objeto da história, ou melhor, da filosofia da história. Ou seja, para além 118 CRUZANDO DISCURSOS: TEORIA E MÉTODO PARA REVELAÇÃO DA CULTURA JURÍDICA ABOLICIONISTA de mero conhecimento filológico, a partir de “seu próprio espírito” o historiador “re-presenta” a experiência de um agente, chegando ao conhecimento histórico. Discute-se a argumentação em si. A partir desse método, passa a tratar do assunto da história, que é a experiência, embora essa não seja, como tal, objeto do conhecimento filosófico (e sim o pensamento, que é mais do que consciência, é autoconsciência, a qual, contínua, recebe o nome de pensamento). Não é qualquer ato de pensamento que é objeto da história e sim o ato de pensamento reflexivo (é a consciência do ato mental que faz dele o que é: objeto da história), o qual é, assim, intencional, levando a uma atividade prática: “não se pode existir história de nada que não seja pensamento” (COLLINGWOOD, 1967: 282-315). 9 A pesquisa busca utilizar a narrativa machadiana sobre a abolição para desvelar a cultura jurídica da época, já que “os acontecimentos da história não são nunca meros fenômenos, nem meros espetáculos para serem contemplados, antes são coisas para as quais o historiador não olha, mas sim através das quais olha, para descobrir o pensamento que dentro delas existe.” (COLLINGWOOD, 1967: 308). Toma-se, a partir das considerações feitas, como matriz para o trabalho a história da linguagem política [ou história dos discursos], com referencial teórico na produção de Oxford e Cambridge10, cuja linhagem de representantes desenvolveu uma teoria baseada no “speech act”, que privilegia o sentido do discurso. Tem-se, desta forma, o discurso jurídico como objeto da história. No caso da pesquisa que se desenvolve, os discursos sobre abolição do final do século XIX, por meio de diferentes falas. A utilização das palavras pensamento (quando se fala em história do pensamento jurídico) ou discurso (ao se dizer história do discurso) é importante para que não se confunda o objeto deste trabalho com consciência11 jurídica (para qual pode ser atribuída natureza psicológica) ou com meras ações (fatos brutos). O discurso é depurado para se chegar ao sentido, já que o sentido é o permanente do discurso. Esse percurso interpretativo será teoricamente baseado, inicialmente, na junção entre método e história (na verdade, análise historiográfica) elaborada por Quentin Skinner12, união que ilumina o presente, já que seu trabalho envolve três eixos: (i) interpretação de textos históricos; (ii) levantamento da formação ideológica e suas mudanças; e (iii) análise do que representa a relação entre ideologia e ação política, já que não há dualidade entre mundo das ideias e mundo real, uma vez que vivem no mesmo horizonte. Skinner utiliza, para tanto, a fala e a escrita, as quais compreendem duas formas de ação: (i) o encadeamento de palavras, frases, argumentos e teorias com um significado proposital; e (ii) a força intentada pelo autor ao falar ou escrever. A primeira é o “significado locucionário”; a segunda, a “força ilocucionária”, que é imprescindível para o entendimento do discurso, já que esse faz parte de um pensamento contextualizado. A teoria de Skinner dá sequência aos estudos de COLLINGWOOD no que tange à importância do pensamento e dos padrões de linguagem num determinado contexto, invocando o significado histórico do texto (intencionalidade) ao re-descrever e caracterizar o 9 Da mesma forma, Peter Winch considera que o comportamento humano só nos interessa “se e na medida em que o agente ou agentes associam um sentido subjetivo (sinn) a ele”. (WINCH: 47-68). 10 Essas teorias foram desenvolvidas em linhagem advinda das escolas de Oxford e Cambridge, em que destacamos os seguintes filósofos e historiadores: AUSTIN, COLLINGWOOD, SEARLE, WITTGENTEIN, SKINNER E POCOCK. 11 Importante apontar que Susan S. Silbey, socióloga norte-americana que também é basilar na pesquisa, utiliza a expressão consciência jurídica para especificar o pensamento jurídico dos leigos, ou melhor, o discurso jurídico no cotidiano. 12 Conferir a compilação de textos de Skinner e que lhe são dirigidos em TULLY, James. Meaning an Context – Quentin Skinner and his Critics. Princeton: Princeton University Press. ANAIS DO V CONGRESSO BRASILEIRO DE HISTÓRIA DO DIREITO 119 ato linguístico a partir de sua ideologia. Nesse momento, é necessário termos atenção ao conjunto de obras da época, sobretudo às obras menores, que nem sempre participam do gênero do objeto histórico (no caso, o discurso jurídico, razão pela qual se elege o conjunto de crônicas machadianas). Busca-se, assim, elucidar o processo de formação das crônicas, verdadeiro diálogo de Machado – que passa de autor de crônicas a leitor do jornal no qual se inserem – com os atos normativos, notícias e opiniões exarados à época. Identificar a linguagem machadiana exposta não como reflexo da sociedade mas, como resposta à dificuldade de expressão diante da nova experiência prática, como “oportunidade para a performance de novos atos de fala por parte do leitor, quando se torna autor” (POCOCK, 2003: 44). O jornal Gazeta de Notícias, de abril e maio de 1888, abriga diferentes falas que, cruzadas, servem de base para a criação de um discurso plural dentro das crônicas machadianas. O cronista apreende uma linguagem para reproduzi-lo de forma irônica, criando, assim, uma nova linguagem. GLEDSON (2009) já apontou que Machado usava notícias do jornal para compor as crônicas, o que é recorrente nesse gênero literário. Com o intuito de trazer as interpretações13 de GLEDSON, SCHWARZ e CHALHOUB para o campo jurídico (político), o método que se propõe tem como referencial a história do discurso, sobretudo os estudos de POCOCK, que esclarece o papel da linguagem no discurso e ressalta o contexto da fonte analisada. Nas palavras do autor: “Agentes atuam sobre outros agentes, os quais, por sua vez, efetuam atos em resposta aos deles, e quando ação e resposta são efetuados através do meio da linguagem, não podemos absolutamente distinguir a performance do autor da resposta do leitor.” (POCOCK, 2003: 42). A importância dessa reconstrução está em mostrar que o discurso (jurídico, mesmo que leigo) serve para esclarecer uma discussão posta em determinado momento. Esse esforço interpretativo, mormente pela metodologia que será sucintamente exposta, elucida a alteração de uma ideologia (ou, pelo menos, a contraposição à ideologia dominante) pela colocação de novos discursos, novos sentidos. Busca-se a manobra ideológica do texto. É essa aspiração à mudança de convenção que se mostra essencial para o debate jurídico. Mais uma vez, Pocock, fala como se dá esse esclarecimento, através de perlocuções: “A história do discurso está interessada nos atos de fala que se tornam conhecidos e que evocam respostas, em elocuções que são modificadas à medida que se tornam perlocuções, conforme a maneira como os receptores respondem a elas, e com respostas que tornam a forma de novos atos de fala e de textos em resposta. O próprio leitor se torna um autor, e é exigido do historiador um complexo típico Rezeptionsgeschichte.” (POCOCK, 2003: 44) 13 Contribui para o método histórico a interpretação crítica da literatura, como apresentado nas obras de GLEDSON, SCHWARZ E CANDIDO. : “A alternativa encontrada por Machado é desvendada pelo crítico através do conceito de ‘realismo enganoso’, um procedimento pelo qual o artista, por um lado, representa a realidade através das convenções doutrinárias da estética realista dominante, enquanto, pelo outro, solapa, suspende e compromete todas elas ao mesmo tempo. O resultado não é a ausência ou a negação do referente, mas o desafio para que o leitor o encontre lendo os textos a contrapelo da narrativa, buscando seu lapsos, seus atos falhos, suas hesitações, suas referências cifradas e seu substrato histórico.” ( SEVCENKO, 2003: 15) “A partir da perspectiva da Análise do Discurso, especialmente da idéia de polifonia cunhada por Bakhtin, demonstra que a subversão do texto é prática do discurso machadiano, que viola fronteiras enunciativas. Por esse caminho, segundo analisa o autor, joga-se luz novamente sobre os fatos como matéria narrativa das crônicas e como ‘veículos que conduzem a todo um jogo de vozes contido no texto’ [ CRUZ JÚNIOR, 2002] e, na esteira das idéias de Antonio Candido e Roberto Schwarz, á captação da dinâmica do funcionamento da sociedade brasileira.” (GRANJA, 2006: 395). 120 CRUZANDO DISCURSOS: TEORIA E MÉTODO PARA REVELAÇÃO DA CULTURA JURÍDICA ABOLICIONISTA Isso posto, o trabalho pretende concluir que as crônicas de Machado são verdadeiras perlocuções em relação ao discurso jurídico dominante da época. Ao esclarecer e subverter, através de sua narrativa, os acontecimentos institucionais, Machado contribui para a formação da cultura jurídica abolicionista. Método: cruzando discursos A partir dos alicerces apontados, pode-se desenvolver um método que atente às particularidades do caso estudado, proporcionando, assim, a conclusão almejada: diferentes discursos compõem a cultura jurídica. Mais especificamente, no caso das crônicas machadianas, a conclusão é pretensa no sentido de ser sua narrativa uma forma denunciante dos acontecimentos e ideologias predominantes da época. Para evidenciar a intencionalidade particular e subjetiva do discurso analisado, deve-se recorrer à investigação da biografia, de documentos periféricos, cartas, etc. Enfim, não basta só o texto e sim seu sentido (o que faz o autor ao escrever: ter consciência desse ato). Pautados nesse método que dissecaremos os discursos sob apreciação. Essa proposta tem como referência o trabalho de Sidney Chalhoub em “Machado de Assis historiador”14. Quanto às fontes da pesquisa, a escolha do suporte é abonada por serem os periódicos o veículo de informação por excelência na época sob análise. Os jornais foram15 o espaço de exposição tanto de atos oficiais, quanto de manifestações leigas (contrárias ou favoráveis), razão pela qual são a fonte primária da pesquisa, que não deixa de contemplar fontes outras16 para elucidar a concepção das crônicas consideradas, inclusive de acordo com a metodologia que se expressa em leituras cruzadas. A Gazeta de Notícias é periódico que muito contribui para a pesquisa. É de fácil acesso17, possuía grande circulação no período e era um jornal de ideologia liberal/abolicionista, o que pode explicar o espaço reservado às crônicas de Machado. Bons Dias! são crônicas ímpares na produção literária do autor. É uma produção anônima de Machado, em virtude da busca18 por maior liberdade em expressar sua opinião acerca da abolição, e iniciou-se em período imediatamente anterior à reforma servil, quando essa já era inevitável, tornando-se, assim, legado do discurso político19 da época. 14 Obra em que são interpretados romances de Machado de Assis e analisados pareceres exarados pelo escritor enquanto burocrata do Império. 15 Ainda são importantes espaços de divulgação, no entanto, com o advento de novas mídias (rádio, televisão e internet) e maior alcance da indústria editorial, não se pode dar à imprensa impressa a exclusiva importância que tinha à época da abolição. 16 A busca por diários, cartas e até material de trabalho de Machado, estudo que já foi feito e reconhecido (CHALHOUB, 2007), será demanda constante ao longo da pesquisa, que os utilizará à medida de sua pertinência ao estudo. A importância dessa investigação justifica-se pela tentativa de escape ao círculo hermenêutico, como elucida POCOCK: “Quanto mais provas o historiador puder mobilizar na construção de suas hipóteses acerca das intenções do autor, que poderão então ser aplicadas ao texto ou testadas em confronto com o mesmo, maiores serão as suas chances de escapar do círculo hermenêutico, ou mais círculos desse tipo seus críticos terão de construir na tentativa de desmontar essas hipóteses.” (POCOCK, 2003: 27). 17 Os jornais estão disponíveis, embora em precário estado de conservação, tanto na Biblioteca Nacional do Rio de Janeiro, quanto no arquivo Edgard Leuenroth da Unicamp, através de microfilmes (localização: MR/0967 e MR/0968. Pesquisa através do endereço http://segall.ifch.unicamp.br/site_ael/, acessado em 2.4.2011), o que facilitou o acesso ao conteúdo objeto deste projeto. 18 John Gledson indica que “É impossível exagerar a importância desse verdadeiro anonimato para a série; não se trata apenas de um novo pseudônimo [...]. Parece claro que Machado ia dizer coisas duras, mesmo sob a capa da ironia, e queria poder dizer essas coisas com uma margem extra de liberdade, sem sofrer consequências mais imediatas.” (GLEDSON, 2009: 20) 19 Pocock salienta que ao falar de linguagens, seriam “retóricas mais do que linguagens no sentido étnico” e que “Esses idiomas ou jogos de linguagem variam também na origem e, consequentemente, em conteúdo e caráter. ANAIS DO V CONGRESSO BRASILEIRO DE HISTÓRIA DO DIREITO 121 A temática abordada nas crônicas também auxilia na descoberta do cruzamento de discursos, uma vez que a abolição foi discussão legislativa que afetou diretamente o cotidiano da sociedade, de leigos e bacharéis, de escravos e senhores. A opção por Machado justifica-se pela ampla bibliografia produzida e disponível, inclusive com estudos20 que abraçam a questão intertextual em crônicas, sobre a relação entre o escritor e a realidade constante no suporte que as publicava, além da literatura específica sobre as crônicas sob análise, sobretudo John Gledson, e sobre a questão abolicionista, mormente pela obra de Sidney Chalhoub. Todos esses elementos auxiliam na composição que se busca e são passos para se chegar à conclusão pretendida: identificar a ideologia do jornal, dos autores que nele escrevem, das notícias nele trazidas; revisar a crítica a respeito de Machado, em que são apontadas características peculiares do autor; e reconstituir o cenário e os interlocutores da época. Assim, será necessário contato com outros documentos que serão considerados como fontes paralelas, tais como outras obras de Machado e documentos pessoais e profissionais, na medida em que se tornarem pertinentes para a pesquisa. É nuclear, na pesquisa, a leitura conjunta das crônicas e do suporte em que se inserem. Busca-se interpretar os documentos em questão da seguinte forma: (1) reconhecer linguagens do discurso político, de acordo com o contexto (para tanto, é necessária a leitura da literatura da época, entendendo como interpretar, identificar tendências ideológicas e questionar o círculo hermenêutico; trata-se, enfim, de “sustentar que tal ou tal ‘linguagem’ existia como recurso cultural para determinados atores da história – e não como mero resultado da ação de seu olhar interpretativo” (POCOCK, 2033: 33); (2) identificar as possibilidades da linguagem através de sua recorrência; e (3) determinar se o emprego da linguagem pelo autor era incomum, se trazia novidade – o que se pretende demonstrar no caso das crônicas sob análise. Enfim, identificar o uso de uma linguagem crítica pelo autor, que revelará, assim, um discurso próprio, necessário para apreensão do debate jurídico da época pesquisada. Conclusão Anunciada a pluralidade de discursos como objeto de estudo e o cruzamento dessas respectivas falas como produtor da cultura jurídica, foi exposta a base filosófica – direito como linguagem – sobre a qual se ergue a metodologia desenvolvida – leitura sistemática e comparativa a partir do suporte escolhido como fonte histórica. Tendo em mente esses pressupostos, pode-se concluir que o universo jurídico, espaço construído e transitado pela sociedade em geral, é semelhante a uma ponte arcada, sustentada por diferentes pedras. Distintos discursos compõem uma mesma linguagem, formam uma só cultura. O exame dessas falas e o estudo do amálgama, atrito ou sobreposição que lhes relacionam é que instigam o pesquisador, e também o cidadão, a questionar de que forma se produz uma cultura jurídica, não bastando apenas identificá-la. Alguns terão se originado nas práticas institucionais da sociedade em questão: como os jargões profissionais de juristas [...] e todos aqueles que se tornaram reconhecidos como integrantes da prática política e entraram para o discurso político.” (POCOCK, 2003: 31). Creio que, nesse último nicho, encontra-se Machado. 20 No entanto, as pesquisas até agora compiladas possuem abordagem estritamente literária, não havendo ponte com o discurso e cultura jurídicos, razão pela qual se tem a novidade neste estudo. 122 CRUZANDO DISCURSOS: TEORIA E MÉTODO PARA REVELAÇÃO DA CULTURA JURÍDICA ABOLICIONISTA A partir da análise do material angariado, mormente com base nas teorias de Skinner e Pocock, é possível esse questionamento, essa desconstrução discursiva e imagética da cultura jurídica, ponte sustentada e atravessada pela diversidade. Bibliografia ASSIS, Machado de. Bons Dias! Campinas: Editora Unicamp, 2009. CHALHOUB, Sidney. Machado de Assis Historiador. 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É raro, entretanto, que as pesquisas da área estabeleçam um diálogo com o domínio de estudos a que se convencionou chamar de história dos livros, das edições e da leitura. É justamente essa aproximação que tentamos realizar neste texto, buscando ressaltar como um olhar atento a elementos que extrapolam o conteúdo estritamente textual dos impressos pode ser frutífero e instigante. Para tanto, realizamos, inicialmente, uma discussão teórico-metodológica sobre o estudo histórico das revistas em geral. Interessa-nos, em especial, seu papel na difusão e na circulação de ideias. Em seguida, analisamos algumas especificidades dos periódicos jurídicos, situando historicamente o momento de seu surgimento e destacando cuidados especiais que devem pautar o trato com essas fontes. Finalmente, esboçamos um breve panorama dos trabalhos já realizados a respeito das revistas de direito, buscando apontar direções ainda a explorar. Palavras-chave: Revistas jurídicas; Imprensa; Circulação de ideias. Abstract: Law magazines have been, in the past few years, receiving a growing attention from law historians, both as objects and as sources for their studies. It is quite rare, however, that researches in that area establish a dialogue with the domain of studies known as history of books, of publishing and of reading. It is exactly this approach that we try to develop in this text, seeking to emphasize how an attentive regard to elements that go beyond the strictly textual contents of printed material can be fruitful and stimulating. We do so by initially proposing a theoretical and methodological discussion about the study of magazines in general. The role they play in disseminating ideas and making them circulate is of particular interest. We then analyse some particularities of law periodicals, placing their moment of emergence in a historical perspective and putting in relief special precautions that need to be taken when dealing with these sources. Finally, we outline a brief overview of the works already made about law magazines, seeking to point out directions yet to be explored. Keywords: Law magazines; Press; Circulation of ideas. * Mestranda da linha de pesquisa História e Culturas Políticas do Programa de Pós-Graduação em História da Universidade Federal de Minas Gerais. Bolsista do [email protected] ANAIS DO V CONGRESSO BRASILEIRO DE HISTÓRIA DO DIREITO 125 Introdução Os impressos jurídicos vêm, nos últimos anos, ganhando uma atenção crescente por parte dos historiadores do direito. No caso das revistas, isso se verifica com especial intensidade desde o pioneiro colóquio La “cultura” delle riviste giuridiche italiane, organizado por Paolo Grossi em 19831. A partir de então, encontros com objetivos semelhantes e estudos, monográficos ou de maior fôlego, que atribuem ao periodismo jurídico papel de protagonismo se multiplicaram por todo o mundo. As revistas deixaram de ser vistas como meros repositórios de informações para estudos de teor variado e adquiriram estatuto próprio, na condição de verdadeiros objetos de pesquisa e não mais apenas de fontes de onde se retiram dados com outros propósitos. Reconheceu-se, ainda, sua centralidade na produção e na difusão de ideias, a ponto de se poder dizer com bastante segurança que nenhuma história do pensamento jurídico a partir do século XIX estará completa se ignorar os debates desenvolvidos no interior desses impressos. As reflexões teórico-metodológicas são, contudo, frequentemente deixadas de lado por aqueles que se aventuram na área. Em especial, as contribuições do domínio de estudos a que se convencionou chamar de história dos livros, das edições e da leitura são, se não ignoradas, ao menos pouco visitadas ou subutilizadas pelos juristas2. Essa abordagem historiográfica, que se consolidou principalmente a partir da França e que vem ganhando força desde, ao menos, os anos 1980, trouxe avanços consideráveis para a compreensão das relações entre os mais diversos artefatos editoriais, seus artífices, seus distribuidores e seus receptores – em suma, todos os atores que se inserem no que Robert Darnton (1990, p. 113) chamou de “circuito das comunicações”. De maneira extremamente sucinta, podemos dizer que esse campo de estudos chamou atenção para o caráter limitado dos trabalhos que se restringiam a discussões do conteúdo dos textos, ressaltando a importância de trabalhar com os suportes dos impressos, a sua materialidade, e também com as redes sociais que os circundam, da produção até a recepção. Desenvolveu-se, assim, uma visão mais sofisticada a respeito de uma série de questões, sobretudo os trânsitos de ideias3. Não se pode perder de vista, por outro lado, que também os historiadores dos livros mantiveram notável distância em relação ao direito. Em artigo significativamente intitulado Form and content in early modern legal books: Bridging the gap between material bibliography and the history of legal thought, António Manuel Hespanha (2008) mostrou como nem mesmo grandes obras de síntese sobre a imprensa na Europa dedicaram a atenção devida às publicações de direito, vazio que o autor português se pôs a preencher com indagações sobre os significados para o pensamento jurídico de mudanças materiais nos livros 1 As atas desse colóquio, voltado mais para o diálogo com os então editores de periódicos italianos que para estudos propriamente historiográficos, foram publicadas em forma de livro ainda no mesmo ano. Ver: GROSSI (org.), 1983. 2 Uma notável exceção é o trabalho que o professor Samuel Rodrigues Barbosa vem desenvolvendo com livros jurídicos publicados no período imperial brasileiro. O título de sua comunicação neste V Congresso Brasileiro de História do Direito já demonstra seu bom trânsito pela historiografia dos livros, da leitura e das edições: Materialidade da comunicação jurídica. Também o texto de Sylvio Normand (1993) sobre as revistas de direito do Québec, que será comentado em maiores detalhes oportunamente, apresenta uma tentativa de diálogo com essa tradição historiográfica. No trabalho deste autor, é interessante destacar, desde já, a constatação que faz de que muitos trabalhos de historiadores do direito acabaram por adotar métodos similares aos dos historiadores dos impressos, sem, contudo, estabelecer um diálogo explícito com essa área do conhecimento (NORMAND, 1993, p. 155). 3 Dois autores considerados clássicos da área são o francês Roger Chartier e o supracitado norte-americano Robert Darnton. São boas introduções ao tema os artigos, do primeiro, Do livro à leitura (2000), mais focado na questão da recepção dos textos, e, do segundo, O que é a história dos livros? (1990), onde se encontra detalhada a mencionada discussão a respeito do circuito das comunicações. Para uma introdução mais sucinta e pragmática, ver o pequeno livro de André Belo, História & Livro e Leitura (2002). 126 AS REVISTAS JURÍDICAS COMO OBJETOS E COMO FONTES DA HISTÓRIA DO DIREITO: ALGUMAS CONSIDERAÇÕES TEÓRICO-METODOLÓGICAS da área. Com este trabalho, pretendemos igualmente contribuir para essa aproximação, refletindo sobre os usos historiográficos das revistas jurídicas a partir do instrumental da história dos livros, das edições e da leitura. Não deixamos de ver razão no conselho de Grossi a um grupo de estudiosos argentinos e espanhóis reunidos em Buenos Aires com o intuito de discutir a produção periódica dos dois países, ao ressaltar que a busca de um caminho metodológico perfeito para cercar tal objeto é contraproducente e que é fundamental recorrer à empiria (in ANZOÁTEGUI [org.], 1997, p. 374). Consideramos, entretanto, que a reflexão teórica somente tem a acrescentar aos estudos, podendo torná-los mais profundos e até mesmo ajudar a evitar alguns percalços no caminho da pesquisa, o que justifica o esforço empreendido neste texto. Não pretendemos, evidentemente, apresentar uma espécie de “receita” de como trabalhar com revistas, mas tão somente apontar alguns caminhos e levantar alguns questionamentos. Em um primeiro momento, tecemos considerações sobre a teoria e a metodologia do estudo histórico das revistas de uma forma geral. No interior do vasto “universo dos impressos”, esses periódicos ocupam um lugar peculiar. Trata-se de um gênero de definição por vezes difícil, que se configura como uma espécie de “meio-termo” entre a efemeridade do jornal e a estabilidade do livro, abrangendo uma infinidade vertiginosa de formatos e de conteúdos – o que torna indispensável uma reflexão mais detida a seu respeito. Em seguida, discutimos algumas particularidades dos periódicos jurídicos e cuidados específicos que devem pautar seus usos historiográficos. Procuramos, também, explicitar a historicidade desse setor especializado da imprensa, discutindo o momento de seu surgimento e as transformações por que passou o gênero ao longo do tempo. Finalmente e à guisa de conclusão, esboçamos um breve panorama de alguns trabalhos que se dedicaram às revistas ligadas ao direito ou que delas trataram de alguma forma, buscando apontar direções no debate e possibilidades ainda por explorar. 1 Sobre o estudo histórico das revistas em geral A primeira – e apenas aparentemente elementar – indagação que um historiador que se propõe a trabalhar com revistas deve fazer é: o que é uma revista? Embora não tenhamos dificuldades para, intuitivamente, visualizar um exemplo desse tipo de periódico, estabelecer critérios objetivos para o definir e o diferenciar de outros impressos não é tarefa simples. Uma primeira dificuldade se impõe por nem todo artefato da imprensa que traz o substantivo “revista” em seu título o ser efetivamente, ao mesmo tempo em que muitas publicações feitas sob denominações diversas (boletim, arquivos, anais, jornal...) acabam por se aproximar do que podemos definir, ainda que precariamente, como revista. Michel Leymarie, tendo em vista a insuficiência da presença do termo, propõe que uma definição mais consistente do gênero leve em conta quatro aspectos: o formato, o conteúdo, a periodicidade e a paginação. A partir desses elementos, o autor ressalta que uma primeira distinção deve ser feita em relação ao jornal, pois ele e a revista são marcados por ritmos diversos e não guardam a mesma relação com o tempo. De maneira geral, a grande imprensa cotidiana se proclama neutra e busca dar conta dos acontecimentos que se sucedem diariamente, enquanto as revistas propõem uma reflexão mais aprofundada e pautada na opinião de seus colaboradores (LEYMARIE, 2002, p. 11). Em sentido semelhante, Ilka Stern Cohen sustenta que, no caso brasileiro, consolida-se no início do século XX uma diferenciação entre o jornal e a revista: ao primeiro, normalmente diário e vespertino, caberia a divulgação da notícia, o retrato instantâneo do momento, abrangendo desde as disputas políticas até o descarrilamento do trem de subúrbio. À revista reservava-se a especificidade de temas, a intenção de aprofundamento e a oferta de lazer tendo em vista os diferentes segmentos sociais: religiosas, esportivas, agrícolas, femininas, infantis ou ANAIS DO V CONGRESSO BRASILEIRO DE HISTÓRIA DO DIREITO 127 acadêmicas, essas publicações atendiam a interesses diversos não apenas como mercadorias, mas ainda como veículos de divulgação de valores, ideias e interesses. (COHEN, 2008, p. 105) Ana Luiza Martins destaca outros traços que permitem separar jornais e revistas: a existência, nas últimas, de uma capa e da formulação de um programa, “divulgado no artigo de fundo, que esclarece o propósito e as características da publicação” (MARTINS, 2008, p. 46)4. Certa hierarquia de conteúdos pode ser observada entre os componentes do “universo dos impressos”, em que a revista é colocada em uma posição de superioridade face ao jornal. A afirmação de Georges Sorel, em carta endereçada a Edouard Berth em 1907, é emblemática nesse sentido: “Os jornais fazem jornalismo; as revistas fazem cultura; não se pode deixar confundir os papéis” (apud LEYMARIE, 2002, p. 11). A revista é percebida, entretanto, como um artefato inferior ao livro, e não é raro que versões preliminares ou parciais de obras de maior fôlego sejam publicadas inicialmente em suas páginas. Tendo em vista essas questões, e retomando os elementos destacados por Leymarie, podemos, ainda que precariamente, definir a revista como um impresso de formato intermediário (“entre o jornal e o livro”), com conteúdo que enfatiza aspectos culturais, em textos, geralmente, mais profundos que os dos jornais, com periodicidade regular, mas não cotidiana, e paginação relativamente extensa, sobretudo em comparação com os jornais (mas em regra mais curta que a dos livros)5. Mesmo traçada essa definição (ou outra que se adeque melhor a um contexto específico de estudos), o historiador que se debruça sobre as revistas ainda encontra dificuldades em função da grande variedade de temáticas, formatos e títulos. No amplo estudo que dedicou às revistas paulistas do início da República, por exemplo, Ana Luiza Martins, classificando-as segundo suas temáticas, identifica publicações “agronômicas”, pedagógicas, institucionais, esportivas, religiosas, femininas, operárias, teatrais, cinematográficas e infantis (MARTINS, 2008, pp. 273-412). Ilka Stern Cohen ressalta, entre outros ramos específicos, as revistas de variedades, as humorísticas, as de informação (COHEN, 2008, pp. 103-130). Michel Leymarie sintetiza bem alguns pontos dessa diversidade das revistas: “As formas que elas tomam são, com efeito, múltiplas, os assuntos tratados muito diferentes, os atores mais ou menos numerosos, o público restrito ou amplo, o financiamento aleatório ou assegurado, a relação com os editores variável, a duração de sua vida bem diversa” (LEYMARIE, 2002, p. 12). Essa grande diversidade remete à dinâmica de segmentação que acompanha o gênero revista, tornando-se mais marcada e importante à medida que se expandem as tiragens e a oferta de títulos. Compreender a segmentação é, segundo Martins, uma tarefa metodológica essencial para o historiador que se dedica à imprensa, pois permite “inferir o público para o qual [a revista] se dirige, identificando interesses, valores e técnicas de cooptação de mercado” (MARTINS, 2003, p. 62). Isso faz com que as funções desempenhadas por cada impresso sejam, por vezes, profundamente díspares, merecendo cada uma delas as devidas reflexões. Nesse sentido, embora pensada para o caso francês e devendo passar por adaptações para poder ser aplicada ao Brasil, a tipologia feita por Thomas Loué nos parece bastante operacional, permitindo estabelecer certa ordem em meio a essa vastíssima variedade. Esse autor identifica três grandes polos entre as publicações: “erudito”, voltado para o conhecimento acadêmico e científico e para aspectos institucionais, “estético”, ligado a movimentos artísticos e de existência instável, e “geral”, onde estariam inseridas revistas que 4 O segundo aspecto, porém, pode ser relativizado, uma vez que, mesmo que ela não seja explícita, os jornais também adotam uma linha editorial, não sendo o estabelecimento de um “programa”, portanto, uma exclusividade da revista. 5 Para uma discussão um pouco diversa da definição do termo “revista”, iniciada com recurso a dicionários, ver MARTINS, 2008. pp. 45-46. 128 AS REVISTAS JURÍDICAS COMO OBJETOS E COMO FONTES DA HISTÓRIA DO DIREITO: ALGUMAS CONSIDERAÇÕES TEÓRICO-METODOLÓGICAS procurariam atender a demandas sociais de maneira mais direta e que se focariam em assuntos literários e políticos (LOUÉ, 2002, p. 58). No último polo, Loué está claramente se referindo ao modelo das revistas de cultura instituído pela Revue des Deux Mondes, publicação francesa lançada em 1829, que circulou intensamente em todo o mundo – inclusive no Brasil, onde teria influenciado o formato de publicações como a Revista do Brasil, a Revista Brasileira e a Revista do Instituto Histórico e Geográfico de São Paulo (cf. MARTINS, 2008, pp. 75-77) – e que, sobretudo na segunda metade do XIX, era considerada leitura obrigatória para os homens cultos. Talvez devêssemos acrescentar a essa tipologia as revistas populares (ainda que a distinção entre “popular” e “erudito” seja alta e justamente criticável), voltadas para um público ampliado, pensadas como leituras leves e rápidas, com frequente recurso à ilustração, que, face aos baixos índices de alfabetização, viveram um momento de especial vitalidade no Brasil do início do século XX (cf. LUCA, 2006, p. 121). Ultrapassadas essas questões de definição e classificação, é preciso atentar para aspectos mais propriamente teórico-metodológicos que devem ser mobilizados para pensar historicamente as revistas. Tania Regina de Luca, em um feliz jogo de palavras, destacou as possibilidades de se fazer história dos, nos e por meio dos periódicos, a partir da superação do desprezo pela imprensa, que era vista como fonte capciosa e pouco confiável, em vigor até o advento da chamada Nova História (LUCA, 2006, pp. 111-153). Especificamente sobre as potencialidades dos usos historiográficos das revistas (mas, também, apontando para alguns problemas que os envolvem), afirmou Ana Luiza Martins: Fonte preferencial para pesquisas de teor vário, a revista é gênero de impresso valorizado, sobretudo por “documentar” o passado através do registro múltiplo: do textual ao iconográfico, do extratextual – reclame ou propaganda – à segmentação, do perfil de seus proprietários àquele de seus consumidores (MARTINS, 2008, p. 21). Trata-se, como a própria autora destaca, de uma visão ingênua, não devendo o historiador prescindir do cuidado fundamental no trato com qualquer fonte: as revistas trazem uma versão dos fatos, uma representação sobre o que aconteceu, não os acontecimentos em si ou uma versão fiel deles. Devem, portanto, ser lidas como produções culturais, que jamais serão neutras. Essa dimensão é especialmente relevante quando se leva em conta que as revistas são, por excelência, lugares de trânsito de ideias e, por isso, estão comprometidas com a difusão de determinados valores e visões de mundo. Para uma análise plenamente frutífera das revistas no campo da história, além disso, não é suficiente ater-se a seus índices ou ao conteúdo expresso nos textos que as compõem. É preciso mobilizar o instrumental da história dos livros, das edições e da leitura, de forma a entendê-las como artefatos editoriais e a compreender que a produção de sentidos que elas engendram ultrapassa a literalidade de seus textos, abrangendo seus aspectos materiais, a organização interna, seu projeto gráfico, as estratégias editoriais para sua difusão, entre diversos outros fatores. Ana Luiza Martins sinaliza no sentido do caráter problemático dos estudos que se limitam a citar trechos de textos de revistas, sem propor uma análise de elementos que os extrapolam (e sem os quais é impossível obter uma verdadeira compreensão): A constância do uso de revistas como fonte histórica vem revelando que frases e imagens de periódicos pinçadas aqui e acolá, descosturadas do mergulho em seu tempo – vale dizer, no imaginário construído ao seu tempo – não iluminam suficientemente o passado. A pertinência desse gênero de impresso como testemunho do período é válida, se levarmos em consideração as condições de sua produção, de sua negociação, de seu mecenato propiciador, das revoluções técnicas a que se assistia e, sobretudo, da natureza dos capitais nele envolvidos (MARTINS, 2008, p. 21). ANAIS DO V CONGRESSO BRASILEIRO DE HISTÓRIA DO DIREITO 129 De maneira semelhante, Olivier Corpet adverte: Por sua complexidade, sua multidimensionalidade, uma revista requer uma abordagem qualitativa extremamente fina, que não esqueça jamais que sua história não pode se reduzir à análise de seus sumários e de seus índices; com efeito, existe em todo projeto de revista uma dimensão própria à sua fabricação que impõe a necessidade de considerar cada revista particular como um fato editorial total. (CORPET, 2002, p. 7). Os usos historiográficos das revistas se tornam, assim, mais instigantes e mais completos quando é dada atenção à materialidade, à circulação e à recepção desses impressos. Também se podem mostrar especialmente frutíferos estudos que busquem compreender as relações entre os diferentes títulos, tentando descrever como eles se estabelecem uns face aos outros, que disputas os permeiam e como eles se influenciam reciprocamente. Nesse sentido, Thomas Loué fala, distorcendo intencionalmente a célebre expressão de Pierre Bourdieu, em uma “ilusão monográfica” que poderia prejudicar trabalhos dedicados a títulos isolados (LOUÉ, 2002, p. 58). Preocupação semelhante pautou o recentemente publicado trabalho de Tania Regina de Luca a respeito da Revista do Brasil, em suas diversas fases desenvolvidas entre 1916 e 1944, que não se limitou ao estudo de sua fonte-objeto, mas procurou apreendê-la na relação com outros títulos que eram publicados no mesmo momento, de modo a explicitar “algumas escolhas que um leitor contemporâneo poderia fazer no interior do universo das revistas culturais e literárias” (LUCA, 2011, p. 8). Também o trabalho de Ana Luiza Martins (2008), já amplamente citado neste texto, propondo-se a compor um vasto panorama das publicações de São Paulo nas primeiras décadas republicanas, demonstrou o potencial altamente esclarecedor de estudos que se dedicam à dinâmica editorial do gênero revista, e não a um título isolado. Mesmo que se opte por trabalhar com esta última opção (o que, dadas as limitações materiais que enfrenta a pesquisa, é frequentemente a atitude mais prudente), é importante não perder de vista sua inserção em uma dinâmica editorial que envolve também outras publicações. Em meio a todas as questões que podem ser estudadas a partir desses periódicos, vêm florescendo, em especial, trabalhos associados à história intelectual e a indagações sobre as dinâmicas de circulação de ideias. As revistas são fundamentais para compreender as redes de relações que se estabelecem entre os diferentes membros de grupos de intelectuais, bem como para esclarecer a sua atuação no espaço público. Nesse sentido, afirma Jean-François Sirinelli: As revistas conferem uma estrutura ao campo intelectual por meio de forças antagônicas de adesão – pelas amizades que as subentendem, as fidelidades que arrebanham e a influência que exercem – e de exclusão – pelas posições tomadas, os debates suscitados, e as cisões advindas. Ao mesmo tempo que um observatório de primeiro plano da sociabilidade de microcosmos intelectuais, elas são aliás um lugar precioso para a análise do movimento das ideias (SIRINELLI, 1996, p. 249). Carlos Altamirano também ressalta a importância das revistas como forma de conectar os intelectuais, entendidos por esse autor como homens cuja arena se situa no domínio da cultura (ALTAMIRANO, 2008, p. 14). Estudar os periódicos pode ser, ainda, a partir das polêmicas que se instauram em suas páginas, uma maneira de perceber a atividade dos homens de letras como uma “luta cultural, por meio da qual os intelectuais se definem uns em relação aos outros ou uns contra os outros”, conforme propôs Christophe Charle (2001, p. 25). Uma última consideração a respeito das revistas em geral, que é de especial importância para refletir acerca de seu papel na história intelectual, remete-nos a um aspecto problemático das pesquisas da área. Trata-se da questão das fontes a serem empregadas além dos periódicos. Sabe-se que, em princípio, toda fonte histórica é capciosa e que, portanto, cruzar 130 AS REVISTAS JURÍDICAS COMO OBJETOS E COMO FONTES DA HISTÓRIA DO DIREITO: ALGUMAS CONSIDERAÇÕES TEÓRICO-METODOLÓGICAS as informações nela contidas com outras fontes pode ajudar a esclarecer muitas questões e mesmo a desfazer equívocos. Se encontrar séries completas de alguns títulos já é tarefa árdua, contudo, obter acesso aos arquivos das publicações é ainda mais difícil, praticamente impossível em caso de revistas que não são mais editadas6. O recurso a tais arquivos pode fornecer pistas preciosas sobre a fabricação da revista (por meio de contratos com tipógrafos e livreiros, por exemplo), sobre sua recepção (cartas de leitores) e sobre as redes de sociabilidade intelectual nela subentendidas (correspondências com colaboradores, outros documentos referentes à atuação dos editores e redatores). O acesso à documentação própria das revistas pode ser parcialmente suprida por outros acervos, como, no caso das publicações jurídicas, os de faculdades de direito e aqueles que conservam material referente a literatos – categoria em que se inseriam com grande frequência os juristas brasileiros até, ao menos, meados do século XX. De toda forma, uma leitura minuciosa das próprias revistas, preocupada com o formato da página, com as construções tipográficas empregadas, com sua estrutura interna (e a consequente atribuição de importâncias relativas aos diferentes conteúdos), com os elementos iconográficos, com os diversos nomes nelas envolvidos, já pode representar significativos avanços face a estudos que se ocuparam pura e simplesmente de seus textos. Feitas todas essas considerações genéricas, passamos agora a discutir as especificidades e possibilidades de estudo do periodismo jurídico. 2 O periodismo jurídico: especificidades As publicações ligadas ao direito ocupam, dentro do amplo espectro das revistas que delineamos brevemente, uma posição muito particular. Para começar a compreendê-la, é preciso atentar para o momento de sua emergência e para as transformações por que o gênero passou ao longo do tempo, o que permite apreender essas publicações em sua historicidade própria7. Os primeiros sinais de um esforço editorial continuado com foco no direito podem ser vistos na França das últimas décadas do século XVIII, quando surgiram diversas coleções dedicadas à publicação de causas célebres. Títulos mais completos e com uma crescente preocupação teórica surgiram de maneira quase simultânea nas duas vertentes dos Alpes e nas duas margens do Reno, ao longo das primeiras décadas do oitocentos. De maneira, à primeira vista, contraditória, nota-se que os impulsos para o florescimento dessa literatura foram bastante distintos. Na França, as publicações pioneiras estabeleceram um importante diálogo com o movimento de codificação, fato que se tornaria uma constante na história das revistas jurídicas, que, sobretudo a partir de meados do século XIX, assumiriam importante papel na escrita de novas legislações e, de maneira complementar, teriam sua expansão estimulada nessas conjunturas8. Na Alemanha, ao contrário, o periodismo jurídico surge em aberta oposição ao movimento codificador, tendo 6 Nesse sentido, cabe mencionar a espécie de lamento de Victor Tau Anzoátegui, nas palavras introdutórias do colóquio que organizou acerca das revistas jurídicas argentinas e espanholas: “Tampouco obtivemos a colaboração ativa das principais revistas jurídicas argentinas atuais, cujas raízes se fundam no lapso examinado neste Seminário. Permito-me assinalá-lo com franqueza: mais que o orgulho por mostrar suas ilustres origens, prevaleceu em alguns o temor de abrir seus arquivos aos estudiosos.” (ANZOÁTEGUI, 1997, p. 17) 7 Não é nosso objetivo traçar um histórico detalhado do surgimento e do desenvolvimento dos periódicos jurídicos aqui mencionados, mas apenas obter uma noção geral sobre os motivos que levaram a seu aparecimento e as transformações por que passaram ao longo do século XIX e das primeiras décadas do século XX. Explicações mais detalhadas ou mais específicas sobre cada país podem ser encontradas nos diversos trabalhos citados neste trecho e descritos sucintamente no item 3, infra. 8 Ver os comentários de Antonio Serrano Gonzalez (1997, pp. 84-87) sobre o impulso dado às então recémnascidas revistas jurídicas espanholas com o advento do Código Penal de 1848, que foi vivamente debatido em suas páginas. Também no Brasil das décadas de 1930 e 1940 isso se observa, tendo em vista que se tratou de um momento em que se desenvolveram amplas reformas legislativas, que privilegiaram o modelo do código, e também um contexto de significativa expansão na oferta de periódicos jurídicos. ANAIS DO V CONGRESSO BRASILEIRO DE HISTÓRIA DO DIREITO 131 como título principal a Zeitschrift für Geschichtliche Rechtwissenschaft, lançada por Savigny em 1815 como verdadeira tribuna para a sua Escola Histórica do Direito9. A aparente contradição se desfaz, entretanto, quando se identifica o traço comum de ambos os movimentos: a busca, de raízes iluministas, pela racionalização e pela secularização do direito, presente tanto no esforço de escrever uma lei sistemática com pretensões de completude quanto na proposta de seu estudo a partir de circunstâncias históricas. Nesse sentido, é muito significativo que Savigny, embora se constitua em um crítico da lei escrita, utilize-se com empenho da palavra escrita para difundir suas ideias10. Portugal, Espanha, Argentina e Brasil apresentam histórias bastante semelhantes quanto ao surgimento das revistas jurídicas, que ocorreu em todos esses países de maneira mais tardia, nas décadas de 1830 ou 1840, momento em que os debates acerca da codificação, bem como as iniciativas de organização profissional, intensificam-se, de maneira geral, em todos esses territórios nacionais11. Quanto ao caso argentino, merece atenção a periodização estabelecida por Alberto David Leiva, que buscou compor uma visão de conjunto da trajetória da imprensa jurídica do país até cerca de 1950, identificando quatro momentos distintos. O primeiro deles, que durou da fundação do periodismo rio-platense em 1801 até meados da década de 1830, seria marcado pela inserção de conteúdos jurídicos em publicações de escopo mais geral, notadamente com a publicação de colunas nos jornais de maior circulação. O momento seguinte, por ele chamado de “periodismo forense”, teria sido marcado por tentativas ainda incipientes de separação da imprensa genérica e por publicações pouco reflexivas, constituídas, não raro, pela mera transcrição de julgados. Esta fase teria durado até o final da década de 1850, quando a emergência de publicações com preocupações doutrinárias mais explícitas, que passaram a ser verdadeiros lugares de debates programáticos, levou a Argentina a ingressar na era das revistas jurídicas propriamente ditas. O seguinte e final passo seria dado apenas no alvorecer do século XX, por meio do “triunfo da especialização”. Atestando a “maturidade dos estudos jurídicos” nos país, surgiu um volume crescente de títulos dedicados exclusivamente a ramos específicos do direito, sem que para isso deixassem de emergir empreendimentos com pretensões mais gerais, como a Revista Jurídica Argentina La Ley, fundada em 1936 e ainda hoje editada (cf. LEIVA, 1997, pp. 5775). Acreditamos que essa trajetória, feitas as devidas adaptações a cada caso histórico concreto, pode ser encontrada de maneira semelhante em outros países e, assim, ajudar na compreensão do percurso das revistas jurídicas para muito além das fronteiras portenhas. No Brasil, o nascimento do periodismo jurídico propriamente dito se deu, como sugerido acima, em 1843, com a Gazeta dos Tribunais, publicada no Rio de Janeiro pelo Conselheiro Francisco Alberto Teixeira de Aragão, que se utilizaria das páginas impressas para militar a favor da criação do Instituto dos Advogados Brasileiros, o que efetivamente ocorreu ainda no mesmo ano (cf. FORMIGA, 2007, p. 108). Não se pode perder de vista, entretanto, que já havia, anteriormente, como no caso argentino, publicações com teor jurídico em meios de comunicação de escopo mais geral, sobretudo em jornais. Essas colunas davam ênfase à legislação e às decisões judiciais, trazendo raramente textos de caráter teórico. É digna de nota, nesse sentido, a seção oficial do Jornal do Commercio do Rio de Janeiro, durante muito tempo um valioso instrumento de trabalho para os bacharéis brasileiros. 9 Agradeço ao professor Airton Seelander pela observação a respeito da atuação de Savigny como editor de uma pioneira revista alemã feita no debate após a minha exposição, o que me levou a rever a afirmativa que havia inicialmente formulado, estabelecendo uma apressada e falsa ligação estreita entre o surgimento dos periódicos jurídicos e a codificação. 10 Ver o significativo texto de apresentação da Zeitschrift für Geschichtliche Rechtwissenschaft, reproduzido com a devida tradução em GONZALEZ, 1997, p. 79. 11 Para todo o esboço histórico acima, salvo menção em contrário, cf. CHORÃO, 2002, pp. 36-62; FORMIGA, 2010, pp. 35-45; RAMOS, 2010, pp. 64-67 132 AS REVISTAS JURÍDICAS COMO OBJETOS E COMO FONTES DA HISTÓRIA DO DIREITO: ALGUMAS CONSIDERAÇÕES TEÓRICO-METODOLÓGICAS Tampouco podem ser esquecidas as publicações oficiais, iniciadas por diversos órgãos de governo com o intuito primordial de dar publicidade às normas que elaboravam, mas que cediam eventual espaço para atos de cunho jurídico, como comunicados de Tribunais, decisões judiciais consideradas importantes e editais (cf. FORMIGA, 2010, pp. 50-51). Ainda que constituam antecedentes importantes, é necessário demarcar a diferença entre esses impressos e aquilo que estamos chamando de periodismo jurídico: está ausente naqueles a intenção de se dedicar exclusivamente a uma área de conhecimento (no caso, o direito) e de contribuir para seu desenvolvimento que é constitutivo do surgimento destas publicações. Ao longo da segunda metade do século XIX, o gênero se expandiu e se consolidou, embora tenham sido muitos os títulos de existência efêmera ou de publicação irregular. Em 1881, o catálogo da célebre exposição de história do Brasil realizada pela Biblioteca Nacional listava ao menos 17 periódicos relacionados ao direito, publicados no Rio de Janeiro, em São Paulo e no Recife12. Do inventário composto por Armando Soares de Castro Formiga (2010), constam 53 títulos lançados entre 1843 e 1900 por todo o país. De uma maneira geral (e novamente semelhante ao caso argentino), as seções de doutrina eram, inicialmente, rarefeitas. Somente se expressou uma preocupação científica mais explícita, dando ensejo a revistas compostas quase que exclusivamente por artigos teóricos, no início da República, quando a reforma dos cursos de direito empreendida por Benjamin Constant permitiu a fundação de faculdades livres, com a obrigatoriedade de produção de revistas por suas congregações (cf. FORMIGA, 2010, p. 51). Embora não disponhamos de informações específicas sobre as três primeiras décadas do século XX, tudo leva a crer que a expansão e a consolidação do periodismo jurídico prosseguiram e se aprofundaram. Sinal claro disso é o fato de dois dos principais títulos brasileiros da área, ainda hoje publicados e altamente respeitados, além de terem dado origem a bem sucedidos empreendimentos editoriais, haverem sido fundados nesse contexto: a Revista Forense, em Belo Horizonte (1904; a redação se muda para o Rio de Janeiro em 1936, onde continua a ser sediada), e a Revista dos Tribunais, em São Paulo (1912). Na passagem da década de 1930 para a de 1940, há uma nítida expansão do setor, com diversos novos títulos sendo ofertados13 e um notável aumento na paginação de muitos dos já existentes, ao menos até o advento das dificuldades no acesso ao papel impostas pela guerra europeia. Dois fatos são dignos de nota nesse contexto. O primeiro deles é o surgimento de uma série de publicações oficiais das seccionais da Ordem dos Advogados do Brasil, que acabara de ser organizada por força de um decreto de dezembro de 1930, após fortes reivindicações que remontam, ao menos, até a fundação do Instituto dos Advogados Brasileiros – e, portanto, ao momento de surgimento do periodismo jurídico no país. O segundo remete-nos à trajetória desse setor da imprensa como definida por Alberto David Leiva (1997) para o caso argentino, mais especificamente à sua etapa final, por ele chamada de “o triunfo da especialização”, sinal da maturidade do conhecimento jurídico, sobretudo em sua matriz mais acadêmica. Ao contrário do que ocorre no país vizinho, em que já nas décadas de 1900 e 1910 começam a se multiplicar títulos dedicados a setores específicos do direito (cf. LEIVA, 1997, pp. 72-75), somente na década de 1930 essa barreira será rompida no Brasil, com títulos como a Revista de Direito Penal, lançada em 1933 por iniciativa da Sociedade Brasileira de Criminologia14. 12 Annaes da Biblioteca Nacional do Rio de Janeiro. v. IX, 1881-1882. pp. 422-447. 13 Em levantamentos ainda preliminares que estamos realizando sobre os anos de 1936 a 1943, encontramos mais de 50 títulos sendo editados no Brasil, cifra que se equipara à quantidade de revistas encontrada por Armando Soares de Castro Formiga (2010) em um recorte temporal de quase 60 anos. Isso dá uma boa medida da expansão da imprensa jurídica nessa conjuntura. 14 Embora tenha surgido em 1906 uma publicação intitulada Revista de Direito Civil, Comercial e Criminal, não podemos considerá-la uma revista especializada, tendo em vista que abarcava os três grandes ramos do direito ANAIS DO V CONGRESSO BRASILEIRO DE HISTÓRIA DO DIREITO 133 Desconhecemos trabalhos que tratem da trajetória do periodismo jurídico nacional nos anos subsequentes, mas um breve olhar para os atuais catálogos de periódicos correntes permite perceber que essa especialização se aprofundou, a ponto de ser praticamente impossível, hoje, encontrar uma área jurídica tida como autônoma (ao menos nos currículos dos cursos superiores de direito) ou que tenha aspirações de ser considerada como tal que não disponha de uma publicação própria. Por outro lado, não se podem negligenciar as transformações que as inovações tecnológicas, notadamente a internet e o crescente uso de suportes digitais para a difusão de textos, impuseram à imprensa em geral e às revistas jurídicas em particular. Uma das funções primordiais destas, a de compilar julgados empregáveis em peças redigidas no exercício da advocacia, foi em grande medida substituída pelas quase instantâneas buscas de jurisprudência disponibilizadas online pelos Tribunais de Justiça. Isso não implicou, entretanto, o ocaso completo das revistas jurídicas, que souberam se adaptar (muitas delas migraram para o formato digital ou, ao menos, passaram a ser editadas também eletronicamente) e sobrevivem, por vezes até mesmo com a chancela oficial, como ocorre com aquelas que são consideradas repositórios autorizados de jurisprudência15. Retomando a questão da especialização, é importante perceber como ela nos remete à utilidade de estabelecer tipologias para estudar esses periódicos16, o que pode ajudar a alcançar uma compreensão tanto do conjunto quanto da segmentação das revistas jurídicas. Armando Soares de Castro Formiga propõe, para os periódicos publicados no Brasil oitocentista, uma classificação baseada em dois critérios distintos: quanto às pessoas que realizaram o projeto e quanto à linha editorial adotada. Em relação à primeira categoria, os títulos poderiam ser projetos que resultaram da livre iniciativa editorial; projetos científicos ou publicações oficiais das faculdades de direito; projetos acadêmicos, empreendidos pelos estudantes de direito; projetos associativos, constituídos como órgãos oficiais de grupos diversos. Quanto ao segundo critério, haveria: gazetas, dedicadas primordialmente à publicação oficial dos tribunais e dos atos normativos; títulos doutrinais, focados nos artigos teóricos; revistas jurisprudenciais, dedicadas unicamente à divulgação de julgados; publicações completas, que reuniam doutrina, jurisprudência e legislação, além de resenhas noticiosas e bibliográficas (FORMIGA, 2010, p. 52). Para o contexto dos anos 1930 e 1940, que temos estudado em maior detalhe, arriscamo-nos a propor uma classificação mais sucinta, semelhante aos grandes “polos” identificados por Loué nas publicações francesas. A nosso ver, a consolidação do gênero no Brasil no período tornou um tanto redundantes algumas das categorias de Formiga, que podem ser agregadas sem prejuízos analíticos. Mencionemos dois exemplos: a quase integralidade de títulos que se dedicam preponderantemente à doutrina está ligada a faculdades ou a associações de juristas; ao longo do tempo, a distinção entre títulos jurisprudenciais e doutrinais tendeu a se diluir, de forma que até mesmo as publicações mais centradas nas decisões judiciais, como a Revista Brasileira de Jurisprudência e a Revista dos Tribunais contavam com seções, ainda que bastante restritas, de artigos teóricos. Propomos, assim, que a tipologia se resuma a publicações institucionais, revistas especializadas e revistas jurídicas de informação geral. O primeiro grupo, marcado por uma preocupação precípua em fortalecer a associação responsável pela publicação, era composto então existentes e reproduzia, em verdade, conteúdos atinentes às mais diversas questões jurídicas. Prova de seu caráter generalista é o fato de ser frequentemente citada em outras publicações apenas como Revista de Direito. 15 Ver, por exemplo, o artigo 541, parágrafo único, do Código de Processo Civil (Lei 5.869, de 11 de janeiro de 1973). 16 Não tomamos as tipologias como “camisas de força” ou como categorias estanques, mas como instrumentos analíticos que podem auxiliar na compreensão do fenômeno histórico em estudo, sem ignorar que as fronteiras entre cada um dos termos da classificação são, muitas vezes, fluidas. 134 AS REVISTAS JURÍDICAS COMO OBJETOS E COMO FONTES DA HISTÓRIA DO DIREITO: ALGUMAS CONSIDERAÇÕES TEÓRICO-METODOLÓGICAS inicialmente pelos já mencionados e pioneiros títulos que se relacionaram ao Instituto dos Advogados Brasileiros e por revistas ligadas a faculdades de direito. Ao longo da década de 1930, outras instituições começaram a publicar seus próprios periódicos, como a Associação Paulista do Ministério Público, que apresentou o primeiro número de Justitia em 1939, e a então recém-fundada Ordem dos Advogados do Brasil, que esteve, por meio de suas diferentes seccionais, ligada a uma já mencionada profusão de publicações. As revistas especializadas, por sua vez, dedicavam-se a ramos específicos do direito e, como já mencionado anteriormente, tiveram surgimento tardio no Brasil, ganhando força justamente nas décadas de 1930 e 1940. Um caso significativo é o da Legislação do Trabalho, fundada em 1937, e que, a exemplo das revistas Forense e dos Tribunais, ainda hoje é publicada e deu origem a um bem-sucedido empreendimento editorial. As revistas jurídicas de informação geral, finalmente, são aquelas que buscam, em suas páginas, dar conta de todos os assuntos relacionados ao direito (ou, ao menos, da maior quantidade possível deles), não se restringindo a preocupações institucionais ou a áreas específicas do conhecimento jurídico. Na classificação proposta por Loué, as revistas jurídicas podem ser inseridas sem grandes dificuldades no “polo erudito”, tendo em vista sua relação com uma área específica do conhecimento – e uma área em que a “cultura geral” e as habilidades retóricas são profundamente valorizadas –, mas é preciso atentar para o caráter pragmático, de fonte imediata de renda, de que se revestem. Isso se deve, em grande medida, ao protagonismo que os atos da leitura e da escrita assumem na atividade de todos aqueles que, de alguma forma, lidam com o direito. A profissão dos advogados é, segundo António Manuel Hespanha, “basicamente ler e escrever”, uma “produção industrial de textos”. Os juristas, em sua atividade comunicativa, “compartilham intensivamente os dois universos do manuscrito e do impresso, tanto como escritores quanto como leitores” (HESPANHA, 2008, p. 27). É preciso, portanto, compreender o direito como uma ramificação da “economia escriturística”, para utilizar a expressão de Michel de Certeau (1990) – e as revistas jurídicas são dispositivos intelectuais essenciais para o fazer, na medida em que representam reuniões e seleções desses textos industrialmente produzidos, colocados em relação uns com os outros segundo lógicas estabelecidas por seus editores. As revistas jurídicas assumiam – e ainda assumem, embora em menor escala, em função da já mencionada disponibilidade, hoje, de ferramentas para realizar pesquisas de decisões judiciais na internet –, portanto, um papel central na vida profissional daqueles que a adquiriam, estando dotadas de uma finalidade prática mais imediata que comumente se observa nas revistas de disciplinas científicas. O advogado, o juiz, o promotor de justiça, enfim, aquele que lida com o direito busca nessas páginas, antes de tudo, subsídios para a ação. No interior dos periódicos jurídicos, os mais variados operadores do direito encontram meios diretamente empregáveis na prestação de serviços a clientes. Desenvolver adequadamente as atividades no foro pressupõe conhecer não só as leis, mas também se colocar a par das últimas decisões proferidas pelos tribunais, bem como das interpretações mais autorizadas da lei, emanadas dos jurisconsultos. É justamente esse universo plural do direito que as revistas buscam reunir, organizar e levar a conhecer tanto para aqueles que se dedicam a seu estudo especulativo quanto para os que lhe buscam conferir traduções práticas. Não por acaso, os títulos, principalmente aqueles que têm a pretensão de apresentar informações gerais sobre o direito, costumam se organizar em torno de uma espécie de “trilogia estrutural” do direito: a legislação, a doutrina e a jurisprudência. O desempenho dessas importantes funções profissionais permitiu que muitos dos títulos adquirissem uma estabilidade notável, muito diversa da efemeridade que marcou, por exemplo, diversas publicações ilustradas do início do século XX. Essa estabilidade permitiu, em muitos casos, a adoção de uma paginação extensa e que a publicação fosse feita de ANAIS DO V CONGRESSO BRASILEIRO DE HISTÓRIA DO DIREITO 135 maneira absolutamente regular17. Além disso, tendo em vista a relação muito peculiar que o direito estabelece com o tempo, uma vez que é um discurso que busca assegurar a estabilidade das relações sociais (ou, em termos mais próprios a essa área do conhecimento, a “segurança jurídica”), há um mercado significativo de segunda mão para essas revistas, que foram até mesmo reeditadas em alguns momentos posteriores, muito em função da tentativa, especialmente forte em faculdades de direito, de estabelecer coleções completas. Por esse motivo, a atenção a aspectos que extrapolam o texto, como carimbos de bibliotecas, assinaturas e anotações de leitores, notas da tipografia, pode ser especialmente reveladora para o historiador, dando-lhe pistas da circulação ou mesmo da recepção dessas revistas. É preciso estar atento, também, aos diferentes contextos em que um mesmo texto, embora produzido em um momento histórico definido, foi lido e apropriado. Jean-Paul Barrière estuda as revistas jurídicas francesas da Belle Époque a partir de uma perspectiva profissional, qualificando-as como “um gênero à parte”. Nessa perspectiva, traça distinções entre revistas técnicas, ligadas mais propriamente a uma “dimensão prática”, especializadas, que seriam mais abrangentes e interessariam tanto aos profissionais quanto aos particulares, e profissionais, primordialmente relacionadas às questões internas ao ofício (BARRIÈRE, 2002, p. 270). Ana Luiza Martins insere publicações paulistas como a Revista da Faculdade de Direito de São Paulo entre os periódicos institucionais (MARTINS, 2008, pp. 324-329). Os aspectos técnico-científicos, profissionais ou institucionais dos periódicos ligados ao direito são, contudo, em muitos momentos, insuficientes para sua compreensão. No caso brasileiro, tendo em vista que, ao menos até o início da República, ainda que não atuassem propriamente em seu âmbito, inúmeros “homens de letras” eram bacharéis em direito – e é comum encontrar nomes célebres por sua produção em outras áreas, como a literatura, o pensamento social ou mesmo a história, entre os autores dos textos das revistas jurídicas –, parece-nos que a divisão entre os aspectos técnico, especializado e profissional das revistas feita por Barrière não se aplica. A atuação intelectual ampliada dos nossos bacharéis torna razoável supor que os periódicos jurídicos brasileiros desempenharam, ainda que em diferentes graus, as três funções simultaneamente. Isso se reforça pelas atribuições que os juristas foram, ao longo do tempo, chamados a assumir na construção de projetos de Estado, em sua organização legal e na implantação de políticas públicas, o que torna o conteúdo político dessas revistas um fator que não pode ser negligenciado. Por outro lado, os indivíduos com formação em direito foram também responsáveis por importantes críticas aos excessos da autoridade estatal, principalmente quando rompidos valores a eles muito caros, como a legalidade. Embora seja inegável que a linguagem por vezes impenetrável do direito restringe, em grande medida, o público desses impressos, não se pode, contudo, lançar a eles um olhar muito estreito. As páginas dos periódicos jurídicos são lugares que permitem acompanhar não só os rumos do conhecimento jurídico propriamente dito, mas tomadas de posições face às grandes questões discutidas no espaço público, atuações as mais diversas junto às instâncias do poder e até mesmo concepções de história, de sociedade, de Estado. Todos esses fatores que procuramos destacar nos levam a perceber como as revistas jurídicas podem ser uma fonte-objeto de grande valia para as mais diferentes questões da história do direito. Antes de tudo, elas são um observatório privilegiado do pensamento jurídico. Tendo em vista sua temporalidade específica, mais curta que a dos livros, porém mais longa que a dos jornais, o que possibilita, simultaneamente, reflexões relativamente 17 Isso não se observa, entretanto, nas revistas mais propriamente institucionais, menos voltadas para a atuação profissional dos juristas. É o caso, por exemplo, da Revista da Faculdade de Direito de São Paulo, marcada por diversas descontinuidades, um formato irregular e muitos atrasos em suas publicações. 136 AS REVISTAS JURÍDICAS COMO OBJETOS E COMO FONTES DA HISTÓRIA DO DIREITO: ALGUMAS CONSIDERAÇÕES TEÓRICO-METODOLÓGICAS aprofundadas e respostas rápidas, são os lugares por excelência das polêmicas intelectuais. Além disso, as revistas permitem explorar tensões políticas, trânsitos de ideias, reivindicações de uma área específica do conhecimento, a especialização das diferentes áreas jurídicas, a organização de uma profissão... Trata-se de um vasto campo de estudos, rico em direções ainda por explorar, apesar da crescente produção bibliográfica a seu respeito. 3 Historiografia e revistas jurídicas: estudos e possibilidades Optamos por não dar a este texto uma conclusão em moldes tradicionais, mas sim por encerrá-lo compondo um breve panorama dos trabalhos que, de diversas formas, trataram das revistas jurídicas nos últimos anos. Muitos deles já foram repetidas vezes citados nesta exposição, porém consideramos que um esforço de síntese, ainda que inevitavelmente incompleto e precário, pode ajudar a perceber lacunas e caminhos que ainda merecem ser seguidos. Esperamos, também, contribuir para que pesquisadores que começam a se embrenhar pelo cipoal das revistas jurídicas se sintam menos perdidos na busca por bibliografia específica18. Conforme sugerimos no início deste texto, o colóquio La “cultura” delle riviste giuridiche italiane, organizado por Paolo Grossi em Florença em 1983, pode ser considerado uma espécie de momento fundador do interesse dos historiadores do direito pelas revistas jurídicas. Suas atas foram publicadas em forma de livro ainda no mesmo ano, como o volume 13 da Biblioteca per la storia del pensiero giuridico moderno. Apesar do caráter pioneiro que lhe é atribuído, esse encontro não foi propriamente historiográfico, mas mais voltado para a reflexão acerca do gênero e de suas relações com a cultura. Em 1987, a revista do centro de estudos comandado por Grossi, Quaderni Fiorentini per la storia del pensiero giuridico moderno, dedicou a integralidade de seu volume 16 a uma série de estudos sobre as publicações especializadas italianas entre 1865 e 194519. No ano seguinte, a França ganhava uma coletânea semelhante, intitulada La culture des revues juridiques françaises e organizada por André-Jean Arnaud. Em 1994, era a vez de juristas argentinos e espanhóis se reunirem em Buenos Aires com o intuito de discutir a produção dos dois países. As atas desse encontro somente tomariam a forma de livro (La revista jurídica en la cultura contemporanea) em 1997, sob a direção de Victor Tau Anzoátegui. Deve-se mencionar, ainda, a ampla iniciativa de digitalização de periódicos jurídicos do Max-Planck-Institut für europäische Rechtsgeschichte, que também vem incentivando pesquisas na área20. Em outra vertente, desenvolveram-se alguns estudos individuais que buscaram sintetizar a produção de um país ou de uma região, notadamente ao longo do século XIX. É o caso de O periodismo jurídico português do século XIX, de Luís Bigotte Chorão (2002), de Periodismo Jurídico no Brasil do Século XIX, de Armando Soares de Castro Formiga (2010; obra assumidamente inspirada na primeira) e do artigo Profil des périodiques juridiques québécois au XIXe siècle, de Sylvio Normand (1993). Este último merece destaque por ser um dos poucos trabalhos que encontramos que estabelece um diálogo direto com a história dos livros, das edições e da leitura e que se faz efetivamente influenciar por essa corrente historiográfica, o que se nota já na divisão do texto: “a produção”, “a confecção”, “a difusão”. Também pode ser classificada entre os empreendimentos mais 18 Excluímos as referências completas desta seção para facilitar sua leitura. Todas as obras mencionadas estão, contudo, devidamente citadas ao fim do texto. 19 Ambas as obras encontram-se disponíveis para download na página do centro: http://www.centropgm.unifi.it. 20 Barreiras de caráter linguístico nos impedem de tecer considerações mais precisas acerca da produção desse instituto. Ver, porém, o texto de apresentação do projeto de digitalização, disponível também em inglês: http://www.rg.mpg.de/en/bibliothek/digitalisierung-zeitschriften/ ANAIS DO V CONGRESSO BRASILEIRO DE HISTÓRIA DO DIREITO 137 abrangentes a tese de doutorado de Jefferson de Almeida Pinto, defendida em 2011 na Universidade Federal Fluminense, que estudou as relações entre a religião e as ideias jurídicas nos periódicos mineiros editados entre 1890 e 1955. Na mesma instituição, Henrique César Monteiro Barahona Ramos defendeu em 2009 dissertação sobre um título específico: O direito, publicação iniciada no Rio de Janeiro em 1873. Também merecem menção dois artigos franceses: Un genre à part: les revues juridiques professionelles, de Jean-Paul Barrière, e L’impossible projet d’une revue de la Belle Époque. L’émergence d’un juriste scientifique, de Fatiha Cherfouh Além de todos esses trabalhos que tomaram as revistas jurídicas como objetos centrais, devem ser mencionados os empreendimentos, sobretudo de historiadores de métier, que se utilizam desses impressos como fontes. Isso se observa, por exemplo, no estudo que Joseli Maria Nunes de Mendonça (2007) produziu sobre Evaristo de Moraes, em que são analisados diversos textos publicados por ele em periódicos jurídicos, bem como sua efêmera experiência como editor do Boletim Criminal Brasileiro. Outro uso dos impressos jurídicos pode ser visto investigação sobre a noção de moralidade sexual na primeira metade do século XX empreendida por Sueann Caulfield (2000), que se vale de uma vasta gama de revistas jurídicas. Em Pajens da Casa Imperial, de Eduardo Spiller Pena, encontram-se muitos dos títulos pioneiros de nossa produção jurídica especializada, inclusive a inaugural Gazeta dos Tribunais. Mencionemos, finalmente, a breve discussão que Ana Luiza Martins faz a respeito de títulos como a Revista da Faculdade de Direito de São Paulo e São Paulo Judiciário no capítulo “O saber científico e as revistas institucionais” de seu Revistas em Revista (2008, pp. 324-339). Como se pode ver, as possibilidades de estudos são múltiplas e diversas. Afirmamos com relativa segurança que, ainda que já se tenham passado quase três décadas desde o inaugural colóquio convocado por Grossi, as revistas jurídicas estão, felizmente, longe de seus últimos suspiros historiográficos. Uma reflexão teórica consistente, levando a um efetivo diálogo com o instigante domínio da história dos livros, da leitura e das edições – o que aqui não fizemos mais que esboçar – poderá trazer grandes contribuições a essa historiografia. É muito provável que, entre composições tipográficas e corpos editoriais, escondam-se segredos que os textos, teimosamente, insistem em guardar. Ao historiador do direito, incumbe a nem sempre fácil, mas muitas vezes gratificante tarefa de decifrá-los. Referências ALTAMIRANO, Carlos. Introducción general. In: ALTAMIRANO, Carlos (org.). Historia de los intelectuales em América Latina: La ciudad letrada, de la conquista al modernismo. Buenos Aires: Katz Editores, 2008. pp. 9-27. AMEDICK, Sigrid; FRITZ, Monika. Legal journals of the nineteenth century. Disponível em: <http://www.rg.mpg.de/en/bibliothek/digitalisierung-zeitschriften/>. Acesso em 30 de outubro de 2011. Annaes da Biblioteca Nacional do Rio de Janeiro. v. IX, 1881-1882. ANZOÁTEGUI, Víctor Tau. Palabras introductorias. In : ANZOÁTEGUI, Víctor Tau (org.). La revista juridical en la cultura contemporanea. Buenos Aires: Ediciones Ciudad Argentina, 1997. pp. 15-19. ANZOÁTEGUI, Víctor Tau. Presentacion. In : ANZOÁTEGUI, Víctor Tau (org.). La revista juridical en la cultura contemporanea. Buenos Aires: Ediciones Ciudad Argentina, 1997. pp. 7-9. 138 AS REVISTAS JURÍDICAS COMO OBJETOS E COMO FONTES DA HISTÓRIA DO DIREITO: ALGUMAS CONSIDERAÇÕES TEÓRICO-METODOLÓGICAS ARNAUD, André-Jean (org.). La culture des revues juridiques françaises. Milão : Giuffrè, 1988. BARRIÈRE, Jean-Paul. Un genre à part: les revues juridiques professionelles. In: PLUETDESPATIN, Jacqueline; LEYMARIE, Michel; MOLLIER, Jean-Yves (dir.). La Belle Époque des Revues – 1880-1914. Paris: Éditions de l'IMEC, 2002. pp. 269-283. BELO, André. História & Livro e Leitura. Belo Horizonte: Autêntica, 2002. CAULFIELD, Sueann. Em defesa da honra: moralidade, modernidade e nação no Rio de Janeiro (1918-1940). Campinas: Editora da Unicamp, 2000. CERTEAU, Michel de. L'invention du quotidien. 1. Arts de faire. Paris: Gallimard, 1990. CHARLE, Christophe. Les intellectuels en Europe au XIXe siècle. Essai d'histoire comparée. 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Grupo de Trabalho: Filosofia da História do Direito ANAIS DO V CONGRESSO BRASILEIRO DE HISTÓRIA DO DIREITO 141 SISTEMA INQUISITORIAL E A INFLUÊNCIA NA FORMAÇÃO DA CRIMINOLOGIA INQUISITORIAL SYSTEM AND THE INFLUENCE IN THE FORMATION OF CRIMINOLOGY Fernanda Martins* Resumo: O presente trabalho pretende traçar um perpasso histórico sobre a construção do Sistema Inquisitorial como uma forma processual, cuja influência alcançou a América e a produção intelectual brasileira, através da inserção da criminologia positivista. Visa também demonstrar como a política excludente e preconceituosa do processualismo inquisitorial na sua formação medieval determinou para o desenvolvimento da atualmente conhecida Criminologia Lombrosiana. É válido, ainda, determinar que o presente artigo aborda a postura do juiz inquisidor como uma marco teórico para a construção da figura dos magistrados atuais. * Pós-graduanda em Ciências Penais – Universidade Anhanguera – LFG. Graduada em História pela Universidade Federal de Santa Catarina e em Direito pela Universidade do Vale do Itajaí. Atualmente exerce a profissão de advogada criminalista. E-mail: [email protected] 142 SISTEMA INQUISITORIAL E A INFLUÊNCIA NA FORMAÇÃO DA CRIMINOLOGIA Introdução O presente artigo propõe identificar a expressão “juiz inquisidor” a partir da sua construção histórica, abordando uma construção conceitual pautada, sobretudo, na História do Direito, a qual identificará sobre o que se tratava o processo inquisitorial no contexto da sua existência, ou seja, no período medieval. Após uma conceitualização abrangente no tocante ao sistema inquisitorial como forma processual, identificaremos a inserção no Brasil desse método de desenvolver o processo, a partir das visitações da Inquisição às colônias portuguesas, trabalhando, ainda, com os porquês de terem sido necessárias tais intervenções católicas no Brasil. Será também demonstrado o surgimento da criminologia como resposta a essa forma processual, já que os primeiros estudos criminológicos focavam na segregação e na identificação do outro como meio de constituir uma razão ao problema da criminalidade. Finalizaremos o presente estudo com a explanação sobre a função do juiz inquisidor e sobre os atos por este praticados como inerentes a essa titulação. O Processo Penal e o Direito Penal, na forma que se conhece atualmente, são resultados de um processo histórico, cuja influência é proveniente de diversos movimentos jurídicos ocorridos ao longo dos séculos na parte Ocidental do mundo. Entre eles, podemos citar a Retórica grega, o Direito germânico regido pelo jogo de prova, o Inquérito grego, a renovação do Inquérito medieval e a Reforma Iluminista de se pensar o Direito e o desenvolvimento do sistema liberal jurídico (FOUCAULT, 2003, p. 53 a 78). Abordaremos aqui o Inquérito medieval como fonte de análise para se entender o Sistema Inquisitorial1, o qual começa a se consagrar a partir da Alta Idade Média, e cuja formação provém de um movimento modificador dos costumes, de consciência e do processo judiciário em si durante o medievo, como também será objeto de análise o processo histórico que permeou a construção desse sistema. 1 A formação do Sistema Inquisitorial como formação de sistema processual Foucault identifica que “guerra, litígio judiciário e circulação de bens fazem parte ao longo da Idade Média, de um grande processo único e flutuante” (FOUCAULT, 2003, p. 64), o que se compreende no sentido que durante esse período começam a se formar poderes constituídos que passam a ser agregados nos mesmos indivíduos. Trata-se de mudança significativa, pois se falava da Baixa Idade Média como uma sociedade que até então possuía diversos polos de poder dispersos, o que caracterizava o momento chamado de Feudalismo (FOUCAULT, 2003, p. 65). Para que a constituição dessa nova perspectiva de poder se acumulasse definitivamente nas mãos de uns poucos, o processo judiciário foi determinante. É evidenciado por Foucault que: 1 O Sistema Inquisitorial era uma vertente processual que tinha como finalidade a solução de conflitos. Essa forma de solução abrangia desde as questões que se referiam desde os campos procedimentais da área administrativa, civil e penal. Seu surgimento se deu originariamente no continente Europeu. Todavia, sua atuação seguiu o movimento das monarquias que se constituíam e dos impérios e futuras colônias que iriam se formar. O Sistema Inquisitorial teve como base uma formação jurídica conectada ao clero e à nobreza, modificando-se, entretanto, ao longo do tempo para um sistema propriamente processualista, cuja vigência ocorreu até pouco tempo atrás. ANAIS DO V CONGRESSO BRASILEIRO DE HISTÓRIA DO DIREITO 143 a acumulação da riqueza e do poder das armas e a constituição do poder judiciário nas mãos de alguns é um mesmo processo que vigorou na Alta Idade Media e alcançou seu amadurecimento no momento da formação da primeira grande monarquia medieval, no meio ou final do século XII. (FOUCAULT, 2003, p. 65) E é diante desse momento que se desenvolve uma justiça completamente distinta da até então evidenciada durante o período feudal e das épocas antecedentes. A autora Samyra Haydée Naspolini, ao traçar historicamente o surgimento e o desenvolvimento do Sistema Inquisitorial, identifica que durante a Baixa Idade Média o poder clerical vigia sobre toda a sociedade ocidental e que o poder da nobreza estava diretamente vinculado com a aceitação do clero sobre a figura dos “novos” reis, podendo o poder clerical consagrar ou excomungar um nobre, como desejasse.(NASPOLINI, 2003, p. 241) O início da Inquisição se deu na Baixa Idade Média e o foco desse procedimento estava voltado para o combate das heresias, ou seja, das práticas que contestavam os dogmas católicos (NASPOLINI, 2003, p. 41). Para que se concluísse se havia sido ou não praticadas condutas hereges, deveria ocorrer um processo, no qual a peça-chave era o Inquérito. O Inquérito teve seu processo de “recriação” a partir do século XII, quando em momentos de conflitos “os representantes do soberano tinham de solucionar um problema de direito, de poder, ou uma questão de impostos, de costumes, de foro ou de propriedade” (FOUCAULT, 2003, p. 68) e buscavam em “algo perfeitamente ritualizado e regular”, o que era chamado de “inquisitio, o Inquérito” (FOUCAULT, 2003, p. 68). O Inquérito veio com a proposta de ser um método jurídico para a obtenção da verdade, o qual foi classificado como um processo de dupla origem, uma com uma base na forma administrativa e outra na forma religiosa. A forma administrativa consistia num questionamento aos “notáveis”, pessoas de conhecimento notório e de reputação ilibada, sobre os fatos controversos, cujo objetivo era sempre a obtenção da “verdade real”. Tal forma de inquérito estava ligada ao surgimento do Estado e ao exercício do poder em si. No entanto, a outra forma, a eclesiástica, consistia num inquérito vinculado aos dogmas clericais, e nesse método buscava-se também a dita “verdade real”, todavia, o foco era a ocorrência de crimes religiosos e/ou heresias. (FOUCAULT, 2003, p. 69 a 71) O Inquérito é, por Aury Lopes Junior, no tocante a sua forma religiosa, dividido em duas fases, na qual “a primeira fase (geral) estava destinada à comprovação da autoria e da materialidade, e tinha um caráter de investigação preliminar e preparatória com relação à segunda (especial), que se ocupava do processamento (condenação e castigo).” (LOPES Jr., 2006, p. 168) As novas regras e novos personagens dessa “nova justiça” que vem a se formar no período medieval são indicados por Foucault (2003, p. 65 a 67) como os seguintes: 1. Uma justiça que não é mais contestação entre indivíduos e a livre aceitação por esses indivíduos de um certo número de regras de liquidação, mas que, ao contrário, vai-se impor, do alto, aos indivíduos, aos oponentes, aos partidos. [...] Os indivíduos então não terão mais o direito de resolver, regular ou irregularmente, seu litígios; deverão submeter-se a um poder exterior a eles que se impõe como poder judiciário e poder político.2 2. Aparece um personagem totalmente novo sem precedentes no Direito Romano: o procurador. Esse curioso personagem, que aparece na Europa por volta do século XII, vai se apresentar como o representante do soberano, do rei ou do senhor. Havendo crime, delito ou contestação entre dois indivíduos, ele se apresentar com 2 Grifos da autora. 144 SISTEMA INQUISITORIAL E A INFLUÊNCIA NA FORMAÇÃO DA CRIMINOLOGIA representante de um poder lesado pelo único fato de ter havido um delito ou um crime. [...] O soberano, o poder político vêm, desta forma, dublar e, pouco a pouco, substituir a vítima. Esse fenômeno, absolutamente novo, vai permitir ao poder político apossar-se dos procedimentos judiciários. O procurador, portanto, se apresenta como representante do soberano lesado pelo dano. 3. Uma noção absolutamente nova aparece: a infração. [...] A partir do momento em que o soberano ou seu representante, o procurador, dizem “Também fui lesado pelo dano”, isto significa que o dano não é somente uma ofensa de um indivíduo ao outro, mas também uma ofensa de um indivíduo ao Estado; [...]. A infração não é um dano cometido por um indivíduo contra o outro; é uma ofensa ou lesão de um indivíduo à ordem, ao Estado, à lei, à sociedade, à soberania, ao soberano. 4. Há ainda uma última descoberta, uma última invenção tão diabólica quanto a do procurador e da infração: o Estado ou melhor, o soberano (já que não se pode falar de Estado nesta época) é não somente a parte lesada mas a que exige reparação. [...] Vai-se exigir do culpado não só a reparação do dano feito a um outro indivíduo, mas também a reparação da ofensa que cometeu contra o soberano, o Estado, a lei. Esses novos mecanismos vão se tornar determinantes para a compreensão dos princípios que regerão o Sistema Inquisitorial e que determinarão o fortalecimento e a manutenção do poder nas mãos do clero e da nobreza, ao longo do medievo. Salo de Carvalho atribui o surgimento do Sistema Inquisitorial na forma medieval e a sua afirmação como sistema válido e vigente nesse período como resultado também da necessidade de “ampliação da malha repressiva” (CARVALHO). Com base em Levack, o referido autor determina como processo histórico significante para a consolidação deste sistema a “redescoberta” do Direito Romano, sobretudo com a revitalização do “Corpus Iuris Civilis” no século XII pela Universidade de Bolonha e a posterior inserção das glosas, o clero instiga a formalização e a mudança nos procedimentos – “a Igreja se aproveita do texto do corpus iuris civilis para escorar sua própria organização e desenvolver mecanicamente sua teocracia radical”. (CARVALHO, 2008, p. 58) Tal processo garantiu certas vantagens, no que entende o autor, dentre as quais se destacam: (a) o caráter público das denúncias, não mais restritas à vítima ou aos seus familiares, aliada (b) ao sigilo da identidade do delator; (c) a inexistência de separação entre as figuras de acusador e julgador, sendo lícito a este realizar a imputação, produzir a prova e julgar o acusado; (d) o sistema tarifado de provas e sua graduação na escala da culpabilidade, recebendo a confissão o máximo valor (regina probatio), e (e) a autorização irrestrita da tortura como mecanismo idôneo para obtenção de confissões. (CARVALHO, 2008, p. 58) É diante dessas vantagens que se começa a compreender o porquê da consolidação de tal estrutura, e é também com base nas mesmas que se desenvolve o Sistema Processual Inquisitorial mais conhecido a partir da modernidade. Aury Lopes Jr., ao identificar a institucionalização do Processo Inquisitorial como forma processual vigente, determina que tal consolidação é proveniente de um processo de substituição dos defeitos da inatividade das partes, levando à conclusão de que a persecução criminal não poderia ser deixada nas mãos dos particulares, pois isso comprometia seriamente a eficácia do combate à delinqüência. Era uma função que deveria assumir o Estado e que deveria ser exercida conforme os limites da legalidade. (LOPES Jr., 2006, p. 166 a 167) O Sistema Inquisitorial surgiu, a partir da compreensão de Coutinho, como “uma resposta defensiva contra o desenvolvimento daquilo que convencionou se chamar de ‘doutrinas heréticas’.Trata-se, sem dúvida, do maior engenho jurídico que o mundo conheceu; ANAIS DO V CONGRESSO BRASILEIRO DE HISTÓRIA DO DIREITO 145 e conhece”(COUTINHO, 2001, p. 18). Para o autor, tal sistema permaneceu vigente durante tanto tempo, e ainda vige, às vezes veladamente e outras vezes nem tanto, porque a Inquisição “veio com a finalidade específica e, porque serve – e continuará servindo, se não acordarmos – mantém-se hígido.” (COUTINHO, 2001, p. 19) O Sistema Inquisitorial era, e pode-se dizer que ainda é, instituído através de uma “máquina repressiva” (CARVALHO, 2008, p. 60), caracterizado pela “exclusão do contraditório, pela ausência de ampla defesa e pela inversão da presunção de inocência” (CARVALHO, 2008, p. 61). O processo inquisitorial ou causa, como é chamada por Eymerico3, poderia começar de três modos: “por acusação, por delação e por pesquisa” (EYMERICO, 2001, p. 16). O método da acusação se dava quando alguém do povo acusava o réu, sendo que nesta forma de causa deveria o delator provar o que afirmava sobre o acusado, e ele mesmo deveria ser o responsável pela persecução penal. Ou seja, o acusador enfrentaria o acusado pessoalmente e caso não se provasse os fatos incursos ao réu, aquele quem acusara sofreria sanções severas (EYMERICO, 2001, p. 16). Já no que se aborda à delação, o delator deveria contar ao juízo competente o motivo da acusação, mas não seria ele quem deveria provar tais alegações, e jamais seria confrontado com o acusado, devendo o acusador de oficio ser responsável pelo trâmite processual (EYMERICO, 2001, p. 17). Destarte, a terceira forma tratava-se da pesquisa, cuja utilização ocorria quando não havia nem delator, nem acusador. A pesquisa poderia ocorrer de duas maneiras: uma geral, que é uma pesquisa de hereges que, de quando em quando, mandam fazer os inquisidores em um bispado ou em uma província. [...] A outra espécie de pesquisa se faz quando por voz pública chega aos ouvidos dos inquisidores que fulano ou sicrano disse ou fez alguma coisa contra fé, o que faz com que o inquisidor cite testemunhas e lhes tome declarações acerca da má fama do acusado. (EYMERICO, 2001, p. 17 a 18) Ambas as formas de pesquisa possibilitavam o início do processo de ofício pelo inquisidor. Como base fundamental dessa “forma processual”, observamos a “gestão da prova” (COUTINHO, 2001, p. 24) e a figura do juiz como acusador e julgador, objetos que serão a frente tratados mais afundo quando for abordada a figura do juiz inquisidor. Todavia, no que trata desta perspectiva, vale ressaltar que a gestão probatória trazia valorações para as provas evidenciadas ao longo do “processo” e que o dinamismo processual ocorria sempre em virtude da busca da verdade. As provas eram divididas entre “diretas, indiretas, manifestas, imperfeitas, provas plenas, indícios próximos e indícios longínquos” (NASPOLINI, 2003, p. 248). Para Samyra Haydêe Naspolini (2003, p. 249), as “provas plenas poderiam acarretar qualquer condenação; as semiplenas, ensejar suplícios, mas nunca a pena capital; e os indícios bastavam para declarar um suspeito e iniciar as investigações”. A combinação dessas formas probatórias criava o que a autora chama de “aritmética penal”, devendo, entretanto, ao longo do processo, sempre se buscar a confissão, já que esta era a única maneira de “provar” efetivamente que o indivíduo cometera crimes de heresias que não deixavam vestígios. 3 “Nicolau Eymerico foi um teólogo católico romano e Inquisidor Geral da Inquisição da Coroa de Aragon, no final da metade do século XIV. Ele é mundialmente conhecido pela autoria da obra Manual da Inquisição, haja vista a sua repercussão e notoriedade quanto aos procedimentos inquisitoriais”. Disponível em: <http://en.wikipedia.org/wiki/Nicholas_Eymerich>. Acesso em 11 set. 2010. 146 SISTEMA INQUISITORIAL E A INFLUÊNCIA NA FORMAÇÃO DA CRIMINOLOGIA Para Alexandre Morais da Rosa (2006, p. 135), entre as características do Sistema Inquisitorial se encontram a tarifação das provas e a acusação de ofício, como exposto, porém adicionam-se outros pontos fundantes desse sistema, tais como a presença de um único julgador, o poder de julgar, acusar e direcionar a ordem do processo nas mãos do magistrado e a realização de um processo escrito e secreto. A perspectiva de Salo de Carvalho sobre as características de tal sistema permeia a mesma abordagem de Alexandre Morais da Rosa, já que aquele expõe que se destacam no método inquisitorial: (a) o caráter universal das denúncias, ou seja, não mais restritas à vítima ou aos seus familiares e interessados; (b) o sigilo da identidade do delator (noticiante); (c) a inexistência de separação entre as figuras de acusador e julgador, sendo lícito ao magistrado realizar a imputação, produzir a prova e decidir o caso; (d) o sistema tarifado de provas, com a conseqüente graduação da culpabilidade, na qual a confissão recebe valor supremo (regina probatio); e (e) a autorização irrestrita para o uso da tortura como mecanismo idôneo de obtenção da verdade. (CARVALHO, 2008, p. 59) A incessante meta de alcançar a verdade na estrutura inquisitorial admitiu as maiores barbáries “processuais” conhecidas ao longo dos tempos. Ao valorar a confissão como a rainha das provas se permitiu que em sua busca ocorresse a tortura como método lícito e científico de extração desta. Aury Lopes Jr. também entende que essa busca pela verdade é o que determinou a crueldade do sistema, quando diz: a lógica inquisitorial está centrada na verdade absoluta e, nessa estrutura, a heresia é o maior perigo, pois atacava o maior núcleo fundante do sistema. Fora dele não havia salvação. Isso autoriza o “combate a qualquer custo” da heresia e do herege, legitimando até a mesmo a tortura e a crueldade nela empregada. (LOPES Jr., 2006, 169) As regras para a utilização do “tormento”, como também é chamada a tortura, estão tratadas no Manual dos inquisidores. É evidenciado que para a aplicação do tormento, o réu reputado como herege deveria ter cometido “um testemunho de vista, um mau comportamento em matéria de fé, um indício veemente, uma só não basta, duas são necessárias e bastantes para dar tormento” (EYMERICO, 2001, p. 46). Identifica-se também a possibilidade do uso da tortura quando: após ter sido apurado, sem frutos, todos os demais meios para se averiguar a verdade, porque, muitas vezes, basta para fazer com que confesse o réu apenas os bons modo, a manhã, suas próprias reflexões, as exortações de sujeito bem intencionados e o desconforto do cárcere.(EYMERICO, 2001, p. 47). É fato tão notório que a confissão tinha um poder predominante sobre os outros métodos probatórios que Eymerico (2001, p. 39), no Manual dos Inquisidores, identifica que “quando confessa um acusado o seu delito pelo qual foi preso pela inquisição, é diligência inútil outorga-lhe defesa, sem que obste que nos demais tribunais não seja bastante a confissão do réu, quando não há corpo delito formal”. No tocante ao crime religioso, é explanado também que “em se tratando de heresia, a confissão do réu basta por si só para condená-lo, porque como a heresia é um delito da alma, muitas vezes não pode haver dela outra prova que não a confissão do acusado” (EYMERICO, 2001, p. 39). Destarte, percebemos que a tortura era utilizada como mecanismo para “arrancar” a verdade na forma em que se desejava. A utilização de tal “instrumento” traduz uma ANAIS DO V CONGRESSO BRASILEIRO DE HISTÓRIA DO DIREITO 147 perspectiva própria do Sistema Inquisitorial, sendo essa a percepção de que o poder determinava não somente a verdade, mas também como obtê-la, identificando-se aí o exercício do poder, na compreensão pura do que ele significa. 2 O Sistema Inquisitorial no Brasil O Sistema Inquisitorial foi um processo de mudança de mentalidade e construção dogmática basicamente originado na Europa, contudo, trata-se de um processo exclusivamente Ocidental. Esse sistema foi estabelecido de forma mais fortificada e duradoura na Espanha e em Portugal e teve a sua consolidação como um sistema processual em meio a uma estrutura jurídica e de uma finalidade penal. A estrutura referida acima se tratava da organização do Tribunal do Santo Ofício da Inquisição, posteriormente reconhecido apenas como Inquisição, e a finalidade do mesmo tratava do fim punitivo desse sistema representado pela aplicação de uma pena ao condenado. O processo histórico pelo qual passou Portugal está vinculado ao fortalecimento da nobreza e da vinculação desta com o clero. A Expansão Marítima, a colonização e exploração do continente americano, a exploração do continente africano e as demais repercussões históricas da modernidade trazem consigo o movimento jurídico e religioso da Inquisição. O Brasil teve como vertente primária, aos olhos de Portugal, a perspectiva exclusiva de Colônia de Exploração. A partir de tal consciência, era de suma importância para os Estados colonizadores que se extraíssem todas as matérias primas e fontes de riqueza que fosse possível da localidade, de forma que não houvesse qualquer preocupação mais precisa com aqueles que faziam tal extração. Porém, as descobertas provenientes da exploração (e outros diversos acontecimentos históricos) traçaram para o “Brasil” um caminho distinto daquele inicialmente planejado à Colônia. Descobriu-se nas terras americanas a solução para alguns problemas sociais dos povos europeus, e foi nela, principalmente, que Portugal encontrou a possibilidade de enriquecer. Ao focar nessa visão, a Metrópole observou que para o funcionamento da Colônia seria necessário estabelecer hierarquias, e para que se consolidasse o poder e o domínio territorial seria necessário colonizá-la. Assim, a colonização requereu da Metrópole um cuidado com a população que se encontrava na Colônia e o devido controle desta. O exercício de poder vem, então, mediante as primeiras manifestações da presença da Inquisição no Novo Mundo: as visitações. A estrutura do Sistema Inquisitorial era formada pela existência de alguns tribunais fisicamente instituídos em “Lisboa, Coimbra, Évora, Lamego, Tomar e Porto” (CIDADE, 2001, p. 22), todos devidamente estabelecidos em Portugal. Outros locais tiveram estruturas inquisitoriais, entretanto, é mais relevante ao objetivo deste trabalho o reconhecimento da Inquisição em Portugal, já que foi ela a responsável pela implementação dessa forma processual no Brasil (CIDADE, 2001, p. 22). As visitações foram o resultado de um processo de “sedentarização” da justiça tanto no âmbito do poder clerical quanto do poder monárquico. As visitações religiosas consistiam numa inspeção periódica, que, por determinação do Conselho Geral do Santo Oficio, realizava um delegado seu para inquirir do estado das consciências em relação à pureza da fé e dos costumes. Um patrulha de vigilância. Oferecia misericórdia aos confitentes, e, ao mesmo tempo, sob ameaça, incitava os denunciantes. Um 148 SISTEMA INQUISITORIAL E A INFLUÊNCIA NA FORMAÇÃO DA CRIMINOLOGIA levantamento geral do momento dos espíritos. Uma operação de coleta de material para alimentação da máquina da Justiça do Santo Ofício. (SIQUEIRA, 1978, p. 183) As terras brasílicas não se viram livres das Visitas do Tribunal do Santo Ofício (NOVINSKY). Entendem alguns historiadores que a escolha das localizações pelas quais passariam as visitações se dava de acordo com a importância econômica da região. A motivação real do surgimento das visitações foi proveniente de um movimento de compreensão sobre a realidade das colônias. É percebida por Portugal a necessidade do controle sobre as pessoas e sobre a realidade encontradas em suas terras distantes, e vê-se, dentro da composição do Tribunal do Santo Ofício, que a figura apropriada para tal repressão seria os visitadores. A composição orgânica da Inquisição se dava através de uma organização judiciária, na qual inicialmente era composta pelas figuras dos Inquisidores, dos Notários, do Meirinho, de outros funcionários de uma importância mais técnica como os médicos e ainda os guardas e porteiros para garantir a segurança e também os Visitadores das Naus. (CIDADE, 2001, p. 22). A figura dos Visitadores das Naus surge devido ao desenvolvimento do comércio e da navegação. Em virtude desses fatores, multiplicavam-se os contatos com outros povos e a criação dessa função deve-se à consciência de perigo que o contato com os estrangeiros representava em relação à integridade da fé católica (CIDADE, 2001, p. 25). Era ele um antecessor da figura do Visitador das Colônias. O Visitador de Naus era o responsável pela investigação de uma navegação quando esta, ao voltar dos mares, aportava nas cidades portuguesas, sendo necessário para o Tribunal do Santo Ofício que se averiguasse a origem e as intenções daquelas novas pessoas que chegavam às terras de Portugal. O desenvolvimento das navegações e do processo migratório e colonizador nas terras americanas criaram, assim, a necessidade de verificação também sobre as intenções e sobre a origem daqueles que fossem habitar as novas terras portuguesas. Assemelhando-se em função e finalidade, foram criados os Visitadores das Colônias, os quais eram responsáveis pela averiguação do “caráter e da conduta” daqueles que lá se instalassem. As visitações ocorreram como um reflexo do desenvolvimento de Portugal e de suas conquistas. Assim, no que se refere à localização dessas visitações, percebemos esse mesmo reflexo, já que a razão da escolha dos locais onde estas iriam ocorrer também derivava do desenvolvimento da região em importância econômica e política perante a Metrópole. Oliveira, baseando-se na autora Anita Novinsky, entende que: o envio da visitação está ligado à vigilância das terras mais prósperas da colônia – sobretudo as capitanias da Bahia e Pernambuco – bem como a manutenção da ordem e da fé católicas, ou seja,para Novinsky a instalação das visitas do Santo ofício ao Brasil estão intimamente ligadas a uma real necessidade de uma vigilância ativa sobre as áreas de maior prosperidade colonial, onde se encontrava uma grande parcela dos cristãos novos saídos do reino.(OLIVEIRA, p. 1) Todavia, há autores que entendem que as localizações não estão relacionadas diretamente com o desenvolvimento econômico, mas com o crescimento populacional e a necessidade de se cristianizar tais indivíduos (OLIVEIRA, p. 2), pois o objetivo maior das visitações era de encontrar cristãos-novos e integrar o Brasil ao mundo cristão. (OLIVEIRA, p. 2) ANAIS DO V CONGRESSO BRASILEIRO DE HISTÓRIA DO DIREITO 149 As primeiras visitações ocorreram inicialmente em Pernambuco e na Bahia entre os anos de 1591 e 1595. O objetivo principal dos visitadores em terras brasílicas era o de encontrar principalmente práticas judias provenientes dos cristãos-novos. Os cristãos-novos eram um grupo de judeus que foram compulsoriamente convertidos em novos cristãos em consequência do decreto real em 1496-7 e que viveriam, a partir de 1536, constantemente ameaçados de prisão e confisco pelo Tribunal do Santo Oficio da Inquisição, cujo mote principal era a punição dos cristãos-novos “judaizantes”, ou seja, que continuavam a praticar ocultamente o judaísmo. (VIEIRA, 2006) Os cristãos-novos estiveram muito presentes nas colônias portuguesas, principalmente nas encontradas no continente americano, pois ao fugirem da Inquisição fortemente estabelecida no Velho Mundo, encontraram nas terras ultramar a possibilidade de praticarem ocultamente as suas filosofias religiosas e de buscarem uma ascensão econômica através do domínio de terras. (VIEIRA, 2006) Outra finalidade evidente da vinda das visitações, além do combate das práticas de heresias, foi a de extinguir os crimes contra a moral. Os focos de pesquisa do Santo Ofício, no tocante às práticas imorais, foram sobre os atos homossexuais e sodomíticos. Destarte, sobre as condutas homossexuais entendia-se que: estes tipos de práticas seriam recorrentes entre as sociedades indígenas; tanto de homens, em que alguns efeminados viviam entre as mulheres, como de índias que viviam entre os homens, casavam e guerreavam, fazendo questão de serem tomadas por machos. O primeiro caso a ser registrado pela Inquisição aqui no Brasil foi o do negro Francisco denunciado em 1591, na Bahia. Praticante do “pecado nefando” foi denunciado por se recusar a vestir roupas de homem. Na própria Península Ibérica este tipo de delito seria comum entre os membros da Igreja, chegando a ser conhecido como o “vício dos clérigos” (OLIVEIRA, p. 4) A segunda visitação ao Nordeste brasileiro ocorreu em 1618, na qual visitadores do Santo Ofício percorreram novamente as mesmas regiões buscando os mesmos delitos e as mesmas práticas hereges. Ocorreram também visitações em 1627 no Nordeste, 1606 e 1627 no Sul e em 1763 no Pará. Numa perspectiva geral podemos entender que as Visitações do Santo Ofício vieram com o propósito de controle, conforme entende Oliveira, que percebe que: a visita do Santo Oficio é a tentativa de controle da ordem e vigilância acerca dos “desvios” da fé católica, em um novo lugar e em uma nova realidade seria nada mais natural o surgimento de outros tipos de “desvios”, de práticas ditas “erradas”, de sincretismos e de adaptações de elementos da fé oficial às realidades peculiares existentes na colônia. Vemos nas Santidades a mistura da hierarquia católica a elementos da religiosidade Tupinambá, percebemos também nos casos de práticas criptojudaicas a tentativa de conservação e manutenção da religiosidade outrora praticada por antepassados. A lógica Inquisitorial consistia em seguir valores e atitudes ditas corretas, desvalorizando o diferente, geralmente visto como errado e desviante. Nos caminhos trilhados pela Inquisição em terras basílicas, é vista uma realidade nova e multifacetada, através de um centro de significado, caracterizado na figura da fé oficial, percebemos o controle das práticas dos colonos através da intolerância da fé, misturada com a fé da intolerância. (OLIVEIRA, p. 4 a 5) Assim, a partir da premissa da Inquisição, no Brasil e no mundo, e de identificação da normalidade, vê-se uma construção do outro como punível. A exclusão e a determinação de certas práticas e condutas como aceitáveis à sociedade passa a ser vista como situações formadoras do conceito de Criminologia, a qual vai coexistir ao longo da história brasileira com o conceito de Sistema Penal, mais propriamente aqui identificado pelo Inquisitorial. 150 SISTEMA INQUISITORIAL E A INFLUÊNCIA NA FORMAÇÃO DA CRIMINOLOGIA A busca incessante pela condenação do diferente numa sociedade tão mestiça como a que existia nos anos da modernidade no Novo Mundo caracteriza a relação de segregação que vai resultar dessa mentalidade construída sob a influência da vigilância da Inquisição. 3 A Criminologia e o Sistema Inquisitorial Aparentemente pode ser difícil identificar a relação que há entre o Sistema Inquisitorial e o estudo da Criminologia. Ao nos depararmos, contudo, com a relação de indivíduos e acusados no processo penal, começamos a traçar uma conexão entre o estudo do crime e as relações de poder que determinam quem é o criminoso. Faz-se presente uma relação que permeia os dois conceitos, o objetivo existente nos dois momentos: ambos possuem um objetivo segregador. Khaled Jr. discorre sobre esse objetivo expondo que: apesar da diferença aparente de foco, um objetivo comum aproxima os dois saberes: a tentativa deliberada de erradicar a diferença e anular o outro. A pretensão de homogeneização do corpo social efetivamente permite a percepção de continuidade entre uma prática dogmático-religiosa e a constituição de um campo de saber científico. De fato, a própria elaboração de uma Criminologia oitocentista que tinha – por excelência – o homem como objeto, se vale dos pressupostos inquisitórios em alguma medida, ainda que de forma velada. O que muda, essencialmente, é o padrão desejável de indivíduo e o que é considerado uma ameaça para a funcionalidade do sistema e da estrutura de poder dominante. (KHALED Jr.) A Inquisição focava sua atenção nos hereges e, como observado acima, a Igreja, como órgão regulador da Santa Inquisição, segregava aqueles que pensavam ou criam de forma diferente daquela que era imposta por ela. Verificamos, então, a partir do conceito de herege o surgimento da identificação do outro como “anormal”, como perigoso, como aquele que é diferente do desejado, traços que serão determinantes para o conceito contemporâneo de criminoso. Como expõe Foucault (2003, p. 85): Toda a penalidade do século XIX passa a ser um controle, não tanto sobre se o que fizeram os indivíduos está em conformidade ou não com a lei, mas ao nível do que podem fazer, do que são capazes de fazer, do que estão sujeitos a fazer, do que estão na iminência de fazer. Assim, a grande noção da criminologia e da penalidade em fins do século XIX foi a escandalosa noção, em termos de teoria penal, de periculosidade. A noção de periculosidade significa que o indivíduo deve ser considerado pela sociedade ao nível de seus atos; não ao nível das infrações efetivas a uma lei efetiva, mas das virtualidades de comportamentos que elas representam. A partir do conceito de Criminologia explorado por Foucault sobre a construção do sujeito criminoso e sua periculosidade, podemos abordar, sem o receio de cometer anacronismo, que a figura do sujeito “perigoso” está presente na construção do conceito de ”herege”, palavra importantíssima dentro do Sistema Inquisitorial. Salo de Carvalho, ao trabalhar com as perspectivas de criminologia diante da Inquisição, aborda que o livro Malleus maleficarum (Martelo das feiticeiras) iniciou a formação do conceito de Criminologia. O autor evidencia que Heinrich Kramer e James Sprenger, escritores do livro citado, constroem ao longo do texto uma nova percepção, a qual aborda o crime através do criminoso ao identificar certos indivíduos como propensos a prática de delitos. Explana Salo de Carvalho (2008, p. 64): no âmbito criminológico, estabelece (a Inquisição) discurso etiológico plurifatorial baseado na potencialização da gravidade do delito, na inferioridade do homo criminalis (dos homens infames, dos degenerados sexualmente e das mulheres) e na ANAIS DO V CONGRESSO BRASILEIRO DE HISTÓRIA DO DIREITO 151 predestinação ao crime. Em relação ao discurso penal, submete-o de forma extremada aos modelos de autor – inaugurando a lógica do direito penal da periculosidade -, estabelecendo amplo conjunto de signos que permitem identificar o crime no criminoso. No contexto contemporâneo da criminologia percebemos estudiosos que visam identificar no movimento social exatamente a relação entre o crime e o criminoso, observando mais especificamente a periculosidade do mesmo. Como resposta a esse movimento conhecido como criminologia, vemos acadêmicos de diversas áreas, como antropólogos, médicos e juristas que formularam no fim do século XIX uma tese de dosimetria da pena, na qual a pena a ser estipulada ao criminoso deveria ser medida proporcionalmente com a sua “temibilidade” (DARMON, 1991, p. 143), termo esse definido por Darmon (1991, p. 143) como “a quantidade de mal que podemos temer da parte do criminoso em razão da sua pervesidade”. A Criminologia Clássica, trabalhada principalmente por Beccaria ao longo do século XVIII, rompeu com as tradições medievais. Essa nova perspectiva do crime abordava uma proposta que desassociava a pena dos castigos corpóreos e analisava o crime sob a ótica do livre arbítrio, no qual o homem tinha condições e discernimento necessários para decidir sobre a prática do delito. Era também característica dessa escola criminológica ter como foco de estudo a pena em si e as suas consequências sociais.(BECCARIA, 1996) Contudo, a partir do século XIX, houve uma modificação nas reflexões sobre o fato ilícito, tornando o centro das atenções novamente o criminoso e não mais a punibilidade até então presente na Escola Clássica. Com a abordagem do criminoso e dos conceitos que permeavam suas condutas, percebeu-se um retorno às formas inquisitoriais de se identificar o delinquente. Essa proposta criada no século XIX de periculosidade e de análise do infrator é proveniente principalmente de Cesare Lombroso4, considerado precursor da Criminologia positivista e ditador de personalidades essencialmente “normais” e “morais”. O citado autor fundou uma nova perspectiva para a criminalidade, afastando o crime da lente objetiva e colocando sob esta o criminoso, os quais eram interpretados sobre três fatores “phisicos, anthropologicos e sociais” (SCHWARCZ, 2005, p. 166), os quais distinguiam o sujeito normal do anormal. Para esta interpretação: O tipo físico do criminoso era tão previsível que seria possível delimitá-lo de forma objetiva. Lombroso, por exemplo, criou uma minuciosa tabela, subdividida em: “elementos anathomicos” (assimetria cranial e facial, região occipital predominante sobre a frontal, fortes arcadas superciliares e mandíbulas além do prognatismo); “elementos physiologicos” (tato embotado, olfato e paladar obtusos, visão e audição 4 Carlos Martins Júnior apresenta um texto no qual identifica Cesare Lombroso como “Professor catedrático da cadeira de Medicina Legal da Faculdade de Turim, Cesare Lombroso (1836-1906) é considerado o fundador da antropologia criminal italiana. Sua principal obra, O Homem Delinquente, publicada em Milão, em 1876, expõe as concepções sobre o criminoso nato que, segundo ele, estaria predisposto ao crime desde o nascimento em razão de fatores biológicos atávicos, os quais podiam ser identificados em algumas características físicas e psicológicas do indivíduo. Segundo Lombroso, o correspondente feminino do delinquente nato seria a prostituta, figura que recebeu dele um estudo no livro A Mulher Criminosa e a Prostituta, publicado em 1895, considerado o principal trabalho até então escrito sobre a condição da meretriz. LOMBROSO, Cesare – L´ Uomo Delinquente. 2ª edição. Turim : Livraria Boca, 1878. LOMBROSO, Cesare e FERRERO, Guilaume – La Femme Criminelle et la Prostitutée. 2ª edição. Paris: Felix Alcan, 1896.” (MARTINS JÚNIOR, Carlos. Mulheres “honestas” e mulheres “impuras”: uma questão de Direito. Disponível em: <http://www.anpuh.uepg.br/xxiiisimposio/anais/anais.html>. Acesso em 12 fev. 2010.) 152 SISTEMA INQUISITORIAL E A INFLUÊNCIA NA FORMAÇÃO DA CRIMINOLOGIA ora fracas ora fortes, falta de atividade e de inibição); e “elementos sociológicos” (existência de tatuagens pelo corpo) (SCHWARCZ, 2005, p. 166). O crime feminino também foi bastante abordado por Lombroso e Ferrero, e por eles é visto “como uma dupla exceção”, pois a mulher se torna um monstro (VENERA, 2003, p. 57). Nessa perspectiva de dupla exceção, observamos que a transgressão à ordem pela mulher é vista como um crime que “vem duplamente: por estar (a mulher) saindo da ordem e por ser uma mulher saindo da ordem, e por ser um sujeito biologicamente imprevisto para ser criminoso.” (VENERA, 2003, p. 57) Para os autores acima citados, o senso de justiça da mulher também não era confiável, pois Relativamente a nós [homens] a mulher é um ser imoral. Ela está sempre de um e de outro lado da justiça; ela não tem nenhuma inclinação para o equilíbrio dos deveres e dos direitos que fazem a preocupação do homem; sua consciência é antijurídica como seu espírito é antifilosófico. Sua inferioridade moral junta-se a sua inferioridade física e intelectual como conseqüência necessária. (Lombroso apud SOIHET , 1989, p. 112) Mesmo quando os autores abordavam a “normalidade” feminina não se tratava de algo benéfico, mas, sim, como se a mulher, por natureza, fosse diferente pelo simples fato de não ser homem. Lombroso (Lombroso apud SOIHET , 1989, p. 112) assim descrevia: A mulher normal, em resumo, tem muitas características que a aproximam do selvagem e da criança e em conseqüência do criminoso (irascibilidade, vingança, ciúme, vaidade) e outras diametralmente opostas que neutralizam as primeiras, mas que a impedem entretanto de se comparar ao homem no equilíbrio entre direitos e deveres, o egoísmo e o altruísmo que é o termo supremo da evolução moral. Como modelo estrutural para a formação do conceito de condutas normais, se utilizava o termo padronizador “homem médio” (VENERA, 2003, p. 42), sendo que esse homem não cometeria homicídios, não roubaria, não praticaria infrações, pois as práticas que extrapolassem o limite das imposições destinados ao “homem médio”, tratar-se-iam de condutas de “pura infração ou anormalidade” (VENERA, 2003, p. 42). Assim, é a partir desses conceitos formulados por Lombroso que podemos identificar a relação existente entre a Criminologia nos padrões da contemporaneidade, com a perspectiva de crime e criminosos estabelecida pelo Sistema Inquisitorial. No Sistema Inquisitorial, tinha-se como objeto máximo de fragilidade diante da possibilidade de a mulher cometer uma heresia. Esse conceito volta, como demonstrado, predominando no discurso dos juristas criminológicos do século XIX. Destarte, visa-se a percepção em ambos os momentos de uma segregação de certos grupos e certos indivíduos, identificando aí a relação que se tem da criminologia positivista, que até hoje vige veladamente sobre o judiciário quando a relaciona com o Sistema Inquisitorial de análise do processo, o qual também vige sobre o judiciário, entretanto, não tão veladamente assim. 4 O papel do juiz inquisidor Um sujeito muito singular no sistema inquisitorial é o juiz. A sua função como julgador de conflitos identifica uma das características mais próprias desse sistema: a unificação do acusador e do julgador em uma única pessoa. A persecução jurídica vem configurada na pessoa do juiz, assim como a própria resolução do conflito. Tal fato traz, como já foi evidenciado, a razão determinante de ser do Sistema Inquisitorial. Devido a essa junção de funções, é possível observar a inexistência de ANAIS DO V CONGRESSO BRASILEIRO DE HISTÓRIA DO DIREITO 153 garantias protetoras ao acusado, tais como a ampla defesa, o contraditório e a presunção de inocência. Essa aglomeração de funções num único indivíduo foi uma das razões para ocorrência reiterada das torturas e a intensidade das mesmas, haja vista a possibilidade de se buscar a verdade a qualquer custo, não havendo, assim, limites processuais para a obtenção de provas favoráveis à condenação. A partir dessa gestão probatória percebemos o poder real de controle do processo nas mãos no julgador proveniente dessa união que havia na figura do magistrado. Para Jacinto Coutinho, o Sistema Inquisitorial tem como característica principal a gestão das provas. O autor identifica que: a característica fundamental do sistema inquisitório, na verdade, está na gestão da prova, confiada essencialmente ao magistrado que, em geral, no modelo em análise, recolhe-a secretamente, sendo que “a vantagem (aparente) de uma tal estrutura residiria em que o juiz poderia mais fácil e amplamente informar-se sobre a verdade dos factos – de todos os fatos penalmente relevantes, mesmo que não contidos na ‘acusação’ - , dado o seu domínio único e omnipotente do processo em qualquer das suas fases. (COUTINHO , 2001, p. 24) O Manual do inquisidor é um livro escrito por Nicolau Eymerico no século XIV, cuja função era determinar e identificar as práticas da Santa Inquisição com intuito de direcionar os inquisidores ao caminho mais eficiente para “livrar o mundo dos hereges”. É nesse manual identificado qual o papel do juiz na perseguição dos acusados e quais os procedimentos que deveriam ser adotados para que se “conquistasse” o maior número de confissões e, consequentemente, condenações. O juiz, nos termos do livro exposto, deveria, para obter a “verdade real” dos fatos, fazer o papel de interrogador e, através de seis formas distintas, buscar a confissão do réu sem a necessidade dos suplícios (EYMERICO, 2001, p. 36). Essas formas eram identificada por Eymerico como “artes e manhas que usarão os inquisidores para saber a verdade pela boca dos hereges, gratiose, sem usar mão do potro5” (EYMERICO, 2001, p. 36). Entre essas formas, podemos citar o fingimento do inquisidor em se tratar ele mesmo de um herege para obter a confiança do acusado, ou a multiplicidade de interrogatórios e perguntas até levar o réu à exaustão ou ameaçar de mantê-lo preso por tempo indeterminado (EYMERICO, 2001, p. 30 a 38). Fica assim evidenciado que o juiz “atua como parte, investiga, dirige, acusa e julga” (LOPES Jr., 2006, p. 168) e que no decorrer do processo “ele e os demais oficiais do tribunal assumiam a investigação dos crimes e determinavam a culpabilidade ou não do réu” (NASPOLINI, 2003, p. 12), o que determinava exatamente o que hoje chamamos de cerceamento de defesa. Outra perspectiva do cerceamento de defesa no processo inquisitório está no segredo que envolvia o procedimento, tanto ao público quanto ao acusado. Foucault (2001, p. 35) discorre que: todo o processo criminal, até a sentença, permanecia secreto: ou seja, opaco não só para o público, mas para o próprio acusado. O processo se desenrolava sem ele, ou pelo menos sem que ele pudesse conhecer a acusação, as imputações, os depoimentos, as provas [...] era impossível ao acusado ter acesso às peças do processo, impossível conhecer a identidade dos denunciadores, impossível saber o sentido dos depoimentos antes de recusar as testemunhas, impossível fazer valer, até os últimos momentos do processo, os fatos justificativos, impossível ter um 5 Cavalo de madeira em que se torturavam os acusados ou condenados. 154 SISTEMA INQUISITORIAL E A INFLUÊNCIA NA FORMAÇÃO DA CRIMINOLOGIA advogado, seja para verificar a regularidade do processo, seja para participar da defesa. Quanto à figura do advogado é também relevante identificar que o mesmo deveria ser indicado pelo próprio inquisidor do processo e que não haveria qualquer garantia de paridade entre os sujeitos processuais. Eymerico (2001, p. 36) discorre que: O advogado há de ser um homem justo, douto e zelador da fé. Nomeia-o o inquisidor e lhe toma juramento de defender o réu conforme a verdade e o direito, e de guardar como inviolável o quanto vir e ouvir. Será seu principal esmero exortar seu cliente a declarar a verdade e pedir perdão do seu delito se for culpado. Responderá o acusado de palavra ou por escrito, de acordo com o seu advogado e se passará a sai resposta ao fiscal do Santo Oficio. O preso não se comunicará com o advogado sem a presença do inquisidor. Percebemos, desse modo, que não há qualquer chance para o acusado nesse sistema, ficando este à margem do poder discricionário do juiz e das imposições da Inquisição, visto que toda a linha “processual” é voltada para a condenação. Fica também evidenciado que o personagem do magistrado no sistema inquisitório trata-se da figura principal, haja vista a importância que o mesmo possui perante o processo da Inquisição. Ao agregar funções e ser o sujeito que dita todas as regras do jogo processual, o juiz rege o ritmo do processo e decide de antemão a culpabilidade do acusado, passando desta convicção para busca das provas, o que caracteriza aí o manuseio probatório da forma que convém ao juiz (LOPES Jr., 2006, p. 168). Outra perspectiva importante desse sujeito é a subjetividade com que o magistrado vem a trabalhar no sistema inquisitório, já que fica à disposição dele a possibilidade de decidir da forma que achar mais conveniente sobre todos os fatos presentes no processo. O livre convencimento do juiz permitia desde então que houvesse um caráter discricionário e subjetivo do juiz quanto aos seus sentimentos e “intuições” em relação ao acusado, demonstrando-se aí mais um artifício de poder atribuído ao magistrado nesse sistema (LOPES Jr., 2006, p. 168). Podemos, assim, concluir que o sistema inquisitorial em si é uma máquina de poder, desde a construção do inquérito, da seleção dos acusados até a determinação do juiz sobre a culpabilidade do mesmo e da discricionariedade com que o magistrado trabalha na gestão das provas. Vê-se na Inquisição a identificação do fim da Idade Média e do poder determinante que teve a Igreja nesse período, entende-se nela a construção da mentalidade repressora que está até então agregada ao Sistema penal e ao processo penal. Percebe-se o quão relevante a figura do juiz é a partir do autoritarismo exercido por ele e quão vulnerável fica o réu quando se encontra sem qualquer garantia, diz-se então que o papel do juiz no Sistema Inquisitório é o de domínio completo sobre o processo e o seu procedimento. Considerações finais A forma inquisitória é possível de ser identificada quando se demonstra a ausência dos direitos processuais do contraditório, de ampla defesa e da evidência absoluta da presunção de culpa do acusado, cabendo ao mesmo o ônus probatório quanto a sua inocência. Outras características atribuídas ao sistema inquisitorial são a tarifação das provas e a acusação de ofício, todavia, o ponto crucial para a identificação do mesmo é a unificação dos poderes de ANAIS DO V CONGRESSO BRASILEIRO DE HISTÓRIA DO DIREITO 155 julgar e acusar nas mãos dos magistrados. Os juízes inquisitoriais são aqueles que colhem as provas, efetivam a acusação e julgam o processo. A mais significativa peculiaridade do sistema inquisitório fica a cargo da possibilidade da tortura como meio de alcançar a verdade processual. Ficou demonstrado, diante do exposto por Eymerico, que a prática de tormentos além de ser algo inerente a essa forma processual, tratava-se de uma obrigação do inquisidor, já que eram tarefas suas a obtenção dos indícios probatórios para acusar o indivíduo e a efetiva condenação do mesmo. O Sistema Inquisitorial é uma construção processual do Ocidente, surgido no Velho Mundo, entretanto, devido às colonizações e ao processo expansionista dos países europeus, ele atingiu várias outras localidades, entre elas o Brasil. Demonstra-se, então, a chegada da inquisição ao Brasil, identificando-a como resultado de um processo proveniente da necessidade que Portugal teve em controlar seus colonos e suas práticas. Numa sociedade distante e sem os olhares diários do rei e da Santa Inquisição, Portugal percebeu que tal realidade possibilitava uma liberdade de conduta distinta da que a Metrópole vivia no século XVI e XVII, o que permitia práticas religiosas e sexuais que eram abolidas em terras portuguesas. Para controlar o que ocorria na Colônia, o Santo Ofício foi mandado ao Brasil para identificar e punir tais comportamentos inaceitáveis, segregando, assim, certos grupos de indivíduos e seus costumes, visto que os comportamentos tidos como inaceitáveis eram costumeiramente aqueles praticados pelas minorias já excluídas na Europa, e que rumaram ao Novo Mundo em busca de liberdade para a manifestação dos seus hábitos. Como resposta a essa segregação, ficou demonstrado a relação do Sistema Inquisitorial com a construção da Criminologia positivista surgida no final do século XVII. Na identificação do que é conceituado como “normal”, vê-se uma construção do outro “anormal” como aquele punível. A exclusão e a determinação de certas práticas e condutas como aceitáveis à sociedade passa a ser vista como situações formadoras do conceito de Criminologia, haja vista a necessidade que a Criminologia deste período possui em determinar o que desenvolve o criminoso, e não propriamente, o crime. O surgimento desse discurso de indivíduos diferentes e anormais no Brasil deve-se principalmente à divulgação da teoria da criminologia lombrosiana efetuada pela Faculdade de Direito de Recife através das suas publicações acadêmicas, que tinham como foco principal compreender o crime através da pessoa do criminoso e de suas características de periculosidade. Foi, assim, identificado por essa abordagem criminológica que em determinadas pessoas a criminalidade era produto de atributos naturais derivados de uma máformação biológica desses indivíduos, e era diante de um determinismo biológico que a teoria identificava o porquê das transgressões. Destarte, evidencia-se a figura principal dentro da realidade inquisitorial, o juiz inquisidor. As atribuições funcionais e as práticas inerentes a esse personagem são analisadas como a razão que constitui em si o processo inquisitório. A junção das funções de acusar e julgar, a possibilidade das torturas para a obtenção da “verdade real” e a decisão com ausência de quaisquer fundamentações identificavam exatamente a liberdade dos juízes inquisidores, possibilitando, assim, que estes praticassem atos absurdos como meio de obter condenações, caracterizando, dessa forma, a realidade do sistema processual inquisitório. Desta forma, percebe-se que o processo histórico do sistema inquisitorial, assim como o seu conceito em si, e o avanço desta forma processual ao Brasil construíram as raízes 156 SISTEMA INQUISITORIAL E A INFLUÊNCIA NA FORMAÇÃO DA CRIMINOLOGIA necessárias para desenvolver o processo criminológico que explodiu no meio intelectual nos séculos XIX e XX, visto que os conceitos de anormalidade e de outro são provenientes do período inquisitório. Referências ANDERSON, Perry. Passagens da antiguidade ao feudalismo. São Paulo: Brasiliense, 2004. ARAÚJO, Thiago Cássio D’Ávila. Criminologia: a mudança do paradigma etiológico ao paradigma da reação social. Disponível em: <http://jus2.uol.com.br/doutrina/texto.asp?id=13269>. Acesso em 10 fev. 2010. AZEVEDO, Rodrigo Ghiringhelli de; CARVALHO, Salo de. (Org.) A crise do Processo Penal: e as novas formas de Administração da Justiça Criminal. Porto Alegre: Notadez, 2006. BARATTA, Alessandro. Criminologia crítica e crítica do Direito Penal. 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TOCQUEVILLE’S CRITIQUE OF THE FRENCH ADMINISTRATIVE LAW Ig Henrique Queiroz Gonçalves* Resumo: Tocqueville não foi propriamente um jurista, o que não o impediu nem de criticar o direito vigente nem de pensar um dever ser para o Estado e para o direito público nas eras democráticas. O autor observava a centralização administrativa francesa na perspectiva crítica tendo como contraponto a descentralização administrativa da democracia americana. As soluções legais e institucionais para o problema da liberdade política nas democracias passariam, segundo ele, pelo uso que os legistas fariam do seu poder normativo, no sentido de favorecer a participação do cidadão em assuntos da administração pública. Neste trabalho exploraremos a crítica de Tocqueville ao livro Cours de Droit aministratif de Macarel. * Mestre em teoria, filosofia e história do direito pelo programa de pós-graduação em direito da Universidade Federal de Santa Catarina (CPGD/UFSC). Atualmente é professor de Direito Processual Civil na Universidade Uniban-Brasil. 160 A CRÍTICA DE TOCQUEVILLE AO DIREITO ADMINISTRATIVO FRANCÊS 1 A construção do direito administrativo como ramo autônomo do direito público (1815-1848). Desde as últimas décadas do Antigo Regime tentou-se sustentar que a administração pública estaria sujeita a regras jurídicas distintas das regras do direito comum1. Se as inovações administrativas napoleônicas contribuíram para acentuar esta tendência, foi principalmente durante a Restauração que o problema da autonomia do direito administrativo se revelou de maneira mais clara. Duas circunstâncias, em especial, concorreram, durante o período, para a emergência de um direito próprio para a administração pública: a mudança da função do Conseil d’État, consolidando-se como um órgão de jurisdição própria para os assuntos administrativos, e a progressiva elaboração de uma ciência do direito administrativo estabelecendo definitivamente seu lugar entre os ramos jurídicos2. Após a queda de Napoleão mudaram-se as atribuições do Conselho de Estado (Conseil d’État). Durante o Império a instituição tinha a função política de conselheira do governo. Com a Restauração e o receio das reminiscências do Império Bonaparte, a instituição passou a ser vista com maus olhos. Luís XVIII, que mais a tolerava que a apreciava, preferiu destituí-la da função de conselheira política, rebaixando-a a mero órgão consultivo e de tribunal administrativo. Esta redução da função política do Conselho de Estado, e a sua conseqüente concentração nas novas funções jurisdicionais, evidenciaram a necessidade de um direito próprio capaz de legitimar esta nova jurisdição3. A nova atribuição do Conselho de Estado como órgão prioritariamente jurisdicional era uma das peças que faltavam para o nascimento do direito administrativo como ramo autônomo. A outra peça, que finalmente iria consagrá-lo como uma disciplina jurídica autônoma, foi o oferecimento, pela Faculdade de direito de Paris, da disciplina enseignement de droit administratif a partir do terceiro ano do curso. Esta determinação foi proferida pelo presidente da Commission de l’instruction publique, o doctrinaire Royer-Collard. Como destaca François Burdeau, “apesar da supressão temporária da disciplina pela reação ultramonarquista de 1822, a cátedra foi reabilitada em 1828, sob o governo moderado de Martignac”. Mas o que merece aqui ser destacado é que, a partir desta data o direito administrativo possuía uma cátedra específica que tinha por objeto o estudo da administração pública 4. Apesar da preocupação com a organização e entendimento das regras da administração pública ser mais antigas que a Restauração, “nem o Antigo Regime, nem a Revolução, nem o Império” promoveram a organização que a doutrina de direito administrativo produziu neste período. Os primeiros especialistas do ramo tiveram “organizar incontáveis textos legislativos e regulamentos, além de analisar as decisões tomadas pelo Conselho de Estado no exercício 1 Sobre a tentativa de criar então um “direito de polícia” autônomo, separado do direito privado e aplicável à esfera estatal, Cf. BURDEAU, François. Histoire du droit administratif (de la Révolution au début des années 1970). Paris: Presses Universitaires de France (PUF), 1995; SEELAENDER, Airton Cerqueira Leite. A polícia e o rei legislador. In: BITTAR, E. História do direito brasileiro. São Paulo: Atlas, 2003, p.91-108; STOLLEIS, Michael. Storia del diritto pubblico in Germania – I (1600-1800). Traduzione di Cristina Ricca. Milano: Giuffrè editore. 2008. 2 BURDEAU, François. Histoire du droit administratif (de la Révolution au début des années 1970). Paris: Presses Universitaires de France (PUF), 1995. p.89. 3 BURDEAU, François. Histoire du droit administratif (de la Révolution au début des années 1970). p.106. 4 BURDEAU, François. Histoire du droit administratif (de la Révolution au début des années 1970). p.105-106. ANAIS DO V CONGRESSO BRASILEIRO DE HISTÓRIA DO DIREITO 161 da função contenciosa”, que, pouco a pouco, foi estabelecendo um conjunto substancial de regras jurisprudenciais administrativas”5. Não por acaso, a “tríade fundadora” do direito administrativo foi composta por homens familiarizados com as altas esferas da administração francesa - Barão Joseph-Marie de Gérando (1772-1842), Louis-Antoine Macarel (1790-1851) e Louis de Cormenin (17881868). O primeiro era maître des requêtes e conselheiro de Estado desde o Império, mantendo-se no cargo até sua morte. Macarel só ingressaria no Conselho de Estado sob a Monarquia de Julho, mas já conhecia muito bem seus procedimentos, por ter advogado durante algum tempo perante o órgão. Enfim, Cormenin, nomeado auditor em 1810, tornou-se depois maître des requêtes e termina sua vida como conselheiro de Estado, após um longo afastamento em virtude de atividades políticas, desenvolvidas entre 1830 e 18496. A doutrina administrativa francesa do período foi dominada pelas publicações destes três autores. Gérando publicou Institutes de droit admistratif em quatro volumes entre os anos de 1828 e 1830. Macarel é autor de três obras importantes: Eléments de la jurisprudence administrative (2 vol.,1818); um tratado Des tribunaux administratifs ou Introduction à l’étude de la jurisprudence administrative (1828) e, mais tarde, um Cours de droit administratif em quatro volumes (1842-1846)7. Cormenin publicou Du Conseil d’État envisagé comme conseil et comme juridiction dans notre monarchie constitutionnelle (1818), além de Questions de droit administratif (1822)8. Foi a partir destas obras pioneiras que se deu início ao desenvolvimento de uma literatura jurídica especializada9. Os primeiros escritos sobre direito administrativo revelaram uma dupla hereditariedade: a primeira raiz provinha dos estudos sobre a Polícia dos séculos XVII e XVIII; a outra, do culto à lei, consagrado pela Revolução10. François Burdeau observa que a literatura jurídica produzida sobre a administração nos anos pós-revolucionários apresentava um inegável tradicionalismo. Percebem-se nela características típicas dos tratados de Polícia, como os inventários legislativos e a sobreposição de temas desconexos em volumosos compêndios. Alguns anos se passaram até que pioneiros como Macarel se aventurassem na inexplorada jurisprudência do Conselho de Estado, mudando o foco de análise e modernizando o estudo sobre a administração. A percepção da importância do estudo das decisões contenciosas do Conselho foi, sem dúvida alguma, um passo decisivo na construção deste novo ramo da ciência jurídica11. Para colocar-se definitivamente como um novo ramo do saber, era necessário que o direito administrativo evidenciasse os limites do seu objeto e afirmasse sua singularidade em relação a duas outras disciplinas autônomas próximas: a ciência da administração (science de l’administration) e o direito comum (droit commun)12. A ciência da administração era mais abrangente que o direito administrativo, tendo herdado sua enorme área de interesse da antiga ciência da Polícia. Concentrando suas atenções no aspecto sócio-político da administração, estudava as melhores formas de 5BURDEAU, François. Histoire du droit administratif (de la Révolution au début des années 1970). p.107-108. 6 BURDEAU, François. Histoire du droit administratif (de la Révolution au début des années 1970). p. 108. 7 Este último será objeto da crítica de Tocqueville, de que trataremos a seguir no ponto 3.3.2. 8 BURDEAU, François. Histoire du droit administratif (de la Révolution au début des années 1970). p. 108. 9 Sobre o desenvolvimento desta literatura ver BURDEAU, François. Histoire du droit administratif (de la Révolution au début des années 1970). p. 108 e ss. 10 BURDEAU, François. Histoire du droit administratif (de la Révolution au début des années 1970). p. 111. 11 BURDEAU, François. Histoire du droit administratif (de la Révolution au début des années 1970). p. 114. 12 BURDEAU, François. Histoire du droit administratif (de la Révolution au début des années 1970). p. 118. 162 A CRÍTICA DE TOCQUEVILLE AO DIREITO ADMINISTRATIVO FRANCÊS promover não apenas o controle e a ordem, mas também a prosperidade das sociedades, estabelecendo o papel do poder público nesta construção. A ciência da administração abarcava em si um amplo leque de disciplinas auxiliares. Estas disciplinas auxiliares tinham por objeto aspectos da administração, tais como a sua dimensão histórica, econômica, estatística e técnica burocrática. O direito administrativo surgia, neste quadro, como mais um conhecimento específico requerido ao bom administrador. Sua singularidade em relação aos ramos próximos era a abordagem exclusivamente jurídica13. Macarel diferenciava a “ciência da administração” do “direito administrativo”, dizendo que “a ciência da administração é do domínio da especulação enquanto a ciência do direito administrativo está ligada a esfera do positivo”14. Definido o campo de interesse puramente jurídico em face de outras preocupações em torno da administração, faltava ainda diferenciá-lo do direito comum. Em outras palavras, era preciso responder as perguntas: Por que o direito administrativo deve ser tratado de forma diferente do direito comum? O que justifica sua autonomia? O que justifica uma jurisdição própria? Como explica Burdeau, estas questões não tiveram respostas satisfatórias neste primeiro momento. De qualquer modo, houve quem tentasse solucioná-las. Gérando afirmava que “o direito administrativo se separa essencialmente do direito comum, tanto civil como criminal”. Para Cormenin, bastava observar a natureza “da legislação, da jurisprudência, do ensino, dos seus recursos e tratados” para concluir que “o direito administrativo é de fato uma science véritable et compléte”15. Ducrocq posicionou o direito administrativo como um ramo do direito público composto por princípios próprios essencialmente diferentes dos princípios de direito privado. Mas o que de fato ocorreu foi que o direito administrativo não conseguiu desenvolver uma teoria jurídica coerente sobre o poder público, capaz de unificar seus princípios em contraponto aos princípios do direito privado. Pelo contrário, mesmo depois desta primeira geração de juristas, o direito administrativo seguiu com problemas para delimitar seu campo. Continuou valendo-se amplamente das técnicas de direito privado, ao mesmo tempo em que assimilava influências da teoria política liberal e do individualismo em suas regras e decisões. Apesar do esforço dos fundadores do direito administrativo, estes tiveram na realidade mais dificuldades que sucessos em fundamentar teoricamente a autonomia do direito administrativo. O ramo nascia com claras influências do direito individualista privado e com extrema dificuldade em justificar teoricamente sua especificidade como ramo da ciência jurídica16. 2 A crítica de Tocqueville a obra de Macarel. O modelo do direito administrativo francês foi “o arquétipo de direito administrativo no continente europeu”17. 13 BURDEAU, François. Histoire du droit administratif (de la Révolution au début des années 1970). p. 118120. 14 BURDEAU, François. Histoire du droit administratif (de la Révolution au début des années 1970). p. 120. 15 BURDEAU, François. Histoire du droit administratif (de la Révolution au début des années 1970). p. 120. 16BURDEAU, François. Histoire du droit administratif (de la Révolution au début des années 1970). p. 122. 17Rebuffa na obra La formazione del diritto amministrativo in Italia, trata de explicar esta influência francesa no direito administrativo continental, em especial na Itália, chamando atenção para o atraso com que a crítica tocquevilliana ao direito admistrativo chegou ao seu país Cf. REBUFFA, Giorgio. Le tendenze del diritto ANAIS DO V CONGRESSO BRASILEIRO DE HISTÓRIA DO DIREITO 163 Tocqueville foi um analista político, não um jurista. O que não o impediu nem de criticar o direito vigente nem de pensar um dever ser para o Estado e para o direito público nas eras democráticas. O autor observava a centralização administrativa francesa na perspectiva da sua teoria política sobre liberdade. E, como se sabe, destacou de maneira exemplar a dimensão política da administração pública. As soluções legais e institucionais para o problema da liberdade política nas democracias passariam, segundo ele, pelo uso que os legistas fariam do seu poder normativo, no sentido de favorecer a participação do cidadão em assuntos da administração pública. Tocqueville mostrava desde a graduação em direito, um desprezo pelo dogmatismo em matéria jurídica. A lei, para o autor, podia ser boa ou ruim, mas não deveria ser celebrada só por ser lei. Tocqueville criticava o direito vigente, pois imaginava um direito melhor. Um direito, por exemplo, que possuísse a aptidão de despertar o interesse dos cidadãos pelos assuntos públicos. Segundo ele, Não depende das leis reavivar as crenças que se extinguem, mas depende das leis interessar os homens pelo destino de seu país. Depende das leis despertar e dirigir esse instinto vago da pátria que nunca abandona o coração do homem e, ligando-o aos pensamentos, às paixões, aos hábitos de cada dia, transformá-lo num sentimento refletido e duradouro. E não venham dizer que é tarde demais para tentálo: as nações não envelhecem da mesma maneira que os homens. Cada geração que nasce em seu seio é como um outro povo que vem se oferecer à mão do legislador 18. Para Tocqueville, como legista, as leis de direito público, não deveria entregar a administração pública inteiramente a um corpo de funcionários. Na sua perspectiva, isso seria fatal para o futuro da liberdade política. Para ele, pelo contrário, o problema da administração pública não era centrado na questão da eficiência, mas sim nos efeitos políticos que esta poderia promover ou barrar na sociedade. Admitirei de resto, se quiserem, que as cidadezinhas e os condados dos Estados Unidos seriam mais utilmente administrados por uma autoridade central situada longe deles e que lhes permanecesse estranha, do que por funcionários recrutados em seu seio. Reconhecerei se exigirem, que reinaria mais segurança na América, que se faria um uso mais inteligente e mais judicioso dos recursos sociais, se a administração de todo o país fosse concentrada em uma só mão. As vantagens políticas que os americanos extraem do sistema de descentralização ainda me fariam preferi-lo ao sistema contrário19. Para o autor, a França de seu tempo era constituída por um povo de administrados. Já a democracia americana por verdadeiros cidadãos. Tocqueville diferenciava o cidadão americano do administrado francês. O cidadão era um homem ativo com uma vida política; o administrado francês, um homem que recebia de forma passiva as ordens de um tutor. Como vemos, antes de receber a tarefa de apresentar uma resenha da obra de Macarel à Académie des Sciences morales em 1846, Tocqueville já possuía uma postura crítica bem amministrativo continentale e la loro influenza in Italia In: La formazione del diritto amministrativo in Italia. Bolonha: Società editrice il Mulino, 1981. p. 11-32. 18TOCQUEVILLE, Alexis de. A democracia na América. 2001. v.1. p. 106-107. TOCQUEVILLE, Alexis de. De la démocratie en Amérique. v.1. p. 159-160. 19 TOCQUEVILLE, Alexis de. A democracia na América. 2001. v.1. p. 104. TOCQUEVILLE, Alexis de. De la démocratie en Amérique. v.1. p. 157. 164 A CRÍTICA DE TOCQUEVILLE AO DIREITO ADMINISTRATIVO FRANCÊS desenvolvida sobre o tema da administração pública20. Especialmente no que tange o tema da centralização administrativa. No relatório (Rapport) sobre o Cours de Droit aministratif, Tocqueville reconheceu o mérito do livro de Macarel. Segundo o autor, “constitui um verdadeiro código administrativo”, dando conta de organizar mais de oitenta mil leis e ordenanças. Oferecendo ao público um “quadro racional e completo” do sistema administrativo francês, Macarel teria conseguido extrair das disposições legislativas e dos fatos uma teoria que constituiria a essência do livro21. Este faria uma descrição minuciosa da estrutura, composição e funcionamento do edifício administrativo francês, narrando em detalhes os trâmites da burocracia administrativa e os direitos e deveres dos funcionários públicos22. Os elogios ao talento descritivo paravam, no entanto, por aí. Tocqueville passava então a ironizar as passagens sobre a história da frança no livro, dizendo que “nada é mais instrutivo que perceber nascer, crescer e desenvolverem-se” cada um dos diferentes poderes desta administração centralizada que, “por toda a parte, encerra a existência individual dos cidadãos”23. A crítica de Tocqueville não se centrava nem contra Macarel, nem no direito administrativo em si, mas sim na celebração da administração pública centralizada, sem a devida atenção ao papel prejudicial que esta apresentava para o desenvolvimento da liberdade política na França. M. Macarel se abstém completamente de qualquer julgamento; não faz mais que descrever. Ele limita assim, voluntariamente, seu horizonte; ele se refere estritamente ao que é (ce qui est), sem jamais tentar descobrir o que deveria ser (devrait être). Sempre nos pareceu que a principal meta de um professor que se propusesse a ensinar esta nova ciência seria contestar o nosso direito administrativo24. Porém M. Macarel gastava todo o seu tempo descrevendo e explicando nos mínimos detalhes a máquina administrativa francesa. Ignorava completamente que “a maioria das instituições” que descrevia e comentava eram agora, na França, “objeto das mais vivas críticas”25. No entanto, o problema mais grave, segundo Tocqueville, não seria tanto a falta de espírito crítico em Macarel, mas sua tentativa de extrair das descrições da atual administração 20 TOCQUEVILLE, Alexis de. Rapport- Fait a l’académie des sciences morales et politiques (1846), sur le livre de M. Macarel, Intitulé: Cours de Droit administratif In: Œuvres complètes d'Alexis de Tocqueville. publiées par Mme de Tocqueville [et Gustave de Beaumont] , Études économiques, politiques et littéraires – Tome IX. 1866.p.66-75. 21 TOCQUEVILLE, Alexis de. Rapport- Fait a l’académie dês sciences Morales et politiques (1846), sur le livre de M. Macarel, Intitulé: Cours de Droit administratif In: Œuvres complètes d'Alexis de Tocqueville. p.62. 22 Segundo Tocqueville, “M. Macarel nous fait descendre pas à pás l’echelle immense sur laquelle se placent les uns au-dessous des autres, sans confusion, mais presque sans fin, la multitude des fonctionnaires qui composent parmi nous la hiérarchie administrative, depuis le roi jusqu’au dernier agent de a l’autorité. A chaque degré, l’auteur s’arrête, il dit comment chaque foncionnaire est nommé, quels rapports nécessaires existent entre lui et ceux qui sont placés plus haut et plus bas, quel est le champ de son action, quels sont sés devoirs et sés droits, à quelle époque, comment et pourquoi il a été créé. [...]”.TOCQUEVILLE, Alexis de. Rapport- Fait a l’académie des sciences morales et politiques (1846), sur le livre de M. Macarel, Intitulé: Cours de Droit administratif In: Œuvres complètes d'Alexis de Tocqueville. p.62. 23TOCQUEVILLE, Alexis de. Rapport- Fait a l’académie des sciences Morales et politiques (1846), sur le livre de M. Macarel, Intitulé: Cours de Droit administratif In: Œuvres complètes d'Alexis de Tocqueville. p.62. 24TOCQUEVILLE, Alexis de. Rapport- Fait a l’académie des sciences morales et politiques (1846), sur le livre de M. Macarel, Intitulé: Cours de Droit administratif In: Œuvres complètes d'Alexis de Tocqueville. p.65. 25 TOCQUEVILLE, Alexis de. Rapport- Fait a l’académie des sciences morales et politiques (1846), sur le livre de M. Macarel, Intitulé: Cours de Droit administratif In: Œuvres complètes d'Alexis de Tocqueville. p.65-66. ANAIS DO V CONGRESSO BRASILEIRO DE HISTÓRIA DO DIREITO 165 axiomas do direito e princípios gerais. Estes, apesar de totalmente equivocados, seriam muito perigosos. O axioma mais perigoso e que constituiria a grande novidade do livro de Macarel, segundo Tocqueville, seria “a regra geral e absoluta de competência que ele funda na França: existem agora duas espécies de jurisdições ordinárias (deux espèces de justice ordinaire)26. Aqui Tocqueville concentra a crítica fundamentalmente em três pontos. I) no contencioso administrativo, por criar um direito e uma jurisdição de exceção ao direito comum (tribunaux exceptionnels27); II) na tendência à nomeação direta para cargos de chefia pelo Executivo, muitas vezes deixando a administração do país nas mãos de um funcionário; e III) na tendência à desresponsabilização dos funcionários, em especial por estes serem julgados por um tribunal administrativo ao invés da jurisdição comum. Quanto à pretensão de Macarel de transformar estes fatos em axiomas, Tocqueville advertia: “estes não são, meus Senhores, ouso dizer, os axiomas do direito de nenhum povo livre, diria mais, nenhum povo civilizado daria a forma geral e absoluta que M.Macarel os conferiu”28. Tocqueville, ao final do relatório-crítico, reclamava aos publicistas franceses um trabalho de direito administrativo que conseguisse conjugar - o que M.Macarel não fizera - o direito administrativo com as críticas políticas à centralização. Deveria ser pensado um direito administrativo novo, “compatível com a Monarquia constitucional e o governo representativo”. Não cabia celebrar o direito vigente nesta matéria. Tocqueville nunca teve a intenção de escrever este tratado de direito administrativo. Mas, por outro lado, apresentou uma crítica substancial contra a formação deste direito. E fez sugestões para a construção de “um outro” direito, mais compatível com a liberdade política. Analisando-se o destino histórico do Conselho de Estado e do contencioso administrativo francês, percebe-se, mais uma vez, que também neste aspecto o discurso tocquevilliano saiu derrotado. Muito embora, como destaca Lucien Jaume, “muitos problemas enfrentados pela França para estabelecer a liberdade política passassem por questões que haviam sido colocadas pelo autor já neste momento”29. Especialmente quanto à necessidade de explorar a dimensão política “democrática” da administração pública. Conclusão Para Tocqueville, a administração pública nas democracias deveria ser descentralizada para que pudesse estimular os homens a se auto-organizarem para resolver problemas comuns. Portanto, era, também, papel dos estudos de direito administrativo desenvolver este direito democrático30. O dever ser político da administração pública era estimular a participação do cidadão na esfera pública, e não impor por todo o lado a atividade burocrática da administração centralizada. 26 TOCQUEVILLE, Alexis de. Rapport- Fait a l’académie des sciences morales et politiques (1846), sur le livre de M. Macarel, Intitulé: Cours de Droit administratif In: Œuvres complètes d'Alexis de Tocqueville. p. 66. 27TOCQUEVILLE, Alexis de. Rapport- Fait a l’académie des sciences morales et politiques (1846), sur le livre de M. Macarel, Intitulé: Cours de Droit administratif In: Œuvres complètes d'Alexis de Tocqueville. p.67-68. 28 TOCQUEVILLE, Alexis de. Rapport- Fait a l’académie des sciences morales et politiques (1846), sur le livre de M. Macarel, Intitulé: Cours de Droit administratif In: Œuvres complètes d'Alexis de Tocqueville. p. 67. 29 JAUME, Lucien. Tocqueville face au theme de la “nouvelle aristocratie”: la difficile naissance des partis en France. Paris: Revue française de science politique, vol. 56, n. 6, décembre, 2006, p.982. 30 TOCQUEVILLE, Alexis de. Rapport- Fait a l’académie des sciences morales et politiques (1846), sur le livre de M. Macarel, Intitulé: Cours de Droit administratif In: Œuvres complètes d'Alexis de Tocqueville. p. 71-75. 166 A CRÍTICA DE TOCQUEVILLE AO DIREITO ADMINISTRATIVO FRANCÊS Para o autor, a centralização administrativa deveria ser desarticulada e não promovida pelos legistas. Macarel e os outros fundadores do direito administrativo francês fizeram o que Tocqueville temia. O Conselho de Estado consolidou-se, especialmente a partir de 1870, sob o Segundo Império, como um órgão de jurisdição própria, também graças a contribuição destes primeiros trabalhos, pioneiros na descrição do imenso Estado “tutelar” a que a modernidade deu origem. O dever ser do direito administrativo desejado por Tocqueville ficou nas páginas da história como um discurso derrotado. E grande parte do prestígio do direito administrativo francês, durante o século XIX, deu-se, justamente, pelo alto grau de desenvolvimento das instituições administrativas francesas no sentido da centralização. O Conselho de Estado, ainda hoje, é uma instituição fundamental do Estado francês31. O contencioso administrativo que se construía à época de Macarel tornou-se um sólido fato. Os prejuízos à liberdade política provocados por esta jurisdição administrativa centralizada a qual Tocqueville chegou a chamar de “justiça de exceção”, fogem do limite do nosso trabalho. Nos restringimos aqui a apresentar a crítica de Tocqueville à centralização administrativa francesa. Além de algumas das idéias tocquevillianas sobre descentralização, democracia e liberdade política. Idéias que desenvolveu em seus textos, desejando influenciar os legistas franceses para que articulassem em suas leis os novos direitos políticos e administração pública, visando, com isso, estabelecer um lugar apropriado para o cidadão exercitar a soberania então nascente democracia. 31 Sobre a atual composição do Conseil d’État, sua história e banco de dados da sua jurisprudência administrativa, ver site oficial: http://www.conseil-etat.fr/cde/. ANAIS DO V CONGRESSO BRASILEIRO DE HISTÓRIA DO DIREITO 167 O PROBLEMA DA NECESSIDADE NO PENSAMENTO DE SANTI ROMANO THE PROBLEM OF NECESSITY IN THE SANTI ROMANO’S THOUGHT João Paulo Arrosi* * Doutorando em direito pela Universidade Federal do Paraná e mestre pela mesma instituição. Foi bolsista do CNPq e atualmente é bolsista da CAPES/PROEX (Programa de Excelência). Professor da Faculdade de Direito de Curitiba (UniCuritiba). 168 O PROBLEMA DA NECESSIDADE NO PENSAMENTO DE SANTI ROMANO Em 28 de dezembro de 1908, um terremoto de magnitude jamais vista irrompe ao sul da península itálica e assola as províncias de Messina e Reggio-Calábria e todo o seu entorno1. A catástrofe parece superar em destruição e horror mesmo a antiga lembrança de devastação do monte Etna. No ano seguinte, Santi Romano, “um jurista que exerceu extraordinária influência sobre o pensamento jurídico europeu entre as duas guerras”2, publica um ensaio por ocasião do terremoto calábrico-sículo a respeito dos decretos-lei e do próprio estado de sítio3 declarado por questões de ordem pública – para fazer face, sobretudo, às ondas de vandalismo e pilhagem que se seguiram à tragédia. O respectivo decreto real, promulgado em 3 de janeiro de 1909, menciona como fatores da declaração do estado de sítio “a necessidade e a urgência improrrogável de prover a todos, imediatamente, os serviços públicos mínimos”, a “ordem e segurança pública” e ainda exara “que cessou de fato a jurisdição ordinária e que é impossível reconstruí-la de imediato”, uma vez que “o cataclismo telúrico ocorrido (...) criou uma situação – dado certos efeitos – idêntica e – devido a outros – mais grave que aquela verificada nos territórios em estado de guerra”4. No ensaio, Romano procura demonstrar que, embora extralegal, o fenômeno da necessidade – que seria o fundamento do estado de sítio – é produtor do direito e, enquanto tal, fonte sua primária e originária: necessitas legem non habet. A necessidade da qual nos ocupamos deve conceber-se como uma condição de coisas que, ao menos de regra e de modo completo e praticamente eficaz, não pode ser disciplinada por normas precedentemente estáveis. Mas se ela não possui lei, faz lei, como diz uma outra expressão usual; o que quer dizer que constitui ela mesma uma verdadeira e própria fonte de direito. E note-se bem que o seu valor não é restrito ao caso especial dos poderes de urgência do Governo, mas é bem mais amplo e possui manifestações bem mais importantes e gerais. Pode-se dizer que a necessidade é a fonte primeira e originária de todo o direito, de maneira que, no que diz respeito a ela, as outras [fontes] hão de ser consideradas de certo modo derivadas.5 Segundo Romano, é na necessidade que se “deve procurar a origem e a legitimação do instituto jurídico por excelência, vale dizer, do Estado, e em geral de seu ordenamento constitucional, quando instaurado por um procedimento de fato, por exemplo, através da revolução”: E o que se verifica no momento inicial de um determinado regime pode também se repetir, se bem que em linha excepcional e com caracteres mais atenuados, também quando este tenha firmado e regulado as suas instituições fundamentais. (...) é um 1 As crônicas da época mencionam o pior terremoto de que se tem memória nos últimos dois mil anos. A intensidade da força sísmica, que produziu ainda um maremoto, atingira entre XI e XII graus na escala de Mercalli (correspondentes a atuais 7,1 graus na escala Richter). A devastação pôs abaixo noventa por cento das construções e edificações de Messina e produziu cerca de cento e quarenta mil vítimas entre mortos e desaparecidos. Eram 05h21min da manhã quando começou o tremor que, segundo relatos de sobreviventes, durara “intermináveis” trinta e sete segundos. Além disso, as réplicas de menor intensidade se repetiram até fins de março de 1909. 2 AGAMBEN, Giorgio. Stato di eccezione. Torino: Bollati Boringhieri, 2003, p. 37. 3 ‘Sui decretti-legge e lo stato di assedio in occasione del terremoto di Messina e di Reggio-Calabria’. Rivista di diritto pubblico, Milano, 1909 (republicado em Scritti minori, vol. 1. Milano: Giuffrè, 1950, pp. 287-310). 4 Ibid., p. 288. 5 Ibid., p. 297-298. ANAIS DO V CONGRESSO BRASILEIRO DE HISTÓRIA DO DIREITO 169 fato que, por sua natureza, apresenta-se com as características do direito, é a necessidade, primeira fonte deste último. 6 Santi Romano adverte, porém, que a noção de necessidade não significa “um resíduo das teorias de direito natural”, direito este que, enquanto tal, consistiria sempre em normas racionais dedutíveis e estaria já sempre concebido. A necessidade, por outro lado, se impõe e se materializa “não como uma exigência da razão, mas como um comando inteiramente prático e, sobretudo, traduz-se em institutos e normas tornados válidos pelos órgãos estatais. Estamos, assim, sem dúvida, no campo do direito positivo mais estrito e próprio”7. Mas se é o próprio Estado que faz valer aqueles institutos e normas que, por razões práticas e concretas e mesmo para a conservação da própria estrutura estatal, até então não estavam – ou não estavam de todo – delineados e delimitados, o que se vê então é uma espécie de indeterminação originária entre a esfera do jurídico e aquela do político. Ainda em 1909, Santi Romano profere o discurso inaugural do ano acadêmico da Universidade de Pisa, sob o título Lo stato moderno e la sua crisi. Não é um acaso que o jurista siciliano faça menção às instituições políticas enquanto fenômenos (conquanto de difícil descrição e de aspectos variados e fugazes) também governados pela lei estatal: Toda ciência encontra na sua própria natureza e nos procedimentos que lhe são próprios algumas causas particulares e específicas de erros. Mas talvez nenhuma esfera do conhecimento humano concentre em si copiosas e perenes fontes de ilusão como aquela que possui por objeto o estudo das instituições políticas. Trata-se de fenômenos cuja simples descrição é dificílima, seja porque a forma frequentemente oculta e transvia a substância, seja porque, resultando da luta contínua e jamais harmonizada de princípios irreconciliáveis, apresentam-se sob aspectos ao mesmo tempo múltiplos e fugidios. (...). Mas também tais fenômenos são governados pelas leis, em cujo ápice está aquela pela qual o direito e a constituição de um povo representam sempre o genuíno produto da sua vida e da sua íntima natureza. 8 É certo que alguns anos antes Santi Romano havia já tocado, ainda que ligeiramente, o tema da necessidade ao estudar, primeiro, a instauração de fato de um ordenamento constitucional e sua respectiva legitimação; e, num segundo momento, ao tratar dos limites da função legislativa no direito italiano. No primeiro estudo, que Romano considera como um ensaio “de direito” no sentido estrito do termo, se “indaga o momento supremo em que um direito positivo assimila e absorve com a sua potência de atração aquilo que lhe é estranho ou também hostil; o momento em que um direito positivo por necessidade de fato cai para dar lugar a outro”9. No outro ensaio, composto, segundo o título, de “observações preliminares” no que tange aos limites da função legiferante, Romano já apresenta, por outro lado, alguns contornos bastante nítidos sobre o que entende por necessidade: (...) aquela necessidade que é a fonte primeira do direito, daquele direito que brota imediatamente e diretamente das forças sociais, de modo assim categórico, explícito, certo, a não permitir que entre as necessidades sociais [bisogni sociali] mesmas que determinam a norma jurídica e a descoberta e a declaração desta última se 6 Ibid., p. 298. Ibid., p. 298-299. Mais à frente Romano afirmará ainda: “Que a necessidade possa prevalecer sobre a lei deriva de sua própria natureza e de seu caráter originário, assim como do ponto de vista lógico quanto do histórico. Há normas que ou não podem ser escritas ou não é oportuno que o sejam; outras que não podem ser determinadas senão quando se verifica o acontecimento ao qual devem servir” (p. 299-300). 8 In Scritti minori, ob.cit., p. 311. 9 ‘L’instaurazione di fatto de un ordinamento costituzionale e sua legittimazione’. In Archivio giuridico, LXVIII, Modena, 1901 (republicado em Scritti minori, vol. 1. Milano: Giuffrè, 1950, p. 108). 7 170 O PROBLEMA DA NECESSIDADE NO PENSAMENTO DE SANTI ROMANO interponha a atividade racional dos órgãos competentes a esta declaração. A necessidade, assim entendida, não é um pressuposto da regula iuris, mas é ela mesma direito, no sentido de que este é seu produto imediato e, por assim dizer, de primeiro grau; (...). Compreende-se como nesta matéria se está nos extremos confins da norma jurídica, que não pode ter uma rigidez e uma precisão absoluta: o grau da necessidade, a sua natureza, os confins dentro dos quais se deve obtemperar com relação a ela, não podem ser determinados com critérios a priori.10 Quase duas décadas após esses escritos, Romano publicará aquela que talvez seja sua obra mais significativa, L’ordinamento giuridico, surgida entre 1917 e 1918 nos Annali delle Università toscane e, em seguida, publicada por uma casa editorial de Pisa. A peculiaridade dessa obra parece estar no fato de Romano colocar-se a pergunta radical concernente à própria juridicidade do ordenamento, assim como procurar respondê-la a partir do âmbito mesmo do fenômeno jurídico. Nessa obra, Romano explicitamente polemizará com Hans Kelsen, mas também, entre outros, com Léon Duguit, por reduzirem o fenômeno jurídico simplesmente a normas. A controvérsia entre Kelsen e Romano prosseguirá e se exasperará até o final da vida deste. Consoante se observa da segunda edição, de 1945, Romano anota de modo resoluto não ser possível conceituar adequadamente as normas compreendidas no ordenamento “sem antepor o conceito unitário deste último, assim como não se pode ter uma ideia exata dos vários membros do homem ou das rodas de um determinado carro, se não se sabe antes o que seja o homem ou aquele carro”11: Em outros termos, o ordenamento jurídico, assim compreensivamente entendido, é uma entidade que se move, em parte, segundo as normas, mas, sobretudo, move as normas mesmas, quase como peças num tabuleiro, que assim representam menos um elemento de sua estrutura do que, principalmente, o objeto e o meio de sua atividade.12 Essa constatação, do ponto de vista lógico, implica que “o direito não é ou não é somente a norma posta, mas a entidade mesma que a põe”13. Assim, Romano concebe o direito como aquilo que, “antes de ser norma, antes de concernir a uma simples relação ou a uma série de relações sociais, é organização, estrutura, postura [posizione] da sociedade mesma na qual se desenvolve e que o constitui como unidade, como ente por si existente”. Vale dizer, o direito é ordenamento. Mas se o direito é a própria organização ou estrutura que o constitui em um todo e em uma unidade, se é postura e afirmação da própria sociedade onde se desvela e se torna existente por si, Romano chega àquilo que será o cerne de sua reflexão – o conceito de instituição: Se assim é, o conceito que nos parece necessário e suficiente para propiciar em termos exatos o [conceito] de direito, como ordenamento jurídico considerado no seu complexo e na sua unidade, é o conceito de instituição. Todo ordenamento jurídico é uma instituição e, vice-versa, toda instituição é um ordenamento jurídico: a equação entre os dois conceitos é necessária e absoluta. 14 10 ‘Osservazioni preliminari per una teoria sui limiti della funzione legislativa nel diritto italiano’. In Archivio del diritto pubblico, I, Roma, 1902 (republicado em Scritti minori, vol. 1. Milano: Giuffrè, 1950, pp. 194-195). 11 L’ordinamento giuridico. 2. ed. Firenze: Sansoni, 1945 (ristampa 1951), p. 12. 12 Ibid., pp. 15-16. 13 Ibid., p. 19. 14 Ibid., p. 27. ANAIS DO V CONGRESSO BRASILEIRO DE HISTÓRIA DO DIREITO 171 À pluralidade de instituições corresponderá, portanto, a pluralidade de ordenamentos jurídicos. Não é à toa que toda a segunda parte de L’ordinamento seja dedicada à pluralidade dos ordenamentos jurídicos e às relações entre si. Para Romano, a instituição provém, antes de tudo, de um factum. “A sua origem não é um procedimento regulado por normas jurídicas; é, como repetidamente se pôs em evidência, um fato”: O direito não pode ser somente a norma posta pela organização social, como frequentemente se diz, mas é a organização social que, entre outras manifestações suas, põe também a norma. Se é verdade que o caractere jurídico desta é dado pelo poder social que a determina ou, ao menos, a sanciona, segue-se que este caractere deve já encontrar-se na instituição, que não poderia atribuí-lo à norma se ela mesma já não o possuísse.15 A despeito de conceber a instituição como um ente vinculado de modo primário e originário à facticidade, Romano, contudo, não mencionará em parte alguma de seu L’ordinamento aquela noção de necessidade – ou mesmo o termo em si – que havia apresentado no ensaio de 1901 e, sobretudo, no de 1909 a respeito do terremoto sículocalábrico. Em setembro de 1944, porém, período em que a Itália enfrentava uma profunda guerra civil – de um lado, as repúblicas de resistência (repubbliche partegiane) e, de outro, a República Social Italiana fundada há exato um ano por Mussolini –, Santi Romano volta a se preocupar com situações de fato geradoras de direito, especialmente com o tema da revolução, e detém-se sobre um de seus últimos escritos, Rivoluzione e diritto. (Após este ensaio, publicado postumamente, Romano apenas escreverá outros dois, além da segunda edição de L’ordinamento giuridico, concluída em novembro de 1945). Nesse ensaio é apresentada uma fórmula aparentemente paradoxal: “a revolução não pode ser, por definição, mais que um estado de fato, antijurídico, mesmo quando é justo”16. A legitimidade ou justiça do movimento revolucionário, assim como de suas ações, diria respeito apenas e tão só à sua economia interna e à forma de se autodefinir, ao passo que, em relação ao ordenamento jurídico (estatal) contra o qual se dirige, a revolução seria inteiramente antijurídica. Que, por sua vez, Giorgio Agamben tenha visto em tal fórmula e no modo como Romano concebe a revolução uma retomada do “problema da necessidade” 17, é algo que precisa ser observado mais de perto e com alguma cautela, já que o próprio Romano não aborda o tema da necessidade no ensaio. Não aborda, mas parece, por outro lado, fornecer uma pista valiosa logo no seu início, ao fazer referência expressa – e em termos opostos à interpretação feita por Agamben – à necessidade, para depois, ao longo de todo o texto, não mais sequer mencioná-la: Trata-se evidentemente de dois fenômenos de natureza análoga: uma guerra é uma revolução da comunidade internacional, e uma revolução, mesmo se não assume as proporções e as formas de guerra civil, é uma guerra na comunidade estatal. E, talvez, sejam ambos índices de uma patologia análoga. Sem intenção de generalizar, o que seria demasiado simplismo, pode-se considerar que frequentemente recorrem à 15 Ibid., p. 51. ‘Rivoluzione e diritto’, in Frammenti di un dizionario giuridico, Milano: Giuffrè, 1947, p. 222. 17 Stato di eccezione, op. cit., p. 39. 16 172 O PROBLEMA DA NECESSIDADE NO PENSAMENTO DE SANTI ROMANO guerra como à revolução não impostas pela inelutável necessidade os povos que não sentem em si a força de construir a sua história com a serena paciência, concedida somente pela fé na própria perenidade e nos próprios destinos, e se iludem que as improvisações mais ou menos efêmeras dos movimentos violentos possam substituir a solidez de uma gradual e natural evolução.18 Ainda que Santi Romano não tenha tratado e vinculado propriamente a necessidade – que outrora havia concebido como fonte primária e originária do direito – às análises que fizera sobre o tema da revolução, mas, pelo contrário, tenha feito questão de expressar que ali estava pressupondo sua assimetria, parece que, de todo modo, algum lugar proeminente ainda era reservado à “inelutável necessidade”. Não por outra razão o próprio fato de explicitar aquela pressuposta desvinculação. É certo que Romano não queria generalizar suas considerações, o que permite supor que o então velho jurista evidentemente sabia que guerras ou revoluções eventualmente poderiam ser impelidas por necessidades inelutáveis, conquanto não fosse esse o mote e a preocupação do ensaio. Mas, então, qual a relação que Romano tinha em mente entre fato e necessidade no preâmbulo desse último escrito? E qual a relação entre necessidade e a origem fática e institucional do direito no seu L’ordinamento? A segunda edição de L’ordinamento foi publicada em 1946 e lê-se no prefácio, escrito em Roma seis meses após a rendição nazifascista, que Romano considerou oportuno que a segunda edição viesse conforme o texto originário, sem qualquer modificação, “apenas algumas notas (...) para levar em conta a literatura posterior sobre vários argumentos por mim tratados e, muito sobriamente, algumas críticas mais importantes que me foram dirigidas”. As notas são várias, mas não infirmam ou põem em dúvida um argumento sequer do bojo do texto. E permanece, portanto, límpida a afirmação de que a origem do ordenamento jurídico, do direito ou da instituição – conforme a define Romano – “não é um procedimento regulado pelas normas jurídicas; é (...) um fato”19. Ou, como aparece, no sumário, no título do parágrafo respectivo (§ 16), “o surgir de uma instituição”. A propósito, é significativo que Alberto Romano, atual catedrático de direito administrativo da Universidade “La Sapienza” de Roma, considere que “um livro intimamente conectado com O ordenamento” seja “os Frammenti di un dizionario giuridico”20, justamente a compilação que contém o ensaio de 1944 sobre a revolução. Pois bem. A hipótese maior deste ensaio – que se esboça aqui como projeto de investigação – é a de que o problema da necessidade, ainda que sob certo aspecto implícito, está na base da edificação do pensamento de Santi Romano sobre a teoria do direito, isto é, constitui o pressuposto tácito de toda a economia de L’ordinamento, assim como informa e perpassa sua obra de direito público como um todo. Mas também, implicada nesse contexto, está a própria problemática da relação entre fato e direito – vale dizer, a separação e a articulação entre quaestio iuris e quaestio facti, entre juridicidade e facticidade no pensamento de Santi Romano. De resto, será conveniente analisar duas outras hipóteses laterais ou secundárias que se mostram, de algum modo, atreladas àquela maior. A primeira diz respeito à importância 18 ‘Rivoluzione e diritto’, op. cit., pp. 220-221. Sem grifo no original. Op. cit., pp. 50-51. 20 Nota Bio-bibliográfica sobre Santi Romano. In O Ordenamento Jurídico. Trad. Arno Dal Ri Júnior. Florianópolis: Fundação Boiteux, 2008, p. 55. 19 ANAIS DO V CONGRESSO BRASILEIRO DE HISTÓRIA DO DIREITO 173 da teoria do ordenamento jurídico de Santi Romano – e, por certo, o problema da necessidade aí implicado – para as concepções do jurista alemão Carl Schmitt como, por exemplo, a relação entre necessidade em Romano e decisão em Schmitt. É sabida a influência da obra de Romano sobre o pensamento de Schmitt, especialmente no que se refere ao conceito de instituição daquele. O pensamento de Santi Romano – simplificado e homogeneizado pela nomenclatura “institucionalismo” – costuma ser classificado entre as teorias consideradas não-formais, como também alocado no gênero dos pluralismos jurídicos. São conhecidas na doutrina, ademais, outras formulações acerca do conceito de instituição, principalmente a de Maurice Hauriou; o próprio Romano, de resto, reserva todo um capítulo de seu L’ordinamento para “os precedentes doutrinários do conceito de instituição”. Carl Schmitt, igualmente, apresentará sua própria concepção de instituição – e é preciso ter em vista, aqui, os influxos exercidos pelo pensamento de Romano. Pois, como diz Giorgio Agamben, “com toda probabilidade, Schmitt, que se refere várias vezes a Santi Romano em seus escritos, conhecia a tentativa deste de fundar o estado de exceção na necessidade como fonte originária do direito. A sua teoria da soberania como decisão sobre a exceção concede ao Notstand uma posição realmente fundamental, sem dúvida comparável àquela que lhe reconhecia Romano ao fazer dele a figura originária da ordem jurídica”21. Além disso, Schmitt “compartilha com Romano a ideia de que o direito não se exaure na lei (não é um acaso que ele cite Romano justo no contexto de sua crítica ao Rechtsstaat liberal)”22. A semelhança entre a noção de Romano sobre ordenamento jurídico (e sua pluralidade) e como Schmitt o concebe fica, igualmente, visível quando este afirma que “todo e qualquer ordenamento, também o ‘ordenamento jurídico’, está vinculado a conceitos normais concretos que não são derivados de normas genéricas, mas geram tais normas a partir do seu próprio ordenamento e com vistas a ele”23. E um exemplo, ademais, decisivo da influência de Romano sobre as reflexões de Schmitt não é outro senão a explícita e aquiescente menção ao L’ordinamento quando tratara dos três tipos de pensamento jurídico: No seu livro L’ordinamento giuridico, Santi Romano afirmou com razão que não é correto falar do direito italiano, francês etc. e pensar a propósito apenas em uma soma de regras, ao passo que na verdade esse direito é constituído em primeiro lugar pela organização complexa e diversificada do Estado italiano ou francês enquanto ordenamentos concretos, pelas muitas instâncias e vinculações de autoridade pública ou poder de Estado que produzem, modificam, aplicam e garantem as normas jurídicas, mas não se identificam com elas. (...)24. Com razão ele acrescenta que uma alteração da norma é mais consequência do que causa de uma alteração do ordenamento. (...) Somente nas últimas décadas a distinção aqui desenvolvida entre pensamento da norma e do ordenamento apareceu com contornos nítidos e foi tornada consciente. 21 Stato de eccezione, ob. cit., p. 41. Ibid. 23 SCHMITT, Carl. Sobre os três tipos de pensamento jurídico. Trad. Peter Naumann. In MACEDO Jr., Ronaldo Porto. Carl Schmitt e a fundamentação do direito. São Paulo: Max Limonad, 2001, p. 177. 24 Neste instante Schmitt então transcreve o trecho da obra de Romano reproduzido supra, correspondente à nossa nota 19. 22 174 O PROBLEMA DA NECESSIDADE NO PENSAMENTO DE SANTI ROMANO Em autores mais antigos praticamente não encontraremos uma antítese como a da passagem antes citada de Santi Romano.25 Parece ainda conveniente – agora no que concerne à segunda hipótese lateral – perscrutar as relações, os pontos de encontro e as dessemelhanças entre o problema da necessidade em Santi Romano e o instituto jurídico-penal do estado de necessidade nas suas matrizes italiana e alemã.26 Uma vez que a figura da necessidade parece dizer respeito a um limiar indeterminado e fronteiriço entre fato e direito, ou ainda, a um fator metajurídico, então se afigura intrigante que justo um fator assim se mostre sob a forma de um instituto jurídico no interior de um ramo do direito. É, pois, significativo que haja um escalonamento de hipóteses de fato (Tatbestände, fattispecie) que o direito penal procura delinear para poder apreender a situação de necessidade, incluí-la no ordenamento jurídico e regrá-la através dele. Por sua vez, são indicadas as matrizes italiana e alemã do direito penal moderno porque são precisamente essas as mais representativas e influentes do direito penal moderno, bem como são as recepcionadas pela legislação e pela doutrina brasileiras no tocante ao instituto do estado de necessidade. No nosso Código Penal atual, a previsão do estado de necessidade (art. 24) segue justamente a fórmula do Código Rocco de 1931, em relação à qual se costuma falar de uma “teoria unitária” do estado de necessidade. De outro lado, em nosso Código Penal Militar, os dispositivos referentes ao estado de necessidade (arts. 39 e 43) adotam a chamada “teoria diferenciadora”, herança direta e imediata da legislação e da doutrina penais alemãs. De resto, a doutrina brasileira sobre o referido instituto tradicionalmente trata ambas as teorias fundamentais para a interpretação do artigo 24 do Código Penal. Quanto à última teoria, o penalista alemão talvez mais importante da primeira metade do século passado, Hans Welzel, a delineia em breves palavras: “La acción en estado de necesidad es antijurídica cuando no es el médio adecuado para el fin adecuado, pero se le exculparia por inexigibilidad de la conducta conforme a derecho. Así, la ‘teoria dominante de la diferenciación’ (justificación sólo bajo las condiciones del estado de necesidad supralegal, en caso contrario sólo exculpación).”27. Vale dizer, na teoria diferenciadora tem-se tanto o estado de necessidade justificante, em que há sacrifício de bem de menor valor jurídico em prol daquele de valor superior, quanto o estado de necessidade exculpante – sacrifício de bem de igual ou maior valor jurídico, e cuja razão para a exculpação está na inexigibilidade de comportamento conforme ao direito dada à anormalidade da situação ou circunstâncias de fato. Em ambos os casos, trata-se de conflito ou colisão de direitos ou interesses. Em monografia acerca do problema dos conflitos de deveres (ou direitos), Alessandro Baratta esclarece que “o problema é, em geral (...), tratado pela moderna doutrina tedesca sob o título do estado de necessidade, em particular do estado de necessidade supralegal. Conquanto substancialmente já contido na sentença de 11 de março de 1927 (...), o conceito de estado de necessidade supralegal (übergesetzlicher 25 SCHMITT, Sobre os três tipos de pensamento jurídico, op. cit., p. 178. O instituto moderno do estado de necessidade no direito civil também se insere nesse contexto, porém, como ele se desenvolve na esteira de seu correlato jurídico-penal, é conveniente ao menos nesta sede e por ora enfatizar com primazia este último. 27 WELZEL, Hans. Derecho penal alemán. Trad. Juan Bustos Ramírez y Sergio Yánez Pérez. 4.ed. Santiago: Editorial Juridica de Chile, 2002 (11.ed. alemana, 1969), p. 212. 26 ANAIS DO V CONGRESSO BRASILEIRO DE HISTÓRIA DO DIREITO 175 Notstand) foi usado explicitamente pela primeira vez pelo Reichsgericht (Strafrecht) na sentença de 21 de fevereiro de 1928”28. Que o estado de necessidade justificante seja chamado de “supralegal” é algo no mínimo sugestivo. Mais ainda: no estado de necessidade exculpante, por outro lado, a ação necessária permanece antijurídica perante o ordenamento ao mesmo tempo em que seu agente, por sua vez, é isento de “culpa” e, consequentemente, de punição. Mas na Itália igualmente teremos a problemática da colisão de deveres no cerne da discussão sobre a necessidade, porém unicamente enquanto fator de exclusão da antijuridicidade da ação. Enrico Ferri menciona que o “estado de necessidade é uma hipótese de colisão jurídica elaborada especialmente pelos criminalistas alemães – começando com a obra de Strickius, De iure necessitatis, Halle, 1783”29. O penalista mantuano ainda esclarece que “é certo que ‘a necessidade não possui lei’ e ‘ad imposibilia nemo tenetur’; por isso, aquele que age apenas por ter sido constrangido pela necessidade a qual não lhe foi possível subtrair-se naquele momento, atua de modo legítimo e não comete delito algum”30. Giuseppe Bettiol, por sua vez, começa explicando o instituto do seguinte modo: “Necessitas legem non habet. Stato di necessità – Conforme a primeira parte do art. 54 [do Código Penal italiano] ‘não é punível quem cometeu o fato por ter sido constrangido pela necessidade de salvar a si ou outros de perigo atual de um dano grave à pessoa, perigo não voluntariamente causado, nem de outro modo evitável, sempre que o fato seja proporcional ao perigo’. Este é o estado de necessidade.”31 E, do mesmo modo, Guglielmo Sabatini: “O princípio: necessitas non habet legem, remonta ao direito canônico [Codice, 4 X de regula iuris], e é notória a definição sobre a necessidade oferecida por Strichio: vis compulsiva et cogens id facere quod aliter non faceremus [De iure necessitatis, VI, pág. 14, 5 X, pág. 27]”.32 O penalista Giuseppe Maggiore, por outro lado, questiona-se: “O que se há de entender por ‘necessidade’? Por perigo inevitável (a necessitas inevitabilis dos práticos). Mas inevitável se deve entender de modo relativo, não de modo absoluto. Por isso na legítima defesa a lei não menciona o inevitável perigo, como o faz ao tratar do estado de necessidade.”33 Ora, mas as referências feitas pelos penalistas italianos – influenciados em certa medida pelo desenvolvimento alemão do tema da colisão de direitos, como indicara Ferri – a fórmulas como necessitas legem non habet, “a necessidade faz lei”, inevitável necessidade (necessitas inevitabilis), não são precisamente aquelas que Santi Romano emprega34 para tratar de temas como o estado de sítio em face do terremoto em Messina e Regio-Calábria, a instauração de fato de um ordenamento, os limites da função legislativa, a revolução? *** 28 BARATTA, Alessandro. Antinomie giuridiche e conflitti di coscienza. Contributo alla filosofia e alla critica del diritto penale. Milano: Giuffrè, 1963, p. 11, nota 6. 29 FERRI, Enrico. Principios de derecho criminal. Trad. Jose-Arturo Rodriguez Muñoz. Madrid: Reus, 1933, p. 442. 30 Ibid., p. 432-433. 31 BETTIOL, Giuseppe. Diritto penale. 7.ed. Padova: CEDAM, 1969 (1.ed. 1945), p. 306. 32 SABATINI, Guglielmo. Istituzioni di diritto penale. Parte generale. vol. 2. 4.ed. Catania: Casa del libro, 1948, p. 108. 33 MAGGIORE, Giuseppe. Diritto penale. 5.ed. vol. 1. Bologna: Zanichelli, 1951-1952, p. 413. 34 É certo que, quanto à última locução, necessitas inevitabilis, Romano empregará, na verdade, um equivalente seu, “inelutável necessidade”. 176 O PROBLEMA DA NECESSIDADE NO PENSAMENTO DE SANTI ROMANO Santi Romano foi um dos juristas mais influentes da primeira metade do século XX. Como escrevera recentemente Paolo Grossi, “aos nossos olhos, Romano, mais do que qualquer outro jurista italiano, é aquele que se torna intérprete da (...) grande crise entre os dois séculos, com a tentativa – conseguida – de dar a esta um vulto técnico, de tentar resolvê-la utilizando as ideias, o léxico, a armadura técnica da ciência jurídica.”35 A importância de se proceder a uma investigação sobre a obra de Santi Romano e, em especial, sobre o problema da necessidade como núcleo implícito fundamental para sua estruturação, se faz sentir em toda a extensão da teoria e da história do direito, uma vez que não se trata apenas de abordar o tema em chave historiográfica – levantando dados e contextos imprescindíveis e precisos de um período ou de uma conjuntura – mas também de tratá-lo segundo suas relações com outros âmbitos do direito, seja o jurídicopolítico de Carl Schmitt, seja o jurídico-penal no que se refere ao instituto do estado de necessidade. O pensamento de Santi Romano e, especialmente, seu conceito de instituição influenciarão (ainda que numa tentativa de crítica e superação) a chamada corrente neoinstitucionalista representada pelos teóricos do direito Neil MacCormick e Ota Weinberg, surgida em meados dos anos oitenta36. Portanto, a obra e o pensamento de Romano apresentam não apenas um capítulo nada desprezível da história jurídica do início do século passado, mas continuam a exercer, mediata ou imediatamente, seus efeitos sobre a discussão e a construção da esfera do jurídico na atualidade. 35 Introdução. In ROMANO, Santi. O Ordenamento Jurídico. Trad. Arno Dal Ri Júnior. Florianópolis: Fundação Boiteux, 2008, p. 11. 36 Cf. MAcCORMICK, D. Neil e WEINBERG, Ota. An Institutional Theory of Law. New approaches to legal positivism. London: Reidel, 1986; WEINBERG, Ota. Law, Institution and Legal Politics. Fundamental Problems of Legal Theory and Social Philosophy, London: Kluwer Academic Publishers, Reidel, 1991; ______. Les théories institutionnalistes du droit. In Controverses autour de l’ontologie du droit. (org.) AMSELEK, P. et Grzegorczyk, C. Paris: PUF, 1989. ANAIS DO V CONGRESSO BRASILEIRO DE HISTÓRIA DO DIREITO 177 ESTADO E HISTÓRIA: A POLÍTICA ESTATAL COMO O OBJETO DA FILOSOFIA DA HISTÓRIA STATE AND HISTORY: THE STATE POLICY AS THE PHILOSOPHY OF HISTORY SUBJECT José de Magalhães Campos Ambrósio* Resumo: O presente ensaio tem como objetivo revistar a Filosofia da História reinserido-a no debate contemporâneo da historiografia. Enfatizaremos nossa análise em dois dos filósofos mais notáveis da Filosofia da História: Giambattista Vico e Georg Willhem Friedrch Hegel. Nos dois autores buscaremos o status epistemológico da História conjugando com duas dimensões: a Razão e a Ordem na História. Razão que se expressa na projeção humana – ser racional – na realidade em uma ambiente que propicia a congregação de horizontes de vida; Ordem que pressupõe o ambiente unificador do sentido coletivo de um povo. Ambas as dimensões, portanto, só se juntam, para os dois autores em questão, na política estatal. A História do Estado é aquela apta a ser apreendida e elevada ao plano filosófico, pois é nela que encontramos os elementos essenciais para a revelação de uma razão e sentido: 1) autores racionais, que nos permitem averiguar os fundamentos e a inteligibilidade histórica; 2) longa duração, que possibilita o pleno desenvolvimento das conseqüências do evento histórico; negatividade, que mostra o caráter não-linear e aberto do processo histórico; 3) liberdade, que torna impossível a apreensão do futuro e possibilita a atuação do individual no coletivo, construindo e reconstruindo-o; 4) O Estado existe pois é pensado pela vontade e pela criatividade humanas, sendo uma entidade plenamente cultural. Enfim, reabilitar a Filosofia da História passa pelas seguintes etapas: deve ser uma História do Estado calcada em uma historiografia rigorosa, ou seja, uma Filosofia embasada por uma Ciência. * Mestre em Direito pela Universidade Federal de Minas Gerais. Professor Assistente da Universidade Federal de Uberlândia. E-mail: [email protected] 178 ESTADO E HISTÓRIA: A POLÍTICA ESTATAL COMO O OBJETO DA FILOSOFIA DA HISTÓRIA Introdução Este é um ensaio sobre Filosofia da História do Direito e do Estado. Nas páginas que se seguem advogamos uma História perpassada com “fortes cores filosóficas” (HORTA, 2011, p. 22), isto porque, pensamos que Filosofia e História se implicam, como ensina Benedetto Croce: (...) mas história, ou, o que vem a dar no mesmo, filosofia na medida em que é história e história na medida em que é filosofia – ‘filosofia-histórica’, cujo princípio é a identidade do universal e do individual, do intelecto e da intuição, e que encara como arbitrária e ilegítima qualquer separação desses dois elementos, sendo eles na realidade um único elemento. (CROCE, 2006, p. 50-51) Se a Filosofia faz parte da história que contamos, cabe-nos mostrar em que sentido isso se realiza e que influência terá em nosso objeto de estudo. Em primeiro lugar, como premissa, não se trata de buscar a verdade na história, mas mostrar que “a história é que é verdadeira.” (AQUINO, 2007, p. 2) Para tanto, colorir o trabalho de filosofia significa perscrutar dois estatutos básicos para a História e que se correlacionam: 1) sua racionalidade e; 2) sua ordem, ou sentido. Um dos objetivos dessa introdução é esclarecer que a História possui essas duas características e que ambas se relacionam com a realidade estatal. São duas tarefas aparentemente difíceis, visto que a historiografia contemporânea condena uma história filosófica1 sem estar calcada nas premissas cientificistas que professam; postura que só demonstra o autoritarismo metodológico que nos é imposto. Uma história pode ser filosófica sem perder o rigor científico. Além disso, já está bem solidificado que o saber filosófico tem em sua base os saberes científicos, como já salientava Hegel: A relação da ciência especulativa [filosofia] com as outras ciências só existe enquanto a ciência especulativa não deixa, como de lado, o conteúdo empírico das outras, mas o reconhece e utiliza; e igualmente reconhece o universal dessas ciências – as leis, os gêneros, etc. – e o utiliza para seu próprio conteúdo; mas também, além disso, nessas categorias introduz e faz valer outras. (HEGEL, 1995, p. 49.) de modo que o desenvolvimento da Ciência Histórica estará na fundação da Filosofia da História; sendo essa totalizante, busca mais que o fio, quer toda a trama. Assim, para realizarmos nossa tarefa, buscaremos em dois dos pilares da Filosofia da História – Vico e Hegel – a estrutura do pensamento histórico e os contrastaremos com que há na historiografia contemporânea. 1 A racionalidade da História. Vamos à primeira tarefa: desvendar a racionalidade imanente à realidade histórica. Em primeiro lugar, por que a História pode ser racional se empiricamente vemos tantos acasos? A resposta é simples: ela não é obra da natureza, tem um artífice racional: o homem. É o sujeito que, na projeção do pensamento, constrói o fio do tempo: “Através de suas obras ele [o sujeito] confere a esse fluxo puramente empírico um sentido.” (VAZ, 2002, p. 304) 1 É assim que procedem os historiadores da famosas Escola de Annales, como bem afirma um dos seus expoentes atuais: “Partilho a desconfiança da maior parte dos historiadores de ofício perante essa filosofia da história tenaz e insidiosa, cuja tendência, nas suas diversas formas, é levar a explicação histórica à descoberta ou à aplicação de uma causa única e original, substituir o estudo pelas técnicas científicas de evolução das sociedades, sendo essa evolução concebida como abstração baseada no apriorismo ou num conhecimento muito sumário dos trabalhos científicos.” (LE GOFF, 2003, p. 20) ANAIS DO V CONGRESSO BRASILEIRO DE HISTÓRIA DO DIREITO 179 É por essa razão que o homem pode olhar para a História e compreendê-la, descrevê-la e criticá-la; sem o vetor racional o historiador – defronte do seu objeto de estudo – é como um cego dentro de um labirinto: tateia, tropeça, chega a encruzilhadas e se desespera por não enxergar o caminho. Só conhecemos a História porque a razão que é nela é a mesma estruturante do pensar. É num pensador italiano que encontramos uma das chaves interpretativas para a nossa compreensão: Giambattista Vico. O filósofo coloca as bases para as Ciências Humanas em geral, mas especialmente para a História. Vico advoga que somente a junção da Filosofia (ciência do verum, do verdadeiro) e da Filologia (ciência do factum, do fato) constrói o conhecimento humano. “[138] A filosofia contempla a razão, donde provém a ciência do verdadeiro; a filologia observa a autoridade do arbítrio humano, donde provém a consciência do certo. [139] Esta dignidade, na sua segunda parte, define serem filólogos os gramáticos, historiadores, críticos, que se ocuparam da cognição da línguas e dos factos dos povos, tanto em casa, como são os costumes e as leis, como fora, tal como são as guerras, as pazes, as alianças, as viagens, os comércios. [140] Esta mesma dignidade demonstra terem ficado no meio do caminho tanto filósofos, que não acertaram as suas razões com a autoridade dos filólogos, como os filólogos, que não cuidaram de certificar a sua autoridade com a razão dos filósofos; o que, se o tivessem feito, teria sido mais útil às repúblicas e ter-nos-ia prevenido o meditar desta Ciência.” (VICO, 2005, p. 110) A gnosiologia vichiana é conhecida como verum et factum convertuntur (o verdadeiro e o feito se implicam) – que, se opondo ao racionalismo cartesiano e ao empirismo inglês, afirma que o que pode ser conhecido pelo homem só pode ser aquilo criado por ele; para Vico, afirma Collingwood, “nada pode ser conhecido, a não ser que já tenha sido criado.”2 (COLLINGWOOD, 1981, p. 89) Definitivamente, para VICO, Ciências Humanas e Ciências da Natureza não poderiam partir do mesmo método. Afinal, a “verdade no mundo do homem não é estática, é dinâmica, não é descoberta, mas construída, não é consciência, mas ciência.”3 Ora, a natureza não é obra do homem, é obra de DEUS. Sendo obra do divino, somente a ele é dado seu conhecimento pleno (seu verum); ao homem fica apenas a certeza, ou seja, um saber incompleto. (VICO, 2005, p. 172) Em Vico, podemos dizer com Reale, que a verdadeira ciência é “o resultado final de um processo, de uma elaboração espiritual, em que fato e idéia se convertem reciprocamente.” (REALE, 2000, p. 115) Dentro da perspectiva do verum-factum há um conhecimento verdadeiramente apreensível pelo homem: a História, “rainha de todos os estudos dedicados à realidade e ao conhecimento do que existe no mundo” (BERLIN, 1982, p. 40), ou como afirma Vico, “a natureza das coisas não é senão o seu nascimento em certos tempos e em certas circunstâncias que, sempre que são tais, as coisas nascem tais e não outras” (VICO, 2005, p. 113) Como criador do universo histórico, o conhecimento deste pelo homem é qualitativamente idêntico ao conhecimento divino da natureza, porque é ambiente de ações livres e, “idealizando-o, recria sua própria criação, ficando assim a conhecê-lo plenamente,” (LÖWITH, 1991, p. 128) R.G. Collingwood afirma: 2 É esclarecedora a passagem de CROCE: “to know the cause is to be able to realize the thing, to deduce it from its cause and create it. In other words, it is an ideal repetition of a process which has been or is being practically performed. Cognition and action must be convertible and identical.” (CROCE, 1913, p. 5) 3 No original: “the truth attained in the world of man was not static but dynamic, not a discovery but a product, not consciousness but science. (CROCE, 1913, p. 27) 180 ESTADO E HISTÓRIA: A POLÍTICA ESTATAL COMO O OBJETO DA FILOSOFIA DA HISTÓRIA Conclui-se do princípio do verum-factum que a história – que é algo feito enfaticamente pelo espírito humano – está especialmente apta a ser objecto do conhecimento humano. Vico considera o processo histórico como um processo, através do qual os seres humanos elaboram sistemas de linguagem, costumes, leis, governos, etc.: isto é: considera a história como a história da gênese e do desenvolvimento das sociedades humanas. (COLLINGWOOD, 1981, p. 109-110) Prefaciando a edição brasileira da Ciência Nova, LucchesI ensina: O homem conhece a história. Pode figurá-la internamente. Definir a parte e o todo. Imaginar-lhe as formas. Intuir o primórdio da sociedade humana. A história como lugar em que a ciência e a consciência radicalmente se entrelaçam, supera o programa cartesiano, pois unifica o verum e o certum, conforme o método vichiano, cujo edifício repousa nas colunas da filologia e da filosofia. 4 (LUCCHESI, 1999, p. III) É assim que a História é racional. De toda forma, a projeção ideal do sujeito não fica estacionada no puro eu; para alcançar a universalidade necessária é preciso inserir a construção individual no movimento objetivo do Espírito. (VAZ, 2002, p. 304) Ou seja, é preciso que a atividade subjetiva se mostre objetivamente no plano da cultura (HEGEL, 1995, p. 275), tornando-se patrimônio apto por se desdobrar; é assim que a História é objeto privilegiado do pensar humano. Para Vico, essa História é desenvolvimento cíclico do Mundo das Nações, para Hegel, é o desdobrar do Espírito Objetivo em seu momento mais efetivo: o Estado.5 Aqui se mostra a tensão fundamental para a tessitura da História: a necessidade da participação do particular no universal. Quando o homem se descobre como Espírito6, isto é, quando idéia suprassume7 a Natureza em uma reflexão sobre si mesmo, o tempo do sujeito deixa de ser direto, linear, para ser tempo do Espírito, ou seja, História. Se for assim, nenhuma figura que o Espírito assume pode ser desprezada, por isso a necessidade do individual no sentido espiritual do termo: a consciência.8 Ela segue a mesma lógica do aparecer do Espírito; se intenciona ao mundo para conhecê-lo e exprime-o (portanto recria-o) para si. Não sendo a consciência absoluta - solus ipse - esse processo só pode ocorrer gradualmente na participação das consciências na luta pelo reconhecimento, ou seja, o caminho da consciência passa necessariamente pela intersubjetividade, isto é, pelo entrecruzamento dos horizontes dos sujeitos e funciona mais perfeitamente no nível teórico da consciência, quer dizer, quando o pensamento confere ao mundo uma totalidade de sentido apto a ser compartilhado.9 Isso significa, ao mesmo tempo, conhecer a visão de mundo de outra consciência e a consciência mesma. Tudo isso não faria o menor sentido para o trabalho se não fosse seu efeito sobre a realidade histórica. Henrique Cláudio de Lima Vaz não poderia ter dito melhor: Se o tecido mais profundo da história é urdido pela comunicação das consciências, e esta não é mais do que a captação de um sentido comum no qual os homens de 4 LUCCHESSI, Marco, Monumental afresco da história. [Prefácio]. IN: VICO, Giambattista. A ciência nova. Rio de Janeiro: Record, 1999. 5 Para todo o caminho do conceito de Espírito V. (HEGEL, 1995, vol. III) 6 É o trajeto que Hegel re-constrói na Fenomenologia. (HEGEL, 2007) 7 Suprassumir (do alemão Aufheben) na linguagem hegeliana significa suprimir conservando, indicando o próprio movimento dialético: negação-conservação-elevação. (MENESES, 2007). In: (HEGEL, 2007, p. 9) 8 “Consciência é o conceito que permite ‘definir o homem enquanto oposto ao mundo, e, por isso mesmo, relacionado dialeticamente com o mundo’. [...] Assim tentamos a compreensão dinâmica de sua essência, a compreensão do movimento mesmo em que ele é e se manifesta como ser histórico.” (VAZ, 2001, p. 247-48) 9 Os outros níveis de anteriores são: empírico, momento do puro acontecer factual em que a consciência somente capta os fragmentos do mundo; e racional, no qual a consciência estabelece conexões inteligíveis como causa e efeito. (VAZ, 2001, p. 249-251) ANAIS DO V CONGRESSO BRASILEIRO DE HISTÓRIA DO DIREITO 181 determinado grupo humano, ou que se constitui tal pela comunidade de uma mesma cultura, compreendem sua situação no mundo e se reconhecem homens dentro desta situação. (VAZ, 2001, p. 262) Está claro, portanto, que a comunicação intersubjetiva só toma forma histórica quando inserida em uma estrutura que é ao mesmo tempo delas e superior a elas: a comunidade. Recorrer a Lima Vaz é novamente necessário: Na medida em que as consciências individuais se movem dentro de um sentido global, mesmo refratando ao infinito suas linhas fundamentais, elas participam da consciência histórica da sua época (VAZ, 2001, p. 264) É nesse sentido que a consciência histórica, corporificada na comunidade e enriquecida de todos os sentidos espirituais da consciência – a arte, a religião, a filosofia como expressões absolutas; a ciência, as instituições ou mesmo a vivência difusa dos indivíduos (VAZ, 2001, p. 264) – é a razão na e da História. É razão na História quando proporciona a inteligibilidade do passado, é razão da História quando elabora a re-construção do mundo. O Ocidente só conhece um espaço espiritual capaz de 1) promover o existir empírico da consciência como tal; 2) proporcionar a comunicação das subjetividades em um ambiente cultural; 3) situar o homem no mundo e 4) projetar a consciência acima dela, tornando-a fundamento do existir histórico: o Estado. Mas o que entendemos do Estado é espiritual, é, antes de tudo, o ambiente e o efervescer de tudo o que é o homem e sua obra, ou seja, uma organização de liberdade. Defendemos que o Estado é uma realidade espiritual; por essa razão, não podemos defini-lo através de fenômenos materiais, sob pena de não apresentarmos o seu conceito. O pensamento analítico fica satisfeito quando decompomos os elementos essenciais do Estado povo, território, soberania, regras, finalidades (DALLARI, 1998, 29-41) - como se a adição de todos eles traduzisse a própria estatalidade. Na verdade, esses elementos são conseqüências da realidade histórica estatal, são as categorias existenciais do corpo espiritual que é o Estado. Nesse sentido, Georges Burdeau: Ele não é território, nem população, nem corpo de regras obrigatórias. É verdade que todos esses dados sensíveis não lhe são alheios, mas ele os transcende. Sua existência não pertence a fenomenologia tangível: é da ordem do espírito. O Estado é, no sentido pleno do termo, uma idéia. Não tendo outra realidade além da conceptual, ele só existe porque é pensado. (BURDEAU, 2005, p. X) Se o fosse da ordem factual, qualquer contingência colocaria em risco a existência estatal: um erro judicial, um ato de corrupção, a incompetência administrativa. Mas por ser da ordem do pensamento, por exprimir toda a realidade objetiva enraizada - por que não pela crença? – no indivíduo, que o “Estado dura enquanto os governos passam.” (BURDEAU, 2005, p. XIII) O Estado é a expressão objetiva da consciência de um povo. É o momento em que a vontade se torna substancial e plenamente racional; só nele é possível a unidade da “unidade e da diferença”, ou seja, ele “é o regulador da luta de que é móbil,” (BURDEAU, 2005, p. XIV) é um único poder que engloba as exigências de uma coletividade diversificada (BURDEAU, 2005, p. XV); enfim, é o que traz o ético para a vida social. Parece-nos insuperável a definição de Hegel: § 257 - O Estado é a realidade em ato da Idéia moral objetiva, o espírito como vontade substancial revelada, clara para si mesma, que se conhece e se pensa, e realiza o que sabe e porque sabe. No costume tem o Estado a sua existência imediata, na consciência de si, no saber e na atividade do indivíduo, tem a sua existência mediata, enquanto o indivíduo obtém a sua liberdade substancial ligandose ao Estado como à sua essência, como ao fim e ao produto da sua atividade. 182 ESTADO E HISTÓRIA: A POLÍTICA ESTATAL COMO O OBJETO DA FILOSOFIA DA HISTÓRIA [...] § 258 - O Estado, como realidade em ato da vontade substancial, realidade que esta adquire na consciência particular de si universalizada, é o racional em si e para si: esta unidade substancial é um fim próprio absoluto, imóvel, nele a liberdade obtém o seu valor supremo, e assim este último fim possui um direito soberano perante os indivíduos que, em serem membros do Estado, têm o seu mais elevado dever. (HEGEL, 2000, p. 216-217) Como realidade histórico-cultural que é (REALE, 2005, p. 376), a promoção estatal da substância ética de um povo toma diferentes formas ao longo do tempo que, ao mesmo tempo, procede da vontade substancial: como fato, a idéia moral existe sob a aparência de Poder (ou governo), suas funções, sua legitimidade, sua organização; como norma, o ético aparece com total verdade ao atualizar e revelar o conteúdo da eticidade estatal.10 Enfim, o Estado é uma organização de Poder posto diante de uma exigência axiológica – universalização do indivíduo, realização da liberdade, convivência das consciências - que se traduz em um sistema de normas. Só assim podemos conceber a Razão no tempo: a História sendo a História do Estado. (HEGEL, 1999, p. 39). Somente no movimento que vai do subjetivo ao objetivo e sua reflexão é que se tece a racionalidade histórica. Portanto, a História não é o caminhar unilateralizado da subjetividade ou da objetividade, é a união dialética dos dois momentos. Assim ensina-nos LIMA VAZ: A racionalidade assim definida não deve, no entanto, ser pensada como atributo extrínseco ao sujeito racional. A relação entre ambos é a da identidade na diferença, conforme o axioma ‘a verdade é o todo’. Sua diferenciação se faz no interior do todo, aqui entendido como a própria ação. A pressuposição lógica assegura a coerência fundamental da ação. A ação histórica é real enquanto racional, ]compreendendo as diferentes formas de racionalidade que constituem o corpo histórico do Espírito objetivo. A pressuposição antropológica está subjacente ao para-si da ação, ou seja, à sua refletividade na consciência do ator histórico. (VAZ, 2002, p. 204) Racionalidade da história que, por fim, revela o elemento essencialmente humano do percurso: a liberdade, que denota que tudo o que é espiritual – e na História tudo o é – é criação do homem, ou seja, nasceu do engenho do homem para si mesmo, o que incluiu, obviamente, as criações humanas que limitam ou até mesmo suprimem a liberdade. Por isso, para Croce, “a liberdade é a criadora eterna da História e ela própria é o tema de toda a História” (CROCE, 2006, p. 85), de modo que, quando falamos que a História é a história do Estado, dizemos que o próprio Estado é a forma e o conteúdo da liberdade. Acreditamos que, assim, podemos traçar as linhas gerais para uma racionalidade da História e, desta forma, passamos para o segundo momento que uma história filosófica necessita: a ordem ou sentido. 2 A ordem histórica. Se, ao construirmos a racionalidade da História, chegamos ao Estado como conclusão necessária desse status, quanto ao sentido histórico inverteremos os papéis: O Estado é premissa, só o político pode conferir ordem na História. 10 É bom ressaltar que avançamos sobre o pensamento de REALE ao integrar nesse momento da norma o pensamento de SALGADO, para quem o direito revela o melhor do conteúdo ético do momento histórico cultural de um Estado, por isso, para nós, o estudo da História do Estado não será desvinculado do Direito. V. (SALGADO, 2007, p. 10) Joaquim Carlos. A Idéia de Justiça no Mundo Contemporâneo: fundamentação e aplicação do Direito como maximum ético. Belo Horizonte: Del Rey, 2007, p. 10. ANAIS DO V CONGRESSO BRASILEIRO DE HISTÓRIA DO DIREITO 183 Por essa razão, quando o historiador busca a história da cultura material, das mentalidades, do homem natural, do imaginário, o que de resto faz a escola de annales ( LE GOFF, 2005); não pode denotar um sentido nem – como pretendem ser – uma totalidade.11 Ora, o status de totalidade só pode ser dado pelo pensamento unificador da realidade; quando se compartimenta a História em várias frentes, o que encontramos, no máximo, é uma história enciclopédica contada em migalhas (DOSSE, 2003) que, na verdade, nada mais é do que a justaposição dos fragmentos.12 Isso não significa que esse tipo de escrita – dita historiográfica – seja inútil, por certo que não, ela é mesmo necessária; no entanto, a historiografia ligada a esse tipo de concepção revela tanto uma racionalidade quanto uma ordem precárias na história, carentes, portanto, de uma filosofia unificadora – ou até mesmo de um ambiente unificador. A conseqüência extrema desse tipo de historiografia é a conclusão de que o acaso reina no tempo. Afinal, a apresentação de uma multidão de fatos esparsos no tempo, fragmentados, estéreis e sem aparentes razões, pode levar uma mente mais desavisada à conclusão de que a História é uma sucessão de eventos no tempo.13 No entanto, nem a historiografia cética (mas séria) a uma filosofia da história admite tamanha aberração. (LE GOFF, 2006, p. 44-46) A ordem na História é uma exigência que vem, em primeiro lugar, do caráter racional que ela possui e do qual já falamos. O primeiro erro é justamente a historiografia do evento; o evento é tão interessante quanto superficial; sem suas complexas conexões com o antes e com o depois, torna-se completamente sem sentido.14 A verdadeira realidade histórica é aquela contada na longa duração; só nela a força do pensamento pode penetrar e produzir resultados. Assim, a história vai além da vida tal como vivida, a fim de apresentá-la sob a forma de conhecimento. (CROCE, 2006, p. 29) 11 “Toda forma de história nova é uma tentativa de história total” (LE GOFF, 2005 p. 34) 12 Ao se dirigir para além da conclusão de DOSSE, JOSÉ CARLOS REIS analisa o processo de construção de annales para afirmar que sua terceira geração pulveriza totalmente o conhecimento histórico. (REIS, 1999, p. 7686) Para resumir as fases de Annales com BURKE: “Esse movimento pode ser dividido em três fases. Em sua primeira fase, de 1920 a 1945, caracterizou-se por ser pequeno, radical e subversivo, conduzindo uma guerra de guerrilhas contra a história tradicional, a história política e a história dos eventos. Depois da Segunda Guerra Mundial, os rebeldes apoderaram-se do establishment histórico. Essa segunda fase do movimento, que mais se aproxima verdadeiramente de uma ‘escola’, com conceitos diferentes (particularmente estrutura e conjuntura) e novos métodos (especialmente a ‘história serial’ das mudanças na longa duração), foi dominada pela presença de Fernand Braudel. Na história do movimento, uma terceira fase se inicia por volta de 1968. É profundamente marcada pela fragmentação. A influência do movimento, especialmente na França, já era tão grande que perdera muito das especificidades anteriores. Era uma ‘escola’ unificada apenas aos olhos de seus admiradores externos e seus críticos domésticos, que perseveravam em reprovar-lhe a pouca importância atribuída à política e à história dos eventos. Nos últimos vinte anos, porém, alguns membros do grupo transferiram-se da história socioeconômica para a sociocultural, enquanto outros estão redescobrindo a história política e mesmo a narrativa.” (BURKE, 1997, p. 12-3) 13 É o que pensa o historiador PAUL VEYNE: “A História é uma narrativa de eventos: todo o resto resulta disso.; O campo da História é, pois, inteiramente indeterminado, com uma única exceção: é preciso que tudo o que nele se inclua tenha, realmente, acontecido. [...] uma página da Revolução francesa tem uma trama suficientemente cerrada para que a lógica dos acontecimentos seja compreensível e para que um Maquiavel ou um Trotsky tivessem podido tirar dela toda a arte da política; Uma vez que causa superficial não significa causa menos eficaz que outra, não se pode descobrir grandes linhas de evolução. [...] Compreender a história não consiste, pois, em saber discernir grandes correntes submarinas por baixo da agitação superficial: a História não tem profundezas.” (VEYNE, 2008, p. 18; 25; 93) 14 Esse é o plano A da historiografia de acordo com BRAUDEL: “Um plano A, o da história tradicional, da narração habitual, que passa rapidamente de um acontecimento ao acontecimento seguinte, como o cronista de ontem ou o repórter de hoje. Mil imagens são assim apreendidas ao vivo em compõem logo uma história multicor, tão rica de peripécias quanto um romance de aventuras. Contudo, apagada logo depois de lida, essa história nos deixa com muita freqüência insatisfeitos, incapazes de julgar ou de compreender.” BRAUDEL,2004, p. 31) 184 ESTADO E HISTÓRIA: A POLÍTICA ESTATAL COMO O OBJETO DA FILOSOFIA DA HISTÓRIA Dessa maneira, explica Fernand Braudel, é possível reconhecer aquilo que permanece, o que penetra na espessura da História: Os movimentos artificiais de que falávamos há pouco, os acontecimentos e os próprios homens apagam-se então aos nossos olhos, enquanto se destacam grandes permanências ou semipermanências, ao mesmo tempo conscientes e inconscientes. São os ‘fundamentos’, ou melhor, as ‘estruturas’ das civilizações. [...] Só aqueles a quem pertence a duração e que se confundem com uma realidade longamente vivida contam na grande história da civilização. Assim se encontram, para lá de uma história familiar, como em transparência, as coordenadas secretas do longo tempo para o qual precisamos agora nos dirigir. (BRAUDEL, 2004, p. 48) A longa duração é ideal para a escrita da filosofia-história; em primeiro lugar, porque nos permite compreender como o passado constrói o presente; o tempo longo faz com que o pensamento consiga promover a vitalidade do antes no agora, deixando claro ao homem o que ele acumulou no decorrer de muitos anos, o que faz Croce afirmar que “toda história é história contemporânea.” (CROCE, 2006, p. 30) Isso significa dizer que todo historiador parte do presente, de alguma realidade atual do pensamento, para compreendê-lo em uma perspectiva histórica. Em segundo lugar porque torna possível aquela necessária conciliação entre o universal e o particular da qual já falamos, ou seja, somente com o horizonte histórico alargado é que é possível perceber a dialética imanente no tempo; aí sim, vê-se com clareza o trabalho do negativo. O negativo é o que impele o processo histórico para frente e permite que o evento irradie uma série de outros processos que proporciona a abertura do momento finito ao horizonte infinito de realizações históricas (HEGEL, 1995, p. 163); “é o ácido corrosivo de toda fixidez.” (SANTOS, 2007, p.80) Isso implica dizer que em todo evento subsiste uma racionalidade latente (em-si) que só se revela posteriormente (para-si) e, assim, podendo ser compreendida pelo pensamento em sua plenitude (em-si e para-si). Ensina-nos Hegel: (...) percebemos que, na história universal, resulta das ações humanas algo além do que foi intencionado. Por meio de suas ações os seres humanos conseguem o que querem de imediato. Porém, ao concretizar os seus interesses, eles realizam algo mais abrangente. (HEGEL, 1995, p. 31) E mais à frente, ao falar das ações individuais: O interesse particular da paixão é, portanto, inseparável da participação do universal, pois é também da atividade do particular e de sua negação que resulta o universal. É o particular que se desgasta em conflitos, sendo em parte destruído. Não é a idéia geral que se expõe ao perigo na oposição e na luta. Ela se mantém intocável e ilesa na retaguarda. A isso se deve chamar astúcia da razão: deixar que as paixões atuem por si mesmas, manifestando-se na realidade, experimentando perdas e sofrendo danos, pois esse é o fenômeno no qual uma parte é nula e a outra afirmativa. O particular geralmente é ínfimo perante o universal, os indivíduos são sacrificados e abandonados. A idéia recompensa o tributo da existência e da transitoriedade, não por ela própria, mas pelas paixões dos indivíduos. (HEGEL, 1999, p. 35) Assim o pensamento histórico-filosófico de longa duração precisa voltar ao começo para salvar a contingência e elevá-la ao patamar de necessidade. Assim, o negativocontingencial acontece ao mesmo tempo em que desvanece, dando lugar ao positivo que irrompe reiniciando o processo dialético. O momento particular isolado nunca conduz à verdade histórica. (SANTOS, 2007, p. 42) ANAIS DO V CONGRESSO BRASILEIRO DE HISTÓRIA DO DIREITO 185 Ainda nesse sentido, através de um espectro histórico amplo, é possível percebermos melhor a relação do passado e presente, a fim de concebermos que o fim já estava no começo da história; o pensamento dialético permite conceber uma cumulatividade de compreensão para percebermos que nosso tempo desenvolve a racionalidade precária dos tempos passados. O segundo erro do historiador é procurar uma ordem querida por ele que, se não encontrada, conduz ao inevitável juízo negativo do evento histórico, absolutizando a desordem. Henri Bergson, ao tratar da dicotomia ordem/desordem traz uma interessante reflexão: E é incontestável que, comumente, quando falamos de desordem, pensamos em algo. Mas em que pensamos? Veremos o quanto é difícil determinar o conteúdo de uma idéia negativa e a que ilusões se é exposto, em que inextricáveis dificuldades a filosofia cai por esse exame não ter sido empreendido. Dificuldades e ilusões prendem-se normalmente ao fato de aceitarmos como definitivo um modo de exprimir essencialmente provisório. Prendem-se ao fato de transportarmos para o domínio da especulação um procedimento feito para a prática. Se escolho, ao acaso, um volume em minha biblioteca, posso, após tê-lo espiado, recolocá-lo na prateleira dizendo: ’não são versos’. Seria realmente o que eu percebi ao folhear o livro? Não, evidentemente. Eu não vi, não verei nunca a ausência de versos. Vi prosa. Mas como é poesia que eu desejo, exprimo o que eu encontro em função daquilo que eu procuro e, em vez de dizer ‘eis prosa’, digo ‘não são versos’. De modo inverso, se me vem a cisma de ler prosa e me deparo com um volume de versos, me exclamarei: ‘não é prosa’, traduzindo assim os dados da minha percepção, que me mostra versos, na língua de minha expectativa e de minha atenção, que estão fixadas na idéia de prosa e só querem ouvir falar dela. (BERGSON, 2005, p. 241-42) A realidade não se dobra ao medo do entendimento15 em enfrentar o negativo, assim, novamente com Hegel: O espírito só alcança sua verdade na medida em que se encontra a si mesmo no dilaceramento absoluto. Ele não é essa potência como o positivo que se afasta do negativo – como ao dizer de alguma coisa que é nula ou falsa, liquidamos com ela e passamos outro assunto. Ao contrário, o espírito é essa potência enquanto encara diretamente o negativo e se demora junto dele. Esse demorar-se é o poder mágico que converte o negativo em ser. (HEGEL, 2007, p. 44) O terceiro erro é considerar que a ordem seria dada por um a priori (provavelmente escatológico) situado fora do processo histórico que o conduz a um destino infalível e predeterminado; como é inverificável, é inverídico.16 A primeira resposta que damos a isso é que se existe um a priori conduzindo a História, é ele próprio construído no tempo; a segunda, mais substancial, mostra que a condução do processo histórico só pode ter uma fonte: a liberdade. Lembremos que essa liberdade não é licença, arbítrio, mas além e incluindo isso, liberdade organizada na comunidade que, por ser dialética, inquieta-se para desenvolver novas formas da liberdade, impossibilitando sua previsibilidade. Com o princípio do Espírito livre, portanto, uma filosofia-história não faz previsão do futuro, nem coloca uma meta a atingir: a meta é o próprio processo de permanente criatividade. (BERGSON, 2007, p. 260) Assim, desaguamos no quarto erro, qual seja o de associar o conceito de ordem a um necessário automatismo histórico, caindo no velho erro do entendimento que procura efeitos 15 Entendimento é um momento da Razão que mantém fixas as diferenciações da realidade, produzindo separações irreconciliáveis. No campo histórico, o entendimento não consegue captar a mobilidade-contínuidade da totalidade histórica. (HEGEL, 1995,p. 159-162) 16 É o que defende KARL LÖWITH, ao afirmar que “a filosofia da história está, no entanto, na total dependência da teologia da história, em particular do conceito teológico na história como um história de realização e salvação.” (LÖWITH, 1991, p.15) 186 ESTADO E HISTÓRIA: A POLÍTICA ESTATAL COMO O OBJETO DA FILOSOFIA DA HISTÓRIA únicos para causas fixas17; obviamente a História não funciona assim. A ordem da história, dentro da visão previamente expressa, é uma ordem que tem sua origem na vontade que projeta o futuro no presente. (HEGEL, 1999, p. 27) A política é mais uma vez chamada para integrar a projeção da vontade; de um lado, ela reúne a tradição inteligível (ethos)18 de um povo; (VAZ, 2002, p. 252) de outro, ela é chamada a liderar o próprio processo histórico por força da sua racionalidade essencialmente teleológica, ou seja, direcionada a um fim. (VAZ, 2002, p. 253) No entanto, a ordem voluntária é tortuosa, enfrenta imensas dificuldades, sofre o trabalho do negativo e passa pelo árduo reconhecimento. O encontro de consciências que projeta razão e ordem na história não é um momento de celebração feliz (HEGEL, 1999, p. 30). Ensina Lima Vaz: Vê-se que na dialética da comunicação das consciências pela mediação do mundo não permite conceber a história e o seu desenrolar nem segundo o modelo linear da sucessão dos fenômenos naturais, nem como o desenvolvimento necessário de uma Idéia na série de suas implicações. O encontro das consciências pela mediação do mundo é também afrontamento, uma luta pelo reconhecimento. (VAZ, 2001, p. 258259) Salgado (1996, p. 255-267) afirma que o reconhecimento possui dois elementos: a luta e o trabalho. O momento da luta é aquele em que é posta a desigualdade das consciências, pois uma não se reduz a ser objeto da outra; assim elas iniciam uma luta de vida e de morte pelo reconhecimento recíproco do status de livre. O momento do trabalho é o médio posterior desse reconhecimento em que uma das consciências subjuga a outra e atua no mundo através dela; a conseqüência disso é que a consciência subjugada mira sua liberdade perdida naquela que a oprime e quer ser reconhecida como igual, negando a sua negação de liberdade. Esse desenrolar só será suprassumido em um ambiente que propicie a universalização do indivíduo: o Estado.19 Aqui podemos concluir sobre a possibilidade de ordem na História: a longa duração que torna clara os elementos racionais, dialéticos, criativos e voluntários do processo histórico em um ambiente unificador que é o Estado. Ao fazer a História do Estado, já se parte do todo mas que, por exigência filosófica, pressupõe a parte. Ora, como afirma René Remond ao reivindicar a importância da história política: “O político é o lugar de gestão da sociedade global, ele dirige em parte as outras atividades, define seu status, regulamenta seu exercício. [...] é o ponto para onde conflui a maioria das atividades e que recapitula os outros componentes do conjunto social.” (RÉMOND, 2003, p. 447) Conclusão Concluímos, portanto, que uma história que ao mesmo tempo é filosofia só pode ter como conteúdo a sociedade política organizada no Estado. Isto porque o Estado exerce uma força gravitacional de todas as práticas, tensões, valores e normas que existem em uma determinada sociedade. Tudo apto a ser racionalizado e 17 Explica que BERGSON que se queremos ordem automática, que busquemos no mundo físico. (BERGSON, 2007, p 253) 18 Ethos é a palavra grega que indica a morada do homem (com eta inicial) que nunca é dado ao homem e sim construído por ele; em outro sentido, ethos (com épsilon inicial) que significa costume do momento histórico social de um povo. (VAZ, 2004, p. 12-15) 19 Salgado afirma que esse é mesmo o “começo exterior e fenomenal dos Estados, mas não do seu princípio substancial.” (SALGADO, 1996, p. 267.) ANAIS DO V CONGRESSO BRASILEIRO DE HISTÓRIA DO DIREITO 187 ordenado converge, é avaliado, absorvido ou eliminado e posto a prova no âmbito estatal para sobreviver ao decurso do tempo Assim, a História do Estado não se faz separada da história do seu povo; é o próprio devir da consciência que um povo vai tomando de si mesmo, sem nunca se concluir ou satisfazer. Referências AQUINO, Marcelo Fernandes de. Apresentação. In: SANTOS, José Henrique. O Trabalho do Negativo; Ensaios sobre a Fenomenologia do Espírito. São Paulo: Edições Loyola, 2007. BERGSON, Henri. Evolução Criadora. Trad. Bento Prado. São Paulo: Martins Fontes, 2005. BERLIN, Isaiah. Vico e Herder. Brasília: Editora UNB, 1982. BRAUDEL, Fernand. Gramática das Civilizações. 3ª ed. Trad. Antonio de Pádua Danesi. São Paulo: Martins Fontes, 2004. BURKE, Peter. A Escola dos Annales (1929-1989): a Revolução Francesa da historiografia. Trad. Nilo Odalia. São Paulo: UNESP, 1997. COLLINGWOOD, R.G. A Idéia de História. 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Ciência Nova. Trad. Jorge Vaz de Carvalho. Lisboa: Fundação Calouste Gulbenkian, 2005. ANAIS DO V CONGRESSO BRASILEIRO DE HISTÓRIA DO DIREITO 189 A ESCOLA HISTÓRICA DO DIREITO: AS DUAS PRIMEIRAS DÉCADAS DO SÉCULO XIX E AS PONDERAÇÕES DE SAVIGNY SOBRE O JUSRACIONALISMO HISTORICISTA LAW HISTORICAL SCHOOL: THE FIRST TWO DECADES OF NINETEENTH CENTURY AND THE WEIGHTINGS OF SAVIGNY ON HISTORICIST JUSRATIONALISM Luiz Henrique Maisonnett* Resumo: As duas primeiras décadas do século XIX foram fortemente marcadas pelas ponderações de Savigny sobre o racionalismo iluminista e pela conseqüente criação da Escola Histórica do Direito. A ordem natural, ligada a idéia de direito natural, passara, com as críticas iluministas do século XVIII, a ter sua origem considerada ligada à razão. Foi uma transição de uma crença em um direito natural de origem divina, que dominou a Idade Média, para uma crença em um direito natural de origem racional. Esse historicismo antiiluminista, típico do início do século XIX, adquiriu especial evidência com o desenvolvimento da escola histórica, que redirecionou os esforços dos juristas germânicos para o estudo dos textos romanos e dos direitos consuetudinários. Esta nova maneira marcará uma grande ruptura metodológica na história do direito na Alemanha no final do século XIX e início do XX e que se espalhará por diversos outros países. Palavras-chave: Racionalismo iluminista; historicismo; Escola Histórica do Direito. * Professor titular de História do Direito e Direito Internacional da Universidade Comunitária da Região de Chapecó-UNOCHAPECÓ. Especialista em Direito Constitucional pela Universidade do Sul de Santa Catarina – UNISUL e Mestre em Direito pela Universidade Federal de Santa Catarina – UFSC, sob orientação do Prof. Dr. Arno Dal Ri Junior. E-mail: [email protected] 190 A ESCOLA HISTÓRICA DO DIREITO: AS DUAS PRIMEIRAS DÉCADAS DO SÉCULO XIX E AS PONDERAÇÕES DE SAVIGNY SOBRE O JUSRACIONALISMO HISTORICISTA Introdução O presente estudo tem como objetivo analisar as duas primeiras décadas do século XIX e as ponderações de Savigny sobre o racionalismo iluminista e a conseqüente criação da Escola Histórica do Direito. No mundo contemporâneo se torna imprescindível analisar alguns aspetos históricos da evolução das ciências jurídicas, bem como seu amadurecimento e a contribuição que alguns juristas de grande conhecimento, como Savigny, deram para essa processo. O objetivo desse estudo foi analisar quais foram as ponderações de Savingy sobre o direito presente das duas primeiras décadas do século XIX e qual foi o motivo ou impulso para a criação da Escola Histórica, bem como, como esta contribuiu para a formação do direito contemporâneo. A Escola Histórica do Direito Até quase o final do século XIX, a Alemanha e a Itália, nações que ocupavam lugares centrais no panorama do saber jurídico europeu, não conheciam a figura de um Estado nacional. Apesar da privação de identidade política, a consciência nacional manifestou-se de forma mais intensa e marcou fortemente todas as áreas da cultura, reagindo contra a ideia de que o “Estado” e seu direito codificado pudessem ser a única forma de manifestar a identidade política e jurídica de uma nação. Até então, a cultura ocidental pautava-se na certeza da existência de duas ordens jurídicas: uma natural e outra positiva. A ordem natural, ligada a idéia de direito natural, passara, com as críticas iluministas do século XVIII, a ter sua origem considerada ligada à razão. Foi uma transição de uma crença em um direito natural de origem divina, que dominou a Idade Média, para uma crença em um direito natural de origem racional. Mas esta ciência jurídica profundamente jusracionalista, apoiada no racionalismo kantiano1, vai ter seu caráter 1 Quando o homem do renascimento produziu uma inversão antropocêntrica na compreensão do mundo, vendoo a partir de si mesmo, e não mais a partir de Deus, o tratamento do problema da justiça sofreu uma marcante inflexão. A concepção do jusnaturalismo teológico foi, gradativamente, substituída, a partir do século XVII, em face do processo de secularização da vida social, por uma doutrina jusnaturalista subjetiva e racional, buscando seus fundamentos na identidade de uma razão humana universal. O jusnaturalismo racionalista consolida-se com o advento da ilustração, despontando a razão humana como um código de ética universal e pressupondo um ser humano único em todo o tempo e em todo espaço. Os iluministas acreditavam, assim, que a racionalidade humana, diferentemente da providência divina, poderia ordenar a natureza e vida social. Este movimento jusnaturalista, de base antropocêntrica, utilizou a idéia de uma razão humana universal para afirmar direitos naturais ou inatos, titularizados por todo e qualquer indivíduo, cuja observância obrigatória poderia ser imposta até mesmo ao Estado, sob pena do direito positivo corporificar a injustiça. É com a obra de Kant que a proposta de racionalização do jusnaturalismo atinge um maior grau de profundidade e sofisticação intelectual. O criticismo transcendental de Emmanuel Kant procura conciliar o empirismo e o idealismo, redundando num racionalismo que reorienta os rumos da filosofia moderna e contemporânea. Para ele, o conhecimento só é possível a partir da interação a experiência e as condições formais da razão. Promove uma verdadeira revolução copernicana na teoria do conhecimento, ao valorizar a figura do sujeito cognoscente, o que nos ajuda a compreender sua discussão ética. Kant preocupa-se em fundamentar a prática moral não na pura experiência, mas em uma lei inerente à racionalidade universal humana, o chamado imperativo categórico – age só, segundo uma máxima tal, que possas querer, ao mesmo tempo, que se torne uma máxima universal. Aqui a razão prática é legisladora de si, definindo os limites da ação e da conduta humana. O imperativo categórico é único, absoluto e não deriva da experiência. A ética é, portanto, o compromisso de seguir o próprio preceito ético fundamental, e pelo fato de segui-lo em si e por si. O homem que age moralmente deverá fazê-lo, não porque visa à realização de qualquer outro algo, mas pelo simples fato de colocar-se de acordo com a máxima do imperativo categórico. O agir livre é o agir moral. O agir moral é o agir de acordo com o dever. O agir de acordo com o dever é fazer de sua lei subjetiva um princípio de legislação universal, a ser inscrita em toda a natureza. Sendo assim, revela-se a preocupação kantiana de superar o plano empírico no qual se defrontavam tais contrastes, a fim de atingir uma regra de justiça de validade universal. Algo de novo surgia, com Kant, na dramaturgia da justiça, alçando-se ele ANAIS DO V CONGRESSO BRASILEIRO DE HISTÓRIA DO DIREITO 191 científico duramente contestado especialmente durante as duas primeiras décadas do século XIX, pois, ao invés de normas racionais universais, cada vez mais o que se via era a fragilidade de normas que mudavam a cada novo governo ou ante a presença de cada novo interesse. Esse historicismo anti-iluminista, típico do início do século XIX, adquiriu especial evidência com o desenvolvimento da escola histórica de Gustav Hugo (1764-1844), que redirecionou os esforços dos juristas germânicos para o estudo dos textos romanos e dos direitos consuetudinários. (HESPANHA, 1998, p. 179 e ss.) Em seus fundamentos inaugurais, o historicismo via o direito como produto da cultura de cada nação, um direito orgânico, vivo e sempre em evolução, de modo que ele nasce avesso a qualquer codificação, uma vez que via nos códigos uma espécie de mortalha jurídica. (DEL VECCHIO, 1959, p. 209) Com a valorização das formas tradicionais e espontâneas de organização política, presentes na tradição nacional (HESPANHA, 1998, p. 181), a Escola Histórica do Direito, tendo como seu principal representante Friedrich Karl von Savigny (1779-1861), professor da Universidade de Berlim, enfatizando a necessidade de se conhecer o direito do passado para que se pudesse buscar a tradição jurídica de cada povo como base de sustentação e justificativa de um direito próprio de cada nação. Tal pensamento foi manifestado pela primeira vez em uma disputa doutrinal travada com o professor de Direito Romano da Universidade de Heidelberg, Anton Friedrich Justus Thibaut (1772-1840), que ficou conhecida na Alemanha como disputa sobre codificação, em alemão Kodifikationsstreit. O movimento pela codificação, de inspiração abertamente iluminista, marca o período de transição para o século XIX, propondo a positivação do direito natural através de um código posto pelo Estado, representante de um direito universal. Rejeita, assim, o direito consuetudinário, por ter como base o irracionalismo da tradição, contrário aos princípios da civilização. Sustentado num racionalismo extremado, este pensamento foi plenamente recebido pela escola da exegese francesa, e cristalizou-se através do Código Napoleônico, cuja influência se fará presente em praticamente todos os movimentos codificadores dos demais Estados ocidentais. A Alemanha foi um dos países europeus que mais tardiamente formulou um Código Civil, em razão não apenas do ambiente cultural existente, mas também devido à sua fragmentação territorial. A sua situação político-social era obviamente bem diversa da francesa, de modo que a defesa de princípios como o da igualdade formal entre todos os cidadãos, era uma postura bastante inovadora para uma sociedade que ainda manifestava características feudalistas, como a distinção da população entre nobreza, burguesia e campesinato. Destarte, a proposta de se criar um direito único, inspirado nos moldes do Código de Napoleão, irá gerar inúmeras controvérsias entre os alemães, tendo como exemplo o debate entre Thibaut e Savigny. ao plano transcendental, no qual a justiça se impõe como um imperativo da razão, segundo duas regras que se complementam: age de modo a tratar a humanidade, na sua como na pessoa de outrem, sempre como fim, jamais como simples meio, bem como age segundo uma máxima que possa valer ao mesmo tempo como lei de sentido universal. Somente assim, a seu ver, poderá haver um acordo universal de liberdade, base de uma comunidade universal. Não cuida Kant de definir a justiça, ao contrário do que faz com o direito, preferindo inseri-la no sistema de sua visão transcendental da vida ética, o que vem, mais uma vez, confirmar a tese de que a justiça somente pode ser compreendida em uma visão abrangente de valor universal. Deste modo, com o jusnaturalismo racionalista moderno, o conhecimento jurídico passa a ser um construído sistemático da razão, conforme o rigor lógico da dedução, e um instrumento de crítica da realidade, ao permitir a avaliação crítica do direito posto em nome de padrões éticos contidos em princípios reconhecidos pela razão humana. SOARES, Ricardo Maurício Freire. Reflexões sobre o jusnaturalismo: o direito natural como direito justo. Disponível em: <http://www.scribd.com/doc/70599770/Reflexoes-Sobre-o-Jusnaturalismo> Acesso em: 12 abr. 2011 192 A ESCOLA HISTÓRICA DO DIREITO: AS DUAS PRIMEIRAS DÉCADAS DO SÉCULO XIX E AS PONDERAÇÕES DE SAVIGNY SOBRE O JUSRACIONALISMO HISTORICISTA Thibaut defendia acodificação, alegando que a positivação permitiria superar a confusão de conceitos e as obscuridades presentes no direito alemão. Alegava ainda, que tal ordenação sistemática configuraria um passo decisivo para a futura unificação da Alemanha, de forma que suas vantagens seriam não apenas jurídicas, mas também políticas. Savigny compartilhava com os defensores da codificação a exigência de formular-se um direito mais sistemático para por ordem ao caos jurídico, todavia, Savigny afirmava que as condições político-culturais da Alemanha não eram propícias ao desenvolvimento de uma codificação, de modo que a melhor solução para sanar tais defeitos estaria na própria ciência do Direito: Eu recolho agora, em suma, os pontos em que minha opinião concorda com a defesa de um código, e pontos de discordância. Em ordem andam juntos: queremos o fundamento de um direito não duvidoso, a salvo da usurpação do arbítrio, do assaltado da injustiça, este direito igualmente comum a toda a nação, e a concentração de esforços científicos da lei. Para este fim, eles querem um código, que, no entanto, apenas causaria a unidade esperada para a metade da Alemanha , enquanto a outra metade seria cada vez mais separada. Para mim, vejo uma meia verdade em uma organizada e progressiva ciência do direito, a qual pode ser comum 2 à nação inteira. (SAVIGNY, 1968, p. 201-202) Por meio da escola histórica, a teoria alemã ergueu-se contra a concepção naturalista e legalista que lhe buscava suprimir toda relevância e ofereceu como resposta um imenso desprezo pela lei, a tal ponto que o código prussiano passou a ser quase ignorado enquanto fonte do direito, embora ele tenha sido vigente durante praticamente todo o século XIX. (WIEACKER, 1960, p. 380) Conforme afirma Bobbio, a escola histórica do Direito é, portanto, eminentemente antiracionalista, opondo-se à filosofia iluminista através de uma dessacralização do direito natural. (BOBBIO, 1999, p. 45) Impulsionado pelas teorias de Hegel, que insistia no fato de que o sujeito da história eram os indivíduos, Savigny e sua escola foram os primeiros a criarem, no plano das idéias jurídicas, uma consistente refutação do direito natural. A escola histórica apresenta-se como reação à escola do direito natural racional, como ficou conhecida a corrente iluminista. Savigny discorda do racionalismo kantiano e nega a existência autônoma do Direito (BARCHET, 1996, p. 44) ao mesmo tempo em que refuta a crítica que afirma ser a validade do direito mero apêndice da vontade do legislador. Para Savigny o direito encontra sua legitimação na história. Note-se que Savigny não ataca o racionalismo em si, mas sim uma determinada espécie dele, o racionalismo jusnatural iluminista do século XVIII. Ele duela contra aquele racionalismo buscando um outro racionalismo ou, uma outra base racional para o direito. Savigny passa então a apontar para a historicidade como resposta à contestação da cientificidade do direito, surgindo então um jusracionalismo historicista. Este historicismo jurídico ou jusracionalismo historicista vem mudar as bases do racionalismo jurídico, até mesmo porque já não era fácil sustentar o caráter científico de uma ciência cujas regras podiam ser modificadas por uma simples expressão da vontade do 2 Raccolgo ora, in breve, i punti, sui quali la mia opinione s’accorda con quella de’caldeggiatori di un codice, e i punti su cui discordamo. Nello scopo andiamo di concerto: noi vogliamo il fondamento di un diritto non dubbio, sicuro dalle usurpazioni dell’arbitrio, e dagli assalti dell’ingiustizia, questo diritto egualmente comune a tutta la nazione, e la concentrazione degli sforzi scientifici di lei. Per questo scopo essi desiderano un codice, il quale però a una metà soltano della Germania arrecherebbe la bramata unità; chè l’altra metà resterebbe vieppiù separata. Per me, io veggo il verace mezzo in un’ organizzata progressiva scienza di diritto, la quale può esser comune all’ intera nazione. ANAIS DO V CONGRESSO BRASILEIRO DE HISTÓRIA DO DIREITO 193 legislador ou capricho do governante. Deste modo o direito socorre-se da história para reafirmar seu ameaçado status de ciência. Para os adeptos da visão histórica, o direito não decorre de uma razão universal válida para todo o gênero humano e expressa através de codificações gerais aplicáveis em todos os países e épocas. Segundo esta escola, a evolução histórica é determinada pela presença do espírito do povo, em alemão o Volksgeist, ou a opinião da nação, conhecida como Meinung der Natioti. O Volksgeist marca todas as manifestações de uma nação, encontrando-se também na origem do sistema jurídico. Ao invés de indagar o que deveria ser o direito, esta corrente dedicou-se a estudar a sua formação na sociedade. Enquanto produto histórico, o direito foi relacionado com a idéia de nacionalidade e com as particularidades de cada povo. Assim sendo, os representantes desta escola rejeitaram as tentativas de uma codificação do direito segundo modelos racionais, considerados muitas vezes como artificiais. Na opinião de Savigny, o espírito do povo revelase através do direito costumeiro, dos trabalhos de intelectuais nacionais que se dedicam a estudar as raízes do direito e sistematizam as suas tendências, e, finalmente, através de obras literárias, que exprimem e preservam o espírito popular. Como bem aponta Lima, é conquista definitiva da Escola Histórica a noção de caráter social dos fenômenos jurídicos, com seus dois elementos essenciais: continuidade e transformação. A escola mostrou que os fundamentos do direito se encontram na vida social. Eram esses fundamentos que as teorias precedentes iam buscar na razão. (LIMA, 1996, p. 276) Nessa época, Savigny sustentava que o direito era uma ciência que se deveria elaborar histórica e filosoficamente. A esses dois termos, porém, atribuía um significado muito diverso do que eles têm no discurso atual. Ao afirmar que o direito deveria ser filosófico, não queria Savigny dizer que o direito deveria subordinar-se às noções filosóficas de justiça nem se ater ao jusnaturalismo dominante, mas simplesmente que a ciência jurídica deveria ser elaborada de forma sistemática, por meio de conceitos organizados, constituindo um campo de conhecimentos com unidade e organicidade. Portanto, o conhecimento do direito não poderia reduzir-se a uma mera exposição fragmentária do sentido das normas, mas deveria ser capaz de organizar sistematicamente todos os conceitos jurídicos. Quanto ao elemento histórico da ciência jurídica, Savigny não o assinalava para indicar a relatividade de toda construção jurídica nem a necessidade de que os juízes adaptassem o sentido das normas à realidade histórica de seu tempo, ao contrário, a afirmação de historicidade era um elemento na busca de uma interpretação objetiva, historicamente determinada pelo momento em que a lei havia sido elaborada. Não se tratava, pois, de um historicismo atualizador ou prospectivo, mas de um historicismo retrospectivo e conservador, que ligava o direito às raízes históricas de sua criação, impedindo as tentativas de adaptar as soluções jurídicas às condições históricas do momento da aplicação do direito. Esse caráter conservador das idéias historicistas de Savigny, que se opunha firmemente às inovações trazidas pela Revolução Francesa e pelo Code civil, é essencial para a compreensão de sua teoria, na qual o elemento histórico funcionava como um critério que poderia dar maior objetividade à aplicação do direito. Para, Savigny, o Estado era fruto da necessidade humana de haver um limite para a arbitrariedade de uns contra os outros, limite este que deveria ser estabelecido pela lei do Estado, por isso, entendia que os juízes deveriam interferir nos conflitos como terceiros imparciais, para determinar em que limite as liberdades de uns cederiam às liberdades dos outros e, para evitar que os juízes agissem de forma arbitrária, 194 A ESCOLA HISTÓRICA DO DIREITO: AS DUAS PRIMEIRAS DÉCADAS DO SÉCULO XIX E AS PONDERAÇÕES DE SAVIGNY SOBRE O JUSRACIONALISMO HISTORICISTA [...] seria melhor que existisse algo totalmente objetivo, algo de todo independente e distante de toda convicção individual: a lei. [...] A lei deveria, pois, ser completamente objetiva, conforme sua finalidade original, isto é, tão perfeita que quem a aplique não tenha nada a agregar-lhe de si mesmo. (SAVIGNY, 1994, p. 67) Savigny defendia, pois, a existência de uma interpretação objetiva, que possibilitasse a identificação do verdadeiro sentido da lei, e é nessa medida que ele afirma que a ciência jurídica é histórica, pois o sentido correto da lei é um dado histórico e “chama-se saber histórico todo saber de algo objetivamente dado; por conseguinte, todo o caráter da ciência legislativa deve ser histórico”. (SAVIGNY, 1994, p. 7) Quanto ao sentindo objetivo da norma, como os demais hermeneutas de seu tempo, Savigny filiava-se à corrente que identificava na busca da vontade do autor3 o núcleo da interpretação legislativa, afirmando que, [...] toda lei deve expressar um pensamento em forma tal que valha como norma. Quem interpreta, pois, uma lei, deve investigar o conteúdo da lei. Interpretação é primeiramente: reconstrução do conteúdo da lei. O intérprete deve colocar-se no ponto de vista do legislador e, assim, produzir artificialmente seu pensamento. (SAVIGNY, 1994, p. 13) Savigny reconhecia como uma meia verdade a afirmação de que, na interpretação, tudo depende da vontade do legislador, pois, segundo ele, não bastava que o legislador tivesse uma vontade, mas era preciso que ele a evidenciasse na lei para que essa sua intenção vinculasse o intérprete, de tal forma que ele define interpretação não apenas como identificação da vontade do legislador, mas como “reconstrução do pensamento (pouco importa se claro ou obscuro) expressado na lei, enquanto seja cognoscível a partir da lei.” (SAVIGNY, 1994, p. 14) Essa especial relevância da literalidade das normas, contudo, não fez com que Savigny se limitasse aos aspectos gramaticais da interpretação, sendo que ele afirmava que, na reconstrução do pensamento do legislador, o intérprete deveria realizar uma tríplice atividade, inserindo uma terceira espécie de interpretação (a histórica) no antigo modelo bipartido que diferenciava a interpretação em lógica e gramatical. Com isso, a interpretação deveria constituir-se em uma atividade dividida em três partes: primeiramente uma parte lógica, que consiste na apresentação do conteúdo da lei em sua origem e apresenta a relação das partes entre si. É também a apresentação genética do pensamento na lei. Mas o pensamento deve ser expresso, motivo pelo qual é preciso também que haja normas de linguagem, e disso surge a segunda parte, a parte gramatical, uma condição necessária da parte lógica. Também se relaciona com a parte lógica, a terceira, a parte histórica. A lei é dada em um momento determinado, a um povo determinado; é preciso conhecer, pois, essas condições históricas para captar o pensamento da lei. A compreensão da lei só é possível pela compreensão do momento em que a lei existe. (SAVIGNY, 1994, p. 13) Desta forma, percebe-se que Savigny inseriu o elemento histórico na hermenêutica como uma forma de garantir que a interpretação deveria observar as condições históricas do momento da elaboração da lei, pois toda lei é fruto de determinadas circunstâncias históricas, e não para afirmar que a lei deveria ser interpretada de forma a adaptar-se aos valores históricos do momento em que ela fosse aplicada. Trata-se, pois, de uma utilização 3 Isto de modo algum significa que Savigny seja um partidário da teoria subjetivista da interpretação, centrada na vontade do legislador. Da mesma forma, apesar de sua primeira fase ser marcada por um viés mais racionalista, vinculada ao sentido expresso da norma, também aqui não é possível identificar plenamente seu pensamento com a teoria objetivista, centrada na vontade da lei. Tanto o conceito psicológico de vontade do subjetivismo quanto o conceito realista e racionalista do objetivismo são produtos do positivismo, que surge na Alemanha em um momento posterior ao historicismo. ANAIS DO V CONGRESSO BRASILEIRO DE HISTÓRIA DO DIREITO 195 conservadora do elemento histórico, na medida em que vincula o sentido da lei ao momento de sua elaboração. Apesar das intenções iniciais dos membros da Escola de Savigny, o historicismo acabou por abandonar o organicismo que o inspirou, que buscava no direito vivo a manifestação do Volkgeist. (DEL VECCHIO, 1959, p. 209) Contudo, o povo de cuja vontade Savigny fala não é a população real dos reinos germânicos, pois o Volksgeist não é apreendido por meio de uma análise sociológica dos anseios da nação. É preciso estar atento para o fato de que o “[...] povo não é, para Savigny, de modo algum a realidade política e social de uma nação histórica, mas um conceito cultural ideal, a comunidade espiritual ligada por uma cultura comum”. (WIEACKER, 1960, p. 448) Dessa forma, embora fale em espírito do povo, o interesse de Savigny é dogmático e não sociológico, volta-se para o direito dos juristas, ou seja, para a cultura jurídica tradicional, construída com base na experiência dos juristas germânicos em desenvolver um sistema jurídico a partir do estudo do direito romano e dos costumes. Essa postura fez com que Savigny se contrapusesse a qualquer elaboração artificial do direito, especialmente aos códigos de inspiração jusnaturalista e liberal, pois, em sua opinião, o verdadeiro direito não deve ser construído abstratamente, mas, [...] vem daqueles usos e costumes, que por consentimento universal é dado frequentemente, embora não com grande precisão, o nome do direito consuetudinário, isto é, que o direito é criado primeiro pelos costumes e pelas crenças populares, e em seguida pela lei, sempre, portanto, em virtude de uma força interior, e tacitamente ativo, jamais em virtude do arbítrio de nenhum legislador. 4 (SAVIGNY, 1975, p. 48) A noção de sistema é essencial para Savigny, principalmente no que diz respeito à interpretação das leis. Todavia, cabe ressaltar que existem dois momentos no pensamento deste autor: o de sua juventude, até aproximadamente 1814, e o de sua maturidade, após esta data, quando o elemento sistemático torna-se objeto de maior atenção.5 Em seus primeiros trabalhos, Savigny tomava como objeto da interpretação tão somente a reconstrução do pensamento expresso na lei, passível de ser extraído apenas a partir da própria norma, demonstrando certo teor positivista-legalista em suas concepções. Rejeita, pois, qualquer interpretação que amplie (extensiva) ou limite (restritiva) o sentido da letra da lei, assim como nega a possibilidade de uma interpretação teleológica, uma vez que o dever do juiz se resume a executar a lei, e não aperfeiçoá-la de modo criador, tarefa esta que cabe tão somente ao legislador. Todavia, em sua maturidade, Savigny irá rever algumas de suas concepções, passando a admitir, de forma limitada, o uso de uma interpretação extensiva ou restritiva, com o objetivo de retificar uma expressão defeituosa do texto. Aqui o Direito não é mais visto como um mero somatório de normas rigidamente delimitadas por sua literalidade, mas como um conjunto de institutos jurídicos presentes no espírito do povo, conforme já mencionado, cuja apreensão pressupõe uma intuição do jurídico, e não um mero racionalismo dedutivo. Embora Savigny defendesse a existência de um Direito espontâneo, baseado no Volksgeist, notas-se que, no tocante à influência exercida pelo autor no pensamento jurídico 4 [...] tiene su origen en aquellos usos y costumbres, a los cuales por asentimiento universal se suele dar, aunque no con gran exactitud, el nombre de Derecho consuetudinario; esto es, que el derecho se crea primero por las costumbres y las creencias populares, y luego por la jurisprudencia; siempre, por tanto, en virtud de una fuerza interior, y tácitamente activa, jamás en virtud del arbitrio de ningún legislador. 5 Esta distinção é feita não apenas por Karl Larenz na obra Metodologia da Ciência do Direito. Tradução de José Lamego. 3a ed. Lisboa: Calouste Gulbenkian, 1997, p.9 e ss., como também por Tércio Sampaio Ferraz Júnior na obra Introdução ao estudo do direito: técnica, decisão, dominação. 3a tiragem. São Paulo: Atlas, 1991, p. 241. 196 A ESCOLA HISTÓRICA DO DIREITO: AS DUAS PRIMEIRAS DÉCADAS DO SÉCULO XIX E AS PONDERAÇÕES DE SAVIGNY SOBRE O JUSRACIONALISMO HISTORICISTA alemão subsequente, o fator sistemático e cientificista de sua teoria termina por prevalecer sobre o fator historicista, permitindo com isso o desenvolvimento do formalismo jurídico na Alemanha através da jurisprudência dos conceitos, conhecida em na língua alemã como Begriffsjurisprudenz, tão bem representada por Friedrich Georg Puchta (1798-1846), antigo discípulo de Savigny, e por Rudolf von Jhering (1818–1892), em sua primeira fase. Devido a sua forte formação romanista, Savigny seguiu suas pesquisas no caminho da redescoberta do direito romano histórico (WIEACKER, 1960, p. 453), que era considerado uma parte fundamental da própria tradição jurídica alemã. Porém, houve dentro da Escola Histórica quem percorresse outro caminho. Alguns se integraram ao conhecido como ramo germanista da Escola, que acreditavam firmemente que o passado jurídico alemão baseava-se essencialmente na tradição consuetudinária germânica e que esta continha muito mais que o direito romano. (BARCHET, 1996, p. 51) Esta dissidência germanista do historicismo jurídico, cuja figura de máxima expressão foi Rudolf von Ihering, que se recusa veementemente o romanismo e continua a estudar o direito como derivado da experiência humana, buscando sobrepor critérios históricos aos jurídicos. Também conhecidos como histórico-empiristas, os germanistas seguiam acreditando que o verdadeiro direito germânico encontrava-se mais nos costumes e tradições ancestrais do povo alemão e não só no direito romano. (WIEACKER, 1960, p. 454) De uma forma comparativa, os germanistas, ao invés de mergulharem fundamentalmente em antigos livros e doutrinas escritas, como faziam os romanistas, basearam suas pesquisas largamente no método histórico-comparativo e no método históricofilológico, lastrado em um minucioso estudo do contexto econômico e geográfico. Esta nova maneira marcará uma grande ruptura metodológica na história do direito na Alemanha no final do século XIX e início do XX e que se espalhará por diversos outros países. A corrente romanista elegeu o direito romano como uma forma jurídica perfeita e tinha como certo que estava lidando com um direito superior a ser resgatado e imitado. Assim, apesar de divulgarem ser a história sua base científica, os romanistas tendiam a sobrepor os aspectos jurídicos aos aspectos históricos e a ver no direito romano a coluna mestra de toda a cultura jurídica civilizada. São tidos, assim, como dogmático-formalistas. Como metodologia de pesquisa seus primeiros cultores utilizavam–se do chamado Método Histórico Estrito, o qual tinha um fundo dedutivo-analítico e pelo qual se acreditava ser possível penetrar em cada matéria até a raiz e descobrir seu princípio orgânico, separando o que ainda tem vida daquilo que deve ser eliminado por estar morto e pertencer, conseqüentemente, ao passado. (BARCHET, 1996, p. 45) Mas, este método acabou por levar esta parte dos jushistoricistas a quererem ressuscitar velhas práticas e conceitos jurídicos por enxergarem neles algo supostamente mais racional. (WIEACKER, 1960, p. 430-454) Considerações Finais Mesmo com estas rupturas internas, a Escola Histórica seguirá sendo um marco importantíssimo para uma compreensão mais detalhada da racionalidade jurídica contemporânea de modo bastante geral, pois pela primeira vez utilizou-se uma metodologia de pesquisa que intencionava deliberadamente ser racional e objetiva, a partir de onde se buscou saber exata e materialmente quais eram as origens verdadeiras do direito nacional alemão e como este direito havia sido no passado, para que se pudesse realçar e restabelecer vigorosamente um espírito jurídico fundado em raízes próprias do povo. Observa-se que o historicismo jurídico coincide, na Alemanha, com a eclosão do romantismo literário e ideológico, tendo como exemplo as obras de Goethe, de cujo ideal romântico compartilha. (BARCHET, 1996, p. 47) ANAIS DO V CONGRESSO BRASILEIRO DE HISTÓRIA DO DIREITO 197 Hespanha afirma, que a originalidade de Savigny não foi a de afirmar a historicidade do direito, o que já havia sido proclamado pela escola humanista (HESPANHA, 1998, p. 137), nem a de evidenciar o seu caráter sistemático, o que já havia sido defendido pelo jusracionalismo, mas a de proporcionar uma peculiar síntese desses dois aspectos, articulando a natureza histórico-cultural do direito com um adequado sistema de exposição, o que ele fez no Sistema de Direito Romano Atual, sua obra de maturidade. Nessa obra, embora aceite as regras jurídicas como um dado histórico-cultural de validade objetiva (que devem ser aceitas em vez de questionadas com base nos ideais jusracionalistas), Savigny não se limita a propor uma descrição tópica e fragmentária das regras tradicionais, mas propõe uma reelaboração científica do material recebido, ordenando-o em função de pontos de vista unitários e, assim, criando as bases de uma ciência jurídica ao mesmo tempo sistemática e historicista. (MENEZES CORDEIRO, 1989, p. 83) Analisando o direito historicamente construído, o jurista deveria identificar os princípios gerais, evidenciar e corrigir as lacunas e contradições, elaborar os conceitos fundamentais para o desenvolvimento de uma visão unitária do direito. Assim, o historicismo de Savigny não era mera descrição de fatos e normas, não era mera divagação a respeito dos costumes, mas uma extensão a todo o direito da pretensão pandectística alemã, de uma descrição unitária e sistemática, embora objetiva e neutra, do direito romano. Referências BARCHET. Bruno Aguilera. Introducción Jurídica a la Historia del Derecho. Madri: Civitas, 1996. BOBBIO, Norberto. O positivismo jurídico: lições de filosofia do direito. Tradução de Márcio Pugliesi, Edson Bini, Carlos E. Rodrigues. São Paulo: Ícone, 1999. DEL VECCHIO, Giorgio. Lições de filosofia do direito. Coimbra: Armênio Amado Editor, 1959. FERRAZ JUNIOR, Tércio Sampaio. Introdução ao estudo do direito: técnica, decisão, dominação. 3a tiragem. São Paulo: Atlas, 1991. HESPANHA, António Manuel. Panorama histórico da cultura jurídica européia. Publicações Europa-América, Lda. Portugal, 1998. LARENZ, Karls. Metodologia da Ciência do Direito. Tradução de José Lamego. 3a ed. 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Disponível em: <http://www.scribd.com/doc/70599770/Reflexoes-Sobreo-Jusnaturalismo> Acesso em: 12 abr. 2011 198 A ESCOLA HISTÓRICA DO DIREITO: AS DUAS PRIMEIRAS DÉCADAS DO SÉCULO XIX E AS PONDERAÇÕES DE SAVIGNY SOBRE O JUSRACIONALISMO HISTORICISTA WIEACKER, Franz. História do direito privado moderno. Lisboa: Calouste Gulbenkian, 1967. ANAIS DO V CONGRESSO BRASILEIRO DE HISTÓRIA DO DIREITO 199 AS CONTRIBUIÇÕES PLATÔNICAS E ISOCRÁTICAS PARA A FORMAÇÃO DA RETÓRICA ARISTOTÉLICA ISOCRATES AND PLATO’S CONTRIBUTIONS TO THE FORMATION OF ARISTOTLE’S RHETORIC Luiza Ferreira Campos* Resumo: O período entre os séculos V e IV a.C. é considerado como marco do nascimento da retórica (rhetoriké) enquanto ramo do conhecimento estruturado, é dizer, da sua transmutação de arte ou técnica do discurso e do convencimento, ensinada pelos sofistas do séc. V a.C, em teoria retórica concebida com espírito científico, tal como verificado na obra de Aristóteles. O artigo propõe-se a investigar as condições e fatores envolvidos nesse processo, lançando mão da análise da obra de três nomes-chave: Platão (diálogos Górgias e Fedro), Isócrates (discurso Anti-sofistas) e Aristóteles (Livro I da Retórica). Assim, identificou-se o atrelamento do surgimento da rhetoriké tanto à sofística, quanto ao pensamento totalizante e abstrato da filosofia e, antes disto, à revolução grega da escrita que permitiu a transcendência das limitações da oralidade e a maior racionalização do discurso. Demonstrou-se, ainda, que, ao menos dois aspectos primordiais da construção da retórica aristotélica já se encontravam presentes, ainda que de forma incipiente, nas obras platônicas: a defesa da necessidade de “moralização” da retórica que se desdobrou no destacamento do ethos como um de seus fundamentos; e o reconhecimento da impossibilidade de se prescindir da retórica diante da própria constituição e organização da vida humana em sociedade. Em seguida, o artigo destaca as contribuições do pensamento de Isócrates para esse processo, que consistem na inserção do “conteúdo” ético na retórica na condição de valores “reais” e cívicos e não mais ideais e no entendimento da retórica enquanto filosofia. Conclui-se, portanto, pela existência de contribuições isocráticas e platônicas, ainda que indiretas, para a genealogia da retórica na Antiguidade grega. * Mestre em Filosofia do Direito pela UFPE. Leciona da Faculdade da Cidade do Salvador e na Faculdade Unyahna. Email: [email protected] 200 AS CONTRIBUIÇÕES PLATÔNICAS E ISOCRÁTICAS PARA A FORMAÇÃO DA RETÓRICA ARISTOTÉLICA Introdução O período entre os séculos V e IV a.C. é considerado como marco do nascimento da retórica enquanto ramo do conhecimento estruturado e sistematizado, em uma palavra, retórica enquanto rhetoriké. De arte ou técnica do discurso, ensinada por sofistas do séc. V a.C. e composta por conhecimentos que explicavam como conduzir um discurso, por quantas partes este seria formado e o que deveria ser exposto em cada uma delas, quais as possibilidades de utilização das palavras e dos gestos, enfim, que ensinavam a arte do convencimento, a retórica transmuta-se em um saber organizado que, mais tarde, para alguns, daria origem a um dos troncos da Filosofia, as filosofias retóricas em oposição às ontológicas (ADEODATO, 2008, p. 01). Como foi possível tal movimento? Quais as condições que determinaram o seu surgimento e quais os principais nomes envolvidos, intencionalmente ou não, em tal acontecimento? Estes são os questionamentos centrais que servem de norte para o presente trabalho. Diante da revalorização e ressignificação do saber retórico e da construção de teorias contemporâneas de cunho argumentativo, faz-se necessário o aprofundamento nos conceitos envolvidos. Para tanto, é fundamental o estudo e a contextualização das obras dedicadas à retórica que remontam à Antiguidade, em especial Aristóteles. Com o intuito de elucidar as condições teóricas e filosóficas para a construção da rhetoriké, o presente artigo, após breve explanação sobre os antecedentes primeiros que constituíram o ambiente propício para a formação tanto da filosofia quanto da arte retórica, destaca três nomes-chaves para entender a passagem em questão. O primeiro é o de Platão (428 a 347 a.C.) – e com ele o Sócrates-platônico. Alicerce de toda filosofia-ontológica, Platão mantinha considerável distância da retórica e da oratória, não as incluindo sequer no conteúdo programático de sua escola. Todavia, sua crítica contra a sofística e contra a retórica praticada por estes e pelos oradores e logógrafos levantava questões que, mais tarde, reverberariam no estudo empreendido por Aristóteles, desdobrandose em formulações que alterariam profundamente a constituição da retórica. Isócrates (436 a 338 a.C.), além da crítica à sofística e à filosofia dialética socrática, assumiu uma postura positiva frente à retórica, reivindicando para essa a condição de filosofia, de saber pragmático capaz de orientar a vida em comunidade, real e não ideal; a retórica era, portanto o centro gravitacional de seu programa pedagógico, conhecimento chave para a educação do homem grego e continuidade e aprimoramento de sua civilização. Por fim, Aristóteles (384 a 322 a.C.) que, reconhecendo como inegável o valor prático da arte retórica, lançou um novo olhar sob esta, partindo tanto da “cientificidade” e sistematicidade da tradição filosófica jônica quanto do abstracionismo e da valoratividade da filosofia ontológica e da ética. O estudo empreendido restringiu-se, fora a bibliografia indireta, à análise dos diálogos platônicos Górgias e Fedro, o discurso Anti-sofistas de Isócrates e os três primeiros capítulos do Livro I da Retórica de Aristóteles. 1 Condições antecedentes da rhetoriké: a revolução escrita, a poética, a arte retórica ou techné, a oratória, a sofística e a filosofia O momento da retomada da escrita na Grécia remonta ao século VIII a.C., final da Idade das Trevas e início do Período Arcaico (séc. VIII ao VI a.C.), tendo forte influência do ANAIS DO V CONGRESSO BRASILEIRO DE HISTÓRIA DO DIREITO 201 alfabeto fenício. As primeiras manifestações escritas – ao menos entre aquelas que resistiram ao tempo – estão consubstanciadas na obra de Homero e Hesíodo (LESKY, 1995, p. 20). A “literatização” deu-se de forma lenta e gradual. A tradição da oralidade ainda é extremamente marcante no Período Arcaico. O conhecimento era transmitido por canções, escritas ou não; o que hoje se entende por cantor e poeta estavam reunidos em uma mesma figura. Havia, apenas, por um lado, a “música” (aoidê), as “rimas” (hymnoi) e o “cantor” (aoidos), e, por outro, a eloqüência das “palavras” (epea) do basileus1 nas assembléias. As palavras poiêsis, poêtês e rhêthor ainda não existiam, só vindo aparecer no século V a.C.; poiêtikê e poiêma – ambas designando a “poesia” surgem apenas no séc. IV a.C. (WALKER, 2000, p. 4). Com a escrita, a poesia e a prosa heróica, materializadas nos papiros, foram ganhando, aos poucos, autonomia e importância. As histórias deixavam de ser cantadas, para serem declamadas e contadas2. Este é o primeiro aspecto fundamental que pode ser destacado como pressuposto para a formação da rhetoriké, pois é a partir dessa “literatização” dos discursos que surge a arte retórica dos sofistas e primeiros oradores, e com ela os primeiros manuais que remontam ao séc. V a.C. Michel Gagarin (2004, p. XI) aponta para meados deste século como período inicial do estudo da retórica como art ou techné, identificando o trabalho de Corax e seu pupilo Tisias, na Sicília, como o primeiro manual de arte retórica. Nesse mesmo sentido, lecionam Jefrey Walker (2000, p. 02) e George Kennedy3 (1980, p. 21). Se de início, em especial nos séculos VIII e VII a.C., os discursos eram elaborados de forma intuitiva e, de certa forma, sem muita preparação prévia, como lembra o Sócratesplatônico em Fedro, com o decorrer do tempo, o incremento da vida política, a difusão da escrita e o refinamento dos jogos de poder exigiram uma reflexão sobre a oratória. A grandiosidade do século V a.C. e a hegemonia ateniense constituíram, portanto, o cenário ideal para o desenvolvimento da arte do discurso. De mero aglomerado de comunidades agrícolas, o mundo grego, a partir do séc. VI a.C., passou por inúmeras transformações provocadas pela expansão comercial e o intercâmbio com outros povos. A urbanização e a formação das poleis alteraram profundamente o mundo grego (WALKER, 2000, p. 17). A constituição de espaços públicos para a discussão e decisão dos caminhos da polis, entre os cidadãos livres, fazia nascer a necessidade de aprimoramento da oratória4. A organização social e política das cidades-estado gregas e o apogeu da democracia constituíram, desta forma, outro pressuposto para a formação da arte do discurso. É nesse cenário que o manual de retórica escrito por Corax, ao alcançar Atenas, ganha recepção e acolhimento, sendo sua utilidade prontamente reconhecida. Logo, outras tantas 1 Muito recorrente na obra de Homero, esta palavra é, muitas vezes, traduzida como rei. No entanto, é mais apropriado falar líder ou príncipe (de clãs ou tribos gregas). 2 Todavia, importa destacar que a marca desse passado “melódico” permanece não só na poesia como também nos discursos proferidos nas assembléias e tribunais: a métrica e a harmonia nos discursos, por exemplo, figuravam como elementos essenciais nos ensinamentos da arte da retórica pelos sofistas. 3 Este coloca a probabilidade de Tísias e Córax serem a mesma pessoa. 4 Por certo que a tradição da oratória remete a tempos muito mais remotos: “Desde Homero, (e, sem dúvida, muito mais cedo) os gregos atribuem significativo valor ao discurso eficaz (...) Líderes atenienses do século sexto e quinto, como Sólon, Temístocles e Péricles, eram todos bem sucedidos oradores”. “From as early as Homer (and undoubtedly much earlier) the Greeks placed a high value on effective speaking. (...) Athenian leaders of the sixth and fifth centuries, such as Solo, Themistocles and Pericles, were all accomplished orators”. (GAGARIN, p.XI, tradução nossa). 202 AS CONTRIBUIÇÕES PLATÔNICAS E ISOCRÁTICAS PARA A FORMAÇÃO DA RETÓRICA ARISTOTÉLICA obras sobre a arte do discurso começaram a ser escritas e a formulação de métodos de argumentação tornava-se cada vez mais premente. Deu-se, assim, uma profunda amplificação da prática oratória. No século por volta de 420 a 320, dúzias – talvez centenas – de oradores e logógrafos, hoje desconhecidos, devem ter composto discursos que se perderam, mas apenas dez desses homens foram selecionados para preservação e estudo pelos escolásticos antigos e apenas trabalhos coletados sob a autoria desses dez foram preservados5. (GAGARIN, 2004, p. XIV, tradução nossa) A literatura, todavia, possibilitada pela escrita, não contribuiu apenas para o surgimento da poesia e da prosa epidídica, heróica. Ela também teve papel fundamental para a emergência da filosofia no final da época Arcaica, o segundo pressuposto fundamental da formação da rhetoriké. É a partir da escrita que o pensamento grego começa a ganhar certa sistematicidade. Albin Lesky (1995, p. 191) identifica Mileto como local de nascimento da filosofia. Cidade jônica6 que contava com um vasto número de colônias e acolhia as contribuições das terras distantes, em especial, as vindas do Oriente7, foi o berço dos filósofos Tales, Anaximandro e Anaxímenes e, consequentemente da filosofia da natureza, por volta do séc. VII a.C. Nas palavras de Werner Jaeger (2001, p. 145, tradução nossa), Sem embargo, há algo de novo na maneira adotada pelos gregos de pôr a serviço de seu problema último, relativo à origem e à essência das coisas, as observações empíricas que absorveram do Oriente e enriqueceram com suas próprias, assim como no modo de submeter ao pensamento teórico e causal o reino dos mitos, fundado na observação da realidade aparentes do mundo sensível, os mitos relativos ao nascimento do mundo. Neste momento assistimos ao nascimento da filosofía científica. Esta é talvez a façanha histórica da Grécia. Verdade que sua liberação dos mitos foi apenas gradual. […] A conexão do nascimento da filosofía naturalista com Mileto, a metrópole da cultura jónica, resulta clara se se pensa em seus três primeiros pensadores, Tales, Anaximandro e Anaximenes viveram no tempo da destruição de Mileto pelos persas no começo do século V” 8. 5 “In the century from about 420 to 320, dozens – perhaps even hundreds – of now unknown orators and logographers must have composed speeches that now are lost, but only ten of these men were selected for preservation and study by ancient scholars, and only works collected under the names of these ten have been preserved” (GAGARIN, 2004, p. XIV). Os dez são: Aeschines (395-322 aC); Andocides (440-390 aC); Antiphon (480-411 aC); Demosthenes (384-322 aC); Dinarchus (360-290 aC); Hyperides (390-322 aC); Isaeus (415-340 aC); Isocrates (436-338 aC); Lycurgus (390-324 aC); Lysias (445-380 aC). 6 A cultura jônica é apontada como responsável pelo acolhimento do pensamento oriental, suas preocupações com o conhecimento a partir da experiência, em oposição ao ocidente grego mais tendente ao misticismo. 7 Admite-se, nos dias de hoje, a imensa contribuição da cultura oriental para a formação da civilização grega. Segundo Jaeger (2001, p. 14; 17), a peculiaridade do povo grego frente aos orientais é a concepção humanística. O foco da tradição oriental era o homem-deus, retratado nas pirâmides egípcias, nos monumentos orientais. A massa dos homens comuns era absolutamente ignorada. Aqui está um dos principais pontos de separação entre Ocidente e Oriente, aquele que faz da Grécia antiga o “berço” da civilização ocidental. Essa valorização do homem vai ter continuidade no Cristianismo, com a valorização da alma individual humana e, mais tarde, na autonomia espiritual do indivíduo a partir do Renascimento. 8 “Sin embargo, hay algo fundamental nuevo em la manera que tuvieron los griegos de poner al servicio de su último problema, relativo al origen y la esencia de las cosas, las observaciones empíricas que aceptaron del Oriente y enriquecieron mediante las suyas propias, así como en el modo de someter al pensamiento teórico y casual el reino de los mitos fundado en la observación de las realidades aparentes del mundo sensible, los mitos relativos al nacimiento del mundo. En este momento asistimos al nacimiento de la filosofia científica. Ésta es tal vez, la hazaña histórica de Grecia. Verdade es que su liberación de los mitos fue sólo gradual. [...] La conexión del nacimiento de la filosofia naturalista con Mileto, la metrópoli, de la cultura jónica, resulta clara si se piensa en que sus tres primeros pensadores, Tales, Anaximandro y Anaxímenes vivieron al tiempo de la destruición de Mileto por los persas I comienzo del siglo V”. (JAEGER, 2001, p. 145, tradução nossa) ANAIS DO V CONGRESSO BRASILEIRO DE HISTÓRIA DO DIREITO 203 As perguntas sobre os fenômenos físicos, a constituição, origem e funcionamento do mundo são a marca desta fase inicial da filosofia que só será alterada a partir de Parmênides e Heráclito, com o advento da filosofia do ser. Segundo Lesky (1995, p. 240), Parmênides irá buscar a verdade para além dos limites do mundo sensível, encontrando-a no Ser, uno e único. Temos aqui já o embrião da separação mundo sensível e mundo ideal que será, posteriormente, trabalhado por Platão e absorvido definitivamente pela tradição Ocidental. Toda essa revolução intelectual irá se concentrar em Atenas no Período Clássico (séc. V e IV a.C.). Em seu apogeu, Atenas constituía o centro da cultura grega e ali a filosofia jônica irá transmutar-se, assumindo a feição do que hoje é, comumente, denominado de filosofia da Antiguidade grega. A permanência de diversos filósofos de formação jônica no início do séc. V na cidade, entre eles Anaxágoras9, pôs os atenienses diante de uma nova forma de vida devotada à contemplação e à busca por respostas. Paralelamente, outro movimento, de imensa proporção e conseqüências inimagináveis, ganhava forma: a sofística. Em meados do séc. V a.C., homens como Protágoras de Abdera – apontado como fundador do movimento – e Górgias de Leontini passaram a percorrer o mundo grego oferecendo seus serviços para aqueles que pudessem pagar por eles. O ensino era prioritariamente oral e o conteúdo consistia em conhecimentos práticos que auxiliassem o discípulo nas atividades da polis, concernentes à posição de cidadão, e viabilizassem um melhor posicionamento na engrenagem política através de um melhor desempenho nas assembleias e tribunais (LESKY, 1995, p. 373). Ao contrário do que usualmente difundido, os sofistas não eram meros “comerciantes” de conhecimentos retóricos que já vinham sendo compilados nos manuais e estudos sobre a arte do discurso. O fundamento primeiro da atuação deste movimento era a concepção de que “o verdadeiro não era susceptível de ser conhecido nem expressado” (LESKY, 1995, p. 381) e que talvez nem sequer existisse, devendo ser substituído pelo provável. O poder na sofística era atribuído à palavra, e, portanto, ao logos10, em uma de suas acepções. Assim, o condão da oratória era falar com beleza e vigor, captando o assentimento do auditório pela magia do verbo. Coexistiam, portanto, dois movimentos poderosos: de um lado a filosofia ontológica que tinha em Platão seu representante e porta-voz máximo, herdeira da tradição de Parmênides e, antes deste, dos filósofos da natureza; de outro a sofística nascida da necessidade cotidiana da vida na polis, cujo conteúdo era resultado da sedimentação de conhecimentos e aspectos existentes desde muito tempo na poética e na oratória e da observação e reflexão da atividade política. É da confluência desses dois movimentos que nasce a rhetoriké, é dizer, a retórica enquanto disciplina, enquanto pensamento organizado em abstrações e voltado para a descoberta dos princípios que regem o seu objeto: o homem e suas possibilidades de se fazer entendido e ter suas idéias aceitas e adotadas pelos demais. 9 Sobre Anaxágoras, Lesky (1995, p. 364) especula que “Os Atenienses devem ter se sentido muito distanciados do homem que os colocava perante uma nova forma de vida, totalmente entregue à contemplação (...) para quem o Sol era uma massa de pedra incandescente, muito maior do que o Peloponeso, e que também explicava os demais fenômenos da natureza de forma totalmente racional” 10 O termo logos, usualmente, traduzido como “razão” e, portanto, ligado à idéia de pensamento racional, tinha em verdade duas acepções na Grécia Antiga. A primeira era como “pensamento” (e aqui não há qualquer menção ao adjetivo “racional”), e a segunda como “palavra” ou “fala” (LESKY, 1995, p. 381). 204 AS CONTRIBUIÇÕES PLATÔNICAS E ISOCRÁTICAS PARA A FORMAÇÃO DA RETÓRICA ARISTOTÉLICA Assim, o surgimento da rhetoriké está intimamente atrelado tanto à sofística e, portanto, à tradição política dos oradores e à tradição poética, quanto ao pensamento totalizante e abstrato da filosofia; e, antes disto, à revolução da escrita que permitiu a transcendência das limitações da oralidade e a maior racionalização do discurso. Em um primeiro momento, todavia, não haverá confluência entre essas duas tradições, mas sim um profundo choque muito bem retratado nos diálogos platônicos. 2 A crítica platônica à sofística como primeiro passo em direção à rhetoriké: a busca pelo melhor homem e pelos valores ideais O divino poder da direção das almas é o caminho vivo, claro, distinto e harmonioso da verdade. Platão A condição da eloqüência é o saber. Platão A relevância da obra de Platão (428 a 347 a.C.) para a formação da retórica reside na crítica desenvolvida por este contra a sofística e no que esta desencadeou. Apontada como uma censura impiedosa, cujo eco ainda pode ser ouvido em nossos dias – note-se a carga pejorativa atrelada a palavras como sofista ou retórico – em verdade esta constitui elemento fundamental para a transmutação de uma técnica oratória em um sistema de conhecimentos estruturado e fundamentado. A obra platônica tem início no decênio seguinte à morte de Sócrates, provavelmente por volta de 380 a.C. Ampla e constituída, eminentemente, por diálogos nos quais Sócrates aparece como principal interlocutor, Platão trata, prioritariamente, sobre a filosofia do ser, lançando as bases mais sólidas da ontologia e constituindo o fundamento primeiro de toda filosofia ocidental. Os principais diálogos dedicados à temática da sofística ou, ainda, da retórica, são Protágoras, Górgias e Fedro, sendo essa a provável ordem cronológica destes. É possível afirmar que toda a crítica platônica à sofística tem sua raiz na diversidade entre a concepção de educação platônica e a educação capitaneada pelos sofistas. A condenação da cobrança pelos ensinamentos constitui aspecto meramente superficial da divergência. Em verdade, a concepção da educação platônica divergia radicalmente da prática sofística11. O ensino, segundo Platão, deveria ter como meta não a formação de cidadãos, homens capazes de atuar na vida prática da polis em seus diversos âmbitos, como julgavam os sofistas. A verdadeira razão da educação estaria na formação de filósofos, ou seja, na formação do melhor homem possível, pois só estes seriam capazes de governar de forma moralmente e tecnicamente satisfatória. Enquanto os sofistas restringiam-se aos conhecimentos técnicos e práticos, Platão estava interessado em moldar o homem ideal, não só porque estes seriam os únicos capazes de conduzir e governar a República, mas, e antes disso, porque só esse caminho era capaz de garantir o melhor destino para a alma humana. 11 Não se tratava de mera discussão sobre sistema ou método de ensino, mas sim sobre ideal de vida pensado ou ainda, no ideal de formação do homem grego – estudado profundamente por Werner Jaeger em “Paideia”. De um lado o ideal do poder (a preparação técnica orientada à condução das massas), do outro a moralidade e a educação como valores supremos; a educação como manifestação do melhor que há no homem. ANAIS DO V CONGRESSO BRASILEIRO DE HISTÓRIA DO DIREITO 205 Essa preocupação com o destino da alma fica bastante clara no diálogo Fédon. Sócrates, ao ser questionado sobre como permanecia tão calmo na iminência da morte, responde expondo sobre a imortalidade da alma e defende que a filosofia a purifica, pois a liberta da prisão do corpo. Assim, o homem que, em vida, dedicou-se às coisas corpóreas e aos prazeres, ao mundo sensível portanto, ao morrer permaneceria preso a este mundo; já o filósofo que procurou se distanciar dos sentidos e do corpo, buscando adquirir através da alma a verdade e a inteligência, ao morrer dirigir-se-ia ao Hades, onde alcançaria, por fim, a inteligência em sua pureza. (PLATÃO, 1997, p. 147-149; 166-168). E, assim, conclui achar “(...) natural, no homem que tenha passado realmente a vida entregue à filosofia, a coragem na hora da morte e a boa esperança de desfrutar lá embaixo os maiores bens depois de morrer.” (PLATÃO, 1997, p. 144). No mesmo sentido, ao final do Górgias, Sócrates narra o mito escatológico sobre o julgamento da alma e a decisão do seu destino: àqueles que viveram a vida com justiça, estaria reservada a Ilha dos Bem-Aventurados, onde gozariam da completa felicidade, já os ímpios seriam mandados ao Tártaro, o cárcere da punição e da pena. Por acreditar na veracidade de tal narrativa, declara seu esforço para apresentar-me diante do juiz com a alma tão limpa quanto possível. (...) empenhando-me na busca da verdade, procurei tornar-me o melhor possível enquanto viver, e assim também morrer, quando chegar a minha hora. Exorto também os demais homens, na medida das minhas forças, a fazerem o mesmo” (PLATÃO, 1997, p. 77). É essa a busca de Platão, e por isso só a Verdade, a Justiça e o Belo lhe interessavam. O plausível, o provável, a doxa, o persuasivo, nada disso era capaz de purificar a alma e muito menos de construir a sociedade que almejava. Parecia-lhe absolutamente detestável a prática de persuadir a outrem a respeito de determinada assertiva sem que antes soubesse sê-lo realmente verdadeiro. Utilizar-se apenas da força das palavras para convencer e não da verdade do que defende é algo condenável na visão platônica. No Górgias, tal idéia fica bastante clara, no momento que Sócrates aponta para a necessidade de convencer através da verdade contida na assertiva e não por meio da força das palavras; seria preciso, portanto, conhecer, previamente, as coisas em si, ou seja, saber o que é justo ou injusto, feio ou bonito, bom ou mau (PLATÃO, 1989, p.34). Esta crítica é, de certa forma, inconciliável tanto com a sofística quanto com a retórica, pois ambas estão constituídas sobre o fundamento de que, como acima exposto, o verdadeiro não é passível de ser conhecido ou, até mesmo, na sua não existência. No entanto, se, no Górgias, Platão (1989, p.42) nega a condição de arte para a Retórica, qualificando-a como uma rotina para produzir prazer e satisfação, em Fedro, o tratamento dispensado já é completamente diverso. Aqui, o Sócrates-platônico fala em uma “retórica verdadeira”, sendo que esta só pode ser praticada por aquele que possui o conhecimento da verdade, ou seja, por um filósofo. Distingue, assim, a arte retórica da mera atividade retórica, pois “quem não conhece a verdade, mas só alimenta opiniões, transformará, naturalmente, a arte retórica numa coisa ridícula que não merece o nome de arte” (PLATÃO, 1999, p. 166). O entendimento acerca da possibilidade de se alcançar a verdade continua o mesmo, a diferença está no reconhecimento de uma arte que, apesar de não servir para o descobrimento da verdade, pode ser utilizada por aqueles que já a possuem para convencer os demais, para demonstrar a veracidade de suas idéias, ou seja, para persuadir ou ensinar. Platão (1999, p. 175), então, prossegue estabelecendo quais os passos a serem trilhados por aquele que deseja praticar a arte retórica: o artista retórico deve entender a alma humana e identificar o que pode influenciá-la; deve classificar os gêneros de discursos e correlacioná- 206 AS CONTRIBUIÇÕES PLATÔNICAS E ISOCRÁTICAS PARA A FORMAÇÃO DA RETÓRICA ARISTOTÉLICA los com cada tipo de alma; e, antes de tudo isso, deve conhecer a fundo os objetos sobre os quais fala: deve estudar o Universo, defini-lo e classificá-lo. Ao final do diálogo, Platão nega que a “verdadeira retórica” esteja relacionada com as regras artificiais dos oradores e dos sofistas, ao contrário, identifica-a como a arte do pensamento, com a dialética. Esta era um órganon, é dizer, um discurso dos discursos12. Na visão platônica, todos os discursos precisam de um órganon que estabeleça a conexão do logos com o objeto essencial, ideal, compreendido nele mesmo. A função da dialética, portanto, era garantir a validade das definições e a correção dos processos dedutivos, relacionando os enunciados com seus objetos (RACIONERO, 1994, p. 25) A retórica como instrumento político auxiliar, a serviço da filosofia, deveria guardar a mesma devoção para com a legitimidade dos processos dedutivos, pois apenas os discursos verdadeiros eram verdadeiros discursos. Um Platão mais amadurecido é o que encontramos em Fedro13. Se não pôde mais negar a aplicabilidade e validade da retórica dada a sua força e expansão entre os atenienses, tratou, então, de defender a reserva da legitimidade de sua prática apenas para os filósofos, ou seja, para aqueles que sorvessem os ensinamentos da Academia. Mas este não é o aspecto importante para o presente estudo. O ponto a ser destacado é a atribuição da necessidade de conhecimentos mais abstratos e menos técnicos para a prática da retórica, é dizer, Platão aponta para a necessidade de um saber atrelado a uma prática e, mais do que isso, inicia a reflexão sobre o conhecimento retórico. Ao apontar as falhas e os limites, prepara o terreno para aqueles que iriam refletir positivamente sobre a retórica, entre eles seu discípulo Aristóteles. Nesse sentido, Aqui (em Fedro), Platão vai muito além das sugestões de Górgias sobre o papel positivo da retórica; ele prepara o alicerce para as características básicas da Retórica aristotélica e integra retórica de forma filosófica de uma forma ainda não intentada em lugar algum.14 (KENNEDY, 1980, p. 67, tradução nossa) A retórica como mero aglomerado de regras oratórias não era digna de um filósofo, era preciso transformá-la, então. 3 A defesa isocrática da retórica enquanto filosofia: a busca pelo melhor homem possível e pela conciliação entre os valores e as condições materiais disponíveis O antagonismo entre esses dois homens [Platão e Isócrates] é o antagonismo entre a Filosofia e a Retórica (a que eles deram início e que se estende através dos séculos), 12 O conceito de dialética na Antiguidade é complexo e controverso. Não sendo possível elaborar um estudo aprofundado acerca do tema no presente trabalho sem afastar-se em demasia de seu ponto central, optou-se por tratá-lo de forma tangencial. 13 A anterioridade cronológica de Gorgias em face de Fedro não é aceita pacificamente: negada por Quintín Racionero (1994, p. 24) e sustentada por George Kennedy, “Fedro é um dos diálogos platônico do grupo intermediário, provavelmente composto dez ou quinze anos depois de Górgias”. (KENNEDY, p. 66, tradução nossa) – “Phaedrus is one of the middle group of Platonic dialogues, probably composed ten or fifteen years after Gorgias”. 14 Here [em Fedro] Plato goes significantly beyond the suggestions of Gorgias about the positive role of rhetoric; he lays the foundation for basic features of Aristole’s Rhetoric, and he integrates rhetoric into his other philosophical in a way not attempted elsewhere. (KENNEDY, 1980, p. 67) ANAIS DO V CONGRESSO BRASILEIRO DE HISTÓRIA DO DIREITO 207 que disputam entre si a educação do jovem, e é o fenômeno mais importante da história da cultura neste período. Albin Lesky A figura de Isócrates (436 a 338 a.C.) é extremamente controversa. Apontado muitas vezes como mais um sofista com pouco talento oratório, tendo, por isso, se dedicado mais à escrita de discursos políticos15, vem sendo, atualmente, re-significado como educador de importância central no século IV a.C. Nascido em uma família abastada, tornou-se logógrafo, após a perder a fortuna na Guerra do Peloponeso (431 a 404 a.C.). Somente por volta de 390 a.C., já com cerca de 40 anos, é que dá início a sua atividade como professor, fundando uma escola em Atenas. A “school of logon” (HASKINS, 2004, p. 04) era a principal rival da Academia platônica. Seu programa educacional era voltado para a formação dos estudantes como cidadãos atuantes. Segundo Albin Lesky (1995, p. 619), Isócrates quis influir nos seus contemporâneos e transformar os seus discípulos em homens de êxito por meio do estímulo e do cultivo das suas capacidades oratórias. Precisamente desta maneira, punha em execução o programa dos sofistas, porém já não como mestre ambulante, mas sim como chefe duma escola rapidamente florescente. Mas esta não é a única distinção entre Isócrates e os sofistas. O foco da educação isocrática não se restringia apenas ao provimento dos conhecimentos úteis para a atuação política de seus alunos. Isócrates, como Platão, tinha um ideal de paidéia, e trabalhava na formação do homem grego, não do melhor homem, mas sim do melhor homem possível. Enquanto Platão preocupava-se em formar sábios e filósofos, Isócrates mirava a formação de cidadãos virtuosos que conduzissem a polis da melhor forma, e considerava a filosofia platônica alheia à vida (LESKY, 1995, p. 623). Seu programa educacional estava, portanto, inseparavelmente atrelado a uma idéia de vida cívica, prática e real. Havia uma clara preocupação com o cultivo de valores mais elevados, mas sempre tendo como parâmetro a realidade, pois, em sua visão, era insensato e infrutífero pretender alcançar o inalcançável: o ideal de Justiça e de Bem. Em suas palavras, Que ninguém pense, no entanto, que na minha opinião a prática da justiça (dikaiosyne) possa ser ensinada. Em geral, julgo, que não há nenhuma arte capaz de inspirar a sabedoria e a justiça naqueles que a natureza não dispôs para a virtude (areté); contudo, creio que o estudo dos discursos políticos muito pode ajudar a estimular e exercitar essas qualidades. (ISÓCRATES, 2008, p.07) Em Contra os sofistas, encontra-se uma sucinta síntese do pensamento isocrático. Neste discurso, é possível identificar as críticas aos sofistas, aos erísticos e aos retóricos forenses, e, ainda, uma exposição, em linhas gerais das concepções isocráticas acerca da verdade, da educação e da justiça. Os primeiros a serem criticados são os erísticos, ou seja, aqueles que se utilizavam da dialética, a arte retórica da pergunta e resposta, seja para vencer uma competição ou para descobrir a verdade (aqui, incluídos, portanto, na segunda categoria, os socráticos). As 15 “Comparado com a análise sistemática dos meios da persuasão, gêneros retóricos e projetos estilísticos de Aristóteles, Isócrates emerge apenas como um professor de oratória e seu escrito revela um amontoado de discursos, panfletos políticos, endereçados para e em nome de poderosos patronos” (HASKINS, 2004, p. 02, tradução nossa). “Judged against Aristotle’s systematic analysis of the means of persuasion, rhetorical genres, and stylistics devices, Isocrates emerges merely as a teacher of oratory, and his record reveals a mixed bag of display speeches, political pamphlets, and addresses to and on behalf of powerful patrons”. 208 AS CONTRIBUIÇÕES PLATÔNICAS E ISOCRÁTICAS PARA A FORMAÇÃO DA RETÓRICA ARISTOTÉLICA promessas do ensino da virtude, da sabedoria e da felicidade eram, na visão de Isócrates, nitidamente enganadoras. Já a retórica ensinada pelos sofistas, além de ser marcada pela falta de preocupação com os valores envolvidos na atuação política, ainda pecava por desconsiderar aspectos fundamentais para o êxito da prática da arte do discurso, como, por exemplo, a experiência (empeiria) e as qualidades naturais do discípulo (phisis) (ISÓCRATES, 2008, p. 05). Apesar de ser enfático ao defender a importância da retórica para a sua paideia, de reconhecer a insuficiência das regras compendiadas nos manuais e se preocupar em descobrir possibilidades contidas na arte retórica, Isócrates permanece muito distante da elaboração de uma espécie de teoria geral sobre a retórica, não oferecendo um estudo sistematizado sobre o assunto. Em sentido oposto, leciona Ekaterina Haskins, segundo a qual Isócrates não teria sido um mero precursor de Aristóteles no campo da Retórica. A autora identifica uma descontinuidade entre a obra de ambos e, ainda, a existência e autonomia de uma “teoria do discurso própria de Isócrates”. Haveria, assim, a presença de “um conjunto de princípios ou critérios que podem qualificar uma teoria implícita da retórica”16 (HASKINS, 2004, p. 03, tradução nossa) no bojo da obra isocrática. Não há, contudo, elementos suficientes para tal conclusão. Apesar de evitar e até atacar a cultura oral, suas obras escritas, ao menos o que restou preservado, não apresentam muito mais do que propagandas de sua própria escola, ataques a seus adversários ou defesas de pontos de vista políticos. Não há uma exposição pormenorizada de suas idéias. No entanto, havia a pretensão, por parte de Isócrates, de capitanear a verdadeira filosofia – em oposição à platônica – concebendo-a, segundo Quintín Racionero (1994, p. 22, tradução nossa), como a “‘cultura geral’ que torna os homens capazes de um juízo sereno e que resolve tecnicamente – enquanto arte ou paradigma do saber – na posse dos meios adequados para persuadir sobre a maior conveniência de cada decisão”17. Fundada na idéia de que o conhecimento absoluto estaria vedado ao homem por via de sua própria natureza e que o êxito deveria ser assegurado em cada caso particular com base na justa opinião, a filosofia isocrática tinha como eixo central a formação retórica dos alunos. Esta seria responsável por preparar o homem para a sagacidade na vida, pois “o caminho da palavra justa é o mesmo que conduz à ponderação correta e ao correto agir” (LESKY, 1995, p. 623). Segundo Albin Lesky, o elemento ético encontra-se contido nessa concepção isocrática de retórica, de acordo com a análise do uso lingüístico grego. Assim, à idéia metafísica platônica do Bem se opõe, em Isócrates, a exigência de se adaptar sabiamente às circunstâncias da vida, das quais também fazem parte os postulados éticos (LESKY, 1995, p. 624). O centro de sua doutrina, portanto, não é constituído por valores metafísicos, mas sim pelo homem real, daí ser possível identificar em sua obra elementos de um humanismo orientado para a eloqüência, sendo que o domínio da palavra era o elemento que distinguia os homens dos animais e os gregos dos bárbaros. 16 “Isocrates’ own theory of discourse”; “a set of principles or criteria that can qualify an implicit theory of rhetoric” (HASKINS, 2004, p. 03) 17 “que hace a los hombres capaces de un juicio sereno y que se resuelve técnicamente – en cuanto arte o paradigma de saber – en la posesión de los medios adecuados para persuadir sobre la mayor conveniencia de cada decisión” (RACIONERO, 1994, p. 22) ANAIS DO V CONGRESSO BRASILEIRO DE HISTÓRIA DO DIREITO 209 A importância de Isócrates para a constituição da Retórica, para além de sua crítica à retórica sofística atrelada à crítica à filosofia ontológica, consiste, principalmente, na defesa da sua philosophía18: o estudo do conhecimento como possível entre os prováveis, das convenções sociais, da opinião experimentada na comunidade humana. A retórica isocrática, como disciplina central na formação do cidadão ateniense virtuoso – a virtude não poderia ser ensinada, mas estimulada pelo estudo dos discursos políticos – constitui um entrelaçamento entre o fundamento sofístico e o horizonte filosófico e lança bases para uma nova concepção de verdade. Isócrates se autodenominava um truth seeker (HASKINS, 2004, p. 15), mas essa verdade não pairava acima dos homens, era vivenciada e construída cotidianamente na polis. 4 Aristóteles: o impulso do salto filosófico da retórica e a construção de seus primeiros alicerces A filosofia de Aristóteles (384 a 322 a.C.) traz consigo uma forte tradição jônica: o interesse pelos assuntos cosmológicos e o olhar voltado para o mundo sensível, atrelados à tradição ontológica herdada de Platão e ao rigor analítico e proto-metodológico que adotava em seus estudos, produziram uma obra vasta e profunda que pretendeu explicar e conhecer tudo que havia no mundo até então. A retórica ocupava, na Atenas do séc. IV a.C., papel de destaque tanto na vida política e nos tribunais, quanto na educação dos atenienses. Aristóteles não deixaria, portanto, de versar sobre tal assunto. Além de incluir a retórica como uma das disciplinas ministradas no Liceu – ao contrário do que ocorria na Academia – legou uma fundamental obra escrita sobre esta, tida como base primordial das correntes retóricas que lhe seguiram até os dias atuais. O diálogo Grilo, apontado como sua primeira obra, que, infortunadamente, não resistiu ao final da Antiguidade – tudo que se sabe a respeito é fruto de comentários em obras de terceiros – fora escrito ainda sob forte influência platônica. Sabe-se que guardava muita semelhança estrutural com os diálogos de seu mestre e que consistia em uma crítica à sofística e à retórica, bem ao estilo de Platão. Teria sido uma reação à profusão de elogios dedicados a Grilo, filho de Xenofonte, morto na batalha de Mantinea, por volta de 362 a.C. Na opinião de Aristóteles, os elogios tinham como real fundamento não a comoção pela perda do jovem guerreiro, mas a intenção de agradar seu pai, importante figura com poder e influência na Atenas da época. Assim, Aristóteles “reproduzia a tese do ‘Górgias’ acerca do caráter meramente adulador da retórica”19 (RACIONERO, 1994, p. 23, tradução nossa), considerando-na como simples praxis, afastada das regras morais, e não como arte ou técnica. Seus principais alvos eram Isócrates, sua retórica e, principalmente, o novo gênero desenvolvido por este, o elogio retórico. A posição aristotélica aqui é de clara reafirmação dos valores do platonismo e de defesa da paideia praticada na Academia. 18 “Isócrates evita o termo rhetorikê e escolhe, em seu lugar, a palavra philosophia para descrever aquilo que professa defender: uma concepção ampla de educação discursiva em oposição à estreita noção platônicaaristotélica de retórica. (HASKINS, p. 3, tradução nossa) – Isocrates shuns the term rhêtorikê and instead chooses the word philosophia to describe what he professes to defend: a broad conception of discursive education over against a narrow Platonic-Aristotelian notion of rhetoric.” 19 “reproducía la tesis del ‘Gorgias’ acerca del carácter meramente adulador de la retórica” (RACIONERO, 1994, p. 23) 210 AS CONTRIBUIÇÕES PLATÔNICAS E ISOCRÁTICAS PARA A FORMAÇÃO DA RETÓRICA ARISTOTÉLICA Por sua vez, os três livros da Retórica, que datam da alta maturidade de Aristóteles20, são apontados como o grande marco na constituição da retórica como teoria sistematizada e não mais como coleção de regras práticas. Qual o caminho percorrido entre o Grilo e a Retórica? De que forma se deu o abandono da mera repetição das críticas elaboradas contra a retórica e o início da reflexão profunda sobre esta e, posteriormente, a construção de sua teoria? No presente trabalho, serão levantados alguns aspectos que, pretende-se, sejam capazes de auxiliar no esclarecimento dessas questões. A própria leitura da Retórica fornece algumas análises interessantes a respeito. O primeiro ponto a ser destacado é o convencimento de Aristóteles acerca da utilidade da retórica. O discurso “científico”, ou ainda, filosófico ontológico21, não seria adequado para as multidões, mas apenas para o ensino, para o esclarecimento de uma parcela reduzida da população. Apenas a eloqüência seria capaz de persuadir a multidão a respeito da verdade e do que parece ser verdadeiro, e aqui se nota, claramente, a influência platônica, em especial do quanto sustentado em Fedro. Essa indispensabilidade da Retórica traz consigo a necessidade do seu estudo, e da sua “moralização”. Se ela é algo inerente à vida, deve ser submetida a certos fundamentos que a afastem da manipulação sofística, “pois não se deve persuadir do mal”22 (ARISTÓTELES, 1994, p.170, tradução nossa). Assim, a retórica deve possibilitar a prevalência da verdade e da justiça, vez que são “mais fortes do que seus contrários”23 (ARISTÓTELES, p. 169, tradução nossa). De certa forma, portanto, a retórica aristotélica permanece em conexão com a verdade pelo fato de orientar o seu propósito, e não mais no sentido platônico de identidade entre Dialética e Retórica. Apesar de aparentar ser apenas um sutil giro de ângulo de visão, tal mudança tem profundas implicações. A subordinação da retórica à moral torna-se um problema exclusivamente ético e político, não tendo nenhuma implicação na retórica enquanto técnica. O discurso não deixa de ser discurso por não ser verdadeiro, como defendia Platão. Desta forma, simultaneamente à conservação/alteração da conexão com a verdade, há a sua libertação “técnica”, identificáveis em passagens como “entendemos por retórica a faculdade de teorizar sobre o que é adequado em cada caso para convencer”24 (ARISTÓTELES, 1994, p. 173, tradução nossa) e “a retórica, parece que pode estabelecer teoricamente o que é convincente em – por assim dizer – qualquer caso que se proponha”25 (ARISTÓTELES, 1994, p. 174, tradução nossa). Mais do que simples coincidência, o fato de Aristóteles iniciar o Primeiro Livro da Retórica distinguindo os campos da dialética e da retórica aponta para o afastamento da teoria platônica que os identificava em Fedro, é dizer, para uma nova tomada de posição. 20 Em verdade, sofreram muitas alterações através de um longo período de tempo, sendo a versão final datada já do final de sua vida. 21 A distinção entre episteme ou scientia e sofia ou sapientia não gozava da mesma força e clareza na Antiguidade como a partir da Idade Moderna. 22 “pues no se debe persuadir de lo malo” (ARISTÓTELES, 1994, p.170) 23 “más fuertes que sus contrarios” (ARISTÓTELES, p. 169) 24 “Entendamos por retórica la facultad de teorizar lo que es adecuado en cada caso para convencer.” (ARISTÓTELES, 1994, p. 173) 25 “La retórica, sin embargo, parece que puede establecer teóricamente lo que es convincente en – por así decirlo – cualquier caso que se proponga [...]”(ARISTÓTELES, 1994, p. 174) ANAIS DO V CONGRESSO BRASILEIRO DE HISTÓRIA DO DIREITO 211 Segundo Aristóteles, a retórica é uma antístrofa26 da dialética. Nenhuma das duas constitui uma episteme, uma ciência determinada com objeto próprio, mas sim “métodos” que podem ser aplicados a diversas questões. Enquanto a dialética investiga como alcançar a verdade, a retórica estaria a serviço da persuasão e, portanto, não poderiam jamais ser igualadas como o fez Platão. Identificada a utilidade da Retórica, seu estudo deveria estar em consonância com a mesma. Não fazia sentido, portanto, restringir-se ao ensino das regras do bem falar ou à formação de oradores vitoriosos, como em outras escolas27. O domínio e interesse aristotélico não eram na prática da eloqüência, mas sim no estudo dos processos dessa arte: quais aspectos envolvidos, quais os caminhos e possibilidades da persuasão. Aristóteles (1994, p. 172, tradução nossa) ao afirmar que a tarefa da Retórica “não consiste em persuadir, mas em reconhecer os meios de convicção mais pertinentes para cada caso, tal como ocorre com todas as outras artes”28 distancia-se dos estudiosos da eloqüência, da oratória e, até mesmo, da retórica enquanto aglomerado de regras técnicas. Concretiza-se, em sua obra, o processo de transmutação da retórica em um ramo do conhecimento destinado aos estudos teóricos das causas capazes de gerar persuasão, sendo, portanto, alçada à condição de meta-conhecimento. Assim, no dizer de Albin Lesky (1995, p. 601), Aristóteles “oferece uma teoria retórica, concebida com espírito científico, movida pelo propósito de determinar e expor com rigor lógico as normas que também neste terreno se ocultam por detrás dos fenômenos”, apesar de, ainda, versar sobre pontos, claramente, afins à retórica escolar típica dos sofistas e da tradição isocrática, especialmente no Livro III, onde trata do estilo, do ritmo oratório e das partes do discurso – o exórdio, a narração e a peroração. Somado a isto, o destaque do elemento ethos na retórica tem importantes conseqüências para a constituição desse novo saber. De acordo com Aristóteles (1994, p. 193), três são os gêneros ou espécies de retórica, cada um correspondendo a um componente do discurso – aquele que fala, aquele que ouve e o que se fala – e ao tipo de prova persuasiva respectiva. Assim, a persuasão pode se dar em função do ethos do orador, ou seja, pelo caráter moral daquele que fala e que inspira confiabilidade; em função do phatos, é dizer, através do despertar de sentimentos, da paixão no auditório por meio dos discursos; e, por fim, em função do logos, do conteúdo do discurso quando “mostramos a verdade, ou o que parece ser, a partir do que é convincente em cada caso”29 (ARISTÓTELES, 1994, p. 177, tradução nossa). De tal construção é possível destacar, entre tantos outros, três pontos interessantes. Primeiro, a não exclusão ou condenação da persuasão através do phatos, mas, sim, a crítica da restrição exclusivista a este gênero por parte dos sofistas e retóricos anteriores. 26 De acordo com Racionero, o termo é de difícil tradução, mas corresponde à idéia de identidade e oposição simultâneas entre Retórica e Dialética. As traduções geralmente optam por analogia, correlação e correspondência. 27 A crítica a tal postura fica claro quando declara que os autores de artes retóricas permaneciam fora do assunto, ao fornecer inúmeras regras e fixar qual deva ser o conteúdo do exórdio, da narração e de cada uma das partes do discurso. (ARISTÓTELES, 1994, p. 163) 28 “no consiste en persuadir, sino en reconocer los medios de convicción más pertinentes para cada caso, tal como también ocurre con todas las otras artes” (ARISTÓTELES, 1994, p. 172) 29 “mostramos la verdad, o lo que parece serlo, a partir de lo que es conviciente en cada caso” (ARISTÓTELES, 1994, p. 177). 212 AS CONTRIBUIÇÕES PLATÔNICAS E ISOCRÁTICAS PARA A FORMAÇÃO DA RETÓRICA ARISTOTÉLICA Segundo, o esclarecimento da própria concepção de retórica que pode ser extraído da assertiva citada acima sobre a persuasão através do logos. Aqui, delinea-se que o âmbito do estudo da arte retórica é a descoberta do que é convincente em cada caso e, portanto, de como demonstrar a verdade e, sobretudo, o que parece ser. Novamente, identifica-se a conexão com a verdade, mas, de forma alguma, a sua submissão, pois caso o discurso seja construído de forma tal que convença o auditório da verdade de suas afirmações, a arte retórica terá alcançado seu êxito, independente da certeza dessa verdade. Finalmente, a persuasão observando e concedendo relevância ao ethos do orador vem na esteira da crítica platônica aos retores que se fixavam, exclusivamente, nos recursos de estilo à margem de qualquer consistência moral. Todavia, Aristóteles (1994, p. 176) ultrapassa a crítica ao fixar o ethos no discurso e não à margem deste pois “[se persuade] por el talante, cuando el discurso es dicho de tal forma que hace al orador digno de crédito”. A nota de Quíntin Racionero (1994, p. 176, tradução nossa) a esta passagem, esclarece que Aristóteles guarda, sem dúvida, esta herança [do Górgias platônico] – que é a que desemboca na auctoritas latina – mas a transforma no sentido de que a persuasão pelo falante deve ser um resultado do discurso e não do juízo prévio sobre o orador. [...] tudo consiste em que o orador faça uso dos procedimentos retóricos oportunos, a partir dos quais o auditório seja convencido de que está diante de um homem ‘digno de crédito em virtude’ (hic y 66ª29)30. Assim, Aristóteles não fica preso à moralidade platônica, mas, apesar de defender o seu uso de forma ética, reconhece a capacidade do discurso de convencimento a respeito da honra do orador, independente de conclusões anteriores, mas com base no próprio discurso. Todo esse arcabouço teórico resulta em algo muito além de uma arte. Ao versar sobre a retórica enquanto techne formal, fora da ciência pura, ou seja, enquanto arte retórica, Aristóteles fincava os primeiros fundamentos da retórica que, mais tarde, delinear-se-ia enquanto filosofia retórica em oposição à filosofia ontológica31, correspondendo às dicotomias essencialismo versus retórica e verdade versus conjetura. Ao tratar sobre a existência, organização e autonomia da arte retórica (2º nível), ultrapassando as regras do discurso (1º nível), Aristóteles galga a um terceiro nível que seria herdado e desenvolvido por toda uma tradição não-ontológica posterior que agregando as contribuições do humanismo, historicismo e ceticismo (ADEODATO, 2008, p. 5-8) arremataria o processo de formação da retórica, da rhetoriké. Conclusão Diante das ideias apresentadas e das hipóteses levantadas, é possível concluir, heuristicamente, que, pelo menos, dois aspectos primordiais da construção da retórica aristotélica já se encontravam presentes, de forma incipiente e problematizada, nas obras platônicas. O primeiro consiste na defesa da necessidade de “moralização” da retórica que se desdobrou no destacamento do ethos como um dos fundamentos retóricos. O segundo, refere30 “Aristóteles recoge, sin duda esta herencia [do Górgias platônico] – que es la que desemboca en la auctoritas latina – pero la transforma en el sentido de que la persuasión por el talante debe ser un resultado del discurso y no del juicio previo sobre el orador. [...] todo consiste, en efecto, en que el orador haga uso de los procedimientos retóricos oportunos, a partir de los cuales el auditorio quede convencido de que se halla ante um hombre ‘digno de crédito en virtud’ (hic y 66ª29)” (RACIONERO, 1994, p. 176) 31 Conforme João Maurício Adeodato (2008, p. 01), não é pacífico o entendimento de que a retórica constitua uma vertente da filosofia. Ottmar Balleweg, v.g., separa retórica e filosofia por conceituar a segunda como a busca pela verdade, conceito excluído da retórica. ANAIS DO V CONGRESSO BRASILEIRO DE HISTÓRIA DO DIREITO 213 se ao reconhecimento da impossibilidade de se prescindir da retórica diante da própria constituição e organização da vida humana em sociedade, que resultou na superação da idéia de persuasão como mera prática política e cotidiana. Na condição de veículo da produção e divulgação de conhecimento (doxa e epistheme, respectivamente), a persuasão torna-se merecedora de estudo especializado, de uma arte que verse sobre as normas que investigue teoricamente as causas do êxito na persuasão. A contribuição isocrática, por sua vez, consiste também em dois pontos principais. A inserção do “conteúdo” ético na retórica na condição de valores “reais” e cívicos e não mais ideais e o entendimento da retórica enquanto filosofia que, apesar de não aceito por Aristóteles – e não corresponder à concepção atual – agrega valor à retórica praticada à época e abre caminho para a reflexão sobre a própria arte que seria empreendida por Aristóteles. Referências ADEODATO. João Maurício. O problema da verdade e o problema de uma filosofia ontológica do direito. In: _______. Filosofia do Direito: uma crítica à verdade na ética e na ciência. São Paulo: Saraiva, 2005. p. 235-262. _______. Retórica como metódica para o estudo do direito. [mensagem pessoal] Mensagem recebida por [email protected] em 09 abr. 2008. ARISTÓTELES. Retórica. Introdução, tradução e notas de Quintín Racionero. Madrid: Editorial Gredos, 1994. p. 161-197. GAGARIN, Michael. Series introduction: Greek Oratory. In. Isocrates II. Austin: University of Texas Press, 2004. Disponível em: http://books.google.com/books?id=9nsdy5wEdRs C&pg=PA24&dq=Logos+and+Power+in+Isocrates+and+Aristotle&sig=ACfU3U2qs7GsuBb Ijl_i3bf0F7faNqGizw#PPR13,M1. Acesso em : 26 jun. 2008. HASKINS, Ekaterina. Logos and Power in Isocrates and Aristotle. Columbia: University of South Carolina Press, 2004. Disponível em: http://books.google.com/books?id=vu SYmPNgOE8C&printsec=frontcover&dq=Logos+and+Power+in+Isocrates+and+Aristotle&s ig=ACfU3U2M7mSBzCsIqxqIh9FKbEmwt3pQqw. Acesso em: 26 jun. 2008. p. 1-4; 10-13; 18-21; 34. ISÓCRATES. Contra os sofistas. Tradução de Marcos Sidnei Euzebio. Disponível em: http://www.hottopos.com/mirand12/euzeb.htm. Acesso em 20 jul. 2008. JAEGER, Werner. Paidéia: los ideales de la cultura griega. Tradução de Joaquín Xiral. [s.n]: Fondo de Cultura Económica México, 2001. KENNEDY, George A. Classical rhetoric and its christian secular tradition from ancient to modern times. Chapel Hill: UNC Press, 1980. Disponível em: http://books.google.com/ books?id=LHHYx4idyPEC&printsec=frontcover&dq=KENNEDY,+George+Classical+rhetor ic+and+its+christian+secular+tradition+from+ancient+to+modern+times&sig=ACfU3U2iHU KBmq4l0UhfHBmvFjSYeA0Jcw. Acesso em: 26 jun. 2008. LESKY, Albin. História da literatura grega. Tradução de Manuel Losa. Lisboa: Fundação Calouste Gulbenkian, 1995. PLATÃO. Fédon. In. Diálogos. Tradução de Jaime Bruna. São Paulo: Cultrix. p. 135-211. ________. Diálogos I: Mênon, Banquete, Fedro. Tradução de Jorge Paleikat. Rio de Janeiro: Ediouro, 1999. p. 129-183. ________. Górgias. Tradução de Jorge Bruna. Rio de Janeiro: Bertrand Brasil, 1989. 214 AS CONTRIBUIÇÕES PLATÔNICAS E ISOCRÁTICAS PARA A FORMAÇÃO DA RETÓRICA ARISTOTÉLICA RACIONERO, Quintín. Introducción. In. ARISTÓTELES. Retórica. Introdução, traducão e notas de Quintín Racionero. Madrid: Editorial Gredos, 1994. p. 07-149. WALKER, Jeffrey. Rhetoric and Poetics in Antiquity. [s.n.]: Oxford Press, 2000. Disponível em: http://books.google.com.br/books?id=7te0PjbvMI0C&printsec= frontcover &sig=ACfU3U1fEY2sRtqFYaSq_ZhM5P-ErVh6kw#PPA1996,M1. Acesso em: 10 jul. 2008 p. 3-6; 17-20. ANAIS DO V CONGRESSO BRASILEIRO DE HISTÓRIA DO DIREITO 215 O MODERNO: UM OLHAR NAS RAÍZES PARA ENTENDER OS FRUTOS MODERNITY: A GLANCE TO THE ROOTS TO GET THE CONSCIOUSNESS OF THE FRUITS Raphael Greco Bandeira * Resumo: A modernidade é, antes de tudo, uma nova forma de vida. Sem sombra de dúvida é dialética no sentido hegeliano, porque histórica. Daí a denominação dessa alvorada como a “Era das Revoluções” nas palavras de Eric Hobsbawm. Nela há o rompimento da visão medieval do mundo sacralizado e que transitava entre uma cidade de Deus e outra cidade dos homens. O direito divino dos reis tenta disputar, mas a hipóstase do contrato social foi burguesa. O catolicismo não mais sustenta o fundamento metafísico do mundo, com o progressivo deslocamento para o plano da individualidade religiosa. Esvaece-se o poder divino em substituição ao poder temporal puro. O moderno é um sujeito, como quer Voltaire, que transforma o “supérfluo em necessário”, ou, como em Hobbes, cuja felicidade é quantitativa no movimento de acumulação. É importante notar que a subjetividade, em Kant, teve uma visão da identidade transcendental nítida. Mas a partir da fenomenologia de Heidegger isso estremece e articulam-se as aparências para expressar o sentido no mundo ao questionar a essencialidade do ser. Ora, o direito, como conquista da burguesia, será materializado na lei. O esquecimento do “povo” levou às revoluções sociais e à União Soviética. A incompletude do moderno, rabiscado na minuta de contrato social burguesa, privilegiou a propriedade. Porém, ao “povo” efetivo, então, deixou-se um vácuo aberto para pressões e para o surgimento de novos direitos dos quais chamam atenção o ecológico e o dos consumidores. Direitismo, esquerdismo e outros “ismos” já não foram derrotados pela história do capitalismo? O Estado Democrático de Direito, pugnado por nossa “Constituição Cidadã”, acontece no diálogo e na legitima abertura ao debate. Por meio da dignidade humana e dos direitos fundamentais são possíveis fissuras contra a biopolítica. * Doutorando em Direito/UNB. E-mail: [email protected] 216 O MODERNO: UM OLHAR NAS RAÍZES PARA ENTENDER OS FRUTOS 1 Introdução No presente estudo, pretende-se aprofundar a respeito do conceito de modernidade, uma vez que as origens dos problemas da contemporaneidade se encontram em um momento histórico relativamente definido, que precisa ser compreendido como premissa metodológica de discussões que formulem hipóteses a respeito dos problemas atuais. Desse modo, não basta atacar conceitos e figuras jurídicas em suas discussões mais recentes, sob pena de fracassar pela superficialidade e ausência de objetividade. A compreensão, assim, dos institutos e instituições hodiernas, se desprendidas de um mínimo de definição retrospectiva, levam a uma insuficiência e repetição reiteradas de discussões em que se cai numa teia de argumentações falaciosas onde um cita o outro num giro de superficial que não conclui absolutamente nada, mas apenas repete e faz surgir um resultado inverso ao da consciência, ou seja: ao invés de promover a compreensão, faz surgir a dogmatização dos institutos que se tornam verdadeiros com base nos argumentos de autoridade. A metodologia aplicada na pesquisa é hermenêutica, para desvendar o conceito de modernidade a partir do ponto de vista do paradigma do humano e seu significado jurídico e democrático, a partir da leitura teórica contrapondo, reflexiva e criticamente, a realidade econômica, filosófica, cultural e suas repercussões nas formas jurídicas criadas desde as revoluções burguesas que, desde um movimento inicialmente eurocêntrico, caminha para uma extensão do domínio global, sentido na biopolítica, ao qual se chega nos atuais momentos de crise econômica do capitalismo tardio, posterior à década de setenta. Nesse sentido, será visto no momento inicial o gérmen econômico da discussão, com o início do capitalismo associando-se ao conceito de modernidade e fazendo surgir, com isso, o conceito de subjetividade dentro de uma concepção kantiana de “revolução copernicana”. Ao mesmo tempo, o surgimento do Estado de Direito, com base na forma legal, irá apresentar um sentido histórico para a coletividade entendida como povo. O sistema representativo, será, então, uma demonstração da operatividade do sistema político com base na díade direitaesquerda, a fim de canalizar as vontades populares. Estas, por sua vez, não serão suficientemente amarradas nas teias institucionais, porém, tal insuficiência será observada desde as revoluções sociais e suas atuais formas de discussões neo-políticas como no sentido do discurso ecológico e de direito do consumidor. Por fim, o Estado Democrático de Direito é a forma que, contemporaneamente, permite a expressividade da subjetividade não compreendida na sua satisfação prometida com as revoluções burguesas para o povo, através do conceito de dignidade da pessoa humana. 2 Algumas razões econômicas e não econômicas da modernidade. O tronco, a que se denomina modernidade, em verdade, corresponde ao processo de consolidação de raízes burguesas no cenário político europeu, em suas bases, que se expandem para todo o globo paulatinamente até o surgimento de conceitos como globalização. Enrique Dussel (DUSSEL, 2011), pretendendo quebrar a visão eurocêntrica de história, abusa do conceito de “moderno” ao afirmar que a Espanha é a primeira nação moderna, a partir de um ponto de vista mundial, com o mercantilismo e a descoberta da América em 1492. De um lado, é preciso que tenhamos, de fato, uma maior atenção para os problemas da América Latina e que valorizemos o mais interessante dentro de paradigmas culturais peculiares. Certamente esse é o esforço de Dussel. Creio que um aspecto fundamental a que chama atenção o autor decorre do fato de que se estabeleceu uma dominação econômica em sentido planetário nesse período, ao mesmo tempo que, em filosofia, o homem passou a descobrir que seu pensamento descolava-se do divino com Descartes e seu “Penso, logo sou”. ANAIS DO V CONGRESSO BRASILEIRO DE HISTÓRIA DO DIREITO 217 Ou seja, no sentido de que o “ego cogito” cartesiano foi antecipado pelo “ego conquiro”, no mundo centro-periferia. De fato, o mercantilismo, o imperialismo, o mundo bipolar e a globalização são notas de uma só melodia; provavelmente uma sonata de Mozart ouvida em nobres salões. Esse breve recurso metafórico faz sentir que, maior do que simplesmente uma questão econômica, houve, também, e creio que isso seja mais drástico, um aspecto não puramente material de domínio. Certamente, no momento inicial do capitalismo, as críticas marxistas são voltadas ao aspecto do materialismo e da dominação dos meios de produção, críticas essas apenas séculos mais tarde foram organizadas, em torno de uma dialética burguesia vs. proletariado. Enfim, o historiador Karl Marx com a visão retrospectiva orientou suas considerações filosófico-hegelianas. Há, todavia, uma outra dimensão que se sente contemporaneamente, na constituição de um determinado imaginário, que se pretende não metafísico-religioso, arquitetado em novos modelos e paradigmas. Assim, não há como discordar de autores como Habermas de que os acontecimentos históricos centrais são a Reforma, o Iluminismo e a Revolução Francesa acontecidos na Europa. A modernidade, portanto, apresenta um imaginário novo, que, se não compreendido, pode ser metafísico. Voltaire apresenta uma visão a respeito de metafísica bastante esclarecedora. Segundo o autor francês, que consolidou sua definição a partir de calorosos debates entre Clarke, discípulo direto de Newton, e Leibniz, em nada o ser humano distingue a sua racionalidade de um animal, exceto pelas inúmeras possibilidades em especular muitas idéias na satisfação de suas necessidades. A nossa racionalidade apresenta a nossos sentidos incontáveis formas de como administrar a saciedade de nossos interesses no mundo da vida. Podemos ter diversas idéias a respeito de como fazer algo. Se somos aprisionados por nossos sentidos, no mundo físico, através das necessidades corporais que nos surgem, então a forma como iremos solucionar esses problemas práticos será diante das idéias que tivermos. A metafísica será, então, a multiplicidade e diversidade na determinação dos quereres por meio de idéias especulativas. Assim, o ser humano, tem a possibilidade de articular de infinitas maneiras os instrumentos de satisfazer suas necessidades. Sua condição existencial é maximamente ampla em razão de um ponto inicial racional-metafísico infindável. É bem verdade que Voltaire não define como tais idéias surgem em nosso espírito, mas sua concepção de metafísica apreende que nossa ação não é desvinculada de uma razão. Nunca. Nem mesmo em um jogo de par ou ímpar. Porque uma idéia de par ou de ímpar se apresenta ao espírito antes de nossa ação. Desse modo, retomando o conceito de moderno, se, de um lado, o aspecto material do domínio econômico e da consolidação da burguesia deu-se desde o mercantilismo e séculos mais tarde com o imperialismo, a noção de modernidade possui uma acepção mais ampla, reverberando até os dias de hoje, não sepultados em conceitos que ficaram no passado como o metalismo. O sentido, portanto, refere-se mais amplamente a uma dimensão não puramente materialista, mas espiritual, sem com isso negar as suas reminiscências capitalísticas. 3 Revolução copernicana da subjetividade? Descoberta do imaginário. A modernidade é, antes de tudo, uma nova forma de vida. Sem sombra de dúvida é dialética no sentido hegeliano, porque histórica. Portanto, dentro de uma conflitividade de derrubada da classe social da nobreza e do clero em ascensão da burguesia, daí a denominação dessa alvorada como a “Era das Revoluções” nas palavras de Eric Hobsbawm; e, sobretudo, que acontece conferindo um novo sentido imaginário à história. Nela há o 218 O MODERNO: UM OLHAR NAS RAÍZES PARA ENTENDER OS FRUTOS rompimento da visão medieval do mundo sacralizado e que transitava entre uma cidade de Deus e outra cidade dos homens. Atribuir a alguém o que não lhe é devido, dentro do mundo medieval, constitui injustiça, já o devido decorre da vontade de Deus acima da vontade humana. Estabelecida a justiça, o religioso volta ao cenário das relações humanas, porque o injusto não era de deus. O político estaria rompido se a atuação ilegítima dos “injustos” acontecesse. Assim, de maneira metafísico-religiosa, a justiça ficou distante da prática. Deslocada do mundo, a justiça torna-se um conceito vazio, o que foi notado mais a frente na história por Hobbes. Porém, mantendose no contexto histórico que se expõe, a justiça afirma-se como a espada do mais forte. Assim, o direito será orientado pelas ordálias. Por exemplo, o campeão do rei luta, contra aquele que se diz ao lado de deus e, quem morrer, não tem a razão. Os nobres, então, no período da Idade Média, passam a guerrear entre si em nome da autoridade divina. A vontade de deus poderá, assim, ser escrita com tintas de sangue. Ao final da Idade Média, a tônica centra-se no catolicismo não mais sustentar o fundamento metafísico do mundo, com o progressivo deslocamento para o plano da individualidade religiosa. Esvaece-se o poder divino em substituição ao poder temporal puro. A rigor, a compreensão mais profunda da modernidade revela que nessa nova forma de vida, o humano sempre se encontrou amarrado e, desse modo, controlado pelo Estado por meio do imaginário, fosse ele moderno ou medieval. Não existe um sentido histórico, de rompimento de racionalidade para um progresso, como poderia afirmar algum discípulo de Hegel. Mais justo seria falar em “restart”. Podemos extrair na leitura do professor António Hespanha, ser apenas por meio de interpretações superficiais tornar possível a leitura da “autoevidência” de uma “verdade” histórica; ou seja, de uma apreensão de inspiração hegeliana do real. Em suas palavras: “o aspecto insólito, exótico, bizarro e perturbador do imaginário social na doutrina jurídica é omitido e sacrificado no altar da perene continuidade do ‘direito ocidental’.(HESPANHA, 2010: 41)”. Não existe progresso. Não existe ordem histórica. Nem é preciso invocar uma ausência de racionalidade de índole pós-moderna, refratária à meta-narrativas. Basta, apenas, notar que a cada momento histórico existe sua ambiência. Em primeiro lugar, é interessante a colocação do professor António Hespanha, ao afirmar que “irracionais ou coisas podiam ser sujeitos dos mesmos direitos e faculdades jurídicas reinvindicados por seres humanos” (ibidem: 42). Seria possível cogitar de uma “pan-jurisdição do mundo no senso comum” (ibidem: 43). Relata que mesmo os animais seriam responsabilizados a sanções criminais por ferimentos que causassem. Para ilustrar, revela que o próprio Cristo, em seu momento final em Jerusalém afirmou que mesmo que os apóstolos silenciassem as próprias “pedras” o proclamariam. De maneira que o mundo seria ordenado por uma linha indistinta entre sujeitos e objetos. De outro lado, a modernidade implicou no império da vontade como fonte da ordem social. Em segundo lugar, expõe que a vida emocional tinha uma arquitetura rígida, seguindo a determinados padrões psicológicos, de maneira que havia uma “relação de necessidade entre atitudes externas e emoções” (ibidem: 47). As afeições políticas do monarca eram promovidas por atos já conhecidos e previsíveis, de maneira que a vontade ou paixões das pessoas seguiam uma objetividade. Cita como exemplo de demonstração de intimidade no “quebrar o protocolo” (porém sem sair do esperado) no seguinte cerimonial: “Sempre que o Rei de Espanha desejasse alçar um cortesão ao grau de Grande, solenemente convidaria o nobre, na presença da Corte, a cobrir sua cabeça com um chapéu”(ibidem, loc. cit). O direito, como sustenta o professor, poderia cobrar uma determinada “etiqueta”, sob pena de ser passível de processo judicial, de modo que eram regulados o “beijar, curvar-se, ajoelhar- ANAIS DO V CONGRESSO BRASILEIRO DE HISTÓRIA DO DIREITO 219 se, ou mesmo relação sexual” (ibidem: 48). Havia no direito uma confiança na possibilidade de controlar a alma. Se havia uma Ordem universal, como um amor de Deus às criaturas, o direto poderia corrigir eventuais déficits dessa ordem natural. Por fim, em terceiro lugar, a vontade e o direito eram reunidos ao serem intermediados pela “prudência”. De modo que a “vontade” seria cega, se não houvesse a sua devida compreensão, ou submetida aos imperativos da razão prática. A vontade, enquanto “ato da mente”, somente poderia ser levada a sério na qualidade de execução do direito, que precede a vontade do sujeito, por meio de reto julgamento da razão. A lei de Deus age em nossas mentes do mesmo modo que o direito positivo, pois, após ser editado, deve ser crivado pelo correto julgamento da razão. Assim, pode-se notar, até o “triunfo do individualismo na filosofia social da metade do século XVIII, a irrelevância da vontade livre na imaginação da interação social” (ibidem: 52). No contexto desse imaginário, tanto a noção de indivíduos como de coisas estava relacionado com as funções e não com a sua essência isolada e voluntarística de caráter mais moderno. A sociedade era um conjunto de “status” ao invés de um conjunto de indivíduos, contrariamente ao que se sucedeu com a diversidade moderna de papéis e funções sociais. Como resultado de suas análises, conclui o professor António Hespanha, que uma antropologia histórica do direito apenas torna-se possível de ser articulada com as seguintes considerações: primeiro, a avaliação da equidade e justiça por meio da percepção da sociedade combinadas em uma global e harmônica hermenêutica cultural a partir de modelos e paradigmas de apreensão da realidade; segundo, esse paradigma, seja ele do imaginário medieval como do moderno, abarcará uma multiplicidade de discursos normativos das mais variadas índoles morais, teológicas, econômicas e políticas; terceiro, apesar de existir uma dimensão atemporal nas “categorias jurídicas”, como se encontra na purificação kelseniana do discurso jurídico, ou, ao revés, no pensar o direito como fundamentado numa permanente “axiológica” em continuidade histórica que seria conduzida por uma racionalidade, propõe-se, ao revés, uma leitura de recuperação do sentido da diferença histórica, liberando o cronocentrismo e o etnocentrismo, em prol de um pluralismo, recriando ambientes culturais e locais extintos, de modo que imagens, crenças e valores dão sentido às diversas decisões concretas da vida quotidiana. Portanto, o imaginário encontra-se desprendido de qualquer sentido de progresso. Troca-se um imaginário por outro, simplesmente. 3.1 A concepção ética da burguesia nos primórdios da modernidade. O moderno é um sujeito, como quer Voltaire, que transforma o “supérfluo em necessário”. Ou, como em Hobbes, cuja felicidade é quantitativa no movimento de acumulação, de maneira que a felicidade estará atenta para os desejos dos seres humanos de vida fácil e prazer sensual; em suas palavras: O sucesso contínuo na obtenção daquelas coisas que de tempos em tempos os homens desejam, quer dizer, o prosperar constante, é aquilo a que os homens chamam felicidade; refiro-me à felicidade nesta vida. Pois não existe uma perpétua tranqüilidade de espírito enquanto aqui vivemos porque a própria vida não passa de movimento e jamais pode deixar de haver desejo, ou medo, tal como não pode deixar de haver sensação. (HOBBES, 2000: 64) Para ilustrar, com leve ironia, não por acaso, uma demonstração do homem moderno “quantitativo” foi a Casa dos Tudor na Inglaterra, com a reforma anglicana e a separação de Henrique VIII de Catarina de Aragão, que o permitiu seguir em seus seis casamentos subsequentes. 220 O MODERNO: UM OLHAR NAS RAÍZES PARA ENTENDER OS FRUTOS Assim, desde Hobbes, pressupõe-se que desde nosso estado da natureza agimos por interesse, sendo esse “mensurável”, de modo que a sua ética entende a felicidade como uma constante acumulação de propriedade regulada pelo Estado. Além disso, o soberano, Absoluto na metáfora do “Leviatã”, define o justo, ao nos retirar do estado beligerante para articular os interesses entre as pessoas. Nisso articular-se a nova ética-econômica moderna sem o pressuposto religioso. Com essas premissas, então, é possível o surgimento do sujeito moderno diante de um novo imaginário ético. Esse estilo de vida será defendido por Adam Smith no novo paradigma sistêmico do liberalismo que, muito embora de índole patrimonial, o seu pano de fundo é inconfessadamente moral e modulado por paradigmas. A partir daí constitui-se um novo sentido antropológico do homem econômico, como comenta Karl Polanyi: Um pensador do quilate de Adam Smith sugeriu que a divisão do trabalho na sociedade dependia da existência de mercados ou, como ele colocou, da ‘propensão do homem de barganhar, permutar e trocar uma coisa pela outra’. Esta frase resultou, mais tarde, no conceito de Homem Econômico. (POLANYI, 2000: 62-63) Segundo o professor escocês de ética, o homem não está em busca da santidade religiosa, mas é considerado de uma maneira muito mais interesseira. Por exemplo, se um cãozinho acaricia a mãe para obter benefício, o mesmo aconteceria com o homem, em “servil e bajuladora atenção” (SMITH, 2010: 24ss), com seus interesses. Barganhar é “mostrar-lhes que é para seu próprio benefício fazer aquilo que está exigindo deles” (ibidem). O relacionamento humano não se dá, mais, com base nas necessidades, mas nas vantagens. Havia uma nova vida econômica no período moderno. Não mais baseada na moderação aristotélico-tomista, mas na acumulação quantitativa de riqueza mediada pelo Estado como se defendia desde Hobbes. Segundo Hegel o “egoísmo” dos indivíduos transforma-se numa contribuição para a satisfação das carências de todos os outros, reciprocamente; em suas palavras: “Há uma mediação do particular pelo universal, como movimento dialético, de modo que cada um, ao ganhar e produzir para sua fruição, ganha e também produz para a fruição dos outros” (HEGEL, 1997: 177). É importante notar que a subjetividade, em Kant, teve uma visão da identidade transcendental nítida. O imperativo categórico orientará a universalidade das condutas de maneira categórica. A vida humana dependerá de uma consolidação de sua potência em ato causalístico final, crivada por um teste de máximas racionais, que prescindem de qualquer tipo de imaginário religioso. A validade kantiana, portanto, afasta do domínio da ética a necessidade de questionamento para além do teste de forma lógica pura. A virtude fica canalizada para a esfera da vida individual, pois no domínio público da razão é necessária a virtude da ética-formal. A ética, ocupando o espaço do religioso, limita-se a um juízo de máximas kantiano, genuinamente privado. Slavoj Žižek apresenta ferrenhas críticas a uma tal dualidade, ao exemplificar com as noções de bourgeois e citoyen, na figura de Berlusconi, diante desta cisão entre o homem público e o homem privado: O que torna o primeiro-ministro italiano tão interessante como fenômeno político é o fato de que, como político mais poderoso do país, ele age de forma cada vez mais desavergonhada: além de ignorar ou neutralizar politicamente as investigações jurídicas a respeito das atividades criminosas que promovem seus interesses comerciais particulares, Berlusconi também solapa de modo sistemático a dignidade básica de chefe de Estado. A dignidade política clássica baseia-se em sua elevação acima do jogo de interesses particulares da sociedade civil: a política é ‘alienada’ da sociedade civil, apresenta-se como esfera ideal do citoyen, em contraste com o conflito de interesses egoísticos que caracteriza o bourgeois. Berlusconi aboliu essa alienação: na Itália atual, o poder estatal é exercido diretamente pelo burgeois vil ANAIS DO V CONGRESSO BRASILEIRO DE HISTÓRIA DO DIREITO 221 que, de forma declarada e impiedosa, explora o poder estatal para proteger seus interesses econômicos. (ŽIŽEK, 2011: 8) Mas a partir da fenomenologia de Heidegger isso estremece e articulam-se as aparências para expressar o sentido no mundo ao questionar a essencialidade do ser. As categorias, assim, do imaginário, por mais que se pretendam abarcar a completude do ser, não conseguem pela lógica e razão pura satisfazer a essa pretensão. Desse modo, para uma concepção hermenêutica, não é suficiente a compreensão racional, mas sim com a vivência, além do campo científico, a fim de ter-se a abertura necessária da significação antropológica. 4 As formas jurídicas e o moderno. Traçado, até o presente momento, uma dimensão mais propriamente filosófica e histórica da modernidade, sem perder esse enfoque, pretende-se considerar a sua manifestação em aspecto mais afeto à forma jurídica. Ora, o direito, como conquista da burguesia, será materializado na lei. Se, de um lado, temos a visão kelseniana em filosofia do direito na vertende juspositivista que se afasta do jusnaturalismo, por outro lado, passa-se a ter uma resposta que, como ensina Karl Larenz a partir das repercussões da modenidade na primeira metade do século XX, trará novas afirmações seja de historicidade no direito, seja do jusnaturalismo. Três correntes irão destacar-se no paradigma científico-filosófico do direito: (a) um neokantismo; (b) um neohegelianismo; (c) um fenomenologia jurídica. Em primeiro lugar, Larenz conceitua o neokantismo como a condução para uma unidade ou “uma reunião entre si de conteúdos singulares da consciência num modo de pensamento de validade geral. A toda maneira ou modo geral de determinar unitariamente as particularidades de certo conteúdo da consciência” (LARENZ, 1997: 101). A premissa de um kantismo remete à validação, ou composição remissória a um imaginário formal, que ordena a matéria. Cita como um de seus maiores defensores no direito como sendo Stammler, em que destaca a sua distinção entre o perceber, atrelado a uma noção de causalidade ulterior, e o querer, numa racionalidade meio-fim anterior. Trata-se de um momento da consciência que precede a sensação, dentro de uma validade “a priori”, condicionando o pensamento jurídico ao ato, de maneira que a ciência jurídica encontra-se modernamente ordenada como ciência final. Outro imaginário formalista que pode ser lembrado é o de Puchta, que acreditava na possibilidade de uma jurisprudência dos conceitos, deduzindo os inferiores dos superiores como se existissem em relação a uma essência. Todavia, com Stammler é possível notar uma dimensão de justiça, pois a “justeza” de ajuste a uma unidade abarcará todas as consciências imagináveis. Em seu ideal, abarca-se o abstrato e dispensa-se o aspecto histórico. É interessante, nesse momento, contrapor o pensamento de um autor do final do século XX, de fundamental importância para a filosofia do direito norte-americana, que foi John Rawls. Postulando sua teoria a partir de um procedimentalismo, ao afirmar o consenso sobreposto em estruturação de tolerâncias recíprocas no nível das individualidades, restringese ou cerceia as escolhas no nível político e público de justiça prévio. O idealismo afirma o indivíduo. Sua razão poderá ser “plena”, desde tenha sido, antes, “razoável”. Há precedência do justo ideal ao sujeito. A unidade da razão subjetiva é possível desde um ponto de vista formal estruturante existente na posição original. Em outras palavras, se a posição original existe antes mesmo da convenção contratualista constitucional, então a sua forma institucional prévia que recorta, delimita ou, em nas palavras do autor, cerceia a capacidade especulativa humana. Restringe, assim, os quereres humanos. Ora, em que pese o influxo histórico sensível na obra rawlsiana, é de se questionar até que ponto autores que até a contemporaneidade influenciam o direito constitucional, se efetivamente romperam com o jusnaturalismo ao ser 222 O MODERNO: UM OLHAR NAS RAÍZES PARA ENTENDER OS FRUTOS cotejado com o jusnaturalismo de Stammler. A meu ver, não, porque, ao situar-se com este apriorístico kantiano do imaginário, possui uma imersão metafísica questionável para um pensamento que se pretende kantiano e anti-metafísico, como livre diante de uma forma procedimental pura. Um segundo paradigma, agora crivado pela historicidade, em filosofia do direito lembrado por Karl Larenz, será lembrado inicialmente por Rickert, quando as pessoas constituem-se me figuras únicas, diante das escolhas do historiador que diante da massa de singularidades, escolhe e descobre aquelas essências, separando do não-essencial. Ao ponto de Kaufmann sustentar a possibilidade de um “reino de valores absolutos”. Será com Binder, no entanto, que esta perspectiva histórica tomará um corpo mais propriamente hegeliano, em que reúne no sentido “a priori” o direito positivo ou histórico. Assim, condensa a proposta lógico-fomal com a histórico-teleológica a uma idéia de direito. Por fim, em terceiro lugar, a fenomenologia procura compreender o “apriorístico” não como uma forma para o entendimento, mas como uma estrutura essencial, imanente e material. Como afirma Reinach, as figuras jurídicas possuem um ser, de modo extra-temporal e anterior ao direito. Na concepção de Gerhart Husserl, as “figuras” do direito positivo são realizações e particularizações de possibilidade apriorísiticas dadas, como uma espécie de núcleo de sentido pleno de conteúdo. Segue, portanto, a filosofia de seu pai, Edmund Husserl, que procurava estabelecer uma compreensão e conferência de “sentido”, diante da consciência dos fatos intencionados nos quais se depara diante de si. O sentido pleno no direito é uma epistemologia que promove o preenchimento das lacunas numa integração. Em suas palavras: Um julgamento que se limita a uma simples presunção, se é passado na consciência à evidência correlativa, ajusta-se às coisas e aos “fatos” em si. Essa passagem tem um caráter especial pela qual a simples intenção vazia se “preenche” e se “completa”; ela assume o caráter de uma síntese pela recuperação exata da intuição e da evidência correspondente, a uma intuição evidente de que essa intenção, até então “distanciada da coisa” é exata. (HUSSEL, 2001: 28) É interessante que, apesar de E. Husserl entender que seu modelo de pensamento fenomenológico fosse neocartesiano, a rigor, Descartes era um racionalista puro e a intuição não se direciona a uma forma anterior e plena. Ao revés, basta o pensamento dedutivo a partir da verdade intuída puramente pela lógica do res cogitans (ou ser pensante). Não existe uma vivência no mundo da vida, mas uma distinção com a res extensans. O pensamento cartesiano é solipsista e sua intuição não passa pelo conceito de vivência. Como se extrai de sua 3ª regra, em sua obra Regras para a Direção do Espírito: Entendo por intuição, não o testemunho flutuante dos sentidos, nem o juízo enganador de uma imaginação de composições inadequadas, mas o conceito do espírito puro e atento, tão fácil e distinto, que não fique absolutamente dúvida alguma a respeito daquilo que compreendemos, ou o que é a mesma coisa, o conceito do espírito puro e atento, sem dúvida possível, que nasce apenas da luz da razão, e que, por ser mais simples, é mais certo que a mesma dedução, a qual, todavia, não pode ser malfeita pelo homem, conforme vimos acima. Assim, cada qual pode intuir com o espírito, que existe, que pensa que o triângulo está determinado somente por três linhas; a esfera, por uma só superfície e outras coisas semelhantes, que são muito mais numerosas do que muitos crêem, porque desdenham deter-se em coisas tão fáceis. (DESCARTES, 2002: 78) A legalidade, portanto, ao longo do século XX, passa por apropriação de uma formatação de uma idéia de justiça desde um neokantismo, um historicismo e uma fenomenologia, que, como delineia Karl Larenz, incorporam uma proposta jusnaturalista. Uma proposta que, contemporaneamente, supera uma noção específica em filosofia do direito, sem necessariamente passar pela historicidade ou pelo jusnaturalismo, é a noção ANAIS DO V CONGRESSO BRASILEIRO DE HISTÓRIA DO DIREITO 223 sistêmica de Niklas Luhmann. Certamente outras formas jurídicas poderiam ser trazidas para reflexão, porém esta é diferenciada no sentido de apresentar um fundamento sociológico, de modo empírico. A forma de unidade também é aqui sentida, de maneira que a “própria sociedade como um sistema social diferenciado pressupõe uma teoria geral dos sistemas sociais” (LUHMANN, 1994: 3). É um modelo que pensa o direito sem uma perspectiva de justiça, mas, de um lado, em sua dimensão operativamente fechada, apto a dizer o que é ou não o caso de seu processamento (gnosiologia) e, de outro lado, cognitivamente aberto a revelar uma autonomia relativa com outros sub-sistemas sociais fora de uma relação de causalidade a que conceitos como de justiça ou história inevitavelmente induzem. O que importa para o direito é a sua auto-reprodução, ou autopoiésis, permitindo a construção da realidade social. O sentido moderno que se pode aqui encontrar decorre do processamento de expectativas normativas dentro de códigos operativos do direito. Porém, retira o posicionamento do sujeito como na essencialidade do direito. A noção de sistema não é natural, mas um artifício, que não pode encontrar auxílio dentro de um jusnaturalismo. A justiça, aqui, se é que assim pode ser lida, será como a possibilidade de processar o sistema. As formas jurídicas, assim, evidenciam que tanto o jusnaturalismo, como o juspositivismo, nos mais diversos matizes, encontram-se a serviço do direito como sistema. A legalidade promove a ordenação e a previsibilidade do espírito humano auto-reprodutivo em qualquer das leituras de suas formas. A subjetividade, desde a modernidade entendida como povo e cidadã nas Cartas Constitucionais, passa a ser regulada pela nova ética moderna conforme os sub-sistemas sociais e as expectativas normativas determinam a realidade. O Estado de Direito, com o “Pacto Social” como seu primeiro contrato, para inúmeros contratos lucrativos “a posteriori”, tem como contratado o povo e como contratante o “povo soberano”. Estranho? Seria mais honesto falar em “petit-comité”. À moda de Wittgeinstein do Tratactus Lógico-Philosophicus, reinventa-se o jusnaturalismo racional para chegar ao positivismo kelseniano, que encontra a sua razão de ser na norma hipotética fundamental, não posta, mas pressuposta, isto é: o capitalismo histórico. 5 A ética capitalista “amorfa” da subjetividade e algumas ponderações das insuficiências no projeto moderno. A burguesia passa a conquistar o mundo. Seu braço forte é uma “forma jurídica” desessencializada. A ética, depois de assumido “o tipo capitalista” de vida, pode ser qualquer um. O capitalismo possui um ethos próprio que transcende a qualquer estilo de vida individual ou de visão de mundo religiosa. Como define Weber, existe uma “vocação” para o homem moderno capitalista, orientado para o sucesso, cujo gérmen encontrava-se na religiosidade. O controle da vida humana, seja a memória de seu passado, seja as suas atitudes futuras, encontram-se presos na rede de expectativas éticas para a obtenção de um bom “nome na praça”. Não entende no egoísmo do capitalismo selvagem como típico do moderno, mas sim o “egoísmo light”, orientado para um sucesso. Antes da modernidade, o homem devotava seu trabalho, por meio da religião, à Deus. Com a noção de homem moderno, adota-se a forma do lucro como padrão de vida, conforme o espírito do capitalismo, a partir de princípios burgueses dos quais são referência Benjamin Franklin. O sucesso e a disputa pelo melhor na empresa, ou o mais vocacionado, gera a seleção e a competição. É preciso despertar a “vocação” no aprendizado de virtudes: “Tal atitude, todavia, não é absolutamente um produto da natureza. Ela não pode ser provocada por baixos salários ou apenas salários elevados, mas somente por ser produto de um longo e árduo processo de educação.”(WEBER, 2001: 48-49). A validade sociológica do pensamento capitalista ocorreu desde a ascese protestante, com a perspectiva de acumulação e poupança ocasionadas pelo puritanismo, galgada no paradoxo: 224 O MODERNO: UM OLHAR NAS RAÍZES PARA ENTENDER OS FRUTOS de um lado, a capitalização do lucro diante da obstinada devoção ao trabalho dedicando o talento dado por Deus contrariamente à pecaminosa vadiagem e, de outro lado, pelo não consumismo ou permissividade de prazeres sensoriais e materiais, porque a riqueza proporcionava a possibilidade de tentação e ruína no plano espiritual. De toda sorte, o capitalismo passou a gerar uma indiferença com as visões de mundo compreensivas, uma vez que o utilitarismo e o lucro foram “naturalizados” em Weber. Como discorre o sociólogo: Tais pessoas, dominadas pelo espírito do capitalismo tendem hoje a ser indiferentes, se não hostis para com a Igreja. A idéia do piedoso aborrecimento do paraíso exerce pouca atenção sobre sua natureza ativa; a religião apresenta-se-lhes como um meio de afastar as pessoas do trabalho neste mundo. Se lhes perguntarem qual o sentido de sua atividade ininterrupta, o porquê da sua constante insatisfação com o que tem, dando assim, a impressão de ser tão desprovida de sentido para qualquer concepção de vida puramente mundana, a resposta, se soubessem de alguma, talvez fosse ‘para o futuro dos filhos e dos netos’. (ibidem: 55) Nota-se a subjetividade dentro de uma ética própria do capitalismo, cujas visões de mundo podem variar ou mesmo tomar contornos políticos de variados vieses. Ser de direita ou de esquerda é ultrapassado. Direitismo, esquerdismo e outros “ismos” já não foram derrotados pela história do capitalismo? Em nossa história, vale refletir, não foram poucos os casos de isolamento de personagens que se conduziram por idéias e, concretamente, não puderam tomar atitudes. Seja um liberalismo de Mauá, seja uma proposta moralização “das vassourinhas” de Jânio Quadros. Retome-se um ponto. O esquecimento do “povo” levou às revoluções sociais e à União Soviética. Uma baforada nas elites burguesas. Nada que o Estado de Direito não possa controlar, como afirmou Foucault, de modo panóptico e disciplinar e, atualmente, venha Negri a encontrar isso na biopolítica da sociedade globalizada. Entre nós, para não ficarmos apenas na Norte do globo, pode-se ilustrar com Vargas ao abrir um pouco esta panela para soltar a pressão com os direitos trabalhistas. Ou, cite-se Roberto Lyra Filho, que achou os esquecidos na rua. Voltando à Europa, o movimento 15-M, da atual Espanha, demonstra que as disputas democráticas ainda estão na agenda do dia. A incompletude do moderno, rabiscado na minuta de contrato social burguesa, privilegiou a propriedade. Porém, ao “povo” efetivo, então, deixou-se um vácuo aberto para pressões e para o surgimento de novos direitos dos quais chamam atenção o ecológico e o dos consumidores. Habermas, no projeto moderno, pretende satisfazer tais insuficiências. Dentro da concepção de Jürgen Habermas, é possível dentro do paradigma da linguagem, a obtenção procedimental da validade para a fim de promover a inclusão da subjetividade dentro do processo democrático. De maneira a preencher a lacuna moderna que deixou o “povo” de lado. Assim, contemporaneamente, dentro de uma dimensão normativa da modernidade, pretende assumir a forma de unidade do mundo da vida de modo pragmático e destrancendentalizado no mundo da vida; em suas palavras: A ‘objetividade’ do mundo significa que este mundo é ‘dado’ para nós como um mundo ‘idêntico para todos’. De mais a mais, é a prática lingüística – sobretudo o uso dos termos singulares – que nos obriga à suposição pragmática comum de um mundo objetivo comum. O sistema de referência construído sobre a linguagem natural assegura a qualquer falante a antecipação formal de possíveis objetos de refência. (HABERMAS, 2002: 39). Assim, existe um entendimento para fora do mundo dos fenômenos, dentro da noção de unidade no mundo e apreensível pelo discurso racional. Um mundo “ideal” do qual não podemos conhecer “em si”, de modo que a verdade obtém, na comunicação, uma função regulativa e ordenadora de modo transcendental, para além de nossas experiências. De ANAIS DO V CONGRESSO BRASILEIRO DE HISTÓRIA DO DIREITO 225 maneira que, atendida a pretensão de correção presuntiva, procedimental, é possível alcançar o resultado lingüístico democrático. A unidade, no projeto moderno-habermasiano de democracia, ocorre com o “todo” do mundo da vida, validado pelo discurso racional. Não é possível assumir-se um risco, a esse nível, de produção de qualquer resultado dentro de um respeito “a priori” das condições de fala do agir comunicativo. Dentro de uma perspectiva sociológica, como acentuado tanto em Weber como em Luhmann, haverá uma expectativa de comportamento regulada, o que se nota na ética de Benjamin Franklin conforme o capitalismo como unidade. Os resultados, ainda que extremos, encontram, ao fim e ao cabo, a unidade social, o que é visto dentro de uma postura marxista, como passível de um posicionamento crítico, como se depreende de Slavoj Žižek: No marxismo autêntico, a totalidade não é um ideal, mas uma noção crítica; situar um fenômeno em sua totalidade não significa ver a harmonia oculta do Todo, mas incluir em um sistema todos os seus “sintomas”, seus antagonismos e inconsistências, como partes integrantes. Nesse sentido, liberalismo e fundamentalismo formam uma “totalidade”, porque sua oposição se estrutura de modo que o próprio liberalismo gera seu oposto. Então onde se encontram os valores centrais do liberalismo (liberdade, igualdade etc.)? O paradoxo é que o liberalismo não é suficientemente forte para salvar seus valores centrais do ataque fundamentalista. Não consegue se manter de pé sozinho: falta alguma coisa no edifício liberal. Em sua própria noção, o liberalismo é “parasítico”, conta com uma rede pressuposta de valores comunitários que ele mesmo solapa no decorrer de seu desenvolvimento. O fundamentalismo é uma reação – falsa e mistificadoras, é claro – contra uma falha real e inerente ao liberalismo, e por isso o fundamentalismo é gerado, mais uma vez, pelo liberalismo. (ŽIŽEK, 2011: 71) A modernidade, orientada por uma lógica de unidade formal ideal, racional e ordenadora, promove a devoção ao sistema capitalista. Com isso, os paradoxos, por exemplo, com polêmicas de “burka”, reclamam uma inclusão de pretensões subjetivas antagônicas, proporcionando a arena racional como instância que valida a si própria procedimentalmente. 6 Estado Democrático de Direito: uma questão de dignidade! Na verdade, nossa história está em seu devir. A democracia radical, anunciada por Mangabeira Unger, parece consistir em cidadãos que olham a burguesia como igual. Não mais se contentam em assistir do palco das instituições representativas previstas no direito constitucional. Na visão de Giorgio Agamben, institucionalidade nos contornos do conceito de soberania, encontra-se no controle biopolítico de totalidade existencial do indivíduo, até sua vida nua. O soberano, como nos campos de concentração, é aquele que define a possibilidade de vida ou de morte. É interessante lembrarmos que esse conceito de soberania não possui afinidade com a concepção moderna, no que se poderia citar Thomas Hobbes, para quem a retirada do estado natural que nos deixa em risco de morte – o que se poderia assemelhar com uma pulsão de morte freudiana – acontece justamente quando o soberano erge-se como um super poder político por meio do contrato social, evitando a “guerra de todos contra todos”. Contudo, para Agamben, a decisão política, tendo por inspiração o pensamento schmittiano, situa-se no momento da definição política que define e articula as possibilidades ontológicas do indivíduo. Assim, mais do que uma pretensão de vigilância, o filósofo italiano entende como a possibilidade de matar o sujeito como o próprio fundamento da política. De maneira que, assim, todo o imaginário ocidental, na definição do conteúdo político, estaria ordenado a partir da possibilidade de morte sobre o indivíduo. 226 O MODERNO: UM OLHAR NAS RAÍZES PARA ENTENDER OS FRUTOS É preciso, no entanto, ter cuidado a respeito do que se pensa sobre a possibilidade de radicalização democrática. O “estado de emergência” pode ser uma resposta, cita Žižek, “aceita como medida necessária para garantir o curso normal das coisas” (ibidem: 49). O filósofo-psicanalista adverte que nossos tempos são “interessantes”, definindo interessante como “períodos de agitação, guerra e luta pelo poder, em que milhões de espectadores inocentes sofrem as conseqüências” (ibidem: 7). Invoca, assim, a necessidade de utopias, como o exemplo de Kravchenkos que estimulava e financiava projetos de produção coletiva na Bolívia. O citado “herói” suicidou-se diante do fracasso de sua empreitada. Ora, não é esse modelo ou exemplo que se pode esperar para novas utopias. Sistemas que nos levem ao precipício ou a um “estado de emergência” em que se reduzem as liberdades e garantias fundamentais contra o Estado Abusivo. O modelo, ao contrário, é do “curto-circuito” entre Hegel e o Haiti, de Susan Buck-Morss, em que os escravos proclamavam os ideais da Revolução Francesa de “liberdade, igualdade e fraternidade”, contrariamente aos exércitos de Napoleão que foram enviados para restaurar a escravatura e foram pegos de surpresa com cantos: “os soldados supuseram que fosse algum tipo de canto de guerra tribal; contudo, quando se aproximaram, perceberam que os haitianos cantavam a ‘Marselhesa’ e, em voz alta, perguntavam aos soldados se eles não estavam lutando do lado errado”(ibidem: 98). O Estado Democrático de Direito, pugnado por nossa “Constituição Cidadã”, acontece no diálogo e na legitima abertura ao debate. Por meio da dignidade humana e dos direitos fundamentais são possíveis fissuras contra a biopolítica. O diálogo, no Haiti, não se consumou como deveria. Ou seja, o resultado institucional que deliberou pelo envio de tropas para sufocar a rebelião, longe de emancipar, afastou a própria possibilidade de democracia. Havia, naquele momento, uma manifestação de um poder constituinte, “o povo”, para uma coerência lingüística de mútua dignidade. Nessa eficácia de proteção de direitos e garantias individuais, é possível pensar-se num “comum” compartilhado por cidadão que pretendem uma ordem constitucional que os proteja e assim estabeleça laços de união. O constitucionalismo não deve ser um paradoxo de acirramento de liberais e fundamentalistas, mas de uma pacificação estruturada no indivíduo em sua condição humana. No pecado original, Eva precipita-se e come a maçã proibida, aquilo que não possuía e, numa espécie de fetichismo, queria. Pretendia ser mais do que era e colocar-se acima da divindade acreditando na possibilidade de conhecimento pleno e de que assim poderia ter uma satisfação de seu desejo de poder. A modernidade rompe com o ideal místico da religiosidade, com instituições como o Estado, dentro de dimensões procedimentais. Não se cumpriram, no entanto, os pretendidos desejos de liberdade e igualdade. Antes o homem queria ser Deus, agora quer menos, apenas ser livre e igual. Não quer mais tanto a maça, mas pode ser uma torta com sabor de maça. O problema é que nada garante que um projeto de democracia radical, necessariamente nos levará para algo melhor. De maneira que se deve ter cuidado para não se piorar o estado constitucional atual. O sujeito, que orienta essa dignidade e esses direitos, nessa dinâmica, comeu ferozmente a torta da modernidade e esqueceu o sabor da maça prometida. Será que o desejo indômito de morder a maça não nos destruiu? Conclusão A modernidade promoveu um rompimento, não simplesmente econômico, porém mais amplo, com uma fundamentação de mundo religiosa. Porém, tal não significou o afastamento de uma concepção unitária, seja sob a forma de uma unidade jusnaturalística, histórica, sistêmica ou lógico-positivista. Isso somente tornou-se possível desde uma ética burguesa e ANAIS DO V CONGRESSO BRASILEIRO DE HISTÓRIA DO DIREITO 227 capitalista, que passou a ser pressuposta acima das plurais visões compreensivas de mundo, inclusive naquelas paradoxais que procedimentalmente afirmam o capitalismo. As insuficiências da modernidade, colocando o “povo” de lado das conquistas promovidas, representam uma potencialidade de conflitos que devem ser buscadas através de um diálogo na ordem Constitucional, porém não podem perder-se na comunicatividade a justificar a perigosa e odiosa instituição de um “estado de emergência”. Portanto, embora a Constituição não promova a efetividade imediata do que se pretende de uma ordem emancipatória, a Carta Magna agrega expectativas e protege, minimamente, da tirania. As novas utopias devem reclamar um diálogo que não se entenda “a priori” diante do respeito às pressuposições normativas, mas “a posteriori” com resultados de satisfação mútua, não como um desejo pelo novo ou pelo radical, mas com a parcimônia necessária para a constante construção da liberdade e dignidade. Referências bibliográficas AGAMBEN, Giorgio. O poder soberano e a vida nua I. Belo Horizonte: Editora UFMG. 2002. DESCARTES. Regras para a Direção do Espírito. São Paulo: martin claret. 2002. DUSSEL, Enrique. www.enriquedussel.org.br <último acesso em: 01/08/2011> HABERMAS, Jürgen. Agir Comunicativo e Razão Destranscendentalizada. Rio de Janeiro: tempo brasileiro. 2002. ________.Direito e Democracia: entre facticidade e validade. Volume 1. Rio de Janeiro: tempo brasileiro. 1997. ________. Direito e Democracia: entre facticidade e validade. Volume 2. Rio de Janeiro: tempo brasileiro. 2003. HARDT, Michael; NEGRI, Antônio. Multidão - guerra e democracia na era do Império. 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Os exemplos recentes são variados: o concubinato e a homoafetividade, para ficar apenas no campo do Direito de Família, evidenciam modificações na Justiça impensáveis em outros tempos. Significa que a reflexão sobre a mutação do Direito está na ordem do dia. Em tempos de globalização alteram-se as atribuições do Estado, emergem novas formas de direitos da coletividade, redimensionam-se problemas ambientais, econômicos e de convivência planetária. A reflexão sobre a transformação do Direito se faz necessária. Nisto, entretanto, devemos estar atentos. O discurso jurídico da modernidade construiu uma narrativa evolutiva linear sobre a historicidade do Direito. Tal procedimento tem dois grandes problemas, afirma Ricardo Marcelo Fonseca (2009). Em primeiro lugar, pela transformação da História do direito em discurso legitimador da ciência jurídica atual, na medida em que o instituto jurídico passa a pertencer à natureza das coisas. Em segundo lugar, é problemático porque transforma o Direito atual no ápice de um processo acumulativo, reforçando o progresso como ideologia justificadora (FONSECA, 2009, p 62-63). Nosso objetivo neste trabalho é apresentar a historicidade do conceito de evolução e de História. E faremos isto buscando evidenciar como a modernidade cria o Direito-lei ao mesmo tempo em que constrói a grande narrativa histórica totalizante do progresso da humanidade. Para tanto, seguiremos três passos. Em primeiro lugar faremos uma reflexão geral sobre a construção da História, com base em Koselleck. Na sequência, apresentaremos o nascimento de um Direito que se move, de um Direito histórico. Isto será feito através do exame das reflexões de Savigny e Ihering. Por fim, examinaremos como se constrói um discurso sobre Evolução e Direito no Brasil, com fulcro na obra de Sílvio Romero. 2. Idéias de História e Evolução O eminente historiador alemão Reinhart Koselleck (2006) afirma a historicidade do nosso conceito de História, termo abrangente capaz de albergar o caminhar de todo o gênero humano em uma única narrativa. Este transcorrer do tempo homogêneo e unido por uma seqüência de eventos é característico do século XVIII, surgindo mais especificamente no interior do ideário iluminista. Portanto, nem sempre existiu a concepção desta "grande História". Entre os antigos gregos, por exemplo, sequer havia o conceito de autonomia de uma ordem humana frente à natureza (LENOBLE, 1990). Assim, o tempo humano se confundia com o do universo. É comum deste momento imaginar o tempo cíclico. Em períodos de milhares de anos, o Sol, a Lua, Mercúrio, Vênus, Marte, Júpiter e Saturno estariam de determinada maneira e isto indicaria o reinício de um ciclo. Acreditava-se que neste haveria período de inundação e chuvas, correspondente a um "grande inverno", e um outro de destruição pelo fogo, um "grande verão" (MORRIS, 1998, p 36). Pitágoras inclusive acreditava que os mesmos eventos se repetiriam em cada ciclo. A Guerra de Tróia aconteceria novamente e os mesmos acontecimentos se sucederiam. Assim, um acontecimento é tanto passado como futuro, situação difícil de digerir para nossa mente contemporânea. A Idade Média também conheceu formas de encarar o tempo histórico distintas da contemporânea. Para melhor entendermos o tema, é preciso notar que o longo período entre o ANAIS DO V CONGRESSO BRASILEIRO DE HISTÓRIA DO DIREITO 231 IV e o XII caracteriza-se pela lenta expansão do catolicismo na Europa. O paganismo permaneceu vivo em segmentos variados da sociedade medieval e a pouca difusão das letras contribuiu para a má formação do clero e da cristandade em geral. Neste universo iletrado predominavam os raciocínios analógico e dualista, típicos do pensamento mágico da cultura oral e mágica. Assim, "a sociedade viveu - mais mal do que bem - sobre um modelo ideal, a Cidade de Deus. O essencial era que a cidade terrena, apesar das suas imperfeições, não tombasse para o lado do Diabo, para o lado do mal" (LE GOFF, 1993, p 251) Este mundo dividido em duas forças frequentemente personalizadas em figuras como Deus e Satanás é também impreciso quanto ao tempo e o espaço, pelo menos aos olhos modernos. Na geografia qualitativa que então prevalecia as pessoas que habitassem as Índias, por exemplo, seriam mais vagarosas porque localizadas no primeiro clima. Crosby (1999, p 47) salienta que os próprios pontos cardeais eram qualitativos. O sul é quente e representa a paixão de cristo, o leste sagrado porque apontava para o Éden, obrigando as igrejas a se orientarem pelo vetor leste-oeste, o primeiro indicando a posição do altar. Neste universo de substâncias e objetos imbuídos de qualidades, o transcorrer do tempo se dará de maneira diferente do mecanicismo, que fabricou uma temporalidade homogênea, linear e desprovida de encantamento. Nas sociedades medievais prevaleceram, grosso modo, as "histórias" de cunho escatológico e edificante. Em algum momento, nem sempre preciso, o mundo vai acabar. A cristandade, unida, deve rezar e buscar a salvação da alma. A própria Igreja fomenta essa imprecisão temporal. "O fim do mundo só é um fator de integração enquanto permanecer não determinável, do ponto de vista histórico e político" (KOSELLECK, 2006, p 26). Reinhart Koselleck afirma ainda que Cicero cunha um topos conceitual de História. Este está subsumido na expressão Historia Magistra Vitae. Significa que a História pode servir como exemplo edificante. Nela podemos colher situações e aprender com os erros. Trata-se de uma maneira de fazer aflorar a verdade, a boa conduta, através do estudo do fato passado. Esta maneira de perceber a História perdura até o XVIII, quando entram em cena as doutrinas da História movimento, a História como grande narrativa humana. Esta, decerto, não surge como novidade total. Desenhou-se aos poucos ao longo dos séculos até ganhar corpo. O período em torno do século XII, por exemplo, representa um momento de mudança na percepção temporal. O dinamismo citadino e comercial que toma conta de algumas regiões da Europa, notoriamente Itália e Holanda, vai modificar algumas concepções de Homem e de Cosmos que vicejavam até então. Uma maior exatidão e concretude no trato com o espaço-tempo vai se verificar. Trata-se do período que assiste a adoção dos algarismos arábicos, dos estudos cartográficos, do uso do relógio mecânico e do desenvolvimento das práticas contábeis, entre outros fatores. Paulatinamente formam-se ilhas de raciocínio quantitativo em meio ao imenso mar medieval de qualidades. O medievo deixa como um legado um certo pessimismo temporal. Trata-se da metáfora da morte, exemplificada por Saturno. À frente, não o progresso moderno, mas sim a corrução e a deliqüescência. Talvez por isso o sucesso de algumas nostalgias de uma era passada. A própria expressão "Renascimento" parece indicar isto. E o período renascentista vai mesmo reelaborar a noção de tempo e História. Agora, "O tempo resulta da ação concertada dessas três potências: recebe seu ritmo geral da natureza, sua direção e diretrizes da providência, da fortuna seus impulsos e caprichos" (DUBOIS, 1995, p 126). Natureza, providência e fortuna modelam a temporalidade. Está aberto o caminho para um novo conceito de História, como o de Bodin. 232 DIREITO E EVOLUÇÃO – UM ESTUDO DA OBRA DE SÍLVIO ROMERO No contexto dos confrontos religiosos do século XVI, Bodin erige um novo conceito de soberania calcado no poder monárquico. A pluralidade de confissões é a grande questão do momento. Ela rompe com a noção de cristandade medieval e impõe toda uma ordem de problemas que irá desembocar na elaboração de um novo paradigma sócio-político. Assim, Bodin busca redefinir os papéis de Igreja e Estado. O rei deve se encarregar da liderança do Estado e da Sociedade, evitando a cisão. Trata-se da "defesa da política contra os partidos" (LOPES, 2007, p 78). Significa que o rei passa a ser a fonte da lei e a religião deixa de ser elemento organizador do Estado, agora ligado a fins terrenos como ordem e paz social. A concepção de História de Bodin é inovadora para o período. Não se trata mais de contar a vida de um rei, de repetir o exemplo de vida heróica ou a narrativa edificante de um modelo político cristão medieval. Os estudiosos franceses da época acreditavam fazer uma Histoire Nouvelle, denominada "História Perfeita". Esta realiza uma transformação no foco adotado e também no uso das fontes. A necessidade do rigor na análise está aliada ao conceito de que a razão humana pode conhecer o passado. E isto está ligado à tentativa de descoberta do direito natural. Assim, o olhar histórico sobre as instituições revelaria a ordem subjacente ao caos, revelando as estruturas sólidas de um direito de caráter universal. Para tanto, Bodin separa a história sacra, a história humana e a história natural (KOSELLECK, 2006, p 28). Com isto, deixa de existir a política medieval da cristandade, que pressupunha a escatologia. Nesta, a comunidade cristã rumava ao fim dos tempos e o governo significava ser condutor de um rebanho, ser um pastor de almas. Agora, para os eruditos do XVI francês, é formatado um novo conceito de soberania, vinculado à ação humana. E isto é indissociável da existência de uma história humana, dimensão na qual reina a inteligência e o voluntarismo dos Homens. Mas é o XVIII que efetivamente significaria uma alteração profunda nas representações de História. Em primeiro lugar, está em curso uma modificação na maneira como se vê o Homem. Até então, a individualidade é vista como tendo centro na alma. A partir do Setecentos, cada vez mais a pessoa tem como centro de si a mente (MARTIN, 2004). Existe, portanto, uma construção da idéia de identidade física concreta. Essa humanidade concebida em sua concretude, apartada da dimensão metafísica da alma, gera também o conceito de possibilidade de uma história humana em si, separada da sacralidade e da natureza. Forma-se, então, todo um topos do humano, que passa a ter uma centralidade peculiar. O tempo linear em direção ao fim dos tempos deixa de ser exclusivo do tempo sacro e natural. Agora vai se integrar ao Homem de maneira estrutural e compor a ideologia do progresso. E, no cerne deste processo, surge aquilo que Foucault denomina de modo histórico de produção do saber, revelador da maneira como agora se organizam os discursos de poder e ciência em torno da pessoa. A partir deste momento, portanto, não predominam mais os sistemas jurídicos estáticos e lógicos do jusnaturalismo moderno. Hugo Grócio e Pufendorf saem de cena para a chegada das Escolas Históricas de Direito. 3. Direito e Evolução Se os séculos XVII e XVIII foram marcados pelo paradigma jurídico geométrico e axiomático, o XIX terá como plataforma os feitos da história natural. Esta, ao lado do desenvolvimento da Ciência Política, da Economia e da Sociologia, vai marcar as diretrizes básicas do desenvolvimento do Direito durante o século. Ao mesmo tempo, o Positivismo vai marcar de maneira indelével os rumos das reflexões jurídicas, legado com o qual ainda hoje nos defrontamos. ANAIS DO V CONGRESSO BRASILEIRO DE HISTÓRIA DO DIREITO 233 A partir do final do século XVIII e início do XIX teremos um elemento novo na problemática jurídica: a idéia de que o ideal de Justo pode mudar e, portanto, que o ideal de progresso pode se inscrever na ordem natural das coisas, não ficando restrita ao mundo do conhecimento humano. Esta modificação é introduzida pela adoção da História Natural como plataforma adequada para pensar o Direito. Na seqüência apresentaremos dois grandes momentos da introdução destas idéias no âmbito jurídico. Ambas tem lugar na Alemanha e possuem caráter bastante distinto uma da outra. A primeira, elaborada pelo jurista Savigny, chega à História Natural de forma mais discreta, através do pensamento romântico de Schelling. A Segunda, elaborada por Ihering, adere efetivamente à teoria da Evolução de Darwin, ainda que em uma perspectiva muito própria, sofrendo influência do utilitarismo inglês e da teoria econômica clássica. 3.1 A Escola Histórica de Direito 3.1.1 Contexto: A Alemanha do século XIX é marcada, de várias formas, pela Revolução Francesa. Quando cai a Bastilha, os jovens Schelling, Hölderlin e Hegel, então estudantes em um seminário de Tübingen, decidem comemorar o fato: plantam uma árvore que chamam de “árvore da liberdade”. Hegel viu na Revolução uma “nova aurora” e toda a sua reflexão filosófica estava apoiada na “ruína do mundo existente (SALIBA, 1991). Essa sensação de liberdade e novidade, porém, não durou muito. As invasões napoleônicas trouxeram um sentimento de humilhação e de alteridade para com a cultura da França revolucionária. A partira daí, “Bonaparte encarnava o aspecto menos desejável da Revolução, sua roupagem romana, seu aspecto latino-geométrico dos Códigos cartesianos, seu centralismo tirado dos Césares da sempre odiada Roma, antítese de tudo o que sempre fora a Germânia”(DE CICCO, 2006, p 211) O oxigênio mental desta geração de intelectuais alemães estava imbuído de um forte caráter reacionário contra as revoluções política e industrial do período. É o fértil período de Fichte, Schelling, Hegel, Schlegel e Schleiermacher, entre muitos outros. Muitos revalorizam temas do passado, como a Monarquia, a religiosidade, a aristocracia e uma herança cultural germânica que estaria em risco frente às transformações em curso (HERMAN, 2001, p 4748). Todas as tensões do período transparecem nas obras destes autores: o desejo de unidade frente à fragmentação do mundo, o sentimento de pertencer a uma cultura/nacionalidade, o drama da existência solucionado pela transcendência mística, a valorização do eu individual. É neste contexto que toma assento a Escola Histórica, um dos grandes momentos do pensamento jurídico que tem como iniciador Gustav von Hugo e encontra sua maior expressão em Friedrich Carl von Savigny. Merecem menção Georg Friedrich Puchta1, Johann Friedrich Göschen e Karl Friedrich Eichhorn. Entre a segunda metade e o final do século XIX o movimento se espalha e tem como principais nomes Henry Maine, na Inglaterra, e Raymond Saleilles, na França (HERKENHOFF, 2002, cap 3). 3.1.2 Características gerais 1 Puchta foi discípulo de Savigny e é majoritariamente considerado um integrante da Escola Histórica. Entretanto, há aqueles que enxergam em sua obra contribuições novas o suficiente para desvinculá-lo do mestre. Quem assim acredita o insere na Escola da Jurisprudência dos Conceitos. DIREITO E EVOLUÇÃO – UM ESTUDO DA OBRA DE SÍLVIO ROMERO 234 De forma muito ampla e desconsiderando as diferenças entre seus integrantes, podemos indicar algumas características gerais da Escola História alemã (AGUILAR, 1999, p 82): oposição ao Iluminismo e suas vertentes jurídicas, encaradas como portadoras de um contratualismo artificial e de uma racionalidade fria e distante da realidade vivida pelo povo; influência de Vico, no sentido de ver o direito como portador de um desenvolvimento orgânico em um ambiente particular; simpatia por E. Burke; aquilo que até então se entendia como direitos naturais eram uma miragem da razão. É Gustav Hugo que formula a idéia de que estes direitos pretensamente naturais são, na realidade, históricos. O ápice da Escola Histórica vem com os debates em torno da codificação ou não da lei alemã. Como vimos, o movimento codificador é tributário da idéia de que a razão é a principal fonte do Direito. Esta posição era defendida na Alemanha por Thibaut, um jurista alemão de origem huguenote francesa. Para ele, era essencial a criação de códigos de leis fundados na razão e capazes de regular todas as sociedades, não importando as circunstâncias locais ou históricas. A ele se opõe Savigny, também de origem huguenote francesa. Em seu célebre “Da vocação de nosso tempo para a legislação e a jurisprudência”, este jurista vai propor a impossibilidade de um código naquele momento sem que se conheçam as realidades de todas as regiões alemãs. Ou seja, o direito não está calcado na razão, mas sim sobre a História e a tradição. Em Savigny, a sociedade é um organismo vivo e o Direito faz parte do Volksgeist. Acredita, portanto, que as manifestações jurídicas desenvolvem-se espontaneamente como produto da consciência nacional e das tradições locais. Assim, os costumes devem ser as fontes principais das leis, que devem sim existir. Não se trata de uma recusa da organização de um sistema legal. É apenas que este não deve ser artificial, produto da razão. É necessário que o legislador seja porta-voz das regras consuetudinárias, consolidando-as em leis. 3.2 Schelling e Savigny: Com se nota, Savigny tem muito do romantismo nacionalista alemão. Nisso é muito influenciado pelo cunhado e poeta Clemens Brentano, tio de Franz Brentano. Através dele, é significativamente marcado por Novalis e, sobretudo, por Schelling (DE CICCO, 2006, p 211). Neste ponto, uma ressalva. Embora iremos salientar a proximidade de Savigny com o contexto romântico, ele não deve ser visto como um literato ou artista. Savigny tem diante de si um problema jurídico, que é a "renovação da ciência jurídica através da superação das abstrações acríticas" (WIEACKER, 2004, p 450). O que está posto, portanto, é uma questão de método e renovação do Direito. Jovem de inteligência prodigiosa, aos 23 anos Schelling é levado por Goethe para lecionar na Universidade de Iena. Reconhecido como um professor prodigioso, sua filosofia da natureza vai se espraiar pelo ambiente intelectual alemão(HELFERICH, 2006, p 265). O seu sucesso se deve, sem dúvida, ao fato de ter sido porta-voz das aspirações românticas de seu tempo. Schelling tinha profundo conhecimento teórico da ciência. Famoso como filósofo e teólogo, também realizou incursões no âmbito da matemática, ciências naturais e medicina. Interessou-se particularmente pelas descobertas no campo da eletricidade, magnetismo e ANAIS DO V CONGRESSO BRASILEIRO DE HISTÓRIA DO DIREITO 235 energia. Influenciado pela “doutrina da excitação”, do médico escocês John Brown, e pela “doutrina do desenvolvimento”, do biólogo alemão Carl F. von Kielmeyer, Schelling passa a desenvolver a idéia de um princípio imanente na natureza, recusando o mecanicismo das relações causais exteriores (GONÇALVES, 2006, p34-35). Nicolai Hartmann assim apresenta a filosofia da Natureza de Schelling: “Na Natureza existe uma organização prevalecente, organização que não se pode conceber sem uma força produtiva. Tal força necessita, por sua vez, dum princípio organizador. Este não pode ser um princípio cego de realidade, tem de ter produzido teleologicamente a adequação contida nas suas criações. Portanto, só um princípio espiritual pode ser capaz disto, quer dizer, um espírito exterior ao nosso espírito. Mas, já que não podemos admitir uma consciência fora do Eu, o espírito que cria a Natureza há de ser um espírito inconsciente”(HARTMANN, 1983, p 135) Schelling, portanto, vê no mundo natural um princípio espiritual. A partir daí, busca repensar a separação entre res extensa e res cogita, ou seja, entre natureza e sujeito. A Natureza não é apenas um objeto inerte e geometrizável, como na concepção mecanicista. É agora um sujeito que, além das características já mencionadas, é portador de história. Assim se explicam as transformações que observamos na natureza, sejam biológicas ou geológicas. Neste contexto, “(...) nós, seres humanos, livres e autoconscientes, somos não apenas parte ou fim último dessa sua história, mas o meio pelo qual ela é finalmente revelada”(GONÇALVES, 2006, p 37) Aqui temos outra faceta do pensamento schellinguiano: o monismo que encerra em si o mundo natural e o homem reflexivo, este cada vez mais descobridor das finalidades do universo. É exatamente nesta concepção monista que encontramos Savigny e a Escola Histórica. A importância de Schelling é tão grande neste campo que autores como Claudio de Cicco afirmam que “seria impossível Savigny sem a base que foi Schelling” (DE CICCO, 2006, p 214). O jurista teutônico encampa os conceitos de totalidade, unicidade e transformações auto-reveladoras do espírito universal. E faz isto tudo tendo por base a valorização do germanismo e da vida comunitária do mundo de língua alemã. Acompanhemos o raciocínio de Savigny: “Nos tempos mais antigos as quais se estende a história autêntica, verifica-se que a lei já havia alcançado um caráter fixo, peculiar ao povo, como a sua língua, costumes e religião. Mais ainda, esses fenômenos não têm existência separada; são apenas as tendências e faculdades particulares de um povo, inseparavelmente unido, e apenas mostram a nossos olhos a aparência de atributos distintos”(SAVIGNY, 2002, p 289). Aqui apresenta-se a idéia de unicidade, de totalidade e comunhão dos diversos fenômenos da vida social. O Direito, assim como a “língua, costumes e religião” faz parte do volksgeist. Não podemos, portanto, pensar o fenômeno jurídico apartado das outras dimensões de uma mesma sociedade. Neste sentido, a respeito da codificação, Savigny afirma que: “O Código, então, como está planejado para ser a única autoridade-lei, deve conter de fato, por previsão, uma decisão pra cada caso que possa surgir. (...) Mas quem quer que tenha estudado casos jurídicos com atenção, verá logo que esse empreendimento deve falhar, porque positivamente não há limites para as variedades das reais combinações de circunstâncias”(SAVIGNY, 2002, p 291) Ou seja, a racionalidade da lei iluminista é uma abstração. E, como tal, é um artifício que não dá conta das inúmeras situações da vida real. A combinatória de tudo que ocorre e 236 DIREITO E EVOLUÇÃO – UM ESTUDO DA OBRA DE SÍLVIO ROMERO que tenha significado jurídico escapa da razão legal. Trata-se da oposição entre a palpitante vida das comunidades e a frieza das racionais fórmulas impostas pela legislação. A solução para este problema se dá pelo historicismo. “A história, mesmo na infância de um povo, é sempre uma nobre professora; mas, em tempos como o nosso, ela tem ainda um outro dever mais sagrado a cumprir. Porque só por meio dela se pode manter uma ligação viva com o estado primitivo do povo; e a perda dessa ligação deve tirar de todo povo a melhor parte de sua vida espiritual”(grifo nosso) (SAVIGNY, 2002, p 298) A História é a ponte que liga um povo ao seu estado primitivo. E esta ligação é responsável pela espiritualidade de uma sociedade. Daí a importância das tradições, dos costumes. É no nosso encontro com o passado que nos revigoramos. É neste encontro com os antepassados da comunidade que podemos sentir a presença do espírito de uma nação. No caso, trata-se da afirmação de uma espiritualidade alemã, de uma mentalidade germânica elaborada em oposição às culturas industriais e racionalistas da França, notoriamente, mas também da Inglaterra. A polêmica de Savigny e Thibaut repete, grosso modo, aquela entre Goethe e o jovem Schiller. Savigny era aristocrático e preso aos valores da terra, viu com maus olhos o terremoto revolucionário francês. 3.3. Ihering: Um dos grandes opositores da Escola Histórica será o jurista Rudolf von Ihering. Ihering se torna famoso no Brasil por ter sido inspirado e conhecido diretamente os intelectuais do grupo da Escola de Recife, notoriamente Sílvio Romero. De fato, o sergipano convidou-o a conhecer a Faculdade de Direito de Recife, o que realmente ocorreu, e gabavase de ser o introdutor de suas idéias em nosso país. A obra de Ihering é um bom exemplo da recepção da teoria da Evolução no meio jurídico. Influenciado, entre outros, por Darwin, o jurista alemão vê o Direito de certa forma ligado à História Natural. O título de sua principal obra já é um indicativo de seus conceitos: “A luta pelo direito”. Basicamente, afirma que todo ser humano vive em função de algum interesse. O motor da sociedade é então a busca egoística da satisfação pessoal: “A autopreservação e a propagação do indivíduo são ... condições necessárias para a realização da finalidade da natureza. Como ela atinge essa finalidade? Despertando o egoísmo. Ela realiza isso, oferecendo-lhe um prêmio caso faça o que deveria, a saber, prazer; e ameaçando com punição se não fizer o que deveria, a saber, sofrimento”(IHERING, 2002, p 401) Neste excerto está implícita a idéia de competição entre indivíduos que perseguem seus interesses individuais. Mais que isso, é através deste mecanismo que encontramos as “condições para a realização da finalidade da natureza”. Trata-se da transposição do ideário darwinista para o mundo do liberalismo do século XIX. O próprio Ihering confirma isto ao mostrar que neste jogo de interesses surge a idéia de contrato e comércio: “comércio é a organização da satisfação assegurada das necessidades humanas, que se baseia na alavanca da recompensa”(IHERING,2002, p 405). Há, portanto, uma curiosa ligação entre a competição natural, o egoísmo-interesse e direito privado. Ihering, entretanto, não vai se deixar levar pela corrente darwinista até as últimas consequências. Nesse sentido, não se pense que o papel do Estado é esquecido: “O Estado é o único competente, bem como o único proprietário da força coercitiva social – o direito de coagir constitui monopólio absoluto do Estado. Toda associação que deseja realizar seus direitos sobre seus membros, por meio de ANAIS DO V CONGRESSO BRASILEIRO DE HISTÓRIA DO DIREITO 237 coerção mecânica, depende da cooperação do Estado, e o Estado tem o poder de fixar as condições sob as quais garantirá tal ajuda” (IHERING, 2002, p 412) De um lado temos o Estado, único ente com poder coercitivo em sociedade. De outro temos as pessoas e seus interesses. Nesse quadro, Ihering vê o Direito como o garantidor e equilibrador dessas esferas individuais egoísticas. Aí está uma dimensão de Ihering que se opõe ao darwinismo social. Aqui não se fala em "sobrevivência do mais apto", mas sim na possibilidade de garantia do mais fraco pelo Direito. Existe um espaço aberto, portanto, para um Direito com fundamento social. Assim, muitos autores enquadram Ihering como precursos das teorias sociológicas do fenômeno jurídico. Ihering, entretanto, não chegou a finalizar suas reflexões. Ele morre enquanto debatia o assunto, que permanece uma faceta inacabada de sua obra. De qualquer forma, o conceito de Direito que emerge daí é profundamente diferente daquele de Savigny. Para o jurista da Escola Histórica existe uma transformação harmônica do mundo legal, fruto do espírito que anima aquele povo. É um conceito que visa a comunhão, a harmonia, a transformação lenta feita ao longo dos tempos. Como a língua, o direito seria algo natural e espontâneo. Ao aderir a Darwin, do utilitarismo inglês e da teoria econômica clássica, Ihering vai se opor a esta perspectiva. Para ele, o Direito é sinônimo de interesse, de luta. E as transformações das leis não são harmônicas, espontâneas. São fruto de choques de diferentes interesses na selva das relações humanas. 4. Escola de Recife e Sílvio Romero Para José Murilo de Carvalho (2003) a elite cultural sempre fora homogênea no Brasil. No geral eram egressas da Universidade de Coimbra, o que lhes garantia formação similar. Após a Independência, aos poucos começam a aparecer os formados nas academias militares e nas faculdades de Direito nacionais. Ainda que de vagarosamente, isto começa a mudar a partir de meados do XIX. Alguma diversidade começa a se formar a partir daí. Os diferentes centros intelectuais começam a ter sotaques regionais. Nesta formação de redes locais em torno dos pólos de saber está a atuação das oligarquias. De acordo com WOLKMER (2009, p 96-97) aí está uma das características do liberalismo brasileiro: era mais voltado para os interesses de uma elite do que aos ideais democráticos. Em 1827 são fundadas as primeiras faculdades de Direito do Brasil, localizadas em São Paulo e Olinda. Esta última posteriormente foi transferida para Recife, onde amadurece, transformando-se em um dos grandes centros intelectuais do século XIX em nosso país. Habitualmente afirma-se que São Paulo fica marcada pela preeminência do positivismo de Comte, ao passo que Recife caracteriza-se pelo cientificismo, pelo germanismo e pelo evolucionismo. A expressão "Escola de Recife" é cunhado apor Sílvio Romero em "Prioridade de Pernambuco no movimento espiritual brasileiro", artigo escrito em 1879 no meio da escaramuça intelectual contra parte dos eruditos fluminenses. Ali, escreve Sílvio Romero que "de todos os centros intelectuais do Brasil, se é que neste país os há, a cidade de Recife, nos últimos anos, é a que tem levado a palma aos outros na iniciativa das idéias" (apud MORAES FILHO, 1985, p 43). A afirmativa levou à réplica de Carlos de Laet, que denominou o grupo de "escola teuto-sergipana". Sílvio Romero possuía uma certa tendência a enxergar "escolas". Em sua "História da Literatura Brasileira" encontramos menção à presença de uma Escola Baiana e uma Escola Mineira de Literatura, respectivamente, no primeiro e segundo momento de formação de nossas letras (ROMERO, 1949). Evaristo de Moraes Filho repudia a denominação "Escola de 238 DIREITO E EVOLUÇÃO – UM ESTUDO DA OBRA DE SÍLVIO ROMERO Recife" para o grupo que se formou a partir e em torno da figura de Tobias Barreto. Este não possuiria "singularidade e originalidade" com relação a outros centros de erudição no Brasil. Positivismo, naturalismo e evolucionismo, entre outras tendências, não seriam exclusividade do grupo pernambucano. Além disso, as dissenções teóricas no interior do próprio grupo de Recife não eram desprezíveis. Tobias Barreto, por exemplo, parece não ter levado muito a sério o termo "escola". Além disso, no cerne do seu pensamento estava a noção de que inexistiria uma cultura humana global, mas sim uma pluralidade de sociedades. Essa descrença em um conceito geral de humanidade contrapõe-se à crença de Sílvio Romero de que é possível uma ciência social, a sociologia. Entretanto, se adotarmos o termo "Escola" como comunhão de interesses ou de atitudes, o termo pode sim se aplicar ao grupo. Neste sentido, a expressão "escola de Recife" é utilizada por MACHADO NETO (1969) e MARTINS (1979), entre outros. Em um restrito universo de duas academias de Direito, não seria difícil elencar os traços distintivos entre elas. E SCHWARZ (2007) afirma que as diferenças são maiores que as semelhanças. A faculdade do Largo de São Francisco tendeu a aderir ao liberalismo conservador que vicejou no pós revolução francesa. A isso somou as teorias evolucionistas e a defesa irrestrita da ação do Estado. Com isso, "não só tendeu a legitimar a vigência de um Estado autoritário e claramente manipulador, como procurou na teoria evolucionista a certeza de sua origem e de um futuro certo" (SCHWARZ, 2007, p 182). Em Recife, de acordo com Machado Neto, predominaram os monismos evolucionistas de Spencer, Noiré e Haeckel, este último não de forma duradoura. O germanismo foi a nota distintiva da escola, com destaque para a figura de Tobias Barreto, que chegou a fundar um jornal escrito em alemão no Nordeste do século XIX. COSTA (1987) afirma que o germanismo chega ao Brasil substituindo um espiritualismo eclético, fato que efetivamente se nota em Recife. As diferenças entre as duas academias podiam ser notadas no dia a dia. Em São Paulo predominava o ensino do direito civil, cadeira que ensina o direito de propriedade e a regulação dos contratos. Exigia-se o inglês como língua e a ênfase estava no ensino de caráter filosófico. O objetivo era a formação de "burocratas do Estado". Recife, por sua vez, exigia o conhecimento do inglês, italiano e alemão. O italiano servia para a leitura de Lombroso e demais autores de sua escola criminológica, muito em voga na época. Já o alemão destinavase aos autores do darwinismo social. O foco era o direito penal ou, mais especificamente, a "antropologia criminal" e suas muitas variantes: a antropologia física, a frenologia, o determinismo racial. O fulcro era a ciência e, mas propriamente, a biologia. Menos que quadros profissionais, a escola de Recife visava a formação de "homens de ciência" (SCHWARZ, 2007, p 183-184). MACHADO NETO divide divide a trajetória da Escola de Recife em etapas. Passado o primeiro momento, de caráter literário, ali se desenvolveram fases intelectuais distintas. Em uma primeira, até 1875, a característica é a iniciação algo eclética no positivismo e nos vários modelos de evolucionismo. A tônica geral era o embate contra o jusnaturalismo católico imperante no pensamento jurídico de então. Um segundo momento tem início em 1875, com a áspera dissensão entre Sílvio Romero e Coelho Rodrigues, por ocasião da defesa de tese do primeiro. Romero escandaliza a congregação ao afirmar a morte da metafísica e abandona a defesa. Daí, até por volta de 1885 teremos uma fase de abandono do positivismo. Eleito deputado, muda-se para o Rio e publica "A Filosofia no Brasil", em 1878, obra na qual critica a intelectualidade fluminense e enaltece ANAIS DO V CONGRESSO BRASILEIRO DE HISTÓRIA DO DIREITO 239 a figura de Tobias Barreto. Inicia, em 1881, o magistério de Filosofia no Colégio Dom Pedro II, obtido em memorável concurso. Em uma terceira fase da Escola de Recife, que perdura até o final do século, teremos a morte de Tobias Barreto, em 1889, e a oposição firme ao Positivismo, característico do Sul do Brasil. O monismo de Haeckel também é objeto de debate. Neste período, Sílvio Romero publica "História da Literatura Brasileira" (1888) e "Ensaio de Filosofia do Direito"(1895), entre outras obras. Em 1894, em "Doutrina contra Doutrina", fica clara a sua adesão ao evolucionismo de Spencer. A última fase da Escola vai até a morte de Romero, em 1914, e assiste à dissolução do ímpeto que a caracterizou até então. Sílvio Romero também se insere nesta geração de "modernistas de 1870". SCHNEIDER (2005, p 23) afirma que a sua adesão à perspectiva sociológica é ao mesmo tempo "riqueza e miséria". Diferentemente de Tobias Barreto, Romero acreditava na possibilidade da ciência social. Mais concretamente, questionava como construir a modernidade e a civilização em um país como o Brasil. Este é o eixo que agrupa e orienta as várias atividades intelectuais às quais se dedicou. Em nome deste ideal de modernização, Sílvio Romero aderindo ao naturalismo e ao universalismo cientificista. A sua naturalismo de forma determinista, em um primeiro momento. turbulento, com vasta gama de interesses (DIMAS, 2009). Com acuidade o que ganha em visão de conjunto. combate o Romantismo, sociologia está ligada ao Romero é um polemista isso, por vezes perde em Sua preocupação prática era o estudo da literatura e da ciência como forma de compreensão do Brasil. Assim o seu ideário de progresso poderia se concretizar. De forma geral, podemos afirmar que Sílvio Romero via a mestiçagem e a natureza como condições particulares do nosso país. Além delas está a Ciência, que é ideal universal e fator de evolução (SCHNEIDER, 2005, p 41). Tendo em vista esse eixo fundador de seu pensamento, Romero vai produzir copiosa obra em vários campos do saber. Sociologia, Filosofia, Literatura, Folclore e Direito, são alguns dos ramos do saber que lhe interessam. Pode-se mesmo afirmar que seu trabalho é seminal na Sociologia e na crítica literária. Sílvio Romero reconhece não ser adepto de uma filosofia fechada. "O meu systema philosophico reduz-se a não ter systema algum", afirma, "porque um systema prende e comprime sempre a verdade" (apud MACHADO NETO, 1969, p 99). A linha de suas reflexões alterou-se com o decorrer de sua vida. A tônica geral de suas reflexões pode, entretanto, ser traçada. Ao longo de sua vida, os seus principais mentores intelectuais são Littré, Buckle, Taine, Haeckel, Spencer. MELLO E SOUZA (1945) comenta que muitas das leituras científicas de Romero vem de livros com explanação genérica acerva de múltiplos teóricos. Nesse sentido, a "História da Criação", de Haeckel, expunha Kant, Lamarck, Goethe, Lyell e Darwin e "deveria ser um tesouro" para ele, a rigor, bacharel mal formado nas ciências naturais. "Força e Matéria", de Buchner, deve ter tido efeito similar. O período de embate intelectual no Rio de Janeiro é marcado pela crítica às "idéias antigas", tidas como ornamentais e pouco científicas. Para Romero, o "romantismo foi um fenômeno de importação, incapaz de cuidar da nossa realidade" (MELLO E SOUZA, 1945, p 61). Em um prefácio intitulado “A poesia de hoje”, Sílvio Romero assim se manifesta: “Estes nomes [Darwin, Comte, Spencer, Buckle, etc] exprimem a grande transformação das ciências da natureza, invadindo a esfera das ciências do homem. Todos sabem que a religião, a linguagem e a história, o direito, a política e a 240 DIREITO E EVOLUÇÃO – UM ESTUDO DA OBRA DE SÍLVIO ROMERO literatura são agora tratados por método bem diverso daquele por que o eram há trinta anos (...) Nesta altura, sua [da arte] primeira obrigação, entre nós, há de ser o completo abandono de meia dúzia de célebres questões, que hão sido o eterno martelar dos autores brasileiros. Por este modo, esquecer-se-á de índios e de lusos para lembrarse da humanidade; não indagará se é nacional para melhor mostrar-se humana (...) Procuram-se hoje as leis de uma sistematização exata de nossa vida pensante. Sabese agora que não somos um povo de alta cultura, não porque nos faltassem frases, que nos sobram; mas por faltar-nos a ciência; não por falharem os trovadores, mas porque não se encontram os artistas” (apud MARTINS, 1979, p 36) Na "Filosofia no Brasil", de 1878, Romero afirma seguir Littré, acompanhando Comte apenas em linhas gerais. Afirma também acompanhar o "transformismo de Darwin", buscando a sua união com Littré. A leitura darwinista das raças no Brasil é certamente um dos aspectos mais criticados no seu pensamento. Em "Folclore Brasileiro", por exemplo, encontramos o seguinte excerto: "Das três raças, que constituíram a atual população brasileira, a que um rastro mais profundo deixou foi pro certo a branca, segue-se a negra e depois a indígena. À medida, porém, que a ação direta das duas últimas tende a diminuir (...), a influência européia tende a crescer, com a imigração e com a tendência de prevalecer o mais forte e o mais hábil" (ROMERO, 1954, p 19) Sílvio Romero claramente desenvolve a idéia de que a raça branca é a "mais forte", a "mais hábil". O dilema aqui é modernizar uma nação mestiça. Embora exista uma aceitação da realidade, Romero não esconde um certo pessimismo: " a nossa tese, pois, é que a vitória definitiva na luta pela vida e pela civilização, entre nós, pertencerá no futuro ao branco; mas que este, para esta mesma vitória, atentas as agruras do clima, tem necessidade de aproveitar-se do que de útil as outras duas raças lhe podem fornecer" (ROMERO, 1954, p 22) Trata-se do período dos grandes monismos: Hegel, Marx, Spencer, Haeckel. Spencer é autor extremamente popular nas últimas décadas do século XIX. Ideólogo do socialdarwinismo, Spencer usava o bordão “sobrevivência do mais apto” no contexto social. Assim, gozava de apreço no mundo anglo-saxão e norte-americano, uma vez que naturalizava as conquistas destes países (LEWONTIN, 1984, p 26). A evolução seria fruto deste movimento competitivo. Pessoalmente, Darwin mostrou-se reservado na aplicação de sua teoria à sociedade. Entretanto, variações de Hobbes, Malthus e Spencer se tornam muito populares associadas ao darwinismo no século XIX e início do XX. Haeckel, por sua vez, elabora a posteriormente denominada "teoria da recapitulação". De acordo com esta, "a ontogenia recapitula a filogenia", ou seja, o desenvolvimento das estruturas morfológicas de um embrião, por exemplo, seguiria os passos evolutivos da espécie. À medida que se inclina para o evolucionismo, Romero irá se afastar do Positivismo. São marcos deste período a "História da Literatura Brasileira" (1888), "Doutrina contra doutrina" (1894), que representa a adesão a Spencer e "Ensaio de Filosofia do Direito" (1895). De forma geral, podemos afirmar que a publicação do "Ensaio" significa período de depuração do evolucionismo spenceriano, da elaboração de restrições a Haeckel e da passagem das preocupações filosóficas para as sociológicas (MELLO E SOUZA, 1945, p 119) No âmbito do Direito, permanecem as demais características da obra de Romero. Ele procurou combater a metafísica e aproximou o jurídico de uma ordem natural materialista. Há, portanto, um caminhar em direção ao monismo. Neste ponto Romero toma o darwinismo biológico e o aplica à sociedade. Sem aderir ao determinismo, sua leitura de Darwin vem através de Haeckel, a quem critica nesta fase. ANAIS DO V CONGRESSO BRASILEIRO DE HISTÓRIA DO DIREITO 241 Romero apresenta a lei de heterocronia, de Haeckel, da forma como definida por Spencer: “da mesma forma que, no embrião de uma animal superior, vêem-se partes importantes de diversos órgãos aparecerem fora da ordem primitiva, por antecipação, por assim dizer, de igual modo, para com o corpo em geral, acontece que os órgãos completos que, na série de fenômenos da gênese primitiva do tipo (filogênese) aparecerem relativamente tarde, vêm relativamente cedo na evolução do indivíduo (ontogênese). Esta antecipação, chamada pelo professor Haeckel hetereocronia (...)” (ROMERO, 2001, p 86). Trata-se, portanto, de fator importante na evolução de uma espécie. Os caracteres adquiridos evolutivamente ficam registrados no espécime, podendo ser recapitulados. Os novos organismos gerados após a modificação evolutiva, por exemplo, tendem a antecipar a mutação. Esta tendência é a heterocronia. Há, portanto, relação entre a marca do indivíduo de uma espécie e a lei de evolução em geral. À época, muitos procuravam aplicar a heterocronia às sociedades. É neste ponto que Romero vai se insurgir contra Haeckel e Spencer. Este último ensina que, “os organismos sociais novos recapitulam e reproduzem as mesmas fases e metamorfoses dos organismos sociais que os geram, como ainda que naqueles organismos novos se verifica a lei paralela da repetição acelerada e antecipada” (ROMERO, 2001, p 87). Os Estados Unidos seriam um exemplo desta teoria. No oeste ignoto e desabitado já surgiriam estações de trem, estruturas comerciais e estatais ainda que em meio ao nada. Assim, a nação mãe, a Inglaterra, aos poucos se veria reproduzida e de forma antecipada. Neste ponto dos “Ensaios”, Romero faz ampla demonstração histórica da inveracidade desta proposição. Cita exemplos de colônias cuja feição e destino não se assemelhava aos de suas “genitoras”: Tiro e Cartago, gregos e Marselha, etc. A ontogenia social de Greef também é criticada. De acordo com esta, uma sociedade, ao entrar em contato com outra mais avançada, deveria reproduzir todas as etapas anteriores. Mas, pergunta Romero ironicamente, "onde foi que já se deu essa maravilha?"(ROMERO, 2001, p 89) Aqui já está delineada uma tendência do pensamento de Romero que já estava visível nos "Princípios de Sociologia", de 1891. Afirma MELLO E SOUZA (1945, p 126) que a partir daqui os autores naturalistas são deixados para trás e encontramos agora citações de sociólogos: De Greef, Giddings, Tarde, Vaccaro, Gumplovicz. É por isso que se afirma tratar do momento no qual Romero começa a passar da Filosofia para a Sociologia. Ocorre também um abrandamento do determinismo naturalístico dos primeiros tempos. A identidade entre ciências da natureza e do homem permanece. Mas, se o homem é cultural, é também natural. Romero concebe as sociedades como um subconjunto do conjunto maior do meio e da raça. O Direito, na forma como aparece no "Ensaio", é produto da cultura que, como afirmado acima, é natural. Então não há mais o determinismo direto da natureza sobre o fenômeno jurídico (ou outros). Existe uma mediação pelo social, fato inexistente nas primeiras obras. Ao tratar especificamente da evolução do Direito, Romero é spenceriano. Assim, a História do Direito seria vista sob a perspectiva da ação humana evolutiva e teria passado por fases: 1 - instinto naturalístico; 2- início da consciência moral a partir de soluções produzidas pela "superior inteligência dos chefes"; 242 DIREITO E EVOLUÇÃO – UM ESTUDO DA OBRA DE SÍLVIO ROMERO 3 - imitação dessas soluções; 4- formação dos costumes; 5- transformação dos costumes em leis escritas gerais; 6- "comunismo" antigo; 7 - solução deste comunismo em direção ao individualismo, processo que prossegue nas democracias modernas. A linha evolutiva do Direito, portanto, tem um aspecto naturalístico. Romero fala em "instinto" e "inteligência", em outras partes menciona "família", sempre neste viés de cunho biológico. Não é difícil inferir que boa parte do debate sobre sua obra vai recair no binômio natureza X cultura. Sobre o tema, Romero afirma que existem "elementos naturais e biológicos no Direito", no sentido de Spencer, Ihering e Tobias Barreto, mas que "há os outrossim culturais" como também querem Fröbel, Tobias Barreto e Ihering (ROMERO, 2001, p 165). Mais claramente, afirma: "Sendo o Direito uma disciplina prática, esta varia conforme os meios, as circunstâncias históricas, políticas, econômicas, sociais. Por isso cada povo tem o seu Direito peculiar, como tem a sua arte que lhe é própria, a sua política que lhe assenta.(...) Todas as criações de um povo, poesia, religião, literatura, mitos, lendas, línguas, refletem-lhe o caráter. Seria um milagre histórico que só o Direito se furtasse a essa lei geral" (ROMERO, 2001, p 165) Novamente, percebemos aqui o abandono do determinismo naturalístico e a presença da mediação social e cultural. Entretanto, não esqueçamos que, para Sílvio Romero, permanecem as índoles das raças e o peso do meio. 5. Conclusão É frequente, nos manuais jurídicos, a referência a uma História linear e progressiva do Direito. Entretanto, a análise da historicidade em Savigny, Ihering ou Sílvio Romero revelam que a própria narrativa do tempo oscilou de forma significativa, mesmo na tradição liberal. A elaboração do "Absolutismo Jurídico", expressão cunhada por Paolo Grossi (2006, p 123-137) e acertadamente festejada, implica na construção do Direito simplesmente enquanto lei, fato que mitiga o voluntarismo do governante e caracteriza as democracias liberais. O registro que fica é este. Que a partir das revoluções liberais a razão humana, livre e soberana, constrói um ordenamento jurídico racional destinado ao governo democrático. Pretendemos mostrar aqui que essa História do Direito enquanto história da razão humana progressiva em direção ao império da lei não foi a única elaboração ideológica do mundo capitalista ocidental. Período de colonialismos, foi também o momento das teorias da evolução e darwinismo social. Os monismos evolucionistas, quando aplicados ao campo jurídico, inserem o Direito no âmbito da ordem natural. E naturalizam a teoria e os institutos jurídicos não através da História racional humana, mas usando o argumento do fundamento científico. E, claro, a partir daí também elaborou um certo conceito de História calcado na evolução biológica do Homem. Referências ANAIS DO V CONGRESSO BRASILEIRO DE HISTÓRIA DO DIREITO 243 AGUILLAR, Fernando Herren. Metodologia da Ciência do Direito. São Paulo: Max Limonad, 1999 CARVALHO, J M. A construção da ordem. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2003 COSTA, J. C. O pensamento brasileiro sob o Império. In Holanda, SB. História Geral da Civilização Brasileira - O Brasil Monárquico - Reações e Transações. Rio de Janeiro: Bertrand Brasil, 1987 CROSBY, A. A mensuração da realidade - a quantificação e a sociedade ocidental 12501600. 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Grupo de Trabalho: Ensino e Cultura Jurídica 246 JOÃO MENDES JUNIOR E A CONSTRUÇÃO DOS DIREITOS TERRITORIAIS INDÍGENAS JOÃO MENDES JUNIOR E A CONSTRUÇÃO DOS DIREITOS TERRITORIAIS INDÍGENAS JOÃO MENDES JUNIOR Y LA CONSTRUCCIÓN DEL LOS DERECHOS TERRITORIALES INDÍGENAS Adriana Biller Aparicio* Resumo: A primeira defesa dos povos indígenas da América foi desenvolvida com base no ideal jusnaturalista cristão do século XVI, visando preservá-los da escravização deliberada. No final do século XIX, as políticas indigenistas republicanas de inspiração positivista tomaram a cena pública viabilizando a territorialização do Estado nacional brasileiro e, ainda, a expropriação das terras indígenas. Neste contexto, o jurista paulista João Mendes Junior retoma a tradição jusnaturalista para elaborar a defesa dos direitos territoriais indígenas com base nos “direitos originários”. Sua construção é consagrada até hoje como fundamento jurídico dos direitos territoriais indígenas na doutrina brasileira. O presente trabalho objetiva contextualizar seu argumento indicando que, em face da perspectiva trazida pelos “novos” direitos indígenas, faz-se necessária a busca de novos fundamentos a partir da visão do pluralismo jurídico. Palavras-chave: Jusnaturalismo. “Novos” direitos indígenas. Território Indígena. Resumen: La primera defensa de los pueblos indígenas en América fue desarrollada con base en el ideal jusnaturalista cristiano al largo del siglo XVI, teniendo por objetivo preservarlos de la esclavitud desenfrenada. Al final del siglo XIX, las políticas indigenistas republicanas tenían inspiración positivista y entraran en escena proporcionando la territorialización del Estado nacional brasileño, y aún, la expropiación de las tierras indígenas. En este contexto, el jurista de São Paulo, João Mendes Junior remonta a la tradición jusnaturalista para elaborar la defensa de los derechos territoriales indígenas con base en “derechos originarios”. Su construcción es consagrada hasta hoy como fundamento jurídico de los derechos territoriales indígenas en la doctrina brasileña. El presente trabajo tiene por objetivo contextualizar su argumento indicando que, ante la perspectiva de los “nuevos” derechos indígenas, es necesaria la búsqueda de nuevos fundamentos desde la visión del pluralismo jurídico. Palabras-llaves: Jusnaturalismo. “Nuevos” derechos indígenas. Territorio Indígena. * Bacharel em Direito pela Universidade de São Paulo (USP). Mestre em Direito pela Universidade Federal de Santa Catarina (UFSC). Mestre em Direitos Humanos, Interculturalidade e Desenvolvimento pela Universidade Pablo de Olavide de Sevilla e Doutoranda pela mesma Instituição. (UPO). Professora do Curso de Direito da Unidade Ensino Superior Dom Bosco, São Luís (MA). Email: [email protected]. ANAIS DO V CONGRESSO BRASILEIRO DE HISTÓRIA DO DIREITO 247 Introdução O presente artigo trata da contribuição do pensamento do jurista João Mendes Junior na construção do fundamento jurídico dos direitos territoriais indígenas na legislação e doutrina brasileira. Desde um ponto de vista da crítica na história do direito busca contextualizar seu pensamento para verificar a necessidade da elaboração de novos fundamentos jurídicos e políticos para os direitos territoriais indígenas na atualidade. A defesa da tese dos direitos originários em Mendes Junior foi exposta em conferência realizada na Sociedade de Etnografia e Civilização dos Índios em 1902, com posterior publicação na obra Os indígenas do Brazil: seus direitos individuaes e políticos, sendo esta a principal fonte aqui utilizada. Os direitos dos povos indígenas foram pensados, desde a colonização, sob a ótica da assimilação, quer seja na defesa de sua cristianização, quer seja na busca por "progresso", lema expressado na bandeira positivista no começo da República. O paradigma da assimilação presidiu toda a discussão sobre a política indígena dele não escapando a teoria desenvolvida por Mendes Júnior no começo do século XX. Com o aumento da espoliação do território indígena decorrente da aprovação da Lei de Terras e do avanço dos estados sobre aquelas consideradas “devolutas”, Mendes Junior construiu uma ponte teórica com o pensamento jusnaturalista para defender que os povos indígenas teriam direitos originários. Este argumento “cristalizou-se” na doutrina e teve consagração na Constituição Federal de 1988 não encontrando ainda hoje um substitutivo teórico. Ocorre que a legislação indigenista atual segue novo paradigma do outrora existente, tratando de reconhecer os povos indígenas em sua diferença, sendo a terra uma garantia para realização de sua identidade cultural. Neste sentido, o presente trabalho analisará, em primeiro plano, a discussão teórica dos teólogos-juristas no século XVI, de fundamentação jusnaturalista que inspiraram o jurista Mendes Junior em sua defesa indígena. Será apresentado como, o pensamento “protecionista” defendia os povos, mas ao mesmo tempo, legitimava sua dominação sob o pretexto da religião. Após esta análise, passa-se em segundo momento a contextualizar o pensamento indigenista no quadro do evolucionismo social do final do século XIX e a cuidar das idéias de Mendes Junior sobre o tratamento destinado aos povos indígenas dentre as corrrentes existentes à época. Verificados os pressupostos de seu pensamento, o objeto de análise será focado na sua argumentação teórica sobre os direitos originários dos povos indígenas. Considerando o novo paradigma dos direitos territoriais indígenas firmados a partir da participação destes povos na construção de seus direitos, será considerado, ao final, a necessidade de novos argumentos com base numa visão pluralista do direito. 1 Direito indígenas no jusnaturalismo cristão A construção teórica sobre os direitos territoriais dos povos indígenas tem início no século XVI com o debate sobre a legitimidade da anexação da América pelos povos ibéricos. Os teólogos-juristas da Escola Clássica do Direito Natural, ou Segunda Escolástica, discutiram a condição jurídica e política dos indígenas, bem como as razões pela qual os espanhóis poderiam ou não se assenhorar de suas terras. (WOLKMER, 2006, p.124). Estes pensadores eram representantes do jusnaturalismo cristão, que partia de uma pressuposta ordem sobrenatural para a solução de questões políticas e jurídicas, mas também recebiam influências do humanismo, reconhecendo o homem como sujeito de sua história. (RANGEL, 2005, p.51). 248 JOÃO MENDES JUNIOR E A CONSTRUÇÃO DOS DIREITOS TERRITORIAIS INDÍGENAS Francisco de Vitoria (1998, p.96), precursor do direito internacional moderno e maior representante da escola salmantina, argumentava que os espanhóis não poderiam apropriar-se das terras indígenas ou submetê-los à escravidão, pois o Imperador ou Papa não poderiam ser considerados senhores de todo o universo: El Papa no es señor civil ni temporal de todo el orbe, si entendemos el dominio y la potestad civil en sentido propio.[..].Y si Cristo no tuvo el dominio temporal, como antes hemos defendido como lo más probable, y también de acuerdo con la sentencia de Santo Tomás, mucho menos lo tendrá el Papa, que es su vicario. Ao responder se os índios deveriam ser considerados donos de suas terras por não serem dotados de racionalidade, Francisco de Vitória afirma que eles detinham, ainda que a seu modo, o uso da razão, posicionando-se, portanto, a favor dos direitos indígenas. De acordo com George Thomas (1982, p.69) o jusnaturalismo cristão da Escola de Salamanca ressoou em Portugal na segunda metade do século XVI por meio do intercâmbio na vida cultural, uma vez que seus teólogos também lecionavam no Colégio de Artes em Coimbra e na universidade jesuítica de Évora. Neste sentido, Portugal também conferia, de forma esparsa e casuística, ao longo do período colonial, proteção legislativa aos povos indígenas. O pensamento jusnaturalista cristão aceitava a prédica do evangelho como justificativa para a presença dos povos ibéricos na América. Francisco de Vitoria (1998, p.41-42) considerava a catequização como um direito dos espanhóis, que poderiam lançar contra os nativos a “guerra justa”: Si los bárbaros, tanto los señores mismos, como el pueblo, impidieran a los españoles anunciar libremente el Evangelio, éstos pueden predicar aun contra la voluntad de aquellos, dando antes razón de ello para evitar el escándalo, y pueden procurar la conversión de aquellas gentes, y si fuera necesario aceptar la guerra o declararla por este motivo, hasta que den oportunidad y seguridades para predicar el Evangelio. O princípio da guerra justa abriu caminho para legitimação da escravização dos índios, “debaixo da aprovação real e sob a benção da religião”, segundo ensina Beozzo. (1985, p.15). A base da formação cultural colonial brasileira foi a catequese da Companhia de Jesus e o humanismo escolástico, inspirando os contornos da sociedade: senhorial, católica e conservadora. (WOLKMER, 2000, p.43). Por sua vez, o regime de ocupação territorial no Brasil obedeceu ao sistema de sesmarias que transpôs o imenso território para as mãos da Coroa portuguesa e para a jurisdição da Ordem de Cristo. (LIMA,1990, p. 15). Paralelamente à ocupação de terras mediante o regime de sesmarias, diversos autores apontam que havia, de acordo com a tradição jusnaturalista, um certo reconhecimento de direitos territoriais indígenas pela metrópole. A Lei de 26 de julho de 1596 estabelecia que os religiosos deveriam convencer os índios para juntar-se nos aldeamentos pelos "bons meios", declarando aos gentios que seriam livres e senhores de sua fazenda como o são na serra (BEOZZO, 1983, p.100). Manuela Carneiro da Cunha (1987, p. 58) aponta as Cartas Régias de 30 de julho de 1609 e 10 de setembro de 1611 como documentos fundamentais no que tange ao reconhecimento das terras indígenas: Hei por bem que os ditos gentios sejam senhores de suas fazendas nas povoações em que morarem, como o são na serra, sem que lhe possam ser tomadas, nem sobre elas se lhe possa fazer moléstia [...] e o Governador com o parecer dos ditos religiosos, ANAIS DO V CONGRESSO BRASILEIRO DE HISTÓRIA DO DIREITO 249 aos que vierem da serra, assinalará lugares para neles lavrarem e cultivarem [...] como por suas doações são obrigados e das capitanias e lugares que lhe forem ordenados não poderão ser mudados por outros contra sua vontade (THOMAS, 1982, p.227-228). No entanto, é sobre o Alvará Régio de 1º de abril de 1680 que o jurista João Mendes Junior, no início do século XX, construiria a tese do reconhecimento dos direitos dos povos indígenas sobre suas terras. Por meio desta lei, a Coroa Portuguesa esclarecia que as sesmarias concedidas não atingiriam os direitos originários dos povos indígenas. (CUNHA, 1987, p.59). Se por um lado a tradição jusnaturalista desenvolvida pelos teólogos-juristas assegurava, retoricamente, o direito dos povos indígenas, influenciando a legislação; por outro, a Coroa os submetia ao regime colonial, com base na justificativa da evangelização. 2 Política indigenista e o contexto evolucionista A defesa dos povos indígenas durante a colonização baseou-se no jusnaturalismo cristão, que afirma os direitos indígenas, porém justificava sua presença na América visando a catequização. No final do século XIX, a defesa indígena passou a ser feita sob a influência do paradigma evolucionista que tinha por objetivo a integração dos índios aos padrões da cultura ocidental. O evolucionismo social, em pleno apogeu no período em questão, derivava da revolução darwiana na biologia e entendia os fatos sociais com base numa visão de relação "simplescomplexo", no qual a humanidade passaria por estágios evolutivos progressivamente até atingir o ápice civilizatório. Schwarcz (1995, p.57) pondera que "civilização" não era pensada como um conceito específico de uma determinada sociedade, mas como um modelo universal a ser atingido. A partir de uma visão etnocêntrica, os povos indígenas representariam o estágio primitivo da humanidade por não se constituírem em sociedades com órgãos estatais, centralizados e por serem povos sem escrita. Segundo Colaço (1999, p.12) "a crença na superioridade e na onipotência do modelo da sociedade cristã-ocidental não permitia aos europeus perceber outra verdade além da sua”. A influência das teorias racistas do final do século XIX conduziriam a diversas posições sobre a viabilidade do progresso da nação, variando desde um exacerbado romantismo com relação a composição mestiça, quanto ao pessimismo da teoria da degeneração da raça. (SCHWARCZ, 1995). Manuela Carneiro da Cunha (1998, p.136) demonstra que, em guerra aberta aos índios considerados “bravios”, a autoimagem que o Brasil queria fazer de si mesmo era do elemento indígena extinto na literatura e na pintura, afirma a autora: “[...] é o índio bom e, convenientemente, morto”. No plano fático, o início da República é marcado por inúmeros confrontos entre índios e não-índios, principalmente no oeste paulista e em Santa Catarina, com a intensificação da expansão da fronteira agrícola. (GAGLIARDI, 1989, p.63-68). É neste contexto que surge o debate sobre a política a ser aplicada aos povos indígenas, o que irá resultar na criação, na estrutura do Ministério da Agricultura, em 1911, do primeiro órgão estatal centralizado para tratar a questão indígena o SPILTN —Serviço de Proteção ao Índio e Localização de Trabalhadores nacionais, posteriormente conhecido por SPI. Apesar da questão indígena não se separar completamente da questão de mão de obra, no século XIX passa a ser, principalmente, uma questão de terras. (CUNHA, 1998, p.133). A 250 JOÃO MENDES JUNIOR E A CONSTRUÇÃO DOS DIREITOS TERRITORIAIS INDÍGENAS Lei 601 de 1850 transforma o regime de terras no Brasil, colocando-as dentro da realidade capitalista, normatizando a situação de terras devolutas e posses, passando a exigir a formalidade do registro como legitimidade de domínio. (GASSEN, 1994). Diante da necessidade da expansão sobre o território indígena, cientistas como o diretor do Museu Paulista Hermann von Ihering, em 1908, chegavam a propor o extermínio dos índios Kaingang como meio mais adequado para lidar com esta questão. Esta posição de defesa do aberto extermínio gerou diversos protestos, colocando em destaque o pensamento positivista, cujos adeptos recorriam às experiências do Rondon e aos ideais de José Bonifácio para defender uma atitude "fraterna" frente aos índios. (GAGLIARDI, 1989, p.74). Os seguidores do positivismo defendiam que a civilização dos índios deveria ser feita de forma laica, pois "[..] a tarefa consistia em elevar o indígena do estado fetichista em que se encontrava para o estado positivo, poupando-lhe a transição pelo estado teológico”. (GAGLIARDI, 1989,p.176). No contexto da polêmica sobre o melhor meio para a catequização dos índios, se missionário ou leigo, a Sociedade de Etnografia e Civilização dos Índios, da qual era membro João Mendes Junior, coloca-se ao lado da Igreja. As conferências proferidas por Mendes Junior em defesa dos povos indígenas naquela Instituição coincidem com o momento de construção do discurso indigenista oficial no país e, sua publicação na obra Os indígenas do Brazil: seus direitos individuaes e políticos, com o surgimento do SPI, o órgão estatal de proteção aos índios. Na abertura desta obra, Mendes Junior (1912, p.3), declarando-se favorável ao regime monárquico e fazendo ressalvas à doutrina do positivismo, tecia críticas favoráveis ao impulso que Rodolpho Miranda, Ministro da Agricultura, dera à catequese e civilização dos indígenas: “[..] isso foi o despertar da consciência do Governo na obrigação de proteger os primarios e naturaes possuidores do territorio nacional”. De fato, a "salvação científica" dos índios defendida por positivistas, que visavam a ação exclusivamente estatal neste campo não agradava ao autor católico: Entendo mesmo que os leigos podem tambem concorrer ao serviço da civilização, certos, entretanto, de que, não só para a Religião, como para outras cousas que exigem tenacidade de sacrificios, sem um lucro pessoal immediato, essas Ordens são insubstituiveis, posto que não devam ser dispensadas de assistencia e inspecção.(ALMEIDA JUNIOR, 1912, p.72) Em meio ao universo de teorias racistas, o catolicismo de João Mendes (1912,p.51) colocava-o contrário aos argumentos antropológicos da época, pelo qual a raça determinaria as virtudes intelectuais e caracteres morais: A capacidade mental e o vigor das raças não podem ser deduzidas desses methodos fundados em hypotheses e observações não verificadas, cada uma dellas concluindo arbitrariamente quer do peso, quer do volume, quer das formas dos craneos. Com respaldo na doutrina tomista, o jurista de São Paulo, a exemplo dos teólogos espanhóis da Segunda Escolástica, defendia a humanidade do índio: [..] occorre que propriamente a potencia intellectual não se transmitte pela virtude seminal, mas por uma causa externa [..] e a doutrina catholica, deduzida da geogonia mosaica, confirma aquela observação do Philosopho, affirmando que a alma intelleciva, em cada individuo é uma criação direta de Deus.(ALMEIDA JUNIOR, 1912,p.51). ANAIS DO V CONGRESSO BRASILEIRO DE HISTÓRIA DO DIREITO 251 Ao mesmo tempo em que o autor buscava afastamento do cientificismo reinante da época, não deixava de defender características ligadas a raça e, conforme a corrente romântica da época, exaltava a riqueza da miscigenação: A alma do descendente de indigena cruzado com europeu, é tão vigorosa, e às vezes mais vigorosa do que a alma do puro europeu ou do puro indigena; e tem a vantagem de unir a ambição do europeu à longanimidade do indigena, temperando uma pela outra.(ALMEIDA JUNIOR, 1912, p.51.) Para entender o ecletismo de seu pensamento, Wilson Martins (1977, p.496) em sua Historia da inteligência brasileira engloba tanto a obra do positivista Pedro Lessa quanto de João Mendes Junior nesta sua análise: [..] em 1912, as tendências espirituais parecia inclinar-se, mesmo em matéria filosófica, para um tipo de pensamento mais científico do que místico, por isso mesmo claramente laicizante. Martins (1977, p.461) trata deste período como sendo um momento de modernização mental, no qual se celebra o "tipo nacional". Aponta que diversos autores levantavam-se a favor da mestiçagem como solução para a questão racial, dentre eles o diretor do Museu Nacional, o médico João Batista de Lacerda. É de se destacar, ainda, a filiação de Mendes Junior entre os intelectuais que trabalham a construção da identidade paulista buscando as remotas raízes indígenas do povo do planalto, segundo Monteiro (2001,p.118): Se, por um lado, os homens livres recém egressos do regime de administração particular ou das aldeias apagavam suas raízes indígenas, as principais famílias paulistas caminhavam num sentido inverso, buscando remotas raízes nativas – sempre localizadas no distante século XVI, nas primeiras uniões luso-tupis – consolidava a imagem dos paulistas enquanto povo diferenciado, constituído por famílias antigas de longa genealogia, pelo menos longa o suficiente para diluir os rastros de uma origem indígena. É possível observar este compromisso de Mendes Junior (1912, p.73), em diversas passagens de suas conferências, sempre pródiga em elogios as personalidades oriundas desta localidade, atribuindo aos paulistas uma missão especial na catequese indígena: "São Paulo foi o Apostolo das Gentes; o Estado de S.Paulo não pode deixar de ter a mesma missão providencial em relação o gentio das nossas florestas". Inserido seu pensamento no contexto global da discussão sobre a política indígena da época, interessa agora percorrer em Mendes Junior a construção dos fundamentos dos direitos territoriais com base no instituto do Indigenato. 3 A construção teórica de Mendes Junior A obra Os indígenas do Brazil: seus direitos individuaes e políticos é composta por três conferências proferidas por Mendes Junior junto à Sociedade de Etnografia e Civilização dos Índios, em 1902. Nas duas primeiras conferências o autor trata, em linhas gerais, do status jurídico dos indígenas na Federação, fazendo uma comparação com as relações estabelecidas entre os índios e o governo da América do Norte, pleiteando a sua autonomia, dentro de uma concepção evolucionista. A terceira conferência, principal foco do presente trabalho, diz tratar da situação dos índios depois da independência, mas irá muito além do que sugere o autor e acaba 252 JOÃO MENDES JUNIOR E A CONSTRUÇÃO DOS DIREITOS TERRITORIAIS INDÍGENAS construindo, com base no estudo aprofundado da legislação colonial, a legitimação jurídica dos direitos territoriais indígenas. Marco Antonio Barbosa (2001, p.66-67) pondera que a obra Mendes Junior "[..] é ainda hoje operacional no sentido de resguardar direitos indígenas", apontando decisões judiciais contemporâneas que se fundamentam no instituto do indigenato, exposto por aquele jurista no início do século XX. A fonte de legitimidade dos direitos territoriais indígenas, previsto em nossa Constituição, segundo José Afonso da Silva (1993, p.48), é o Indigenato: […] uma velha e tradicional instituição jurídica luso-brasileira que deita suas raízes já nos primeiros tempos da Colônia, quando o Alvará de 1 de abril de 1680, confirmado pela Lei de 6 de junho de 1755, firmara o princípio de que, nas terras outorgadas a particulares, seria sempre reservado o direito dos índios, primários e naturais senhores delas. É no contexto gerado a partir da Lei 601/1850 (Lei de Terras) no qual os denominados "grileiros" pretendiam ocupar terras indígenas mediante a exibição de registro, que Mendes Junior elabora sua construção teórica. (SILVA, 1993, p.48). José Reinaldo Lima Lopes (2002, p.77) aponta ainda que as conferências de Mendes Junior são proferidas no contexto da transferência das terras devolutas para o domínio dos estados federados, no que estes passaram a incorporar as terras indígenas como sendo terras devolutas por pressão dos grupos econômicos. Em meio a conflituosa situação fundiária, Mendes Junior defende que os direitos territoriais indígenas fundamentam-se no instituto do Indigenato, pelo qual a posse das terras é um direito originário e congênito. O conceito de "direito originário" ou "direito congênito" pode ser melhor apreendido em sua obra O processo criminal, na qual assinala que na divisão de direitos do homem, seriam desta natureza o direito de vida, liberdade, defesa, habitação e locomoção. Seriam adquiridos os direitos de propriedade, família, obrigações.(ALMEIDA JUNIOR, 1959, p.10). Na obra Direito judiciário brasileiro, Mendes Junior (1954, p.16) traça a diferença na legitimação dos direitos congênitos e adquiridos: Nos direitos congênitos, a natureza e a existência do homem já são os títulos dos seus direitos à vida e ao movimento para conservação e aperfeiçoamento do seu ser; nos direitos adquiridos, o título é um sempre um fato estabelecido pelo homem [..] do qual resultam direitos e obrigações. Mendes Junior tem o mérito de ter sido o primeiro a pensar os direitos territoriais dos povos indígenas no contexto do sistema jurídico imposto pelo conquistador aos conquistados. Dentro do sistema implementado por Portugal — o regime das sesmarias, defende o autor que o Alvará de 1º de abril de 1680 já reservava os direitos originários dos índios. Em 1822, ficam proibidas as concessões de sesmarias e somente a Lei nº 601 de 1850 vem regular as terras possuídas, devolutas e reservadas, sempre resguardando a posse indigenata. (ALMEIDA JUNIOR, 1912, p.54-68). O autor defende que a Lei nº 601 de 1850, que institui o regime de registro de terras como título legítimo de aquisição não se aplica aos índios, que são possuidores a título primário, congênito e pondera sobre o fato social criado pelo novo sistema: Ora, os indios, principalmente os que moram em terras longinquas e até desconhecidas, não podiam, como é natural, praticar esses actos para o processo de legitimação e registro. Os sertanejos bons e prudentes não os hostilisavam; mas, os outros que descobriam as suas arranchações e terras, foram creando posses e ANAIS DO V CONGRESSO BRASILEIRO DE HISTÓRIA DO DIREITO 253 formando registros, e, tanto quanto lhes foi preciso, foram invadindo e até expellindo á força os aldeados. D`ahi muitas luctas e carnificinas.(ALMEIDA JUNIOR,1912, p.56-57) A solução jurídica para os conflitos de terra entre índios e posseiros para Mendes Junior não se resolveria com base em registro de posse, mas em fatores como cultura, morada habitual indígena, pois suas terras seriam direitos reconhecidos desde o Alvará de 1º de abril de 1680, que as reservara do sistema de sesmarias, imposto pelo colonizador. Seu pensamento é construído com base na legislação e também no instituto do Indigenato, próprio da Conquista, pelo qual se resguardam os direitos dos povos originários, assim esclarece: Os proprios Romanos, que se constituiram por conquista e que davam tanta importancia ao dominium ex jure quiritium, tiveram de reconhecer estes efeitos [..]. As leis portuguezas dos tempos coloniaes apprehendiam perfeitamente estas distincções: dos indios aborigenes, organisados em hordas, póde-se formar um aldeamento mas não uma colonia; os indios só podem ser constituidos em colonia, quando não são aborigenes do lugar, isto é, quando são emigrados de uma zona para serem immigrados em outra.(ALMEIDA JUNIOR, 1912,p.58). Com base nesta definição conceitual, Mendes Junior entende que a exemplo do Alvará de 1680, a Lei de terras reservara do sistema das terras devolutas as originárias dos índios (Indigenato), que não se confundem com as devolutas destinadas para sua colonização (aldeamento). É assim que ao tratar das limitações do índio na sua relação de domínio em razão de sua condição jurídica de órfão diferencia: "[..] seja, porém, como fôr, não podem ser applicadas ás terras de posse indigenata as mesmas regras applicaveis ás terras reservadas parar colonisação [..]". (ALMEIDA JUNIOR, 1912, p.60). É importante observar que na construção da defesa dos direitos territoriais, sem perder a perspectiva assimilacionista, o autor reconhece a autonomia indígena e a existência, nesta cultura, de um sistema de direito. (ALMEIDA JUNIOR, 1912, p.28-31). A partir deste importante trabalho, o instituto do Indigenato é tomado como fundamento jurídico dos direitos territoriais indígenas até os dias atuais. A Constituição Federal de 1988, em artigo 231, na esteira da construção de Mendes Junior, os reconhece como "direitos originários”. 4 Terras indígenas e sua legitimação jurídica A principal inovação da Constituição de 1988 não está no reconhecimento dos direitos territoriais indígenas, vez que já eram reconhecidos em cartas anteriores, mas com relação a definição do sejam as terras indígenas. De acordo com artigo 231, no parágrafo primeiro: [..] são terras tradicionalmente ocupadas pelos índios as por eles habitadas em caráter permanente, as utilizadas para suas atividades produtivas, as imprescindíveis à preservação dos recursos ambientais necessários a seu bem-estar e as necessárias a sua reprodução física e cultural, segundo seus usos, costumes e tradições. A Constituição Federal abraça uma concepção antropológica de terras indígenas, para reconhecer além das necessidades de reprodução, também os aspectos culturais e simbólicos. (SANTILLI, 1999, p.26). José Afonso da Silva (1993, p.47) esclarece que na definição de terras indígenas deve ser considerada a sua cosmovisão sobre seu território. Neste sentido é que se revela que o termo “tradicional” está intimamente ligado ao modo de ocupação da terra indígena, não se referindo a uma dimensão temporal, ou imemorial de ocupação. 254 JOÃO MENDES JUNIOR E A CONSTRUÇÃO DOS DIREITOS TERRITORIAIS INDÍGENAS Igualmente a Convenção n.º 169 da Organização Internacional do Trabalho, da qual o Brasil é signatário, protegeu as terras indígenas de forma ampla, reconhecendo a importância dos aspectos simbólicos e espirituais da territorialidade. Assim dispõe sobre o tema: Artigo 13. 1. Ao aplicarem as disposições desta parte da Convenção, os governos deverão respeitar a importância especial que para as culturas e valores espirituais dos povos interessados possui a sua relação com as terras ou territórios, ou com ambos, segundo os casos que eles ocupam ou utilizam de alguma maneira e, particularmente, os aspectos coletivos dessa relação. 2. A utilização do termo terras nos artigos 15 e 16 deverá incluir o conceito de territórios, o que cobre a totalidade do habitat das regiões que os povos interessados ocupam ou se utilizam de alguma outra maneira. A mudança de percepção sobre o que deva ser considerado terra indígena é uma realidade que adveio do protagonismo dos povos indígenas na cena pública, reivindicando seus direitos étnicos-culturais. José Bengoa (2000) informa que o processo de organização indígena que começou na década de 1980 alcançou quase todos os países da América Latina, havendo uma verdadeira “reinvenção” das demandas, cujo componente identitário ganha centralidade. Diversas constituições latino-americanas passaram, com a abertura democrática dos anos 90, a reconhecer o caráter pluriétnico de seus povos, dentre elas: a Constituição colombiana (1991), a Constituição mexicana, com as reformas de 1992, a Constituição paraguaia (1992), a Constituição reformada da Bolívia de 1994 e a Constituição peruana (1993). (SANTILLI, 2005, p.83). Portanto, a discussão sobre os direitos territoriais indígenas deve ser pensada na atualidade dentro da mudança do paradigma da assimilação dos povos indígenas para o reconhecimento de seus direitos culturais. Neste sentido, a doutrina prefere apresentá-los no quadro dos “novos” direitos. (COLAÇO, 2003, p.75-97). Além da aproximação interdisciplinar com a antropologia – disciplina que cuida da tradução cultural – é imprescindível o protagonismo dos povos indígenas na concretização de seus direitos. Para tanto, a teoria jusnaturalista dos direitos originários deve ser substituída por uma visão que reconheça centralidade dos povos indígenas na produção normativa. Neste sentido, o pluralismo jurídico de base comunitário-participativa apresenta-se como um novo horizonte cultural para o direito, vislumbrando um deslocamento dos modelos teóricos centrados no Estado para a práxis cotidiana dos atores sociais. (WOLKMER, 2001). Sem desconsiderar a importância da tese construída por Mendes Junior no começo do século XX – o desenvolvimento do presente estudo demonstra o contrário – reconhece-se suas limitações diante do novo paradigma e propugna-se, portanto, a necessidade do desenvolvimento de estudos interdisciplinares – históricos, sociológicos e antropológicos – visando uma nova fundamentação dos direitos territoriais indígenas, na qual a participação destes povos é imprescindível. Conclusão No presente trabalho verificou-se que os direitos territoriais dos povos indígenas tem seu fundamento jurídico embasado na construção teórica elaborada pelo jurista João Mendes Junior no começo do século XX. Em meio a expropriação de terras indígenas no começo do período republicano, que tinha inspiração nos ideias positivistas de progresso, Mendes Junior posicionou-se favorável à proteção destes povos, que deveriam ser civilizados pela catequese dos missionários. ANAIS DO V CONGRESSO BRASILEIRO DE HISTÓRIA DO DIREITO 255 Afastando-se do posicionamento positivista, Mendes Junior buscava na doutrina católica e no jusnaturalismo cristão fundamentos para reconhecer a racionalidade e autonomia dos povos indígenas, bem como o direito “originário” sobre as terras ocupadas. Ainda que instrumental na defesa judicial de direitos, a teoria do Indigenato foi elaborada em meio ao ideal evolucionista das ciências e submetia o território indígena ao quadro do desenvolvimento civilizatório da humanidade. Os direitos territoriais indígenas previstos, portanto, desde a colonização até antes da Constituição de 1988 buscavam a descaracterização dos povos indígenas, uma vez que eram pensados dentro de um paradigma assimilacionista. Verificou-se que na atualidade os direitos indígenas estão no campo dos “novos” direitos pois apresentam uma dimensão de reconhecimento de direitos étnicos-culturais e suas terras devem servir de suporte para a realização de sua identidade. Assim, conclui-se pela inadaptação do fundamento jurídico de Mendes Junior na atualidade, apontando-se a necessidade de um diálogo interdisciplinar, e principalmente, no marco do pluralismo comunitário-participativo, trazer centralidade aos povos indígenas na concretização de seus direitos. 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Palavras-chave: História; Direito; Codificação; Código Civil; 1916; Cultura Jurídica; Comunidade jurídica * Professor Assistente de Direito Público da Faculdade de Direito da UFF e Pesquisador Associado da Fundação Casa de Rui Barbosa. Mestre em Sociologia e Direito (UFF) e Doutor em Sociologia (IESP, Universidade do Estado do Rio de Janeiro, UERJ). 258 CLÓVIS BEVILÁQUA E RUI BARBOSA – NOTAS PRELIMINARES AO DEBATE DOS JURISTAS ACERCA DO CÓDIGO CIVIL DE 1916 1. Introdução1 Existem duas grandes tradições jurídicas especificamente no mundo ocidental: a romano-germânica e a “Common Law”2. A última, derivada da cepa originária inglesa, é marcada pela inovação institucional que foi a sua aclimatação nos Estados Unidos da América. A tradição jurídica inglesa se amoldou para os usos e necessidades daquele país, todavia ainda reiterando uma ponte de historicidade em relação aos costumes insulares. Já a denominada tradição do direito romano-germânico reivindica origens bem mais antigas, com o direito romano. É claro que essa relação passa uma reconstrução conceitual na modernidade que lhe aduz feição completamente diversa. Nesse sentido, o direito romano, como raiz do direito civil da nossa tradição é uma obra de completa reconstrução. Todavia, há uma mitologia fundadora que é acalentada pelos juristas em suas obras e que subsiste nas crenças dos juristas de nosso tempo. O mais interessante sobre tal construção mitológica é apreendido a partir de uma perspectiva externa, mesmo que intentada por juristas alienígenas. Nesse sentido, os autores comparatistas de língua inglesa tratam o direito continental europeu como “Civil Law”, em oposição à sua “Common Law”. É claro que eles são cientes da peculiaridade da reconstrução do direito romano. Entretanto, ela não lhes aparenta tão evidente quanto nos discursos internos do mundo continental. Existe uma forte tradição de estudos históricos no seio do direito civil brasileiro. Essa intencionada construção é baseada na tentativa de fixação da legitimidade histórica do direito privado, enquanto construção racional secular. Nesse contexto, a necessidade de estruturar um código surge como uma tentativa de estruturar um quadro normativo com referencial claro e dotado de lógica intrínseca. A evolução do direito privado brasileiro pode ser dividida em vários estágios. No entanto, o primeiro estágio está certamente cingido à recepção do direito português pela sociedade colonial e sua adaptação aos usos e costumes locais. A primeira grande transição das instituições jurídicas brasileiras ocorre com a institucionalização do sistema judiciário, apartado de Portugal. Essa obra é montada inicialmente com a vinda da família real portuguesa ao Brasil. No entanto, somente se completa com o aumento da densidade institucional que vai ocorrer ao longo do Segundo Império. Faltava capacidade de formar quadros próprios pela ausência de faculdades de direito, por exemplo. Com o funcionamento dos cursos jurídicos de São Paulo e de Olinda, começa a ser paulatinamente modificado esse panorama3. É óbvio que os juristas dessa reconstrução jurídica nacional – no primeiro momento – tiveram formação na antiga metrópole, em especial na Universidade de Coimbra. Mas o exemplo de Rui Barbosa traz um exemplo da mudança de ares que é possibilitada pela 1 O presente artigo tem origem na pesquisa individual selecionada pela Fundação Casa de Rui Barbosa, que está sendo realizada sob a orientação da Profa. Christiane Laidler. Agradeço aos comentários e apoio na sua orientação, bem como às sugestões indicadas por Otavio Luiz Rodrigues Jr. (Universidade Federal Fluminense, UFF) e Christian Lynch (UFF, Universidade Federal do Estado do Rio de Janeiro, Uni-Rio, e Universidade Gama Filho). Eventuais equívocos, todavia, restam tão somente sob minha responsabilidade. 2 O livro clássico sobre o tema: DAVID, René. Os grandes sistemas do direito contemporâneo. São Paulo: Martins Fontes, 2002. Esse autor, francês, figura como um dos fundadores do direito comparado atual. O italiano Mario Guiseppe Losano também é outra referência, recentemente vertida ao português: LOSANO, Mario. Os grandes sistemas jurídicos. São Paulo: Martins Fontes, 2007. Cf. também: MERRYMAN, John Henry e PÉREZ-PERIDOMO, Rogelio. The civil law tradition: an introduction to the legal systems of Europe and Latin America. 3 ed. Stanford, California: Stanford University Press, 2007. 3 O livro clássico sobre a história das instituições educacionais, na área de direito: VENANCIO FILHO, Alberto. Das arcadas ao bacharelismo: cento e cinquenta anos de ensino jurídico no Brasil. São Paulo: Perspectiva, 1977. ANAIS DO V CONGRESSO BRASILEIRO DE HISTÓRIA DO DIREITO 259 formação nacional. A sua referência acerca de instituições jurídicas de direito pública é notadamente inglesa e norte-americana, por exemplo. Os juristas brasileiros, a partir do momento da emancipação colonial, começam a acalentar mais um projeto de afirmação da nacionalidade por meio do quadro jurídico: a produção de um código civil brasileiro. Esse movimento vinha ocorrendo nas várias excolônias americanas. A Argentina também havia se engajado em projeto semelhante, assim como os demais países do Cone Sul4. No Brasil, a formação do quadro constitucional apareceu como o primeiro passo nessa ordem de prioridades jurídicas, como seria razoável supor. Todavia, essa primeira construção foi seguida pela necessidade de fixar instituições penais e comerciais. O grande projeto de substituição das Ordenações aplicáveis às relações cíveis é paulatinamente posto em marcha com a contratação de Teixeira de Freitas para o desenvolvimento do encargo. 2 A busca pela codificação civil no Brasil – período do debate e síntese As polêmicas relacionadas à aprovação legislativa do Código Civil de 1916 podem ser separadas em três períodos. O primeiro pode ser rotulado como uma fase de antecedentes. Ele deve ser compreendido pelo amadurecimento intelectual e político do campo do direito, no qual a idéia de uma codificação civil é acalentada. Certamente, este período de antecedentes é marcado pelo erguimento de uma ideologia de Código Civil, tal como ela ocorria no restante mundo ocidental: definidor do espírito nacional e justificativa da autonomia do país em relação ao seu passado colonial. Certo é que tal momento foi marcado por diversas tentativas de formulação de legislações projetadas. Todavia, o momento histórico não foi frutífero sequer em formular um projeto coeso e completo do ponto de vista jurídico e, quanto mais, justificável para servir de base para um Código aprovado pelo parlamento. O segundo período corresponde ao momento de formulação e posterior apresentação do projeto de Clóvis Beviláqua. Ele corresponde ao mandato presidencial de Campos Sales (1898-1902). Esse momento histórico é conhecido pela polêmica que envolveu Clóvis Beviláqua, Rui Barbosa e Ernesto Carneiro Ribeiro. O centro da pesquisa está focado nesse período. Por fim, o terceiro período corresponde à tramitação legislativa do projeto de Clóvis Beviláqua até a sua aprovação pelo parlamento e sanção pelo Presidente Venceslau Brás, em 1916. O quadro abaixo sistematiza os três períodos enfocados, com dados sobre os projetos intermediários de Código Civil. É relevante indicar uma síntese da pesquisa realizada. Foi realizada a análise histórica dos antecedentes da codificação empreendida por Clóvis Beviláqua. É bastante evidente que o projeto cuja tramitação foi até o fim, acabou por guardar inspiração nas tentativas anteriores. Foi dada especial atenção à formatação do marco teórico relacionado com a História dos Conceitos. Os trabalhos de Reinhard Koselleck5 estão na base dessa delimitação. A partir da demarcação, notou-se que seria imprescindível acessar fontes primárias para a justaposição de um acervo teórico. Não havia sentido utilizar uma teoria relacionada com a História e com a Ciência Política sem que a metodologia de pesquisa – especialmente quanto à coleta de dados – não fosse utilizada. Foram coletadas informações 4 Nesse sentido, cf. BRITO, Alejandro Guzmán. La codificación civil en iberoamerica: siglos XIX y XX. Santiago, Chile: Editorial Jurídica de Chile, 2000. 5 Por mais que a metodologia não seja um tópico a ser descrito nesse momento, vale indicar que o acesso ao problema da definição conceitual foi empreendido por dois trabalhos: JASMIN, JASMIN, Marcelo G. História dos conceitos e teoria política e social: referências preliminares. Revista Brasileira de Ciências Sociais, São Paulo, v. 20, n. 57, fev. 2005. p. 27-38; KOSELLECK, Reinhart. 260 CLÓVIS BEVILÁQUA E RUI BARBOSA – NOTAS PRELIMINARES AO DEBATE DOS JURISTAS ACERCA DO CÓDIGO CIVIL DE 1916 específicas sobre a tramitação do projeto objetado por Rui Barbosa, bem como acessada toda a amplitude do debate específico, com foco no Parecer de Rui Barbosa, na Resposta de Carneiro Ribeiro, na Réplica e na Tréplica. Vale consignar que o Parecer e a Réplica estão publicados no conjunto das obras completas. Todavia, a Resposta às críticas e a tréplica configuram documentos de difícil acesso. Ainda, foram acessados os volumes publicados pela Imprensa Nacional no governo de Venceslau Brás quando da sanção presidencial da Lei nº 3.071/16 (Código Civil). Outra obra lida e consultada foi o livro “Em Defesa do Código Civil”, de Clóvis Beviláqua, publicado em 1902. Um trecho deste livro é dedicado a criticar o Parecer do Senado, construído por Rui Barbosa. Cronologia da Codificação do Direito Civil no Brasil (1840-1916). Antecedentes (1840 – 1901) Projeto de Código Civil – Francisco Inácio de Carvalho Moreira (Barão de Penedo)6. Arrazoado apresentado em 1840, quando dos debates para formulação do Código Comercial (1850). Consolidação das Leis Civis – Augusto Teixeira de Freitas (1858). Sistematização preliminar dos institutos jurídicos vigentes no Brasil, recebidos pelas Ordenações. Teve relevante uso doutrinário no Império. Esboço do Código Civil – Teixeira de Freitas Segunda proposta. A primeira foi abandonada pelo próprio autor, já que ele buscava a unificação do Direito Comercial com o Direito Civil num único Código. Arrazoado de Código Civil – Conselheiro José Tomás Nabuco de Araújo. Tentativa de aproveitamento dos esforços anteriores. Infrutífera pelo falecimento do autor. Apontamentos publicados em 1882 pela Tipografia Nacional, juntamente com o trabalho posterior. Projeto de Código Civil – Senador Joaquim Felício dos Santos (1882-1891). Material inicial publicado em 1882. Objeto de debates até a formulação de um projeto publicado em 1886 e, depois, em 1891. Projeto de Código Civil – Antônio Coelho Rodrigues7. O trabalho frutificou da revisão do Projeto anterior. Este projeto novamente buscava a unificação do Código Comercial com o projetado Código Civil. Projeto de Projeto de Código Civil – Clóvis Após a rejeição dos projetos anteriores, o trabalho de codificação foi entregue a Código e Beviláqua (1901) Clóvis Beviláqua. O seu projeto foi debate com celeremente preparado, tendo sido objeto Rui Barbosa (1901-1902) de algumas críticas. Todavia, a maior crítica foi realizada por Rui Barbosa e tinha o seu centro dirigido à forma e não ao conteúdo do projeto. 6 BENTIVOGLIO, Julio. Elaboração e aprovação do Código Comercial Brasileiro de 1850: debates parlamentares e conjuntura econômica (1840-1850), mimeo. 7 CHRYSIPPO DE AGUIAR, Antonio. Direito Civil: Coelho Rodrigues e a ordem de silêncio. Teresina: Halley, 2006. ANAIS DO V CONGRESSO BRASILEIRO DE HISTÓRIA DO DIREITO 261 Cronologia da Codificação do Direito Civil no Brasil (1840-1916) Tramitação legislativa final (1902-1916) Código Civil (1916) A crítica de Rui Barbosa foi bem sucedida, pois proporcionou a diminuição no ritmo da tramitação e possibilitou que fossem submetidas muitas emendas no Senado; quadro diverso que ocorreu na Câmara, onde o projeto foi aprovado rapidamente. Uma hipótese central da pesquisa está em vias de ser justificada por meio da análise da tramitação do projeto de Código Civil no Senado. Com a ruidosa oposição de Rui Barbosa, o projeto original sofreu uma grande quantidade de emendas. Um dos motivos da forte crítica de Rui Barbosa estava centrado na velocidade que o governo buscava imprimir ao processo legislativo. Indicava o senador que seria um texto legal pouco debatido e, portanto, sujeito a impor maiores dificuldades na vida prática do direito brasileiro. Como mencionado no projeto original, parte da doutrina do direito civil abarca uma tese pouco validada por dados, que considera a oposição de Rui Barbosa estar precipuamente centrada em considerações de ordem pessoal. Na medida em que os dados vão sendo desnudados, nota-se que a ação política de Rui Barbosa surtiu efeitos desejados, já que obrigou a realização de um debate mais aprofundado sobre o projeto original, ao invés de permitir um fluxo célere e pouco refletido. A movimentação de críticas pode ser acessada por uma bibliografia, sintetizada no quadro abaixo. 3 Uma nota sobre a tentativa preliminar de Teixeira de Freitas e de Nabuco de Araújo. A história dos trabalhos de Teixeira de Freitas é bem documentada pela historiografia nacional8. Vale indicar que as marchas e contramarchas daquele trabalho repercutiram muito no imaginário dos juristas brasileiros, onde a figura dele é reverenciada como visionária. O trabalho empreendido por ele pode ser considerado, portanto, um sucesso conceitual – abstrato e ideal – porquanto tenha sido um fracasso prático. A contratação de Teixeira de Freitas foi empreendida e garantida pela notável figura de Nabuco de Araújo, durante o Segundo Império. Vale rever as informações escritas pelo seu filho sobre o projeto: O nome de Nabuco está ligado à primeira tentativa de codificação entre nós por nós dois títulos indisputáveis: o primeiro, porque foi ele quem contratou a codificação de nossas leis sob a forma da Consolidação, 1855, que até hoje nos serve de código civil, e quem, depois, 1859, primeiro contratou o Código; o segundo, porque foi ele quem suscitou e em todo o tempo sustentou o seu grande êmulo, Teixeira de Freitas, quem o escolheu para uma e outra empresa, quem redigiu o parecer da comissão especial, aprovando a Consolidação, e a consulta do Conselho de Estado para que se permitisse ao ilustre jurisconsulto realizar o seu novo plano conforme entendesse [...] 9 8 As referências virão nas próximas notas. 9 Nesse trecho, segue-se, como indicado a narrativa de NABUCO, Joaquim. Um Estadista do Império, 5 ed. v. 2. Rio de Janeiro: Topbooks, 1997, p. 1051 e seg. Cf. também: GOMES, Orlando. Memória justificativa do anteprojeto de Reforma do Código Civil. In: Códigos Civis do Brasil: do Império à República. Brasília: Senado Federal, 2002. (CD-ROM). Além disso, o mesmo autor citado produziu o texto referencial sobre o tema: GOMES, Orlando. Raízes históricas e sociológicas do código civil brasileiro. 2 ed. São Paulo: Martins Fontes, 2003. 262 CLÓVIS BEVILÁQUA E RUI BARBOSA – NOTAS PRELIMINARES AO DEBATE DOS JURISTAS ACERCA DO CÓDIGO CIVIL DE 1916 Na narrativa da vida de Nabuco de Araújo é descrito o deslinde do trabalho de Teixeira de Freitas10. Após a entrega do esboço, o autor começa a observar o trabalho em curso com outra avaliação. Em 1867, ou seja, após oito anos de decurso do segundo contrato, ele demonstra seu intento com missiva ao Conselho de Estado. Ao invés de pretender a existência de um código civil para viger em paralelo ao já aprovado Código Comercial de 1850, ele postula que deve ser formada uma codificação privada única, denominada de “Código Geral”. Ao passo em que a postulação de alteração conceitual do projeto de Teixeira de Freitas é modificada, torna-se insustentável sua situação. O que havia sido encomendado como um trabalho em duas fases tornou-se o inatingível objetivo de construção de uma codificação que abarcasse todo o direito privado brasileiro. É claro que os objetivos de Teixeira de Freitas não puderam ser alcançados. Após a consulta de Teixeira de Freitas sobre a possibilidade de mudança nos planos iniciais, são iniciadas várias discussões no governo sobre a sua viabilidade. De acordo com a narrativa do filho de Nabuco de Araújo, o seu pai teria efetivado a defesa de Teixeira de Freitas, por conta do seu parecer na Seção de Justiça do Conselho de Estado. Na continuidade da narração, ele indica que Duarte de Azevedo deu voz ao pensamento de muitos outros, de dentro do governo, liquidando o pleito de Teixeira de Freitas, passando o projeto ao encargo do próprio Nabuco de Araújo. Existe dúvida historiográfica sobre essa afirmação exatamente pelo fato de que o projeto foi atribuído ao conselheiro. Vale indicar que essa dúvida talvez seja mais doutrinária do que historiográfica, propriamente. Uma parcela dos autores de Direito Privado brasileiro sempre defenderam que o modelo italiano de um Código Privado seria melhor do que a produção legislativa do Direito Privado em dualidade. Vale indicar que o Código Civil de 2002 esposou essa tese, ainda que de forma mitigada, já que o direito privado brasileiro há muito já estava esfacelado numa enorme quantidade de leis esparsas e especiais. Volte-se ao caso da primeira tentativa de codificação. Em conseqüência do problema relacionado com Teixeira de Freitas, o encargo de finalização dos esforços em prol do código civil recaiu sobre Nabuco de Araújo, acrescido de um prazo exíguo de cinco anos. Ele se debruça sobre o trabalho e, desde os primeiros momentos, certifica ao Ministério que terá graves dificuldades para o sucesso porque a tarefa era imensa. Note-se que ele já se encontrava debilitado pela moléstia que o vitimará. A impossibilidade de consecução da obra é descrita como um naufrágio pela narrativa de seu filho. A justificativa encontrada para ambos seria que tanto Teixeira de Freitas, quanto Nabuco de Araújo, não conseguiria realizar o intento porque essa seria uma tarefa que deveria ter sido atribuída a um conjunto de pessoas, dirigidas por uma outra. A metáfora aludida pelo filho é que o projeto do código civil deveria ser entendido como o erguer de uma catedral, que mobiliza aquele que planeja e dirige os que a produzem em sua estrutura e, também, com atenção aos detalhes. Ele traça, ao fim, um interessante paralelo sobre a conceituação substantiva interna dos dois projetos (de Teixeira de Freitas e Nabuco de Araújo): Que código teria entretanto feito Nabuco? Muitas vezes me pergunto, folheando as suas notas, indecifráveis, por não saber se a idéia era para ser apropriada, repelida ou vertida em outra. O que se pode dizer é que teria sido um código mais diverso do de Teixeira de Freitas, porque as suas faculdades predominantes não eram as mesmas. Nabuco era um político, um estadista, 10 Outra obra possui descrição sobre o caso: MENEZES, Raimundo; UBALDINO DE AZEVEDO, Manoel. Clóvis Beviláqua: jurista filósofo. Rio de Janeiro: Ministério da Educação e Cultura, 1960. Em especial, a quarta parte, p. 219 e seg. ANAIS DO V CONGRESSO BRASILEIRO DE HISTÓRIA DO DIREITO 263 um administrador, um juiz, ao mesmo tempo que um jurisconsulto; Teixeira de Freitas era somente um jurisconsulto [...]11 Avulta à imaginação. O paralelo construído pela análise do filho é que o hipotético código civil de Teixeira de Freitas seria uma codificação acadêmica, plena de correção científica e conceitual. O trabalho empreendido por Nabuco de Araújo geraria um produto pleno de praticidade. Um código que não teria o mesmo rigor mas que, porém, seria melhor, já que infenso aos rigorismos e minudências. Há a curiosa menção de que o trabalho inconcluso dele seria realista, ao passo em que o esforço de Teixeira de Freitas, pleno de abstração. Essa dualidade imaginativa vai conservar-se durante muito tempo nos espíritos dos juristas, não somente com atenção ao código civil. Mas com atenção ao trabalho jurídico de uma forma geral. Basta pensar na demolidora crítica de Oliveira Viana à Constituição Republicana de 189112, cotejada com o discurso de posse de Rui Barbosa no Instituto dos Advogados Brasileiros, em 191413. Essa crise em relação ao direito pode ser sintetizada por uma díade entre um idealismo institucional, por um lado, e uma postulação pragmática com a realidade social e política, por outro. Ao final do século XIX, o país caminhava para o final da monarquia com o advento da República. A tarefa de produção de um código civil fica postergada para o novo momento histórico e político nacional. Assim, o diagnóstico de Nabuco sobre o esforço de Teixeira de Freitas, bem como de seu pai, é que tal obra não seria alcançável por um indivíduo somente. O fato foi que tentativa de um produto de tal envergadura havia passado aos cuidados de dois juristas, sem que houvesse êxito para a empreitada. 4 Uma nota sobre as tentativas posteriores: Coelho Rodrigues e Felício dos Santos. É certo que outras tentativas de menor alcance ocorreram. As fontes mais ricas destes debates preliminares têm sido encontradas no Congresso Nacional. Os Anais da Câmara dos Deputados, bem como os debates do Senado Federal têm sido uma excepcional fonte primária que não foi mobilizada nos estudos históricos sobre a codificação civil no Brasil. Um bom exemplo é o discurso de 10 de setembro de 1891, proferido por Francisco Coelho Duarte Badaró, constituinte e deputado, que criticava o projeto de Coelho Rodrigues: O atual encarregado da confecção do código é um notável romanista, um homem mais culto do que talentoso, muito digno sem dúvida, mas vítima de certos preconceitos, como aquele de ter medo dos homens de ‘cabelo louro e olhos azuis’ (risos), e que já se vai deixando arrastar por essa onda em que navegam certos radicais. (...) O orador assegura à Câmara que o legislador prudente deve estudar o estado cerebral da sociedade, como diz um moderno escritor, porque sem o seu assentimento toda a reforma será vã. O Código Civil vai sair um aleijão feito nas escarpadas montanhas da Suíça. (...) O orador afirma à Câmara que pode repetir com Gladstone que este país não 11 NABUCO, Joaquim. Um Estadista do Império, 5 ed., v. 2. Rio de Janeiro: Topbooks, 1997. p. 1051 e seg. O trabalho produzido por Teixeira de Freitas é disponível: TEIXEIRA DE FREITAS, Augusto. Consolidação das Leis Civis. Brasília: Senado Federal, 2003. TEIXEIRA DE FREITAS. Código Civil: Esboço. Brasília: Ministério da Justiça, 1983. 12 VIANA, Oliveira. O idealismo da Constituição. 2 ed. São Paulo: Companhia Editora Nacional, 1939 [1927]. 13 BARBOSA, Rui. O supremo tribunal federal na constituição brasileira. In: __________. Pensamento e ação de Rui Barbosa: seleção de textos pela Fundação Casa de Rui Barbosa. Brasília: Senado Federal, 1999, p. 157 e seg. 264 CLÓVIS BEVILÁQUA E RUI BARBOSA – NOTAS PRELIMINARES AO DEBATE DOS JURISTAS ACERCA DO CÓDIGO CIVIL DE 1916 quer boas leis; o que ele quer são suas próprias leis. (Apoiado. Muito bem. Diversos deputados cumprimentam o orador ao descer da tribuna) 14. O deputado comentava que a proposta de Coelho Rodrigues começava mal. Para realizar a empreitada, o jurista do Piauí decidiu que precisava fazê-la na Europa, num retiro intelectual, distante da política e do cotidiano do Brasil. Ele ainda defendia o redator do projeto anterior, Joaquim Felício dos Santos, que teria produzido seu projeto em território nacional, assim como teria ocorrido com Teixeira de Freitas e Nabuco de Araújo. Arrematava que aquele projeto havia sido injustamente tratado pelo Senado, nomeando-o como algoz da proposta. Outro exemplo pode ser dado pela indicação feita pelo Deputado Carlos Ottoni, sobre a concessão de uma pensão à viúva do Senador Joaquim Felício dos Santos, que redigiu um dos projetos de código civil: Tal era a reputação do Dr. Joaquim Felício, o filho ilustre de Diamantina, que o preclaro Sr. Lafayette incumbiu de escrever o projeto de Código Civil, prometendo-lhe remuneração condigna desse trabalho. [aparte do Deputado Pereira Lira elogiando o trabalho]. Muito folgo desse juízo de V. Exa., que é um dos mais competentes. Para a confecção do Código, ele fechou o escritório – uma dos mais procuradores – e retirando-se à sua residência nas Bicas, dedicou-se dia e noite à elaboração do seu projeto, obra magnífica e para revisão do qual foi nomeada uma grande comissão de jurisconsultos, composto de Ribas, Ferreira Vianna, Justino de Andrade e Coelho Rodrigues. (...) Senhores, nós que cultivamos o estudo da ciência do direito e labutamos na vida forense, temos acompanhado com máximo interesse todas as tentativas para dotação de um código à nação brasileira. Vimos que Teixeira de Freitas recebeu remuneração pelo seu trabalho, insuficiente embora em face de seu alto valor, tendo-nos deixado a notável Consolidação das Leis e o Esboço do Código Civil. Vimos que Nabuco – o Péricles brasileiro – recebeu remuneração de 100:000$ pelo trabalhou que apresentou. Coelho Rodrigues também notável jurisconsulto recebeu cerca de 100:000$ para a redação do seu projeto. (...) O Sr. Clóvis Beviláqua também tem recebido remuneração. O único que não recebeu um só real dos cofres públicos foi o Senhor Dr. Joaquim Felício dos Santos que, no entanto, matou-se estudando o formulando o Código e fazendo os seus brilhantes comentários, ficando a viúva em circunstâncias de penúria15. Em síntese, a leitura atenta dos debates da Câmara dos Deputados gera a possibilidade empreender uma classificação de discursos que permite entrever, principalmente, as questões políticas e institucionais, relacionadas ao processo legislativo. A perspectiva futura do projeto é realizar a classificação dos debates havidos na Câmara dos Deputados e no Senado até a entrada em vigência do Código Civil, em 1916. 5 A empreitada de Clóvis Beviláqua e a crítica de Rui Barbosa. A necessidade de um código civil continua evidente no imaginário dos juristas. Mas é apenas com a República que o sistema jurídico nacional pôde ser acrescido de uma nova legislação com tal finalidade. O trabalho foi entregue para Clóvis Beviláqua por Epitácio Pessoa, Ministro da Justiça do Presidente Campos Sales. Clóvis Beviláqua desenvolveu seu produto de forma bastante célere, se tomado tal trabalho em contraste com aquele que foi bem empreendido por Teixeira de Freitas. Em pouco tempo, o projeto de Clóvis Beviláqua é 14 BRASIL: Congresso Nacional. Anais da Câmara dos Deputados. Sessão de 10 set. 1891. Rio de Janeiro: Imprensa Nacional, 1891, p. 202-203. 15 BRASIL: Congresso Nacional. Anais da Câmara dos Deputados. Sessão de 31 jul. 1901. Rio de Janeiro: Imprensa Nacional, 1901, p. 325-326. ANAIS DO V CONGRESSO BRASILEIRO DE HISTÓRIA DO DIREITO 265 apresentado às elites políticas e jurídicas, bem como ao público em geral16. O projeto acabado se tornou um ponto de grande orgulho para o seu patrocinador político, como pode ser visualizado na sua biografia17. Para visualizar o debate em perspectiva, é relevante conferir a cronologia dos debates acerca do Código Civil de 1916. Cronologia do Debate do Código Civil de 1916 (1901-1906). Fase inicial dos debates (1901 – 1902) O Projeto Primitivo do Código Civil de Clóvis Beviláqua é apresentado à Câmara dos Deputados em 1901. Após a formação de uma Comissão Revisora, o mesmo recebe várias emendas de alteração. A Comissão indica Ernesto Carneiro Ribeiro para realizar a revisão do vernáculo e do estilo do projeto. O Projeto Revisto é encaminhado, junto com uma mensagem presidencial do Presidente Campos Sales. Nesta fase inicial, diversas críticas são dirigidas ao projeto. Após o término dos trabalhos na Câmara dos Deputados, o Senador Rui Barbosa organiza uma Comissão Especial para tratar da tramitação do mesmo no Sendo Federal. Ele produz um longo parecer no qual critica fortemente o projeto e, principalmente, certo açodamento em sua tramitação. Existem críticas jurídicas. Todavia, o parecer ficou conhecido como uma peça de crítica relacionada ao estilo e ao uso da língua portuguesa. Há movimentação no sentido de defender o Projeto Revisto das críticas de Rui Barbosa, bem como do conjunto de outros críticos. São encomendados pareceres de outros juristas, para contraposição das críticas, dentre os quais se destaca o parecer de Silvio Romero. No campo filológico, o revisor do português da obra, Ernesto Carneiro Ribeiro produz uma peça na qual defende das opções em relação à redação. O debate jurídico é diminuído aos olhos da opinião pública, sendo referido primordialmente ao estilo. Ainda em 1902, Rui Barbosa produz um dos seus textos mais demolidores, que é conhecido como “A Réplica”. Neste texto, ele critica veementemente às opções de estilo e, em especial, a resposta de Ernesto Carneiro Ribeiro. É possível considerar que este texto possui o simbolismo de postergar a aprovação legislativa do Código Civil por mais de dez anos. 16 BEVILÁQUA, Clóvis. Observações para esclarecimento do Código Civil brasileiro. In: Códigos Civis do Brasil: do Império à República. Brasília: Senado Federal, 2002. (CD-ROM). Cf. também: BEVILÁQUA, Clóvis. O problema da codificação do direito civil brasileiro. Recife: Papelaria Americana, 1896. 17 CAMPOS SALES, Manuel. Da propaganda à presidência. Brasília; Editora da UnB, 1983. (Coleção temas brasileiros, v. 29). Cf. também: GUANABARA, Alcindo. A presidência Campos Sales. Brasília: Senado Federal, 2002. 266 CLÓVIS BEVILÁQUA E RUI BARBOSA – NOTAS PRELIMINARES AO DEBATE DOS JURISTAS ACERCA DO CÓDIGO CIVIL DE 1916 Cronologia do Debate do Código Civil de 1916 (1901-1906). Fase final dos debates (1905 – 1906) Tanto Ernesto Carneiro Ribeiro, quanto Clóvis Beviláqua produzem respostas à Réplica. Esses textos foram publicados em momento posterior ao rugir do debate (1906). No caso de Clóvis Beviláqua, o livro se compõe de trabalhos coligidos ao longo do período. Existem vezes em que o silêncio é mais eloquente do que a sonoridade. É de se ressaltar que o presidente Campos Sales sequer dedicou uma linha ao combate travado por Rui Barbosa contra o projeto de código civil quando ele chegou ao Senado. Ele apenas termina o capítulo dedicado ao código, parte de seu livro autobiográfico, com a menção de sua felicidade em ver que o projeto seria aprovado em breve. O livro foi publicado em 1908. O código só teve vigência em 1916. É inolvidável que o maior jurista do início da República já havia sido afirmado pouco antes. Rui Barbosa foi alçado a tal título não somente como advogado. Mas, também, como tribuno e estadista. Os anos posteriores à apresentação do projeto de Clóvis Beviláqua são marcados pelo embate fomentado pelas críticas de Rui. Uma parte da historiografia valida que Rui teria ficado enciumado pelo projeto ter sido entregue aos cuidados de Clóvis Beviláqua, motivo pelo qual teria produzido uma demolidora crítica que não teria fundamento jurídico: Em 1902 veio a oportunidade para um notável reerguimento de Rui Barbosa. Em abril chegou ao Senado, em regime de urgência, o projeto de Código Civil já aprovado na Câmara. Rui era o relator da Comissão Especial do Senado que deveria analisar o projeto. Ora, Rui tinha pelo menos duas razões pessoais para se opor a ele. Primeiramente, a urgência era devida à vontade de Campos Sales de ter o código aprovado ainda em sua gestão, que terminaria em novembro. Em segundo lugar, o orgulho de Rui como jurista ficara ferido quando fora preterido a Clóvis Beviláqua como o indicado pelo governo para escrever o anteprojeto do código. Beviláqua, além de ter uma perspectiva jurídica bem distinta de Rui – sendo fortemente influenciado pelo pensamento alemão –, era mais jovem e menos famoso que ele18. Tal ponto de vista é também afirmado por Augusto Magne, na introdução que produziu ao Parecer do Rui Barbosa – publicado nas obras completas – sobre o Projeto do Código Civil da Câmara dos Deputados: Constitui um mistério para o historiador o fato de Rui, ao submeter a exame rigoroso o Projeto de Código Civil, se ter preocupado antes com o aspecto até certo ponto acessório da forma, de preferência à substância do conteúdo jurídico, suscetível de emendas que poderiam alterar-lhe e até mesmo remover de todo os dispositivos. Que ele não julgasse isenta de defeitos a própria estruturação jurídica do Projeto, prova-o o Parecer jurídico que lhe consagrou19. Note-se que o segundo motivo aludido pela historiografia seria político. Já que Rui Barbosa teria utilizado o ataque ao projeto de código civil para estorvar o governo Campos 18 GONÇALVES, João Felipe. Rui Barbosa: pondo as idéias no lugar. Rio de Janeiro: FGV, 2000, p. 103 e seg. 19 MAGNE, Augusto. Prefácio. In: BARBOSA, Rui. Obras Completas de Rui Barbosa, v. XXIX. (1902). Rio de Janeiro: Ministério da Educação e Saúde, 1949, t. 01, p. XIII. ANAIS DO V CONGRESSO BRASILEIRO DE HISTÓRIA DO DIREITO 267 Sales, cuja oposição era-lhe ferrenha. Para esses autores, é possível ler as intenções de Rui Barbosa de forma negativa, dando pouco crédito ao conteúdo de suas críticas: Assim, Rui pôs os obstáculos que pôde ao projeto do novo código, propondolhe mais de mil emendas. Era uma espécie de oposição inusitada ao presidente Campos Sales, que sofrera a oposição de Rui desde que arrogara a seu governo a tarefa de fazer o código. As emendas se reduziram basicamente a correções estilísticas e gramaticais, já que as atribuições de Rui o impossibilitaram-no de propor mudanças profundas no espírito do projeto. Trabalho de grande erudição e coalhado de citações, o parecer apresentado por Rui Barbosa causou generalizada surpresa e admiração 20. O próprio Rui Barbosa justifica que as críticas atribuídas à má redação seriam impossíveis de polir pelos gramáticos e filólogos. Pondera que a apenas a visão do jurista poderia identificar os problemas relacionados com a expressão dos conceitos jurídicos: “É da redação, e crasso, o erro cometido. Mas quem havia de corrigi-lo? A gramaticologia? A filologia? Não: a intuição técnica do jurista, que o professor de línguas não podia ter” 21. No mesmo sentido: Para bem redigir leis, de mais a mais, não basta gramaticar proficientemente. A gramática não é a língua. O alinho gramatical não passa de condição elementar nos exames de primeiras letras. Mas o escrever requer ainda outras qualidades; e, se se trata de leis, naquele que lhes der forma se hão-de juntar aos dotes do escritor os do jurista, rara vez aliados na mesma pessoa.22 De certo modo, o que Rui Barbosa estava a defender era que os conceitos jurídicos requeriam uma expressão literária que fosse elegante, com vistas à clareza e à compreensão com minoração das ambiguidades: São as codificações monumentos destinados à longevidade secular; e só o influxo de arte comunica durabilidade à escrita humana, só ele marmoriza o, papel e transforma a pena em escopro. Necessário é, portanto, que, nessas grandes formações jurídicas, a cristalização legislativa apresenta a simplicidade, a limpidez e a transparência das mais puras formas da linguagem, das expressões mais clássicas do pensamento. Dir-se-á que ponho demasiado longe, alto em demasia, a meta, que a sublimo a um ideal praticamente irrealizável. Mas um não exijo que igualemos essa perfeição custosa e rara. Basta que, ao menos, dela nos acerquemos, não a podendo alcançar: que a lei não seja imprecisa, obscura, manca, disforme, solecista. Porque, se não tem vernaculidade, clareza, concisão, energia, não se entende, não se impõe, não impera: falta às regras da sua inteligência, do seu decoro, de sua majestade23. Outro ponto importante, no qual se justificava Rui Barbosa, era a necessidade de incluir um debate sobre estilo em relação à produção legislativa: Mercê deste precedente descerrou-se a porta aferrolhada, mostrou-se que as questões de elegância e ouvido literário não são indignas do parlamento, nem subalternas ao feito de um código civil, e deu-se a ver quanto neste sentido não teria feito aquela assembleia, se lhe deixassem lazer à competência e ao gosto. No trabalho, a que a este respeito me dei, pois, outra coisa não se faz que trilhar o caminho pela Câmara solenemente aberto e implicitamente recomendado. Seria fácil aduzir outros documentos de com a própria comissão não reputava intangível a revisão extraparlamentar, que 20 Idem. Vale indicar que o parecer está publicado na coleção de obras completas. Cf. BARBOSA, Rui. Obras Completas de Rui Barbosa, v. XXIX. (1902). Rio de Janeiro: Ministério da Educação e Saúde, 1949, t. 01-05. 21 BARBOSA, Rui. Obras Completas de Rui Barbosa, v. XXIX. (1902). Rio de Janeiro: Ministério da Educação e Saúde, 1949, t. 01, p. 12. 22 Idem, p. 4. 23 Idem, p. 3-4. 268 CLÓVIS BEVILÁQUA E RUI BARBOSA – NOTAS PRELIMINARES AO DEBATE DOS JURISTAS ACERCA DO CÓDIGO CIVIL DE 1916 encomendara, e de como a Câmara, se lhe deixaram folga, teria mundificado o seu projeto de muitas das nódoas, que lhe desfeiam a linguagem. (...) Infelizmente a poucos casos desse gênero se limitou a energia depuradora. O projeto saiu da última prova, na assembleia, quase intacto nos seus defeitos de textura. Desde o Parecer, a crítica dele sempre se apoiou no fato de que teria havido insurgência já na Câmara dos Deputados, na forma de emendas; porém, que a satisfação plena da necessidade em realizar retificações somente poderia ser frutífera, com um prazo um pouco mais dilatado. De fato, a crítica substantiva de Rui Barbosa é dirigida ao produto – projeto revisto; mas o problema central era o açodamento: A mesma Câmara, de mais a mais, nos acaba de ensinar, pelo exemplo, o zelo nas miudezas do apuro literário e da eufonia. Notória é a economia de tempo com que procedeu aquela assembleia na discussão do projeto. Delegou [não lho censuro] à sua comissão especial poderes arbitrais sobre as emendas formuladas. Destas abraçou a comissão apenas cinquenta e oito, recusando cento e quarenta e três. A Câmara subscreveu-lhe, sem uma só discrepância, a sumária sentença. Pois bem: das emendas que tiveram prestígio bastante, para sobrenadar ao dilúvio daquela severidade, impondo-se à comissão e à Câmara, uma é a que suprimiu ao art. 763 [hoje 762] a contração nele, outra a que do art. 372 [agora 371] riscou o adjetivo uma, que da palavra mulher não toava bem aos nobres deputados. Ambos esses levíssimos senões tinham escapado à revisão extraparlamentar, destinada a por termo à questão literária, fechando-lhe a porta com os selos de uma grande autoridade. A minha própria revisão, mais paciente, não dera pelo primeiro. Mas, graças à iniciativa de um membro daquela casa, a comissão dos vinte e um e a Câmara fizeram decotar ao projeto, mediante duas emendas, as quatro sílabas malsoantes. Por fim, Rui Barbosa criticou com ênfase a questão da pressa na tramitação. É fácil entender que ele foi vitorioso no seu ponto de vista, já que a tramitação do código civil foi colocada em marcha bem mais lenta, ao atingir o Senado Federal. O parecer ofertado por Rui Barbosa foi contraditado por um texto produzido pelo revisor de português do trabalho apresentado por Clóvis Beviláqua. O dado mais curioso do embate que se seguir foi que a crítica gramatical e filológica ao Parecer foi produzida por aquele que havia sido, também, seu professor no colegial. Rui Barbosa produziu uma dura Réplica, de cunho fortemente filológico, que se tornou uma de suas obras-primas24. Vale indicar que a revisão do debate, com uma análise detida do anteprojeto, do parecer e da réplica, faz ser esse tema muito frutífero para um estudo no campo da história das ideias. Em princípio, pode-se crer que a leitura sobre a crítica de Rui Barbosa possui alguns problemas, se cotejada com a teoria do direito, assim como com a história das ideias. Parece, por tal leitura superficial, que a falta de resignação de Rui Barbosa com o anteprojeto de Clóvis Beviláqua era somente fundado em elementos pessoais. Pode até ser que tais motivos existam, apesar de que esta seria certamente uma motivação trânsfuga. Inegável que a crítica foi dura. Afinal de contas, Clóvis Beviláqua enunciou a seguinte opinião sobre a crítica de Rui Barbosa, lançada contra o seu projeto: Avara na resposta aos pontos litigiosos; e pródiga em considerações estranhas ao assunto em debate. Tal se mostra a Réplica, ao menos na parte que mais de perto me toca. E não tanto por nos ter dado um farto volume de filologia, 24 Toda a continuidade do debate – assim como a Réplica – pode ser analisada a partir da Coleção de Obras Completas que possui acesso na Internet: http://www.docvirt.no-ip.com/ObrasRui/STF_Biblioteca.htm. Outra ref. acessível: BARBOSA, Rui. Réplica às defesas da redação do projeto de código civil brasileiro, na câmara dos deputados – 1904. Rio de Janeiro: Conselho Seccional da OAB/RJ e Fundação Casa de Rui Barbosa, 1980. (reedição) ANAIS DO V CONGRESSO BRASILEIRO DE HISTÓRIA DO DIREITO 269 após outro pouco menos volumoso, com inesperado exórdio de um debate jurídico, e sim principalmente por achar sempre meios de trazer para o pleito o que melhor seria que permanecesse fora dele25. Todavia, o mais grave foi que a imprensa anuiu e amplificou críticas acerca da impropriedade no uso da língua pátria. Nesse tocante, a crítica de Rui Barbosa foi realmente muito poderosa e fez Clóvis Beviláqua considerá-la, portanto, bastante injusta: Entre os defeitos que me tornam impróprio para realizar a assoberbante empresa de redigir um Projeto de Código Civil, salientava a Imprensa, como prefacial a ignorância da língua. “Falta-lhe um requisito primário, essencial, soberano, para tais obras: a ciência da sua língua, a casta correção do escrever”. Eis aí: para elaborar um código civil, o saber jurídico é requisito secundário e subordinado; o essencial, o indispensável, o soberano, a qualidade primária é “a casta correção do escrever”. Sobre essa idéia original tem sido construída toda a crítica ao Projeto atual. O Parecer e a Réplica são desdobramentos lógicos desse pensamento primordial. E somente por uma inconseqüência, como há muitas na Réplica, acha censurável o egrégio senador Rui Barbosa que a comissão da Câmara tenha pedido ao Dr. Ernesto Carneiro, profundo conhecedor da língua e elegante escritor, o auxílio valioso da sua competência. Se para codificar é bastante possuir a casta correção do escrever, porque exigir conhecimentos jurídicos de quem fora chamado exclusivamente para dizer sobre a linguagem? O pregão da minha incompetência tem sido martelado sobre esta base. "Bem se vê que vive fora do idioma em que se exprime", diz a Réplica a chasquear. E a cada passo a obsessão se revela, lampejando às vezes numa frase rápida, espraiando-se, outras vezes, em exclamações emocionantes, transpondo mesmo, em certo momento, os limites do que me parece o terreno próprio de discussões como esta26. O mesmo estupor pode ser depreendido da Tréplica, resposta de Ernesto Carneiro Ribeiro à Réplica de Rui Barbosa. Logo, nas considerações iniciais, o autor rebate a crítica que foi dirigida ao projeto, nos artigos 1011, 1017 e 1534, sobre o instituto da compensação de créditos e débitos. O gramático coteja a redação dos seus três artigos com a reformulação realizada por Rui Barbosa para concluir que não houve grandes modificações; vai além e considera que as alterações não são substanciais e demonstram a injustiça da crítica: Se, pois, nos três artigos do Projeto, indicados pelo ilustre e sábio jurisconsulto, divisa ele ‘errado quináo de linguagem’, havendo aos demais, como assevera, uma ‘erronia jurídica’, que vicia o texto do primeiro, porque, emendando os mesmos artigos, coservou em todos eles as locuções, de que nos vem agora increspar. Como pactuar assim com a ‘erronia jurídica’, que estigmatiza e repele? Não é muito que nós, de todo o ponto leigos na ciência do direito, cometamos, na redação de um trecho, uma ‘erronia jurídica’; mas subscrever o Dr. Rui Barbosa, com o elevado prestígio de seu nome, a esse ‘erronia jurídica’, abrir-lhe praça e sancioná-la com a sua alta autoridade de jurista, coisa é que custa a conceber. Entretanto é esta a verdade. Leiam as emendas do Dr. Rui Barbosa, feitas ao Projeto depois da revisão, e fácil será de ver que o eminente censor, nos artigos que ora argüi de ‘errado quináo de linguagem’, sendo até, ao seu aviso, tocado um deles de ‘erronia jurídica’, conservou exatamente, no que respeita as locuções que refuta e repele agora nas generalidades da Réplica, a mesma redação que encontrou, quando lhe chegou às mãos o Projeto27. 25 BEVILÁQUA, Clóvis. Em defeza do Projecto de Codigo Civil Brazileiro. Rio de Janeiro: Livraria Francisco Alves, 1906, p. 467 e seg. Adaptei o português do texto ao coloquial contemporâneo. 26 Idem, p. 494 e seg. 27 CARNEIRO RIBEIRO, Ernesto. Tréplica: a redação do projeto do Código civil e a réplica do Dr. Rui Barbosa. 3 ed. Salvador: Livraria Progresso, 1951, p. 25. 270 CLÓVIS BEVILÁQUA E RUI BARBOSA – NOTAS PRELIMINARES AO DEBATE DOS JURISTAS ACERCA DO CÓDIGO CIVIL DE 1916 No artigo 1011, Rui Barbosa trocou o vocábulo “exigíveis” pela palavra “vencidas”. É evidente que corrigiu um erro jurídico. Da mesma forma, indicou que a desistência se refere à ação e não ao pedido. Outro erro. Ele modificou, também, o artigo 1534 para incluir a remissão direta aos artigos relacionados com o instituto, ao invés de manter uma menção genérica (artigos antecedentes). Vale visualizar o cotejo e noto que mantive o português da época no trecho28: Artigos Projeto (Ernesto Carneiro Ribeiro) Réplica (Rui Barbosa) 1011 A compensação effeitua-se entre A compensação effectua-se entre dividas liquidas, exigiveis e de coisas dividas liquidas, vencidas e de coisas fungiveis. fungiveis. 1017 Não pode realizar-se a compensação, Não pode realizar-se a compensação, havendo renuncia previa de um dos havendo renuncia previa de um dos devedores. devedores. 1534 Não se applicarão as penas dos artigos antecedentes, sempre que o autor desistir do pedido antes da contestação da lide. Não se applicarão as penas dos artigos 1532 e 1533, quando o autor desistir da acção antes de contestada a lide. É curioso que a Tréplica insista em que a própria revisão de Rui Barbosa teria corroborado os pontos de vista da redação de Carneiro Ribeiro. Até porque a sua crítica aprova a revisão empreendida por Rui Barbosa que, certamente, colaborou com a produção do texto final. Bem se visualiza que a crítica de Carneiro Ribeiro mantém a tecla já apertada por Clóvis Beviláqua. Foi ele que fortaleceu a concepção de que o Parecer – e a Réplica – era singelo no que concernia aos conceitos jurídicos; porém, impiedoso no tocante ao estilo. Um exemplo é a crítica à proposta de Rui Barbosa à redação do art. 17, do Código Civil, que excluiria o direito internacional privado do horizonte do sistema do direito civil. Assim, na lógica da explicação de Clóvis Beviláqua, a proposta substitutiva de Rui Barbosa impediria a integração no Brasil de direitos pessoais, oriundos de ordenamentos jurídicos estrangeiros29. Outra reclamação, relacionada com a Réplica foi o pouco espaço dado ao debate jurídico. Clóvis pugnava por ampliar esta discussão, como fez em relação a diversos outros críticos. Era personalidade pública afeita ao debate e à circulação das ideias. Entretanto, no prisma da história das idéias, os pesquisadores são levados a desconfiar de tal gênero de narrativas, baseadas precipuamente na disputa de egos30. Afinal, no Parecer lançado por Rui Barbosa, as críticas apesar de serem duras, não são desarrazoadas. No introito do Parecer do Senado, se indica que houve certo açodamento na aprovação na câmara baixa e que imperfeições foram mantidas. Porém, são traçados elogios aos juristas: Já se vê que nesta iniciativa não tenho em mente desfazer nos serviços da comissão legislativa, que nos precedeu. Não participo da indignação ou do desprezo, com que muitos os têm fulminado. Antes me parece que como base à revisão, por que vai passar nesta casa do congresso, nos merecem toda a 28 Idem, p. 24. 29 BEVILÁQUA, Clóvis. Em defeza do Projecto de Codigo Civil Brazileiro. Rio de Janeiro: Livraria Francisco Alves, 1906, p. 454 e seg. 30 A pesquisa científica nessa área indica a necessária desconfiança analítica das fontes. Cf. JASMIN, Marcelo G. História dos conceitos e teoria política e social: referências preliminares. Revista Brasileira de Ciências Sociais, São Paulo, v. 20, n. 57, fev. 2005. p. 27-38. ANAIS DO V CONGRESSO BRASILEIRO DE HISTÓRIA DO DIREITO 271 estima e respeito. Entre vários outros colaboradores de alto merecimento, duas culminantes sumidades jurídicas, representando, aliás, tendências opostas, o Sr. Clóvis Beviláqua e o Sr. Andrade Figueira, impuseram o cunho de seu saber ao projeto; e, bem que ambos saíssem malcontentes de uma solução, que não podia satisfazer cabalmente a um e outro, força é que de tal cooperação resultassem valiosos frutos. Se daquele antagonismo entre os dois principais colaboradores houverem derivado contradições, cumprirá corrigilas. Mas uma codificação não pode ser expressão absoluta de um sistema, vitória exclusiva de uma escola. Toda obra de legislação em grande escala há de ser obra de transação31. Por ora, vale estender a ilação sobre a teoria do direito. Uma hipótese para a existência de contradições nessa suposição historiográfica seria que é impossível deslindar a crítica jurídica de Rui Barbosa das críticas lingüísticas que são realizadas no parecer e na réplica. Nesse prisma, os enunciados que formam a expressão de normas jurídicas fixadas em lei ocorrem por meio do vernáculo. De tal maneira, a crítica lingüística também é uma crítica de cunho jurídico. Um exemplo prático. Se a crítica diz respeito à má escolha de palavras para expressão de uma obrigação como aquela referida à indenização por atraso na entrega de coisa (mora), o objetivo pode fortemente se relacionar com a necessária busca pela diminuição de ambigüidades que poderiam atrapalhar o processo de interpretação do direito em sua realização prática. Em termos de juros fixados judicialmente, veja-se que até hoje existe polêmica sobre tal tema nos tribunais. A diferença entre o conceito de juros moratórios e de juros compensatórios é um bom exemplo. A possibilidade de cálculo combinada de ambos e a ancoragem jurídica para eles em situações diferentes, é outra evidência. 6 Considerações finais. Um dos mais graves problemas da historiografia é a construção de interpretações sobre o passado, a partir dos interesses e dos ideais de hoje e do futuro. O anacronismo pode dar azo a leituras sobre litígios como se eles estivessem impregnados por questões atuais. É claro e óbvio que havia uma disputa política relacionada com a aprovação de uma nova codificação civil para o Brasil, em substituição às Ordenações, e ao uso prático da Consolidação de Teixeira de Freitas. Esta obra era usada como uma fonte doutrinária relevante para a tarefa de interpretar o direito. No entanto, a redução do diálogo havido entre Rui Barbosa e Clóvis Beviláqua a uma guerra de egos entre dois juristas contribui pouco para desvelar o real significado do que estava em jogo naquele momento histórico. Certamente, havia um enorme respeito entre os dois homens públicos, reconhecido pelas menções mútuas em diversos trabalhos. Um exemplo. Em 1931, a Faculdade de Direito de Niterói recebeu Clóvis e Amélia Beviláqua para duas conferências casadas32. O tema escolhido por Clóvis foi a formação constitucional do Brasil. Assim, a sua preleção versou sobre a divisão de poderes, a democracia, o federalismo e a organização estatal. Na conferência, ele lembrou com grande gentileza a importância de Rui Barbosa e a sua índole humanista e liberal. Se alguma nota pode ser retirada deste debate entre Clóvis Beviláqua e Rui Barbosa é que ele existiu. Na tradição acadêmica – e política – brasileira, o comum é a omissão. Logo, não é a nota de rodapé crítica e enfática. É o fingir que o dissenso não existe. É, enfim, negar a palavra do 31 BARBOSA, Rui. Obras Completas de Rui Barbosa, v. XXIX. (1902). Rio de Janeiro: Ministério da Educação e Saúde, 1949, t. 01, p. 02 e seg. 32 BEVILAQUA, Amélia de Freitas; BEVILAQUA. Divagações sobre a consciência – Formação constitucional do Brasil (duas conferências). Rio de Janeiro: Oficina Borsoy, 1931. 272 CLÓVIS BEVILÁQUA E RUI BARBOSA – NOTAS PRELIMINARES AO DEBATE DOS JURISTAS ACERCA DO CÓDIGO CIVIL DE 1916 outro. Clóvis Beviláqua sempre debateu e reconheceu o outro, já que não poderia ter dúvidas acerca do que aceitou empreender. 7. Referências. BARBOSA, Rui. O supremo tribunal federal na constituição brasileira. In: __________. Pensamento e ação de Rui Barbosa: seleção de textos pela Fundação Casa de Rui Barbosa. Brasília: Senado Federal, 1999. BARBOSA, Rui. Obras Completas de Rui Barbosa, v. XXIX. (1902). Rio de Janeiro: Ministério da Educação e Saúde, 1949, t. 01-05. BEVILÁQUA, Clóvis. Observações para esclarecimento do Código Civil brasileiro. In: Códigos Civis do Brasil: do Império à República. Brasília: Senado Federal, 2002. (CDROM). BEVILAQUA, Amélia de Freitas; BEVILAQUA. Divagações sobre a consciência – Formação constitucional do Brasil (duas conferências). Rio de Janeiro: Oficina Borsoy, 1931. BEVILÁQUA, Clóvis. 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Código Civil Brasileiro: trabalhos relativos à sua elaboração (modificações no regimento da Câmara, pareceres de faculdades de Direito, de tribunais dos Estados, de jurisconsultos e de membros do Instituto dos Advogados, atas das reuniões da comissão especial do Instituto dos Advogados, respostas do autor do projeto, Sr. Clóvis Beviláqua, emendas enviadas à Mesa da Câmara, nomeação da primeira comissão especial, trabalhos preliminares da comissão, pareceres parciais dos membros da comissão), v. 2. Rio de Janeiro: Imprensa Nacional, 1918. BRASIL: Ministério da Justiça e Negócios Interiores. Código Civil Brasileiro: trabalhos relativos à sua elaboração (discussão e votação, na comissão especial, do título preliminar e titulo preliminar e da parte geral, discussão da parte especial), v. 3. Rio de Janeiro: Imprensa Nacional, 1919. CARNEIRO RIBEIRO, Ernesto. Tréplica: a redação do projeto do Código civil e a réplica do Dr. Rui Barbosa. 3 ed. Salvador: Livraria Progresso, 1951. 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São Paulo: Companhia Editora Nacional, 1939 [1927] 274 DEMOCRACIA, PARTICIPAÇÃO E SOBERANIA POPULAR: UMA PROBLEMATIZAÇÃO HISTÓRICA DA REPRESENTAÇÃO POLÍTICA DEMOCRACIA, PARTICIPAÇÃO E SOBERANIA POPULAR: UMA PROBLEMATIZAÇÃO HISTÓRICA DA REPRESENTAÇÃO POLÍTICA DEMOCRACY, PARTICIPATION AND POPULAR SOVEREIGNTY: A HISTORICAL PROBLEMATIZATION OF THE POLITICAL REPRESENTATION Douglas da Veiga Nascimento* Resumo: No decorrer dos séculos XVIII e XIX, a democracia moderna, precocemente definida por Rousseau, declinou na forma da representação e o papel do cidadão ficou restrito à escolha de seus representantes por meio do voto. Sua função não era a participação direta nas decisões políticas ou na gestão pública. Surge nesse contexto a democracia representativa, formal e indireta. Nesse modelo de democracia, na medida em que exerce seu direito ao voto, o cidadão assume um papel eminentemente passivo diante de uma política centrada na figura dos representantes. O sucesso da democracia representativa, nesse período, está diretamente ligado à introdução do sufrágio universal como mecanismo de legitimação do governo. Nesse sentido, sua função é bastante efetiva, mas, por outro lado, acarretou uma baixa participação dos cidadãos e um reduzido interesse pela fiscalização dos processos de decisão e gestão governamentais. Refletindo sobre a democracia, Rousseau rechaçava o sistema da representação política, isso porque ela seria absolutamente incompatível com a ideia da soberania popular que ele defendia. A teoria e a prática da representação política era alvo na teoria política Rousseauniana por conta de seu caráter alienante em relação à posição do cidadão. A representação era vista como um mecanismo de consenso político que violava a autonomia individual, como dignidade do cidadão, que se realizaria através do exercício direto da soberania popular. A oposição de Rousseau ao regime representativo nasce de uma consciência da soberania popular mais profunda do que aquelas presentes nas democracias do séc. XIX. * Douglas da Veiga Nascimento, mestrando em História do Direito no Programa de Pós-graduação em Direito da Universidade Federal do Paraná (E-mail: [email protected]) ANAIS DO V CONGRESSO BRASILEIRO DE HISTÓRIA DO DIREITO 275 Introdução As impressões dos cidadãos a respeito da palavra “democracia”, em regimes mais ou menos democráticos, não são necessariamente produtos de uma participação direta na gestão pública ou nas decisões políticas de caráter administrativo, judicial e legislativo. A sua posição é sempre distanciada, como um espectador passivo e, na maioria das vezes, desinteressado. Mas esse lugar comum, que poderia ser chamado de acondicionamento ou alienação, não é nada mais do que uma condição histórica e, portanto, reversível. No cotidiano de cada cidadão, no plano das sociabilidades mais elementares como família e trabalho, acaba não havendo espaço para representações críticas e debates comuns, que sejam capazes de transformar uma ideia, como a participação política, em algo mais significativo. A massa dos cidadãos acaba sendo levada por uma espécie de pré-compreensão “cotidiana” a respeito desse termo, sem que haja condições para que maiores problemas sejam levantados. Na verdade, as ideias que brotam quase que espontaneamente quando nos referimos à democracia não são propriamente fruto da experiência direta e participativa em uma ordem política democraticamente estabelecida. Essas ideias estão espalhadas numa dimensão planetária ou numa atmosfera global em que circulam alguns significados, principalmente através das mídias de massa. Nesse sentido é possível falar em um “senso comum” sobre a democracia que é produzido por alguns centros de comunicação que reforçam esse distanciamento histórico dos cidadãos da esfera política. Nesse contexto global, a democracia tornou-se uma impressão vazia, incerta e pouco factível no universo do cotidiano dos cidadãos. Essa relação vulgar e abstrata com a democracia não nasce, propriamente, de uma experiência política. Mas por qual razão a democracia não é uma experiência substancial na vida de um cidadão, sobretudo num regime que se declara democrático? Muitos poderiam encontrar a resposta para essa dissociação entre os cidadãos e a esfera política na falta de interesse, tempo e condições materiais para que cada um deles pudesse participar, debater e deliberar sobre cada questão política e jurídica no âmbito da república. Para além dessas inspirações imediatas, amplas e pouco suscetíveis de uma contextualização espacial e temporal, é preciso reconhecer que a palavra “democracia” está inserida numa longa e antiga reflexão que parte da Grécia, sobretudo de Platão, Aristóteles, Heródoto e Tucídides e atinge a totalidade da cultura ocidental. Mesmo o aspecto “positivo”, tão familiar, que perpassa atualmente as pré-compreensões sobre a democracia são bastante recentes. Nem sempre a democracia teve um sentido “positivo”, muito pelo contrário, durante muito tempo ela foi alvo de um descrédito fundado, sobretudo, na ideia de que seria um regime desequilibrado, no qual os muitos, pertencentes às classes subalternas, governariam os poucos, ricos e aristocratas1. Mas até em que medida a democracia é vista hoje com um aspecto positivo, sobretudo quando se trata da democracia direta? A partir da reflexão medieval, retomando a obra Política de Aristóteles, a ideia de que os poucos, virtuosos e mais sábios devem governar os muitos tornou-se um axioma repetido incessantemente ao longo da história. A base desse argumento assumia que os muitos estariam sempre expostos ao risco de se transformarem numa massa incontrolável e anárquica, como uma “multitudo bestialis”. Num regime em que muitos governassem, acreditava-se que a ordem permaneceria em constante risco, pois a maioria poderia, num 1 COSTA, Pietro. Soberania, representação, democracia: Ensaios de história do pensamento jurídico. Curitiba: Juruá, 2010, p. 239. 276 DEMOCRACIA, PARTICIPAÇÃO E SOBERANIA POPULAR: UMA PROBLEMATIZAÇÃO HISTÓRICA DA REPRESENTAÇÃO POLÍTICA lance de irracionalidade, prejudicar a si mesma, ou melhor, a democracia poderia se aniquilar por um fulgor da maioria2. Atualmente, no contexto das discussões sobre constitucionalismo e democracia, esse mesmo axioma medieval aparece em pleno vigor. O próprio fundamento de base que legitima o discurso da necessidade de uma constituição como mecanismo jurídico-político para se impedir que a democracia seja consumida por ela mesma, parece seguir essa mesma premissa medieval da “multitudo bestialis”. Mas há um grave problema na transposição desse axioma para a justificação da limitação de uma democracia por meio de uma constituição contemporaneamente. A reflexão político-jurídica medieval, retomando Aristóteles, pensava em uma democracia direta, formada por cidadãos que poderiam atuar sem instâncias intermediárias no debate e na deliberação pública. O constitucionalismo democrático, atualmente, parece reforçar essa mesma problemática tendo como foco, no entanto, uma democracia indireta ou representativa. É pouco provável que o risco num regime democrático decorra atualmente da participação de todos. Muito pelo contrário, o problema não está na democracia direta e na sua suposta essência anárquica, mas sim no sistema representativo previsto pelas constituições como instrumento de contenção das supostas irracionalidades das massas politicamente desorganizadas. O constitucionalismo democrático conservador e defensor da democracia formal e procedimental, na medida em que teme os efeitos radicais de uma democracia direta, não reforça apenas a necessidade de se limitar a democracia através de instâncias não democráticas como o judiciário, mas também fortalece a tese da necessidade de uma democracia de poucos, mais sábios e preparados, para os assuntos da república. Se o problema nasce do temor de um consenso irracional e destrutivo do regime por meio da deliberação de uma maioria absoluta dos cidadãos, o constitucionalismo deveria se preocupar mais com a ampliação da participação da população do que defender a formação de uma elite política e jurídica que pode muito mais facilmente chegar a um consenso devastador. Nesse caso, aqueles que deveriam ser os guardiães da democracia e da constituição seriam aqueles que mais facilmente poderiam corrompê-la. Diante da crise de legitimidade da democracia representativa, ela, atualmente, passa por grandes transformações. Na virada do século XX para o XXI, houve uma expansão extraordinária de modelos de democracia denominados de alternativos ou contrahegemônicos. A preocupação central dessas novas democracias é a de promover uma participação direta da população na formação da decisão política. Trata-se, portanto, de medidas que pretendem retomar, num sentido positivo, as concepções de democracia direta, na qual cada cidadão possa participar e deliberar sobre os assuntos públicos sem a intermediação de representantes, partidos, instituições, os meios de comunicação centralizados e poderes constituídos, como o judiciário. Isso pelo fato de que democracia já não é mais sinônimo de eleições periódicas. Ela não pode ser confundida com o princípio republicano da elegibilidade e periodicidade dos mandatos. A sua base é constituída por um processo de participação popular que permita um controle civil dos poderes políticos. E o principal meio para realização desse controle depende de um espaço que possa integrar todos os cidadãos3. Nas discussões contemporâneas sobre a democracia, é preciso ir muito além daquilo que nos oferece o modelo de democracia representativa. Mas, mais do que isso, é preciso 2 COSTA, P. Idem, ibidem. 3 FARACO, Alexandre Ditzel. Democracia e regulação das redes eletrônicas de comunicação: Rádio, televisão e internet. Belo Horizonte: Fórum, 2009, p. 11. ANAIS DO V CONGRESSO BRASILEIRO DE HISTÓRIA DO DIREITO 277 despertar para o fato de que a democracia é um tema que não pertence a uma área ou outra. Tão pouco pode ser considerada como um mecanismo procedimental estabelecido pelas constituições e que, no âmbito das discussões jurídicas, tomam a cena de tal forma que dificilmente se consegue vislumbrar, no âmbito do direito, um modelo de democracia que esteja para além dos procedimentos e formas estabelecidas por ela. Os debates atuais sobre a democracia transcendem esses aspectos, eles surgem de problematizações de práticas sociais que estão constantemente alterando o jogo clássico entre democracia, cidadania e representação. 1 As semânticas clássicas da democracia: A democracia dos antigos e a dos modernos O termo “democracia” é atualmente um elemento vital na retórica política. O seu horizonte histórico de significação é extremamente amplo e não pode ser separado dos contextos histórico-culturais radicalmente diversos entre si nos quais ele se apresenta concretamente. Portanto, quando se trata da democracia, é necessário ter em mente que “a linha de seu desenvolvimento histórico-conceitual é recortada, ou até fragmentada”4. De nenhum modo se pode aceitar a democracia como uma expressão dotada de um sentido linear e homogêneo, inserido num plano abstrato ou distante de um contexto histórico. Isso porque ela envolve uma diversidade de problemas dentre os quais se destacam as questões sobre a legitimidade do poder político e o modo ou os instrumentos para o seu exercício. Dentre as diversas semânticas de democracia, aquilo que sobressai é um esforço permanente e constante para se oferecer uma resposta para esses dois problemas. Os eventuais impasses, inconsistências, paradoxos, dilemas e problemas semânticos que digam respeito à democracia não podem ser analisados prescindindo-se de uma experiência política concreta. Uma primeira distinção fundamental na semântica da democracia, que nos oferece modelos descontínuos de significado, corresponde à oposição clássica entre a democracia dos antigos e a dos modernos. A democracia antiga, originada das reformas introduzidas por Clístenes em Atenas no séc. VI a.c., era um regime no qual cada cidadão podia governar e ser governado diretamente e sem intermediação institucional. O cidadão, pertencente ao demos, era o agente ativo que intervinha diretamente na decisão ou na escolha política. Nesse modelo, apesar da presença de uma sociedade hierarquizada e desigual, sobretudo pela escravidão e pela exclusão de gênero, a democracia era tomada como o “triunfo da igualdade dos cidadãos e de sua liberdade de palavra e ação política”5. Não se trata, nesse caso, de uma liberdade universalizante como a dos modernos, pois todo o espaço político se restringia à esfera da polis ou ao povo (demos) como parte intrínseca da cidade. A democracia antiga é, portanto, “o governo de um povo que se afirma como entidade coletiva já existente, não reduzível à mera soma dos indivíduos que a compõem”6. Através da mediação aristotélica, sobretudo pela recepção da obra Política de Aristóteles, a sociedade medieval recebeu do mundo antigo a democracia como uma “nova” temática para a reflexão político-jurídica. A sua principal acepção era a de uma forma de governo na qual se atribui ao “povo” o papel central no processo político. Nesse período, na cultura medieval, assim como na polis da antiguidade clássica, o “povo” não era compreendido como uma realidade instituída por um ato de vontade de um soberano, mas sim como uma unidade espontaneamente ordenada, na qual cada indivíduo encontrava-se ligado a uma comunidade, ordem ou corporação dentro de uma hierarquia. 4 COSTA, P. Op. cit., p. 212. 5 COSTA, P. Idem, ibidem. 6 COSTA, P. Idem, ibidem. 278 DEMOCRACIA, PARTICIPAÇÃO E SOBERANIA POPULAR: UMA PROBLEMATIZAÇÃO HISTÓRICA DA REPRESENTAÇÃO POLÍTICA No caso da democracia moderna, ao contrário da reflexão político-jurídica medieval e antiga, em que pese as diferentes perspectivas acerca da soberania e da representação, a ordem não é mais reconhecida como um resultado espontâneo das sociabilidades no seio da comunidade. Ela só pode ser realizada e mantida pelo poder absoluto e centralizado de um soberano que concederá a cada um dos sujeitos os seus direitos individuais. O ponto de partida da democracia dos modernos, tanto em Rousseau, quanto em Hobbes e Locke, é o indivíduo na sua relação com o soberano. É em Rousseau que se apresenta uma imagem tipicamente moderna de democracia, na qual o conjunto dos sujeitos confunde-se com o soberano ou com o corpo político. Para ele, o momento do nascimento dessa entidade comum, “o povo”, ocorre no instante do pacto ou do contrato social. A ordem é, desse modo, uma condição advinda de um ato de soberania e vontade do próprio povo7. Democracia moderna é, nesse caso, o autogoverno do povo, como conjunto de sujeitos iguais que decide, por meio de um contrato, instituir uma ordem política ou um corpo soberano. É apenas após o pacto original que cada sujeito passa a existir como um cidadão pertencente a um corpo soberano. Cada indivíduo “espera do soberano a confirmação e o reforçamento dos seus direitos naturais”8 e a liberdade de cada cidadão é fruto de sua participação direta na vida política. A ideia da figura de um representante, como mediador da vontade política do cidadão, significava a perda dessa prerrogativa ou mesmo da liberdade política, pois “o soberano é o povo, e o povo é o conjunto dos indivíduos que se constituem como corpo soberano” 9. Portanto, a democracia moderna estava centrada na participação direta e imediata dos cidadãos nos assuntos públicos. A partir de uma atuação ativa, eles exerceriam a liberdade política perante um ente soberano constituído pela vontade individual de cada um deles. 2 A democracia representativa e o nascimento das democracias contrahegemônicas No decorrer dos séculos XVIII e XIX, a democracia moderna, precocemente definida por Rousseau, declina na forma da representação, ou seja, “a luta pela democracia tenderá a se concentrar sobre o tema da titularidade e do exercício do direito de voto”10. O papel do cidadão estará restrito à escolha de seus representantes por meio do voto. Sua função não será vista mais como a de participar diretamente das decisões políticas ou da gestão pública. Surge nesse contexto a democracia representativa, formal e indireta. Nesse modelo de democracia, na medida em que exerce seu direito ao voto, o cidadão assume um papel eminentemente passivo diante de uma política centrada na figura dos representantes. O sucesso da democracia representativa, nesse período, está diretamente ligado à introdução do sufrágio universal como mecanismo de legitimação do governo. Nesse sentido, sua função é bastante efetiva, mas, por outro lado, acarretou uma baixa participação dos cidadãos e um reduzido interesse pela fiscalização dos processos de decisão e gestão governamentais11. A representação, na cultura político-jurídica, não é uma questão de mera técnica constitucional para que um sujeito aja em substituição a outro ausente no espaço de instituições como o parlamento. Trata-se, na verdade, de um conceito que está intimamente 7 COSTA, P. Idem, p. 214-215. 8 COSTA, P. Idem, p. 215. 9 COSTA, P. Idem, p. 216. 10 COSTA, P. Idem, ibidem. 11 VALENTE, Manoel Adam Lacayo. Democracia enclausurada: Um debate crítico sobre a democracia representativa contemporânea. Brasília: Câmara dos Deputados: Coordenação de Publicaçes, 2006, p. 93. ANAIS DO V CONGRESSO BRASILEIRO DE HISTÓRIA DO DIREITO 279 ligado a uma forma de compreensão e legitimação da ordem política12. Na medida em que ela se concentra na legitimação da ordem, marcadamente desigual, a representação oferece mecanismos de domínio de uma pequena parcela da população sobre uma multiplicidade de indivíduos que se sujeitam. Em cada momento histórico distinto, a representação esteve imersa em diversas estratégias discursivas para o reconhecimento dos grupos considerados como a expressão da identidade política numa relação semelhante àquela do tutor e do tutelado13. Nas democracias representativas, o momento do protagonismo dos sujeitos concentra-se na oportunidade do voto. Ele “é a expressão (visível e formalizada) do consenso do qual se pretende fazer depender a legitimidade do poder; o voto é o instrumento que permite aos representados reconhecer 'seus' representantes […]”, ou ainda, “o exercício de um poder que incide [...] na seleção da elite política”14. Em razão da função de legitimação, o voto é entendido como um instrumento a ser manejado por uma classe política organizada, que cria e reforça, ainda que no plano simbólico, o vínculo político entre a elite e os indivíduos. Além disso, nem todos os sujeitos são necessariamente titulares do direito de voto. Em diversos momentos, o discurso da representação preocupava-se em fixar critérios censitários e introduzir distinções de caráter excludente, como no caso das limitações de gênero ou por meio de critérios baseados na propriedade privada, como expressão da autonomia e da liberdade do indivíduo. Ao longo de sua trajetória nos séculos XVIII e XIX, a representação produziu novos paradoxos e tensões internas na velha problemática moderna da relação entre sujeitos e soberano. Com a representação, a soberania passa a ser o resultado da concretização das decisões tomadas pelos representantes que estão numa posição “perfeitamente” independente dos interesses, vontades e opiniões dos cidadãos como sujeitos políticos passivos. Por meio da representação, passa a ser possível, procedimentalmente, que muitos elejam poucos para a tomada de assento nos estratos mais elevados da república. É, portanto, um mecanismo de formação de consenso que legitima a unidade da ordem política15. Com a democracia representativa, há uma nítida separação e distanciamento entre o soberano e seus representados ainda que a legitimidade dependa da formação de um consenso. Os movimentos de luta por uma democracia política situam-se, nos séculos XIX e XX, justamente nesse aspecto; busca-se um reconhecimento e reformas políticas que abram espaço para o exercício do direito do voto por classes estigmatizadas e frágeis, como as mulheres e os não-proprietários. Trata-se de “uma luta para mudar a composição da classe dirigente e conseguir obter as reformas econômico-sociais que dificilmente seriam concedidas por uma classe dirigente de 'notáveis'”16. A luta pela democracia tinha como objetivo uma aproximação entre representantes e representados, ou seja, há uma recusa de se aceitar que uma assembleia representativa não espelhasse uma sociedade igualitária17. No séc. XIX, a representação é desenvolvida em meio a uma tentativa de se criar mediações entre os sujeitos e o soberano. Nesse momento, a tese da democracia moderna fundada na relação direta entre indivíduos e soberano é superada. Há uma mudança radical na “antropologia política”: “o referente da representação torna-se, agora, a coalizão de interesses particulares que, para Rousseau, introduzia a gérmen da corrupção no corpo político, poluindo 12 COSTA, P. Op. cit., p. 155. 13 COSTA, P. Idem, p. 155-156. 14 COSTA, P. Idem, p. 172. 15 COSTA, P. Idem, p. 180. 16 COSTA, P. Idem, ibidem. 17 COSTA, P. Idem, p. 181. 280 DEMOCRACIA, PARTICIPAÇÃO E SOBERANIA POPULAR: UMA PROBLEMATIZAÇÃO HISTÓRICA DA REPRESENTAÇÃO POLÍTICA a clara percepção da vontade geral”18. Uma das formas de mediação propostas foi a dos partidos. Mas, ainda que eles permaneçam por muito tempo na periferia do debate político, na segunda metade do séc. XIX, assumem um ponto fundamental no sistema representativo. O partido passa a ser reconhecido como um meio eficaz e necessário para uma aproximação entre o Estado e a sociedade ou mesmo como instrumento para reforçar o papel dos representados19. Com um Estado de partidos “interrompe-se a fratura qualitativa entre o soberano e os sujeitos, é colocada uma pedra no mecanismo representativo graças ao qual era possível imputar ao Estado como tal a vontade independente das vontades dos sujeitos”20. O intenso protagonismo dos partidos na formação da vontade estatal era um aspecto bastante estranho aos Estados representativos “clássicos”. Os representantes, que antes gozavam de independência perante os representados, passam a se vincular às diretivas dos partidos. É a dissolução da independência dos eleitos ou dos representantes que provoca a crise do Estado representativo21. Nos séculos XIX e XX, há uma convicção bastante arraigada de que as instituições de mediação entre os indivíduos e o Estado soberano deveriam ser necessariamente os partidos. No entanto, além da provocação da perda da independência dos representantes, os partidos reforçaram o primado das elites. Por meio deles, foi injetado na democracia um aspecto eminentemente oligárquico. A partido, com seu estatuto organizado e disciplinado, começou a controlar as massas numa democracia fundada no sufrágio universal. Nesse caso, prevalece o domínio de poucos sobre muitos. A própria ideia de que o voto é o exercício de uma escolha livre dos representantes deixa de fazer qualquer sentido, pois as candidaturas são controladas por uma minoria politicamente organizada. Nos debates constituintes do período pós-guerra, depois de um período de repentina interrupção da representação com o fascismo e o nacional-socialismo, os direitos políticos tornaram-se parte integrante das constituições. Foram incluídos, além disso, o sufrágio universal, o pluralismo político-jurídico, as câmaras representativas e os partidos políticos. Mas não se trata, necessariamente, de um retorno à democracia liberal do início do início do séc. XX. A característica mais radical desse novo contexto histórico diz respeito, de um lado, à “sociedade de massa” que é agregada às novas estruturas estatais, e de outro, à convicção generalizada de que o principal meio para integração política das massas seria o partido. Nesse caso, trata-se de partidos plurais e competitivos, muito distintos dos partidos únicos dos regimes totalitários. É o “indispensável” sistema de partidos que mediará o Estado e a sociedade22; “eles são o instrumento necessário de organização da vontade popular”23. Atualmente, o discurso da representação passa por uma crise radical 24. Duas questões o tornam bastante problemático. A primeira delas diz respeito à trajetória “moderna” da representação e de sua vinculação com uma determinada forma de política baseada na afirmação do Estado-nação e de sua absoluta soberania. Portanto, a representação também é atingida pela crise do conceito de soberania. A segunda questão diz respeito à historicidade precisa da representação vinculada às sociedades ocidentais norte-americana e europeias. Com a globalização, a representação foi inserida em um contexto mais complexo que atinge 18 COSTA, P. Idem, p. 194. 19 COSTA, P. Idem, p. 196. 20 COSTA, P. Idem, p. 198. 21 COSTA, P. Idem, p. 199. 22 COSTA, P. Idem, p. 204. 23 COSTA, P. Idem, p. 205. 24 VIEIRA, Luiz Vicente. Os movimentos sociais e o espaço autônomo do “político”: Resgate de um conceito a partir de Rousseau e Carl Schmitt. Porto Alegre: EDIPUCRS, 2004, p. 185-187. ANAIS DO V CONGRESSO BRASILEIRO DE HISTÓRIA DO DIREITO 281 diretamente seu sentido e as possibilidades de sua transposição em contextos culturais distintos25. Ao longo do séc. XX, houve uma intensa disputa em torno da questão democrática centrada em dois aspectos principais: a desejabilidade da democracia para a constituição dos governos por meio das eleições na primeira metade do século; e o debate acerca das condições estruturais da democracia após a Segunda Guerra Mundial26. Na segunda metade do séc. XX, com a crise do Estado de bem-estar social acompanhada da adoção da democracia representativa com o sufrágio universal, houve uma fragmentação entre o Estado e a sociedade civil. Diante da ascensão dos Estados neoliberais e da perda progressiva de direitos sociais, os cidadãos, membros dessa sociedade, acabaram não se reconhecendo como partícipes do processo político. A concepção hegemônica de democracia a tomava e empregava como mera prática de legitimação dos governos. Atualmente, com a reabertura do debate estrutural sobre a democracia, estão muito presentes as discussões sobre a sua forma e variação. Esses novos debates têm problematizado as respostas oferecidas por uma concepção hegemônica da democracia que se caracteriza por alguns elementos principais: como a valorização da apatia política; a ideia de que o cidadão comum não tem interesse ou capacidade política senão para a escolha dos seus representantes; a concentração do debate democrático nos desenhos eleitorais da democracia; a ideia de que pluralismo decorre de uma diversidade partidária e das disputas entre as elites; e as teses e soluções minimalistas para o problema da participação27. A insistência nas formas clássicas de democracia, sobretudo pautada numa desconfiança na dimensão social da política, dificulta cada vez mais as explicações das novas formas e práticas democráticas. Diante da crise da democracia liberal representativa, surge no debate político formas de democracia popular ou local que se apresentam como propostas de recuperação das tradições participativas28. Ao longo da segunda metade do séc. XX, surgiu um conjunto de concepções alternativas que podem ser denominadas de “contrahegemônicas”29. Essas novas concepções originaram-se de uma tentativa de oferecer novas soluções que superassem as formas elitistas e homogeneizadoras da participação política da população. Há, nessas novas matrizes, um forte reconhecimento da pluralidade humana pautada em dois critérios distintos: “a ênfase na criação de uma nova gramática social e cultural e o entendimento da inovação social articulada com a inovação institucional, isso é, com a procura de uma nova institucionalidade da democracia”30. 2.1 Democracia, cidadania e os meios de comunicação de massa Nas democracias dos séculos XIX e XX, os meios de comunicação de massa, sobretudo de caráter jornalístico, como a imprensa, o rádio e a televisão, detinham, se não um monopólio, um papel central no desempenho das funções de fiscalização das ações do Estado em nome de um interesse público. Eles absorveram para si o papel de vigilantes do Estado na esfera civil31 e acabaram assumindo uma incumbência que era própria do cidadão nas democracias modernas. De fato, acreditava-se, sobretudo no pós-guerra, que uma mídia livre 25 COSTA, P. Op. cit., p. 207. 26 SANTOS, Boaventura de Souza; AVRITZER, Leonardo. “Introdução: Para ampliar o cânone democrático”. In: SANTOS, Boaventura de Souza (org). Democratizar a democracia: Os caminhos da democracia participativa. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2002, p. 39-40. 27 SANTOS, B. de S. Idem, p. 41-42. 28 SANTOS, B. de S. Idem, p. 43. 29 SANTOS, B. de S. Idem, p. 50. 30 SANTOS, B. de S. Idem, p. 51 31 GOMES, Wilson. “A democracia digital e o problema da participação civil na decisão política”. In:Revista Fronteiras: Estudos midiáticos, VII (3), setembro/dezembro, 2005, p. 215. 282 DEMOCRACIA, PARTICIPAÇÃO E SOBERANIA POPULAR: UMA PROBLEMATIZAÇÃO HISTÓRICA DA REPRESENTAÇÃO POLÍTICA do controle e da censura do Estado era um elemento indispensável, ou até constitutivo, para a realização dos regimes democráticos. Além disso, prevalecia a forte ideia de que esses meios de comunicação seriam os melhores instrumentos para a educação política dos cidadãos. Esse argumento, no entanto, de caráter liberal, conservava uma tese implícita de que os meios de comunicação de massa, fortemente centralizados e imersos numa perspectiva empresarial e corporativista, seriam mais capazes de promover uma fiscalização e divulgação das políticas governamentais de forma contínua e sistemática do que o cidadão na sua cotidianidade. É nesse momento que o cidadão será reduzido, como em nenhum outro, à figura do telespectador passivo, apático e completamente distante da vida política que parecia ocorrer em um universo estranho, pouco palpável no cotidiano, e a uma distância invencível. Nessas novas configurações da cidadania, a obrigação de um cidadão “consciente” reservava-se ao mero acompanhamento pictórico e propagandístico de um cenário no qual ele não se reconhecia como um sujeito político ativo. A política, de fato, transformou-se em um produto, mais ou menos pronto e acabado, oferecido pelos meios de comunicação. Essa tese ainda está muito presente, e tomando por base as possibilidades de participação de um cidadão num modelo representativo hegemônico de democracia, talvez ainda conserve a sua verdade, mas é necessário destacar que esse modelo possui um aspecto incompatível com uma sociedade do século XXI. Nas experiências democráticas do pós-guerra, acreditava-se que os meios de comunicação de massa, sobretudo a imprensa, tinham a incumbência de garantir o espaço de participação civil no debate político e de oferecer mecanismos para a expressão da “opinião pública”. Atualmente, essas expectativas encontram-se superadas, não tanto pela impossibilidade da veiculação da informação política dentre a população, mas pelo esgotamento da retórica política dessas esferas centralizadas da mídia que estão direcionadas para a manipulação da “opinião pública” com base na orientação política dos controladores desses meios32. De fato, não se trata de uma educação cidadã promovida por esses meios de comunicação, mas sim de um processo de formação de consenso público diretamente compatível com a legitimação das conjunturas políticas das democracias representativas. Sendo o voto e o sufrágio universal mecanismos de legitimação dos representantes para a formação de uma elite política, a função dos meios de comunicação centralizados é o de instrumentalizar ou permitir o manejo das eleições por uma classe política organizada. É através desses meios que são fortalecidos os vínculos formais e ideológicos entre a elite política e os cidadãos. Se nas democracias dos séculos XIX e XX os partidos e suas cartas políticas tinham um papel central na mediação entre sociedade civil e Estado ou entre representantes e representados, atualmente, esse controle está centralizado nos meios de comunicação de massa. A formação do consenso político já não pertence ao espaço dos partidos, das campanhas eleitorais ou das propostas políticas de governo; o consenso é, na verdade, construído por meio da retórica “interessada” dos meios de comunicação que se infiltram nesses debates como intermediadores entre representantes e representados ou entre governantes e governados. Essa mediação fica ainda mais evidente quando, nos períodos de debate eleitoral, os profissionais dessas empresas da informação tomam o assento mais autorizado na intermediação do debate político que será televisionado para a população. Por essa razão, as investigações acerca da mídia e da cidadania são pontos essenciais para a discussão da 32 GOMES, W. Idem, p. 215. ANAIS DO V CONGRESSO BRASILEIRO DE HISTÓRIA DO DIREITO 283 democracia na atualidade. Se nas democracias representativas dos séculos passados os representantes acabaram perdendo sua autonomia diante da força dos partidos, atualmente o que se percebe é que os meios de comunicação, apesar de sua natureza elitista e corporativa, tornaram-se os legítimos e exclusivos representantes da esfera civil numa cultura de massas. 3 Democracia, soberania e contrato social: A concepção da participação política em Jean-Jacques Rousseau Num nível basilar de questionamento, é preciso voltar a Rousseau e à sua teoria política acerca da soberania e da democracia33. Rousseau delineou o corpo político como um “eu comum” que desempenhava um papel fundamental na fundação da ordem política, composta de indivíduos livres e iguais34. Essa liberdade estava fundada numa perspectiva fortemente proprietária, mas não era a única forma de liberdade que fazia parte da pauta revolucionária. Além dela, Rousseau também “discutia e celebrava a liberdade política, a liberdadeparticipação, a liberdade como expressão e exercício da pertinência do cidadão ao corpo soberano”35. No pensamento Rousseauniano, a vontade geral é uma exigência moral mais do que uma realidade que só pode ser alcançada mediante uma sociedade igualitária. Para Rousseau, o homem nasce livre, mas em toda parte ele se encontra acorrentado. Portanto, os cidadãos, mais do que meramente obedecer, deveriam lutar pela liberdade e se livrar do jugo permanentemente. No entanto, a ordem social é um direito sagrado que é a base de todos os direitos, mas esse direito não vem da natureza e sim das convenções. As primeiras sociedades, segundo Rousseau, foram a da família, no qual os membros, quando se tornavam independentes entre si, só se mantinham unidos por uma convenção de forma voluntária. Essa é uma liberdade originária e natural do homem. A sua lei é a preservação de si mesmo36. Rousseau não admite que a liberdade possa ser renunciada pelo homem, pois uma vez que o faça deixaria de ser homem. Esta seria uma forma de se abandonar os direitos e os deveres da “humanidade”, o que seria incompatível com a natureza humana. Retirar do homem toda liberdade de sua vontade seria o mesmo que retirar toda a moralidade de seus atos. Portanto, em Rousseau, o ato de renúncia da liberdade ou a conivência com a escravidão é uma convenção vazia e contraditória que estabelece para um o poder absoluto e para o outro uma obediência ilimitada. Enquanto os homens estão vivendo em sua primitiva independência, Rousseau considera que não há nenhuma relação mútua estável ao ponto de constituir um estado paz ou de guerra, ou seja, os homens não poderiam ser inimigos naturais, portanto a guerra de todos contra todos não pode existir no estado de natureza. Mas em um determinado momento, os homens perceberiam que a união ou a agregação seria a única forma para se criar novas forças com a finalidade de preservação. Para que os homens, nessa nova forma de associação, pudessem continuar tão livres quanto no estado de natureza, eles deveriam buscar uma organização política que defendesse e protegesse, através da força comum, a pessoa e os bens de cada associado, mas que ao mesmo tempo, cada um deles pudesse exercer sua liberdade. Para o problema da preservação da liberdade do homem quando se submete à força comum da coletividade, Rousseau propõe a tese do contrato social como solução. O contrato 33 SANTOS, B. de S. Um discurso sobre as ciências. 5a ed. São Paulo: Cortez, 2008, p. 15-16. 34 COSTA, P. Op. cit., p. 240. 35 COSTA, P. Idem, p. 245. 36 MORRIS, Clarence (org). Os grandes filósofos do direito:Leituras escolhidas em direito. Tradução de Reinaldo Guarany. São Paulo: Martins Fontes, 2002, p. 211. 284 DEMOCRACIA, PARTICIPAÇÃO E SOBERANIA POPULAR: UMA PROBLEMATIZAÇÃO HISTÓRICA DA REPRESENTAÇÃO POLÍTICA social, como um momento de apresentação do derver-ser de toda ação política37, seguiria a premissa de que cada um dos homens colocaria em comum sua pessoa e todo seu poder sobre a direção suprema da vontade geral, e na sua capacidade de associado, cada membro receberia uma parte indivisível do todo. De imediato, em lugar da personalidade individual de cada contratante, o ato de associação criaria um corpo moral e coletivo, composto de tantos membros quantos forem os votantes da assembleia, que recebe desse ato sua unidade, sua identidade comum, sua vida e sua vontade. A partir do contrato social, cria-se o compromisso mútuo entre o público e os indivíduos, ou seja, o membro soberano estaria comprometido com os indivíduos, e estes como membros do Estado, com o soberano. É nesse momento que o homem passara a viver em sociedade e o contrato social seria um instrumento para se resolver o problema da relação entre o direito natural subjetivo e a validade objetiva da lei civil, ou seja, resolver os conflitos entre liberdade e autoridade38. Mas para que o contrato social não seja uma fórmula vazia, ele deve incluir tacitamente esse compromisso; no sentido de que quem se recusasse a obedecer à vontade geral seria forçado pelo corpo a fazê-lo. Ou seja, cada um dos membros seria obrigado a ser livre. O que o homem perde pelo contrato social é a sua liberdade natural e o direito ilimitado a tudo que tenta obter, mas em contrapartida ele ganha a liberdade civil, que é limitada apenas pela vontade geral, e a propriedade de tudo o que possui por meio de um direito positivo e não mais pela mera força. O pacto fundamental substituiria a desigualdade natural ou física pela igualde de todos, ou melhor, todos tornar-se-iam iguais por convenção e direito. Para Rousseau, somente a vontade geral pode dirigir o Estado, tendo em vista o bem comum e os objetivos para os quais foi instituído. Portanto, soberania é o exercício da vontade geral. O soberano é o ser coletivo que representa a si mesmo. Por essa razão, a soberania é inalienável. A soberania, segundo Rousseau, também é indivisível, porque a vontade é geral ou simplesmente não é; ou é a vontade do conjunto do povo ou de uma mera parte dele. Além disso, a vontade geral é sempre certa e tende para o bem comum. Mas não se deve esquecer que as deliberações do povo nem sempre são corretas, porque o povo pode ser enganado e levado ao que é mau. Por isso, é possível falar de uma vontade de todos e de uma vontade geral. Esta considera apenas o interesse comum, enquanto que aquela leva em conta o interesse privado que é a soma das vontades dos particulares. Rousseau repudia todos os interesses particulares como a propriedade privada e os métodos ligados a ela como propaganda e partidos (representantes de grupos de interesses de classes)39. É por essa razão que num Estado, para que a vontade geral possa se expressar, não deve haver nenhuma sociedade parcial, pois cada cidadão deve ter liberdade para seu próprio pensamento. O Estado, para Rousseau, é uma pessoa moral que visa a sua própria preservação. Ele deve ter uma força universal e coercitiva. O pacto social dá ao Estado o poder absoluto sobre todos. Mas seu único objetivo é o bem geral dos cidadãos. Através do pacto social, o corpo político ganha vida e existência, mas é através da legislação que ele ganha vontade e movimento. As convenções e as leis são necessárias para se unir direitos e deveres e remeter a justiça a seu objetivo. O objetivo das leis é sempre geral, ou seja, considera as ações em abstrato e jamais um caso em particular. As leis são atos da vontade geral, por isso não podem ser injustas, posto que ninguém é injusto consigo mesmo. O povo, na sociedade civil, deve ser o autor das leis. De nenhuma forma, a função de criar leis pode ser atribuída àquele que 37 WEFFORT, Francisco C (org). Os clássicos da política: Maquiavel, Hobbes, Locke, Montesquieu. Rousseau, “o federalista”. Vol. 1. 13a ed. São Paulo: ABDR, 2002, p. 195. 38 MONDOLFO, Rodolfo. Rousseau y laconciencia moderna. Buenos Aires: EdicionesImán, 1942, p. 71. 39 MONDOLFO, R. Idem, p. 72. ANAIS DO V CONGRESSO BRASILEIRO DE HISTÓRIA DO DIREITO 285 exerce o comando pelas leis, pois elas acabariam se transformando em instrumentos das paixões que perpetuariam injustiças. O legislador, para formular boas leis, deve estar atento à aptidão do povo. O soberano é apenas um instrumento no Estado. O poder legislativo, para Rousseau, pertence ao povo e só pode pertencer a ele. Por outro lado, o poder executivo a essa mesma generalidade como legislatura e soberania, porque consiste totalmente em atos particulares que estão fora da competência da lei. A força pública depende portanto de um agente próprio que reúna e ponha em funcionamento a vontade geral. Isso é o que constitui a base do governo do Estado. O governo seria um corpo intermediário estabelecido entre súditos e soberano encarregado da execução das leis. Os membros desse copo podem ser magistrados ou reis, ou seja, trata-se de governantes ou do príncipe. Na democracia, aquele que faz as leis em geral é aquele também deve executá-la. Para Rousseau, nem sempre seria adequado que os poderes executivos e legislativos estivessem unidos. Por essa razão, nunca houve uma verdadeira democracia e jamais haverá, pois seria muito difícil que a maioria governasse a minoria por meio de assembleias dedicadas aos assuntos públicos. Os governos democráticos ou populares são em geral os que estão mais sujeitos às guerras civis e agitações internas. Refletindo sobre a democracia, Rousseau rechaçava o sistema da representação política, isso porque ela seria absolutamente incompatível com a ideia da soberania popular que ele mesmo defendia. A teoria e a prática da representação política era alvo na teoria política Rousseauniana por conta de seu caráter alienante em relação à posição do cidadão. Além disso. A representação era um mecanismo de consenso político que violava a autonomia individual, como dignidade do cidadão, que se realizaria através do exercício direto da soberania popular40. A oposição de Rousseau ao regime representativo nasce de uma consciência da soberania popular mais profunda do que aquelas presentes nas democracias do séc. XIX41. Conclusão Nos últimos escritos de Rousseau, o filósofo insiste que sua intenção com a reflexão política era eminentemente teórica e que não tinha a menor pretensão de promover reformas concretas e nem instigar revoltas populares. Ele apresente apenas um projeto para as instituições políticas, ou seja, nunca se preocupou com as condições concretas nas quais elas poderiam ser implementadas. Mas, sem dúvida, seu projeto político foi a base para a oposição e a resistência ao modelo representativo de democracia e incitou reformas políticas e lutas sociais nos sécs. XIX e XX. Princípios como o da liberdade e da igualdade são tributários da reflexão filosófica de Rousseau. Ao longo do século XX, com a orientação neoliberal dos Estados, a criminalização dos movimentos sociais, a ascensão dos governos ditatoriais e o predomínio de uma lógica internacional imposta pelo Banco Mundial e pelo Fundo Monetário Internacional marcada por uma orientação antidemocrática, num sentido material, houve uma redução em nível global da participação popular no debate público. O que se pode notar é que nesse período há uma fase bem nítida da perda da “demodiversidade”, ou seja, os diferentes modelos e práticas democráticas perderam espaço para uma forma de democracia liberal representativa que se tornou hegemônica no plano internacional. Esse modelo foi adotado como uma fórmula 40 CARRACEDO, Jose Rubio. Democracia o representación? Poder y legitimidad em Rousseau. Madrid: Centro de EstudiosConstitucionaes, 1990, p. 194. 41 MONDOLFO, R. Op. cit., p. 91. 286 DEMOCRACIA, PARTICIPAÇÃO E SOBERANIA POPULAR: UMA PROBLEMATIZAÇÃO HISTÓRICA DA REPRESENTAÇÃO POLÍTICA universal para a democracia e tornou-se uma das marcas do imperialismo e da globalização neoliberal42. A democracia é uma experiência que se realiza a partir do debate e da deliberação. Ela não se reduz ao exercício do direito de voto nos períodos de eleição dos representantes. Essa configuração de democracia surge em um momento histórico no qual ela foi adotada como meio eficaz de legitimação da ordem política. A preocupação não era a de promover uma participação direta da população no debate público e na deliberação política. Com o termo democracia se pretendia alcançar um grau de legitimidade para os Estados sem que para tanto houvesse de fato uma predominância da maioria sobre os interesses de uma elite política organizada. O principal meio para esse tipo de controle foi através da criação de instâncias intermediárias entre a sociedade civil e o Estado, como os partidos. Além disso, no período do pós-guera, os meios de comunicação de massa, controlados por empresas privadas, assumiram uma posição que era originária dos cidadãos. Nesse contexto, a política deixou de ser uma cultura de participação pública e passou a ser oferecida como um produto acabado pelos meios de comunicação. O papel do cidadão foi reduzido a uma posição passiva de telespectador da política. Referências CALDERÓN, César (org); LORENZO, GobiernoAbierto .Algóneditores, 2010. Sebastián (org) .Open government: CARRACEDO, Jose Rubio. Democracia o representación? Poder y legitimidad em Rousseau. Madrid: Centro de EstudiosConstitucionaes, 1990. COSTA, Pietro. Soberania, representação, democracia: Ensaios de história do pensamento jurídico. Curitiba: Juruá, 2010. FARACO, Alexandre Ditzel. 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São Paulo: ABDR, 2002. 288 EDUCANDO MULHERES: ALTERNATIVAS, LEGISLAÇÕES E DIFERENÇAS DE GÊNERO NA EDUCAÇÃO DO PERÍODO IMPERIAL BRASILEIRO EDUCANDO MULHERES: ALTERNATIVAS, LEGISLAÇÕES E DIFERENÇAS DE GÊNERO NA EDUCAÇÃO DO PERÍODO IMPERIAL BRASILEIRO EDUCATING WOMEN: ALTERNATIVES, LEGISLATION AND GENDER DIFFERENCES IN EDUCATION OF THE BRAZILIAN IMPERIAL PERIOD Isabela Guimarães Rabelo do Amaral* Resumo: O presente trabalho teve como propósito observar como as questões de gênero foram retratadas nas primeiras legislações educacionais do Brasil e de Minas Gerais durante o período imperial. Sabe-se que, por muito tempo, a educação feminina foi deixada em segundo plano. A partir da Independência, com o interesse de formar cidadãos para o novo Estado e construir uma identidade nacional, os olhos passaram a se voltar para as mulheres, as primeiras educadoras de seus filhos. Embora esse discurso já viesse sendo construído anteriormente, ele toma força nesse período e as mulheres passam a ter uma educação mais formalizada. Contudo, é inevitável não perceber as diferenças presentes entre a educação feminina e a masculina. A análise das primeiras legislações da época deixa transparecer o cuidado maior na construção de estabelecimentos de ensino masculinos, a dificuldade das mulheres em frequentar a escola, seja por inexistência desta, seja por preconceito do patriarca da família, seja pelo custo das escolas particulares e, principalmente, a diferença dos currículos femininos, sendo patentes as restrições de disciplinas escolares e a ênfase nas tarefas domésticas. O objetivo foi realizar uma análise e sistematização de normas do período, a fim de constatar diferenças de gênero, bem como relatar o longo caminho percorrido pelas mulheres para ter uma alternativa de acesso à educação. Para a elaboração do trabalho, adotou-se como marco teórico Faria Filho (1998) e seu trabalho sobre “A legislação escolar como fonte para a História da Educação”, em que ele destaca a legislação como um corpus documental que pode ser enfocado sob várias dimensões, sendo muito interessante como uma das faces de reconstrução da realidade. O caminho metodológico percorrido foi o foco nas duas primeiras legislações do período, no âmbito nacional e na província de Minas Gerais, seguida da complementação com alguns dados presentes em outros trabalhos que servem de subsídio a este. Pôde-se perceber que a questão de gênero foi encontrada em vários pontos das legislações analisadas, com destaque para o acesso dificultado, a separação física entre meninos e meninas e o currículo diferenciado. Palavras-chave: Educação – Mulher – Período Imperial– Legislação. * Isabela Guimarães Rabelo do Amaral, Mestranda no Programa de Pós Graduação em Direito da UFMG, [email protected]. ANAIS DO V CONGRESSO BRASILEIRO DE HISTÓRIA DO DIREITO 289 1 Introdução Segundo Gilberto Freyre (2002), a mulher, no contexto do século XIX, deveria ser generosa, devota, preocupada com a casa e a família, desinteressada dos negócios e dos amigos políticos do marido. A mulher era destinada ao casamento e deveria ser mera colaboradora de seu marido. Na sociedade patriarcal havia a subordinação do sexo feminino ao patriarca da família, seja o pai, seja o marido, seja o irmão mais velho. Nesse caso, portanto, não havia preocupações iniciais com a educação feminina, mentalidade que se altera a partir do momento em que se percebe que educar a mulher é torná-la uma boa educadora de seus filhos. Uma mãe ignorante só traria prejuízos para a educação deles. É o que se percebe do trecho: [...] Só muito aos poucos é que foi saindo da pura intimidade doméstica um tipo de mulher mais instruída – um pouco de literatura, de piano, de canto, de francês, uns salpicos de ciência – para substituir a mãe ignorante e quase sem outra repercussão sobre os filhos que a sentimental, da época de patriarcalismo ortodoxo. (FREYRE, 2002, p. 140) Contudo, a educação feminina ainda estava longe de ser o que era a masculina. E uma análise do cotidiano escolar, por meio das normas reguladoras do ensino, seria capaz de demonstrar essas diferenças. Para a elaboração do trabalho, adotou-se como marco teórico Faria Filho (1998) e seu trabalho sobre “A legislação escolar como fonte para a História da Educação”, em que ele destaca a legislação como um corpus documental que pode ser enfocado sob várias dimensões, sendo muito útil como um dos pontos de reconstrução da realidade. Ele afirma que o trabalho com a legislação pode ser muito interessante, devido às várias faces que ela pode assumir: como ordenamento jurídico, como linguagem, como prática social, como prática ordenadora das relações sociais, como campo de expressão e construção das relações e lutas sociais e como parâmetro comparativo. Entretanto, ele explicita que só a análise da legislação não basta, devendo haver um intenso cruzamento de fontes. Especificamente em relação ao tema desenvolvido no presente trabalho, Faria Filho (1998) afirma que: [...] a legislação sobre a instrução pública pode ser útil, como fonte, para o estudo de algumas das questões candentes na história da educação brasileira, tais como a escolarização dos conhecimentos, da complexidade da ação docente e escolar e das questões relacionadas às relações de gênero. (FARIA FILHO, 1998, p. 120, grifo nosso) A legislação sozinha, como visto, não é capaz de demonstrar a realidade tal como era, mas não deixa de ser uma de suas faces. Por isso, foram feitos cruzamentos com dados elaborados em outros trabalhos para que o resultado fosse mais relevante. Afirma-se, portanto, que esse não é um trabalho completo face à realidade a ser pesquisada, mas que cumpriu seu propósito de ser uma complementação para a análise de outras fontes históricas referentes ao mesmo assunto. Isso porque os dados analisados podem servir de referência e ponto de partida para questões futuras relacionadas à educação e às relações de gênero. O limite escolhido para a análise foi período imperial, já que, a partir daí, consolida-se o Império brasileiro como Estado autônomo, que passará a construir suas próprias instituições e legislar autonomamente. Em relação ao campo educacional, a Assembleia Constituinte já discutia a questão e, em 1827, o Brasil tem sua primeira lei sobre instrução pública. O foco do trabalho foram as primeiras legislações do Brasil e de Minas no período imperial: a Lei de 15 de outubro de 1827 no âmbito nacional e a Lei n.13 de 28 de março de 1835 no âmbito provincial. 290 EDUCANDO MULHERES: ALTERNATIVAS, LEGISLAÇÕES E DIFERENÇAS DE GÊNERO NA EDUCAÇÃO DO PERÍODO IMPERIAL BRASILEIRO 2 Educação no Império Por muito tempo, a questão da educação feminina, no Brasil, foi deixada em segundo plano. Quando iniciada a colonização, o interesse em relação às mulheres era que cuidassem da casa, do marido e dos filhos. A instrução se restringia aos homens, que estudavam, normalmente, nos colégios fundados pelos jesuítas e, posteriormente, terminavam seus estudos em universidades em Coimbra ou Paris ou nos seminários, seguindo a vocação religiosa. Essa tradição de submissão feminina vem de toda a Europa e, principalmente, dos árabes, que exerceram grande influência na cultura portuguesa: Essa questão nos remete à tradição ibérica, transposta de Portugal para a colônia brasileira: as influências da cultura dos árabes naquele país, durante quase 800 anos, consideravam a mulher um ser inferior. O sexo feminino fazia parte do imbecilitus sexus, ou sexo imbecil. Uma categoria à qual pertenciam mulheres, crianças e doentes mentais. (RIBEIRO, 2000, p. 79). Como a maioria das mulheres não sabia ler, nem escrever, foram, muitas vezes, enganadas por homens próximos, como pai, marido e filhos. Entretanto, a situação começa a se modificar com o surgimento na segunda metade do século XVII dos primeiros conventos ou casas de recolhimento no Brasil. Neles, havia o ensino da leitura e de trabalhos domésticos. Na falta de uma política educacional para as mulheres, eles se tornavam a única opção razoável para a educação feminina. (RIBEIRO, 2000). Os poucos lugares destinados à educação eram os recantos religiosos, grande parte sob controle dos jesuítas: É por demais conhecido que durante o período colonial não havia quase escolas no Brasil. Apenas os conventos e os seminários se ocupavam em fornecer uma instrução àqueles que os procurassem, mas seu número era insuficiente para alterar substancialmente a costumeira indigência cultural. Se aos homens ensinava-se a ler e a contar, às mulheres bastavam os trabalhos manuais, pois o androcentrismo da família patriarcal se encarregava de excluí-las dos menores privilégios, reservando aos homens os benefícios que a cultura pudesse trazer. Com a vinda da Corte, a situação aos poucos começa a mudar. Os novos ventos trouxeram educadoras portuguesas e francesas para as meninas das famílias mais abastadas e, lentamente, foi deixando de ser uma “heresia social” o ato de se instruir e ilustrar alguém do sexo feminino. (DUARTE, 2000, p. 292-293). Nesse período em que a Igreja monopolizava o ensino, uma mudança significativa na história da educação brasileira ocorre com a expulsão dos jesuítas, em 1759, resultado das reformas instituídas por Pombal. Uma obra que influenciou essas reformas em Portugal foi “O verdadeiro método de estudar” de Luís Antonio Verney. Para o autor, não era absurdo algum que as mulheres estudassem, principalmente porque elas eram as primeiras mestras dos filhos: Parecerá paradoxo, a estes Cantões Portugueses, ouvir dizer, que as Mulheres devem estudar: contudo se examinarem o caso, conhecerão, que não é nenhuma parvoíce, ou coisa nova; mas bem usual, e racionável. Pelo que toca à capacidade, é loucura persuadir-se, que as Mulheres tenham menos, que os Homens. [...] De que nasce esta diferença? Da aplicação e exercício, que um tem, e outro não tem. Se das mulheres se aplicassem aos estudos tantas, quantos entre os homens, então veríamos quem reinava. Quanto à necessidade, eu acho-a grande, que as mulheres estudem. Elas, principalmente as mães de família, são as nossas mestras, nos primeiros anos da nossa vida: elas nos ensinam a língua; elas nos dão, as primeiras ideias das coisas. E que coisa boa nos hão de ensinar, se elas não sabem o que dizem? Certamente, que ANAIS DO V CONGRESSO BRASILEIRO DE HISTÓRIA DO DIREITO 291 os prejuízos que nos metem na cabeça, na nossa primeira meninice; são sumamente prejudiciais, em todos os estados da vida [...].1 (VERNEY, 1746, p. 291) Percebe-se, portanto, que a primeira preocupação com a educação feminina não está voltada para a figura da mulher, mas para o próprio homem. Afinal, a mulher deve agora ter seus estudos incentivados para ser uma boa mãe e ser capaz de educar seus filhos com sabedoria. A figura do homem permanece no centro, portanto. 2.1 Primeira legislação sobre instrução pública Quando o Brasil se torna independente, em 1822, o novo Império passa a editar suas próprias leis. E a educação não é excluída dos debates. Pelo contrário, ela foi colocada em posição privilegiada, dentro do projeto de arregimentar o povo para a construção do novo país independente. “Nessa perspectiva, a instrução como um mecanismo de governo permitiria não apenas indicar os melhores caminhos a serem trilhados por um povo livre mas também evitaria que esse mesmo povo se desviasse do caminho traçado”. (FARIA FILHO, 2000, p. 137). No âmbito das províncias, algumas medidas também tiveram que ser adotadas nesse sentido, uma vez que as manifestações sociais ameaçavam a integridade do novo Império. “No conjunto de medidas adotadas pelo governo provincial, a instrução pública serviria à formação dos cidadãos, à produção da identidade nacional e à consolidação do sentimento de pertencimento a uma nação”. (VIANA, 2002, p. 110). Os discursos se centravam na questão precária do ensino e na necessidade de se implantar novos métodos, inovar na formação dos professores, formular novos compêndios e material didático. Também se ressaltava a importância de comissões específicas no Conselho Geral das províncias que cuidasse do assunto. (SALES, 2008). O objetivo era cumprir a previsão constitucional da gratuidade da instrução pública a todos os cidadãos como um direito individual (art. 179, XXXII). A primeira e única lei do império que trata da instrução primária no Brasil é a Lei de 15 de outubro de 1827. Essa lei traz a seguinte ementa “manda criar escolas de primeiras letras em todas as cidades, vilas e lugares mais populosos do império”. O principal objetivo, pois, era criar quantas escolas de primeiras letras fossem necessárias em todas as cidades, vilas e lugares mais populosos. O método de ensino indicado por tal lei era o método mútuo, também conhecido como método lancasteriano. Um decreto de 1º de março de 1823 já elogiava esse método “pela facilidade e precisão com que desenvolve o espírito, e o prepara para aquisição de novas e mais transcendentes ideias.” Até então, o método de ensino era o individual. Ou seja, mesmo que houvesse muitos alunos em sala, a professora ensinava a cada um por vez. Esse método teve como consequência o desperdício de tempo e problemas com a disciplina dos alunos. Por isso, o método mútuo foi muito bem recebido e considerado o mais adequado, pois seria capaz de reduzir o tempo de aprendizado, generalizar o ensino a várias camadas da população e diminuir custos. O método tinha como característica o auxílio aos professores dos alunos mais adiantados que eram postos como monitores e ajudavam os demais colegas no aprendizado. (FARIA FILHO, 2000). A vulgarização desse método em várias escolas foi muito incentivada pelos Conselheiros em Minas Gerais. (SALES, 2008). A lei também especificava que os castigos seriam os praticados pelo método Lancaster. Esses castigos eram uma mescla de ofensas físicas e morais, tendo como expoente a palmatória. O cotidiano da escola, portanto era confuso, marcado pelo barulho comum das lições de leitura e tabuada, de rezas e cânticos realizados ao mesmo tempo, juntamente com o temor que a simples presença da palmatória ou da vara de marmelo sobre a mesa do professor 1 Optou-se por atualizar a escrita do português, embora se tenha mantido a pontuação original. 292 EDUCANDO MULHERES: ALTERNATIVAS, LEGISLAÇÕES E DIFERENÇAS DE GÊNERO NA EDUCAÇÃO DO PERÍODO IMPERIAL BRASILEIRO causava. Os alunos ainda tinham que suportar o abuso dos monitores, que, muitas vezes, não se restringiam à sua tarefa de auxiliar o professor com as lições, mostrando-se verdadeiros déspotas em miniatura, subjugando os colegas. (MUNIZ, 2002). A mulher ia conquistando espaço na educação, mesmo que fosse apenas para serem boas mães de família. Mas justamente devido a esse argumento, sua educação era sempre diferenciada. Essa lei do império também trazia essas diferenciações. Para as meninas, não seriam providenciadas quantas escolas fossem necessárias. Haveria escolas nas cidades e vilas mais populosas, em que os Presidentes dos Conselhos julgassem necessário este estabelecimento. Ou seja, providenciar escolas para mulheres seria uma questão de puro arbítrio. Outra grande diferença dizia respeito às disciplinas lecionadas aos meninos e meninas, algo bem condizente com os propósitos educacionais: futuros trabalhadores para o mercado em relação aos homens e exímias donas de casa, esposas e mães em relação às mulheres. [...] Art. 6o Os professores ensinarão a ler, escrever, as quatro operações de aritmética, prática de quebrados, decimais e proporções, as noções mais gerais de geometria prática, a gramática de língua nacional, e os princípios de moral cristã e da doutrina da religião católica e apostólica romana, proporcionados à compreensão dos meninos; preferindo para as leituras a Constituição do Império e a História do Brasil. [...] Art. 12. As Mestras, além do declarado no Art. 6 o, com exclusão das noções de geometria e limitado a instrução de aritmética só as suas quatro operações, ensinarão também as prendas que servem à economia doméstica; e serão nomeadas pelos Presidentes em Conselho, aquelas mulheres, que sendo brasileiras e de reconhecida honestidade, se mostrarem com mais conhecimento nos exames feitos na forma do Art. 7º. Pode-se perceber que a educação feminina se restringia a saber ler, escrever, resolver as quatro operações e aprender a doutrina cristã. As mulheres não aprendiam geometria e nem todas as questões de aritmética. A ênfase era nas prendas domésticas, porque a oportunidade de educação para as mulheres só foi viabilizada para torná-las melhores educadoras de seus filhos, como se percebe na afirmação de Muniz: [...] currículos diferenciados segundo o gênero limitavam o acesso das meninas a uma escolarização de nível primário, visto que a formação oferecida direcionava-se exclusivamente para o desempenho das atribuições restritas à esfera privada do lar, cerceadora de possíveis perspectivas de prosseguimento nos estudos. (MUNIZ, 2002, p. 315). Essa precária instrução feminina levava-as a adquirir poucas habilidades para um mercado de trabalho, restringindo sua formação a ser uma boa cozinheira, uma boa costureira e uma boa educadora de crianças, ou seja, a perfeita dona de casa. Embora vozes ressoassem em defesa de uma reforma na questão educacional, para que houvesse uma maior e mais igualitária participação feminina2, sabia-se que era uma questão muito difícil devido aos preconceitos já arraigados na sociedade. Além disso, não havia interesse dos homens em educar as mulheres, pois sendo elas submissas, a dominação se mostrava mais fácil. As concepções e formas de educação das mulheres nessa sociedade eram múltiplas. Contemporâneas e conterrâneas, elas estabeleciam relações que poderiam revelar e 2 A referência que se faz é à escritora oitocentista Nísia Floresta (Dionísia Gonçalves Pinto), autora de “Direito das Mulheres e Injustiça dos Homens” (1832) e “Opúsculo Humanitário” (1853). ANAIS DO V CONGRESSO BRASILEIRO DE HISTÓRIA DO DIREITO 293 instituir hierarquias e proximidades, cumplicidades ou ambiguidades. Sob diferentes concepções, um discurso ganhava a hegemonia e parecia aplicar-se, de alguma forma, a muitos grupos sociais a afirmação de que as “mulheres deveriam ser mais educadas do que instruídas”, ou seja, para elas, a ênfase deveria recair sobre a formação moral, sobre a constituição do caráter; sendo suficientes, provavelmente, doses pequenas ou doses menores de instrução. Na opinião de muitos, não havia porque mobiliar a cabeça da mulher com informações ou conhecimentos, já que seu destino primordial – como esposa e mãe – exigiria, acima de tudo, uma moral sólida e bons princípios. Ela precisaria ser, em primeiro lugar, mãe virtuosa, o pilar de sustentação do lar, a educadora das gerações do futuro. (LOURO, 2004, p. 446-447). Pelo menos em termos profissionais, a Lei de 15 de outubro de 1827 não estabelecia diferenças, porque afirmava que tanto os mestres quanto as mestras receberiam os mesmos ordenados e gratificações. Em vários lugares houve discussões sobre a implementação da nova lei. Bernardo Pereira de Vasconcelos, deputado da Assembleia Geral, na sua carta para os eleitores da província de Minas Gerais, destacava a importância da vulgarização da instrução pública, que seria capaz de aniquilar a dependência que uma classe dominante exercia sobre a outra. Ressaltava o quanto era necessário ler, escrever, saber as operações básicas e a gramática pátria e que a educação feminina também deveria ser considerada, abrindo-se escolas de primeiras letras para as meninas. (SALES, 2002, p. 207-208) Mas a realidade, muitas vezes, destoava do que era estabelecido de forma ideal nas leis. Em 1827, na província de Minas Gerais, percebia-se que o número de mestres particulares era ainda bem superior ao número de mestres públicos e os salários dos mestres de primeiras letras era inferior ao das demais cadeiras (Lógica, Gramática Latina, Desenho). E ainda o número de alunos do ensino particular era três vezes maior do que os do ensino público, embora a Constituição do Império tenha estabelecido a educação gratuita para todos os cidadãos. (SALES, 2008, p. 86-87). Neste ponto, chama atenção a questão dos negros. Em todos os colégios, inclusive públicos, até, pelo menos, a metade do século XIX, era proibida a frequência de crianças negras, ainda que fossem livres, o que não impedia, às vezes, de serem instruídas no âmbito das famílias abastadas em que viviam trabalhavam. (FARIA FILHO, 2000). Entretanto, a Lei de 15 de outubro de 1827 não ficou isenta de críticas. O próprio Bernardo Pereira de Vasconcelos, defensor da lei, pois incentivava a vulgarização da instrução pública na província de Minas Gerais, destacou o desperdício que ocorria pela abertura de escolas em lugar pouco populoso e o baixo salário dos professores. Para corrigir o erro, propunha, como solução da Assembleia, a construção de escolas nos lugares mais populosos, o aumento do vencimento dos professores e o estabelecimento de uma gratificação para os professores que se destacassem. Ressaltou também que a culpa pelo desleixo de muitos professores não poderiam ser imputados à Assembleia, mas aos próprios cidadãos, que não reagiam, mesmo com direito de petição e a imprensa livre. (SALES, 2002, p. 208-209). No período regencial, houve importante mudança na estrutura administrativa do Império, com a descentralização promovida pelo Ato Adicional de 1834 (Lei n. 16 de 12 de agosto de 1834). O campo da educação sofreu reflexos dessa lei, pois, de acordo com seu art. 10, § 2º, cabia agora às Assembleias Legislativas Provinciais legislar sobre instrução pública e estabelecimentos próprios a promovê-la, exceto o ensino superior que continuava a cargo do governo imperial. E os presidentes provinciais abusaram desse dispositivo de intervenção, uma vez que várias províncias editaram exagerado número de leis sobre o assunto. A descentralização do ensino que permitiria às províncias atenderem às necessidades locais teve como resultado a multiplicação da instrução primária, secundária e 294 EDUCANDO MULHERES: ALTERNATIVAS, LEGISLAÇÕES E DIFERENÇAS DE GÊNERO NA EDUCAÇÃO DO PERÍODO IMPERIAL BRASILEIRO mesmo superior, muito embora sem uma organização ainda e com realidades locais diferenciadas. Caracterizava-se assim um ensino de graduação de escolas, diversificado entre federal e municipal, também particular. (SALES, 2002, p. 209). 2.2 Ensino em Minas Gerais Em Minas Gerais, a prerrogativa da Assembleia Provincial foi exercida rapidamente, por meio dos trabalhos de elaboração de uma legislação específica. Em 1835, a província de Minas Gerais, onde o número de escolas particulares ainda era considerável, teve sua primeira lei de instrução pública. Segundo essa lei, a instrução primária constaria de dois graus: no 1º se ensinaria a ler e escrever e a prática das quatro operações aritméticas; no 2º, a ler, escrever, aritmética até as proporções e noções gerais dos deveres morais e religiosos. As escolas de 1º grau deveriam estar em todos os lugares em que pudessem ser habitualmente freqüentadas por vinte quatro alunos ao menos. O Governo poderia estabelecer também escolas para meninas nos lugares em que existissem escolas do 2º grau e em que pudessem ser habitualmente freqüentadas por vinte quatro alunas ao menos. Nestas escolas se ensinariam, além das matérias do 1º grau, ortografia, prosódia, noções gerais dos deveres morais, religiosos e domésticos. A legislação da província mineira mantém a mesma orientação da lei do império. A educação das meninas continua enfatizando as questões religiosa e doméstica. O estabelecimento de escolas para as mulheres também é dificultada. Enquanto para os homens a exigência era apenas ser a escola frequentada por um mínimo de vinte e quatro alunos, para as meninas era necessário que já existissem escolas de 2º grau no local, conjuntamente com a frequência de vinte e quatro alunas. Além disso, as meninas só poderiam cursar o chamado 1º grau, o que demonstra o quão ínfimo era o conhecimento a que elas poderiam ter acesso. Com a necessidade de abertura de novas escolas na província, o Governo estabeleceu, na lei, que deveria ser fundada, o quanto antes, uma Escola Normal para a formação de professores para a instrução. A segregação dos escravos do sistema educacional permanece e de forma expressa na lei. O art. 11 claramente declara que “somente as pessoas livres podem freqüentar as Escolas Públicas, ficando sujeitas aos seus Regulamentos”. Além da instrução pública, eram permitidas escolas particulares, independentemente de licença do Governo, desde que os professores fossem habilitados na forma da Lei. Há um dispositivo muito interessante nessa lei que tornava o ensino de primeiro grau obrigatório para meninos entre oito e quatorze anos. Portanto, os pais deveriam providenciar o ensino de seus filhos em escolas públicas ou particulares ou em sua própria casa. A infração dessa norma poderia gerar como sanção uma multa de dez a vinte mil réis e a reincidência dobrar a pena anterior. Segundo Diva do Couto Gontijo Muniz (2002), a regulação do ensino esteve marcada por muitas reformas, devido à descontinuidade dos cinquenta e nove Presidentes que governaram Minas Gerais até 1889. A divisão em 1º e 2º graus do ensino primário foi modificada pela Lei n. 1064 de 4 de outubro de 1860, que transformou o ensino primário em grau único. Apesar da modalidade única, as meninas, além das matérias de leitura, escrita, operações aritméticas, doutrina cristã, noções de moral e civilidade, também deveriam ter aulas de trabalhos de agulha e noções de economia. As classes também deveriam ser dadas em ambientes distintos dos meninos. A mudança mais substancial em relação às mulheres se deu em 1878/1879, quando lhes foi facultado o ensino primário de 2º grau, que até então esteve restrito aos homens. É o que se percebe na fala de Muniz: ANAIS DO V CONGRESSO BRASILEIRO DE HISTÓRIA DO DIREITO 295 Todavia, manteve o direcionamento definido para o sexo feminino, qual seja, o de preparação para o exercício das funções de mãe e dona-de-casa, finalidade, aliás, que se apresenta como traço característico e permanente do ensino oferecido pelas escolas primárias, públicas, femininas. [...] Tal organização traduz a resposta do poder público às demandas sociais por ampliação da escolarização feminina, bem como os seus limites. A manutenção das “prendas domésticas” constitui uma clara definição desses limites, referendários dos direcionamentos pensados para as mulheres em termos educacionais, circunscritos a uma futura atuação na esfera doméstica. (MUNIZ, 2002, P. 317). Houve um aumento de escolas públicas masculinas e femininas no final do século XIX (DURÃES, 2002, p. 336). Mas ainda havia uma preocupação com a ampliação da rede educacional para as chamadas “camadas inferiores” e para as mulheres, pois a presença feminina ainda não estava a contento. Várias explicações podem ser listadas. Uma delas é que os pais, independentemente da condição social, ainda tinham muita resistência em enviá-las para as escolas, pois não gostavam de tê-las em convívio com outros homens. Além disso, especificamente para as meninas de condição social desfavorável, a necessidade de trabalhar para ajudar no sustento de casa fazia com que muitas delas se afastassem da escola. Embora a questão do trabalho atingisse também os meninos, ela foi mais utilizada para ratificar uma condição inferior da mulher. Ressalte-se ainda que o trabalho doméstico fazia parte da vida da mulher desde cedo, seja auxiliando a mãe em casa, seja trabalhando em casa de família para auxiliar nas despesas do lar. Por isso mesmo, sua renúncia à educação foi maior, porque determinados serviços eram rejeitados pelos meninos, como lavar, passar, cozinhar, cuidar de bebês, por serem considerados tipicamente femininos. Como esses serviços restavam para as meninas, sua frequência era prejudicada, quando não eram impedidas de ingressar na escola. (MUNIZ, 2002, p. 306). No período, não havia apenas colégios masculinos e femininos. Havia também as escolas mistas, principalmente em lugares menores, em que a fusão se fazia necessária para redução de custos. Mas não significava que nas escolas mistas homens e mulheres permaneciam juntos. Várias cautelas eram tomadas. Em primeiro lugar, as escolas mistas, assim como as femininas deveriam estar sob responsabilidade de professoras e as masculinas, sob responsabilidade de professores. As meninas, portanto, não poderiam estar sob supervisão de um professor. Mesmo quando havia algum contato entre meninas e meninos, essa convivência se dava de modo muito particularizado e só até os primeiros atingirem a idade de 09 ou 10 anos e com algumas precauções. “Adentrando a esse novo espaço escolar identificamos horários alternados; alas, salas e pátios de recreio separados; biombos separando meninos e meninas.” (DURÃES, 2002, p. 340). Pode-se resumir a situação escolar, em relação aos sexos, com os dados da tabela que se segue, extraída do artigo de Diva do Couto Gontijo Muniz (2002, p. 299): 296 EDUCANDO MULHERES: ALTERNATIVAS, LEGISLAÇÕES E DIFERENÇAS DE GÊNERO NA EDUCAÇÃO DO PERÍODO IMPERIAL BRASILEIRO Instrução primária de 1º e 2º graus: quantitativo de escolas públicas e de matrículas, por sexo, de 1805 a 1889 Escolas masculinas Escolas femininas Período Total Proporcionalidade das meninas Escolas mistas Escolas Alunos/ alunas Total de escolas Total de matrículas Nº de escolas Nº de alunos Nº de escolas Nº de alunas 1805-1814 22 * 0 0 * 22 * 0% 0% 1815-1825 27 753 3 65 1 31 818 10% 8% 1826-1827 30 1.065 3 92 * 33 1.157 9% 8% 1828-1837 129 4.235 14 352 * 143 4.587 10% 7,7% 1838-1851 184 6.869 23 673 * 207 7.542 11% 9% 1852-1861 294 10.383 42 1.543 * 336 11.926 12,5% 13% 1862-1867 306 8.042 61 1.300 * 408 9.347 15% 14% 1868-1879 673 17.312 224 7.170 * 897 24.482 25% 30% 1880-1889 928 28.836 639 15.111 82 1.649 43.947 39% 34,3% (*) Sem dados Esse quadro mostra números não muito expressivos, mas capazes de demonstrar a trajetória de ingresso e permanência das mulheres nas escolas. A partir da metade do século XIX, entretanto, houve uma preocupação com a ampliação dos moldes da educação feminina, segundo afirmação de Inácio Filho (2002, p. 54): Na sociedade patriarcal e educação feminina restringiu-se às boas maneiras e às prendas domésticas, porém, com o movimento crescente de urbanização e industrialização, a sociedade passou a exigir da mulher um certo desembaraço em decorrência da necessidade de freqüentar as festas e reuniões sociais que se tornaram cada vez mais regulares. Assim se foram abrindo espaços para atividades educacionais complementares, como aprendizagem de algum instrumento musical, línguas estrangeiras, artes e aula de etiqueta social. Repare-se, contudo, que permanece a intenção implícita de tornar a mulher uma melhor parceira para seu esposo. 2.3 Outras opções: ensino doméstico e internatos Mas a via da instrução pública não era a única opção. Pelo menos não para as famílias mais abastadas. Era comum que elas contratassem governantas e preceptoras estrangeiras, vindas da França, da Inglaterra e da Alemanha, por seu prestígio e status, conhecidas como as mais cultas e qualificadas. (RITZKAT, 2000, p. 272). Os pais preferiam suas filhas educadas em casa a tê-las que mandar para uma escola. Conforme Marly Gonçalves Bicalho Ritzkat (2000, p. 280), as preceptoras ficavam responsáveis pela educação de todos os filhos da casa. Devido à diversidade de idades, dividia-os em duas turmas: dos “pequenos” e dos “grandes”. Contudo, os meninos só recebiam em casa o ensino das primeiras letras, porque logo eram mandados para estudar fora. Mas as meninas, inicialmente educadas pela mãe e, posteriormente, pela preceptora, podiam receber toda a educação em casa, aprendendo o necessário para exercer o papel que delas era esperado na sociedade. Mesmo porque sua permanência em escolas não era longa. Como visto anteriormente, as meninas, durante muito tempo, puderam cursar somente o chamado 1º grau. Então, não havia prejuízo explícito em serem educadas em casa, uma vez ANAIS DO V CONGRESSO BRASILEIRO DE HISTÓRIA DO DIREITO 297 que o currículo permanecia o mesmo, com o objetivo de transformá-las em exímias donas de casa. Os homens, na verdade, temiam mulheres muito instruídas, que pudessem trazer perigo para o lar, uma vez que se tornavam seres “menos dóceis e menos domáveis”. Por isso, de acordo com o imaginário da época, não havia incentivo à continuação dos estudos pelas mulheres. Mulheres muito estudadas eram raridades que chamavam atenção na sociedade. Após o primário, com matérias de preparação para a tarefa doméstica, as mulheres já estavam prontas para seu natural desígnio: o casamento. Nesse período, surgem também as teses higienistas, que pregavam, dentre outras coisas, a necessidade de espaços próprios para a atividade educacional. Os internatos se encaixavam perfeitamente nessa perspectiva e acabaram sendo uma ótima opção para a elite em relação à educação de sua prole. Para adequar pais, mães, filhos e filhas ao que consideravam pertinente às normas da saúde física, mental e moral, os higienistas combateram em várias frentes. Uma delas foi a escola, mais particularmente os internatos, redutos de famílias mais abastadas. Bastiões da moralidade, essas escolas deviam organizar-se para coibir todas as modalidades de manifestação sexual inadequadas, etiologia da maioria dos males segundo o receituário dos médicos; deviam estabelecer padrões de alimentação, regrar horários de estudos e de atividades físicas, controlar o tempo dos banhos, fiscalizar os dormitórios, separar meninos e meninas, enfim, uma série de medidas higiênicas para produzir o indivíduo saudável, o cidadão decente e honesto, o responsável pelo futuro da nação. As escolas deviam fazer aquilo que a família –a colonial e a colonizada – era incapaz: educar segundo os saberes oriundos da ciência. (CUNHA, 2000, p. 453). A educação em internato encontrava respaldo em teorias pedagógicas da época que afirmavam ser a criança propensa ao mal, devendo, pois, ser educada em um lugar isolado e seguro, para evitar o pecado. Especificamente no século XIX, a teoria fundamental era de que o mundo estava em crise, ameaçado pelo mal vindo de todos os lados. Uma boa educação, portanto, seria aquela em que a criança permanecesse isolada de todo o mal, a fim de consolidar sua formação moral e poder se defender sozinha do mundo corrupto que a esperava. (SANTOS, 2008, p. 457). A escola em regime de internato seria a protetora das crianças. Quando se tratava das mulheres, então, o esforço era redobrado, pois elas eram mais propensas ao pecado; vide o exemplo de Eva nas Sagradas Escrituras. As normas eram rígidas e as meninas deveriam se submeter ao regimento próprio do estabelecimento. Elas permaneciam a maior parte do tempo sob vigilância, porque a intenção era que o mundo exterior deixasse de influenciar na vida das alunas. A ênfase era dada em práticas educativas que buscavam o ideal de mulher. Por isso, havia mais destaque nas normas e práticas definidoras de valores do que no conhecimento que ia ser ensinado. (INÁCIO FILHO, 2002, p. 59). As normas e regras internas eram feitas para modelar a mulher: seu corpo, seus gestos, sua linguagem, seu comportamento. Eram comuns, nesse período, os internatos femininos sob coordenação de ordens religiosas. O ensino era rígido e a questão da moral cristã, supervalorizada. Mas a opção de internatos se restringia às classes mais abastadas, pois o custo era muito alto; não só o relativo às mensalidades, como também do enxoval que deveria ser cuidadosamente preparado. É o que se ratifica no trecho de Muniz: Para as meninas dos setores mais favorecidos dessa sociedade, ela [experiência feminina da escolarização] se deu, inicialmente, no espaço enclausurado dos recolhimentos e, depois, predominantemente, no interior das instituições religiosas de ensino, sob o regime de internato e externato. Incluiu, ainda, a experiência nos “colégios” femininos, laicos [...]. Para aquelas de seus segmentos médios e inferiores a experiência escolar de alfabetização ocorreu nas escolas primárias de 298 EDUCANDO MULHERES: ALTERNATIVAS, LEGISLAÇÕES E DIFERENÇAS DE GÊNERO NA EDUCAÇÃO DO PERÍODO IMPERIAL BRASILEIRO instrução pública, cujo acesso lhes foi aberto, de forma lenta e gradual. (MUNIZ, 2002, p. 305). 2.4 Aproximação da República Em fins do século XIX, havia uma disputa entre a formação cristã das mulheres, por meio dos colégios e internatos religiosos e as novas concepções, ligadas às ideias positivistas e cientificistas de reforçar a questão materna, por meio de novidades da ciência, da qual se pode citar a incorporação de disciplinas como a puericultura e a psicologia nos cursos normais. Independentemente da vertente que se seguia, o resultado acabava por ser o mesmo: continuar o mesmo discurso, já comum no período imperial, de que a maior justificativa para a defesa da educação feminina era torná-la uma ótima educadora para seus próprios filhos. “A educação da mulher seria feita, portanto, para além dela, já que sua justificativa não se encontrava em seus próprios anseios ou necessidades, mas em sua função social de educadora dos filhos ou, na linguagem republicana, na função de formadora dos futuros cidadãos”. (LOURO, 2004, p. 447). O que se percebe é que mesmo estando já nas décadas finais do século XIX, às vésperas da proclamação da República, ainda persistia o mesmo pensamento. Numa pesquisa realizada, em 1881, com vários pesquisadores, na cerimônia comemorativa da inauguração de aulas para mulheres no Imperial Liceu de Artes e Ofícios, num total de 127 entrevistados: 9 consideraram que a educação só tinha o objetivo de preparar a mulher para o lar, não devendo ter qualquer relação com a emancipação intelectual e profissional femininas; 16, afirmaram que a educação deveria consistir apenas na formação moral e cristã da mulher; 63 expressaram que educar a mulher era colaborar com a dignificação da família, da nação e do mundo; 23 disseram que a educação tinha relação com a emancipação feminina. Outros nove deram respostas evasivas. (DUARTE, 2000, p. 301). Constância Lima Duarte (2000, p. 301) considera em relação a tal contexto que “a grande maioria das respostas aponta, como se pode perceber, para uma educação permeada pela religião e pela moral, que aperfeiçoasse ainda mais a mulher e a tornasse naturalmente devotada ao lar, à família e às tarefas domésticas.” 3 Conclusão Durante o período imperial, quando se começa a dar atenção para a educação feminina, é possível observar avanços. Entretanto, nota-se que o discurso por trás do incentivo à educação feminina permaneceu o mesmo durante todo o período, qual seja, a mulher deve estudar para ser boa mãe e educadora dos filhos. A questão de gênero é perceptível nas legislações analisadas. Chama atenção o cuidado que havia nas escolas mistas em organizar as aulas de meninos e meninas em horários distintos, promovendo a separação física entre eles. Outro indício é a frequência dos homens a essas escolas só até certa idade, período em que era considerado “sexualizado”, devendo ser afastado do convívio feminino. A preferência pela construção de escolas para o sexo masculino antes das do sexo feminino demonstra como a preocupação maior era com a educação masculina em detrimento da feminina, principalmente nas classes mais baixas. A principal diferença, contudo, presente em todas as legislações pesquisadas é a curricular. Além da mulher ser privada de algumas matérias, deveria sempre ter trabalhos de agulha, com ênfase na costura, e economia doméstica. Pode-se dizer, portanto, que houve avanço em relação ao ensino feminino, mas o discurso que o embasava desde o império permaneceu durante os primórdios da República, não se podendo olvidar a maior dificuldade das mulheres para chegarem à sala de aula e seu ensino diferenciado, voltado para as questões do lar. ANAIS DO V CONGRESSO BRASILEIRO DE HISTÓRIA DO DIREITO 299 Referências CUNHA, Marcus Vinicius da. A escola contra a família. In: FARIA FILHO, Luciano Mendes de et al (org.). 500 anos de educação no Brasil. Belo Horizonte: Autêntica, 2000. DUARTE, Constância Lima. A ficção didática de Nísia Floresta. In: FARIA FILHO, Luciano Mendes de et al (org.). 500 anos de educação no Brasil. Belo Horizonte: Autêntica, 2000. DURÃES, Sarah Jane Alves. Meninos e meninas nas escolas públicas mineiras no último quartel do séc. XIX: considerações em torno de uma construção espacial das diferenças de gênero. In: FARIA FILHO, Luciano Mendes de et al (org.). História da educação em Minas Gerais. Belo Horizonte: FCH/FUMEC, 2002. FARIA FILHO, Luciano Mendes de. A legislação escolar como fonte para a História da Educação: uma tentativa de interpretação. In: FARIA FILHO, Luciano Mendes de et al (org.). 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ANAIS DO V CONGRESSO BRASILEIRO DE HISTÓRIA DO DIREITO 301 SIGNIFICADOS DO CÓDIGO CIVIL NO DISCURSO DE JURISTAS DA PRIMEIRA REPÚBLICA: PEQUENA CONTRIBUIÇÃO PARA UMA COMPREENSÃO CRÍTICA DA CULTURA JURÍDICA BRASILEIRA MEANINGS OF THE CIVIL CODE WITHIN THE DISCOURSE OF 1ST REPUBLIC LAWYERS: A SMALL CONTRIBUTION TOWARDS A CRITICAL UNDERSTANDING OF BRAZILIAN LEGAL CULTURE Juliano Rodriguez Torres* * Juliano Rodriguez Torres, [email protected] bacharel em direito e mestrando no PPGD/UFPR. E-mail: 302 SIGNIFICADOS DO CÓDIGO CIVIL NO DISCURSO DE JURISTAS DA PRIMEIRA REPÚBLICA: PEQUENA CONTRIBUIÇÃO PARA UMA COMPREENSÃO CRÍTICA DA CULTURA JURÍDICA BRASILEIRA Em busca de significados À primeira vista, o tema do presente artigo pode não parecer digno de uma investigação acadêmica. Por um lado, grande parte dos "práticos" do direito da atualidade tenderão a acreditar que o "universo mental" dos juristas há cerca de uma centena de anos seja algo que já não importa, e que o "legado" das gerações passadas "já está aí" como um patrimônio incorporado, um conjunto de "descobertas" pronto a ser simplesmente aproveitado - e nunca repensado - no cotidiano jurídico (ou, inversamente, que se trate apenas da sombra de um paradigma superado, de cujo peso já nos livramos); por outro lado, haverá sempre quem possa questionar a relevância histórico-social de uma pesquisa que dirige suas lentes para uma "idéia", um "conceito" ou uma "representação", tendendo a identificá-la, equivocadamente, com a velha prática de uma "história das idéias" que, distanciada da realidade social, parte do "mundo das idéias" para dele não mais sair. Se estes são os riscos, antes de falarmos dos "significados do Código Civil" no discurso de juristas da primeira república brasileira, devemos deixar registrado, em primeiro lugar, que se quisermos adequadamente compreender os fenômenos jurídicos do presente (FONSECA, 1995, p. 249), e com isso contribuir para a solução de problemas do presente (HESPANHA, 2009, s/n), o passado jurídico não pode permanecer "mumificado" pelo "sono do jurista" cujo senso comum permanece assentado "na crença difusa de conquistas últimas e eternas, na fixação de uma dogmática imobilizadora, na indiscutibilidade de certas categorias" (GROSSI, 2004, p. 7) e na convicção acrítica de "que o direito atual, o direito moderno, é o ápice de todas as elaborações jurídicas de todas as civilizações precedentes, já que é a única ungida com a água benta da 'racionalidade'" (FONSECA, 2009, p. 23); daí porque apostarmos na força crítica e relativizadora da história do direito (FONSECA, 2009, p. 36), como saber vocacionado a auxiliar-nos a "adquirir plena consciência da historicidade e relatividade de um ideário jurídico que se assenta sobre nossas costas" (GROSSI, 2004, p. 9), na medida em que "desvela aquilo que no fenômeno jurídico antes estava encoberto" (FONSECA, 2009, p. 22). Em segundo lugar, aos que possam pensar que estamos a tratar de "velharias", as quais já não nos afetam, caberá sempre a advertência marxiana de que "os homens fazem a sua própria história, mas não a fazem segundo a sua livre vontade; não a fazem sob circunstâncias de sua escolha e sim sob aquelas com que se defrontam diretamente, legadas e transmitidas pelo passado" (MARX, 1984, s/n)1; no que diz respeito à realidade jurídica, deve-se acrescentar a esse "peso estruturante das circunstâncias" a consciência (ou a suspeita) de que a história do direito "não é apenas a singela sombra do que se passa noutro lado" (HESPANHA, 1978, p. 7), e relembrar, como arremate para o bom entendedor, a imagem mítica segundo a qual aquele que tenta manipular forças que desconhece está sujeito a armadilhas, das quais talvez não consiga escapar2. 1 Nesta riquíssima passagem, tão conhecida quanto desprezada, do "18 Brumário", Marx observa que até mesmo os esforços de criação revolucionária de novas bases para as relações sociais precisam se expressar na linguagem das gerações passadas, invocando, em favor das transformações, suas tradições e seus símbolos; essa rede tecida por "memórias", "ideais", "paixões", "ilusões" e "formas de arte" tomadas de empréstimo dos mortos - o que é inevitável - captura os homens dentro de seus limites, além dos quais somente se pode ir após um intenso exercício de autoconsciência e de autocrítica. Aqui se coloca o problema da relação entre passado e presente, mas também todo o problema da relação entre "ser social" e "consciência", que precisa ser compreendida em sua inteira complexidade, para além de todo reducionismo mecanicista ou linear. Michel Vovelle (2004, p. 11/12), ao discutir a ligação entre "ideologia" e "modo de produção", lembra o desabafo de Engels, para quem "o fator determinante é, em última instância, a produção e reprodução da vida real. Nem Marx, nem eu jamais afirmamos mais do que isso. Se, mais tarde, alguém torce essa proposição, fazendo-a dizer que o fator econômico é o único determinante, transforma-a em uma frase vazia abstrata e absurda..." 2 Este, aliás, é um dos grandes temas da literatura fantástica oitocentista, a exemplo do “Frankenstein” de Mary Shelley, sobre o qual vale reproduzir o comentário de Harold Bloom: “Victor Frankenstein, though he possesses ANAIS DO V CONGRESSO BRASILEIRO DE HISTÓRIA DO DIREITO 303 Por fim, embora a esta altura isso já pareça claro, adverte-se que a nossa premissa básica é a de que não haverá "texto", "idéia" ou "conceito" sem contexto, seja porque "os saberes também fazem parte do jogo de forças que compõe o mundo histórico em que vivemos" (FONSECA, 2009, p. 22), seja porque uma compreensão histórico-crítica do pensamento e do discurso implica a "escavação" (ou, quem sabe, a "escovação", a contrapêlo) de dimensões qualitativas que não apenas desmentem a sua "impermeabilidade" ao processo histórico-social circundante, como também revelam seus pressupostos "extra-técnicos": ideologias, atitudes, imaginários, sensibilidades, etc., que também podem emergir de uma "leitura participante" dos textos, "por de cima do ombro daqueles que os escreveram" (HESPANHA, 2005, p. 61). E porque isso é importante? Justamente porque "não podemos conceber nenhuma forma de ser social independentemente de seus conceitos e expectativas organizadores, nem poderia o ser social reproduzir-se por um único dia sem o pensamento" (THOMPSON, 1981, p. 16): a experiência "vivida" depende das questões, das problemáticas, dos desafios e das expectativas emergentes de uma reflexão sobre a própria experiência vivida (e poderíamos acrescentar, depende de uma sensibilidade que a interpreta). Para uma história da cultura jurídica, esse caráter "estruturante" (ao mesmo tempo que "estruturado") do pensamento e do discurso e tão mais crucial quanto mais se compreenda o direito como um produto social que, além de "produto", é também momento do "processo" e, conseqüentemente, ele mesmo um processo social3. Ao pensarmos em "conceitos e expectativas organizadores da experiência" ou, mais amplamente, na dimensão ordenadora da "consciência social", temos de levar em conta o papel dos símbolos como algo mais que "representações" mecânicas de objetos exteriores ao pensamento, atentando para a sua "riqueza incomum de sentido" (DARNTON, 2010, p. 345) e tomando a sério seus "poderes especiais" no âmbito da cultura (Id., Ibid.): em outras palavras, a compreensão adequada de um "processo cultural" exige-nos enxergar no jogo entre "significantes" e "significados" a presença de efeitos bem mais do que meramente "descritivos". Uma pista interessante nesse sentido é oferecida por Darnton (2010, p. 344/345): (...) nós pensamos no mundo da mesma maneira que falamos sobre ele, estabelecendo relações metafóricas. (...) Não se podem conceber essas relações sem referência a um conjunto de categorias que servem como um crivo para classificar a experiência. A linguagem nos dá nosso crivo mais básico. Ao nomear as coisas, nós as inserimos em categorias linguísticas que nos auxiliam a ordenar o mundo. Para o historiador do direito, não pode haver dúvida de que o "Código" é um símbolo generous impulses, is nothing less than a moral idiot in regard to the ´monster´ he has created. Even at the end, he cannot understand his own failure of moral imagination, and he dies still misapprehending the nature of his guilt. He is thus at once a great hermetic scientist, an astonishing genius at breaking through human limitations, and a pragmatic monster, the true monster of the novel. His trespass is beyond forgiveness, because he is incapable of seeing that he is both a father, and a god, who hás failed to love his marred creation”(p. 9). Em tradução livre: "Victor Frankenstein, ainda que possua impulsos generosos, é nada menos que um idiota moral em face do "monstro" que criou. Mesmo ao final, ele não é capaz de entender o fracasso da própria imaginação moral, e morre sem chegar a compreender a natureza de sua culpa. Ele é, portanto, a um só tempo, um grande cientista hermético, um gênio dotado de uma capacidade assombrosa em superar as limitações humanas, e um monstro pragmático, o verdadeiro monstro do romance. Sua transgressão é imperdoável, porque ele é incapaz de ver que é ao mesmo tempo um pai, e um deus, que fracassou por não conseguir amar sua criação arruinada". Em favor de uma história crítica do direito, que compreende o seu “objeto” como algo mais que um sombrio “reflexo” e como algo distinto de uma asséptica “redoma de marfim”, ressaltando a sua espessura histórica, argumentemos como bons racionalistas (e, mais que isso, como bons moralistas): se desprezamos o problema de entender a fundo as “circunstâncias” que nos “determinam” (e dentro das quais nos movemos) e os “instrumentos” que “manejamos”, corremos o risco de ignorarmos, como Victor Frankenstein, o significado de nossos próprios atos e, inadvertidamente, criar-nos a nós mesmos como monstros. 3 Para uma discussão teórico-metodológica, ver a síntese de Antônio Manuel Hespanha (2005, p. 38/41). 304 SIGNIFICADOS DO CÓDIGO CIVIL NO DISCURSO DE JURISTAS DA PRIMEIRA REPÚBLICA: PEQUENA CONTRIBUIÇÃO PARA UMA COMPREENSÃO CRÍTICA DA CULTURA JURÍDICA BRASILEIRA (GROSSI, 2007, p. 89), cuja emergência histórica traduz polêmicas, tensões e aspirações associadas à afirmação da cultura jurídica burguesa na Europa do século XIX (GROSSI, 2007, p. 88/113) e à sua ulterior projeção e difusão para muito além do ambiente europeu, notadamente em uma América Latina desejosa de "modernização", diante da qual o Brasil aparece como caso excepcional de uma codificação "tardia", em que "foi o Código Civil desejado, projetado, desenhado, mas nunca realizado no século XIX" (FONSECA, 2010, p. 16). De toda forma, parece importante ressaltar que, à época da codificação civil brasileira, o "Código símbolo" (GROSSI, 2007, p. 89), em meio às peculiaridades locais, está presente no discurso dos juristas, com toda a sua força simbólica. E essa força da "idéia de Código" está muito longe de ser desprezível, dada a sua radicalidade, que já se mostrara tão nítida no contexto europeu originário: (...) havia também, como se dizia, a radicalidade da ´ideia codigo´. Ela será mais do que uma mera ideia: será um mito, um símbolo. O código será celebrado, recitado, louvado. Recebido como "o documento do cidadão", será tomado como uma conquista civilizacional perene, eterna, inalienável. Não por acaso Napoleão dirá que ele, o Imperador, será lembrado não pelas batalhas que havia vencido, mas, sim, pelo seu código. E também não por acaso a iconografia da época mostra Napoleão sendo coroado pelo tempo, enquanto escreve na pedra o seu código. A noção de código está vinculada não apenas à ideia de organizar a realidade mas também à intenção de modelar a própria realidade política e social. O direito, na modernidade jurídica, investe sobre a realidade, conformando-a (FONSECA, 2010, p. 14/15). Estamos, portanto, diante de uma noção "radical", cuja presença ativa indica, quando menos, um processo de transição cultural no que diz respeito aos modos de conceber a experiência jurídica (e bem assim, no que diz com os modos de "conceber o mundo"); surge, porém, o problema de se compreender em que termos, com que significados e com quais implicações essa noção - acompanhada de uma problemática e de um "simbolismo" distintivos - é recepcionada, imaginada, apropriada e articulada no discurso dos juristas brasileiros, à época da codificação civil. Obviamente, "esgotar" o tema é uma tarefa hercúlea e certamente ainda distante; entendemos, por isso mesmo, que esse é um terreno que pede para ser percorrido. Se é assim, nos propomos à análise e interpretação de algumas evidências de um "discurso autoconsciente da codificação" no Brasil das primeiras décadas do século XX. Trata-se de um período em que o projeto modernizador ainda procura vencer as resistências tradicionais, porém já se mostra fortemente prevalente no plano da doutrina, que acompanha e impulsiona o movimento de centralização jurídica estatal que se busca consolidar - processo que, para sua compreensão, exige uma leitura atenta às suas peculiaridades “locais”. Nosso objetivo principal, neste trabalho, é auscultar os textos dos juristas envolvidos no projeto codificador, no intento de realizar uma leitura crítica da compreensão que esses sujeitos demonstram ter acerca da experiência jurídica em que estão inseridos, e dos discursos que recepcionam e produzem, em busca da sua contextualização no âmbito de um projeto histórico, dirigido à "modernização jurídica" brasileira, cujas especificidades permanecem em grande parte inexploradas, tendo-se constituído apenas recentemente em objeto de preocupação da historiografia jurídica. Busca-se, com isso, contribuir para os esforços de investigação da história da cultura jurídica brasileira na primeira república, a partir de uma iniciativa orientada à compreensão crítica do imaginário jurídico da época - visto que o direito é também "uma forma de imaginar o real" (GEERTZ Apud HESPANHA, 2005, p. 100) - tentando desvelar, na medida do possível, as operações inerentes à formação e aos usos dos conceitos e expectativas organizadores da experiência jurídica, tal como podem ser surpreendidos na obra dos juristas. Trata-se, antes de tudo, de proceder a uma leitura "densa" de cada "texto dentro do ANAIS DO V CONGRESSO BRASILEIRO DE HISTÓRIA DO DIREITO 305 contexto”: acreditamos que essa abordagem permite, ainda que a partir de textos presumivelmente produzidos desde a perspectiva dos "vencedores", enxergar (e avaliar, no seu contexto) algumas das opções, das escolhas de fundo, das apostas e das exclusões que marcaram o processo codificador. Como fontes primárias foram utilizados o "Código Civil dos Estados Unidos do Brasil Commentado por Clovis Bevilaqua", de 1916; o "Parecer Juridico" inacabado de Ruy Barbosa, de 1905, sobre o "Projeto Bevilaqua" de Código Civil, dirigido à Comissão Especial do Senado; o compêndio de Affonso Dionysio Gama, intitulado "Theoria e Pratica dos Contractos por instrumento particular no direito brasileiro" (2ª Edição), de 1919; artigos doutrinários de diversos autores, como Pedro Lessa, João Mendes Júnior, Reynaldo Porchat e Pontes de Miranda, publicados em periódicos da época, com destaque para a “Revista de Direito Civil, Commercial e Criminal” de Antonio Bento de Faria; também consultamos sentenças judiciais do período, especialmente do momento imediatamente subseqüente à promulgação do Código Civil. Nossa abordagem das fontes pode ser descrita como uma "história do discurso", orientada à compreensão e à interrogação dos textos, mediante procedimentos de análise qualitativa, privilegiando as dimensões da significação intencional, da intertextualidade implícita e do contexto intelectual, pelas quais se busca, sobretudo, identificar a visão social de mundo e as opções sócio-políticas comuns aos seus produtores, isto é, às "escolhas de fundo" que delimitam, no ideário jurídico, o papel dos juristas, da lei, da "ciência" e do legislador; a construção e a concretização dessas escolhas, por sua vez, são buscadas no plano das "influências" intelectuais e da sua recepção "local" e ativa. Os textos, aqui, são tomados, portanto, como manifestações historicamente situadas de uma “consciência da experiência” jurídica que, por sua vez, ao constituir uma cultura jurídica, faz-se estruturante da própria experiência, da qual ela é parte, talvez a mais importante. Insista-se, bem entendido, que as “idéias” não “flutuam” sobre a realidade. Os juristas, como todos aqueles que “agem” no mundo, precisam “ler” o mundo, de uma forma mais ou menos criativa, mas sempre de acordo com um quadro cultural que ultrapassa os próprios “sujeitos”, e respondendo a expectativas, problemas e “pressões” que chegam de todos os lados. O contexto social, de alguma forma, sempre estará ali presente, ainda que “filtrado”, como é inevitável (e aqui são precisamente os “filtros” que nos interessam, mesmo porque estão muito longe de desempenhar um papel meramente “passivo”). Como lembra Antônio Manuel Hespanha (2005, p. 86/87): (...) quando M. Bakhtin defende que o mundo não pode ser apreendido senão como um texto e que, portanto, a relação entre “realidade” e representação tem que ser necessariamente entendida como uma forma de comunicação intertextual, está apenas a insistir nesta idéia de que todo o contexto da acção humana, ao qual esta acção necessariamente responde, é algo que já passou por uma fase de atribuição de sentido. Falamos, portanto, de juristas dos inícios do século XX, como “intelectuais” social e temporalmente situados, que interagem, nas suas obras, com o processo de codificação do direito civil. Partimos então da pergunta: o que o Código signif