Medidas cautelares pessoais diversas da prisão:
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Medidas cautelares pessoais diversas da prisão:
Medidas cautelares pessoais diversas da prisão: comparação entre os sistemas brasileiro, italiano, chileno e estadunidense Gustavo Torres Soares Mestre em Direito Processual pela PUC/MG. Doutorando em Direito Processual pela USP, com estágio doutoral no Instituto Max Planck de Direito Criminal, em Freiburg im Breisgau, na Alemanha. Procurador da República na Capital de São Paulo. Resumo: Este artigo apresenta breve comparação entre os sistemas jurídicocriminais italiano, chileno, estadunidense e brasileiro de medidas cautelares pessoais diversas da prisão. Palavras-chave: Processo penal. Cautelares pessoais diversas. Abstract: This article presents a brief comparison between the criminal justice systems in force in Italy, Chile, United States and Brazil, as regards to alternative personal precautionary measures. Key words: Criminal procedure. Alternative precautionary measures. Página 1 de 24 Medidas cautelares pessoais diversas da prisão: comparação entre os sistemas brasileiro, italiano, chileno e estadunidense Gustavo Torres Soares Mestre em Direito Processual pela PUC/MG. Doutorando em Direito Processual pela USP, com estágio doutoral no Instituto Max Planck de Direito Criminal, em Freiburg im Breisgau, na Alemanha. Procurador da República na Capital de São Paulo. Sumário: 1. Introdução. 2. Visão geral dos sistemas comparados: positivação, corporificação, recepção pela doutrina e jurisprudência. 3. Semelhanças entre os sistemas italiano, chileno, estadunidense e brasileiro de medidas cautelares pessoais diversas da prisão. 4. Diferenças entre os sistemas italiano, chileno, estadunidense e brasileiro de medidas cautelares pessoais diversas da prisão: oralidade e audiência para a imposição de medidas cautelares; poder geral de cautela; prazo para medidas e sua revisão; medidas cautelares pessoais diversas da prisão não contempladas alguns dos sistemas aqui comparados. 5. Conclusão. Bibliografia. Anexo: comparação esquemática entre os sistemas brasileiro, italiano, chileno e estadunidense. 1. Introdução O estabelecimento de variadas medidas cautelares pessoais diversas da prisão, rompendo-se com o binário reducionista prisão cautelar ou liberdade provisória, tem sido saudado como a mais importante alteração da Lei Federal nº 12.403/2011 no Código de Processo Penal brasileiro, ao lado da revitalização do instituto da fiança 1. 1 V. LOPES JÚNIOR, Aury. O novo regime jurídico da prisão processual, liberdade provisória e medidas cautelares diversas – Lei 12.403/2011. Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2011, p. 4 e 119.V. tb. perspectivas favoráveis em SCARANCE FERNANDES, Antonio. Processo penal constitucional. 7ª ed. São Paulo: RT, 2012, p. 289 e 311-324. Tb. em BADARÓ, Gustavo H. R. Ivahy. Processo penal. Rio de Janeiro: Campus Jurídico, Elsevier, 2012, p. 715-721 e 752-788. E tb. em ZANOIDE DE MORAES, Maurício. Análise judicial da prisão em flagrante: por uma abordagem sistêmico-constitucional. In: Revista do Advogado – Reforma do Processo Penal, n. 113, setembro/2001, p. 92-100. Desse último autor, antevendo a necessidade político-criminal da inovação ora positivada, v. ZANOIDE DE MORAES, Maurício. Presunção de inocência no processo penal brasileiro: análise de sua estrutura normativa para a elaboração legislativa e para a decisão judicial . Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2010, p. 378-381. Página 2 de 24 Até a entrada em vigor das alterações trazidas pela Lei Federal nº 12.403/2011 no CPP brasileiro, o sistema normativo regente da liberdade de quem se via sob imputação penal em tese devida, especialmente em casos de prisão em flagrante, era fundado em lógica binária: verificada a aparente legitimidade da imputação (constante de prisão em flagrante, indiciamento ou denúncia), o magistrado competente deveria garantir a liberdade provisória do imputado ou lhe impor prisão preventiva 2. O texto normativo da própria Constituição da República de 1988 exprime tal dicotomia, como se depreende, por exemplo, de seu art. 5º, LXVI (“ninguém será levado à prisão ou nela mantido, quando a lei admitir a liberdade provisória, com ou sem fiança”). A partir da Lei Federal nº 12.403/2011, o CPP brasileiro passou a estabelecer modelo plúrimo (ou polimorfo3), como se depreende de seu art. 310: a prisão em flagrante ilegal deve ser o quanto antes relaxada (assim como se impõe o óbice judicial a toda persecução penal indevida); sendo legal a prisão (ou mesmo o processo penal instaurado contra acusado solto), o magistrado competente deve, conforme as circunstâncias, garantir a liberdade provisória do imputado sem quaisquer ônus4, sujeitar essa liberdade provisória a medidas cautelares diversas da prisão (entre elas, a fiança) ou, em último caso, converter a prisão em flagrante em 2 3 4 BOTTINI, Pierpaolo Cruz. Cautelares: superação da medíocre dicotomia. In: Boletim IBCCrim de agosto/2010 – edição especial sobre o CPP, p. 26-27. V. LOPES JÚNIOR, Aury. O novo regime jurídico da prisão processual, liberdade provisória e medidas cautelares diversas, obra citada, p. 4 e 119. Diante do princípio constitucional do estado de inocência, da possibilidade de o imputado ser libertado da prisão em flagrante e responder ao processo sem qualquer ônus em sua liberdade, somados ao caráter não automático e de extrema ratio fundamentada da prisão preventiva, renovam-se os questionamentos sobre o termo liberdade provisória, empregado pela Constituição da República e pelo novo CPP – cf. BRITO, Alexis Couto. Ainda existe liberdade provisória no processo penal brasileiro?. In: Boletim IBCCRIM de novembro/2011, n. 228, ano 19, p. 10. Para este autor, agora “somente poderíamos falar de liberdade provisória nas situações de flagrante, e pelo curto período de 24 horas dado pela lei para que o juiz adote as providências do art. 310. Mas, ainda assim, não pela força jurídica que sempre se emprestou a este instituto de liberdade precária diante da força evidente de sua prisão, mas sim pela situação real de que o acusado preso em flagrante poderá ter contra si nova prisão decretada, e o provisório da liberdade, na verdade, iguala-se à brevidade do intervalo no qual ficou livre do cárcere” (conceito extremamente limitado, a ponto de quase retirar o interesse prático sobre instituto outrora central). Outra possibilidade de interpretação sobre a provisoriedade em questão seria a de que o imputado em procedimento formal – preso em flagrante, denunciado solto etc. – terá sua liberdade provavelmente ameaçada (e não necessariamente cerceada) por ato estatal futuro. Ou seja: liberdade provisória seria aquela sob provável ameaça estatal, ameaça essa decorrente da instauração de procedimento formal (conceito extremamente abrangente, a ponto de quase inviabilizar seu emprego, por ausência de delimitação precisa). Como alerta SCARANCE FERNANDES, Antonio, Processo penal constitucional, obra já citada, p. 311, o sentido tradicionalmente empregado para tal provisoriedade seria o de “liberdade concedida àquele que estava preso”. E a correção desse emprego vocabular, repita-se, está colocada em xeque pelas inovações trazidas pela Lei Federal nº 12.403/2011. Página 3 de 24 preventiva, quando presentes os requisitos constantes do art. 312, e se revelarem inadequadas ou insuficientes as medidas cautelares diversas da prisão. Com isso, para os flagrantes e persecuções formalizadas considerados devidos, nos quais haja adequação e necessidade, foi instituído rol de medidas cautelares pessoais a serem judicialmente aplicáveis, sob concreta fundamentação, todas elas menos aflitivas (e, portanto, inicialmente preferíveis) que a prisão preventiva, a qual passa a ser expressamente a última escolha do sistema de medidas cautelares pessoais. Segundo o art. 319 do CPP reformado, são medidas cautelares diversas da prisão: I – comparecimento periódico em juízo, no prazo e nas condições fixadas pelo juiz, para informar e justificar atividades; II – proibição de acesso ou frequência a determinados lugares quando, por circunstâncias relacionadas ao fato, deva o indiciado ou acusado permanecer distante desses locais para evitar o risco de novas infrações; III – proibição de manter contato com pessoa determinada quando, por circunstâncias relacionadas ao fato, deva o indiciado ou acusado dela permanecer distante; IV – proibição de ausentar-se da Comarca quando a permanência seja conveniente ou necessária para a investigação ou instrução; V – recolhimento domiciliar no período noturno e nos dias de folga quando o investigado ou acusado tenha residência e trabalho fixos; VI – suspensão do exercício de função pública ou de atividade de natureza econômica ou financeira quando houver justo receio de sua utilização para a prática de infrações penais; VII – internação provisória do acusado nas hipóteses de crimes praticados com violência ou grave ameaça, quando os peritos concluírem ser inimputável ou semi-imputável (art. 26 do Código Penal) e houver risco de reiteração; VIII – fiança5, nas infrações que a admitem, para assegurar o comparecimento a 5 É interessante notar que a fiança, no inciso VIII do art. 319, é apresentada como cautela, ou seja, medida judicial destinada a resguardar finalidades processuais; já no inciso III do art. 310, recebe tratamento de contracautela da prisão em flagrante recém ocorrida. Nesse sentido, BADARÓ, Gustavo, Processo penal, obra Página 4 de 24 atos do processo, evitar a obstrução do seu andamento ou em caso de resistência injustificada à ordem judicial; IX – monitoração eletrônica. O propósito do presente estudo é apresentar aspectos gerais dessas novas medidas e comparar, neste ponto específico, o sistema brasileiro com outros em que tais normas já estejam por mais tempo assentadas, sendo um europeu continental (o italiano, instituído em 1988 e constantemente aperfeiçoado), um latino-americano (o chileno, instituído em 2000) e um de common law (o estadunidense, cuja última grande alteração estrutural ocorreu, no âmbito federal, em 1984). 2. Visão geral dos sistemas comparados: positivação, corporificação, recepção pela doutrina e jurisprudência O sistema italiano de medidas cautelares pessoais diversas da prisão foi instituído no corpo do Codice di Procedura Penale, de 22 de setembro de 1988, e constantemente aperfeiçoado. O CPP italiano, disciplinando as medidas cautelares pessoais em seus artigos 272 a 315, reconhece expressamente a diferença entre medidas cautelares coercitivas e interditivas. Segundo Andrea Dalia e Marzia Ferraioli, as medidas cautelares coercitivas são as que restringem a liberdade ambulatorial, mediante aprisionamento (misure di coercizione custodiale) ou através da imposição de lugares aonde se deva ir ou não ir (misure di mera coercizione); e as medidas cautelares interditivas são as que comprimem o exercício de faculdades e direitos referentes às relações profissionais, familiares, ético-sociais, econômicas e políticas do cidadão. Como exemplos das medidas coercitivas aprisionadoras (misure di coercizione custodiale), as referidas autoras citam as prisões domiciliares, as prisões em cárcere tradicional e as internações compulsórias em instituições psiquiátricas. Como exemplos das citada, p. 776. Página 5 de 24 medidas coercitivas não-aprisionadoras (misure di mera coercizione), as autoras mencionam a proibição de sair do território nacional, o dever de apresentação periódica perante a polícia judiciária, a proibição de frequentar determinados lugares, a imposição de permanência em determinado espaço, o afastamento compulsório da casa familiar e a proibição de aproximação entre suposto agressor e suposta vítima. São, para Dalia e Ferraioli, exemplos de medidas cautelares interditivas a suspensão dos exercícios do poder familiar, de funções públicas e de atividades profissionais ou empresariais6. Vittorio Grevi parte da diferença legal entre medidas cautelares coercitivas e interditivas. Ressaltando que ambas devem obedecer ao princípio da proporcionalidade, Grevi destaca que a decisão, em cada caso concreto, sobre a medida coercitiva aplicável deve obedecer à idéia de tendencial gradualidade (hierarquia), enquanto a decisão sobre a medida interditiva a ser imposta decorre de escolha direta entre opções paralelas, em princípio igualmente gravosas. Segundo tal autor, as medidas coercitivas tendem a seguir progressiva aflitividade – figurariam, em ordem crescente de sacrifício para o imputado, a proibição de sair do território nacional, o dever de apresentação periódica perante a polícia judiciária, o afastamento compulsório da casa familiar, a proibição de aproximação entre suposto agressor e suposta vítima, a proibição de frequentar determinados lugares, a imposição de permanência em determinado espaço, as prisões domiciliares, as prisões em cárcere tradicional e as internações compulsórias em instituições psiquiátricas7. Já as medidas interditivas (suspensão dos exercícios do poder familiar, de funções públicas e de atividades profissionais ou empresariais), não trariam ao julgador qualquer ordem preferencial inicial, de modo que o juízo de adequação e necessidade da medida seria direto, não comparativo nem escalonado 8. Tratando-se de sistema amadurecido há mais de vinte anos, a jurisprudência italiana já o assimilou, tanto do ponto de vista procedimental quanto de sua conformação aos princípios constitucionais de liberdade, presunção de inocência, processo justo e defesa 9. 6 7 8 9 Sobre a classificação e os exemplos apresentados, v. DALIA, Andrea Antonio. FERRAIOLI, Marzia. Manuale di diritto processuale penale. 7ª ed. Milão: 2010, p. 230-231. GREVI, Vittorio. Misure cautelari. In: CONSO, Giovanni. GREVI, Vittorio (coords.). Compendio di procedura penale. 5ª ed. Milão: CEDAM, 2010, p. 412-415. GREVI, Vittorio. Misure cautelari, op. cit., p. 417-418. Para análise sistematizada da jurisprudência italiana sobre as medidas cautelares, cf. PANGALLO, Giovanna Giulia. Le misure cautelari. Forli: Experta, 2007. Na obra, há citações de inúmeros julgados quanto a pressupostos de aplicação (p. 113-169, 277, 336-340), cumulação de medidas (p. 279), medidas diversas das Página 6 de 24 O sistema chileno de medidas cautelares diversas da prisão também foi instituído no corpo do Codigo Procesal Penal, publicado em 12 de outubro de 2000, e, de lá para cá, recebeu dois aperfeiçoamentos legislativos, decorrentes da Lei nº 20074, publicada em 14.11.2005, e da recente Lei nº 20585, publicada em 11.05.2012. Os principais dispositivos chilenos sobre o tema são os artigos 155, 156 e 156bis do CPP. O artigo 155, sob a rubrica “Enumeração e aplicação de outras medidas cautelares pessoais”, dispõe que o órgão judicial competente, mediante requerimento do órgão estatal de acusação (fiscal), do querelante ou da vítima, poderá impor ao imputado uma ou mais das seguintes medidas, diversas dos encarceramentos tradicionais, “para garantir o êxito das diligências de investigação ou a segurança da sociedade, proteger o ofendido, assegurar o comparecimento do imputado aos atos processuais ou à execução da sentença, depois de formalizada a investigação”: as prisões domiciliares (sob regime de privação total ou parcial da liberdade); a sujeição à vigilância de pessoa ou instituição determinada (as quais devem se reportar periodicamente ao juiz de garantias); o dever de apresentação periódica perante o juiz de garantias ou autoridade por este designada; a proibição de sair do país, da localidade onde se reside ou de outro âmbito territorial judicialmente fixado; a proibição de frequentar, ou sequer visitar, determinados lugares, reuniões, recintos ou espetáculos públicos; a proibição de se comunicar com determinadas pessoas, desde que isso não afete o direito de defesa; a proibição de aproximação entre suposto agressor e suposta vítima (ou familiares desta); e, nos casos de problemas conjugais com repercussões penais, a imposição de algum dos envolvidos afastar-se do ambiente doméstico compartilhado. O artigo 156 do CPP estabelece a possibilidade de o Poder Judiciário chileno, atendendo a requerimento do interessado, ouvindo previamente o órgão estatal de acusação (fiscal) e dando oportunidade de manifestação aos demais participantes diretos da respectiva audiência (intervinientes), suspender a aplicação de qualquer das medidas cautelares prisões provisórias tradicionais (p. 277-318 e 340-351), cujo sentido predominante será interpretado ao longo deste trabalho. Página 7 de 24 autorizadas pelo artigo 155 e em princípio impostas no caso concreto, quando julgar que isso não coloca em perigo os objetivos visados pela sua imposição. Tal suspensão poderá ser acautelada com a prestação de caução econômica pelo interessado, através de dinheiro, valores, direitos reais ou terceiros fiadores (art. 146 do CPP chileno), em mecanismo assemelhado com a fiança brasileira10. O recente artigo 156-bis do CPP chileno, incluído pela Lei nº 20585, publicada em 11.05.2012, instituiu hipótese muito particular de medida cautelar pessoal diversa da prisão: nos casos de investigação por fraude na concessão de licenças médicas, o órgão judiciário competente está autorizado a, mediante requerimento do fiscal, do querelante ou da vítima, decretar a suspensão da referida atividade médica, enquanto durar a investigação ou por prazo menor expressamente justificado. Maria Ines Horvitz Lennon e Julian Lopez Masle denominam tais provimentos como medidas cautelares pessoais de caráter geral, cuja aplicação, em princípio, prefere às prisões provisórias tradicionais11. Mauricio Duce e Cristián Riego, concordando com seu caráter preferencial em relação aos encarceramentos provisórios tradicionais, chamam-lhes medidas alternativas12. O momento apropriado para sua imposição é a denominada audiência de controle da detenção, prevista no art. 393 do CPP chileno, na qual a pessoa detida (em flagrante delito ou por ordem judicial) é levada à presença do juiz de garantias para avaliação de seu status processual ante eventual pretensão punitiva estatal 13. Pela clara dicção do caput do art. 155 do CPP chileno, as medidas cautelares 10 11 12 13 HORVITZ, Maria Ines Lennon. LOPEZ, Julian Masle. Proceso penal chileno. Santiago: Editorial Juridica de Chile, 2010, p. 437. HORVITZ, Maria Ines Lennon. LOPEZ, Julian Masle, Proceso penal chileno, obra já citada, p. 433-437. DUCE, Mauricio J. RIEGO, Cristián R. Proceso penal. Santiago: Editorial Juridica de Chile, 2009, p 280-282. BLANCO SUAREZ, Rafael. DECAP FERNANDEZ, Mauricio. MORENO HOLMAN, Leonardo. ROJAS CORRAL, Hugo. Litigación estratégica en el nuevo proceso penal. Santiago: Nexis Legis, 2005, p. 43-56. Página 8 de 24 pessoais de caráter geral (ou alternativas) são legalmente enumeradas (sem espaço para se cogitar de poder geral de cautela), cumuláveis e vinculadas a finalidades específicas (“garantir o êxito das diligências de investigação ou a segurança da sociedade, proteger o ofendido, assegurar o comparecimento do imputado aos atos processuais ou à execução da sentença, depois de formalizada a investigação”; no caso do artigo 156-bis, a finalidade, ainda que não expressa, é também contemplada pelo caput do art. 155 – segurança da sociedade). Tratando-se de inovações relativamente recentes no até há pouco autoritário processo penal chileno, tais medidas, ao mesmo tempo em que foram recebidas com boavontade pela doutrina14, têm sido objeto de aplicação ainda não pacífica nos tribunais 15. Exemplo disso é o acórdão (resolución) nº 40488, da Corte Suprema de Chile, proferido em 26.10.2010, no qual é validada a manutenção em prisão cautelar de dois cidadãos chilenos, Héctor Gabriel Pardo Latorre e Sebastián Alfonso Blanco Blanco, acusados de roubo qualificado, aparentemente só com base na gravidade da acusação 16. O sistema estadunidense de medidas cautelares diversas da prisão teve sua última grande alteração estrutural, no âmbito federal, com o denominado Bail Reform Act de 1984, que reformulou integralmente o sistema até então instituído pela lei congênere editada em 1966. O sistema federal pós-1984, com posteriores alterações consideradas não estruturais 17, está codificado nas seções 3141 a 3150 do título 18 do United States Code (de forma abreviada, 18 USC §§ 3141-3150). Os sistemas judiciais estaduais, embora detenham autonomia legislativa, tendem a seguir o modelo federal quanto ao tema18. 14 15 16 17 18 Cf. MARÍN GONZÁLEZ, Juan Carlos Marín. Las medidas cautelares personales en el nuevo Código Procesal Penal chileno. In: REJ – Revista de Estudios de la Justicia, nº 1, ano 2002, p. 9-54. Santiago: Universidade do Chile, 2002. Cf. HORVITZ, Maria Ines Lennon. LOPEZ, Julian Masle, Proceso penal chileno, obra já citada, p. 433-437. DUCE, Mauricio J. RIEGO, Cristián R. Proceso penal, obra já citada, p 280-282. BLANCO SUAREZ, Rafael. DECAP FERNANDEZ, Mauricio. MORENO HOLMAN, Leonardo. ROJAS CORRAL, Hugo. Litigación estratégica en el nuevo proceso penal, obra já citada, p. 7-14 e 43-56. V. repositório eletrônico VLex. Cf. FEDERAL JUDICIAL CENTER. The Bail Reform Act of 1984. Disponível em http://www.fjc.gov/public/pdf.nsf/lookup/bailref.pdf/$file/bailref.pdf. Acesso em 25.10.2012. Cf. SAMAHA, Joel. Criminal procedure. 8ª ed. Belmont: Wadsworth, 2012, p. 398-407. Página 9 de 24 Segundo o 18 USC §§ 3141-3142 e normas regulamentadoras, dispositivos esses reafirmados pela decisão da Suprema Corte no Caso County of Riverside versus McLaughlin et alii19, qualquer pessoa presa deve ser levada, em até quarenta e oito horas (salvo justificado motivo), à presença da autoridade judicial competente (em regra, o magistrate20), a qual deverá determinar, conforme as circunstâncias: a liberdade do conduzido, condicionada apenas ao compromisso de este comparecer em juízo, cooperar com o prosseguimento da causa (inclusive fornecendo amostra de DNA) e de não se envolver em crime durante aquela situação de indefinição penal (release on recognizance21); a liberdade do conduzido, condicionada ao cumprimento de condições pessoais diversas da tradicional prisão provisória; a manutenção provisória da prisão, para avaliação de eventual deportação, revogação de benefício penitenciário ou sanção processual por descumprimento de algum dos compromissos ou condições pessoais recém mencionados; a prisão preventiva do conduzido, se nenhuma condição descarcerizante se demonstrar suficiente para garantir o comparecimento do imputado em juízo e a segurança de qualquer outra pessoa da comunidade, havendo presunção relativa de perigo nos casos de reincidência e de provável cometimento de crimes considerados de maior gravidade abstrata. As condições pessoais descarcerizantes potencialmente determináveis pelo Poder Judiciário estadunidense, isolada ou cumulativamente, como requisitos para a colocação do preso provisório em liberdade durante a discussão sobre a eventual imputação (conditions of release), são exemplificadas no 18 USC § 3142, “c”: designação de terceira pessoa, considerada confiável, para supervisionar e reportar ao juízo quaisquer violações, desde que esse terceiro possa razoavelmente assegurar que o imputado comparecerá em juízo e não colocará em risco qualquer pessoa da comunidade; manutenção do imputado no emprego ou, se desempregado, 19 20 21 V. LexisNexis Academic, nº de referência 500 U.S. 44; 111 S. Ct. 1661; 114 L. Ed. 2d 49; 1991 U.S. LEXIS 2528; 59 U.S.L.W. 4413; 91 Cal. Daily Op. Service 3503; 91 Daily Journal DAR 5506. No ano seguinte, 1992, no caso Powell v. Nevada (511 U.S. 79), a U.S. Supreme Court explicitou a inaplicabilidade da decisão McLaughlin a situações anteriores, sob pena de insegurança jurídica. O ordenamento estadunidense diferencia os juízes vitalícios (judges) dos detentores de mandato (magistrate judges ou simplesmente magistrates). No âmbito penal, geralmente os judges cuidam do julgamento de casos considerados mais complexos ou graves, e aos magistrate judges são atribuídos casos reputados mais simples e também a grande maioria das questões relativas a prisões provisórias, fianças e outras medidas cautelares pessoais. V. DEL CARMEN, Rolando V. Criminal procedure – law and practice. 8ª ed. Belmont: Wadsworth, 2010, p. 8-10 e 182-184. V. Caso Sicar et alii versus Chertoff et alii, julgado em 27.08.2008 pela Corte de Apelos da Décima Primeira Região (v. LexisNexis nº de referência 541 F.3d 1055; 2008 U.S. App. LEXIS 18375; 21 Fla. L. Weekly Fed. C 1030). Página 10 de 24 sob compromisso de ativamente procurar trabalho regular; ingresso ou manutenção do imputado em programa educacional; proibição de frequentar determinados lugares ou associações; proibição de viajar; proibição de aproximação entre suposto agressor e suposta vítima, ou entre suposto infrator e suposta testemunha; dever de apresentação periódica perante órgão policial, judicial ou outra repartição pública; imposição de datas, horários e compromissos rotineiros ao imputado (specified curfew); interdição do porte arma; interdição do uso de álcool ou drogas, salvo necessidade médica comprovada; sujeição a tratamento clínico, psiquiátrico ou psicológico, incluindo-se o ambulatorial ou a internação para controlar dependências químicas; consignação judicial de dinheiro ou outro bem, como caução garantidora do comparecimento do imputado em juízo; consignação judicial de títulos de alta liquidez (bail bonds), geralmente garantidos por terceiro financiador, igualmente dados como caução assecuratória do comparecimento do imputado em juízo; recolhimento prisional em parte do dia ou da noite; imposição de qualquer outra condição que seja razoavelmente necessária para assegurar o comparecimento do imputado em juízo e a segurança de outra pessoa da comunidade. Tratando-se de sistema amadurecido há quase trinta anos (antes dos quais já havia considerável legislação sobre o tema), a jurisprudência dos Estados Unidos já o assimilou, tanto do ponto de vista procedimental quanto de sua conformação aos princípios constitucionais de liberdade, presunção de inocência, devido processo e defesa, como se verá nos exemplos citados ao longo deste trabalho22. Em regra, a abordagem jurisprudencial estadunidense é pragmática e leva em conta os grandes custos gerados pela manutenção de pessoas desnecessariamente em cárcere 23. Entretanto há precedentes excessivamente rigorosos, como o Caso USA versus Roberto Fortes Neves, julgado em 31.05.2001 pela Corte Federal de Apelos da Primeira Região 24. Nesse processo, o cidadão caboverdiano, então com vinte e cinco anos de idade, fora preso por reingresso ilegal nos EUA, país onde vivera clandestinamente desde a infância até sua condenação por tráfico de 22 23 24 Já se adiante que, tratando-se de tema com grande relevância fática e já pacificado quanto às principais controvérsias jurídicas, são muitas – e sempre renovadas – as decisões regionais, mas poucas – e já antigas – as decisões da US Supreme Court sobre o tema (destacando-se, entre estas, os casos USA versus Salerno, sobre o qual se comentará abaixo, e Bell versus Wolfish). V. parte final do voto concorrente do Juiz-presidente Breyer no Caso USA versus Carmen Tortora, julgado pela Corte Federal de Apelos da Primeira Região, em 27.12.1990 (v. LexisNexis Academic, nº de referência 922 F.2d 880; 1990 U.S. App. LEXIS 22459). V. LexisNexis Academic, nº de referência 11 Fed. Appx. 6; 2001 U.S. App. LEXIS 28362. Página 11 de 24 drogas, dois anos antes. Logo levado à presença do competente magistrate, este, contrariando o requerimento de prisão cautelar formulado pela acusação, concedeu ao preso liberdade provisória, condicionada ao cumprimento de três conditions of release: 1) assinatura de compromisso de comparecimento (appearence bond) sob caução de cento e cinquenta mil dólares estadunidenses, dos quais quinze mil deveriam ser pagos no ato da liberação; 2) confinamento do favorecido na casa de sua mãe, a qual deveria se comprometer em juízo por sua custódia; 3) constante monitoração, através de tornozeleira eletrônica. Acolhendo recurso da acusação, a qual insistia no grande risco de fuga do acusado, para não se ver novamente deportado para Cabo Verde, a corte distrital, secundada pela Corte Federal de Apelos da Primeira Região, consideraram insuficientes as conditions of release impostas pelo magistrate e determinaram a prisão cautelar do imputado. Como se depreende da bibliografia e jurisprudência consultadas, os EUA dão especial destaque à fiança (bail) e ao compromisso de comparecimento sob caução (appearence bond), especialmente por sua praticidade, muitas vezes associados às outras referidas conditions of release, as quais são fiscalizadas por agentes in loco ou através de monitoramentos remotos (por telefone, através da inquirição de terceiros próximos do imputado, por tornozeleiras eletrônicas etc.)25. O sistema brasileiro de medidas cautelares diversas da prisão praticamente veio a ser instituído pela Lei Federal nº 12.403/2011, com a inserção de variado rol no art. 319 do nosso CPP, rompendo-se com o binário reducionista prisão cautelar ou liberdade provisória. Gustavo Badaró sinaliza que, também no novo ordenamento brasileiro, é possível a verificação de imposições pessoais coercitivas e interditivas 26. Numa primeira leitura, aparentam caráter coercitivo, por sujeitarem o imputado a prestações ativas provavelmente contrárias a seu interesse e cotidiano, o 25 26 Cf. SAMAHA, Joel, Criminal procedure, obra já citada, p. 398-407. DEL CARMEN, Rolando V. Criminal procedure – law and practice, obra já citada, p. 182-184. FEDERAL JUDICIAL CENTER. The Bail Reform Act of 1984, obra já citada, p. 1-6 e 37-39. Na jurisprudência, v. Caso USA versus Roberto Fortes Neves, recém citado, e todos os outros mencionados ao longo deste trabalho. BADARÓ, Gustavo, Processo Penal, obra já citada, p. 773. Página 12 de 24 comparecimento periódico em juízo, o recolhimento domiciliar parcial, a internação provisória nos casos de provável inimputabilidade ou semi-imputabilidade e a fiança (incisos I, V, VII e VIII do mencionado art. 319). Por outro lado denotam cunho interditivo, uma vez que impõem abstenções, tolerâncias e intervenções extraordinárias na autodeterminação do imputado, a proibição de acesso ou frequência a determinados lugares, a proibição de manter contato com pessoa determinada, a proibição de se ausentar da comarca, a suspensão do exercício de função pública ou de atividade de natureza econômica ou financeira e a monitoração eletrônica (incisos II, III, IV, VI e IX do art. 319)27. Como dito no início do trabalho, o estabelecimento de variadas medidas cautelares pessoais diversas da prisão teve boa acolhida pela doutrina brasileira, apesar de críticas a aspectos puntuais28. A jurisprudência brasileira começa a tomar conhecimento do novo sistema 29, 27 28 29 Classificação parcialmente diversa é apresentada em DALIA, Andrea Antonio, FERRAIOLI, Marzia, Manuale di diritto processuale penale, obra já citada. Para tais autores, as medidas cautelares coercitivas são as que restringem a liberdade ambulatorial, mediante aprisionamento (misure di coercizione custodiale) ou através da imposição de lugares aonde se deva ir ou não ir (misure di mera coercizione); e as medidas cautelares interditivas são as que comprimem o exercício de faculdades e direitos referentes às relações profissionais, familiares, ético-sociais, econômicas e políticas do cidadão. Desse modo, há divergência, por exemplo, quanto à proibição de sair do território nacional, à proibição de frequentar determinados lugares e à proibição de aproximação entre suposto agressor e suposta vítima. Para os autores italianos, tais medidas seriam coercitivas. Aqui se sustenta que são interditivas, uma vez que impõem abstenções, tolerâncias e intervenções extraordinárias na autodeterminação do imputado. Especialmente peculiares são as internações compulsórias em instituições psiquiátricas, nos casos de provável inimputabilidade ou semi-imputabilidade: são primordialmente coercitivas, uma vez que se impõem, na maioria das vezes, contra a vontade do imputado, não raro com necessidade de força; entretanto, há nelas também caráter interditivo, uma vez que dão ensejo à relativização de vários atos processuais dependentes da vontade do imputado (por exemplo, constituição de advogado e renúncia ao direito de recorrer). V., além das obras já citadas, FERNANDES, Og, et al. (coords.). Medidas cautelares no processo penal. Prisões e suas alternativas. Comentários à Lei 12.403, de 04.05.2011. São Paulo: RT, 2011. “(...) PROCESSO PENAL. HABEAS CORPUS. (...) V – Pedido sucessivo de prisão domiciliar. Paciente que se enquadra no inciso II do art. 318 do CPP, referente ao estado de extrema debilidade e/ou doença grave. Condição clínica com embasamento documental e até o momento, corroborada por laudo elaborado por peritos oficiais da Polícia Federal a partir de determinação do próprio MM. Juízo de origem. Possibilidade de a autoridade judiciária de primeiro grau empreender o necessário controle de sua permanência no lar, inclusive optando por conjugar a prisão cautelar domiciliar com a monitoração eletrônica de que trata o art. 319, IX do CPP. VI – Ordem denegada com relação ao pedido de revogação da custódia preventiva e parcialmente concedida com relação ao pedido sucessivo para assegurar a prisão domiciliar do art. 318, II do CPP, sem prejuízo de sua combinação com o art. 319, IX do CPP a critério da autoridade impetrada.” (HC 201202010033887, Rel. Des. Fed. Abel Gomes, TRF2, 1ª Turma Especializada, publicado no E-DJF2R de Página 13 de 24 não sem relutância30. 3. Semelhanças entre os sistemas italiano, chileno, estadunidense e brasileiro de medidas cautelares pessoais diversas da prisão A análise comparativa aponta características comuns entre os quatro sistemas aqui avaliados. Os quatro sistemas, valorizadores da liberdade, da presunção de inocência e da ampla defesa, demonstram preferência por medidas não aprisionadoras antes do julgamento da causa, em caráter alternativo à prisão preventiva, como se depreende do art. 310, II, segunda parte, do CPP brasileiro; do art. 275, 3, do CPP italiano; do art. 139, segunda parte, do CPP chileno; e, nos EUA, do 18 USC § 3142, “e”. Nos EUA, deve-se ressaltar que as medidas se demonstram alternativas em relação à preventive detention, mas substitutivas em relação à prisão por flagrante, por mandado e quaisquer outras detenções anteriores ao julgamento da causa. 30 09.05.2012). V. tb.: “Liberdade provisória concedida em primeiro grau aos pacientes mediante o pagamento da fiança arbitrada em um salário mínimo. Pleito de dispensa da fiança. Possibilidade. Tratando-se de acusados hipossuficientes, a teor do art. 350 do CPP, deve ser concedida a liberdade provisória, fixando-se, entretanto, além do já disposto nos art. 327 e 328 do CPP, a medida cautelar disposta no art. 319, I, do CPP, consistente no comparecimento semanal em juízo para informar e justificar atividades. Ordem concedida.” (TJSP. Habeas Corpus 0054235-97.2012.8.26.0000. Autos de origem 0021705-84.2012.8.26.0050. Rel. Des. Edison Brandão. Julgado em 19.06.2012). “HABEAS CORPUS. HOMICÍDIO QUALIFICADO. PRISÃO PREVENTIVA. REVOGAÇÃO. IMPOSSIBILIDADE. CUSTÓDIA CAUTELAR. REQUISITOS. Decreto de custódia cautelar pautado em indícios de autoria delitiva e prova da materialidade, uma vez oferecida e recebida a denúncia. Necessidade da segregação cautelar, para a garantia da ordem pública. Gravidade concreta da conduta. Perigosidade do agente que se depreende dos próprios fatos descritos na denúncia. Evidências de envolvimento do paciente no crime de homicídio mediante paga da própria vítima. Elementos fáticos claros a justificar a prisão preventiva. Medidas cautelares diversas da prisão que não se mostram aptas, nesta hipótese, à salvaguarda da ordem pública. Ao paciente é imputada a prática de crime hediondo, ao qual a lei veda a concessão de liberdade provisória com fiança. Primariedade, residência fixa e ocupação lícita não bastam, de per si, para conceder a mercê de aguardar o processamento da ação em liberdade. Alegações, ademais, não comprovadas na impetração. Constrangimento ilegal. Inexistência. Ordem de habeas corpus denegada.” (Habeas Corpus nº 026809436.2011.8.26.0000. Rel. Des. Amado de Faria. Julgado em 01.03.2012.) Página 14 de 24 Mesmo no caso da medida cautelar mais polêmica do rol, a monitoração eletrônica, a jurisprudência dos países analisados a tem compreendido como instrumento válido e menos aflitivo que a prisão provisória, desde que o equipamento empregado (geralmente uma tornozeleira) mantenha o grau razoável de discrição e comodidade. Um bom exemplo disso é a decisão da Corte Federal de Apelos da Nona Região, julgada em 28.12.2010, no Caso USA versus Robert Ernest Peeples 31. Acusado de receber dolosamente cerca de cinco mil arquivos eletrônicos de pornografia infantil, ao cidadão estadunidense Robert Ernest Peeples foram impostas, como conditions of release decorrentes do 18 USC § 3142 e da Lei Walsh sobre crimes contra crianças e adolescentes, sancionada em 2006, o cumprimento de agenda diária determinada pelo magistrate (specified curfew) e a monitoração eletrônica. Irresignado, Peeples alegou, perante a corte de apelos, que, no seu caso concreto, o endurecimento trazido pela Lei Walsh violaria a Quinta Emenda (devido processo, aí incluída a presunção de inocência e a proporcionalidade), a Oitava Emenda (proibição de fiança excessiva) e o princípio da separação dos Poderes (interferência indevida do Legislativo no Judiciário), todos constantes da Constituição dos EUA. Improvendo o apelo, a Corte Federal da Nona Região entendeu que as conditions of release não violavam, naquele caso, as normas constitucionais alegadas. Especialmente quanto à proporcionalidade, a Corte de Apelos destacou que o magistrate havia estabelecido agenda diária (curfew) plenamente adequada à rotina do acusado (considerando trabalho, estudos e lazer), além de monitoração eletrônica suficientemente discreta e cômoda. Outro exemplo, também dos EUA, é a decisão da Corte Federal de Apelos da Segunda Região, nos EUA, julgada em 22.12.2011, no Caso USA versus Alon Wallach et alii (referência: 669 F.3d 78; 2011 U.S. App. LEXIS 25435). Entre outros pontos, cidadão israelense Alon Wallach, questionou, perante a corte de apelos, que o constrangimento causado pelo uso da tornozeleira eletrônica lhe compelira a aceitar acordo desfavorável para se ver logo livre do caso penal, no qual fora inicialmente preso sob acusação de contrabando. Examinando o caso, a Corte Federal de Apelos da Segunda Região validou o acordo homologado em primeira instância, julgando, entre outros pontos, que o questionado equipamento de monitoração fora instalado sob padrões condizentes, não se constituindo em justificativa adequada para a alegação de 31 V. LexisNexis Academic, nº de referência 630 F.3d 1136; 2010 U.S. App. LEXIS 26273. Página 15 de 24 ameaça, coação ou pressão ilegítima sob a livre vontade do então imputado. Por outro lado, como quaisquer instituições humanas, o sistema de cautelares descarcerizadoras depende das virtudes e vícios de seus operadores. Um triste exemplo de deturpação sistêmica, verificado nos EUA, entre vários outros, deu origem ao Caso USA versus Shynita Townsend, julgado pela Corte Federal de Apelos da Décima Primeira Região, em 13.01.2011 (referência: 630 F.3d 1003; 2011 U.S. App. LEXIS 655; 22 Fla. L. Weekly Fed. C 1677; decisão já passada em julgado; a US Supreme Court negou-se a reexaminar o caso – certioriari denied – em 16.05.2011, v. 179 L. Ed. 2d 1233, 2011 U.S. LEXIS 3592). No referido processo penal, a servidora pública (agente de custódia) Shynita Townsend foi condenada a quinze anos de prisão e dois anos de posterior liberdade supervisionada (supervised release) por ter recebido dinheiro e outras vantagens indevidas para não causar quaisquer embaraços ao descumprimento das conditions of release impostas a Humberto Febles, outrora preso e à época aguardando julgamento (em fase de pretrial) quanto a acusação de tráfico de drogas e roubo a mão armada. A Justiça dos EUA entendeu que, durante a liberdade provisória concedida a Humberto Febles, a referida agente de custódia chegou até a encobrir novos crimes praticados pelo cidadão que aquela deveria fiscalizar, pervertendo completamente o sentido das medidas cautelares diversas da prisão. Nos quatro sistemas, ao lado de medidas claramente cautelares, verificam-se outras não propriamente cautelares, referentes ao que, no Brasil, historicamente se denominou ordem pública32, como ainda hoje consignado no art. 312 do CPP brasileiro. Na Itália, o art. 274, 1, “c”, do CPP faz menção ao perigo do cometimento, pelo imputado, de graves delitos, com violência ou sob estrutura de criminalidade organizada. No Chile, o art. 140, “c”, do CPP se refere à situação de o imputado representar perigo para a segurança da sociedade ou do ofendido. Nos EUA, o 18 USC § 3142, “e”, alude à impossibilidade de razoável proteção de qualquer outra pessoa e da comunidade, na hipótese de liberdade do imputado. Verifica-se, também, a adoção expressa dos parâmetros de legalidade (em 32 ZANOIDE DE MORAES, Maurício. Presunção de inocência no processo penal brasileiro: análise de sua estrutura normativa para a elaboração legislativa e para a decisão judicial. Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2010, p. 382-398. Página 16 de 24 maior ou menor grau33), judicialidade, motivação, adequação, necessidade e razoabilidade. Observa-se a valorização do instituto da fiança. Nos EUA, é consagrado o direito constitucional à não-imposição de fiança excessiva, positivado na Oitava Emenda. A US Supreme Court, julgando o Caso U.S. versus Salerno34, reafirmou a inadmissibilidade do abuso das fianças, mas entendeu válido o Bail Reform Act de 1984 e suas disposições quanto à prisão preventiva, especialmente nos casos em que há objetivos indícios de que o imputado tem atuação junto à criminalidade organizada. Além da fiança, são medidas comuns aos quatro sistemas: prisões domiciliares, proibição de sair do território nacional, dever de apresentação periódica, a proibição de frequentar determinados lugares, a imposição de permanência em determinado espaço, o afastamento compulsório da casa familiar e a proibição de aproximação entre suposto agressor e suposta vítima. Percebem-se, como outros traços comuns, a possibilidade de cumulação de medidas e de imposição de medidas aprisionadoras em caso de descumprimento das cautelas alternativas. Um bom exemplo dessa segunda hipótese é a recente decisão da Corte Federal de Apelos da Sexta Região, nos EUA, julgada em 13.02.2012, no Caso USA versus Shawn Taylor (referência: 12a0167n.06; 461 Fed. Appx. 459; 2012 U.S. App. LEXIS 2822; 2012 FED App. 0167N (6th Cir.)). O cidadão estadunidense Shawn Taylor, acusado de porte ilegal de drogas e arma, fora submetido a monitoração eletrônica pelo competente magistrate, como condição imposta para aguardar em liberdade a fase de preparação da audiência de julgamento (pretrial). Pouco após, na tentativa de se tornar inacessível para as autoridades, Taylor destruiu sua tornozeleira. Foi emitida ordem de prisão, somente sendo o fugitivo localizado três meses depois. Preso cautelarmente até a audiência de julgamento, Taylor veio a ser condenado, condicionando-selhe o direito a futuras progressões penitenciárias, entre outras exigências, ao ressarcimento ao Estado de parte das despesas causadas com a destruição da tornozeleira (fixando-se, na ocasião, 33 34 V. considerações abaixo sobre o chamado poder geral de cautela nos sistemas analisados. 481 U.S. 739 (1987). Página 17 de 24 o valor de quinhentos e setenta e cinco dólares estadunidenses). Em grau recursal, a Corte Federal de Apelos da Sexta Região julgou corretas ambas as questões processuais, tanto a imposição de prisão cautelar após a destruição da tornozeleira, quanto o condicionamento do direito a futuras progressões penitenciárias ao ressarcimento do valor fixado como prejuízos ao Estado. Quanto à possibilidade de imposição de medidas aprisionadoras em caso de descumprimento das cautelas alternativas, podem ser citados, entre vários outros, os casos USA versus Aktham Abuhouran, julgado em 28.10.2010 pela Corte Federal de Apelos da Terceira Região (referência: 398 Fed. Appx. 712; 2010 U.S. App. LEXIS 22563), e Sylvanus Biko Freeman versus US Attorney General (referência: 596 F.3d 952; 2010 U.S. App. LEXIS 4784), julgado em 08.03.2010 pela Corte Federal de Apelos da Oitava Região. 4. Diferenças entre os sistemas italiano, chileno, estadunidense e brasileiro de medidas cautelares pessoais diversas da prisão A análise comparativa também aponta características não compartilhadas entre os quatro sistemas – e, lamentavelmente, o Brasil não distoa em favor da vanguarda. Verifica-se, no Chile, na Itália e nos EUA, forte característica de oralidade quanto ao sistema de medidas cautelares, cujo cabimento é sempre examinado em audiência. No Brasil, diversamente, a avaliação judicial sobre o tema é feita nos autos, através de arrazoados e decisões escritas. Tema bastante polêmico é o do denominado poder geral de cautela. No Chile, o art. 155 do CPP diz que as medidas cautelares pessoais descarcerizadoras estão ali enumeradas. Na Itália, o primeiro dispositivo título do CPP dedicado às medidas cautelares pessoais, art. 272, diz claramente que “as liberdades da pessoa somente podem ser limitadas com medidas cautelares mediante as normas dispostas no presente título”. Nesses dois países, portanto, é expressamente vedado a criação jurisprudencial quanto a medidas cautelares diversas. Página 18 de 24 Diversamente, nos Estados Unidos, 18 USC § 3142, “c”, “B-XIV”, dispõe expressamente que o magistrate poderá impor, nas conditions of release, qualquer outra condição que seja razoavelmente necessária para assegurar o comparecimento do imputado em juízo e a segurança de outra pessoa da comunidade. Vale dizer: é expressamente permitida a criação jurisprudencial quanto a medidas cautelares diversas. Por outro lado, a jurisprudência estadunidense não recomenda que o magistrate leve às últimas consequências a busca criativa de medidas cautelares descarcerizadoras, especialmente quando essas causarem custos estatais não previstos. Como se pode ler parte final do voto concorrente do Juiz-presidente Breyer no Caso USA versus Carmen Tortora, julgado pela Corte Federal de Apelos da Primeira Região, em 27.12.1990, o magistrate não deve, por exemplo, determinar à polícia que exerça constante vigilância sob o imputado, pois isso, se feito repetidamente, prejudicará sensivelmente o serviço público policial. Se, no exercício do poder geral de cautela, o magistrate não vislumbrar medidas descarcerizadoras razoáveis, cabe-lhe a decretação da prisão cautelar35. No Brasil, não há norma expressa sobre o poder geral de cautela no âmbito criminal. Há, entretanto, tendência doutrinária à sua inadmissão 36, uma vez que a redação atual do CPP é bastante detalhista e é inaugurada pelo sugestivo artigo 282, segundo o qual “as medidas cautelares previstas neste Título deverão ser aplicadas observando-se (...)”. Aparentemente, não há possibilidade de aplicação de medidas cautelares fora das previstas naquele Título. Tema lamentavelmente não tratado pelo sistema brasileiro é o estabelecimento de prazo para as cautelares impostas e para sua revisão. Perdeu o legislador brasileiro a oportunidade de exercer maior controle sobre notórios abusos, sempre mais sentidos pelos desprovidos de defesa mais atuante. Há, por fim, medidas cautelares pessoais diversas da prisão não contempladas 35 36 V. LexisNexis Academic, nº de referência 922 F.2d 880; 1990 U.S. App. LEXIS 22459. V. SCARANCE, obra citada, p. 285-324, e BADARÓ, obra citada, p. 708-709. Página 19 de 24 em alguns dos sistemas aqui comparados. O Chile, por exemplo, não adota, pelo menos não expressamente, a monitoração eletrônica, a suspensão dos exercícios do poder familiar, de funções públicas e de atividades profissionais ou empresariais, admissíveis nos outros três países comparados. 5. Conclusão À guisa de conclusão, pontue-se que o Brasil andou bem ao instituir sistema variado de medidas cautelares pessoais diversas da prisão, sintonizando-se com a tendência descarcerizante dos países humanamente desenvolvidos. Resta, agora, à doutrina e à jurisprudência o longo caminho da interpretação e aplicação de normas com enorme potencial transformador da terrível realidade carcerária brasileira. Bibliografia BADARÓ, Gustavo H. R. Ivahy. Processo penal. Rio de Janeiro: Campus Jurídico, Elsevier, 2012. BARROS, Romeu Pires de Campos. Processo penal cautelar. Rio de Janeiro: Forense, 1982. BLANCO SUAREZ, Rafael. DECAP FERNANDEZ, Mauricio. MORENO HOLMAN, Leonardo. ROJAS CORRAL, Hugo. 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Página 21 de 24 ZANOIDE DE MORAES, Maurício. “Análise judicial da prisão em flagrante: por uma abordagem sistêmico-constitucional”. In: Revista do Advogado – Reforma do Processo Penal, n. 113, setembro/2001, p. 92-100. ________. Presunção de inocência no processo penal brasileiro: análise de sua estrutura normativa para a elaboração legislativa e para a decisão judicial. Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2010. Página 22 de 24 Quadro anexo ao artigo “Medidas cautelares pessoais diversas da prisão”: comparação esquemática Semelhanças entre os ordenamentos jurídico-criminais de Brasil, Itália, Chile e Estados Unidos da América: - preferência por medidas não aprisionadoras antes do julgamento da causa; provisoriedade; - adoção expressa dos parâmetros de legalidade (em maior ou menor grau), judicialidade, motivação, adequação, necessidade e razoabilidade; - valorização do instituto da fiança (nos E.U.A., é consagrado o direito à “não-imposição de fiança excessiva”); - possibilidade de cumulação de medidas; - medidas comuns: prisões domiciliares, proibição de sair do território nacional, dever de apresentação periódica, a proibição de frequentar determinados lugares, a imposição de permanência em determinado espaço, o afastamento compulsório da casa familiar e a proibição de aproximação entre suposto agressor e suposta vítima. Quadro comparativo das diferenças: Brasil Itália Art. 319 do CPP brasileiro. Art. 280-290 italiano. Chile do E.U.A. CPP Art. 155 do CPP chileno. U. S. Code, Título 18, § 3142. Divisão entre prisão e Divisão entre medidas medidas cautelares coercitivas (misure di diversas da prisão. coercizione custodiale e misure di mera coercizione) e interditivas. Divisão entre citação, detenção, prisão preventiva e “outras medidas cautelares pessoais”. Divisão entre liberdade sob compromisso pessoal de comparecimento aos atos e termos do processo, liberdade sob caução financeira, liberdade sob condições complementares e, em último caso, prisão provisória. A lei é silente quanto a eventual “poder geral de cautela”, mas a tendência doutrinária e jurisprudencial é no sentido de sua inexistência. A lei é expressa quanto à inexistência de “poder geral de cautela” (art. 272 do CPP). A lei é expressa quanto à inexistência de “poder geral de cautela” (art. 155 do CPP). O item “c” do § 3142 do Título 18 do U. S. Code admite certo “poder geral de cautela” judicial. Outras divergências importantes em relação aos outros três sistemas: - déficit na oralidade, caracterizado pela desnecessidade de audiência sobre a situação processual dos imputados (na prática, a respectiva análise judicial é apenas baseada nos autos escritos, sem que o juiz tenha tido qualquer contato com o imputado); - ausência de prazo para revisibilidade das medidas; sistema muito recentemente reformado (pela Lei Federal n. 12.403/2011), ainda pouco assimilado pela jurisprudência. O sistema italiano de medidas cautelares diversas da prisão, quase tanto quanto o estadunidense, já apresenta significativo grau de consolidação. Nele se verificam oralidade, revisibilidade periódica das medidas e rol bastante variado (mas taxativo) de opções legais conferidas ao juiz competente. O sistema chileno é relativamente recente (instituído em 2000, com reformas em 2005 e 2012), mas já minimamente assimilado pela jurisprudência. Nele se verificam oralidade, revisibilidade periódica das medidas e rol taxativo e menos variado de opções legais conferidas ao juiz competente. Medidas encontradas nos outros três ordenamentos e não adotadas no Chile (ao menos, não expressamente): monitoramento eletrônico e medidas cautelares interditivas (suspensão dos exercícios do poder familiar, de funções públicas e de atividades profissionais ou empresariais) O sistema estadunidense de medidas cautelares diversas da prisão é, entre os pesquisados, o de mais forte consolidação social e jurídica. Nele se verificam oralidade, revisibilidade periódica das medidas e rol bastante variado (e não taxativo) de opções legais conferidas ao juiz competente (magistrate). As denominadas conditions of release são exemplificadas no U. S. Code, Título 18, § 3142, mas há margem para judicial discretion, o que gera medidas inovadoras, como a fiscalização através do empregador do imputado.