convergência regulatória

Transcrição

convergência regulatória
CONVERGÊNCIA REGULATÓRIA
em MEDICAMENTOS
na AMÉRICA DO SUL:
REFLEXOS COMERCIAIS E POLÍTICOS
Ricardo Camargo Mendes
Lucas Correa
Richard Ronald Fogaça
Estudo: Convergência Regulatória em
Medicamentos na América do Sul – Reflexos
Comerciais e Políticos
Autores:
Ricardo Camargo Mendes – Coordenador
(Sócio-Diretor Prospectiva Consultoria)
Lucas Correa (Consultor Prospectiva Consultoria)
Richard Ronald Fogaça (Trainee Prospectiva Consultoria)
1
ÌNDICE
Introdução ........................................................................................................................... 3
1. Aspectos teóricos sobre convergência regulatória.......................................................... 9
1.1. A experiência europeia e a criação da Agência Europeia de Medicamentos...... 13
1.2. Conferência Internacional de Harmonização..................................................... 18
1.3. A Agência Trans-Tasmaniana sobre Produtos Terapêuticos.............................. 21
1.4. Rede Pan-Americana sobre Harmonização Regulatória de Medicamentos
(PAHRF)............................................................................................................ 22
1.5. Considerações sobre os processos de harmonização abordados....................... 26
2. O Panorama Sul-Americano.......................................................................................... 29
2.1. Uma breve visão da Realidade Brasileira.......................................................... 29
2.2. Sistemas de Saúde em Perspectiva Comparada................................................ 32
2.3. A Regulação na América do Sul......................................................................... 36
2.4. Comércio Exterior............................................................................................. 45
3. O Processo de Convergência Regulatória...................................................................... 51
3.1. O MERCOSUL e o SGT-11.................................................................................. 51
3.2. Reflexos de uma harmonização incompleta..................................................... 59
3.3. O Processo de Convergência Política em Saúde................................................ 64
3.4. Os fóruns políticos de convergência................................................................. 64
3.5. Considerações e cenários sobre processos de convergência.............................. 72
4. Conclusão..................................................................................................................... 79
2
Introdução
As especificidades socioeconômicas dos países da América do Sul fazem que o setor
farmacêutico seja estratégico, por relacionar questões de saúde pública com questões
de produção industrial, de pesquisa, desenvolvimento e inovação. Trata-se de
elementos chave para a alavancagem industrial, tecnológica e a inserção
internacional, tanto econômica quanto política, dos países sul-americanos. Dentro
desse contexto, a questão da convergência regulatória torna-se central na agenda dos
agentes públicos e das empresas do setor na região, uma vez que, além de permitir a
livre circulação de produtos dentro do subcontinente, viabilizando ganhos de escala
consideráveis, abre também a possibilidade de integração e de compartilhamento de
experiências nos sistemas de saúde pública dos países.
A análise proposta por este estudo é ampla, partindo da própria diversidade de
significados do termo “convergência”. Primeiramente, pode-se entender este
movimento em sentido estrito, quando “convergência” é utilizado como sinônimo de
harmonização regulatória, ou suas duas outras possibilidades, a equivalência e o
reconhecimento mútuo.
A harmonização é o processo pelo qual duas ou mais regras e procedimentos de dois
ou mais países são modificados para que se tornem idênticos em conteúdo e
significado. Dessa forma, quando os requisitos solicitados por uma das regras são
atendidos, os das outras, automaticamente, também o são.
Por sua vez, a equivalência é um acordo entre duas partes que reconhecem que,
apesar de diferentes, terão os mesmos resultados em suas regulações, de forma que,
atendendo a qualquer uma das regras abrangidas pela equivalência, o produto ou
serviço poderá ter livre circulação. Por fim, o reconhecimento mútuo é o procedimento
pelo qual se autoriza determinado produto ou serviço, ainda que ele não siga os
padrões colocados pelas regras locais, desde que ele seja reconhecido por uma
segunda parte e ambos os lados possuam um acordo de reconhecimento mútuo. Por
seu turno, os produtos e serviços, atendendo os padrões exigidos pelo primeiro local,
também terão livre circulação pelo segundo, mesmo que as regulações não sejam
equivalentes ou não estejam harmonizadas.
Esses três conceitos, o de harmonização, de equivalência e de reconhecimento
mútuo, definidos inclusive pela OMC, são um dos pilares da livre circulação de
mercadorias. Ainda que não existissem mais tarifas de importação nos países, o livre
comércio continuaria sendo bastante inibido quando as regras impostas a
3
determinados produtos, dentre elas as sanitárias para medicamentos, fossem
díspares. Aumentam-se custos, perdem-se ganhos de escala e surgem falhas de
mercado.
Mas, além desse sentido estritamente comercial, o termo “convergência” também é
usado para apontar uma aproximação política, quando os agentes públicos alinham
políticas internas, para que sejam aplicadas de maneira semelhante e coordenada,
visando a objetivos comuns. E nesse ponto, está ocorrendo um inédito movimento de
“convergência política” na América do Sul, especialmente marcado pela União das
Nações Sul-Americanas (UNASUL), cuja discussão de problemas comuns na área de
saúde pública tem tomado destaque.
Dessa forma, na América do Sul1, observa-se dois movimentos, um de convergência
com caráter comercial e outro com caráter político, com capacidade de influência
mútua. Esse estudo aborda o tema nessas duas formas.
O intuito do estudo é justamente fornecer subsídios capazes de auxiliar no
entendimento de como o tema tem evoluído, nas suas duas percepções, nos
diferentes fóruns onde ele é discutido e implementado. Também objetiva analisar o
que foi já foi produzido em termos de resultados práticos e, a partir daí, com base nos
dados levantados, inferir os impactos da convergência, bem como discutir seus
possíveis rumos na América do Sul. No entanto, o estudo não tem caráter exaustivo,
muito pelo contrário. Ele traz a proposta maior de fomentar o debate e de colocar
pontos relevantes para tomadores de decisões, seja da área governamental ou da
iniciativa privada.
O principal modelo adotado para comparar o processo vivenciado atualmente pela
América do Sul é o da União Europeia (UE), que é, inclusive, fonte de inspiração do
MERCOSUL. A UE, nesse aspecto, é considerada um marco histórico de referência no
processo de formação de blocos econômicos no mundo. O surgimento desses blocos,
associado à integração global dos processos produtivos, provocou a mudança na
estrutura da legislação e dos regulamentos que disciplinam as atividades econômicas
e, no caso, a farmacêutica.2
Também a OMS vem auxiliando de forma contumaz o processo de harmonização no
setor farmacêutico, principalmente por meio das atividades de seu Comitê de
Especialistas em especificações farmacêuticas. Os documentos produzidos por esse
1Obs.:
2
Neste estudo não foram coletados dados sobre Guiana e Suriname.
Moretto, L.D., Harmonização regulatória para a indústria farmacêutica.
4
Comitê são publicados sob a forma de Technical Report Series.3 Uma vez aprovados
pela Assembleia Geral da OMS, esses relatórios podem ser diretamente adotados
pelas autoridades sanitárias das nações membros.4 A OMS também capitaneia a área
de farmacovigilância através do seu Centro Colaborador de Monitoramento
Internacional de Drogas em Uppsala, na Suécia.
Cabe ressaltar que a OMS, dentro da sua missão, também tem por escopo fazer que
medicamentos seguros, de qualidade e eficazes sejam accessíveis por aqueles que
deles necessitem, em qualquer parte do mundo. A OMS possui mandato constitucional
para agir enquanto autoridade diretora e coordenadora em trabalhos internacionais de
saúde e para desenvolver, estabelecer e promover regras internacionais para produtos
alimentícios, biológicos, farmacêuticos e similares.5
Box 1. A agenda da OMS para regulação de medicamentos
Na arena regulatória de medicamentos, o trabalho da Organização Mundial da Saúde
se pauta em alguns elementos:
- a proteção da saúde pública, assegurando disponibilidade regular de produtos
farmacêuticos de boa qualidade, seguros e eficazes e contribuindo para sua utilização
racional;
- normas globais e diretrizes que constituam uma rede de referência, devendo ser
adaptadas de acordo com necessidades específicas, prioridades e condições
individuais dos países;
- requisitos de regulação internacionalmente harmonizados como um processo
gradual, que possa contribuir para o alcance de metas de saúde pública quando
implementados em grupos relativamente homogêneos de países e quando levem em
consideração as diferenças existentes com relação às capacidades regulatórias
nacionais, devendo ser utilizados para fazer uma ponte entre esses países.
3
Para mais informações: http://www.who.int/biologicals/en/
Dentre as contribuições da OMS relacionadas a harmonização regulatória estão os seguintes
compêndios: Farmacopeia Internacional, Boas Práticas de fabricação, Denominações Comuns
Internacionais (DCI), Especificações para Preparações Farmacêuticas, Padrões de Referência,
Relação de Medicamentos Essenciais, Sistema de Certificação, dentre outros.
5 World Health Organization, The Impactof Implementation of ICH Guidelines in Non-ICH Countries,
Regulatory Support Series, No. 9, Geneva, 2002, p. 7.
4
5
Também é relevante observar que o desenvolvimento de políticas regulatórias e de
fiscalização contribui para a melhora da qualidade de vida das pessoas. São notórios
esses reflexos quando pensados o combate à pirataria de medicamentos e a retirada
do mercado de produtos com problemas de qualidade.
Na perspectiva da indústria farmacêutica, a existência de um mercado internacional
“fragmentado”, com diferentes políticas regulatórias, implica no aumento dos custos e
da imprevisibilidade sobre a regulação. Eles aumentam pois, entre outras coisas,
existe a necessidade de traduzir em linguagem compreensível as diferentes
regulações estrangeiras aplicáveis, a obrigação de contratar especialistas para
explicar as implicações dessas regulações e os custos relacionados à comprovação
de que os produtos fabricados estão em devida conformidade.
Na prática, a importância dessas questões fica evidente, por exemplo, nos diferentes
procedimentos e documentos exigidos na solicitação de um registro de autorização de
comercialização
de
um
determinado
medicamento;
o
mesmo
quanto
aos
procedimentos, altamente burocráticos, de desembaraço aduaneiro envolvendo
medicamentos.6
Além disso, muitas vezes, para que um produto ingresse em mercados diversos, ele
deve ser adaptado às regulações aplicáveis em cada país, o que, dependendo do
caso, impõe a adaptação da própria cadeia produtiva da indústria. Isso pode, inclusive,
inviabilizar a entrada de certos produtos em determinados mercados, se o custo
dessas adaptações não for compensado pelos ganhos que eles gerarem, dado o
tamanho da demanda. Nesse caso, as diferenças regulatórias caracterizam
verdadeiras barreiras à circulação dessas mercadorias.
Com relação à insegurança, as diferenças regulatórias, na ausência de regras comuns
internacionalmente aplicáveis, podem servir de instrumento para reserva de mercado,
ou seja, elas podem ser utilizadas pelo país como medida protecionista da produção e
da indústria locais, contra a competição de produtos vindos de outros países.
Não por acaso, a Organização Mundial do Comércio (OMC) propugna pelo fim das
medidas que se caracterizam como barreiras técnicas ao comércio (Technical Barriers
to Trade – TBT). Esse posicionamento começou a ser delineado já durante o Acordo
Geral sobre Tarifas e Comércio (General Agreement on Tarifs and Trade – GATT
6 Para mais detalhes ver estudo da Prospectiva Consultoria: Logística Internacional para a Indústria
Farmacêutica, elaborado para a Federação Brasileira da Indústria Farmacêutica (Febrafarma) em
setembro de 2007.
6
1947), que fazia referências gerais sobre a eliminação de barreiras nos seus artigos III,
XI e XX. No entanto, foi apenas ao final das negociações da Rodada de Tóquio que se
chegou ao Acordo Plurilateral sobre Barreiras Técnicas ao Comércio, em 1979. Esse
acordo deu lugar ao novo Acordo OMC sobre Barreiras Técnicas ao Comércio,
durante a Rodada do Uruguai, que veio reforçar e clarificar as provisões do Acordo
anterior.
Em um ambiente de regras harmonizadas, com uma noção de mercado de proporções
ampliadas, o ator econômico, dentro da dinâmica da sua cadeia produtiva, tem diante
de si a possibilidade de identificar oportunidades para agregar valor e gerar economias
de escala tendo em vista a integração das diferentes especificidades locais de cada
país, por meio da identificação de complementaridades entre os mercados (integração
produtiva) e de cadeias de distribuição globais.
Por outro lado, quando se trata da possibilidade de implementar regulações comuns
aos medicamentos7, alguns outros fatores devem ser igualmente considerados. O fato
de um país adotar padrões regulatórios elevados pode significar uma maior
preocupação com questões de saúde pública, com o objetivo de atender
às
necessidades da sua população; e, como a própria OMC reconhece, a proteção à
saúde pode constituir justificativa legítima para restringir a livre circulação de
mercadorias.8
Assim, tanto questões econômicas (da perspectiva dos atores privados estrangeiros e
nacionais) quanto de saúde pública se entrecruzam no tema da convergência
regulatória e da própria escolha do modelo regulatório a ser seguido internamente.
Mas elas não são as únicas, pois também outras características adjacentes aos países
são importantes, dentre elas sua própria capacidade econômica e de regulação. E o
fato de a indústria farmacêutica igualmente apresentar certas características
relevantes, dentre elas o elevado volume de capital necessário para sua
implementação, o número de trabalhadores que emprega e as especificidades das
demandas atingidas, também representa outros pontos de interferência nos temas.
7
Os processos de regulação se iniciam desde a concepção do medicamento (nas fases de pré-teste e
de teste clínicos) e se estendem até a sua fabricação e comercialização. A regulação também tem
por escopo garantir que os benefícios de um tratamento se sobreponham aos eventuais malefícios
que ele puder causar. Assim, não se trata apenas de cuidar efetivamente das doenças e dos
problemas de saúde existentes, o que é intuitivo, mas também de evitar agravos que podem ser
originados a partir da utilização desses produtos – o risco.
8 Apenas na medida necessária à proteção e de modo a interferir o mínimo possível nas trocas
comerciais.
7
Tendo esses pontos em vista, os países podem escolher entre padrões regulatórios
mais flexíveis para favorecer a entrada de novos atores no mercado, acirrando
disputas por preços e movimentando a economia, mas deixando de garantir, por outro
lado, certos padrões mais elevados de qualidade, ou optar por padrões regulatórios
mais exigentes, mantendo no mercado somente os atores mais bem preparados e
capacitados, tendo em vista o custo representado por estar de acordo com padrões
regulatórios rígidos. No entanto, nesse sentido, a proteção à saúde tenderá a estar
mais bem garantida, pela observância de regras mais estritas de produção e
fabricação.
Box 2: Síntese sobre o movimento de convergência regulatória
Por que o movimento de convergência emergiu?
1-) os processos de integração econômica regional num contexto de economia
globalizada;
2-) a criação de fóruns internacionais sobre harmonização regulatória e sobre proteção
da saúde humana; e
3-) as próprias demandas em saúde pública dos países, que se tornam cada vez mais
transnacionalizadas.
Quem é atingido?
Esses movimentos exercem pressão tanto sobre o setor produtivo quanto sobre o
setor de saúde, e acabam demandando uma reação sobre a sua forma de regulação.
Quais os impactos da convergência?
1) a regulação sanitária pode representar uma barreira técnica às trocas comerciais,
na medida em que, para circular em um determinado país, os produtos fabricados em
outro devem se conformar à regulação nacional daquele;
2) as regulações sanitárias têm por objetivo a proteção da saúde da população na
medida em que impedem que os produtos de qualidade, segurança e eficácia
duvidosas entrem no mercado nacional; no entanto, podem-se tornar uma barreira
técnica.
Dessa forma o estudo percorre as principais questões e a forma como os países sulamericanos tem interagido com o processo de convergência. Também traz alguns
exemplos internacionais de convergência, principalmente sobre o caso europeu. Ao
longo do texto serão apontadas as relações dos temas com a indústria farmacêutica,
sob o aspecto comercial e de planejamento. Por fim serão tratados propostas gerais
de condução do processo de convergência.
8
Capítulo 1: Aspectos teóricos sobre convergência
regulatória
Antes de entrar no tema da convergência especificamente, cabe definir alguns
conceitos relevantes para o mercado farmacêutico nos países e os condicionantes
internos determinantes na tomada de posição quanto à facilitação ou não do processo
de convergência regulatória. Isso ocorre porque a formulação e a implantação de uma
política farmacêutica não envolvem apenas os aspectos sanitários, mas também
aspectos industriais e de ciência e tecnologia, tais como referidos acima em termos
mais genéricos.
Sob a ótica da política industrial, quando relacionada ao setor farmacêutico, o que se
persegue é uma autonomia produtiva mínima, naqueles itens considerados essenciais,
até
mesmo
por
uma
questão
de
segurança
do
abastecimento,
aliada,
preferencialmente, a uma capacidade competitiva da indústria local. Sob a perspectiva
da política de ciência e tecnologia, a preocupação está voltada para a investigação, o
desenvolvimento e a melhoria tecnológica dos produtos, em um setor com grande
capacidade de concentrar e catalisar investimentos em inovação. Por fim, a política
sanitária não se preocupa apenas com a questão do acesso pela população aos
medicamentos, mas também com a fiscalização e o controle da produção desses
medicamentos para que produtos de qualidade, com segurança e eficácia
asseguradas, cheguem até essa população, seja por meio dos sistemas de saúde ou
do mercado.
A própria concepção do que é medicamento também difere de acordo com o ponto de
análise adotado: na perspectiva da política sanitária, o medicamento é um bem social,
enquanto na perspectiva da política industrial e na de ciência e tecnologia, o
medicamento é um bem de consumo. Essas diferenciações e complementaridades
são imprescindíveis quando se quer compreender aquilo que está envolvido no que o
presente estudo denomina convergência regulatória.9
Mas, apesar dessas divergências, há pontos em comum. A política sanitária
compartilha com a política industrial a necessidade da redução de custos; e
compartilha com a política de ciência e tecnologia a preocupação por promover
avanços terapêuticos. A política de ciência e tecnologia compartilha com a política
industrial a necessidade de estímulo para a inovação e para a melhoria da qualidade.
9
Organização Pan-Americana da Saúde, Saúde nas Américas, Washington D.C., OPAS: 2007.
9
Interessante notar que essas interações explicam o papel fundamental que os
sistemas de saúde vêm adquirindo na realidade dos países, não apenas na produção
direta de saúde e de bem-estar aos cidadãos, mas também na economia de um modo
geral. Eles passaram a ser considerados como verdadeiros setores produtivos,
geradores de riquezas, tanto diretamente, por habilitarem indivíduos doentes ao
retorno ao setor produtivo ou evitando que dele se afastem, pela prevenção de
doenças; quanto indiretamente, por conta dos setores produtivos que movimentam
(tais como os de insumos, medicamentos, equipamentos), sendo vistos, assim, como
um componente indispensável ao desenvolvimento econômico não apenas de um
país, mas também, em alguns casos, de um bloco de países, tal como vem sendo
verificado na América do Sul.
Como apresentado anteriormente, o termo convergência regulatória, em si, é um
termo que abarca mais de um significado, conforme o contexto em que é utilizado. No
presente estudo, ele designa ora a convergência da regulamentação sanitária
aplicável ao setor de medicamentos, ora os movimentos de alinhamento políticodiplomático em matéria de saúde, de comércio ou outros, entre os países. Nesses
aspectos, tanto a dinâmica interna dos países, quanto o seu posicionamento externo
(em fóruns internacionais), vão oferecer subsídios para a análise objeto do presente
estudo.
Em seu sentido estrito, convergência regulatória é identificada com o conceito de
harmonização, a aproximação das regras ou sua replicação exata nos diferentes
países, a exemplo do que ocorre no MERCOSUL. Também pode identificar
procedimentos de reconhecimento mútuo e de equivalência. A equivalência consiste
no reconhecimento de que regulações, apesar de serem diferentes em conteúdo em
cada país, pelo fato de atingirem os mesmo objetivos, permitem que se considerem
equivalentes, autorizando a livre circulação de bens e serviços contemplados por
todos os Estados parte. Já o reconhecimento mútuo é a aceitação, por países
distintos, dos testes e procedimentos de aferição de conformidade de um com relação
ao outro, apesar de poderem adotar, na prática, metodologias de análise, exigências e
metas diferentes.
No seu sentido amplo, a convergência se insere em um movimento de aproximação
política e de alinhamento entre os países, não necessariamente focado no produto
final da convergência regulatória de medicamentos, ou seja, na harmonização da
regulação técnica, equivalência ou reconhecimento mútuo, mas podendo conduzir a
10
ela pelo alinhamento de princípios e diretrizes de setores mais amplos como o da
saúde, o de comércio e o industrial.
Assim, a convergência pode promover uma maior aproximação e concertação entre os
países com vistas, justamente, a reduzir as suas diferenças naqueles aspectos que
guardam alguma relação com a adoção de um padrão regulatório mais ou menos
elevado, por exemplo, a capacitação das autoridades sanitárias nacionais, o estímulo
à produção nacional de medicamentos de forma a reduzir a dependência de produtos
importados, a implementação de políticas de acesso a medicamentos mais baratos
(genéricos) por parte da população, etc. Nesse sentido, os efeitos da convergência se
aproximam aos da soft law, sem o caráter compulsório (binding).
Para contribuir com o entendimento dessas duas dinâmicas na América do Sul, serão
combinadas duas teorias das relações internacionais, com o intuito de analisar a
relação existente entre as agendas interna e externa dos países e a construção da
cooperação e da liderança regionais nas relações internacionais, respectivamente: a
teoria dos jogos de dois níveis de Robert Putnam e a teoria dos regimes internacionais
de Stephen Krasner.
Durante muito tempo os Estados eram indicados na literatura como atores unitários e
racionais. O papel dos atores intra-estatais não era abordado no debate acadêmico. A
teoria de Putnam busca esclarecer o papel dos atores locais na construção da posição
negociadora do país nas tomadas de decisão internacionais. O primeiro nível de sua
teoria é aquele onde se encontram os Estados Nacionais; o segundo nível é o dos
atores internos.
A interface dos atores internos e das posições assumidas pelo Estado é, conforme as
capacidades de influência dos atores internos, necessária para a compreensão de
qualquer negociação. Um acordo tem maior probabilidade de aprovação quando
diversos atores internos relevantes estão de acordo com seu termo. Por outro lado, os
negociadores de um país podem perseguir melhores termos nas cláusulas de um
acordo quando esses atores se posicionam contrariamente, pois os negociadores
podem argumentar pela necessidade de condições mais favoráveis para obter a
aprovação dos atores locais.
Dessa forma, compreender o processo de convergência não passa apenas por
acompanhar as negociações entre os Estados, mas também as posições dos diversos
atores envolvidos e os que possuem interesses nesses processos, tais como as
11
agências reguladoras nacionais, os ministérios responsáveis pela saúde pública, as
indústrias locais, os importadores e os exportadores.
Por sua vez, os regimes internacionais, na perspectiva de Krasner, representam a
possibilidade de previsibilidade no relacionamento entre entes independentes, como
os Estados. Como não existe um terceiro poder sobre os Estados, com plena
capacidade de regular a relação entre eles, as normas, os procedimentos e os
processos de tomada de decisão mutuamente aceitos conferem um nível de
previsibilidade maior às relações entre os Estados naqueles pontos que se propõem a
abarcar. A esse conjunto de normas e procedimentos mutuamente consentidos, que
podem ou não estar institucionalizados, denomina-se regime.
Além da previsibilidade nas relações, que tende a facilitar a cooperação, outro aspecto
dos regimes internacionais é que o resultado das interações sob suas regras costuma
ser superior ao resultado de interações que ocorram sem procedimentos mutuamente
acordados. Assim sendo, o questionamento que se torna central dentro de um regime
é como esses resultados adicionais serão divididos. Normalmente, essa divisão se
cristaliza na construção dos termos do regime que está sendo estabelecido,
determinando os espaços de vantagem para cada uma das partes.
Outra análise relevante refere-se ao foco dado ao processo de convergência. Ainda
que não constitua propriamente uma teoria, existem argumentos econômicos e de
saúde pública que fundamentam conclusões distintas, não apenas entre si, como
também dentro de uma mesma linha argumentativa.
Alguns argumentos econômicos sustentam a convergência regulatória, tendo em vista
os benefícios da liberalização comercial: um mercado único, livre de barreiras
comerciais, onde as mercadorias circulem livremente e onde as exigências
regulatórias para essa circulação sejam uniformes entre os países parte no mercado.
No entanto, as barreiras às trocas comerciais podem ser encaradas como item
necessário à proteção da economia local, ao serem postas em prática com o intuito de
reservar mercado para a indústria nacional. Com as reduções tarifárias de importação
ocorrendo de forma contundente em cada rodada de negociações comerciais
internacionais multilaterais, as regulações seriam uma forma de proteger o mercado
local sem desrespeitar as regras do comércio multilateral, em especial contra
concorrência predatória de produtos com menores índices de qualidade que
competem por preços.
12
Essa posição não é necessariamente contrária a qualquer convergência regulatória, e
não necessariamente contradiz as primeiras premissas econômicas apresentadas
acima, especialmente porque dela pode decorrer uma elevação ou manutenção dos
padrões já estabelecidos internamente. Todavia, uma reserva permanente de
autonomia decisória para alterá-los quando se julgar necessário é bem vista ou
mesmo desejada pelos países, individualmente considerados.
Por sua vez, recapitulando os argumentos de saúde pública, alguns deles se
posicionam favoravelmente à convergência regulatória, uma vez que esta contribuiria
para facilitar o acesso a medicamentos e a outros produtos e equipamentos da área
de saúde, bem como ao seu barateamento. Esses benefícios decorrem igualmente da
concepção de um mercado comum, que por um lado aumenta a quantidade de
fornecedores, diversificando a concorrência e diminuindo os preços; e também permite
à indústria ganhos de escala em decorrência de um mercado consumidor maior.
Por outro lado, sob a mesma ótica da saúde pública, haverá argumentos que
questionam a harmonização, na medida em que uma regulação comum é
frequentemente baseada nos mínimos denominadores comuns entre as partes,
podendo abrir uma brecha para a entrada de produtos de qualidade e eficácia
menores no mercado. Essa posição também levanta a necessidade de preservação da
autonomia nacional em decisões do gênero, arguindo pela necessidade de
preservação de padrões próprios e elevados de exigência sanitária (ou, em outros
termos, de proteção da saúde).
E é exatamente no balanceamento desses argumentos que algumas iniciativas de
convergência regulatória que ocorreram no cenário internacional passarão a ser
analisadas, tendo em vista o seu pioneirismo e a influência que hoje exercem no
contexto global.
1.1. A experiência europeia e a criação da Agência Europeia de
Medicamentos
A União Europeia tem suas origens na Comunidade Econômica Europeia, criada na
década de 1950, e que tinha como um de seus objetivos a supressão das barreiras à
livre circulação de bens e mercadorias. Em matéria de medicamentos, o primeiro
esforço de unificação do mercado se deu em 1975, com a criação do “procedimento
multi-Estado” (multi-state procedure). A ideia era, por um lado, acelerar a aprovação
dos medicamentos através da aproximação dos países e da geração de confiança
mútua sobre a competência científica de todos os membros em analisar a eficácia, a
13
segurança e a qualidade desses produtos; e por outro, acelerar a implementação de
um mercado único no setor farmacêutico.
O procedimento permitia à empresa solicitar que o registro obtido em um Estado
membro, fosse reconhecido em outros cinco países. As agências desses outros países
dispunham de 120 dias para se manifestar sobre essa possibilidade. Em caso de
objeção, esta deveria ser encaminhada para um Comitê de Especialistas da Comissão
Europeia e das agências reguladoras nacionais para, assim, expressar uma opinião no
prazo de 60 dias.
Na prática, o procedimento agravou a desconfiança existente entre as autoridades
sanitárias nacionais e destas para com o Comitê. Além disso, o decurso de prazo
passou a ser mais longo do que era o usual nas agências regulatórias. Em 1983,
houve uma tentativa de simplificar o procedimento, mas sem resultados significativos.
Em 1987, o Conselho Europeu adotou uma estratégia diferente, aprovando uma
diretiva que criava um procedimento centralizado, administrado pelo Comitê para
Produtos com Propriedades Medicinais (CPMP) para produtos biológicos e de alta
tecnologia.
A novidade estava no fato de que a Europa centralizara o registro de medicamentos
em
áreas
ainda não plenamente desenvolvidas
nos países membros,
os
medicamentos biológicos e os mais tecnologicamente avançados. A intenção era
estabelecer um consenso europeu sobre as boas práticas de fabricação, os
procedimentos apropriados de laboratório e os critérios apropriados de avaliação
desses produtos, previamente, sem a intervenção pormenorizada de cada país; não
dando, assim, margem a discordâncias. Foi o primeiro passo efetivo na tentativa de
unificação do mercado de medicamentos por meio da implantação de um registro
único para uma categoria de produtos.
O segundo passo foi dado pelo Tratado de Maastricht, em 1992, que, ao passar
alguns assuntos envolvendo a saúde para a competência supranacional, possibilitou à
Comissão Europeia criar a Agência Europeia para Avaliação de Medicamentos
(EMEA 10 ). O objetivo era transformar a relação entre as autoridades regulatórias
nacionais e as da UE, criando efetivamente um mercado comum para produtos
farmacêuticos.
10
Para mais informações: www.ema.europa.eu.
14
O terceiro passo foi dado em 1995, quando passou a vigorar um sistema pautado no
princípio do reconhecimento mútuo, reforçado em 1998. Na prática, a atuação da
EMEA foi apenas de coordenação, pois o processamento das requisições de
aprovação era delegado às agências regulatórias nacionais. O que significava que a
Agência europeia deveria confiar nas agências nacionais para que as mesmas
regulações fossem aplicadas e para que os pedidos fossem analisados rapidamente.
Assim, a harmonização dos requisitos de análise passou a ser primordial na medida
em que uma análise nacional se referia a aprovação do produto em toda a Europa.
Atualmente já existe a possibilidade de que a análise científica dos pedidos de
autorização de comercialização seja feita de forma centralizada pela EMEA. A
autorização obtida dessa forma permite ao seu detentor comercializar o medicamento
em toda a Europa, bem como nos países membros da Área Econômica Europeia –
Associação Europeia de Livre Comércio (EEA-EFTA), o que inclui Islândia, Noruega,
Litcheinstein e Suíça.
A avaliação do pedido de autorização demora 210 dias e, ao final, o Comitê de
Produtos Medicinais para Uso Humano (CHMP) divulga uma opinião científica
justificando a autorização ou não do medicamento. Essa opinião é transmitida à
Comissão Europeia que terá 67 dias para aceitar ou declinar o pedido de autorização
de comercialização.
Todos os medicamentos de uso humano derivados de biotecnologia e outros
processos de alta tecnologia devem ser analisados pela Agência, pela via
centralizada. Isso se aplica a todos os medicamentos utilizados em terapias
avançadas e produtos medicinais contendo substâncias ativas novas com o objetivo
de tratar HIV/AIDS, câncer, diabetes, doenças neuro-degenerativas, disfunções
imunes ou autoimunes, doenças virais e todos os medicamentos órfãos (aqueles
destinados ao tratamento de doenças raras).
Caso o medicamento não se insira em uma das categorias descritas, o pedido para a
sua comercialização pode ser centralmente analisado se for uma substância ativa
nova, se ele constitui uma alternativa terapêutica significativa ou uma inovação técnica
e científica ou, em quaisquer outros aspectos, interessar à população da UE.
Medicamentos
genéricos
de
produtos
cuja
análise
já
seja
centralizada
e
medicamentos de uso pediátrico também podem fazer o pedido de registro e
comercialização pela via centralizada.
15
A avaliação de medicamentos sujeitos ao procedimento centralizado é feita pelo
CHMP, que é composto por membros dos 27 países da UE mais Islândia e Noruega e
até cinco outros especialistas indicados pelos países membros e/ou respectivas
agências reguladoras que possam trazer expertise adicional de áreas científicas
específicas. Para cada produto, o CHMP aponta dois membros para liderar e
coordenar a avaliação.
Se ainda assim o medicamento não se inserir em uma dessas categorias, deve ser
usado o procedimento descentralizado, o procedimento de reconhecimento mútuo ou
o procedimento para autorização puramente nacional, dependendo do número de
países para os quais se quer a autorização.
A dificuldade de se instaurar rapidamente um procedimento de registro comum de
medicamentos na União Europeia revelou a existência de preocupações tanto
econômicas quanto de saúde pública muito particulares a cada país. Assim, cada um
procurou, e ainda procura, manter sua autonomia com relação aos mecanismos e
procedimentos de aferição da segurança, da qualidade e da eficácia dos
medicamentos comercializados dentro de seus territórios; também existe a
preocupação com o aumento significativo do orçamento da saúde destinado à compra
de medicamentos.
Essas preocupações justificam a adoção de medidas de controle de gastos e de
fixação de preços que acabam por impactar o mercado e, dependendo das exigências
regulatórias, podem torna-lo desinteressante para a indústria. Permanecendo países
desabastecidos ou mercados de difícil acesso, o objetivo do mercado comum não é
atingido. Por outro lado, dada a contribuição do setor farmacêutico à economia,
também há países que tendem a querer promover uma regulação que favoreça a
indústria local.
Com efeito, o artigo 152, do Tratado de Amsterdã, estabelece que os Estados
membros são integralmente responsáveis pela organização e provisão dos serviços de
saúde e dos cuidados médicos dentro de seus territórios. Assim, a competência para
autorizar a comercialização de medicamentos cabe, inicialmente, aos Estados
membros: cada país exige a demonstração da qualidade e da segurança de novas
substâncias de forma a que cumpram o benefício terapêutico proposto ao paciente.
Trata-se de uma medida de proteção à saúde pública. Isso abre o espaço para os
países manterem barreiras ao comércio, especialmente naquelas situações em que o
registro centralizado pela EMEA não é obrigatório e a autonomia dos Estados é maior.
16
No entanto, o art. 152, em si, não quer dizer que a UE não possa influenciar assuntos
envolvendo a saúde dentro dos países, já que o órgão tem como missão, por meio da
Comissão Europeia, a implementação e a efetivação do mercado comum (único). A
UE dispõe de um poder regulatório que está ligado à promoção do mercado único
eliminando barreiras comerciais e estabelecendo, por exemplo, requisitos mínimos de
embalagem, regras de publicidade, de distribuição no atacado, de proteção patentária,
etc. que devem ser necessariamente observados por todos os países.
Esse estado de coisas resultou em outro esforço da União Europeia em prol da
construção de um mercado comum, por meio do estimulo à desregulamentação dos
preços. Isso porque a regulação de preços feita por cada país individualmente dificulta
o livre trânsito das mercadorias. Esse esforço é feito por meio do estímulo à
competição e pela divulgação de preços praticados em diversos mercados. Também
por meio da estreita colaboração com regimes globais, como a Conferência
Internacional de Harmonização (ICH). Esse processo acaba forçando os governos a
levantarem seus controles sobre os preços dos medicamentos e se adequarem aos
interesses de um mercado comum.
Todavia, esse esforço não é totalmente bem visto pelos países. Se por um lado existe
o receio da perda de autonomia sobre o sistema de saúde, por parte dos países
membros, em um mercado único de medicamentos, aliado à suspeita dos pacientes e
dos consumidores de que a desregulamentação de preços conduza a uma
aproximação dos preços em patamares mais elevados, por outro existem
preocupações de ordem econômica de que a harmonização, ao aumentar a
concorrência, promova quebras no setor.
Na França, a regulação de preços tem sido utilizada para proteger a indústria
doméstica e países com uma base industrial mais consolidada, como a Alemanha,
tendem a liberar os preços dos medicamentos. Tanto Espanha quanto Itália, por terem
bases industriais relativamente fracas, se utilizam de uma variedade de mecanismos
de controle de preços.
Assim, uma vez preservada a autonomia dos países em relação a diversas outras
regulações, especialmente a econômica, abre-se a possibilidade de neutralizar, em
maior ou menos escala, os efeitos da harmonização regulatória. Por isso, cada vez
mais fóruns externos são incumbidos da promoção da uniformização das regulações
aplicáveis ao setor de medicamentos. Um exemplo disso é a atuação e a influência
mundialmente difundida da Conferência Internacional de Harmonização (ICH).
17
1.2. Conferência Internacional de Harmonização
International Conference on Harmonization – ICH11
A ideia de se criar um fórum para discutir uma possível padronização internacional de
aspectos regulatórios para medicamentos aconteceu em Paris, em 1989, durante a
Conferência sobre Autoridades Regulatórias de Medicamentos, da Organização
Mundial da Saúde (ICDRA-OMS). Pouco tempo depois, as autoridades reguladoras
dos países participantes procuraram a Federação Internacional de Produtores
Farmacêuticos e Associações (IFPMA) para discutir conjuntamente, com a indústria,
uma possível padronização internacional.
Em abril de 1990, a ICH foi criada em Bruxelas, durante um encontro da própria
IFPMA, por iniciativa dos representantes das agências reguladoras e das associações
da indústria da Europa, do Japão e dos Estados Unidos. Havia um consenso entre a
indústria e as agências reguladoras de que as discrepâncias regulatórias poderiam ser
significativamente reduzidas, dada a elevada capacidade técnico-científica desse
grupo de países e os interesses das grandes indústrias de ampliarem sua atuação
nesses mercados simultaneamente.
No primeiro encontro do Comitê Diretivo da ICH ficou acordado que os tópicos
selecionados para harmonização seriam: Segurança, Qualidade e Eficácia. Esses
tópicos refletiriam nos critérios que serviriam de base para a aprovação de novos
medicamentos. O pioneirismo de Estados Unidos, Japão e Europa nessa iniciativa
deveu-se ao fato de que a grande maioria dos medicamentos era - e ainda é desenvolvida e produzida em seus territórios, e as divergências regulatórias existentes
entre eles impunham às indústrias desses países pesados custos, principalmente no
que se refere à realização de ensaios clínicos, que acabavam sendo produzidos duas
ou mais vezes para atender cada legislação, para o registro do mesmo medicamento.
Dados os custos desses processos de adequação às legislações de cada país,
associados às crescentes expectativas das autoridades sanitárias dos países em
disponibilizar acesso a medicamentos aprimorados para que as necessidades de
saúde das suas populações sejam adequadamente atendidas, a ICH surge como a
proposta de “definir procedimentos harmonizados para diminuir os prazos de
disponibilização de novos medicamentos e reduzir os custos de duplicação
11
As informações sobre a Conferência Internacional de Harmonização podem ser encontradas no
sítio: www.ich.org.
18
desnecessária de pesquisas”12, atendendo ao trinômio qualidade-eficácia-segurança,
conforme mencionado acima.
A ICH é composta pela Comissão Europeia (União Europeia – EU), pela Federação
das Associações Europeias de Indústrias Farmacêuticas (EFPIA), pelo Ministério da
Saúde e Bem-Estar do Japão (MHW), pela Associação dos Fabricantes de
Medicamentos do Japão (JPMA), pela Administração de Alimentos e Medicamentos
dos Estados Unidos (FDA) e pela Pesquisas Farmacêuticas e Fabricantes da América
(PhRMA).
Além disso, fazem parte da ICH a Organização Mundial da Saúde (OMS), o Programa
de Produtos Terapêuticos do Canadá e a Associação Europeia de Livre Comércio
(EFTA), representada pelo Escritório Internacional para o Controle de Medicamentos
da Suíça; estes atuando como observadores, fazendo a ponte com os países e as
regiões não membros da ICH. A Federação Internacional dos Produtores
Farmacêuticos (IFPMA) atua como instituição guarda-chuva para as indústrias
farmacêuticas e exerce a função do Secretariado da ICH.
As linhas gerais do ICH, definidas em 1997, são: a-) manter um fórum de discussão
entre as autoridades sanitárias e a indústria farmacêutica sobre as diferenças
regulatórias existentes com o objetivo de introduzir medicamentos simultaneamente
nos mercados, tornando-os disponíveis mais rapidamente; b-) monitorar e avaliar as
exigências técnicas harmonizadas com o objetivo de aumentar a mútua aceitação de
dados de pesquisa e desenvolvimento; c-) evitar futuras divergências em termos de
exigências regulatórias pela harmonização de assuntos selecionados, levando em
consideração os avanços terapêuticos e o desenvolvimento de novas tecnologias na
produção de novos medicamentos; d-) facilitar a adoção de pesquisas técnicas que
possibilitem a utilização racional de recursos materiais, animais e humanos, sem o
comprometimento da segurança, eficácia e da qualidade do produto final; e-) facilitar a
disseminação e comunicação da informação sobre regulações harmonizadas e sua
utilização para encorajar a sua adoção.
A Comissão Diretora da ICH é composta por 14 membros, sendo dois de cada
organização fundadora e dois da IFPMA. Para cada tópico selecionado para
harmonização, a Comissão designa um Grupo de Trabalho de Especialistas (EWG)
incumbido da análise das diferenças existentes no assunto nas três regiões e propor
regras consensuais. Cada umas das seis partes nomeia dois especialistas, sendo um
12Moretto,
L.D., Harmonização regulatória para a indústria farmacêutica.
19
deles eleito relator. A OMS, o Canadá e a EFTA também são convidados a nomear
observadores para compor o Grupo. As autoridades das farmacopeias, da indústria de
medicamentos de venda livre e de genéricos também são convidadas a designar
observadores.
Em 1999 foi criado um Grupo de Cooperação Global (GCG), dentro da ICH, cuja
missão é disponibilizar as informações sobre as regras harmonizadas a todos os
países e indústrias interessados. Ele é composto por um representante de cada
membro da Comissão Diretora, um da IFPMA, um da OMS e um do Canadá.
Os princípios básicos que pautam os trabalhos da ICH são o alcance do consenso
científico, através de ampla consulta acerca daquilo que se quer harmonizar, com o
compromisso de cada país ou bloco de internalizar o documento elaborado. Este
compromisso não é vinculante por um tratado, mas a internalização de fato ocorre por
conta dos interesses dos países envolvidos e seu comprometimento com a agenda
mutuamente acordada.
Figura 1: Estágios do processo de harmonização
Fonte: Moretto, L.D., Harmonização regulatória para a indústria farmacêutica.
Elaboração Prospectiva Consultoria
Os tópicos selecionados são distribuídos em quatro grupos: 1) qualidade –
desenvolvimento farmacêutico e especificações, 2) eficácia – programas de testes
clínicos e monitoramento da segurança em seres humanos, 3) segurança – avaliação
da toxicidade pré-clínica e estudos relacionados, 4) multidisciplinar – tópicos que
20
impactam mais de uma área, tais como comunicação regulatória, sincronização entre
estudos toxicológicos e clínicos, e documentos técnicos comuns.
Apesar dos inegáveis avanços, a ICH, que inicialmente se propunha apenas a
harmonizar questões regulatórias de produtos novos e de produtos biológicos, teve
seu campo de atuação expandido, passando também a harmonizar questões que
abrangiam e abrangem produtos já disponíveis no mercado; isso estimulou países não
membros da ICH a utilizar os seus padrões regulatórios nacionalmente por iniciativa
própria.
Se por um lado tal fato pode ser considerado como um bem vindo avanço, na medida
em que cria consciência acerca dos assuntos harmonizados nos mais elevados
padrões técnico-científicos e por servir de referência e diretriz para as autoridades
regulatórias quando estas produzem regras nacionais; por outro, a OMS vê esse
movimento com certa cautela. Segundo ela, pelo fato de a ICH ser composta apenas
por países desenvolvidos, com características muito específicas, a aplicação de suas
regras harmonizadas pode não considerar fatores que fazem parte da realidade de
países menos desenvolvidos, dentre elas as limitações de recursos para a plena
implementação dessas regras.13
1.3. A Agência Trans-Tasmaniana sobre Produtos Terapêuticos
Em 2003, foi assinado um tratado entre os governos da Austrália e da Nova Zelândia
sobre a “fusão” da Administração Australiana de Produtos Terapêuticos e da
Autoridade de Segurança de Medicamentos (TGA) e Equipamentos Médicos
(Medsafe) neozelandesas, em uma única agência, que viria a ser chamada Autoridade
Trans-tasmaniana de Produtos Terapêuticos (ANZTPA ou TPA).
A partir de 2005 também foram feitos acordos para a elaboração de esquemas
preliminares de regulação sobre publicidade de produtos terapêuticos, desenvolvidos
por um Conselho Provisório de Publicidade, formado por stakeholders de ambos os
países. Em maio de 2006, foram feitos esboços de requisitos para medicamentos,
equipamentos médicos e algumas regras administrativas. A condição primordial para a
aplicação dessas regras comuns era a incorporação nos ordenamentos jurídicos de
cada um dos dois países.
A TPA atua na regulação da qualidade, segurança e eficácia de medicamentos e
produtos terapêuticos, bem como no seu processo de fabricação, comercialização,
13
World Health Organization, The Impact of Implementation of ICH Guidelines in Non-ICH
Countries, Regulatory Support Series, No. 9, Geneva, 2002, p. 21.
21
importação e exportação. Isso inclui o exercício da autoridade sanitária sobre
medicamentos, incluindo OTCs, equipamentos médicos, sangue e hemoderivados.
A agência responde a um Conselho Ministerial, composto pelos ministros da saúde
dos dois países e que são responsáveis pela nomeação de uma mesa de membros.
Essa mesa é responsável pelo controle da agência e elabora as regras aplicáveis aos
setores regulados. Depois de promulgadas, essas regras são formalmente
apresentadas aos parlamentos australiano e neozelandês. Se, em tempo razoável, a
regra for desautorizada no todo ou em parte por um dos parlamentos ela perde o
efeito. Assim, cada país detém um poder de veto sobre a regulação da TPA; o que
pode tanto encorajar o aprimoramento da cooperação quanto facilitar o afastamento
entre as duas linhas nacionais.
Nesse aspecto, cabe ressaltar que ambos os países têm interesse em disponibilizar
medicamentos
para
as
suas
populações,
inclusive
assegurando
acesso
a
medicamentos para tratamento de doenças raras; da mesma forma, ambos almejam
ter indústrias farmacêuticas se desenvolvendo dentro de suas fronteiras. Uma agência
conjunta asseguraria o cumprimento de objetivos de segurança e de garantia de saúde
individual sem a imposição de barreiras de mercado consideradas supérfluas.
Essa ação conjunta possibilita uma maior proximidade com os parâmetros globais de
boas práticas, o que, por sua vez, facilita o acesso ao mercado internacional. A
possibilidade de dar uma licença de comercialização simultânea para ambos os países
é uma verdadeira quebra de paradigma, já que não foi verificada em nenhum outro
esforço de harmonização, nem mesmo na União Europeia.
Tendo em vista sua recente implementação, os resultados práticos oriundos da
atuação da TPA ainda precisam de mais tempo para serem adequadamente
avaliados.
1.4. Rede Pan-Americana sobre Harmonização Regulatória de
Medicamentos (PAHRF)
Pan-American Network for Drug Regulatory Harmonization (PANDRH)14
No continente Americano, a Organização Pan-Americana da Saúde (OPAS)
estabeleceu um fórum de diálogo, o Fórum Pan-americano de Agências Reguladoras
de Medicamentos, para discutir e tentar solucionar problemas comuns observados no
quotidiano das autoridades sanitárias nacionais. O fórum busca também promover a
14
O estatuto da Rede PARHF, elaborado pelo Comitê Diretivo, está disponível no site:
http://new.paho.org/hq/dmdocuments/2010/PANDRH_Statutes_Final_1109%20(2).pdf.
22
cooperação técnica entre os países e promover o fortalecimento e estabelecimento de
prioridades na harmonização regulatória, de modo a viabilizar o acesso a
medicamentos seguros e de qualidade no continente.
Dentro dessa estratégia, a OPAS realiza, a cada dois ou três anos, a Conferência Panamericana sobre Harmonização Regulatória de Medicamentos, onde se reúnem
autoridades regulatórias dos países membros, bem como representantes de
organizações e das associações regionais da indústria farmacêutica. Também são
convidados para participar as universidades, grupos de consumidores e associações
profissionais de todos os cinco blocos inter-regionais de integração comercial:
Comunidade Andina15, CARICOM16, SICA17, MERCOSUL18 e NAFTA19.
A primeira Conferência, realizada em 1997, representou o passo inicial para a
consolidação de uma Rede Pan-americana para a Harmonização Regulatória de
Medicamentos, a rede PARHF. Nela, ficou estabelecido que a promoção da
harmonização regulatória de medicamentos iria abordar aspectos de qualidade,
segurança e eficácia dos produtos farmacêuticos. As áreas prioritárias de atuação
inicial foram: as boas práticas de fabricação (BPF), as boas práticas clínicas (BPC) e
os temas da bioequivalência e biodisponibilidade (BE).
A Rede Pan-americana de Harmonização Regulatória de Medicamentos possui quatro
componentes: a Conferência, o Comitê Diretivo, os grupos de trabalho e a Secretaria.
Todos eles são regidos por normas operacionais e regulamentações próprias. O
Comitê conta com 12 membros: 10 autoridades regulatórias, sendo 5 autoridades dos
membros principais e 5 que se alternam, representando os 05 blocos sub-regionais, 2
representantes da indústria, com membros substitutos. Na operacionalização da Rede,
a Conferência define as áreas prioritárias a serem trabalhadas no processo de
harmonização. O principal objetivo do Comitê Diretivo é dar seguimento às
recomendações da Conferência e monitorar o trabalho desenvolvido pelos grupos de
trabalho.
Os grupos de trabalho analisam os assuntos e, caso seja necessário, desenvolvem
propostas consensuais de harmonização ou adaptam parâmetros e diretrizes
internacionais.
Essas
propostas
se
baseiam
em
documentos
internacionais
desenvolvidos pela OMS e por outros organismos internacionais e nacionais relativos
Comunidade Andina: http://www.comunidadandina.org/endex.htm.
Comunidade Caribenha: http://www.caricom.org/.
17 Sistema de Integração Centro-Americana: http://www.sica.int/.
18 Mercado Comum do Sul: http://www.mercosur.int/.
19 Acordo Norte Americano de Livre Comércio: http://www.nafta-sec-alena.org/en/view.aspx.
15
16
23
à regulação. Essas propostas são revisadas pelo Comitê Diretivo e apresentadas para
adoção e implementação na região. A Conferência pode optar por reenviar as
propostas para os grupos de trabalho para modificações.
Na medida em que os países participam da Conferência se espera que propostas,
documentos e diretrizes sejam adotados individualmente e incorporados nas
discussões dos grupos econômicos nos níveis sub-regionais.
Nove grupos de trabalho foram estabelecidos na Rede, mas apenas oito começaram a
operar. Em 2008, esse número cresceu para 12: Boas Práticas de Fabricação,
Bioequivalência e Biodisponibilidade, Boas Práticas Clínicas, Classificação de
Medicamentos,
Falsificação
de
Medicamentos,
Boas
Práticas
Laboratoriais,
Farmacopeia, Plantas Medicinais, Registro de Medicamentos, Farmacovigilância,
Vacinas e Promoção e Marketing.
Figura 2: Objetivos dos Grupos de Trabalho da Rede Pan-Americana sobre
Harmonização Regulatória de Medicamentos
Ela
boração: Prospectiva Consultoria
Em 1999, durante a realização da Segunda Conferência, em Washington, foi eleito o
primeiro Comitê Diretivo da Rede e reconheceu-se que o processo de harmonização
não deveria se ater apenas à regulação do registro de medicamentos (regulação
sanitária), mas também considerar o mercado de medicamentos (regulação
econômica) levando em consideração o seu impacto no acesso a esses produtos
pelas populações.
24
Em 2000, durante a 42ª reunião do Conselho Diretivo da OPAS, foi aprovada a
Resolução CD 42/R11, incentivando os Ministros da Saúde dos países membros da
região abrangida pela Rede a se engajarem no processo de harmonização regulatória.
Essa resolução visa a que as recomendações emanadas pela Rede PARHF sejam de
fato implementadas pelos governos nacionais, como forma de garantir o acesso a
medicamentos que sejam seguros, eficazes e de qualidade aceitável. No entanto,
cabe ressaltar que essas recomendações não têm caráter vinculante.
A Terceira Conferência ocorreu em 2003, onde os representantes dos cinco grupos
comerciais integrantes da Rede revisaram as suas regulações harmonizadas e, pela
primeira vez, os grupos técnicos de trabalho da Rede apresentaram relatórios
preliminares. A Conferência fez recomendações com base nesses relatórios, dentre
eles: o reconhecimento da importância da implementação de um Certificado de
Qualidade de Produtos Farmacêuticos sujeitos ao Comércio Internacional emitido pela
Organização Mundial da Saúde (OMS).
Em 2005, a Quarta Conferência ocorreu na República Dominicana, e estabeleceu-se o
compromisso de se apresentar os relatórios finais dos grupos de trabalho com a
propositura de harmonizações a serem adotadas pelas autoridades regulatórias
participantes. Em 2008, a Quinta Conferência, ocorreu na Argentina.
A VI Conferência foi realizada no Brasil em 2011 e teve como tema o “Fortalecimento
das Autoridades Sanitárias Regulatórias Nacionais”. Dentre os tópicos abordados
estava o papel da Rede PARHF na coordenação da cooperação internacional, o
reconhecimento pela OPAS das agências regulatórias nacionais de referência na
América Latina (ANMAT - Argentina, ANVISA - Brasil, INVIMA - Colômbia e CECMED
- Cuba), a necessidade de implementação das diretrizes PARHF nas sub-regiões e as
atividades
inovadoras
das
agências
regulatórias
nacionais.
As
principais
recomendações foram no sentido de se desenvolver uma forma de cooperação mais
efetiva entre os países e adotar e implementar os diferentes documentos técnicos
produzidos.20
20 Para maiores informações sobre a VI Conferência Pan-Americana sobre Harmonização
Regulatória
de
Medicamentos:
http://new.paho.org/hq/index.php?option=com_content&task=view&id=5101&Itemid=513.
25
Figura 3: Processo Operacional da Rede Pan-Americana de Harmonização de
Regulação de Medicamentos
Elaboração: Prospectiva Consultoria
1.5. Considerações sobre os processos de harmonização abordados
Do que foi até aqui exposto, é interessante notar duas claras linhas de movimentos de
convergência regulatória. Por um lado, tanto com relação à experiência europeia
quanto com relação ao ICH e ao TPA os movimentos se assemelham, na medida em
que surgem da iniciativa e do reconhecimento, tanto por parte das autoridades
nacionais quanto por parte da própria indústria farmacêutica organizada, do potencial
ganho advindo da elaboração conjunta e da aplicação uniforme de regulações
sanitárias em matéria de medicamentos; isso, tanto do ponto de vista econômico, com
a consequente redução de custos por parte da indústria e também por parte dos
Estados, e a facilitação da circulação desses produtos, quanto do ponto de vista da
saúde pública, na medida em que viabiliza o acesso a medicamentos com padrões
comuns de qualidade, segurança e eficácia.
No entanto, cabe a ressalva de que esses três movimentos citados se deram inicial e
primordialmente entre países com elevada capacidade técnica e científica, ou seja,
entre países altamente capazes de influenciar e questionar o processo de
harmonização de regulações em curso.
26
Cabe lembrar também que nessas três experiências de harmonização os Estados
participantes assumiram claramente o compromisso de adotar e implementar, dentro
de seus territórios, as regulamentações acordadas, ou seja, elas passam a ser
incorporadas nacionalmente pelos Estados, tendo, portanto, um caráter vinculante.
Enquanto no ICH e na TPA o processo de harmonização tende a ser mais
horizontalizado, com a participação dos Estados diretamente ou por meio de suas
agências regulatórias, no caso da Agência Europeia de Medicamentos, ele tende a ser
verticalizado, na medida em que, como se disse, a própria União Europeia tem o
caráter de um ente supranacional, fazendo que os interesses particulares dos Estados
passem a ser levadas menos em consideração.
De outro lado, tem-se a Rede PARHF, que surge como uma preocupação inicial de
proteção à saúde diretamente relacionada à missão institucional da OPAS. Essa
agenda foi impulsionada pelo considerável comércio de medicamentos falsificados no
continente, notadamente na América do Sul e Central, e de um contexto de
necessidade muito grande de acesso a medicamentos pelos países com elevados
níveis de subdesenvolvimento. Trata-se de países muito desiguais não apenas entre
si, mas também com forte disparidade de renda dentro das suas populações.
Dadas essas importantes diferenças e com a sensibilidade de envolver os blocos de
integração comercial instituídos entre os países americanos, a Rede propõe, num
movimento de alinhamento político, a realização de Conferências que permitem a
aproximação entre os países e o compartilhamento de experiências e dificuldades.
Nessas Conferências são divulgados os relatórios técnicos elaborados pela OMS tidos
como o nível mínimo a ser observados pelos países em matéria de fiscalização e
controle em termos de qualidade, segurança e eficácia de medicamentos. Os Estados
assumem o compromisso de adotar esse padrão mínimo, desde que devidamente
internalizadas de acordo com seus respectivos marcos legais.
Não obstante, existe uma preocupação por parte desses Estados de implementar
esses padrões mínimos. Isso pode ser verificado principalmente através do crescente
número de acordos de cooperação técnica firmados entre eles na área da saúde, com
enfoque importante na capacitação de recursos humanos e desenvolvimento
institucional.
Como foi apresentado, as decisões sobre convergência regulatória, como toda
dinâmica de âmbito internacional, estão diretamente subordinadas à realidade e às
demandas internas dos países. A análise dessa realidade é essencial para definir
quais serão as prioridades para cada país e os principais objetivos a serem
27
perseguidos. Como as reverberações de um processo de convergência na área de
medicamentos são múltiplas, diversas características dos países sul-americanos
devem ser visualizadas.
28
Capítulo 2: O Panorama Sul-Americano
A convergência regulatória é moldada por diversos elementos internos aos países: a
forma e programas de acesso à saúde nos respectivos territórios, incluídas as
principais prioridades e políticas públicas para o setor; a estrutura regulatória disposta
sobre o mercado farmacêutico e os agentes envolvidos no processo; as características
do mercado interno, com dados de comércio e de produção e as ambições do governo
com relação ao setor, principalmente em termos de nacionalização da produção. É o
conjunto destas características e sua inter-relação que determinará a forma como o
processo de convergência será conduzido.
2.1. Uma breve visão da Realidade Brasileira
A evolução dos movimentos sociais no Brasil, em prol do acesso universal à saúde e
culminando com a criação do SUS, representa um fator marcante nessa análise. A
saúde, como direito do cidadão e dever do Estado e, principalmente, o acesso
universal e a integralidade do cuidado são propostas das mais ousadas do mundo,
pela disponibilidade de recursos que envolve.
Os programas nacionais de imunização e de combate à AIDS, por exemplo,
inteiramente gratuitos e que alcançam a quase totalidade de seus públicos-alvo, se
materializaram por conta desse compromisso. Atualmente, ambos os programas
constituem uma plataforma importante de promoção da agenda externa brasileira,
atraindo a atenção de diversos outros países com necessidades semelhantes e de
organizações transnacionais.
Todavia, a disponibilidade de recursos para este tipo de acesso é restrita, em parte por
ser uma política universal e não seletiva, com poucos critérios pré-definidos para
incorporação de tecnologias, pela complexidade envolvida na implementação de um
sistema único em um Estado federado de três níveis, pelo modelo de Estado
burocrático e pouco dinâmico, pelas enormes desigualdades regionais, entre outros
fatores, o que tende a provocar uma má distribuição dos recursos e, por outra parte,
pelas próprias restrições orçamentárias advindas da capacidade limitada de
financiamento do Estado.
Outro fator-chave para o entendimento da posição brasileira é a ação da Agência
Nacional de Vigilância Sanitária, ANVISA, no Brasil. A Agência foi criada em 1999 para
substituir a Secretaria de Vigilância Sanitária, no contexto de lançamento de outras
agências com funções reguladoras de setores econômicos então privatizados, com a
finalidade de combater os excessos da desregulamentação ocorrida em meados da
década de 1980.
29
Todavia, mesmo como uma necessidade de contraposição em um momento de crise
de confiança, as elevadas exigências de caráter sanitário colocadas hoje demandam
comunicação com as aspirações de desenvolvimento da industrial local. O debate
sobre medicamentos obtidos em rotas biológicas, similares a outro medicamento com
patente já expirada, é ilustrativo dessas questões.
Em termos de planejamento de ações envolvendo o setor de saúde, o grande
movimento ocorreu em dezembro de 2007; quando já reeleito para um segundo
mandato, o governo Lula anunciou o PAC da Saúde, que ficou conhecido como
“Programa Mais Saúde”. PAC é a sigla para Programa de Aceleração do Crescimento,
um conjunto de obras do governo em setores de infraestrutura, coordenadas pela
Casa Civil, que deveriam promover e acelerar o crescimento econômico brasileiro e
aumentar a competitividade das mercadorias produzidas no país.
Apesar dos objetivos imediatos, o “Mais Saúde” demonstrou a horizontalidade com a
qual o tema seria tratado pelo governo a partir daquele momento (política de atenção à
saúde mais política industrial, com necessidade de um esforço interministerial) e
expressou um plano de metas mais claramente coordenado para enfrentar as
dificuldades do setor. O conceito de “complexo industrial da saúde” se cristalizou com
a proposição de metas e o fortalecimento do setor por meio do estímulo à substituição
de importações, o aumento das exportações, o estímulo à pesquisa e à inovação no
setor e o revigoramento dos laboratórios públicos.
Após o anúncio do “Mais Saúde”, em 12 de maio de 2008, houve dois momentos
relevantes que delinearam as políticas para o setor. Um deles foi o lançamento da
Política de Desenvolvimento Produtivo (PDP): além de medidas horizontais acessíveis
a todos os setores, ela elencou aqueles que seriam especialmente estimulados, dentre
os quais o Complexo Industrial da Saúde, de forma a dar concretude às propostas
sugeridas no passado e revalidadas no escopo do “Mais Saúde”.
O segundo momento foi a publicação do Decreto 12 do MS, que criou no âmbito deste
ministério o Grupo Executivo do Complexo Industrial da Saúde (GECIS). O GECIS
representa a articulação interministerial que deve criar os marcos e tomar as ações
necessárias para que as metas de desenvolvimento industrial expressas no “Mais
Saúde” se concretizem. O GECIS é uma articulação interna, expressando como o
próprio governo pretende se organizar para tomar decisões e realizar ações de
maneira coordenada para estimular o setor de saúde.
O GECIS é constituído por um representante e um suplente dos seguintes órgãos: MS
30
(responsável pela coordenação do grupo); MDIC (responsável pelas funções de
Secretaria-Executiva); MCT; MPOG; MF; MRE; Casa Civil da Presidência da
República; ANVISA; FIOCRUZ; BNDES; INPI; ABDI; INMETRO e FINEP. É previsto o
assessoramento de um “Fórum Permanente de Articulação com a Sociedade Civil”,
que atualmente é composto por 22 associações de classe entre as quais de
industriais, de médicos, de gestores de saúde e de grupos de consumidores.
As mais importantes atuações do GECIS estão na definição de recursos e formas de
acesso a recursos destinados à pesquisa e inovação, especialmente no âmbito da
FINEP e do BNDES; na definição da política tarifária sobre produtos relacionados ao
CIS, especialmente o fortalecimento da tarifa externa comum no MERCOSUL; na
proposição de alternativas para uso do poder de compra do SUS objetivando estimular
a produção local e a pesquisa; no trabalho conjunto com a ANVISA e com o INMETRO
para garantir a melhoria da qualidade dos produtos nacionais e a proteção contra
produtos importados que não atendam os padrões mínimos exigidos no país; nas
sugestões de alteração de regulações do mercado, de forma a estimular a indústria
local, especialmente em medicamentos obtidos por rotas biológicas.
Dentre as decisões do GECIS, duas tiveram grande impacto no ambiente de negócios
do setor. Uma delas foi a elaboração da lista de insumos estratégicos do SUS
(Portaria MS 978/2008, alterada pela Portaria MS 1284/2010) e a outra foi o
desenvolvimento das Parcerias de Desenvolvimento Produtivo (PDPs).
A lista, que pela normatização em vigor deve ser atualizada a cada dois anos, elenca
os insumos considerados estratégicos ao SUS por três razões: alto custo, ausência de
produção local e dificuldade de abastecimento (como os medicamentos para doenças
negligenciadas, que possuem baixo apelo comercial). Essa lista direciona a liberação
de recursos da linha Profarma do BNDES e o aceite de propostas de PDPs.
As PDPs são acordos entre laboratórios públicos e privados (tanto de capital nacional
quanto estrangeiro) para o desenvolvimento da capacidade de produção de
medicamentos através da transferência de tecnologia. Essa iniciativa visa a fortalecer
os laboratórios públicos, aumentando sua capacidade de produção, autonomia e
gestão de tecnologia e, de outro lado, estimular a indústria privada à inovação,
produção de medicamentos mais complexos e internalização de tecnologias de maior
valor agregado, especialmente na produção de insumos farmacologicamente ativos.
Dessa forma, esses pontos passam a ser transmitidos à realidade das negociações
brasileiras. Questões sobre como harmonizar a regulação em âmbito regional,
31
mantendo os padrões hoje praticados pela ANVISA e respondendo aos novos desafios
da área de biológicos; sobre como diminuir os custos do sistema de saúde e como
apoiar a política industrial passam a fazer parte da pauta brasileira no tema de
convergência.
2.2. Sistemas de Saúde em Perspectiva Comparada
Em todos os países sul-americanos a saúde é reconhecida como um direito.21 Bolívia
(art. 7º, da Constituição), Brasil (arts. 6º e 196, da Constituição), Chile (art. 19, 9, da
Constituição), Equador (art. 66, da Constituição), Paraguai (art. 68, da Constituição),
Peru (art. 7º, da Constituição) e Venezuela (art. 83, da Constituição) reconhecem a
saúde enquanto um direito constitucional; a Argentina (art. 42, da Constituição)
reconhece constitucionalmente a existência do direito à saúde somente nas relações
de consumo; e a Colômbia, somente reconhece o direito à saúde aos menores de
idade (art. 44, da Constituição).
Por outro lado, a Bolívia (art. 158), o Brasil (art. 196), o Chile (art. 19), a Colômbia (art.
49), o Equador (art. 3º), o Paraguai (art. 68), o Peru (arts. 9º e 11) e a Venezuela (art.
83) reconhecem que a saúde é responsabilidade do Estado através da prestação de
serviços e de ações de saúde. Já a Argentina (art. 42) prevê a proteção do direito à
saúde em ações como a educação para o consumo, a defesa contra as formas de
distorção dos mercados, o controle dos monopólios, dentre outras de natureza
semelhante. O Uruguai trata a saúde estritamente sob seu aspecto individual, ou seja,
ela não é um direito por ser de responsabilidade exclusiva dos indivíduos, com
exceção dos indigentes, carentes de recursos financeiros que, somente nesses casos,
são assistidos pelo Estado.
Em linhas gerais, a grande maioria dos sistemas de saúde sul-americanos está
organizada de forma fragmentada dentro do âmbito da previdência social, atendendo
aos trabalhadores (em regime geral ou em regime previdenciário especial) e aos seus
dependentes, e da assistência pública, atendendo aos desprovidos de recursos; sendo
o primeiro financiado mediante contribuições sociais e o segundo através de subsídios
do governo. Esse é o caso dos sistemas argentino, boliviano, colombiano,
equatoriano, peruano e uruguaio.
21 BORBA, M. N., HOSSNE, W. S., A natureza jurídica da saúde na América Latina e Caribe: um estudo
constitucional comparado, Revista de Direito Sanitário, São Paulo, v. 11, n. 1, p. 26-46, Mar./Jun.
2010.
32
O sistema chileno, apesar de também ter essas características, através do plano de
Acesso Universal com Garantias Explícitas (AUGE), de 2005, passou a garantir o
acesso a serviços de qualidade para 56 problemas de saúde incluindo câncer em
crianças, câncer de mama, transtornos isquêmicos do coração, HIV/Aids e diabetes,
ampliando o acesso.
Esse cenário indica que aqueles indivíduos que não se encontram em uma relação de
emprego formal não estão cobertos contra o risco de doença, caindo, assim, no
assistencialismo estatal. Por outro lado, os que podem pagar, tendem a optar pela
contratação de seguros e planos privados de saúde ou a pagar diretamente por
cuidados privados de saúde. Esse cenário se caracteriza por forte desigualdade na
distribuição de recursos mediante a política de saúde, com importantes impactos em
termos de equidade e acesso.
Em situação diametralmente oposta encontra-se o Brasil. A garantia constitucional de
acesso universal e a integralidade do cuidado, enquanto dever do Estado e direito de
todos os cidadãos, é considerada uma das propostas mais ousadas de política
pública, na medida em que o país é o único no globo a oferecer acesso gratuito no
ponto de utilização para quase 195 milhões de pessoas. Aqui, as distorções que
impactam a equidade e o acesso são um pouco mais sutis, guardando relação com a
forma federativa de estado, a forma de organização e movimentação da máquina
estatal, a forma de financiamento dos serviços e das ações e a possibilidade de
concretização do direito à saúde através da utilização do Judiciário.
Nesse contexto, um novo desafio se apresenta aos sistemas de saúde sul-americanos
oriundo da combinação das consequências da transição demográfica (aumento da
expectativa de vida e queda da taxa de fecundidade abaixo do índice de reposição)
com o consequente envelhecimento da população e mudança no perfil epidemiológico
das
doenças.
Países
antes
atingidos
pelas
chamadas
“doenças
do
subdesenvolvimento”, ou seja, doenças transmissíveis (infectocontagiosas) passaram
a apresentar significativa incidência e prevalência também das doenças então
consideradas “privilégio” do mundo desenvolvido, as chamadas doenças não
transmissíveis (ou crônicas).
Paralelamente, em contexto mundial, houve o retorno de antigas doenças
transmissíveis ao cenário mundial (como, por exemplo, a malária, a tuberculose, etc.),
e surgimento de novas epidemias (vide a Aids), demandando o rearranjo mais
complexo da forma de organização do cuidado. Essa necessidade torna-se mais
evidente nos países que investem comparativamente menos no setor da saúde, como
33
os países sul-americanos, já que o custo de atuar nesse cenário é cada vez mais
elevado.
Tabela 1: Perfil das fatalidades causadas por doenças na América do Sul
O perfil epidemiológico é altamente relevante quando tratamos do mercado de
medicamentos, na medida em que, como dito, as necessidades de cuidado se tornam
mais complexas; isso demanda da indústria farmacêutica pesados investimentos em
inovação para o desenvolvimento de novas drogas, de maior valor agregado, capazes
de lidar com essas complexidades.
E especificamente no contexto das doenças crônicas – cuja prevalência supera os
60% em todos os países da América do Sul, com exceção da Bolívia –, os
medicamentos passam a desempenhar papel fundamental na contenção do avanço
dessas doenças para estágios mais graves e desencadeadores de outras condições
de morbidade relacionadas. Daí os questionamentos sobre o acesso a medicamentos,
a capacidade dos sistemas de saúde em atender as demandas das suas populações e
os novos desafios epidemiológicos, já que aumentar e qualificar o acesso implica,
grosso modo, aumentar custos.
34
Tabela 2: Gastos com saúde dos países da América do Sul
País/2009
(WHO)
Gasto total
com saúde
como
percentual do
PIB
População
(milhões)
Gastos totais
Gasto governo Gastos privados
per capita em per capital total em saúde como
saúde, com
em saúde, com percentual dos
taxa de câmbio taxa de câmbio gastos totais em
médio (US$)
médio (US$)
saúde
Argentina
40,1
9,5
730
485
33,6
Bolívia
10,2
4,8
85
54
36,7
Brasil
194,4
9,0
734
335
54,3
Chile
17,0
8,2
787
368
53,2
Colômbia
49,0
6,4
323
272
15,8
Equador
14,1
6,1
255
124
51,6
Paraguai
Peru
Uruguai
Venezuela
6,3
7,1
159
68
57,1
29,1
4,6
201
118
41,4
3,2
7,4
698
440
36,9
28,6
0
737
295
8,6 Fo
nte: Organização Mundial da Saúde
Nesse
sentido,
a
Organização
Mundial
da
Saúde
(OMS)
adota
algumas
recomendações, no intuito de garantir o mínimo acesso a ações, serviços e produtos
de saúde pelos indivíduos nos países; ela indica que o percentual mínimo de recursos
públicos a ser investido pelos governos no setor de saúde deve corresponder a 6% do
PIB. Acontece que a tabela acima indica percentuais que englobam a participação
privada nos gastos totais com saúde como percentual do PIB. E tal como indicado, os
gastos privados com saúde chegam a 54% do total, no Brasil e 57% no Paraguai.
Nota-se assim que os governos investem muito aquém do que deveriam nos sistemas
de saúde, impondo barreiras financeiras a sua eficiência plena.
Nesse aspecto, a questão do acesso a medicamentos é particularmente relevante. A
figura abaixo indica claramente que o acesso a medicamentos se dá prioritariamente
pela utilização de recursos desembolsados diretamente pelas famílias (out of pocket).
Isso indica que o acesso é pautado pela capacidade econômica dos indivíduos, o que
significa que aqueles mais pobres, ou seja, aqueles que apresentam os maiores riscos
de contrair doenças, são duplamente penalizados por esses sistemas, já que
proporcionalmente, comprometem uma maior parte de sua renda na aquisição de
medicamentos.
35
Gráfico 1: Gasto público e gasto privado per capta com medicamentos
Fonte
: USAID - 2004
Logo, do ponto de vista da saúde pública, na América do Sul, o cenário de baixo
investimento em saúde num contexto que demanda investimentos cada vez mais
elevados implica no fato de que cada vez menos os indivíduos terão condições de
pagar diretamente por serviços e produtos de saúde, principalmente com relação às
doenças não-transmissíveis. Por outro lado, a pressão pela melhora do atendimento
público será crescente.
2.3. A Regulação Técnica na América do Sul
A capacidade técnica é um item bastante relevante a ser observado na análise do
processo de convergência na América do Sul. Isso por sua centralidade na discussão.
Seja via harmonização de regras, equivalência ou mútuo reconhecimento, os países
precisam partir de capacidades semelhantes de regulação e fiscalização para que o
processo de convergência efetivamente se concretize.
Quanto mais díspares estão nesse processo, mais improvável se torna a
convergência, tendo em vista que não apenas o governo, mas amplos setores da
sociedade, não aceitariam procedimentos que facilitem a livre circulação de
mercadorias sem que os patamares mínimos de qualidade mutuamente acordados
sejam garantidos.
36
2.3.1. As agências reguladoras
Todos os governos sul-americanos possuem políticas sanitárias em vigor, cujo
principal objetivo é o de garantir padrões mínimos de proteção à saúde humana. O
setor de medicamentos, dada sua centralidade nas políticas de saúde, é um dos
setores com maior regulação. As agências reguladoras foram criadas para garantir
essa fiscalização de maneira mais ágil e isenta. Elas são órgãos vinculados ao
governo, com razoável autonomia financeira e de gestão, cuja responsabilidade é
implementar e fiscalizar a execução de políticas públicas sobre um dado setor
econômico.
De forma geral, a maior parte dos países com mercados farmacêuticos relevantes
optou pelo uso de agências reguladoras. Dentro do MERCOSUL, Paraguai e Uruguai,
não as possuem. Os países do subcontinente, de maneira geral, possuem grande
quantidade de regulações que podem ser consideradas avançadas, tais como
exigências de registros das diversas atividades da cadeia de produção e distribuição
de produtos farmacêuticos, controle da publicidade sobre medicamentos e combate à
falsificação. O que varia muito é a capacidade dos governos e/ou agências
implementarem as medidas propostas.
Não existe uma ferramenta única para avaliar o perfil regulador de cada Estado na
área de medicamentos. A Organização Pan-Americana de Saúde fornece um
certificado de “Autoridade Reguladora de Referência Regional para Medicamentos”,
que serve como indicativo de um grau mínimo de excelência alcançado pela
autoridade reguladora de medicamentos de um país nas Américas em suas tarefas.
Na América do Sul, apenas as agências da Argentina, Brasil e Colômbia lograram
alcançar esse patamar.
Outro fator relevante para a análise da eficiência e eficácia das agências reguladoras é
o comparativo do tempo e custo para registro de um medicamento. Períodos muito
curtos são indicadores de certa incapacidade da agência reguladora em seu trabalho
de avaliação dos medicamentos que são submetidos a registro, dada a complexidade
envolvida na análise. Um tempo maior para registro pode indicar maiores exigências
de regulação, mas também gargalos e ineficiências no processo. Períodos muito
longos para registro também acabam criando defasagens nos tratamentos disponíveis
dentro do país e no exterior, causando sacrifícios desnecessários a pacientes que
poderiam ter melhores tratamentos disponíveis.
37
Ainda que com dados de 2003, a tabela abaixo ilustra essas diferenças. De um lado
observa-se países cujo processo é bastante célere, demonstrando relativa facilidade
no registro, que pode não ser necessariamente positiva. Mas também há o caso
extremo do Brasil, de grande demora e custo no processo, o que aponta a existência
de espaço para aprimoramento do seu sistema.
Tabela 3: Tempo e custo para registro farmacêutico em países selecionados da
América do Sul (valores de 2003)
Fonte: Banco Mundial
Cada país possui sua forma de tratar o processo de vigilância sanitária, conforme
segue nas próximas linhas. No caso brasileiro existe a ANVISA, que foi apresentada
no sub-capítulo sobre a realidade brasileira.
Na Argentina a responsabilidade pela vigilância sanitária no setor de medicamentos é
da ANMAT (Administración Nacional de Medicamentos, Alimentos y Tecnología
Médica). Trata-se de um órgão descentralizado da administração pública nacional,
criado em 1992, e que colabora com a proteção da saúde garantindo a eficácia, a
segurança e a qualidade de medicamentos. Ele realiza processos de autorização,
registro, normatização, vigilância e fiscalização da elaboração e da comercialização,
bem como a publicidade de medicamentos. Na Argentina, existe ainda a ANLIS, que
supervisiona a elaboração e o controle de qualidade de produtos biológicos, assim
como a investigação e o desenvolvimento para melhoria e geração de novos produtos.
38
Já na Colômbia, esse órgão é o INVIMA (Instituto Nacional de Vigilancia de
Medicamentos y Alimentos), regulamentado em 1994, por determinação da lei do ano
anterior que implantou o “Sistema General de Seguridad Social en Salud" na
Colômbia. Juntamente com o Instituto Nacional de Saúde (INS), o INVIMA realiza a
vigilância, a regulação, a inspeção e o controle de medicamentos e insumos para a
saúde.
No entanto, diferentemente do que ocorre no Brasil, é o Ministério, e não a própria
agência, quem determina as políticas e estabelece as normas de vigilância sanitária.
Tal como ocorre na Argentina, existe um órgão específico para tratar do tema dos
biológicos, no caso o próprio INS que é o encarregado pela rede nacional de
laboratórios de saúde pública e também do desenvolvimento, produção, distribuição
de produtos biológicos, químicos, biotecnológicos e reativos para o diagnóstico
biomédico.
No Chile, o ISP (Instituto de Salud Pública de Chile) é a instituição que além de
supervisionar os laboratórios públicos de acreditação de medicamentos, supervisiona
tudo o que está relacionado com a autorização, controle de qualidade e importação de
medicamentos. Todavia, desde março de 2011, o governo chileno discute a criação de
um novo órgão a ser denominado ANAMED (Agencia Nacional de Medicamentos).
Esse órgão está será inspirado no FDA americano e fará o controle de medicamentos
no país.
Por fim, na Venezuela é de responsabilidade do SACS (Servicio Autónomo de
Contraloría Sanitaria), por meio de sua “Dirección de Drogas, Medicamentos y
Cosméticos”, o registro dos medicamentos e procedimentos de vigilância.
Nos demais países sul-americanos avaliados, a regulação desse setor é mais difusa,
em comissões subordinadas de maneira direta aos ministérios encarregados da área
de saúde.
No Paraguai essas atribuições recaem sobre a “Dirección Nacional de Vigilancia
Sanitaria”, parte do organograma do Ministério de Saúde Pública e Bem-Estar Social
paraguaio. No Peru, desde 1990, existe dentro da estrutura do Ministério da Saúde a
DIGEMID (Dirección General de Medicamentos, Insumos y Drogas).
No Equador, essas funções recaem sobre o próprio Ministério, a quem incumbe
normatizar, regular e controlar as atividades realizadas por entidades públicas e
privadas vinculadas a saúde das pessoas e ao meio ambiente. No Uruguai, a
39
regulação sanitária dos serviços de saúde, a tecnologia para a saúde e dos
medicamentos são de responsabilidade da “Dirección General de Salud” (DIGESE),
com 19 diretorias departamentais.
Finalmente, na Bolívia, a gestão de medicamento é feita pela UNIMED (Unidad de
Medicamentos y Tecnologías de Salud); esta é a instância normativa e fiscalizadora no
âmbito farmacêutico. Pode-se dizer que a UNIMED ainda está em processo de
estruturação, se capacitando para exercer de forma autônoma seu sistema de
vigilância.
Desses perfis, o que se observa é que os países com maior capacidade exportadora,
ainda que não seja possível estabelecer uma relação plena de causa e consequência,
são aqueles com agências reguladoras mais bem estruturadas, à saber: Argentina,
Brasil e Colômbia. Isso pois um fator fundamental para o sucesso na exportação de
medicamentos é a comprovação de sua qualidade. Uma vez que a produção já é
submetida a um padrão mais rigoroso de análise, a acreditação em terceiros mercados
torna-se relativamente mais fácil.
Nesse sentido, a conclusão mais relevante é de que ainda persiste um desnível nas
capacidades de vigilância dos países. E mesmo dentre os países mais avançados
nesse quesito, observando não os padrões de qualidade exigidos, mas a forma de
fiscalização, custos e prazos, há espaço para implantação de melhorias. Certamente,
um melhor equacionamento dessa questão será necessário para que a capacidade
regulatória dos países não se torne impeditivo de um processo que avance além da
convergência política e caminhe para a convergência regulatória.
40
Tabela 4: Entidades reguladoras nos países da América do Sul
Elaboração: Prospectiva Consultoria com fontes diversas
Outro fator que se relaciona com a questão da regulação é a política de medicamentos
genéricos
nos
países.
Os
medicamentos
genéricos
são
aqueles
que,
comprovadamente por testes de bioequivalência e biodisponibilidade, produzem os
mesmos efeitos que o medicamento original, dito de referência, cuja patente deve ter
expirado.
A questão dos medicamentos genéricos é relevante por três razões. Em primeiro
lugar, devido ao considerável barateamento do medicamento, o que desonera a
população e os sistemas públicos de saúde. No Brasil, é estimada uma queda de até
35% do preço, comparativamente ao produto de referência. Em segundo lugar, porque
o parque fabril sul-americano é fortemente voltado para a produção de medicamentos
genéricos. Isso pelo alto custo do desenvolvimento de novos produtos farmacêuticos,
que possam ser patenteados. Como os custos desse desenvolvimento ainda não são
suportáveis pelas indústrias de capital local, a saída para participar do mercado é via
atuação no mercado de genéricos.
41
Por fim, em terceiro lugar, porque o mercado de medicamentos genéricos tenderá a
ser o dominante na indústria, especialmente dentre os medicamentos sintéticos, nos
próximos anos, seja pela questão do custo, seja pela escassez de novos lançamentos
no mercado, enquanto os antigos passam a perder a patente. Em locais de alto
desenvolvimento de seus mercados como Estados Unidos e Europa, os genéricos já
representam
mais
de
cinquenta
por
cento
do
volume
de
medicamentos
comercializados.
O principal ponto que liga a política de genéricos à regulação é sobre a definição do
que é um medicamento genérico e quais serão os estímulos para sua produção e
adoção por médicos e pacientes. Na questão da definição do que é um medicamento
genérico, além da questão da patente, é necessário distinguir quais serão os testes
requisitados
para
sua
aprovação,
em
especial
aqueles
relacionados
à
biodisponibilidade e bioequivalência em relação ao medicamento de referência.
Quanto mais elevados esses testes, maior a segurança para reguladores, indústrias,
médicos e pacientes da plena intercambialidade entre o medicamento genérico e o de
referência.
Box 3: Regulação de Medicamentos similares aqueles obtidos por rotas biológicas no
Brasil
O próximo grande debate sobre produção de medicamentos cuja patente já expirou deverá ser
sobre os medicamentos novos obtidos por rotas biológicas que possuam considerável
similaridade molecular e mesma indicação a outro cuja patente já tenha expirado. Os
medicamentos obtidos por rotas biológicas representam custos crescentes ao SUS e
praticamente não há produção local, o que contribui pesadamente para o déficit comercial. Os
testes e exigências que serão solicitados pela ANVISA influenciarão diretamente a viabilidade
dos produtores locais, o que representará um paradigma nas relações entre a agência e as
indústrias.
Para o registro de produtos biológicos a mais recente Resolução da Diretoria Colegiada da
ANVISA (RDC 55/2010) sobre o tema propõe duas formas para o registro dos medicamentos
biológicos que se enquadrem nesta categoria acima descrita, o processo de “Desenvolvimento
Individual” ou o processo de “Desenvolvimento por Comparabilidade”.
O processo de registro por meio do “Desenvolvimento Individual” requer os mesmos testes
para o lançamento de um produto novo, um dos fatores com maior peso no custo total do
desenvolvimento de um medicamento. Dentre estes testes estão os de fase III, que também
são necessários para o registro de um medicamento inovador novo, sem quaisquer registros
anteriores. Esses testes envolvem um grande número de pacientes voluntários, grande número
de médicos pesquisadores envolvidos e um período mais longo de tempo que todos os demais.
O resultado desta fase de testes deve ser de no mínimo, um desempenho equivalente ao
tratamento da mesma doença que outro medicamento biológico já registrado possua. Este
processo de registro é o único atualmente aceito, em casos semelhantes, pelo mais influente
órgão regulador do mundo, o FDA nos Estados Unidos. Todavia, nova legislação implementada
pelo governo norte-americano por meio do “Biologics Price and Competition and Innovation
Act” pode trazer parâmetros mais flexíveis para este processo de aprovação.
O segundo processo de registro é o de “Desenvolvimento por Comparabilidade”. Apesar de se
tratar de uma avaliação com grande grau de ineditismo entre as agências reguladoras
42
mundiais, ela já foi tratada pela Organização Mundial da Saúde no documento “Guidelines on
evaluation of similar biotherapeutic products (SBPs)” da OMS, em outubro de 2009 e também
já está sendo aplicado, de maneira semelhante, pelo Canadá e pela EMEA (a agência europeia
de regulação de medicamentos). A aprovação do registro neste processo é feita pela
comprovação de semelhança com outro produto já registrado pela mesma agência reguladora.
Nesta proposta a ANVISA exigirá apenas o dossiê completo sobre qualidade de produção.
Haverá também necessidade de apresentação de provas de comparabilidade entre o novo
produto e o já registrado, especialmente por meio da apresentação de testes não-clínicos
reduzidos e testes clínicos apenas comparativos. O novo produto à ser registrado deverá ter
forma farmacêutica, via de administração e concentração idênticas ao medicamento de
referencia.
E é nesse segundo processo que reside o debate. Tanto o documento da OMS quanto a
resolução da ANVISA não fornecem detalhes sobre os testes e provas necessários ao registro
por essa via. Questões sobre a quantidade mínima de pacientes necessários para se
configurar um teste clínico comparativo ou quais são os testes necessários para que se faça
prova de comparabilidade não foram respondidas. Espera-se que em breve defina-se uma
regulamentação para esta Resolução da ANVISA que defina estas e outras questões sobre
este processo de registro. E é nessa negociação, tentando equacionar necessidades de
segurança e anseios pela entrada de novos produtores locais no mercado, que se encontram
técnicos, governo e indústrias.
Por sua vez, ações de estímulo ao mercado de genéricos também são relevantes.
Essas ações podem ser concernentes ao processo de registro, que pode ter menores
custos ou prioridade no processo de análise, a exemplo do que ocorre no Brasil.
Outras se referem à relação de prescrição e consumo desses medicamentos.
Obrigação de a receita conter referência apenas à nomenclatura internacional do
princípio ativo do medicamento ou possibilidade de oferta de troca ao paciente, pelo
farmacêutico, do produto de referência por um genérico, caso disponível, são
exemplos de ações nesse sentido.
No Brasil, os medicamentos genéricos são regulados pela lei 9.787/99. A Resolução n.
391 da ANVISA, regulamentou essa lei, indicando o processo para que um
medicamento fosse considerado como genérico, e quais testes deveriam ser utilizados
para sua aprovação. Os principais incentivos para os genéricos feitos foram um
modelo de priorização no registro dos medicamentos desse tipo e o direito do paciente
a solicitar a versão genérica do medicamento ao seu médico, ou de oferta de troca
pelo farmacêutico, quando não expressamente vetada pelo médico.
Na Argentina, com a severa crise econômica do início do século XX, medidas foram
tomadas às pressas para baixar os gastos com saúde do governo. Dentro desse
escopo, a política de implementação de medicamentos genéricos teve participação
central no processo. Por meio do Decreto No 496/2002, que estabeleceu a
emergência sanitária (posteriormente transformado na Lei No 25.649 a “Lei dos
Genéricos”), se estabeleceu a Resolução No 326/2002, que obrigava os profissionais
de saúde a receitar o nome genérico (princípio ativo do medicamento) em suas
43
receitas, bem como a Resolução No 201/2002, que determinava o financiamento
seletivo na indústria farmacêutica voltado para o mercado de genéricos. A lei vigora
até hoje sob críticas à ANMAT, agência reguladora do setor de medicamentos, por
supostas falhas no controle dos testes para garantir a equivalência entre genéricos e
medicamentos de referência. Dessa forma, setores opositores à politica do governo
apontam a existência de uma série de “cópias piratas” (medicamentos que não
atenderiam os critérios mínimos de biodisponibilidade e bioequivalência para serem
denominados genéricos) de medicamentos no mercado argentino.
Por sua vez, no Chile, está em tramitação no Senado um Projeto que determina a
prescrição compulsória, por meio de receita médica, da fórmula genérica dos
medicamentos, pelos médicos chilenos. O Projeto recebeu críticas da Asilfa
(Associação Farmacêutica Chilena), que alega que ele poderá implicar na redução da
qualidade dos medicamentos disponíveis à saúde coletiva chilena. Apesar disso, o
país conta com uma moderna legislação no campo das patentes, garantida por
acordos bilaterais com os EUA. Isso deve evitar a disseminação indiscriminada de
“cópias piratas”. Ademais, paralelamente, a agência reguladora de medicamentos
chilena promete intensificar os controles de qualidade e equivalência, impedindo a
fabricação indiscriminada de medicamentos de baixa qualidade.
Já na Colômbia, o debate a respeito dos medicamentos genéricos surgiu em 1993, na
Lei No 100, que instituiu o Sistema de Seguridade Social colombiano. Nessa lei,
estava prevista a elaboração de uma lista de medicamentos genéricos que os médicos
poderiam indicar e fazer uso. Em novembro de 2010, após anos de discussões e de
desconfianças a respeito da qualidade dos medicamentos genéricos colocados no
mercado, o Ministério da Proteção Social da Colômbia determinou que os médicos
deveriam, compulsoriamente, receitar medicamentos genéricos. Os medicamentos de
marca só poderão ser receitados sob justificativa, por escrito do médico, de sua estrita
necessidade. Essa política deve incentivar o já expressivo mercado de medicamentos
genéricos colombiano.
Por fim, na Venezuela, a partir da Lei dos Medicamentos, de agosto de 2000, todos os
entes do serviço público de saúde ficaram obrigados a adquirir medicamentos
genéricos, salvo se essa versão não exista ou esteja indisponível. No âmbito das
patentes, a Venezuela conta com uma legislação bastante antiga, de 1955, e vem
tomando nos últimos anos uma série de medidas para minar o poder de proteção da
propriedade intelectual, apesar de não ter rompido oficialmente com a sua defesa
(prevista em Constituição do país). Para isso, procurou divulgar amplamente todas as
44
técnicas, métodos e tecnologia empregada na produção de diversos medicamentos,
na tentativa de expandir a produção de genéricos no país, bem como tem posto
barreiras para novos registros de medicamentos protegidos.
2.4. Comércio Exterior
Um ponto que indica o maior ou menor sucesso das políticas industriais e de
integração comercial e a atuação da indústria local, sobretudo nos países com
mercados pequenos, como é o caso da maior parte dos países sul-americanos, é o
valor comercializado com o exterior. Para analisar a situação da América do Sul foram
utilizados dados das posições 3002 e 3004.
Essas posições são especialmente relevantes, porque permitem um retrato sensato do
comércio de medicamentos. Na posição 3002 estão representados os medicamentos
biológicos, principalmente sangue e hemoderivados, vacinas e os anticorpos
monoclonais (classe de medicamentos de ponta, obtidos por rotas biológicas e de alto
valor agregado). Já na posição 3004 estão os medicamentos obtidos por rotas
sintéticas acabados, prontos para a venda no varejo.
Inicialmente, foram analisados os dados de 2008 e 2010 do comércio agregado de
todo o subcontinente, tanto de transações com o exterior, como transações entre os
países sul-americanos. A primeira observação é de que o conjunto de países vive um
déficit comercial severo, com um saldo negativo de mais de U$11,5 bilhões em 2010.
Isso em contexto em que o acesso a medicamentos ainda está muito restrito e os
governos têm severas deficiências em prover o pleno acesso à medicamentos.
Há também necessidade de atenção ao fato de que em apenas dois anos o déficit na
posição dos biológicos (3002) quase dobrou, passando sua participação no déficit de
31% para próximos 38%. Fato relevante é que quase metade desse aumento do déficit
foi causado apenas pelo Brasil (valor adicionado em seu déficit de aproximadamente
U$1 bilhão a mais em apenas dois anos).
45
Tabela 5: Importação e Exportação de Medicamentos na América do Sul
América do
Sul
Total Imp
Posição 3004
Posição 3002
2008
9.315.062.796
6.871.750.450
2.443.312.346
2010
12.745.241.477
8.315.114.183
4.430.127.294
Total Exp 2008
Posição 3004
Posição 3002
1.940.267.443
1.791.598.431
148.669.012
1.218.023.579
1.097.360.336
120.663.243
-7.374.795.353
-5.080.152.019
-2.294.643.334
-11.527.217.898
-7.217.753.847
-4.309.464.051
Saldo
Comercial
Posição 3004
Posição 3002
Fonte: UN Comtrade e Aliceweb Mercosul. Para Chile e Venezuela foram considerados dados
de 2008 e 2009.
Em seguida, foram analisados os valores em dólares FOB para o ano de 2010, por
país. Recebem destaque alguns itens. Em matéria de biológicos, na posição 3002 as
exportações são muito baixas, sendo lideradas pela Argentina em U$91 milhões. O
déficit na posição 3002 tem peso significativo para a maioria dos países, mas sendo
especialmente alto no Brasil, na ordem de U$2,6 bilhões.
Quanto aos sintéticos, verifica-se que a Venezuela é fortemente demandante de
medicamentos importados, sendo a segunda colocada em déficit. O Brasil lidera a
posição de maior importador e exportador de sintéticos.
Como exportadores de
medicamentos sintéticos também cabem destaques a Argentina e Colômbia. Para o
tamanho total de seu mercado pode-se dizer que a Colômbia possui um bom
desempenho em exportação, comparativamente aos demais países. O desempenho
da Argentina também merece destaque, sendo o país que mais se aproxima de um
equilíbrio proporcional entre importações e exportações de medicamentos sintéticos.
46
Tabela 6: Importação e Exportação de Medicamentos nos países da América do
Sul (USD)
País/2010 Imp 3004
Argentina
775.284.995
Bolívia
84.395.105
Brasil
3.145.743.111
Chile*
475.298.355
Colômbia
864.643.653
Equador
640.165.244
Paraguai
80.757.142
Peru
322.840.539
Uruguai
107.382.228
Venezuela* 1.818.603.811
Exp 3004
Imp 3002
Exp 3002
565.590.221
586.389.072 90.990.876
1.511.588
38.743.039
0
898.466.837 2.599.777.020 58.973.482
96.188.099
82.050.379 2.996.213
319.869.189
470.893.924 11.594.109
47.389.577
109.044.527 2.398.872
31.959.077
28.979.189 4.220.373
26.374.618
175.871.244 2.670.227
67.137.191
38.191.179 20.076.876
20.239.579
300.187.721 6.117.791
Fonte: UN Comtrade e Aliceweb Mercosul. (*)Dados de 2009
Essas proposições ficam mais claras quando analisadas as participações dos países
no total importado e exportado pelos países sul-americanos. Note-se que Argentina e
Colômbia participam mais da exportação do que da importação (ainda que ambas
sejam deficitárias) e que o Brasil lidera em valores. Também se destaca a posição da
Venezuela apenas como grande importador.
Gráfico 2: Participação nas Importações e Exportações da América do Sul 2010
(3002 e 3004)
Fonte: UN Comtrade e Aliceweb Mercosul. (*)Considerados dados de 2009.
Em seguida, observa-se outro dado relevante, o percentual das exportações, por país,
destinadas à América do Sul. Percebe-se que para a maioria dos países o mercado
47
sul-americano representa mais de 50% do total exportado. Para os principais
exportadores, Brasil, Argentina e Colômbia, as exportações destinadas à América do
Sul são de respectivamente 39,5%, 66,4% e 61,3%. Isso indica a importância relativa
do subcontinente nas exportações.
Gráfico 3: Porcentual das exportações das posições 3002 e 3004 com destino à
América do Sul
Fonte: UN Comtrade e Aliceweb Mercosul. (*)Dados de 2009.
Em valores, outro dado se evidencia, o de que, ainda que sejam mercados
importantes para exportação, os países sul-americanos não estão entre os maiores
fornecedores em valores entre si. Por exemplo, de um total importado de
medicamentos sintéticos acabados pelo Brasil de U$3,1 bilhões, apenas U$110
milhões têm origem na América do Sul. Esse é um importante indicativo do quanto os
países sul-americanos podem avançar em conquista de abastecimento e integração
mútua de cadeias produtivas.
48
Tabela 7: Comércio intra-regional de medicamentos (USD)
País/2010 Imp 3004
Exp 3004
Imp 3002
Exp. 3002
Argentina
96.258.840 384.530.227
2.863.284 51.457.698
Bolívia
56.072.013
1.392.912
6.098.576
0
Brasil
110.481.590 342.911.132 35.591.356 35.535.557
Chile*
108.450.956 80.137.131
2.282.763 1.772.194
Colômbia
113.770.509 194.792.222 13.721.727 8.533.249
Equador
289.314.438 322.063.957
7.096.956 2.393.472
Paraguai
55.274.236 26.808.138
9.310.488 4.027.289
Peru
96.476.174 20.972.858
2.741.098 2.389.567
Uruguai
48.154.153 32.578.871
4.164.875 14.175.285
Venezuela* 349.439.630 10.843.373 22.661.143
378.932
Fonte: UN Comtrade e Aliceweb Mercosul. (*)Dados de 2009.
Como outra forma de avaliar esse potencial, não apenas pelo viés do tamanho do
mercado, mas também pela capacidade das industrias locais, vemos um claro sinal de
que já existem diversas empresas operando regionalmente, e que certamente se
beneficiariam com o processo de convergência. Em levantamento da Prospectiva
Consultoria seguem algumas das principais empresas envolvidas nesse processo de
produção regional.
A principal conclusão dessa análise do comércio exterior é que a região ainda não
desenvolveu uma forte capacidade exportadora, mas que, apesar disto, o mercado sul
americano ainda é o principal absorvedor da produção local exportada. Também é
visível que existe um amplo espaço para o aumento desse comércio intra-regional, e
que já existem empresas de diversas nacionalidades iniciando atuação neste sentido.
Por fim, esse processo poderia ser largamente beneficiado com o processo de
convergência regulatória, em seu sentido estrito, com processos de harmonização,
reconhecimento mútuo e equivalência.
49
Tabela 8: empresas farmacêuticas com presença regional (não exaustivo)
Empresas com Presença Regional
BRASIL
ARGENTINA
CHILE
COLOMBIA
X (Adquiriu recentemente
pequena indústria local e
terceiriza produção em
outras)
Roemmers
X (Possui participação no
Farmoquímica (RJ)
X
X
Bagó
X (matriz e unidade fabril no
RJ)
X
X
X
x
X
X
X
x
Recalcine (CFR)
Saval
VENEZUELA
X
DEMAIS
Exporta para quase todos os países da América Latina (inclusive México).
Focado na região andina, em vias de comprar laboratório pequeno no Perú.
Quer aumentar participação no mercado brasileiro.
X (Inaugurada em Terceirizações ainda na Bolívia, Equador, Paraguai e Perú. Exporta para toda a
2010)
América Latina.
x
Exporta para 16 países no total, sendo 14 da América Latina e 2 asiáticos
(Tailândia e Vietnã)
Terceirações de fábricas locais para produção em 7 países latino-americanos:
Bolívia, Uruguai, Paraguai, Panamá, Equador, Perú e El Salvador).
Tecnoquímicas
X (Representado pela
Vanmax, em Manaus)
X
X
X
X
Possui unidade fabril própria no Equador, El Salvador, Guatemala, Honduras,
Nicaragua, Panamá e República Dominicana, e terceiriza produção em 21
países das Américas, inclusive nos EUA.
Procaps
x
x
x
X
X (Parceria com
Vivax)
Como atua como intermediário (insumos não relacionados á principio ativo),
importa e exporta para dezenas de indústrias, inclusive várias dos EUA.
x
X
X
X
Possui unidade fabril própria no Paraguai, Perú, Equador e Guatemala, e
terceiriza produção em outros 7 países latino-americanos além de Chile e
Venezuela (Bolívia, Nicarágua, El Salvador, Costa Rica, México, Panamá e
Honduras)
X (Adquiriu recentemente
laboratório IMA)
x
x
x
Exporta atualmente para mais de 30 países, dos quais 17 são latinoamericanos. Expansão internacional, iniciada recentemente, deve se
expandir com aquisições futuras no Perú e no México.
x
Além do Quesada e do Volta, a Eurofarma adquiriu em 2010 o uruguaio
Gautier, com fábricas também no Paraguai. Internacionalização faz parte dos
projetos estratégicos da empresa, e aquisições devem prosseguir.
Exportações já para diversos países latino-americanos. Meta de atingir 90% do
mercado até 2015.
Genfar
Cristália
Eurofarma
X
X
X (Adquiriu recentemente
laboratório Quesada)
X (Adquiriu em 2010
laboratório Volta)
x
Elaboração: Prospectiva Consultoria, com fontes diversas
50
Capítulo 3: O Processo de Convergência Regulatória
Frente à multiplicidade de acordos que versam sobre a área de saúde na região e
no subcontinente (como exemplo, a Venezuela participa oficialmente de seis
iniciativas e o Brasil de quatro), somente no MERCOSUL existe de fato uma
iniciativa que ultrapassa o viés político e que trata efetivamente de convergência
regulatória no setor de medicamentos.
Acordos com interface na área de Saúde na América do Sul
Obs.: Todos os países do subcontinente também estão envolvidos nas discussões
da Rede Parf-OPAS e na UNASUL-Saúde.
Figura 4: Acordos com interface na área de saúde na América do Sul
Elaboração: Prospectiva Consultoria com fontes diversas
* ORAS-CONHU: Organização Andina de Saúde – Convênio Hipólito Ununae
** OTCA: Organização do Tratado de Cooperação Amazônica
3.1. O MERCOSUL e o SGT-11
O MERCOSUL foi criado como uma iniciativa de integração econômica que teve
início com o processo de redemocratização e reaproximação vividos por Brasil e
Argentina. Seus principais marcos são os seguintes:
•
Tratado de Assunção (1991) Estabelecimento de um mercado comum
51
•
Protocolo de Ouro Preto (1994) Estrutura Institucional do Mercosul
•
Protocolo de Olivos (2002) Mecanismo de Solução de Controvérsias
•
Protocolo Constitutivo do Parlamento do Mercosul
•
Protocolo de Acesso da República Bolivariana da Venezuela ao Mercosul
(2006)
No entanto, é importante notar que esses cinco documentos básicos legais não
esgotam as fontes jurídicas que compõem as regras do MERCOSUL. Além do
Tratado de Assunção, seus protocolos adicionais e os acordos, o MERCOSUL
também tem como fontes legais todas as decisões, resoluções e diretivas emitidas
pelos seus órgãos institucionais.
O interesse econômico que moveu as partes no momento de fundação fez que
fossem criadas instâncias para garantir a harmonização e processos para que os
países-membros pudessem internalizar suas diretrizes.
Dentro do bloco foi criado o “MERCOSUL Saúde”. Essa iniciativa é composta pelas
reuniões periódicas entre os Ministros da Saúde dos países membros e um grupo de
trabalho, o SGT-11, para harmonização regulatória. Importante destacar que dentre
as prioridades do MERCOSUL Saúde está a harmonização e a homologação de
normas nacionais nos segmentos de produtos, atenção à saúde e vigilância em
saúde.
De fato, no MERCOSUL, além do SGT-11, existem também outros 14 subgrupos de
trabalho (SGT) onde são discutidas a harmonização de documentos, regulações
técnicas e procedimentos de avaliação de conformidade que serão, idealmente,
incorporados aos sistemas legais dos Estados membros. Os SGTs estão ligados ao
Grupo Mercado Comum (GMC), órgão executivo do Conselho Mercado Comum
(CMC), criado pela Resolução 151/96. E é no âmbito destes subgrupos de trabalho
que ocorre a harmonização da regulação, inclusive no setor de saúde.
Ilustrativamente, a ANVISA (Agência Nacional de Vigilância Sanitária) participa de
dois desses subgrupos, o próprio de número 11 e também o de número 3, sobre
regulações técnicas e procedimentos de avaliação de conformidade. O objetivo não
era o de criar um registro único de medicamentos, mas permitir que medicamentos
que circulam entre os países membros atendam a um denominador comum,
facilitando os registros individuais em cada país. Esse processo só não avançou
52
mais devido às sensibilidades que cada país membro possui em decorrência de
características de sua política industrial e de regulação de saúde pública.
Os trabalhos do SGT 11 estão organizados de acordo com um calendário de
negociação sobre temas de interesse comum que foram priorizados na Resolução
GMC 13/07. Entre esses temas estão: a harmonização de legislações e diretivas, a
promoção de cooperação técnica e coordenação de ações com vistas à integração
dos estados membros no campo da saúde; o alinhamento dos sistemas de controle
em saúde como forma de reforçar o processo de integração dentro do MERCOSUL;
e a definição da relação do SGT 11 com as demais instâncias do MERCOSUL
visando à integração e a complementação de ações.
Atualmente, a Comissão sobre Serviços de Atenção à Saúde, a Comissão sobre
Produtos de Saúde e a Comissão sobre Vigilância Sanitária, juntamente com as
subcomissões e grupos ad hoc, estão ligados ao SGT 11. As subcomissões,
integrantes dos subgrupos de trabalho, são compostas por representantes dos
Estados membros, que trabalham baseados em suas respectivas políticas nacionais
de saúde com o objetivo de produzir um consenso regional.
Nesse sentido, é importante compreender o processo de harmonização de normas
dentro da lógica do MERCOSUL. Tem-se, com isso, o objetivo de avaliar a
efetividade do processo de harmonização em si, enquanto condição para a
aplicabilidade equânime dessas normas acordadas que vai refletir, logicamente, na
sua aplicabilidade nas relações entre países membros. Em 13 anos de existência,
foram aprovadas 331 decisões do CMC, 1023 resoluções do GMC e 140
recomendações do CCM, totalizando 1494 regras, das quais 150 foram anuladas.
Norma é a regra provida de sanção externa e institucionalizada. Diante disso, é vital
que as decisões mais importantes tomadas no âmbito do MERCOSUL sejam
incorporadas nos sistemas jurídicos nacionais, ou então elas terão a mesma força
de meras declarações de intenção. O art. 42 do Protocolo de Ouro Preto estabelece
que as regras do MERCOSUL sejam de observância obrigatória e, quando
necessário, elas devem ser incorporadas aos sistemas legais nacionais de acordo
com os procedimentos estabelecidos em cada um deles.
Ainda de acordo com esses protocolos, os países membros se comprometem a
adotar as medidas necessárias para assegurar o cumprimento das regras do
MERCOSUL e a informar à Secretaria Administrativa sobre essas medidas. Uma
vez a regra aprovada, os Estados devem tomar medidas para incorporá-las aos
53
seus sistemas nacionais e informar a Secretaria. Contados 30 dias dessa
informação, as regras começam a produzir efeitos.
Todavia, o Protocolo não estabelece um prazo para que as regras sejam
incorporadas, o que significa que a validade simultânea de uma regra não existe no
MERCOSUL. Isso cria uma disparidade em termos de validade de regras para os
diferentes países membros.
Esse processo de produção e harmonização de regras pode trazer três questões
para debate: 1) a incompatibilidade entre regras; 2) a dificuldade de incorporação
das regras nos sistemas jurídicos nacionais e a validade diferenciada entre elas; e,
3) a ausência de interpretação e aplicação uniforme de regras do MERCOSUL nos
países membros do bloco.
A incompatibilidade de regras acontece em dois âmbitos. Um interno, que se dá
entre as próprias regras do MERCOSUL de mesmo ou de diferentes níveis. E outro
externo, que é o conflito que se estabelece entre as regras do MERCOSUL e os
sistemas legais nacionais, mas também com as regras internacionais de outras
fontes.
A dificuldade relativa à incorporação tentou ser resolvida pela Decisão CMC 20/02
sobre o aperfeiçoamento do sistema de incorporação das regras do MERCOSUL
pelos sistemas legais nacionais. E estabeleceu um mecanismo de consulta prévia
capaz de produzir textos legais compatíveis com os sistemas nacionais, facilitar o
controle da incorporação das regras do MERCOSUL com o estabelecimento de
prazos e condições para incorporação de regras designadas pelos Estados
membros no processo de elaboração.
Quanto à ausência de uniformidade, a Decisão CMC 37/03 faz uma solicitação para
a Corte Permanente de Revisão. Apesar das regras do Protocolo de Ouro Preto, o
bloco conta um número considerável de regras. A complexidade dos processos
aumenta, na medida em que haja a intenção de aumentar a participação do setor
privado e a integração da sociedade civil no processo legislativo.
Como um processo fragmentado e desarticulado, ainda basicamente voltado à
cooperação e a troca de experiências na gestão e desenvolvimento da saúde, a
América do Sul ainda não dispõe de uma plataforma para um processo de
harmonização e regulação que seja capaz de abranger territorialmente todos os
Estados do subcontinente. Talvez, no longo prazo, a UNASUL consiga se estruturar
54
além de um fórum político para um fórum econômico, tornando-se capaz de
preencher este papel. O fórum de convergência e harmonização para o Brasil, de
fato, continua sendo o MERCOSUL.
O grande desafio do MERCOSUL será harmonizar as questões e interesses de seus
membros para a definição de um denominador comum, que permita a execução de
projetos políticos industriais e de acesso à saúde de cada membro. Também será
relevante atentar para o fato de que muitas dessas questões acabarão sendo
discutidas multilateralmente nas novas instituições da UNASUL antes de serem
tratadas entre os quatro membros do bloco; logo, uma resolução tomada na
UNASUL afetará as decisões praticadas dentro do MERCOSUL. Outro desafio será
acomodar a Venezuela às decisões já tomadas pelo bloco e integrá-las as próximas
negociações vis-à-vis suas ambições dentro da ALBA.
Por outro lado, a própria convergência regulatória tem um caráter mais tangível no
sentido de produzir decisões que vinculam aqueles Estados que acordam entre si.
Dado o seu caráter eminentemente comercial, o reflexo dessa convergência dentro
dos blocos econômicos da região sul-americana é mais significativo.
O fato de os projetos de Resolução aí elaborados, uma vez aprovados pelo Grupo
Mercado Comum, passarem a ser uniformemente aplicados a todos os países do
bloco, após o devido procedimento de internalização, facilita sobremaneira a
articulação política em torno de temas estratégicos, tal como o da saúde. Nesse
sentido, o MERCOSUL, sexto maior consumidor de medicamentos do mundo, passa
a ser considerado nas suas características agregadas, como plataforma para a
implementação de políticas de saúde, se não comuns, ao menos com objetivos
comuns em termos de acesso e de cuidado.
No entanto, não se trata de ignorar os aspectos políticos envolvidos nas discussões
técnicas com reflexo comercial. Os aspectos políticos são igualmente considerados
nas negociações do MERCOSUL, na medida em que existe um foro específico para
isso. No caso da saúde, essas discussões ocorrem nas reuniões ministeriais. Por
outro lado, as discussões técnicas passam a ser extremamente importantes em
foros tal como o SGT No 11 “Saúde”. Assim, o alinhamento dos países ocorre,
concomitantemente, nesses dois aspectos.
De acordo com o anexo da ata da última reunião desse SGT, que ocorreu em
Assunção, no Paraguai, entre os dia 4 e 8 de abril de 2011, existia, até aquela data,
217 Resoluções do Grupo Mercado Comum (GMC), pertinentes a área da Saúde,
55
que foram incorporadas aos ordenamentos jurídicos dos países-membros. Da
análise dessas resoluções, é significante o fato de que das 217 resoluções
produzidas e incorporadas nos sistemas legais nacionais ao longo de 18 anos,
23,5% (51) se referirem direta e indiretamente ao setor farmacêutico (de
medicamentos).
Mais precisamente, 21 delas se referem a medicamento ou produto farmacêutico,
sendo que 3 delas se referem ao registro desses produtos; 14 empregam o termo
substância entorpecente ou psicotrópica ou alteração de substância (1); duas tratam
de soluções parenterais de grande volume; seis empregam o termo indústria
farmacêutica ou indústria farmoquímica; uma resolução emprega o termo
estabelecimento farmacêutico; duas utilizam o termo substância parenteral de
grande volume; uma trata do reconhecimento de registro entre os países; uma trata
de re-inspeção; uma trata de boas práticas de fabricação e controle, sem especificar
o objeto a que se refere; uma trata sobre vacinas (Res. No 53/08) e uma sobre a
farmacovigilância no âmbito do MERCOSUL (Res. No 45/07).
Tabela 9: Resoluções GMC internalizadas nas ordens jurídicas nacionais sobre
medicamentos.
Elaboração: Prospectiva Consultoria. Fonte: SGT 11 Mercosul
56
Tabela 10: Resoluções GMC internalizadas nas ordens jurídicas nacionais
sobre registro de medicamentos.
Elaboração: Prospectiva Consultoria. Fonte: SGT 11 Mercosul
Tabela 11: Resoluções GMC internalizadas nas ordens jurídicas nacionais
sobre indústria farmacêutica.
Elaboração: Prospectiva Consultoria. Fonte: SGT 11 Mercosul
Com relação às Resoluções aplicáveis ao setor farmacêutico, é interessante notar
uma concentração da produção normativa no ano de 1996: somente nesse ano, 10
Resoluções foram aprovadas, de um total de 21 resoluções em 18 anos. Igualmente
interessante é o fato de, depois desse intenso período de atividade, ter havido um
fosso de quase seis anos, entre 2002 e 2008, onde não foram aprovadas
Resoluções.
Nesse sentido, cabe lembrar que, quando se pensou a própria instituição do
MERCOSUL, enquanto bloco comercial, a intenção era que ela se desse de forma
gradativa, na medida em que os países-membro se encontravam em situações
socioeconômicas significativamente diferentes. Era um movimento que deveria ser
mais cauteloso, para que nenhuma distorção fosse gerada no processo de
integração.
No entanto, a entrada em vigor do Protocolo de Ouro Preto, já em 1994, ou seja,
apenas 3 anos após a criação do bloco, deu um fôlego renovado ao processo de
integração comercial com a instituição da união aduaneira e da tarifa externa
comum. Esse fôlego foi sentido imediatamente nas áreas técnicas do bloco. Com
57
relação à saúde, inicialmente tratada no SGT No 3, foi criado em 1996 o SGT No 11,
como medida clara de acelerar o processo de integração ao redor de uma discussão
técnica mais abalizada na área.
Esse fato explicaria a concentração normativa no ano de 1996, no setor
farmacêutico. Cabe ressaltar que essa concentração normativa foi ousada, na
medida em que adentrou temas sensíveis como os regimes e procedimentos de
inspeção na indústria, a verificação das boas práticas de fabricação e controle na
indústria farmacêutica, sobre os requisitos para registro de produtos farmacêuticos
produzidos em um Estado-parte similar a um produto do Estado receptor, etc.
Esses temas eram tidos como sensíveis, principalmente porque havia uma clara
discrepância técnica e regulatória entre os Estados-partes. Essa discrepância, na
prática, tenderia a fazer que, na ânsia de harmonizar o setor, os níveis de exigência
regulatória, ou seja, os níveis de proteção à saúde, tivessem uma queda
significativa, pelo simples fato de que os Estados não dispunham de uma estrutura
regulatória adequada para proteger a saúde da população.
Por outro lado, a proteção à saúde não poderia representar uma barreira
significativa ao comércio ou a entrada de novos players nos mercados nacionais,
pelo fato de que o estímulo ao desenvolvimento econômico e social do país poderia
ser considerado tão ou mais importante que cuidados adicionais à proteção da
saúde.
Essa divergência de entendimentos evidenciada por essa ânsia normativa fez que
os ânimos harmonizadores se arrefecessem e perdessem fôlego, ocasionando,
assim, uma baixa atividade normativa no setor nos anos subsequentes. No entanto,
apesar de a atividade normativa ter continuado em menor escala, podemos notar
que ela ficou mais restrita a assuntos menos impactantes na produção propriamente
dita do setor, principalmente se comparamos com outros setores.
Comparativamente, o processo de harmonização regulatória se distingue daquele
vivenciado pela União Europeia pela conformação diferente dos blocos. No
MERCOSUL as instituições são intergovernamentais e todas as decisões precisam
ser tomadas por consenso, o que quer dizer que não existem organismos dentro do
bloco que exerçam atividades ou funções de maneira independente e vinculante a
todos os países do bloco. Por isso a necessidade do consenso nas decisões do
SGT-11 e de internalização das normas harmonizadas.
58
Por sua vez, na União Europeia, existe um processo de criação de instituições
supranacionais, cujas atribuições se sobrepõem aquelas anteriormente exercidas
por cada país. Também, muitas vezes. suas decisões podem não depender do
consenso para serem tomadas e, em algumas delas, o critério técnico é o decisório
dentro da instituição.
O resultado é que se torna possível a existência de um organismo supranacional
para medicamentos, no caso a EMEA. De outro lado, é pouco provável, dadas as
diferenças apresentadas, que o MERCOSUL adote uma agência com escopo e
capacidade semelhante, ainda que pudesse ser muito útil para o processo de
harmonização e fosse capaz de resolver a questão da assimetria de capacidade
regulatória entre os países do bloco, haja vista que as atividades de regulação de
medicamentos estariam concentradas com a nova instituição.
Dessa maneira, o MERCOSUL precisará avançar em novas soluções para retomar o
vigor nos processos de harmonização e vencer as barreiras que ainda dificultam o
comércio regional.
3.2. Reflexos de uma harmonização incompleta
O resultado desse processo parcial de harmonização foi que restaram muitos
gargalos ao processo exportador, possivelmente impedindo que o dinamismo das
trocas comerciais e da livre circulação de mercadorias alcançasse seu ponto mais
alto.
Em estudo elaborado pela Prospectiva Consultoria sobre “Logística de Exportação
de Medicamentos no Brasil”, verifica-se que muitos dos gargalos permanecem
aplicáveis aos processos de importação e exportação de medicamentos, inclusive
quando a origem ou destino é um outro país membro do MERCOSUL.
Em um processo avançado de harmonização, que incluísse uma maior liberdade
para a circulação de mercadorias, a quantidade de processos e documentos
necessários à importação e exportação, ao menos nas transações com os demais
membros do bloco, seria desnecessária.
59
Figura 5: Fluxograma de Importação, com seus respectivos gargalos
Elaboração: Prospectiva Consultoria
60
Figura 6: Fluxograma de Exportação, com seus respectivos gargalos
Elaboração: Prospectiva Consultoria
Como se observa, para além dos procedimentos de fabrico e distribuição dos
medicamentos, existem uma série de tramites relacionados apenas à burocracia do
comércio exterior e a autorizações das agências sanitárias que, de um lado acabam
por indiretamente não reconhecer o trabalho de suas contrapartes e, de outro,
dificultam a livre-circulação de mercadorias em um mercado comum.
61
Ainda que mais profundo do que o escopo do MERCOSUL, a proposta da União
Europeia de registro único mostrou o quão bem-sucedida em fomentar o comércio e
diminuir os custos uma posição de harmonização e mútuo reconhecimento pode ser,
não apenas pela melhora no comércio, mas também pela redução de custos dos
medicamentos, que passam a circular com maior fluidez e sem necessidade de
testes e procedimentos duplicados.
Mesmo que não totalmente creditáveis a essas falhas, o comércio exterior do bloco
certamente sofre conseqüências, pela dificuldade das empresas em construir
arranjos produtivos capazes de efetivamente se aproveitar das vantagens de um
mercado comum. Desde 1997, o total exportado de medicamentos acabados,
hemoderivados, vacinas e alguns biológicos, das posições 3002 e 3004, intrabloco
tem caído de participação em relação ao total exportado para terceiros países.
Gráfico 4: Exportação de Produtos Farmacêuticos Acabados Selecionados no
Mercosul
Fontes: Comtrade UN
62
Gráfico 5: Valor das exportações totais de produtos farmacêuticos acabados
selecionados – Membros do Mercosul (Posições)
Fontes: Comtrade UN
Gráfico 6: Valor das Exportações de Produtos Farmacêuticos Acabados
Selecionados Intrabloco – Mercosul (Posições 3002 e 3004)
Fontes: Comtrade UN
Outra consequência é que o Mercado Comum não está estimulando uma integração
de cadeias, especialmente com os dois países menores do bloco, Paraguai e
Uruguai. Ainda que se considerem as diferenças de tamanho de mercado e
economia, espera-se que um processo harmonização e de livre comércio possibilite
63
integração de cadeias produtivas, permitindo a inserção competitiva destes países
no comércio.
3.3. O Processo de Convergência Política em Saúde
A maior parte da discussão atualmente em voga sobre saúde, e dentro desse o
tema dos medicamentos, faz parte do que chamamos de convergência política. De
fato, apenas o MERCOSUL possui um fórum de harmonização regulatória, cujas
decisões vinculam os países. Mas mesmo a pauta do MERCOSUL tem recebido
influência desse processo de aproximação político.
Se o resultado final de um processo de convergência é a harmonização de regras ou
mútuo reconhecimento, o resultado final de um processo de convergência política é
um programa comum de ação, normalmente rico em preceitos e objetivos comuns,
mas com poucas ações concretas e quase nenhum caráter vinculante. O processo
de convergência política pode aproximar os países, alinha-los em discussões e
fóruns internacionais, como bem tem realizado a UNASUL, mas não se reflete em
ações concretas de facilitação do comércio. Isso faz que, apesar de todo esforço
empreendido, os mercados permaneçam fragmentados e separados.
Unindo todas as Américas, como apresentado anteriormente, existe a Rede PHARFOPAS (Programa de Harmonização da Regulamentação Farmacêutica) para discutir
o tema. Apresentaremos aqui os fóruns de convergência política que reúnem os
países sul-americanos.
Dentro da América do Sul, como fóruns eminentemente políticos de discussão,
temos: o Organismo Andino de Saúde, a Organização do Tratado de Cooperação
Amazônica, o MERCOSUL Saúde (excluídas deste as atividades do SGT-11) e a
UNASUL Saúde. Envolvendo países de dentro e fora da América do Sul existe a
Albamed, como parte da ALBA, para promover um sistema de registro único de
medicamentos entre seus países membros. Mas dado o estágio ainda embrionário
de discussões sobre o tema, ainda não seria possível classifica-la como uma
iniciativa de convergência regulatória de fato.
3.4. Os fóruns políticos de convergência
O processo mais antigo vigente de integração e de cooperação no setor de saúde
na América do Sul, em um escopo amplo, foi o realizado pelos países andinos
quando, em 1971, criaram o “Organismo Andino de Saúde – Convênio Hipólito
Unanue” (ORAS-CONHU). Esse organismo precedeu o Sistema Andino de
64
Integração, do qual faz parte a Comunidade Andina de Nações, por exemplo. Mais
tarde o ORAS-CONHU foi integrado ao Sistema Andino, para promover a
cooperação específica na área de saúde.
Em 1994, houve uma proposta, dentro do organismo andino, para que houvesse um
“Registro Andino
de Medicamentos”. Todavia,
um
processo
definitivo
de
harmonização farmacêutica, mútuo reconhecimento de registros ou registro
unificado de medicamentos, nunca chegou a efetivamente ser discutido e
implementado. Os países parte do organismo andino são Bolívia, Chile, Colômbia,
Equador, Peru e Venezuela.
Atualmente, as negociações avançaram no sentido de criar uma “Política Andina de
Medicamentos”. Essa política representa em grande medida uma reafirmação de
princípios, como busca pela garantia de acesso, do que uma coordenação concreta
de medidas vinculantes.
Na mesma década de criação do ORAS-CONHU, no ano de 1978, foi estabelecida a
OTCA (Organização do Tratado de Cooperação Amazônica), envolvendo os
principais países com presença desse bioma em seu território, sendo eles Bolívia,
Brasil, Colômbia, Equador, Guiana, Peru, Suriname e Venezuela. Dentro dessa
organização, existe uma Coordenação de Saúde, objetivando articular o esforço e
gestão dos governos na área de saúde na região, com cooperação em assuntos tais
como vacinas, epidemias e financiamento da saúde. Atualmente, essa coordenação
se prepara para articular sua agenda com a do Conselho de Saúde da UNASUL.
Recentemente, outra iniciativa ocorre junto à ALBA-TCP (Aliança Bolivariana para
os Povos de Nossa América – Tratado de Comércio dos Povos), uma aliança de
contornos políticos liderada pelo presidente venezuelano Hugo Chávez. Participam
da ALBA-TCP, na América do Sul, Venezuela, Bolívia e Equador e fora dela Cuba,
São Vicente e Granadinas, Dominica e Antígua e Barbuda. A iniciativa de
convergência é denominada ALBAmed e reúne neste momento apenas Venezuela e
Bolívia e, fora da América do Sul, Nicarágua e Cuba. O objetivo final é a criação de
uma instituição única para registro de medicamentos para os países membros da
ALBA-TCP. Entretanto, a conformação dessa instituição ainda está em fase de préestudos e não há qualquer definição sobre como esse processo irá interagir com o
arcabouço regulatório do MERCOSUL, haja vista a iminente entrada da Venezuela
nesse bloco, ou mesmo com outras iniciativas de coordenação com que Venezuela
e Bolívia estão envolvidas.
65
Já a maior de todas as iniciativas em processos de integração e cooperação em
saúde deriva da UNASUL (União de Nações Sul-Americanas). A UNASUL
representa um ambicioso plano de integração política e econômica sul-americana,
mas que ainda está em seu início. Neste momento ela tem atuado como um fórum
de concertação política, já tendo sido acionada para aplacar as crises que
envolveram Equador, Colômbia e Venezuela e instabilidades internas ocorridas na
Bolívia. Dentro da UNASUL, em 2009, foi criado o Conselho Sul-Americano de
Saúde, que ainda está em processo de formação e consolidação.
Nesse sentido, a UNASUL tem como diretrizes: o posicionamento da América do Sul
como uma unidade de identidade regional; o fortalecimento dos laços culturais e
direitos políticos e sociais de pessoas da região, a manutenção do esforço de
integração da infraestrutura e a reafirmação do subcontinente como um importante
polo de influência política e atração de investimentos.
A UNASUL foi formalmente constituída em 23 de maio de 2008, em Brasília, durante
a Reunião Extraordinária dos Chefes de Estado e de Governo. Dos 12 países que
compõem a União, 9 (Argentina, Chile, Bolívia, Equador, Guiana, Peru, Suriname,
Uruguai e Venezuela) depositaram os respectivos instrumentos de ratificação,
completando, assim, o número mínimo para a entrada em vigor do tratado
constitutivo da UNASUL, em 11 de março de 2011. Em julho de 2011, o Brasil foi o
décimo país a ratificar o acordo.
Em dezembro de 2008, durante a reunião de Chefes de Estado da UNASUL, no
Brasil, foi criado o Conselho de Saúde Sul-Americano, UNASUL-Saúde, órgão de
consulta e cooperação em saúde. Esse órgão é composto pelos Ministros da Saúde
dos 12 Estados-membros, por um Comitê de Coordenação, integrado por
representantes dos Ministérios, por uma Secretaria Técnica e por Grupos Técnicos
(GTs). Os cinco eixos de ações do Comitê de Coordenação são: Vigilância e
Respostas Epidemiológicas; Desenvolvimento de Sistemas Universais de Saúde;
Acesso Universal a Medicamentos; Promoção da Saúde e Ação sobre os
Determinantes Sociais; e Desenvolvimento e Gestão em Recursos Humanos em
Saúde.
Os eixos de ações desse Comitê devem ser trabalhados por meio de redes
estruturantes, com intercâmbio e troca de experiências entre representantes de
saúde de todos os países-membros. Estão sendo conformadas quatro redes
principais: Rede dos Institutos Nacionais de Saúde (RINS); Rede das Escolas
Técnicas de Saúde (RETS); Rede de Oficinas de Relações Internacionais (Rede
66
ORIS); e Rede das Escolas Nacionais de Saúde Pública (RENSP/REGS).
Recentemente, o Brasil recebeu a Rede ORIS para discussão dos temas
cooperação internacional e formas de avaliação de projetos.
Já o Conselho de Saúde Sul-Americano tem por função estabelecer os
compromissos políticos e orientar o desenvolvimento da Agenda Sul-Americana de
Saúde. Essa Agenda, que foi instituída na reunião de criação do Conselho, se
desenvolve por meio das resoluções e declarações aprovadas nas Reuniões de
Ministros de Saúde que, até o momento, foram realizadas em Santiago, no Chile,
em abril de 2009, em Guaiaquil, no Equador, em novembro de 2009, e em Cuenca,
também no Equador, em abril de 2010.
Essa Agenda também se desdobrou no Plano Quinquenal de Saúde 2010-2015 da
UNASUL, que foi aprovado em Cuenca, em 2010. O Plano se organiza em torno de
cinco eixos, levando em consideração a situação de saúde da América do Sul. Mais
diretamente relacionado à questão da convergência está o item 3, sobre acesso
universal e construção de um complexo produtivo da saúde na América do Sul.
Figura 7: Eixos do Plano Quinquenal em Saúde da UNASUL
Fonte: UNASUL
O componente 3 evidencia o claro objetivo de fazer que medicamentos e insumos
sejam produzidos no subcontinente pelo Complexo Produtivo da Saúde. Esse
objetivo somente poderá ser alcançado com uma maior articulação entre os setores
público e privado em nível regional, efetiva harmonização das políticas industriais e
da regulação sanitária de produtos, assim como o estímulo ao desenvolvimento de
produtos inovadores no setor da saúde por meio da cooperação na área de
pesquisa e desenvolvimento.
67
Também fazem parte das ações incluídas no eixo 3 a instituição de um banco de
preços comum, com vistas à negociação conjunta junto a fornecedores
internacionais, utilizando o poder de compra dos países sul-americanos. A
harmonização de protocolos clínicos também está sendo considerada juntamente
com a ampla utilização de medicamentos genéricos produzidos na região e a
promoção do uso racional de medicamentos.
Figura 8: Estrutura da UNASUL
68
Fonte: UNASUL
Por fim, também dentro da UNASUL-Saúde, foi estabelecido o Instituto SulAmericano de Governo em Saúde (ISAGS), tendo o ex-ministro da saúde José
Gomes Temporão como coordenador-executivo. Sua principal finalidade será
articular estudos e pesquisas avançados sobre saúde pública nos países sulamericanos.
Como
pilares,
terá
gestão
e
produção
de
conhecimento,
desenvolvimento de lideranças e assessoramento técnico e compartilhamento de
soluções. Prevê-se que sua principal bandeira será a promoção de um projeto de
universalização do acesso à saúde na América do Sul.
3.4.1. O Papel da Cooperação
Dentro do processo de convergência política, o governo brasileiro tem atuado em
uma segunda frente, a da cooperação. Um dos entraves ao processo de
harmonização é a diferença na capacidade reguladora dos Estados, que pode ser
atenuada nesse processo. Outro ponto é que a cooperação é capaz de criar um
clima positivo, que facilite as negociações.
Nesse sentido, o Brasil tem-se valido das atividades da Agência Brasileira de
Cooperação (ABC) para promover ações neste sentido. A ABC é um órgão do
Ministério das Relações Exteriores. Em 2010, a Agência possuía 221 projetos sendo
implementados ou concluídos e 369 atividades isoladas, dentre os quais 111 na
área da saúde. Ela conta com uma estrutura de 160 funcionários e um orçamento da
ordem de U$ 52,6 milhões para 2011. Em 2010, de um orçamento previsto de U$
52,6 milhões, a Agência executou U$ 37,3 milhões.
69
Às atividades desenvolvidas na área da saúde foram destinados cerca de 16,38%
desse
orçamento
e
aos
países
latinos
americanos
foram
destinados
aproximadamente 38,8%, em 2010.
Gráfico 7: Orçamento executado ABC
Fonte: Agência Brasileira de Cooperação – Ministério de Relações Exteriores
A ABC opera essencialmente com a noção de cooperação técnica entre o Brasil e
outros países do Sul; 45% das cooperações técnicas que estão sendo executadas
foram firmadas com países da América Latina e os outros 55% estão distribuídos
entre África, Ásia e Australásia. Na América do Sul, a ABC possui projetos com 11
países (Argentina, Paraguai, Uruguai, Venezuela, Bolívia, Chile, Colômbia, Equador,
Peru, Guiana e Suriname).
Com relação à sua forma de operar, a Agência recebe as demandas por cooperação
técnica dos países. Ela então seleciona as instituições brasileiras que possuem o
conhecimento necessário para o atendimento da demanda. Conjuntamente, ABC e
profissionais da instituição selecionada vão, então, visitar o país demandante e, com
ele, é elaborado um projeto de cooperação técnica que responda às necessidades
do país, dadas as suas características locais.
Dentro da administração pública brasileira, no campo da saúde, a agência trabalha
essencialmente com a ANVISA, a Fiocruz e o Ministério da Saúde. Com a
participação dessas instituições e através dos acordos de cooperação técnica, a
70
ABC procura capacitar tanto profissional quanto institucionalmente os países
demandantes.
No mais, à cooperação técnica é atribuído o estabelecimento de bases confiança
mútua entre os países, já que pressupõe uma maior aproximação entre eles,
buscando a troca de experiências e a qualificação recíproca, o que agiliza, em última
análise, a concertação política. Assim, sua atividade é vista como fundamental para
a harmonização de políticas de saúde nos países da América do Sul e,
consequentemente, para a padronização de normas entre os países do
MERCOSUL.
Especificamente na área regulatória de medicamentos no âmbito da América do Sul,
de uma análise dos 111 projetos em andamento na área da saúde, pode-se dizer
que um enfoque importante é dado aos países do MERCOSUL.
Dentre eles, a ABC financia projeto que tem por objetivo a criação de uma
Farmacopeia Regional, cujo intuito é possibilitar aos países da região uma menor
dependência da importação de substâncias de referência e de dados de outras
Farmacopeias. Esse projeto se desenvolve no âmbito do Mecanismo de Integração
e Coordenação Brasil-Argentina (MICBA) (U$ 560.000). Também com recursos da
Agência, foi realizado um curso de Boas Práticas de Fabricação de Medicamentos
para todos os países do MERCOSUL.
Com a Argentina, a ABC tem dado suporte ao fortalecimento da capacidade
institucional da ANMAT e da ANVISA em matéria de regulação sanitária,
promovendo a ampliação do diálogo regulatório entre as autoridades sanitárias de
ambos. A Agência também está envolvida na implementação da farmacovigilância
junto ao órgão regulatório do Equador.
Com o Paraguai, a ABC promoveu um projeto para ampliar o diálogo regulatório
entre as autoridades sanitárias de ambos os países, fortalecendo institucionalmente,
a Divisão nacional de Vigilância Sanitária do Ministério de Saúde Pública e Bem
Estar Social daquele país, contribuindo para o fortalecimento do governo paraguaio
na área da saúde.
No Uruguai, a ABC participa da consolidação da capacidade institucional do
Ministério da Saúde do Uruguai e ampliação do diálogo regulatório entre as
autoridades sanitárias do Brasil e do Uruguai. Na Venezuela, ela promove a
71
capacitação da Controladoria Sanitária da Venezuela em controle de produtos de
consumo humano.
3.5. Considerações e cenários sobre os processos de convergência
Do ponto de vista interno, uma série de interesses importantes ao governo brasileiro
neste momento estão articulados em torno do tema da saúde. Interesses esses que
vão além das políticas de saúde, abarcando, também, comércio exterior, política
industrial e as relações políticas com os governos da região. Nesse escopo amplo, a
convergência regulatória surge como vetor importante desses interesses, que
normalmente são representados por diferentes agentes dentro do governo,
principalmente, como visto, o MS e o MRE. Grande parte desse alinhamento se
deve ao planejamento coordenado vinculado ao Programa “Mais Saúde” e a criação
do GECIS.
São nesses contextos que os temas da saúde pública, do comércio e da política
industrial se articulam para que decisões tomadas em um setor tragam
consequências positivas aos demais. O fortalecimento do Complexo Industrial da
Saúde passa a ser visto como o principal objetivo a ser alcançado para a solução de
problemas da saúde pública e de contribuição ao desenvolvimento econômico e
social do país.
Para tanto, diversas formas de apoio têm ocorrido, como criação da linha de crédito
própria do BNDES às empresas farmacêuticas locais e a implementação de
medidas para uso do poder de compra do SUS para favorecer a produção local, por
meio da concessão de margens de preços superiores em licitações públicas. A
medida mais sofisticada foi a criação das parcerias produtivas entre laboratórios
públicos e privados, as chamadas PDPs, que trazem economias nas compras
públicas ao mesmo tempo em que capacitam os produtores locais.
Também o processo de convergência regulatória no setor de saúde possui uma
dinâmica própria, com motivações e consequências específicas. Uma delas é a
validação multilateral de padrões mínimos, que assegurem às populações os níveis
imprescindíveis de segurança e qualidade com a garantia de recuperação (ou
manutenção) da saúde. Um exemplo é o trabalho da Rede PARF – OPAS, feito em
grande parte nesse sentido.
O segundo vetor é de caráter comercial: padrões compartilhados de regulação
facilitam a transação de mercadorias e serviços e são peça-chave em um mundo
72
onde as tarifas alfandegárias diminuem cada vez mais, especialmente em virtude
dos processos de integração econômica. A harmonização regulatória que ocorre no
MERCOSUR caminha nessa direção. Cooperação e comércio são duas palavras
que representam as forças motrizes do processo de convergência.
As agendas interna e externa dos países confluem devido à abordagem ampla que o
setor de saúde possui. Por muito tempo, a principal interface da política externa
brasileira com o setor se dava por meio do que chamamos “diplomacia da saúde”,
um conjunto de ações promovidas principalmente por intermédio da Agência
Brasileira de Cooperação, no modelo Sul-Sul.
Outro movimento importante da diplomacia brasileira vinculado à Saúde ocorreu
durante as negociações do Acordo TRIPS (Trade-Related Aspects of Intellectual
Property Rights) na Organização Mundial de Comércio (OMC). Em parte decorrência
das negociações e suporte brasileiros, foi assegurado o direito dos países à licença
compulsória de um medicamento em casos de emergência nacional, direito este
muito apreciado pelos países de menor desenvolvimento relativo. A “diplomacia da
saúde” e a defesa da causa dos países de menor desenvolvimento na OMC
conferiram ao Brasil uma condição de relativo prestígio e liderança.
A elevação do setor de saúde à condição de setor estratégico para o país, os
acordos comerciais no âmbito do MERCOSUL e a tradição diplomática em saúde
criaram um ambiente favorável ao desenvolvimento do tema nas relações exteriores
brasileiras. E o tema da convergência regulatória fornece o substrato para promoção
desses diversos interesses.
O principal fórum de concertação tem sido a UNASUL, por ter-se tornado o fórum
preferencial de atuação brasileira, principalmente de âmbito político, mas que pode
trazer consequências comerciais, inclusive influenciando diretrizes ao MERCOSUR.
Uma agenda em saúde externa articulada com a agenda interna significa a criação
de um bloco integrado por regras comuns que permitam o fácil acesso de produtos
de saúde entre os países do subcontinente, o desenvolvimento de tecnologias em
conjunto e a negociação em bloco, seja na OMC ou junto a fornecedores externos.
Com o processo de alinhamento de políticas de saúde na América do Sul e a
concepção do Complexo Industrial da Saúde “expandido” – uma transposição do
CIS para toda a América do Sul aventada pela diplomacia brasileira –, vislumbra-se
a criação de cadeias produtivas intra-regionais capazes de aumentar as exportações
dos países envolvidos, inclusive as brasileiras.
73
A cooperação em questões de saúde pública legitima a posição brasileira como
ofertante de um modelo regulatório que carrega a promessa de ser socialmente
mais inclusivo, mas que demandará maior presença dos Estados. Este
protagonismo naturalmente traz um ânimo novo aos anseios de liderança regional
brasileiros. A UNASUL é um regime internacional ainda em formação e a oferta de
bens públicos é condição necessária para a legitimação da liderança em um espaço
de cooperação.
Com mais comércio, espera-se redução dos déficits. Com integração produtiva e
desenvolvimento tecnológico conjunto se espera maior escala e redução de custos.
A harmonização tem o potencial de trazer um mercado ampliado para empresas
locais e com barreiras mais altas aos competidores externos. Por fim, modelos de
sistemas de saúde semelhantes podem trazer uma articulação que permita maior
peso em negociações multilaterais e liderança política.
O encadeamento da questão de saúde nas relações exteriores dessa forma se
mostra uma proposta bastante sofisticada, todavia não desprovida de dificuldades e
de desencontros. O principal deles se refere à construção de uma política industrial
conjunta, que coordene os esforços para um Complexo Industrial da Saúde
expandido com cadeias de valor distribuídas entre os países.
Sem essa coordenação, que não possui, seja no MERCOSUL, seja na UNASUL, um
espaço formal de debate e articulação, indústrias locais podem se sentir inseguras
quanto aos benefícios de uma harmonização, cuja consequência será a exposição
mútua de mercados. Outro ponto subjacente recai sobre como as ações brasileiras
são percebidas pelos demais vizinhos. Outros discursos e modelos para o
desenvolvimento da região, como o “bolivariano” estão presentes e, eventualmente,
podem se contrapor às propostas brasileiras.
Frente a esse encadeamento externo, também existem limitantes internos
relevantes, sendo o principal deles a escassez de recursos para manter uma
estratégia de longo prazo como esta, vis-à-vis a pressão interna por melhoras
significativas nos indicadores nacionais de saúde. Os tomadores de decisão serão
permanentemente pressionados pelos eleitores para que tomem medidas rápidas e
mais incisivas sobre o setor, medidas estas que podem desestruturar os
compromissos de longo prazo planejados pelo governo brasileiro.
Do ponto de vista dos demais países sul-americanos, outras questões também se
colocam dentro do processo de convergência regulatória. Algumas dessas questões,
74
como o acesso aos genéricos, são de caráter comum e outras, como aquelas
concernentes à política industrial, possuem caráter mais individualizado por país.
Dentre as questões comuns aos países sul-americanos, a primeira delas é a da
segurança e autonomia em medicamentos considerados estratégicos. A despeito da
maior ou menor sensibilidade, todos os países se preocupam com a autonomia na
produção de medicamentos considerados estratégicos para seu consumo interno,
mesmo que essa autonomia signifique arcar com custos superiores aos de uma
importação. A lógica é semelhante à aplicada aos alimentos, considerados produtos
que asseguram a segurança nacional e cuja autonomia é indispensável. Por maior
que seja o avanço na convergência ou integração econômica, todo país costuma ter
uma cesta mínima de medicamentos em que deseja manter ou perseguir a
possibilidade de produzir. Não compreender essa sensibilidade pode significar falhar
em um processo de negociação.
A segunda questão é o suporte a uma política de uso dos genéricos. Dada a
economia de custos representada pelo medicamento genérico, os governos sulamericanos têm criado suas políticas de apoio, difusão de uso e aumento de
produção de medicamentos genéricos. Certamente existem diferenças sobre as
formas de registro desse medicamento nos diferentes mercados, especialmente em
relação aos testes necessários para comprovação de bioequivalência em relação ao
medicamento de referência e biodisponibilidade do princípio ativo. Entretanto, há um
nítido
esforço para que
o
uso
dos medicamentos genéricos
prevaleça,
especialmente nas compras públicas.
Como continuidade desse ponto, começa a emergir a questão sobre produção de
medicamentos obtidos por rotas biológicas similares a outros cuja patente já tenha
expirado. Os medicamentos obtidos por rotas biológicas, a maior parte deles para
tratamentos de doenças crônicas não transmissíveis, comuns ao novo perfil
epidemiológico desenhado na América do Sul, passam a representar um alto e
crescente custo aos orçamentos públicos em medicamentos, ainda que uma
pequena parcela em volume. Seu grau de sofisticação e complexidade é muito
maior do que as drogas obtidas por rotas sintéticas, representando um novo
patamar tecnológico.
Não é possível falar em genéricos para medicamentos biológicos, dada a
complexidade das moléculas que constituem o princípio ativo do medicamento.
Consegue-se obter apenas princípios “similares”. Dessa forma, a grande dúvida
subjacente é sobre quais critérios adotar para permitir que um medicamento deste
75
gênero seja oferecido no mercado. Em comum, os países sul-americanos desejam
introduzir esses medicamentos em seus mercados para diminuir custos, e também,
algumas vezes, almejam habilitar seu parque industrial para essa produção.
Todavia, os processos e testes exigidos para registro desses medicamentos, que
afetarão diretamente os preços, estão longe de qualquer consenso. Países como
Argentina e Colômbia propõem um menor número de exigências de testes para
viabilizar o acesso. O Brasil, até o momento, tem-se posicionado por exigências
adicionais para registro objetivando mitigar riscos à saúde.
O terceiro ponto normalmente compartilhado entre os países sul-americanos para
políticas de saúde é o vigor de alguns programas básicos de saúde pública, em
especial de vacinação e contra a Aids. Pode-se afirmar, inclusive, que parte dessa
preocupação é reflexo das políticas adotadas, nesse sentido, no Brasil. O relativo
sucesso alcançado pelo Brasil na implementação desses programas acaba servindo
como plataforma para que grupos dentro dos demais países solicitem condições
análogas. Também contribui para esse cenário o peso que organizações
internacionais de direito público ou privado, como a Organização Mundial da Saúde
ou organizações não-governamentais, como a “Médicos sem Fronteiras”, colocam
sobre esses programas. Produção e acesso a vacinas e antirretrovirais são temas
recorrentes.
A quarta e última questão comum que costuma causar mobilização entre a
comunidade sul-americana é a disposição em trocar experiências e manter fóruns
de cooperação e discussão de temas ligados à saúde. Essa percepção não advém
apenas da profusão de novas redes de discussão de saúde criadas na UNASUL,
mas de uma tradição mais antiga de troca de informações e dados, presentes, por
exemplo, na Comunidade Andina, na Organização do Tratado de Cooperação
Amazônica e no MERCOSUL, sem contar nos inúmeros memorandos e
entendimentos bilaterais. Dessa forma, é um erro imaginar que os formadores de
opinião em saúde dos diversos países encontram-se “isolados” ou “alheios” ao que
ocorre com seus vizinhos. As experiências positivas e negativas são compartilhadas
e, mais recentemente, informações sobre experiências com fornecedores e preços
praticados
em
licitações
estão
sendo
compartilhadas.
Inclusive,
compras
centralizadas para todo o subcontinente já se tornam objeto de discussão em fóruns
da UNASUL.
De outro lado, essa disposição em compartilhar experiências representa o limite das
sensibilidades compartidas pelos países sul-americanos. Nas tentativas de tornar
76
esse processo mais consistente, convergindo regulações e políticas, tem início a
“divergência na convergência”. Os projetos de um regime sul-americano de saúde
possuem significativas diferenças, por conta das próprias diferenças no primeiro
nível, o de composição da posição externa dos países de negociação dos atores e
os diferentes “constituencies” que suportam os negociadores.
As diferenças têm início na forma e abrangência do sistema público de saúde.
Países como Colômbia e Chile, onde é grande o peso da assistência contratada
junto ao setor privado pelo sistema público/previdenciário, são mais reticentes
quanto a propostas que aumentem a responsabilidade dos Estados na gestão e
atendimento à saúde pública. A liberação ao acesso ao mercado de serviços de
saúde também responde à preocupação da manutenção dos grupos nacionais
atuantes no setor.
O direito ao acesso a medicamentos se relaciona diretamente com custos. Quanto
mais obrigações o Estado assume em fornecimento gratuito de medicamentos,
maior é sua preocupação com regulação de preços e busca de alternativas mais
econômicas para suas compras, ainda que signifique algum tipo de concessão para
flexibilização de algum ponto nas exigências de registro de medicamentos. O Brasil
assume uma posição díspar, na medida em que se auto-impõe a garantia de acesso
universal pleno e gratuito aos bens de saúde e mantém um dos padrões mais
rígidos para registro de medicamentos. Todavia, a questão de preços é fundamental
para países como Bolívia e Uruguai, que dispõem de ainda menos recursos e
ambicionam ampliar o acesso de suas populações à oferta gratuita de
medicamentos.
Para além das divergências em formas de pensar a saúde pública, existem as
diferentes visões sobre implementação de uma política industrial no setor de saúde.
Todos entendem que o setor é estratégico, o que já leva uma posição defensiva
para proteção das indústrias locais, quando existem. E a própria maneira de
estimular a indústria pode ser concebida de maneira diferente. Na Venezuela, por
exemplo, o modelo de desenvolvimento estatizante é o prevalente. Existe também
um modelo de abertura ao setor privado, como se assiste na Colômbia, ou ainda
mais aberto, como no Chile. No Brasil e Argentina, já há uma mistura de matizes,
uma vez que o setor privado recebe mais respaldo e intervenção do setor público.
Como a regulação sanitária afeta diretamente os níveis de qualidade e de exigência
ao qual a indústria local estará submetida, esse ponto acaba por desempenhar um
papel-chave nas negociações de harmonização regulatória. Padrões mais altos
77
significam exigir mais da indústria. Se essa indústria for nascente ou ainda estiver se
capacitando para um novo tipo de produção, como ocorre em alguns países sulamericanos, haverá a pressão para que as negociações busquem um mínimo
denominador comum, objetivando que a indústria local não seja alijada do mercado.
Se o outro lado não aceitar algumas concessões nesse campo, as negociações
fatalmente fracassarão.
Por fim, existe certa disputa pelo próprio controle da agenda de discussões e
controle das propostas a serem discutidas, ou seja, pelos moldes que esse regime
deve adquirir. Essa disputa absolutamente não significa ameaça ao bom
relacionamento entre os países sul-americanos, mas denota, apenas, que ainda há
diferenças entre as necessidades que cada um persegue atender. Mais importante
do que a conclusão sobre qual modelo é o ideal para a América do Sul, será a
capacidade de obter consensos mínimos dentro de uma agenda aceitável a todos. A
consequência de um fracasso nessa tentativa será que a harmonização regulatória,
de fato, não irá acontecer.
78
Conclusão
A atividade da indústria farmacêutica dentro da América do Sul de maneira geral, e
do MERCOSUL de maneira particular, tem crescido de expressivamente. Esse
crescimento tem sido sentido de maneira mais forte no Brasil, Argentina e Colômbia,
pelo peso maior de sua indústria e sofisticação da regulação, mas, de toda forma, é
um crescimento sentido em todo subcontinente.
Essas atividades têm-se expressado pelo crescente volume de importações e
exportações, inclusive realizadas por empresas de capital local, com especial
destaque para as argentinas, que proporcionalmente ao tamanho de sua economia,
têm sido bem-sucedidas nas exportações. Outra expressão dessas atividades são
os constantes anúncios de fusões e aquisições no setor, envolvendo empresas do
setor. Novamente Brasil e Argentina se destacam nesse quesito, inclusive com
empresas locais participando ativamente desse processo de consolidação.
Naturalmente que os números apresentados pelo subcontinente podem ser
considerados pequenos frente aos mercados norte-americano, europeu e japonês;
todavia, o crescimento tem-se mostrado consistente. Principalmente os mercados
brasileiro, argentino e venezuelano são vistos como parte da fronteira mundial de
crescimento do setor, que é capitaneado pela China.
Mas, a despeito desse cenário positivo, as empresas que atuam na América do Sul
ainda se deparam com barreiras, especialmente no campo regulatório dos
medicamentos, que poderiam ser equacionadas com o avanço da agenda de
convergência. Esse avanço traria diversos impactos positivos, tais como atração de
investimentos para um mercado visto como expandido pela melhora na circulação
das mercadorias, a viabilização de produção em maior escala para as indústrias
abastecerem esse mercado expandido e o aproveitamento de sinergias e
coordenação das cadeias produtivas entre indústrias dos países.
Como apresentado, infelizmente a agenda de convergência não tem avançado de
maneira suficiente para permitir que no curto ou médio prazo esses impactos
positivos sejam sentidos. Os condicionantes domésticos, tais como as diferentes
capacidades de regulação, as diferenças na estruturação dos sistemas de saúde e
os objetivos perseguidos pelos governos têm sido bastante díspares. Sem o suporte
interno, as negociações internacionais para a convergência acabam por não
avançar.
79
O
modelo
adotado
pelo
MERCOSUL,
de
harmonização
regulatória
pela
internalização de regras pelos países, sem criação de uma instituição supranacional
para regulação do setor, também contribui para ressaltar as dificuldades. Os países
membros do MERCOSUL têm condições diferentes para absorver e aplicar novas
normas e muitas vezes as discussões não avançam por uma excessiva
preocupação com impactos nas respectivas indústrias domésticas, deixando de lado
os benefícios que a harmonização poderia trazer para todos. Outro ponto a ser
levantando é que, ainda que positiva ao alinhar expectativas e coordenar diretrizes,
a convergência política não substitui a harmonização regulatória, porque é apenas a
segunda que de fato traz consequências práticas para o mercado.
Por sua vez, o Brasil poderia contribuir muito com o processo de harmonização
enfatizando as características de sua regulação interna, levada a cabo pela ANVISA.
Muito do desenvolvimento do mercado local brasileiro, hoje de aproximadamente
60% do mercado sul-americano, deve-se mais à organização e regulamentação do
setor promovida pela ANVISA.
Igualmente, em um sentido de contribuir para uma agenda positiva no processo de
convergência regulatória, a defesa de elevados padrões regulatórios se mostra mais
positiva para a região do que a adoção de padrões mais flexíveis, a exemplo do que
já ocorre no Brasil por meio da regulação promovida pela ANVISA. Além da
segurança gerada, fator central na razão de ser dos medicamentos, qual seja a
manutenção da saúde, padrões elevados de regulação permitem que a produção
acesse mercados fora da região, em especial o norte-americano e europeu, o que
iria inserir a América do Sul na rota de investimentos para linhas de produção
globais de produção de medicamentos.
Adicionalmente, grande parte da produção local é destinada à produção de
genéricos e uma regulação sanitária mais flexível desse segmento tende a
desacreditar o setor frente a médicos e pacientes, que passam a recusar a troca do
medicamento de referencia pelo genérico. Uma regulação robusta nesse sentido
mais contribui à indústria local do que a limita, por conferir a acreditação necessária
para conquista dos mercados.
Por fim, o MERCOSUL, e porque não dizer toda a América do Sul, no âmbito da
UNASUL, precisa discutir novas formas de promover uma harmonização de maneira
mais rápida e efetiva, de forma a extrair o máximo do excepcional momento vivido
pelo subcontinente, que alia o bom momento econômico, o crescente desempenho
de sua indústria farmacêutica e o esforço governamental conjunto em favor do
80
acesso à saúde. Possivelmente, a criação de uma instituição supranacional, a
cooperação para elevação da capacidade regulatória dos países e uso dos
instrumentos de equivalência e reconhecimento mútuo de maneira mais comum
podem ser importantes aliados nesse processo.
Dessa forma, certamente o processo de convergência não contribuiria apenas para
um maior dinamismo econômico, mas também para que os objetivos de saúde
pública, com melhor acesso à medicamentos, fortalecimento da capacidade
produtiva e aumento da pesquisa e inovação sejam alcançados.
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