Guavira no9
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Guavira no9 Revista Guavira – Letras. Edição de número 09 Poema Narrativos Revista Guavira-Letras: “Poemas Narrativos”, Mestrado em Letras, Campus de Três Lagoas, Universidade Federal de Mato Grosso do Sul, Vol. 01, n. 09 (2005 2009 Três Lagoas). SALES, J. Batista de. (Org.). Semestral (Jul./Dez. 2009) – Versão On-line. 1. Letras 2. Estudos Literários 3. Narrativa 4.Poema I. Título: Guavira-Letras: “Poemas Narrativos”. (Versão On-Line http://www.revistaguavira.com.br; ISSN: 1980-1858) . SALES, José Batista de (Org.). Revista Guavira-Letras: Poemas Narrativos Vol. 02, n. 09. Jul./Dez. 2009. Comissão Editorial: João Luis Pereira Ourique (UFMS) Rogério Vicente Ferreira (UFMS) Vânia Maria Lescano Guerra (UFMS) Conselho Científico: Antônio Rodrigues Belon (UFMS) Celina A. G. S. Nascimento (UFMS) Claudete Cameschi de Souza (UFMS) Edgar C. Nolasco dos Santos (UFMS) João Luis Pereira Ourique (UFMS) José Batista de Sales (UFMS) Kelcilene Grácia-Rodrigues (UFMS) Marlene Durigan (UFMS) Rauer Ribeiro Rodrigues (UFMS) Rogério Vicente Ferreira (UFMS) Rosana C. Zanelatto dos Santos (UFMS) Vânia Maria Lescano Guerra (UFMS) Vitória R. Spanghero Ferreira (UFMS) Wagner Corsino Enedino (UFMS) Corpo Editorial: Eneida Maria de Souza (UFMG) João Luís Cardoso Tápias Ceccantini (UNESP/Assis) José Luiz Fiorin (USP) Paulo S. Nolasco dos Santos (UFGD) Maria do Rosário Valencise Gregolin (UNESP/Araraquara) Maria José Faria Coracini (UNICAMP) Márcia Teixeira Nogueira (UFCE) Maria Beatriz Nascimento Decat (UFMG) Rita Maria Silva Marnoto (Universidade de Coimbra - Portugal) Roberto Leiser Baronas (UNEMAT) Sheila Dias Maciel (UFMT) Silvia Inês Coneglian Carrilho de Vasconcelos (UEM) Silvane Aparecida de Freitas Martins (UEMS) Vera Lúcia de Oliveira (Lecce – Itália) Vera Teixeira de Aguiar (PUC/Porto Alegre) Projeto Gráfico e Editoração Rogério Vicente Ferreira 1|Página Revista Guavira-Letras: “Poemas Narrativos”, Mestrado em Letras, Campus de Três Lagoas, UFMS, Vol. 01, n. 09 (2005 - 2009 Três Lagoas). SALES, J. Batista de. (Org.).Semestral (Jul./Dez. 2009) – Versão On-line.(Versão On-Line http://www.revistaguavira.com.br; ISSN: 1980-1858) Guavira no9 SUMÁRIO A SAGA DA IMIGRAÇÃO: BARCAS E ARCAS, Zilberman....................................................................................07 DE ARY NICODEMOS TRENTIN - Regina NOTAS SOBRE OS PRESSUPOSTOS ESTÉTICO-FILOSÓFICOS ROMÂNTICOS EM O GUESA, DE SOUSÂNDRADE - Pedro Martins Reinato..21 POEMA NARRATIVO CARAMURU, DE FREI JOSÉ DE Biron...............................................................................................................36 SANTA RITA DURÃO - Berty R. UMA TRAJETÓRIA DO ESQUECIMENTO: O POEMA A NEBULOSA, DE JOAQUIM MANUEL DE MACEDO Angela da Costa..........................................52 2|Página Revista Guavira-Letras: “Poemas Narrativos”, Mestrado em Letras, Campus de Três Lagoas, UFMS, Vol. 01, n. 09 (2005 - 2009 Três Lagoas). SALES, J. Batista de. (Org.).Semestral (Jul./Dez. 2009) – Versão On-line.(Versão On-Line http://www.revistaguavira.com.br; ISSN: 1980-1858) Guavira no9 Apresentação O poema narrativo brasileiro ainda não despertou o interesse dos estudiosos de literatura, apesar da longa tradição e da criatividade de seus inúmeros autores dos anos mais recentes. Daí, talvez a compreensível reação de espanto ou de curiosidade que muitos ainda não conseguem disfarçar, ao atribuírem aos estudos sobre poemas narrativos a natureza de arqueologia. Mas é inegavel que esta modalidade de composição literária mereça a atenção de estudos sistemáticos e permanentes para que possa revelar a sua inesgotável riqueza. Foi graças ao convívio com professores de vasta experiência de ensino e de longa vivência em pesquisa na área da historiografia literária brasileira que me aproximei desta modalidade literária e sobre a qual desenvolvi e continuo desenvolvendo alguns estudos desde 2006. A cada dia, me convenço de que estudos sobre o poema narrativo tornam-se mais urgentes e oportunos. E, assim, sugeri à direção da GUAVIRA LETRAS, revista eletrônica do Programa de Mestrado em Letras da Universidade Federal de Mato Grosso do Sul (UFMS) do campus de Três Lagoas, a inclusão de um número dedicado a este gênero, com o objetivo de estimular novas pesquisas nesta área. Este número da GUAVIRA LETRAS apresenta quatro estudos importantes sobre o assunto, de forma a sugerir leitura ou releitura, pesquisas e estudos, com o objetivo de incrementar os trabalhos de historiografia literária brasileira, com particular cuidado para aqueles voltados para a identificação e o registro das publicações mais remotas do nosso sistema literário. São apresentados estudos de Regina Zilberman, pesquisadora plenamente reconhecida e, atualmente, ligada à Universidade Federal do Rio Grande do Sul (UFRGS) e à Faculdade Porto-Alegrense, de Porto Alegre-RS. O segundo estudo é de autoria de Pedro Martins Reinato, membro da Coordenadoria de Estudos e Normas Pedagógicas da Secretaria de Estado da Educação de São Paulo, dedicado ao poema O Guesa, de Sousândrade. O terceiro artigo, Poema narrativo Caramuru, de Frei José de Santa Rita Durão, realizado por Berty R. R. Biron, membro do Pólo de Pesquisa sobre Relações Luso-Brasileiras, do Centro de Estudos do Real Gabinete de Leitura, do Rio de Janeiro. O quarto texto, parte de tese de doutorado, foi escrito por Angela da Costa, doutora em Teoria e História Literária pela UNICAMP. 3|Página Revista Guavira-Letras: “Poemas Narrativos”, Mestrado em Letras, Campus de Três Lagoas, UFMS, Vol. 01, n. 09 (2005 - 2009 Três Lagoas). SALES, J. Batista de. (Org.).Semestral (Jul./Dez. 2009) – Versão On-line.(Versão On-Line http://www.revistaguavira.com.br; ISSN: 1980-1858) Guavira no9 Estes estudos abrangem considerável período da história da literatura brasileira e, desta forma, tornam-se importante fonte de informações para outras pesquisas e, certamente comprovam a relevância e a atualidade dos estudos sobre o poema narrativo. Vamos aos estudos. Regina Zilberman no artigo “A saga da imigração: Barcas e Arcas, de Ary Nicodemos Trentin”, aborda as relações entre localismo e universalismo, moderno e pós-moderno como elementos constituintes do poema. Após traçar as coordenadas históricas e estéticas da literatura brasileira desde as primeiras décadas do século XX, ela apresenta a obra de Trentin, cujo tema trata da “saga da imigração”, tão importante no processo de formação da população e do território gaúchos, comprometida com a poesia sul-rio-grandense e em diálogo com a chamada “lírica social” de registro homogêneo do modernismo brasileiro de um lado e, de outro, com os movimentos culturais alternativos das décadas de 1960 e 1970 para, finalmente, evidenciar seus traços pós-modernos. Segundo Zilberman, o conceito de pós-modernismo, apesar de nem sempre ser aceito com tranquilidade, significa o reconhecimento da voz dos segmentos mais diferenciados e, assim, permite a distintos grupos condições de dar vazão as suas experiências singulares e consideradas mais autenticas. É neste sentido, portanto, que o poema de Trentin torna-se um poema narrativo singular, pois ao abordar a “saga da imigração” conseguiu destacar outras vozes e outros heróis, ainda não reconhecidos, porém fundamentais para a construção de identidade nacional. O trabalho seguinte, Notas sobre os pressupostos estético-filosóficos românticos em O guesa, de Sousândrade, de Pedro Martins Reinato, busca, além do que o próprio título anuncia, o objetivo, talvez indireto, de reforçar o destaque merecedor a que o poeta romântico Sousândrade faz jus. O trabalho vale-se da compreensão de estudos de pensadores como Immanuel Kant, Johann Gottlieb Fichte e Walter Benjamin para melhor situar a recepção da obra O guesa errante. Assim, contrapõe o julgamento da crítica contemporânea a Sousândrade e suas próprias reflexões sobre sua arte com os pressupostos estético-filosóficos dos pensadores há pouco citado. O artigo conclui reconhecendo a consciência do “autoconhecimento” que norteava o trabalho poético do autor de O guesa, sua nítida correspondência com as mais refinadas reflexões levadas a termo por seus poetas e filósofos mais representativos, que ao final do trabalho afirma que “Falar em um modernista 4|Página Revista Guavira-Letras: “Poemas Narrativos”, Mestrado em Letras, Campus de Três Lagoas, UFMS, Vol. 01, n. 09 (2005 - 2009 Três Lagoas). SALES, J. Batista de. (Org.).Semestral (Jul./Dez. 2009) – Versão On-line.(Versão On-Line http://www.revistaguavira.com.br; ISSN: 1980-1858) Guavira no9 [Sousândrade] avant la lettre na obra desse poeta é anacrônico e, talvez, até um equivoco, uma vez que tudo nele é romântico, com bases estético-filosóficas bem definidas.” No trabalho seguinte, Berty R. R. Biron faz uma leitura de Caramuru, de Santa Rita Durão, com o objetivo de “entender o poema em sua especificidade narrativa” e de retomar as evidências do discurso ideológico no encontro da cultura lusitana (europeia) com a do Novo Mundo (americano). Para alcançar seus objetivos, a autora aborda os elementos narrativos como a formação das personagens e, principalmente, da construção do herói. De tal modo, os dois objetivos mostram-se coerentemente amalgamados, conforme os preceitos clássicos do poema épico. E assim se compreende muitos atributos de Diogo, como o de coragem e intrepidez, ao sobreviver a um naufrágio, enfrentar exércitos de guerreiros estranhos nas vestes, nas armas e nos valores. Para a componente religiosa e política do poema, destacada no artigo, é plausível a construção de um herói envolto em ares misteriosos propícios a sua divinização e posterior fascínio de seus crédulos seguidores e domínios dos inimigos. Outro aspecto importante para compreensão da especificidade narrativa do poema e da ideologia do qual é porta-voz, diz respeito ao comportamento amoroso do herói, que deve ser afetuoso, digno, porém independente. É como ocorre durante a escolha da esposa, Paraguaçu, em detrimento e, depois, a morte de Moema. Finalmente, a honradez do herói se concretiza no momento em que o rei da França pede a Diogo Álvares seu apoio para o domínio francês das terras brasileiras, mas o herói, firmando sua lealdade ao rei de Portugal, delicadamente recusa o pedido. Ao enfatizar a narratividade do poema de Santa Rita Durão, a autora contesta problema antigo da historiografia brasileira, segundo o qual o mesmo poema peca por além de ser excessivamente clássico e demasiado preso ao modelo camoniano, falta-lhe ações e, portanto, possui mínimo entrecho narrativo. O estudo de Berty Biron contribui de forma original para melhor avaliação deste aspecto. No último artigo deste número, Angela Costa aborda a trajetória da recepção crítica do poema A Nebulosa de Joaquim Manuel de Macedo. Além da peculiar recepção do poema que, após calorosa aceitação, desaparece do mercado editorial brasileiro e até hoje continua praticamente desconhecido, a autora desenvolve relevante 5|Página Revista Guavira-Letras: “Poemas Narrativos”, Mestrado em Letras, Campus de Três Lagoas, UFMS, Vol. 01, n. 09 (2005 - 2009 Três Lagoas). SALES, J. Batista de. (Org.).Semestral (Jul./Dez. 2009) – Versão On-line.(Versão On-Line http://www.revistaguavira.com.br; ISSN: 1980-1858) Guavira no9 reflexão sobre a publicação e recepção do poema no bojo das discussões sobre o processo conhecido como formação da identidade nacional na literatura brasileira. Lembra a autora que o poema é publicado no mesmo ano de O guarani, de Alencar que, por sua vez, é tido como resposta romântica à polêmica com Gonçalves de Magalhães, na qual se envolveu o imperador Dom Pedro II, que propunha a urgência de se elaborar uma obra épica nacional para estimular a formação do “ espírito nacional”. E que, além disso, A Nebulosa não se origina do romantismo italiano ou das obras de Byron, tão frequentes na poesia romântica brasileira de então, mas “chega até as terras altas e lendárias da Escócia.” e por explorar temas como a tragicidade, o horror, a posição ativa e decisória da mulher, além do amor impossível, deve chamar a atenção dos estudiosos sobre a possibilidade de o poema A Nebulosa provir de outra tradição que remeteria a outro tempo ou estilo de narrativa. É este, portanto, o conjunto de estudos sobre o poema narrativo. Evidentemente, muitos temas e aspectos não foram contemplados e devem sugerir a oportunidade de se explorar este campo promissor de investigação sobre a literatura brasileira. Boa leitura! José Batista de Sales Programa de Mestrado em Letras – UFMS – Campus de Três Lagoas Organizador 6|Página Revista Guavira-Letras: “Poemas Narrativos”, Mestrado em Letras, Campus de Três Lagoas, UFMS, Vol. 01, n. 09 (2005 - 2009 Três Lagoas). SALES, J. Batista de. (Org.).Semestral (Jul./Dez. 2009) – Versão On-line.(Versão On-Line http://www.revistaguavira.com.br; ISSN: 1980-1858) Guavira no9 A SAGA DA IMIGRAÇÃO: BARCAS E ARCAS, DE ARY NICODEMOS TRENTIN Regina Zilberman 1 RESUMO: No poema narrativo Barcas e arcas, Ary Nicodemos Trentin expõe a saga da imigração segundo processos criativos característicos da pós-modernidade. Palavras-chave: poesia brasileira; modernidade; Pós-modernismo; etnia. ABSTRACT: In the narrative poem Barcas e arcas, Ary Nicodemos Trentin displays the immigration saga, using creative processes characteristic of the postmodernity. Key Words: Brazilian poetry; modernity; Postmodernism; ethnicity. Ary Nicodemos Trentin (1944-2002) publicou seus primeiros versos em Matrícula, coletânea que congregava a nova geração de poetas nascidos na região serrana do Rio Grande do Sul, tendo a cidade de Caxias do Sul como eixo cultural do grupo de que também participavam Oscar Bertholdo (1935-1991), José Clemente Pozenato (1938) e Delmiro Gritti (1942), além de Jayme Paviani (1940). Matrícula adotou título programático, já que significava a introdução de novos autores ao universo institucional da poesia, escritores que, se, de um lado, admitiam sua juventude, de outro, almejavam ser recebidos na academia da literatura, de que doravante seriam membros assíduos. Quando a coletânea foi lançada, em 1967, Mario Quintana (1906-1994) já produzira a maior parte de sua obra, conforme testemunha a Antologia poética, editada no ano anterior, em 1966. Por sua vez, o Grupo Quixote, bastante ativo nos anos 50 do século XX, interrompera sua participação no sistema literário do Rio Grande do Sul, em decorrência, de um lado, da migração de membros como Pedro Geraldo Escosteguy (1916-1989) e Raymundo Faoro (1925-2003) para o eixo Rio de Janeiro-São Paulo, de outro, da dispersão profissional dos componentes que permaneceram no Rio Grande do Sul, como Silvio Duncan (1922–1998) e Heitor Saldanha (1910-1986). Representavam a poesia dos anos 60 autores como Armindo Trevisan (1933) e Carlos Nejar (1939), que optaram por conferir orientação filosófica e social a seus versos. A surpresa de ser (1967), do primeiro, e O campeador e o vento (1966) ou Canga (1971), do segundo, são títulos que sugerem a temática dos poemas encontráveis naqueles livros. 1 Universidade Federal do Rio Grande do Sul; Faculdade Porto-Alegrense. 7|Página Revista Guavira-Letras: “Poemas Narrativos”, Mestrado em Letras, Campus de Três Lagoas, UFMS, Vol. 01, n. 09 (2005 - 2009 Três Lagoas). SALES, J. Batista de. (Org.).Semestral (Jul./Dez. 2009) – Versão On-line.(Versão On-Line http://www.revistaguavira.com.br; ISSN: 1980-1858) Guavira no9 Fazer poesia social nos anos 60 do século XX significava dar seqüência à tônica dominante da lírica brasileira desde a publicação, em 1945, de A rosa do povo, por Carlos Drummond de Andrade (1902-1987). Sentimento do mundo (1940), do mesmo autor, antecipava o pendor que sua lírica assumiria na década de 40, mas foi A rosa do povo que estabeleceu o paradigma que repercutiu nos autores sul-rio-grandenses a partir dos anos 50. Na década de 60, João Cabral de Melo (1920-1999) constava igualmente do cardápio de leitura de nossos poetas. Tendo publicado os primeiros textos entre 1942 e 1947, em 1950 lançara O cão sem plumas, poema que ecoara intensamente na veia lírica dos autores sulinos. O contexto político favorecia o posicionamento dos poetas, pois, desde 1945, com a queda da ditadura de Getúlio Vargas (1882-1954), o Brasil fizera as pazes com a democracia. Mesmo quando o velho déspota retornou ao poder, em 1950, após vencer as eleições para a presidência, prevaleceu, ainda que aos trancos e barrancos, o regime democrático. No começo dos anos 60, à época do governo de João Goulart (1918-1976), a política cultural estimulou os artistas a fazerem uso de sua criatividade na direção da exposição de mazelas sociais e denúncia da opressão no campo e na cidade. Exemplar foi a atividade dos Centros de Cultura Popular, os CPCs, vinculados à União Nacional de Estudantes, UNE, que, entre 1962 e 1963, publicaram, na série de livros denominados Violão de rua, versos engajados de Moacyr Félix (1926-2005), Ferreira Gullar (1930), Affonso Romano de Sant’Anna (1937) e José Carlos Capinam (1941), entre outros. O impacto do projeto político nascido no começo dos anos 60 não se interrompeu com o golpe militar de 1964, que encerrou o ciclo democrático iniciado em 1945 e deu início a um regime repressivo que se estendeu por outros vinte anos. A força da inércia, somada à relativa liberalidade conservada até o final de 1968, facultou a expansão e consolidação das manifestações artísticas endereçadas à denúncia dos males da sociedade, das atitudes conservadoras do poder público e da opressão do sistema imposto pelo Estado. Na década de 70, tudo mudou: a ameaça da censura e o agravamento da repressão, após a implantação de Ato Institucional, o AI-5, em 13 de dezembro de 1968, motivaram o encolhimento da produção artística brasileira, sobretudo no âmbito do cinema e do teatro, vítima esse até da violência física, de que foi sintoma, em Porto 8|Página Revista Guavira-Letras: “Poemas Narrativos”, Mestrado em Letras, Campus de Três Lagoas, UFMS, Vol. 01, n. 09 (2005 - 2009 Três Lagoas). SALES, J. Batista de. (Org.).Semestral (Jul./Dez. 2009) – Versão On-line.(Versão On-Line http://www.revistaguavira.com.br; ISSN: 1980-1858) Guavira no9 Alegre, em 1968, o espancamento dos atores que protagonizavam a peça Roda Viva, de Chico Buarque de Holanda (1944). A poesia assistiu, por sua vez, ao esgotamento do modelo engajado herdado das décadas anteriores e à expansão do movimento autodenominado marginal ou alternativo. A designação se justificava, na medida em que seus membros, de uma parte, rejeitavam os modos consagrados de produção e distribuição de objetos escritos, como o livro, ao financiarem a impressão dos próprios textos, e empenharem-se na venda direta do produto ao consumidor; de outro, recusavam os padrões, segundo eles, ainda bem comportados de expressão verbal dos poetas politizados. Em seu lugar, propuseram uma linguagem escrachada e transgressora, desafiando as possibilidades de percepção e recepção por parte do leitor a quem cabia assumir uma dessas duas atitudes: ou aceitava a falta de pudor e interagia com o poema; ou então reprovava a obra, posição denunciadora de seu conservadorismo ou de sua visão “careta”. A poesia marginal encarregava-se da contracultura no Brasil dos anos 70, representada essa igualmente pela chamada imprensa nanica (O Pasquim, Opinião, Movimento), pela música de Caetano Veloso (1942) e por grupos de teatro como o Oficina. Poetas como Francisco Alvim (1938), Leila Míccolis (1947), Antônio Carlos de Brito (Cacaso) (1944-1987), Nicolas Behr (1958), entre vários outros, mimetizaram, à sua maneira, o “ame-o ou deixe-o” do discurso oficial do período do governo Médici (1969-1974), já que, perante seus versos, não era mais possível a atitude contemplativa, admirativa ou mesmo crítica, característica, na maioria das vezes, da leitura da poesia. Tratava-se de aceitá-los – portanto, de amá-los, aderindo a seu projeto, ou de repudiálos – deixando-os de lado. O radicalismo foi comparado a um novo Modernismo (HOLANDA, 1976; HOLANDA, 1981; HOLANDA, GONÇALVES, 1982; MATTOSO, 1981; PEREIRA, 1981), o que talvez tenha sido exagero. De todo modo, a poesia marginal, tal como ocorreu com as propostas alardeadas nos anos 20 por Oswald de Andrade (1890-1954), Mário de Andrade (1893-1945) e Tarsila do Amaral (18861973), rompeu a hegemonia do discurso politizado até então dominante, favorecendo as vozes que não se alinhavam a ele, mesmo quando não partilhavam o programa alternativo. Outro processo artístico acontecia sub-repticiamente, delineado com clareza ao final da década de 70 e descrito com mais precisão a partir dos anos 80: o fenômeno muitas vezes designado como Pós-Modernismo. 9|Página Revista Guavira-Letras: “Poemas Narrativos”, Mestrado em Letras, Campus de Três Lagoas, UFMS, Vol. 01, n. 09 (2005 - 2009 Três Lagoas). SALES, J. Batista de. (Org.).Semestral (Jul./Dez. 2009) – Versão On-line.(Versão On-Line http://www.revistaguavira.com.br; ISSN: 1980-1858) Guavira no9 Pós-Modernismo constitui designação nem sempre aceita com tranqüilidade, já que corresponde simultaneamente à retomada do projeto modernista e à sua superação (BÜRGER, 1986; HUTCHEON, 1991; HUYSSEN, 1986; ROUANET, 1987; SUBIRATS, 1987). Do Modernismo, importa a vocação transgressora e incômoda; por outro lado, evita a propensão centralizadora e homogeneizadora daquele, que elegeu motivos emblemáticos para sua auto-representação, como, no caso brasileiro, o nacionalismo e a antropofagia, ou, no caso europeu, o experimentalismo lingüístico e narrativo. No Pós-Modernismo, tudo pode ser válido, sugerindo permissividade e desarranjo estético. Esse liberalismo, contudo, significa principalmente o reconhecimento da voz dos segmentos mais diferenciados. No âmbito da poética pósmoderna, distintos grupos – dominantes ou dominados, maiorias ou minorias – tiveram condições de dar vazão às suas expressões singulares e consideradas mais autênticas, sem precisar creditá-las aos sentidos mais amplos – e, portanto, mais difusos – de identidade nacional ou subjetividade. As coordenadas históricas e estéticas posicionam o poema narrativo Barcas e arcas, que Ary Nicodemos Trentin publicou em 1981, após receber o segundo lugar no Concurso Nacional de Poesias do Estado de Goiás (ZINANI; BERTUSSI; SANTOS, 2006, p. 192-193). O autor estreara, como se indicou antes, no ano-chave de 1967 e lançara Investiduras em 1976; ao abrir a década de 80, do século XX, oferece o livro que representa seu compromisso com a poesia sul-rio-grandense no âmbito do esgotamento do projeto da lírica social e no horizonte da pós-modernidade. Barcas e arcas é texto estruturado de modo uniforme, conforme um plano rigoroso. Após a epígrafe, extraída de O Continente, de Erico Verissimo, apresenta oito partes, cada uma introduzida por um prólogo em forma de poema, que pode ter dois, três ou quatro versos, e que culmina no título do segmento. Barcas e arcas designa, além do título do livro, a primeira divisão, que abre com um prólogo de quatro versos; os demais capítulos são: - “Rebolos e facas”, antecedido por um poema de dois versos; - “Moinhos e girassóis”, antecedido por três versos; - “Uvas e favos”, antecedido por três versos; 10 | P á g i n a Revista Guavira-Letras: “Poemas Narrativos”, Mestrado em Letras, Campus de Três Lagoas, UFMS, Vol. 01, n. 09 (2005 - 2009 Três Lagoas). SALES, J. Batista de. (Org.).Semestral (Jul./Dez. 2009) – Versão On-line.(Versão On-Line http://www.revistaguavira.com.br; ISSN: 1980-1858) Guavira no9 - “Cavalos e vales”, antecedido por três versos; - “Morangos e amoras”, antecedido por dois versos; - “Sinos e lanternas”, antecedido por quatro versos; - “Anéis e violetas”, antecedido por quatro versos. Por sua vez, cada segmento é formado por dois poemas de dez estrofes, e cada estrofe contém quatro versos decassílabos brancos. O livro inteiro contabiliza dezesseis poemas, 160 estrofes e 640 versos. Tais números confirmam o rigor e simetria com que é tratada a estrutura do poema. Esse fecha com um trecho de O cão sem plumas, de João Cabral de Melo Neto, reproduzido a seguir (TRENTIN, 1981, p. 67): O que vive é espesso como um cão, um homem como esse rio; Como todo o real é espesso. Esse epílogo estabelece uma ponte com a epígrafe, constituindo a moldura que envolve a obra. Retirada do romance de Erico Verissimo, a epígrafe provém do capítulo dedicado a Ana Terra e sua família que, vinda de Sorocaba, instala-se no interior da região então conhecida como Continente. Transcreve-se o parágrafo integral a que pertence a frase utilizada por Trentin, destacada essa em negrito: D. Henriqueta olhava desconsolada para a velha roca que estava ali no rancho, em cima do estrado. Era uma lembrança de sua avó portuguesa e talvez a única recordação de sua mocidade feliz. Casara com Maneco Terra na esperança de ficar para sempre vivendo em São Paulo. Mas acontecera que o avô de Maneco fora um dos muitos bandeirantes que haviam trilhado a estrada da serra Geral e entrado nos campos do Continente, visitando muitas vezes a Colônia do Sacramento. Quando voltava para casa, tantas maravilhas contava aos filhos sobre aqueles campos do Sul, que Maneco crescera com a mania de vir um dia para o Rio Grande de São Pedro criar gado e plantar. Antes dele, seu pai, Jucá Terra, também cruzara e recruzara o Continente, trazendo tropas. Todos diziam que o Rio Grande tinha um grande futuro, pois suas terras eram boas e seu clima salubre. E eles vieram... E já tinham pago bem caro aquela loucura. O Lucinho lá estava enterrado em cima da coxilha. E, quanto mais o tempo passava, mais o marido e os filhos iam ficando como bichos naquela lida braba — carneando gado, curando bicheira, laçando, domando, virando terra, plantando, colhendo e de vez em quando brigando de espingarda na mão contra índios, feras e bandidos. Parecia que a terra ia se entranhando não só na pele como também na alma deles. Andavam com as mãos encardidas, cheias de talhos e calos. Maneco à noite deitava-se sem mudar a camisa, que cheirava a suor, a sangue e a carne crua. Naquela casa nunca entrava nenhuma alegria, nunca se ouvia uma 11 | P á g i n a Revista Guavira-Letras: “Poemas Narrativos”, Mestrado em Letras, Campus de Três Lagoas, UFMS, Vol. 01, n. 09 (2005 - 2009 Três Lagoas). SALES, J. Batista de. (Org.).Semestral (Jul./Dez. 2009) – Versão On-line.(Versão On-Line http://www.revistaguavira.com.br; ISSN: 1980-1858) Guavira no9 música, e ninguém pensava em divertimento. Era só trabalhar o quanto dava o dia. E a noite — dizia Maneco — tinha sido feita para dormir. Que ia ser de Ana, uma moça, metida naquele cafundó? Como é que ia arranjar marido? Nem ao Rio Pardo o Maneco consentia que ela fosse. Dizia que mulher era para ficar em casa, pois moça solta dá o que falar. (VERISSIMO, 1949, p. 77-78) A epígrafe sugere o tema que os versos de Trentin acompanham nas páginas que a seguem: eles tratarão de homens e mulheres que deixaram sua terra natal, para ir ao encalço de um sonho, buscar uma vida melhor e ser feliz. A reflexão de D. Henriqueta denuncia os prejuízos, o sofrimento e, sobretudo, a desumanização das pessoas que participaram do movimento de migração de um lugar a outro. Os imigrantes absorvem o ambiente que habitam, sendo que a hostilidade circundante passa a fazer parte deles – de sua alma. No romance, a terra lavrada por Maneco converte-se em nome de família, herdado por Ana e levado adiante ao longo da trilogia escrita por Verissimo. Por causa da epígrafe, o leitor sabe antecipadamente que o poema tratará da saga da imigração, da vida de seres humanos que mudam de lugar e almejam reconstruir suas vidas, bem como das perdas e ganhos resultantes dessas escolhas. O epílogo, por sua vez, propõe outra abordagem, ao invocar O cão sem plumas, de João Cabral de Melo Neto. Esse poema, datado de 1950, representou uma guinada na poesia que João Cabral produzia até então. Nos seus primeiros livros (Pedra do sono, 1942; O Engenheiro, 1945; Psicologia da composição, Fábula de Anfion e Antiode, 1947), o poeta procurou dar vazão a uma lírica descarnada de subjetividade e emoção. Optando por um lirismo comedido [mas não “bem comportado”, que, tanto quanto Manuel Bandeira (BANDEIRA, 1966), ele rejeita], João Cabral ditava as diretrizes que, anos depois, o Concretismo levaria ao extremo, reduzindo o verso ao mínimo de vocábulos, para que a palavra pudesse vibrar independentemente das projeções e sensibilidade do escritor. O cão sem plumas não contradiz essa poética, mas acrescenta dois componentes a ela. O primeiro é de ordem social, ao trazer para o interior do verso a miséria dos habitantes de Recife, sintetizada pelo rio Capibaribe e metaforizada no cão faminto que cruza as ruas da cidade. O enxugamento da linguagem, praticado nos poemas dos anos 40, coincide com a pobreza dos seres e das coisas, como se a palavra fosse reduzida ao 12 | P á g i n a Revista Guavira-Letras: “Poemas Narrativos”, Mestrado em Letras, Campus de Três Lagoas, UFMS, Vol. 01, n. 09 (2005 - 2009 Três Lagoas). SALES, J. Batista de. (Org.).Semestral (Jul./Dez. 2009) – Versão On-line.(Versão On-Line http://www.revistaguavira.com.br; ISSN: 1980-1858) Guavira no9 mínimo para dar conta de figuras que nada têm de seu: a penúria da fala serve para expressar a indigência do homem. O segundo componente é de natureza filosófica: o discurso de João Cabral refere-se à espessura do real, para manifestar sua profissão de fé materialista, avessa às abstrações que separam o homem do mundo que habita. Ao reproduzir o trecho em que João Cabral explicita sua confiança na materialidade do real, Trentin endossa a posição do poeta, sugerindo simultaneamente que a lírica pode prescindir do sujeito e de sua intimidade. O trecho de Erico Verissimo, na posição de epígrafe, e os versos de João Cabral, na condição de epílogo, são os únicos textos citados diretamente pelo autor, configurando a proposta intertextual explícita da obra. Estabelecem a primeira moldura de Barcas e arcas, esclarecendo seu tema, o posicionamento do autor e suas expectativas conceituais e filosóficas. A segunda decorre dos títulos dos segmentos, que desempenham o papel de sumário do livro. O primeiro segmento é denominado “Barcas e arcas”, repetindo a designação do conjunto de poemas. Exerce, pois, função metonímica em relação ao livro, apresentando-se, ao mesmo tempo, como sua seção principal. Esclarece igualmente o modo como o texto funciona, já que, em cada segmento, o título aponta para a imagem que os poemas individuais desdobram. A maior parte dessas imagens provém da natureza, representada por: frutas (uvas, morangos, amoras) cultivadas pelo homem; flores (girassóis, violetas); animais (cavalos); espaços (vales). A presença do ser humano é antecipada pela menção às flores e frutas, pois essas dependem da pessoa que fertiliza a terra, planta as sementes, acompanha seu crescimento e colhe os resultados. Mesmo os “favos”, produto espontâneo da natureza, requerem a interferência do homem para sua conservação e posterior aproveitamento na alimentação. Os “favos” fazem a transição do mundo natural para o humano, conforme uma seqüência que apresenta o trânsito do espaço selvagem para a civilização. Essa associase ao trabalho, pois as demais imagens empregadas nos títulos dão conta do fazer humano: “rebolos e facas” e “moinhos” explicitam a capacidade de transformar a natureza, conquistando-a, cultivando-a e transformando-a em nutrição. “Sinos e lanternas” ou “anéis” apontam para o passo seguinte – a festa, a celebração do feito e ao mesmo tempo a comemoração da dádiva recebida da natureza, que não é adversária, 13 | P á g i n a Revista Guavira-Letras: “Poemas Narrativos”, Mestrado em Letras, Campus de Três Lagoas, UFMS, Vol. 01, n. 09 (2005 - 2009 Três Lagoas). SALES, J. Batista de. (Org.).Semestral (Jul./Dez. 2009) – Versão On-line.(Versão On-Line http://www.revistaguavira.com.br; ISSN: 1980-1858) Guavira no9 mas aliada, extensão da civilização enquanto ordem benéfica e garantia da vida em sociedade. Na qualidade de uma segunda moldura, os títulos dos segmentos constituem, eles mesmos, um curto poema que exibe o cenário e as ações contidas de Barcas e arcas. Se os textos da epígrafe e do prólogo indicam o pensamento e temática do conjunto, os nomes dados às partes intermediárias desvelam o meio natural em que transcorrem as atividades e que tipo de indivíduo é responsável por elas. Trata-se de um ordenamento da civilização que recorre à natureza para seu sustento, mas não contradiz sua índole, pelo contrário, associa-se a ela numa conjunção propícia e digna de ser enaltecida. Cada capítulo é precedido de um curto prólogo, que aparece na forma de versos, formando uma estrofe que culmina no título do segmento, como mostra o primeiro deles: Ontem era o mar, o sonho, a terra como olho vazado E os corações a pino, explodindo no peito em BARCAS E ARCAS (TRENTIN, 1981, p. 19) Esse prólogo, como os demais, é narrativo, induzindo o teor épico escolhido pelo texto. A presença do advérbio de tempo na abertura do primeiro verso e o emprego do verbo no imperfeito do indicativo confirmam a eleição da forma narrativa, apropriada para o relato de uma trajetória, como ocorre nessa obra de Trentin. Os recursos característicos do discurso poético estão igualmente presentes, sobressaindo o emprego da metonímia (“ontem era o mar”, “corações a pino”), da metáfora (“o mar, o sonho”) e da comparação (“a terra como olho vazado”). O prólogo de “Moinhos e girassóis” reitera o processo criativo utilizado por Trentin: E como as mãos enternecem a terra e rebentam em frutos e aconchegam os ermos, também movem MOINHOS E GIRASSÓIS (TRENTIN, 1981, p. 31) Nesse trecho, o narrador abandona o pretérito imperfeito, mas não deixa de lado a narração, já que o uso do presente do indicativo significa a atualização dos eventos. É 14 | P á g i n a Revista Guavira-Letras: “Poemas Narrativos”, Mestrado em Letras, Campus de Três Lagoas, UFMS, Vol. 01, n. 09 (2005 - 2009 Três Lagoas). SALES, J. Batista de. (Org.).Semestral (Jul./Dez. 2009) – Versão On-line.(Versão On-Line http://www.revistaguavira.com.br; ISSN: 1980-1858) Guavira no9 a metonímia, por sua vez, que procede ao trânsito da narração para a poesia, aparecendo no primeiro verso; a metáfora igualmente comparece, no símile proposto entre “moinhos” e “girassóis”, representações ambas de formato semelhante. Aproximados por força da metáfora, os girassóis passam a fazer parte do projeto civilizatório dos moinhos, e esses, por seu turno, não perdem seu vínculo com a natureza. Tal como ocorre aos títulos dos segmentos, os prólogos, formados de estrofes, configuram um poema independente, que se incorpora à macro-estrutura. Graças a esses recursos, Trentin constrói um sistema de continentes e conteúdos, em que o maior inclui o menor, e esse tem autonomia suficiente para espelhar o maior. Esse modelo é antecipado pelo título, já que, em Barcas e arcas, o significante do segundo substantivo está embutido no primeiro, mas, ao mesmo tempo, expressa e expande seu significado. Barcas são arcas, conforme sugere o relato bíblico de Noé; mas arcas são igualmente riquezas e propriedade, que as barcas transportam e traduzem. O processo semântico encontra seu apoio poético no emprego da metonímia, que aparece no prólogo, conforme se observou, e domina a maioria dos poemas dos distintos segmentos. O segundo poema do primeiro segmento exemplifica o emprego da metonímia, conforme sugere a primeira estrofe: Nas arcas vão soluços a remar o alfato (sic) da aurora que agoniza vão raízes vão ventos vão segredos desfazendo o coração em teimosia. (TRENTIN, 1981, p. 23) Nas citações anteriores, “corações” e “mãos” faziam as vezes do sujeito a que se refere o narrador; aqui são os “soluços” que o representam. O protagonista da narrativa evidencia-se de modo fragmentado, o que acentua sua fragilidade e insegurança, compensada, porém, pela “teimosia” em que se desfaz o “coração”. O mesmo processo retorna em outras estrofes do mesmo poema, como a que se segue: Nas arcas vão olhos sussurrando esperas entre presas e carícia aquarela de fogos e de febres o amor é naufrágio e ventania. (TRENTIN, 1981, p. 24) 15 | P á g i n a Revista Guavira-Letras: “Poemas Narrativos”, Mestrado em Letras, Campus de Três Lagoas, UFMS, Vol. 01, n. 09 (2005 - 2009 Três Lagoas). SALES, J. Batista de. (Org.).Semestral (Jul./Dez. 2009) – Versão On-line.(Versão On-Line http://www.revistaguavira.com.br; ISSN: 1980-1858) Guavira no9 Nessa estrofe, são os olhos que traduzem a intimidade do protagonista, assim como em versos anteriores do mesmo poema ele é representado por “perfumes”, “tranças” ou “ossos”. A metáfora, como se lê na estrofe reproduzida, não está ausente, mas fica submetida à força da metonímia, encarregada de conferir visibilidade e consistência ao objeto da narração do poeta. Do emprego da metonímia decorre a apresentação fragmentada do sujeito. É como se o narrador tivesse dificuldade em apreender a totalidade do indivíduo, repartido nos órgãos que propiciam sua ação ou expõem seus sentimentos. A essa fragmentação opõe-se uma característica peculiar a Barcas e arcas: o sujeito da narração não é identificado por um nome, o que o individualizaria; ao mesmo tempo, porém, ele se mostra de modo plural. Com efeito, o protagonista de Barcas e arcas é coletivo e anônimo. Eis porque, numa de suas declarações de princípio, expressa, no caso, no epílogo, o poeta manifesta a incorporação da objetividade e distanciamento emotivo, tal como aparece nos versos de João Cabral de Melo Neto, em O cão sem plumas. Sem a imparcialidade advogada por Cabral, Trentin tenderia a destacar uma figura ficcional, em vez de lidar com o grupo, e a propor a identificação entre o protagonista e o leitor. Talvez a opção pelo modelo de protagonista constitua a principal particularidade de Barcas e arcas. Desde o verso de abertura, o coletivo está presente graças ao emprego da terceira pessoal do plural: Aprestam-se para a sorte ou para a morte nesta barca que os emborca e laça: (TRENTIN, 1981, p. 21) Em nenhum momento, o narrador descarta esse recurso, de que resulta a permanente oscilação entre a fragmentação, propiciada pela metonímia, e o múltiplo, decorrente da narração das ações desempenhadas pelo grupo de modo unitário e coeso. Trata-se, pois, de uma epopeia singular, que elege o todo para colocá-lo na posição de protagonista de atos heroicos, mas representa-o fracionado, ainda que não dividido. Não é difícil reconhecer a modernidade do procedimento adotado por Ary Nicodemos Trentin. Embora não se apoie na decomposição do verso e da estrofe, recursos que se mantêm homogêneos até o final do poema, caracterizando o rigorismo da construção artística, Barcas e arcas expõe uma concepção moderna de humanidade, que recusa a perspectiva idealista, abstrata e triunfante. Não há individualismo no texto, 16 | P á g i n a Revista Guavira-Letras: “Poemas Narrativos”, Mestrado em Letras, Campus de Três Lagoas, UFMS, Vol. 01, n. 09 (2005 - 2009 Três Lagoas). SALES, J. Batista de. (Org.).Semestral (Jul./Dez. 2009) – Versão On-line.(Versão On-Line http://www.revistaguavira.com.br; ISSN: 1980-1858) Guavira no9 já que o grupo é heroico, e não uma pessoa em especial. Mas o escritor também não abraça o coletivismo, de que o Socialismo é uma das expressões, já que os seres humanos que formam o conjunto revelam-se de modo recortado e incompleto, É como se Trentin transpusesse para a poesia o projeto da pintura cubista de Pablo Picasso (1881-1973) e Georges Braque (1882-1963). A fragmentação nega o ideal universalista, impedindo que a concepção de grupo recaía na noção totalizante com que lidou a metafísica até o século XIX. Que a modernidade de Barcas e arcas coincide com o projeto pós-modernista indica-o a opção por narrar a epopeia da imigração. O tom épico advém da introdução da narrativa no texto, por intermédio dos prólogos curtos que antecedem cada segmento do poema. Como se observou, a metonímia, apontando para o fracionamento do ser humano, impede que o texto deslize para o tom triunfal e superlativo. Ainda que a última etapa da narrativa dê conta da festa e da celebração, está ausente a apoteose sinalizadora da vitória e do poder. A metonímia permanece o recurso poético dominante nos últimos versos, limitando as possibilidades de exaltação, conforme sugere a estrofe a seguir: E o sangue lavora-se de fogos E forja os cascos da vitória É festa o olho que espreita As pazes de terra e de canto. (TRENTIN, 1981, p. 66) A oscilação entre o entusiasmo da conquista e o padecimento da travessia acompanha o poema até o encerramento: Abrasam-se de velas as barcas têm raízes sua rota seu rosto o aceno se criva de arremedos e destroça a trama do riso. (TRENTIN, 1981, p. 66) Modula-se, dessa maneira, o tom narrativo, que não deixa de ser épico, mas que não deriva para euforia ou para a louvação. A imigração é encarada como passagem e travessia inconclusa, porque recomeça a cada etapa da existência, razão porque os versos da última estrofe retomam as imagens iniciais do poema: Alastram-se como grito as arcas peregrinos com sangue de horizonte tanto jorro se enleia em sua doma que as barcas estouram o sol. 17 | P á g i n a Revista Guavira-Letras: “Poemas Narrativos”, Mestrado em Letras, Campus de Três Lagoas, UFMS, Vol. 01, n. 09 (2005 - 2009 Três Lagoas). SALES, J. Batista de. (Org.).Semestral (Jul./Dez. 2009) – Versão On-line.(Versão On-Line http://www.revistaguavira.com.br; ISSN: 1980-1858) Guavira no9 (TRENTIN, 1981, p. 66) Ao apoiar o texto na narrativa da imigração, retomando, para tanto, a tópica da viagem e da travessia, Trentin incorpora à poesia um tema que, na literatura do Rio Grande do Sul, vinha sendo explorado pela ficção. A referência explícita ao romance de Erico Verissimo, na epígrafe, expressa a paternidade que o Autor quer reconhecida; por sua vez, a família a que confessa pertencer conta também com a participação de José Clemente Pozenato, parceiro de Matrícula, Josué Guimarães (1921-1986), Moacyr Scliar (1937) e Gladstone Osório Mársico (1927-1976), entre outros (ZILBERMAN, 1985). A visão da história sob a perspectiva da etnia viceja nos tempos pós-modernos a que o poema se integra. Significa, como se observou, a recusa da perspectiva homogeneizadora, que as correntes nacionalistas de direita e de esquerda buscaram por muitas décadas ao longo do século XX, pesquisa que remonta ao século XIX e tem no Romantismo seu berço. Narrar a aventura do grupo, sem que se atribua a esse qualidades universalizantes, significa compartilhar a ótica descrente no nacionalismo e nas expressões emblemáticas da nacionalidade. O relato do percurso de uma etnia, cuja trajetória tem força épica por ser grandiosa, mas que é encarada com os óculos do materialismo e do distanciamento, colabora para o entendimento do passado de uma porção da sociedade e a avaliação de sua participação no funcionamento do todo. Esse, por sua vez, não é o resultado harmônico da cooperação de cada um, mas o mosaico das diferenças, evidenciadas pela representação invariavelmente fragmentada das partes. Eis a dinâmica de Barcas e arcas, cuja composição dialética pode prescindir do experimentalismo para ser moderna. Mas há um aspecto desafiador, que leva a linguagem a seus limites. É que, em nenhum momento, se menciona uma etnia, nem se esclarece em que tempo e em que espaço transcorre a ação. As imagens são colhidas na natureza, no processo do trabalho, na transformação do ambiente em civilização. Barcas, arcas, mar, céu, vento, cavalos – as outras imagens recorrentes do texto – não têm localização específica e estão presentes na poesia desde sempre. Cabe ao leitor preencher as lacunas (ISER, 1976; WARNING, 1975), trazendo a narrativa para um cenário específico, para uma história ocorrida, para uma sociedade determinada. Barcas e arcas exige o empenho do leitor, a quem não compete a 18 | P á g i n a Revista Guavira-Letras: “Poemas Narrativos”, Mestrado em Letras, Campus de Três Lagoas, UFMS, Vol. 01, n. 09 (2005 - 2009 Três Lagoas). SALES, J. Batista de. (Org.).Semestral (Jul./Dez. 2009) – Versão On-line.(Versão On-Line http://www.revistaguavira.com.br; ISSN: 1980-1858) Guavira no9 decifração das imagens, mas a incorporação da obra a uma dada situação. Em vez de interpretar e buscar o significado do texto, o leitor precisa transportá-lo para seu próprio contexto, materializando o conteúdo das frases e adaptando-o ao previamente conhecido. Revela-se o compromisso do livro com a sociedade e com a atualidade, pois, sem a ocupação, por parte do leitor, dos espaços da história e do presente, a obra permaneceria fechada à leitura. Ary Trentin recupera, por esse ângulo, sua vinculação com a proposta de João Cabral de Melo Neto, em O cão sem plumas, embora, aparentemente, não se refira à sociedade brasileira, nem à vida contemporânea. Quem procede dessa maneira é o leitor; mas esse não pode agir de outro modo, sob pena de o poema mostrar-se indecifrável. Ao exigir do leitor o esforço de constante atualização da obra, que, por sua vez, terá de conhecer a trajetória da imigração e o percurso de uma etnia, Trentin cumpre a palavra dada, traduzida pela epígrafe e pelo epílogo. E cria uma obra que se integra à história da poesia sul-rio-grandense e brasileira, sem deixar de ser, ao contrário de suas personagens, pessoal e original. REFERÊNCIAS BANDEIRA, Manuel. Estrela da vida inteira. Rio de Janeiro: José Olympio, 1966. 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For that, we will analyze the second Memorabilia (1876), which shows an outline of all aesthetics ideas by this author. Keywords: Sousândrade; O Guesa; romanticism; genius; reflexion. 1. Eia, imaginação divina! (O Guesa, Canto I) A forma poética e o conteúdo da obra sousandradina eram estranhos ao público do Brasil do século XIX, fazendo que sua produção fosse colocada à margem. De acordo com Robert Hans Jauss (1994), muitas vezes a falta de público deve-se à quebra da expectativa estética do leitor em relação à obra. Isso se dá quando uma obra apresenta alguma característica formal ou temática que a torne singular, destacando-se do ambiente criado pelas demais. Essa obra é “recebida e julgada tanto em seu contraste com o seu pano de fundo oferecido por outras formas artísticas, quanto contra o pano de fundo da experiência cotidiana de vida” (Jauss, 1994, p. 53). Considerando que, no caso de Sousândrade, o horizonte de expectativa baseava-se em muitos aspectos da estética neoclássica, cultivada no romantismo brasileiro, o estranhamento de sua obra talvez fosse fruto de um processo natural, já que “há obras que, no momento de sua publicação, não podem ser relacionadas a nenhum público específico, mas rompem tão completamente o horizonte conhecido de expectativas literárias que seu público somente começa a formar-se aos poucos” (Id., p. 32-3). Quanto à familiaridade dos leitores com os pressupostos estéticos de sua obra, Sousândrade a vê de maneira 2 Mestre em Literatura Brasileira pela Universidade de São Paulo e membro da Coordenadoria de Estudos e Normas Pedagógicas da Secretaria de Estado da Educação de São Paulo. 21 | P á g i n a Revista Guavira-Letras: “Poemas Narrativos”, Mestrado em Letras, Campus de Três Lagoas, UFMS, Vol. 01, n. 09 (2005 - 2009 Três Lagoas). SALES, J. Batista de. (Org.).Semestral (Jul./Dez. 2009) – Versão On-line.(Versão On-Line http://www.revistaguavira.com.br; ISSN: 1980-1858) Guavira no9 negativa, pois, para ele, isso só aconteceria com o tempo, conforme aponta em sua segunda Memorabilia: “Ouvi dizer já por duas vezes que O Guesa errante será lido cinquenta anos depois; entristeci ― decepção de quem escreveu cinquenta anos antes ” (SOUSÂNDRADE, 2003, p. 484). Pode-se dizer que durante boa parte da existência da obra sousandradina seus principais leitores foram os letrados que, em muitos casos, também foram críticos de literatura. Nas críticas publicadas em periódicos da época 3, recolhidas pelo poeta em suas Memorabilias, nota-se uma visão crítica redutora da obra de Sousândrade, destacando somente os problemas relacionados à negação de regras poéticas e a exaltação da imaginação do poeta. Observam-se os seguintes excertos de críticas publicadas sobre o volume Impressos, 4 de Sousândrade: Tem o autor dos Impressos boa e alentada inspiração, apurado sentimento poético, colorido e originalidade de imagens. Não são dotes estes que andem a rodo. Falta-lhe apenas aquilo que se não adquire logo, falta-lhe o domínio da forma. A forma é tão necessária à poesia como a ideia; pelos belos pedaços que nos dá o autor dos Impressos, vê-se que lhe sobram meios de aperfeiçoar os seus versos inspirados e sentidos. [...] Souza-Andrade é um poeta de viva imaginação e de originalíssimo estro. Sem pretender fazer cisma em literatura, como esses poetas nebulosos e profundamente alemães com que estamos às voltas, ele canta de um modo inteiramente particular, brusco e às vezes desleixado na forma, mas sempre verdadeiro no sentimento e sincero nas confidencias e revelações que faz. [...] É preciso atender à parte artística do verso, ninguém o pode negar. A forma é hoje em dia o que salva uma quantidade de velharias, contemporâneas de Salomão. A forma é que abre exceção à sentença que ele proferiu: Nada há de novo embaixo do sol. [...] O mesmo defeito, porém, que já ficou apontado quando foram percorridas as Harpas selvagens e as Eólias, aparece largamente nO Guesa: o inteiro desprendimento das convenções artísticas, a absoluta negação de algumas regras poéticas. (SOUSÂNDRADE, 483-6) É válido citar também o apontamento feito por Silvio Romero em sua História da literatura brasileira, em que considerava Sousândrade [...] um poeta de forte elevação de idéias; mas de forma muitas vezes áspera e rude, quase ininteligível. [...] Não possuía também destreza e a habilidade da forma. [...] o poeta sai quase inteiramente fora da toada comum da poetização de seu meio; suas ideias têm outra estrutura. (ROMERO, 1903, 405-6) 3 No século XIX, a crítica da obra sousandradina foi feita em alguns periódicos do Maranhão (O País, O Liberal), Rio de Janeiro (Diário do Povo, Semana Ilustrada, A Reforma) e Nova York (O Novo Mundo). O poeta não cita em sua Memorabilia o nome dos críticos, destaca apenas o nome do periódico. 4 O primeiro volume, lançado em 1868, continha os cantos I e II de O Guesa errante e mais 37 poemas que integravam a seção intitulada Poesias diversas. Já o segundo volume, também de 1868, trazia o canto III de O Guesa errante. 22 | P á g i n a Revista Guavira-Letras: “Poemas Narrativos”, Mestrado em Letras, Campus de Três Lagoas, UFMS, Vol. 01, n. 09 (2005 - 2009 Três Lagoas). SALES, J. Batista de. (Org.).Semestral (Jul./Dez. 2009) – Versão On-line.(Versão On-Line http://www.revistaguavira.com.br; ISSN: 1980-1858) Guavira no9 A valorização da imaginação do poeta e a sua suposta inépcia com forma literária são temas recorrentes (quase unânimes) nas críticas do século XIX. Os excertos supracitados destacam que as ideias elevadas e originais presentes na obra sousandradina são malogrados em sua objetivação pela falta de “destreza e a habilidade da forma”, o “inteiro desprendimento das convenções artísticas” e a “negação absoluta de algumas regras poéticas”. Silvio Romero, por sua vez, observou, além da suposta inépcia com a forma literária, que as ideias da poesia de Sousândrade possuíam outra estrutura, distinta daquela praticada por seus pares, estranha ao público seus leitores. Essa problemática em relação à forma poética adotada na poesia de Sousândrade revela a orientação estética que baseava critica oitocentista. Boa parte da crítica literária do romantismo estava impregnada pelos códigos retórico-poéticos herdados da tradição do assim chamado classicismo, sendo um dos motivos que concorreram para a exigência de críticos de um apuramento formal da obra sousandradina. Antonio Candido aponta que, no Brasil, mesmo com o desejo de ruptura formal imanente ao romantismo, houve a conservação de tais códigos, demonstrando uma consciência crítica não de ruptura, mas de acomodação a eles: [...] a estrutura do verso não se modificou essencialmente, e isso facilitou a aceitação das normas já comodamente existentes para sua elaboração. Ainda mais, o ensino permaneceu, com a sua tendência conservadora, a ser ministrado segundo os critérios estabelecidos, como uma gramática literária. Acresce ainda, no Brasil, a circunstância de o Romantismo não ter aparecido como uma ruptura, mas, de um lado, como continuação; de outro, como início de um período auspicioso, logo incorporado à ideologia oficial, nas formas moderadas e transicionais com que surgiu [...]. O resultado foi que a retórica e a poética permaneceram intactas pelo século a fora, e até quase os nossos dias, criando uma estranha contradição, nesse movimento que preconizava a liberdade e a renovação do verbo. (CANDIDO, 2000, 306-7) A poesia de Sousândrade tinha uma estrutura formal singular que logo foi interpretada pela crítica não como uma inovação, mas como a falta de habilidade em seu trato. Diante do teor das críticas recebidas ao longo da publicação de sua obra, o poeta procurou apontar para o seu público quais eram os elementos estéticos que a norteavam. Para isso, ele incorporou em sua produção diversos momentos em que ele trata do assunto, seja em sua poesia, seja em sua prosa. Dentre eles destaca-se um momento privilegiado: sua segunda Memorabilia. 23 | P á g i n a Revista Guavira-Letras: “Poemas Narrativos”, Mestrado em Letras, Campus de Três Lagoas, UFMS, Vol. 01, n. 09 (2005 - 2009 Três Lagoas). SALES, J. Batista de. (Org.).Semestral (Jul./Dez. 2009) – Versão On-line.(Versão On-Line http://www.revistaguavira.com.br; ISSN: 1980-1858) Guavira no9 2. Das três Memorabilias compostas por Sousândrade, a segunda, de 1876, traz a sistematização dos elementos poéticos que compõem O Guesa e, seguramente, suas demais obras. 5 O poeta as redigia com o intuito inicial de reunir as críticas sobre a sua produção, como se pode observar na primeira Memorabilia, de 1874: Em 1858 foram escritos os três primeiros cantos do Guesa, impressos dez anos depois. Hoje alevanto as minhas coroas, que sejam elas a página de oiro do meu livro. Nem por vangloria o faço, mas pelo muito que eu quero e amo, e pelo que de benéficas me foram, vindas da imprensa popular como vieram. (SOUSÂNDRADE, op. cit., p. 482) Já na segunda, Sousândrade muda o tom de seu discurso, indicando a depreciação de sua obra por parte de seus críticos e leitores: Pareceu-me sempre que eu nada devera dizer em defesa de O Guesa errante, transcrevendo apenas a opinião contemporânea que o justificasse ou condenasse. (Id., 484) Mesmo alegando que não deveria dizer algo sobre sua obra, o poeta expõe de maneira sistematizada os elementos poéticos que a compõem, intentando, com isso, esclarecer seus leitores e críticos. Essa Memorabilia pode ser dividida em duas partes: na primeira, o poeta dedica-se a refletir sobre a objetivação formal empregada em O Guesa; já na segunda, estabelece uma visão crítica acerca da arte nacional e também sobre a recepção de sua obra: [...] Compreendi que tal poesia, tanto nas ásperas línguas do norte como nas mais sonorosas do meio-dia, tinha de ser a “que resiste toda no pensamento, essência da arte”, embora fossem “as formas externas rudes, bárbaras ou flutuantes”. O Guesa nada tendo do dramático, do lírico ou do épico, mas simplesmente da narrativa, adotei para ele o metro que menos canta, e como se até lhe fosse necessária a monotonia dos sons de uma só corda; adotei o verso que mais separa-se dos esplendores de luz e de música, mas que pela severidade sua dá ao pensamento maior energia e concisão, deixando o poeta na plenitude intelectual — nessa harmonia íntima de criação que experimentamos no meio dos oceanos e dos desertos, mais pelo sentimento que em nossa alma influi do que pelas formosas curvas do horizonte. Ao esplendoroso dos quadros quisera ele antepor o ideal da inteligência. 5 A relação dos elementos expressos nessa Memorabilia e nas demais obras de Sousândrade não é objeto desse trabalho, suscitando uma pesquisa futura mais aprofundada sobre esse tema. 24 | P á g i n a Revista Guavira-Letras: “Poemas Narrativos”, Mestrado em Letras, Campus de Três Lagoas, UFMS, Vol. 01, n. 09 (2005 - 2009 Três Lagoas). SALES, J. Batista de. (Org.).Semestral (Jul./Dez. 2009) – Versão On-line.(Versão On-Line http://www.revistaguavira.com.br; ISSN: 1980-1858) Guavira no9 Na modéstia, pois O Guesa errante, as “galas e formosuras do artista, a enfeitar a idéia”, tanto seria nocivo à sua mesma idéia. Além disso o autor creu sempre que todo o poeta, sob pena de escravidão e morte, deve ser o que ele é, e não o que o aconselham a ser. Nocivo à nudez, ao sentir profundo, à longa harmonia de uma lenda em doze cantos, fora esse deslumbramento das formas tão necessário, belo é nos poemas-romances de V. Hugo — sombras e clarões fascinadores, melodias de Bellini que nos arrancam a alma, porém momentâneas. O Guesa das primitivas eras, Senhores, tem direito à calma, à velharia dos tempos de Salomão; e por forma do seu ser, que é sua fala em voz baixa e, quando muito, grita ou geme, por vezes e mesmo porque nada há de novo embaixo do sol, tem o direito de ir antes natural do que sobrenaturalmente; filho varonil das terras virgens do equador, em ao régio-doirado oriental: ele é solitário e verdadeiro. A palavra nudez vê-se que foi acima empregada no sentido moral, pois o Guesa andara vestido, e até revestido, como vítima que era do Sol. Amo a calma platônica; admiro a grandiosidade do Homero ou do Dante; seduz-me a verdade terrível shakespereo-byrônica; e a celeste lamartiniana saudade me encanta. Ora, todas essas generosas naturezas não me ensinaram a fazer verso, a traçar os contornos da forma, a imitar vox faucibus o seu canto, porém, a uma coisa somente: ser individualidade própria ao próprio modo acabada ― enamorada e crente em si própria. Ser absolutamente eu livre, foi o conselho único dos mestres e longe de insurreicionar-me contra eles, abracei de todo coração os seus preceitos. Pode, aquilo que for feito, ficar imperfeito, e será, talvez; mas tendo que estes adorados mestres nunca amaldiçoarão ninguém por lhes haverem os céus dado asas de ferro em vez de asas de oiro ― contanto que voem elas em firmamento distinto e derretam-se aos raios solares. Deixem-nas pois à sua forma original: forma que é o traço deixado pelo pensamento, e que vereis ainda ser a única absolutamente verdadeira: poetry is the only verity ― the expression of a sound mind speaking after the ideal, and not after the art apparent... the faut o four popular poetry is that it is not sincere... in a poem we want design, and do not forgive the bards if they have only the arte of enamelling. We want an architect, and they bring us an upholsterer. É porque me quer parecer a falta de ciência e meditação o motivo da nossa literatura não ter podido ainda interessar o estrangeiro. Até a nossa ortografia portuguesa não se entende entre si; a nossa escola não é nossa e nada ensina, não se entende entre si; a nossa escola não é nossa e nada ensina aos outros; estudando os outros tratamos então de elegantizá-los em nós, e pelas formas alheias destruímos a escultura da nossa natureza, que é a própria forma de todos. A nossa música e nossos literários esplendores de certo que transportam e deslumbram os sentidos, mas também atormentam o pensamento, afrouxam a idéia do homem. Sons e perfumes, flores e fulgores, roupagens e adornos, graças e tesoiros são, sem dúvida, grandes dotes de muitas princesas; porém, de poucas será o corpo belo, sadio, forte, e a alma com a dor da humanidade e com a existência do que é eterno. Deixemos os mestres da forma ― se é os at deuses passam! É em nós mesmos que está nossa divindade. Não é pelo Velho Mundo atrás que chegaremos à idade de oiro, que está adiante, além. O bíblico e o ossiânico, o dórico e o jônico, o alemão e o luso-hispano, uns são repugnantes e outros, se não o são, modificam-se à natureza americana. Nesta natureza estão as suas próprias fontes, grandes e formosas como os seus rios e as suas montanhas; ela, à imagem, modelou a língua dos seus Naturais― e é aí que beberemos a forma do original caráter literário, qualquer que seja a língua diferente que falarmos. O Guesa, tendo a forma inversa e o coração natural do selvagem sem academia, aceitai-o assim mesmo ― por esp írito de liberdade ao menos, e porque ele vos ama, e porque ele tem um fim social, e porque “eu cantarei um novo canto, que ressoa em meu peito; nunca houve canto formoso ou som que se semelhasse a nenhum outro canto”. 25 | P á g i n a Revista Guavira-Letras: “Poemas Narrativos”, Mestrado em Letras, Campus de Três Lagoas, UFMS, Vol. 01, n. 09 (2005 - 2009 Três Lagoas). SALES, J. Batista de. (Org.).Semestral (Jul./Dez. 2009) – Versão On-line.(Versão On-Line http://www.revistaguavira.com.br; ISSN: 1980-1858) Guavira no9 Sendo impossível de mim o que reclamam, e apenas possível o que ofereço à minha pátria, acrescentarei para terminar este assunto que: eu continuo. Continuo; ainda que sem a ciência do bem-agradar, o que me fora gratíssimo, e tão-só com a consciência de que todas as forças úteis da minha existência aí serão empregadas ― pudessem os melhor dotados seguir o meu exemplo! ― ão n faz mal. Nem as coroas deixam de ser coroas pelos espinhos que trazem; e o pungir destes como que até aumenta a frescura das rosas, que com eles vem de envolta. (SOUSÂNDRADE, op. cit., 484-5) Antes de qualquer discussão sobre a forma poética de sua obra, vale observar a denúncia feita em relação aos elementos que o poeta julga negativos para a realização não só da literatura, mas da arte nacional em geral. Para ele, a falta de reflexão (ciência e meditação) por parte dos artistas e intelectuais é o motivo pelo qual as artes produzidas no Brasil não atingiriam o mesmo nível da produção europeia e, consequentemente, não interessariam ao estrangeiro. O texto critica contundentemente a arte em que os elementos e os modelos poéticos europeus são apenas adaptados à cor local, sem reflexão artística, o que não concorreria para que as ideias artísticas e intelectuais fossem amadurecidas, desencadeando um processo de “elegantização” da cultura estrangeira. Sousândrade expõe sua admiração pela arte europeia e alguns de seus agentes, tais como os românticos Bellini, Victor Hugo e William Wordsworth. Em outro, reverencia os “mestres da forma”: “Amo a calma platônica; admiro a grandiosidade do Homero ou do Dante; seduz-me a verdade terrível shakespereo-byrônica; e a celeste lamartiniana saudade me encanta”. A admiração por esses artistas não inviabiliza a elaboração de uma obra essencialmente nacional, pois a obra dos mestres seria apenas a pedra inicial para o voo do artista e não um modelo a ser seguido ipsis litteris, tanto que o poeta ressalta que estes não o ensinaram a “fazer verso”, mas “ser individualidade própria”. A individualidade aprendida dos mestres e destacada por Sousândrade é o único meio para que o artista alcançasse sua autonomia. “É em nós mesmos que está nossa divindade”, dessa afirmação pode-se extrair as bases do projeto literário proposto por Sousândrade, visto que ela permite duas possibilidades: indica tanto a divindade encontrada na natureza americana quanto à “divindade” da subjetividade do artista. Em tese, isso possibilitaria que a produção artística nacional desvinculasse da influência europeia, já que ele teria uma matéria própria e uma forma oriunda da reflexão artística, gestada na individualidade de seu agente. 26 | P á g i n a Revista Guavira-Letras: “Poemas Narrativos”, Mestrado em Letras, Campus de Três Lagoas, UFMS, Vol. 01, n. 09 (2005 - 2009 Três Lagoas). SALES, J. Batista de. (Org.).Semestral (Jul./Dez. 2009) – Versão On-line.(Versão On-Line http://www.revistaguavira.com.br; ISSN: 1980-1858) Guavira no9 Apesar de indicar a individualidade e a cor local como meio de estabelecimento de uma literatura autônoma, Sousândrade propõe um diálogo entre os pressupostos poéticos estrangeiros e os elementos da cultura nacional. Isso pode ser afirmado pelo fato de que a presença da poética desenvolvida no Velho Mundo está presente na maioria dos preceitos adotados na obra dos românticos brasileiros. Um exemplo disso são as ideias que cercam a criação artística baseada na individualidade – princípio elementar do romantismo –, teorizado desde a segunda metade do século XVIII na Europa. Logo, a declaração do poeta sobre estabelecer regras e uma forma de acordo com a sua “divindade” para criar uma obra original, já era sinalizada pelos românticos no Velho Mundo. 3. A subjetividade estabelece-se como fomento primordial da criação poética sousandradina, que, aliada aos temas nacionais e aos pressupostos poéticos dos “mestres”, propiciaria ao poeta construir uma obra original. Ao privilegiar sua “divindade” criadora, Sousândrade tem o poder de recriar os princípios poéticos consagrados de acordo com a necessidade de sua obra, estabelecendo critérios artísticos que se aproximam mais de seu pensamento do que das regras de arte previamente definidas. Contemplando os desígnios de sua subjetividade, Sousândrade pode até afirmar em seus escritos que sua obra rompe com os princípios poéticos teorizados no Velho Mundo, pois as regras que a balizam são geradas intuitivamente. Isso lhe permite propor a superação da cópia dos modelos artísticos europeus, supondo que sua produção seja expressão de um “EU livre”. O elemento que ressalta a subjetividade e a individualidade na concepção de O Guesa é o “pensamento”, declarado como “essência da arte”. Nesse sentido, o poeta declara que a objetivação de sua obra tem “sua forma original: forma que é o traço deixado pelo pensamento, e que vereis ainda ser a única absolutamente verdadeira”. Tal afirmação poderia responder positivamente à seguinte interrogação de Novalis: “Existe uma arte de inventar sem dados, uma arte de inventar absoluta?” (NOVALIS apud BENJAMIN, 2002, p.71). De acordo com a crença de Sousândrade e dos românticos, a criação artística “sem dados”, “sem regras objetivas” pode ser validada pela figura “mística” e “mítica” do gênio romântico. Tanto o conceito de gênio e, mais tarde, o de Eu absoluto, possuem uma aura extremamente vaga que supostamente possibilitaria a 27 | P á g i n a Revista Guavira-Letras: “Poemas Narrativos”, Mestrado em Letras, Campus de Três Lagoas, UFMS, Vol. 01, n. 09 (2005 - 2009 Três Lagoas). SALES, J. Batista de. (Org.).Semestral (Jul./Dez. 2009) – Versão On-line.(Versão On-Line http://www.revistaguavira.com.br; ISSN: 1980-1858) Guavira no9 execução de qualquer coisa sem a interferência das regras do mundo objetivo, constituindo-se apenas como um desígnio “divino”, “demiurgo”. Uma breve história do conceito de “gênio” pode indicar a mudança radical de sua significação ao longo dos tempos. Na poética antiga, o gênio era aquele que possuía o talento para aplicar os modelos e as leis estéticas preestabelecidos pela arte, sendo que sua imaginação e a fantasia subordinavam-se à razão. Immanuel Kant estabelece uma nova definição para esse conceito, atribuindo ao artista um poder subjetivo no ato da criação artística. Ele não se limita ao exercício de formas, pois agora, o “gênio é o talento (dom natural) que dá regra à arte” (KANT, 1993, p. 153). Kant atribui à significação desse conceito uma forte carga subjetiva, considerando que ele não possui somente engenho para aplicação de regras, mas também possui um “talento”, um “dom natural” (Cf. Nunes, 2004, p. 60). Além disso, a constituição da obra do gênio deveria ser espontânea, contemplativa e desinteressada, tal como a Natureza. Benedito Nunes destaca que a autonomia da noção kantiana de gênio foi substancialmente influenciada pela assimilação de uma “naturalidade” ou “espontaneidade” criativa: Graças à satisfação desinteressada que provocam, as coisas naturais que são belas, parecem livres produtos da Natureza; as obras artísticas são tanto mais belas quanto mais aparentam essa livre finalidade atribuível à Natureza, quanto mais assumem o aspecto de uma formação espontânea, que se sobrepõe aos artifícios da arte. (Id. Ibid.) A criação do gênio funde a liberdade subjetiva em detrimento dos preceitos poéticos previamente estabelecidos, pretendendo-se como uma aparência espontânea que estaria presente na Natureza. A partir dessa idéia, surge uma associação entre a obra do gênio e a Natureza, tida como um poder de criar e “descriar” espontânea e infinitamente as suas formas. A liberdade pressuposta pela figura do gênio na estética kantiana propiciou aos românticos operar uma transformação radical. A transgressão tornou-se comum não só no âmbito da arte, mas se voltou aos padrões estabelecidos pela sociedade. 6 A genialidade possibilitou aos artistas sobrepor sua criatividade a qualquer formalidade artística. Se na arte antiga, por exemplo, o artista ficava por trás de sua obra demonstrando seu engenho em operar regras artísticas, no romantismo ocorre justamente o inverso: os gênios colocam-se acima de sua produção, evidenciando sua capacidade criativa e, sobretudo, a expressão do espírito do próprio autor. Rosenfeld e Guinsburg destacam que o gênio: 6 Id., Ibidem. 28 | P á g i n a Revista Guavira-Letras: “Poemas Narrativos”, Mestrado em Letras, Campus de Três Lagoas, UFMS, Vol. 01, n. 09 (2005 - 2009 Três Lagoas). SALES, J. Batista de. (Org.).Semestral (Jul./Dez. 2009) – Versão On-line.(Versão On-Line http://www.revistaguavira.com.br; ISSN: 1980-1858) Guavira no9 [...] cria a obra com base numa explosão, num surto irracional de sua emocionalidade profunda. E sua criação, por mais imperfeita que seja, na perspectiva das regras clássicas, será sempre a grande obra, porque exprime o estado de exaltação do criador com toda sinceridade, fato que constitui o valor máximo nesse sentido. (ROSENLFELD e GUINSBURG, 2004, p. 267) Outro aspecto que permeia o conceito de gênio no romantismo é o seu poder de mediação. A figura do gênio mediaria as esferas mais elevadas do espírito e os homens comuns, único capaz de alcançar o Absoluto, 7 concorrendo com Deus nessa tarefa: todo o Universo, em seus múltiplos e infinitos aspectos, pode ser alcançado por ele mediante a subjetividade criadora. No fragmento 44 de sua obra Idéias, Friedrich Schlegel discorre sobre essa relação entre “gênio” e o Absoluto, assimilando o processo poético ao divino: Não vemos Deus, mas por toda parte vemos o divino: antes de tudo e mais propriamente, porém, no centro de um homem cheio de sentido, na profundeza de uma viva obra humana. Você pode sentir imediatamente a natureza, o universo, pode pensá-los imediatamente, não a divindade. Só o homem ante homens pode poetizar e pensar divinamente e viver com religião. Tampouco alguém pode ser mediador direto de si próprio, ainda que seja para seu espírito, porque este tem de ser pura e simplesmente objeto, cujo centro aquele que intui põe fora de si. Escolhe-se e põe-se o mediador, mas só se pode escolher e pôr aquele que já se pôs como tal. Um mediador é aquele que percebe em si o divino e, aniquilando-se, abandona a si mesmo para anunciar, comunicar e expor, nos costumes e ações, em palavras e obras, esse divino aos homens. Se tal impulso não tem êxito, aquilo que se percebeu, ou não era divino, ou não era próprio. Mediar e ser mediado é toda a vida superior do homem, e todo artista é mediador para todos os restantes. (SCHLEGEL, 1997, p. 149-50) Nessa perspectiva, o gênio é o mediador das esferas mais inacessíveis aos homens comuns. A relação entre os homens e as esferas inacessíveis pela razão é estabelecida pelo gênio artisticamente. Somente pela obra de arte é que ele pode realizar, pois o Absoluto pode ser alcançado através da imaginação ou da reflexão. Benedito Nunes destaca que para a visão romântica, no poder intuitivo cognoscente [...], ao mesmo tempo criador e expressivo, da imaginação poética, acima do conhecimento empírico ― poder correlativo à capacidade expansiva e à força irradiante do Eu, à originalidade e ao entusiasmo, e no qual se refletiriam a profundeza, a elevação, a espiritualidade e a liberdade da vida interior. (NUNES, op. cit., p. 61) 7 O termo Absoluto possui várias significações para os românticos. Entre elas destaca-se que o Absoluto pode ser Deus, a Natureza, a Poesia (arte em geral). Também, o conceito de Absoluto remete à totalidade (suposta) do mundo e da realidade que só Deus conhecia, mas, agora também o gênio. 29 | P á g i n a Revista Guavira-Letras: “Poemas Narrativos”, Mestrado em Letras, Campus de Três Lagoas, UFMS, Vol. 01, n. 09 (2005 - 2009 Três Lagoas). SALES, J. Batista de. (Org.).Semestral (Jul./Dez. 2009) – Versão On-line.(Versão On-Line http://www.revistaguavira.com.br; ISSN: 1980-1858) Guavira no9 Deve-se apontar que desenvolvimento da figura do gênio no romantismo está intimamente atrelado ao postulado do Eu absoluto fichtiano. Em sua obra, Fichte supõe o Eu formal e abstrato como origem de toda razão e conhecimento. Para Gerd Bornheim, esse conceito fichtiano tem muitos aspectos que foram alargados pelos românticos: [...] um Eu dotado de enorme força criativa, a ponto de fazer do mundo exterior um derivado da imaginação produtiva do homem; um Eu, no mais, que vence resistências, obstáculos por ele mesmo produzidos, em sua marcha para o infinito definitivamente distante ― uma marcha, contudo, redentora do homem. (BORNHEIM, 1978, p. 92) O Eu absoluto contempla a atividade de seu próprio espírito. Essa relação do Eu consigo mesmo é o que o possibilita atingir o Absoluto, nesse caso, entendido como a verdadeira intuição intelectual, pois permitiria o encontro do objeto com sua essência. Na ação do gênio ou do Eu romântico, a imaginação desempenha um papel fundamental. No romantismo, compreende-se que ela reina na esfera de arte, sobrepondo à razão lógica, vista como uma força que cria e descria o mundo. O poder da imaginação propicia ao Eu apreender o mundo exterior e recriá-lo conforme seu próprio modo de representação. Para Fichte, por exemplo, a ação da imaginação corresponde a uma luta entre o poder finito e infinito do Eu, entre o entendimento e ela mesma na apreensão do objeto. Nessa luta para representar o objeto, a imaginação oscila entre a realidade e a irrealidade, entre o sensível e o supra-sensível: “A imaginação produz a realidade, mas nela não há realidade; só depois de concebida e compreendida no intelecto, seu produto se torna algo de real” (Cf. ABBAGNANO, 2000, p 539). Verifica-se, então, que a imaginação tem o poder de pôr significados para o mundo, subvertendo a ideia de que existe uma verdade apenas. Acredita-se, ao contrário, que o sujeito põe significados para o mundo. Assim, o conhecimento não está dado no objeto, sendo subjetivamente gerado. A potencialização da imaginação criadora pelos conceitos de gênio e do Eu corroboram para a liberdade do artista na elaboração de sua obra. Contudo, a atribuição de uma criação artística apenas pelo poder infinito da imaginação, mesmo pela sentimentalidade do gênio, não aclara qualquer método por trás dessas obras de arte. A substituição das regras da arte do classicismo pela priorização de um “dom divino” na 30 | P á g i n a Revista Guavira-Letras: “Poemas Narrativos”, Mestrado em Letras, Campus de Três Lagoas, UFMS, Vol. 01, n. 09 (2005 - 2009 Três Lagoas). SALES, J. Batista de. (Org.).Semestral (Jul./Dez. 2009) – Versão On-line.(Versão On-Line http://www.revistaguavira.com.br; ISSN: 1980-1858) Guavira no9 organização de obras sugere um “vale-tudo estético” que, ambiguamente, validaria tanto uma obra incipiente como uma obra verdadeiramente genial. Como a forma de uma obra de arte é evidentemente uma objetivação que, querendo ou não, tem necessidade de uma coerência interna para se comunicar, deve-se destacar a ideia de que os gênios, mesmo compondo num sopro divino, concebem a autocrítica ou a ironia subjetiva como limites para a infinitude da imaginação. A figura do gênio poderia justificar a suposta “inépcia” alegada pelos críticos oitocentistas acerca da obra sousandradina. Nesse caso, o poeta não limitaria sua produção às regras de arte conhecidas, mas somente àquela que fosse desígnio de sua divindade. Por trás dessa “inépcia”, há um procedimento poético lúcido que as normas e os elementos poéticos produzidos de acordo com a exigência de sua obra, ou de acordo com sua “reflexão”. Talvez seja lícito pensar em outro aspecto que indique a possibilidade de uma análise de um procedimento lúcido na composição da obra. O conceito de “reflexão” e suas implicações estéticas parecem uma maneira de perceber quais regras regem essas composições tão peculiares. O conceito de reflexão romântica, tal como compreendida pelos românticos de Iena, fomenta tanto uma teoria do conhecimento como a criação artística desses autores. Vale destacar que quando Walter Benjamin se debruçou sobre o assunto, visava justamente afastar a pecha de irracionalismo que pairava sobre a obra dos românticos alemães, sobretudo Schlegel e Novalis. Eles compreendiam que somente a partir da natureza reflexiva seria possível alcançar o “conhecimento” de si e do mundo, assim como a possibilidade de empreender um processo de criação intuitivo e Absoluto. Walter Benjamin ressalta que [...] pensar e reflexão são postos no mesmo plano. Isso não ocorre, no entanto somente para assegurar ao pensar aquela infinitude que é dada na reflexão e que, sem uma determinação mais detalhada, aparece de um modo questionável como pensar do pensar sobre si mesmo. Os românticos viram, antes, na natureza reflexionante do pensar uma garantia para o seu caráter intuitivo. (BENJAMIN, 2002, p. 28) Ao privilegiar o caráter intuitivo, a reflexão aponta para um conhecimento imanente de um “ser”, ou como os românticos preferem, o “autoconhecimento”. Como teoria do conhecimento, a ideia de que todo “ser” é responsável por seu “autoconhecimento” pode eliminar as fronteiras existentes entre sujeito e objeto. Isso 31 | P á g i n a Revista Guavira-Letras: “Poemas Narrativos”, Mestrado em Letras, Campus de Três Lagoas, UFMS, Vol. 01, n. 09 (2005 - 2009 Três Lagoas). SALES, J. Batista de. (Org.).Semestral (Jul./Dez. 2009) – Versão On-line.(Versão On-Line http://www.revistaguavira.com.br; ISSN: 1980-1858) Guavira no9 porque o sujeito artístico é ele mesmo o seu próprio sujeito e objeto do conhecimento. Nesse sentido, Novalis aponta que [...] pensamentos estão plenos apenas de pensamentos, são apenas funções do pensamento, assim como as visões apenas funções dos olhos e da luz. O olho não vê nada senão o olho, o órgão do pensamento, nada senão órgãos do pensamento ou o elemento que pertença a ele. (NOVALIS apud BENJAMIN, op. cit., p. 61) Cada ser conhece aquilo que lhe é correlato, a sua própria essência. Todo “ser” reflete sobre si num processo contínuo que promove dessa maneira seu autoconhecimento. Se todo é sujeito e objeto de seu conhecer, o conhecimento poderia se dar de maneira imediata. Talvez esse seja o grande trunfo da teoria de conhecimento reflexiva. Daí se pode concluir que, teoricamente, se um artista vale-se da reflexão sobre sua própria obra como meio de criação artística, a obra gerada nesse processo formula seu próprio conhecimento, ou seja, suas próprias leis, à medida que a criação vai sendo desenvolvida. Logo, a ideia de uma criação artística dada exclusivamente pela subjetividade irracional do gênio pode ser, senão descartada, ao menos amparada pela teoria de reflexão romântica. A imediatez do conhecimento gerado pela reflexão efetiva-se como uma consciência crítica sobre a forma artística. Mas como uma reflexão sempre gera outra, podendo desencadear um processo infinito de reflexão, isso pode permitir ao artista produzir, no interior da obra, um limite para a imaginação infinita. Como destaca Benjamin, “a força formadora da reflexão marca a forma da obra” (BENJAMIN, op. cit., p. 81). O pensamento é tudo: a infinitude da imaginação e o limite posto a ela pela reflexão da própria obra no interior dela. Enfim, o pensamento é o processo de criação do romantismo. Objetivamente, a autonomia dos românticos em relação às formas artísticas não se deu por meio de criações divinas nunca antes utilizadas. Mas a grande conquista que legaram à modernidade foi a destruição dos limites entre as formas de arte. Segundo Benjamin: (...) não compreendiam, como a Aufklärung, a forma como uma regra de beleza da arte e sua observância como uma pré-condição necessária para o efeito agradável e edificante da obra. A forma mesma não valia para eles nem como regra nem como dependente de regras. (BENJAMIN, 2002, p. 82) 32 | P á g i n a Revista Guavira-Letras: “Poemas Narrativos”, Mestrado em Letras, Campus de Três Lagoas, UFMS, Vol. 01, n. 09 (2005 - 2009 Três Lagoas). SALES, J. Batista de. (Org.).Semestral (Jul./Dez. 2009) – Versão On-line.(Versão On-Line http://www.revistaguavira.com.br; ISSN: 1980-1858) Guavira no9 A arte reflexiva romântica busca um meio de superar de maneira crítica as regras da arte, não as compreendendo mais como sinônimo de beleza estética. A superação dos limites dos gêneros e dos preceitos poéticos previamente estabelecidos se dá justamente pelo fato de que o artista não tolera nenhuma regra sobre si, concebendo uma obra com características próprias, original. Diante disso, Friedrich Schlegel já indicava que nenhuma teoria poderia dar conta de classificar a poesia romântica, visto que ela não está formada e sim em devir, como verifica-se em seu famoso “Fragmento 116”, da revista Athenäum: [...] O gênero poético romântico esta em devir; sua verdadeira essência é mesmo de que só pode vir a ser, jamais ser de maneira perfeita e acabada. Não pode ser esgotado por nenhuma teoria, e apenas uma crítica divinatória poderia ousar pretender caracterizar-lhe o ideal. Só ele é infinito, assim como só ele é livre, e reconhece, como sua primeira lei, o que arbítrio do poeta não suporta nenhuma lei sobre si. O gênero poético romântico é o único que é mais do que gênero e é, por assim dizer, a própria poesia: pois, num certo sentido, toda poesia é ou deve ser romântica. (SCHLEGEL, 1997, 65) Se a reflexão artística se manifesta em sua forma, a objetivação da forma se dá pela ironia romântica, isto é, uma crítica da arte e do mundo no interior da obra. A declaração de Schlegel de que a poesia romântica está em devir, em formação, e jamais poderá ser apreendida por uma teoria, remete ao movimento da reflexão crítica infinita. Isso favorece tanto a formação de uma arte heterogênea — e dada à incorporação dos diversos gêneros no interior de uma obra de arte (é só pensar na tragicomédia, por exemplo) — como a destruição de uma poética presa a padrões previamente estabelecidos. Os pressupostos do “Fragmento 116” podem ser relacionados às palavras de Octavio Paz sobre a constituição da modernidade que, segundo ele, baseia-se em três características: “heterogeneidade, pluralidade de passados e estranheza radical” (PAZ, 1984, p. 18). A heterogeneidade da arte romântica deriva do fato de que a arte moderna assenta-se numa permanente ruptura consigo mesma e com a tradição, já que, para se estabelecer, cada novo artista e cada novo estilo, tende a romper com a convenção estética estabelecida. Deriva ainda da possibilidade de cada artista estabelecer suas próprias leis de criação ou sua própria maneira de utilizar as leis artísticas. Essa permanente ruptura gera uma pluralidade de passados: “não satisfeita em ressaltar as diferenças entre ambos [passado e presente], [a arte moderna] afirma que esse passado não é único, mas sim plural” (Id. Ibidem). E a estranheza radical fica por conta das 33 | P á g i n a Revista Guavira-Letras: “Poemas Narrativos”, Mestrado em Letras, Campus de Três Lagoas, UFMS, Vol. 01, n. 09 (2005 - 2009 Três Lagoas). SALES, J. Batista de. (Org.).Semestral (Jul./Dez. 2009) – Versão On-line.(Versão On-Line http://www.revistaguavira.com.br; ISSN: 1980-1858) Guavira no9 criações artísticas que rompem com a hegemonia de um estilo ou conceito estético, propondo vários horizontes artísticos. O Guesa, indubitavelmente, é expressão dos desígnios do gênio de Sousândrade. A matéria e a forma seguem os traços do seu pensamento, baseando-se em regras próprias, absorvendo os preceitos dos códigos retórico-poéticos e concebendo uma forma única. A poesia sousandradina não pode ser apreendida pelos pressupostos de extração “neoclássica” da crítica literária brasileira do século XIX, pois está em devir, destruindo qualquer possibilidade de crítica que intentasse limitá-la com conceitos prévios do “bom poetar”. Logo, a acusação de que Sousândrade não teria domínio da forma literária torna-se infundada quando se pensa sua produção nos termos da estética romântica. A suposta informalidade da obra sousandradina que os críticos apontam é, na verdade, um elemento compositivo que permite o poeta passar a aparência informal e espontânea de sua reflexão. Para João Adolfo Hansen, a informalidade [...] pode ser pensado como máquina muito eficiente que prevê inclusive o próprio emperramento, e cujo efeito máximo, quando funciona é o de fazer crer que não há efeito, nem funcionamento e, mais, que não há máquina, apenas “eus” na comunhão do “nós” da idéia. A informalidade dos procedimentos técnicos e dos efeitos imaginários é, enfim, resultado de procedimentos técnicos aplicados como aptidão de um modelo cultural de produção/consumo da poesia como ausência de técnica e espontaneidade. (HANSEN, 1991, p. 19) Sousândrade constrói sua obra aparentemente sem uma forma definida pelos padrões previamente conhecidos nos manuais de retórica, valorizando a informalidade e o fragmento poético. O próprio poeta ressalta várias vezes, como se nota na Memorabilia, que a objetivação de sua reflexão ocorre de maneira imperfeita, por “formas externas rudes, bárbaras ou flutuantes”, as quais seriam adequadas para expressar os influxos de reflexão. Seus versos não são isométricos, o ritmo de sua poesia é disforme, suas metáforas muitas vezes são incompreensíveis, visando mais ao efeito visual que semântico, carregando sua poesia de hipérbatos, anástrofes, ablativos absolutos. Destaca-se, ainda, que os temas incorporados nessa poesia, tais como a lenda muísca do Guesa, seus dramas pessoais e seu ideal democrático-republicano, tudo isso, forma um mosaico muito estranho ao leitor brasileiro familiarizado com certo tipo de poesia romântica, muito longe daquele presente nos saraus literários da corte de D. Pedro II. 34 | P á g i n a Revista Guavira-Letras: “Poemas Narrativos”, Mestrado em Letras, Campus de Três Lagoas, UFMS, Vol. 01, n. 09 (2005 - 2009 Três Lagoas). SALES, J. Batista de. (Org.).Semestral (Jul./Dez. 2009) – Versão On-line.(Versão On-Line http://www.revistaguavira.com.br; ISSN: 1980-1858) Guavira no9 Há, na obra sousandradina, uma vertente de romantismo diferente daquele que os livros didáticos apresentam como seguidos pelos nossos autores canônicos. Um romantismo que extrapola os limites dos códigos retórico-poéticos e estabelece a reflexão como meio para uma nova arte. A informalidade e a singularidade dessa poesia muitas vezes podem ser consideradas como elementos antecipatórios de práticas estético-poéticas das vanguardas históricas do início do século XX. Falar em um modernista avant la lettre na obra desse poeta é anacrônico e, talvez, até um equívoco, uma vez que tudo nele é romântico, com bases estético-filosóficas bem definidas. Referências Bibliográficas ABBAGNANO, Nicola. Dicionário de filosofia. Trad. 1ª. Ed. brasileira, coord. e rev. Alfredo Bosi; 4ª. Ed. rev. trad. e trad. novos textos Ivone Castilho Benedetti. São Paulo: Martins Fontes, 2000 BENJAMIN, Walter. O conceito de crítica de arte no romantismo alemão. 3ª. Ed. Trad., intro. e notas Márcio Seligmann-Silva. São Paulo: Iluminuras, 2002. BORNHEIM, Gerd. “Filosofia do romantismo” in O Romantismo, 4ª. Ed., org. Jacó Guinsburg, São Paulo: Perspectiva, 2004, p.75-112. CANDIDO, Antonio. Formação da literatura brasileira — momentos decisivos. 9ª. ed. 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Williams e Jomar. São Luiz: Edições AML, 2003. SCHLEGEL, Friedrich. Dialeto dos fragmentos, trad., apres. e notas de Márcio Suzuki. São Paulo: Iluminuras, 1997. 35 | P á g i n a Revista Guavira-Letras: “Poemas Narrativos”, Mestrado em Letras, Campus de Três Lagoas, UFMS, Vol. 01, n. 09 (2005 - 2009 Três Lagoas). SALES, J. Batista de. (Org.).Semestral (Jul./Dez. 2009) – Versão On-line.(Versão On-Line http://www.revistaguavira.com.br; ISSN: 1980-1858) Guavira no9 POEMA NARRATIVO CARAMURU, DE FREI JOSÉ DE SANTA RITA DURÃO Berty R. Biron RESUMO: O poema épico Caramuru, composto por Frei José de Santa Rita Durão, evidencia no seu discurso ideológico o encontro da cultura portuguesa com a do Novo Mundo. Diogo e Catarina Álvares são personagens emblemáticos da vitória da civilização europeia e da religião católica na América Portuguesa. Palavras-Chave: Poema épico Caramuru. Santa Rita Durão. América Portuguesa. ABSTRACT: The epic poem Caramuru, composed by Friar José de Santa Rita Durão, makes evident in its ideological discourse the Portuguese culture’s encounter with the New World. Diogo and Catarina Álvares are emblematic characters of the European civilization and Catholic’s faith victory in the Portuguese America. Key-Words: Epic poem Caramuru. Santa Rita Durão. Portuguese America. ∗ A epopeia é uma narrativa em versos, composta por vários episódios em torno de uma só ação, unitária e completa, com começo, meio e fim e fundamentada em acontecimentos gloriosos. Cabe ao poeta restaurar o esplendor e a magnificência do passado, com grandeza e um verbo harmonioso. Ao longo de sua trajetória, a epopeia foi classificada por eruditos como a forma mais elevada de se cantar e narrar a formação, o desenvolvimento de um determinado povo, ou indivíduo, cuja história tenha sido modelada como exemplo heroico, digno de ser contado. Como afirma Hegel, a epopeia constitui “a saga, o livro, a bíblia de um povo” (1980, p.130). E, como tal, trata dos conflitos e das guerras entre as nações, embora haja algumas epopeias de caráter religioso, como A Divina Comédia, de Dante Alighieri, O Paraíso Perdido, de Milton. A Eneida, de Virgílio, e Os Lusíadas, de Camões, são exemplos de epopeias literárias nacionais. Nesta última inspirou-se Frei José de Santa Rita Durão, autor do Caramuru, que assim justifica sua obra: “Os sucessos do Brasil não mereciam menos um poema que o das Índias” (DURÃO, In Épicos, 2008, p. 359), uma clara alusão a Os Lusíadas, de Luís de Camões, a quem Durão faz a sua grande homenagem, ao tomar por base de sua obra o plano, a composição e o verso decassílabo ∗ Graduação em Letras Modernas, mestrado e doutorado em Literatura Brasileira pela Pontifícia Universidade Católica do Rio de Janeiro. É membro do Polo de Pesquisa sobre Relações Luso-Brasileiras, do Centro de Estudos do Real Gabinete Português de Leitura, e colaboradora da revista Convergência Lusíada. Endereço: [email protected]. 36 | P á g i n a Revista Guavira-Letras: “Poemas Narrativos”, Mestrado em Letras, Campus de Três Lagoas, UFMS, Vol. 01, n. 09 (2005 - 2009 Três Lagoas). SALES, J. Batista de. (Org.).Semestral (Jul./Dez. 2009) – Versão On-line.(Versão On-Line http://www.revistaguavira.com.br; ISSN: 1980-1858) Guavira no9 do grande vate. O poema é composto por dez cantos, num total de 834 estrofes de oito decassílabos, em esquema rítmico AB AB AB CC, ou seja, seis versos com rimas alternadas e os dois últimos com rimas emparelhadas. São ao todo 6.672 versos em oitava rima. Publicado em Lisboa, em 27 de julho de 1781, com tiragem de dois mil exemplares, foi anunciado pela Gazeta de Lisboa, no suplemento daquela data, com a seguinte nota: Saiu à luz o Poema Épico intitulado o Caramuru, ou descobrimento da Bahia, envolvendo em vários Episódios a História Natural, Política, e Militar do Brasil, composto pelo Doutor Fr. José de Santa Rita Durão, Eremita de Santo Agostinho. Vende-se em Lisboa em casa de João DuBeaux, e nas mais lojas de livros das Províncias. Durão soube retirar a substância épica da história do Brasil, que seria uma continuação da existência de Portugal, uma extensão do seu poder, renascimento e continuidade, numa relação que pode ser entendida como um prolongamento da Metrópole na América Portuguesa. Esse prolongamento do Velho Mundo no Novo se configurou em termos políticos, econômicos e culturais. Além disso, parece subjacente na estrofe citada a seguir o conteúdo religioso: a tarefa missionária de expansão da fé cristã, que permeia todo o poema: E enquanto o povo do Brasil convulso Em nova lira canto, em novo pletro, Fazei que fidelíssimo se veja O vosso trono em propagar-se a Igreja. (Canto I, VIII, 5-8) Observa-se no Caramuru um reflexo da ideologia reinante no século XVI, quando a incorporação de novas terras implicava sua sujeição não só ao poder do rei, no caso o de Portugal, mas também ao da Igreja 8. A ótica do narrador-autor é de lealdade a Portugal, de exaltação do trabalho dos jesuítas na catequese dos gentios. O Novo Mundo é delineado em suas múltiplas características, entre as quais avulta a vastidão territorial: Nele vereis nações desconhecidas, Que em meio dos sertões a Fé não doma, E que puderam ser-vos convertidas 8 BIRON, Berty. in Épicos, p. 335. 37 | P á g i n a Revista Guavira-Letras: “Poemas Narrativos”, Mestrado em Letras, Campus de Três Lagoas, UFMS, Vol. 01, n. 09 (2005 - 2009 Três Lagoas). SALES, J. Batista de. (Org.).Semestral (Jul./Dez. 2009) – Versão On-line.(Versão On-Line http://www.revistaguavira.com.br; ISSN: 1980-1858) Guavira no9 Maior Império que houve em Grécia ou Roma: Gentes vereis e terras escondidas, Onde, se um raio da verdade assoma, Amansando-as, tereis na turba imensa Outro Reino maior que a Europa extensa. (Canto I, IV) Na composição de seu poema, Durão se baseou nos depoimentos históricos de Francisco de Brito Freire, Sebastião da Rocha Pita e Simão de Vasconcelos, e seguiu os preceitos de diversas obras, entre as quais cabe destacar as seguintes: a Arte Poética ou Regras da Verdadeira Poesia, de Francisco José Freire, ou Cândido Lusitano, como também é conhecido; o Verdadeiro Método de Estudar, de Luís Antônio Verney, e a Arte Poética, de Nicolas Boileau, entre outras. Convém assinalar que o frade-poeta leu os clássicos, toda a literatura dos viajantes e missionários, estudou os doutores da Igreja, como Santo Agostinho, e naturalmente a Bíblia, o que confere à sua obra um cunho religioso, em que transparecem as marcas do Antigo e do Novo Testamento 9. Observa-se também a influência da Eneida, de Virgílio, e da obra barroca Frutas do Brasil, de Frei Antônio do Rosário, entre outras. No presente ensaio, contudo, não se objetiva dar conta das fontes do Caramuru, mas sim entender o poema em sua especificidade narrativa. Antes, porém, vale ressaltar a recomendação de Boileau quanto à escolha do herói: Faites choix d’un héros propre à intéresser, En valeur éclatant, en vertus magnifique... (BOILEAU, apud NASCIMENTO, 1949, p. 10) As expressões bravura brilhante (valeur éclatant) e virtude magnífica (vertus magnifique) são elementos fundamentais na caracterização do herói, o que dará o tom pelo qual a narrativa compõe os episódios, as partes, que no seu conjunto integram a obra. Convém assinalar que éclat e éclater são palavras representativas do “brilho” moral e heroico. Frei José inicia a narração, deixando claro que as adversidades impostas pelo acaso tornaram Diogo Álvares Correia merecedor de uma narrativa épica: 9 BIRON, Berty. Caramuru: um poema épica da conversão e sua recepção crítica. Dissertação (Mestrado em Letras). PUC-Rio, 1988. 38 | P á g i n a Revista Guavira-Letras: “Poemas Narrativos”, Mestrado em Letras, Campus de Três Lagoas, UFMS, Vol. 01, n. 09 (2005 - 2009 Três Lagoas). SALES, J. Batista de. (Org.).Semestral (Jul./Dez. 2009) – Versão On-line.(Versão On-Line http://www.revistaguavira.com.br; ISSN: 1980-1858) Guavira no9 O valor cantarei na adversa sorte, Pois só conheço Herói quem nela é forte. (Canto I, I, 7-8) Trata-se de um aedo a cantar e narrar os acontecimentos, observando certa distância histórica dos fatos, transcorridos há mais de duzentos e cinquenta anos. Durão retrocede ao século XVI e elege o seu personagem, que se insere na história factual. É interessante repetir o que preconiza Francisco José Freire em sua Arte Poética: “A última propriedade da epopeia é que não seja muito moderna, nem demasiadamente antiga” 10. Quando se trata de um assunto muito antigo, este pode evocar costumes remotos e incompreensíveis para o leitor. O poeta narra a história do português Diogo Álvares Correia e de sua consorte, a indígena Paraguaçu. Frei José de Santa Rita Durão, ao pesquisar a história do Brasil em busca de um episódio para descrever os primórdios da nação, foi bem sucedido na escolha de seu personagem principal, pois Diogo possui dois elementos essenciais para a configuração de um herói épico: a veracidade histórica e o mito criado em torno de sua figura. Após atravessar uma formidável 11 tempestade, Diogo não teme mais a morte, porque invoca a ajuda divina. Somente sete homens sobrevivem ao naufrágio, após a tempestade, e em terra firme vão ao encontro dos habitantes do Novo Mundo. Nesse primeiro momento, o narrador observa e descreve os nativos, suas vestimentas, pinturas, pedras e paus utilizados como adornos, e menciona as armas certamente estranhas, exóticas aos costumes europeus. De fato, o novo gera espanto e estranhamento: Pasmam de ver na turba recrescida A brutal catadura, hórrida e feia: (Canto I, XIX, 3-4.) O mundo indígena é abordado pelo poeta, tanto no seu aspecto positivo quanto no negativo, em que a violência e o canibalismo se fazem presentes. O canibalismo, que nivela os nativos aos animais, pode às vezes ser interpretado segundo a relatividade dos conceitos, conforme a estrofe seguinte, em que o olhar sobre o outro, embora não 10 FREIRE, Francisco José. Arte poética, ou regras da verdadeira poesia em geral, e de todas as suas espécies principais, tratadas com juízo crítico. 2. ed., Tomo II. Lisboa: Oficina Patriarcal de Francisco Luiz Ameno, 1759, p. 175 11 Empregamos formidável tempestade com o significado de gigantesca, assustadora, aterradora (Cf. HOUAISS, 2004, p. 1.374). 39 | P á g i n a Revista Guavira-Letras: “Poemas Narrativos”, Mestrado em Letras, Campus de Três Lagoas, UFMS, Vol. 01, n. 09 (2005 - 2009 Três Lagoas). SALES, J. Batista de. (Org.).Semestral (Jul./Dez. 2009) – Versão On-line.(Versão On-Line http://www.revistaguavira.com.br; ISSN: 1980-1858) Guavira no9 inteiramente liberto da visão etnocêntrica, é capaz de compreender a barbárie quando se volta para as próprias origens. Nós que zombamos deste povo insano, Se bem cavarmos no solar nativo, Dos antigos heróis dentro às imagens, Não acharemos mais que outros selvagens. (Canto II, XLVII, 5-8) Desde que Diogo se salva do naufrágio, no litoral da Bahia, surge diante dele um novo cenário: uma terra inóspita habitada por seres selvagens, diante dos quais só lhe resta uma escapatória: mostrar àqueles nativos seus poderes de homem civilizado – uma superioridade cultural que operou a grande transformação de todos os personagens daquele episódio grandioso, mas aterrador. Com uma espingarda, Diogo abate uma ave em pleno voo. Entre assustados e maravilhados, os índios se apercebem da força do que lhes parece inexplicável e, como única resposta, o aclamam “Filho do Trovão”, ou “Caramuru”. Inicia-se, assim, a sucessão de vitórias que irão desenhar, ao longo do poema, a figura heroica de Diogo Álvares Correia. Como filho de uma divindade, automaticamente passa ele a ser investido da autoridade que lhe garantirá a imagem de líder, a quem naturalmente cabe o direito de desposar nativas. Não tarda ele em conhecer a índia Paraguaçu, cujas graças o cativam, mais do que as de Moema, que também por ele se apaixona. Como se verá mais adiante, contrariamente aos costumes pagãos, que permitiam duas ou mais esposas, Diogo, mesmo distante da Metrópole e do controle da Igreja, assume a postura ética cristã e escolhe apenas uma: Paraguaçu. Não a quer, porém, cultivadora de crenças e práticas pagãs. Vai torná-la sua esposa e para isso a quer trilhando a larga via, convertida à sua universalidade, ao catolicismo. Decide então levála à França – centro da civilização europeia. Ela o aceita sem restrições: Esposo (a bela diz), teu nome ignoro; Mas não teu coração, que no meu peito Desde o momento em que te vi, que o adoro: Não sei se era amor já, se era respeito: Mas sei do que então vi, do que hoje exploro, Que de dous corações um só foi feito. Quero o batismo teu, quero a tua Igreja, Meu povo seja o teu, teu Deus meu seja. (Canto II, XC) 40 | P á g i n a Revista Guavira-Letras: “Poemas Narrativos”, Mestrado em Letras, Campus de Três Lagoas, UFMS, Vol. 01, n. 09 (2005 - 2009 Três Lagoas). SALES, J. Batista de. (Org.).Semestral (Jul./Dez. 2009) – Versão On-line.(Versão On-Line http://www.revistaguavira.com.br; ISSN: 1980-1858) Guavira no9 Essa estrofe revela a aceitação de todo o processo de apagamento progressivo das marcas culturais de um povo, que assim se rendia ao poder de uma cultura apresentada como superior. O momento ritualístico da conversão de Paraguaçu concretiza-se na França, mas se inicia, simbolicamente, ainda no Brasil, com a morte de Moema, que parece simbolizar a parte selvagem de Paraguaçu. Moema segue a nado a embarcação que leva Diogo e Paraguaçu, e o faz até o limite de suas forças. Antes de ser tragada pelo mar, Moema refere-se à rival, degradando-lhe a imagem: Essa indigna, essa infame, essa traidora: Por serva, por escrava te seguira, Se não temera de chamar senhora A vil Paraguaçu, que, sem que o creia, Sobre ser-me infrior, é néscia e feia. (Canto VI, XL, 4-8) Mais do que um desabafo provocado pelo despeito, pelo ciúme, as palavras de Moema podem bem demonstrar uma quebra da unidade do universo cultural indígena pela interferência de outra cultura. Moema coloca-se então como a porta-voz da contrariedade de grupos indígenas. Considerando-se que nenhuma ruptura se produz sem que algo seja abalado, cala-se, afoga-se a voz de Moema. Pode-se, dessa forma, reler a morte de Moema como o sacrifício do indígena e de sua cultura. Tanto a morte de Moema quanto o batismo de Paraguaçu têm como elemento mediador a água. Por meio dela o ser humano se purifica e recebe uma nova vida. O batismo é um rito de iniciação necessário para que o homem passe a pertencer à comunidade cristã, tal como ocorre com Paraguaçu: Banhada a formosíssima donzela No santo crisma, que os cristãos confirma, Os desposórios na real capela Com o valente Diogo amante firma: Catarina Alvres se nomeia a bela, De quem a glória no troféu se afirma, Com que a Bahia, que lhe foi senhora, N’outro tempo, a confessa, e fundadora. (Canto VII, XIX) Depois do batismo, Paraguaçu passa a denominar-se Catarina Álvares (o prenome significa a pura, em grego). Com isso, ao abraçar a religião de Diogo, ela perde a antiga identidade e renasce para as luzes do cristianismo. 41 | P á g i n a Revista Guavira-Letras: “Poemas Narrativos”, Mestrado em Letras, Campus de Três Lagoas, UFMS, Vol. 01, n. 09 (2005 - 2009 Três Lagoas). SALES, J. Batista de. (Org.).Semestral (Jul./Dez. 2009) – Versão On-line.(Versão On-Line http://www.revistaguavira.com.br; ISSN: 1980-1858) Guavira no9 Do triângulo Moema-Diogo-Paraguaçu destaca-se Diogo como o dominador europeu, inflexível aos apelos da índia dominada cultural e afetivamente, a qual, na sua ótica, só pode ver o seu superior como uma criatura cruel. Moema, antes de morrer, dirige a Diogo estas palavras: Ah Diogo cruel! disse com mágoa, E sem mais vista ser, sorveu-se n'água. (Canto VI, XLII, 7-8) Moema pode ser entendida como a última possibilidade de se impedir a assimilação total do mundo indígena à civilização europeia, e sua morte exalta o sacrifício do mundo não civilizado. Por isso Moema morre com a dignidade de herói épico. Durante o retorno ao Brasil, na passagem pela linha do Equador, Paraguaçu, já como Catarina, profundamente adormecida, tem visões proféticas sobre o Brasil, artifício do autor para narrar parte da história do Brasil. Mas é nesse momento que Catarina tem a visão da Virgem Maria, o que está em consonância com sua nova situação de católica. E vale assinalar um recurso usado frequentemente na épica: o vaticínio, núcleo narrativo através do qual se adiantam aos protagonistas e se expõem ao leitor acontecimentos que têm lugar na posteridade ou ao tempo da ação. Vi, não sei s’era impulso imaginário, Um globo de diamante claro e imenso; E nos seus fundos figurar-se vário Um país opulento, rico e extenso: E aplicando o cuidado necessário, Em nada do meu próprio o diferenço; Era o áureo Brasil tão vasto e fundo, Que parecia no diamante um mundo. (Canto, VIII, XXI) Convém sublinhar que esse destino glorioso e pacífico do Brasil se expressa de forma não menos opulenta em metáforas e epítetos e vai transbordar na emoção que o autor transfere para Catarina, numa bela associação de suas lágrimas ao orvalho da noite, ao término da narração do sonho profético: Deu Catarina fim e arrebatada Num êxtase ficou, vibrando ardores; Corriam pela face em luz banhada Lágrimas belas, como orvalho em flores: 42 | P á g i n a Revista Guavira-Letras: “Poemas Narrativos”, Mestrado em Letras, Campus de Três Lagoas, UFMS, Vol. 01, n. 09 (2005 - 2009 Três Lagoas). SALES, J. Batista de. (Org.).Semestral (Jul./Dez. 2009) – Versão On-line.(Versão On-Line http://www.revistaguavira.com.br; ISSN: 1980-1858) Guavira no9 Fica a pia assembléia esperançada De outros sucessos escutar maiores; (Canto IX, LXXX, 1-6) Observemos que o personagem Catarina adquire uma dignidade diversa daquela que a caracterizava como indígena: passa a ser admirada não só por ser a bela esposa de Diogo, mas também, e principalmente, pela visão da Virgem Maria e pelo sonho profético sobre o Brasil – recursos de que se valeu o autor para evidenciar o rápido processo de aculturação, de transformação a que se submeteu Paraguaçu. E é essa mesma aculturação, agora do ponto de vista religioso, que lhe permite ver a Virgem Maria: Cheia de assombro a turba a dama admira Tornada a si da suspensão pasmosa; E da nova visão, que ali sentira, Prossegue a ouvir-lhe a narração gostosa: Mais bela que esse sol, que o mundo gira, E com cor (disse) de purpúrea rosa, Vi formar-se no céu nuvem serena, Qual nasce a aurora em madrugada amena. (Canto X, I) No mesmo Canto, o poeta habilmente entremeia a narrativa de Catarina com a descoberta de uma imagem da Virgem, roubada por um selvagem, fazendo assim a passagem do imaginário (a visão) para o concreto (a imagem como representação física da Virgem). Essas evidências de religiosidade cristã consolidam a construção de um novo personagem: uma indígena europeizada, que, unida a Diogo pelos laços do casamento, torna-se digna de ao lado dele caminhar. Diogo é, assim, o agente dessa transformação do selvagem por meio da fé – a marca do início de seu percurso missionário. Nele se imprime essa marca por meio dos dois nomes que carregará para sempre: o cristão, Diogo, correspondente ao personagem ao mesmo tempo dominador e missionário, e Caramuru, uma aquisição tardia, originária de um ato que o transformou em semideus. Essa dupla designação permite-nos observar uma dualidade no texto, pois é este o homem das ações, enquanto seu lado Caramuru permanece fechado no universo mítico. A Diogo pertencem a fala e os atos de bravura. Diogo é o herói atuante no seu papel de converter os indígenas e conquistar novos territórios, enquanto Caramuru é apenas um nome mágico que estabelece uma aura em torno da figura que dá título à epopéia. Os 43 | P á g i n a Revista Guavira-Letras: “Poemas Narrativos”, Mestrado em Letras, Campus de Três Lagoas, UFMS, Vol. 01, n. 09 (2005 - 2009 Três Lagoas). SALES, J. Batista de. (Org.).Semestral (Jul./Dez. 2009) – Versão On-line.(Versão On-Line http://www.revistaguavira.com.br; ISSN: 1980-1858) Guavira no9 adjetivos que acompanham Diogo denotam heroísmo, nobreza e força. Diogo é prudente, pio, pio lusitano, pio herói, valeroso, sábio, generoso, clemente, bom, valente, nobre, e piedoso. É aquele que atua, verbaliza seus pensamentos e crenças, enquanto Caramuru permanece como um nome utilizado para evocar o caráter mítico do herói e pouco utilizado na narrativa. Enquanto podemos encontrar o nome Diogo mais de uma centena de vezes, Caramuru, em contrapartida, é citado apenas vinte e duas vezes. Em suma, Caramuru serve como referência à adoração, daí o seu caráter passivo, enquanto o nome cristão reflete a atividade, o que talvez esteja próximo ao caráter ativo do português navegador, descobridor, construtor do novo mundo e semeador do cristianismo. À figura mítica do Caramuru e missionária de Diogo associam-se outras, em discursos paralelos à história principal, organizados em três contos: a lenda da estátua profética; Sumé – santo emboaba – e Embiara e Mexira, os gêmeos caetés. O conto, segundo Massaud Moisés (1983), organiza-se precisamente como uma célula, em cujo núcleo se concentra toda a densidade dramática. No tecido circundante situa-se a matéria, os elementos que permitem a expansão dessa energia e o cumprimento de sua tarefa. “O êxito ou malogro do conto se evidencia na articulação ou desarticulação entre o núcleo dramático e o seu envoltório não-dramático.” (Ibid., id., p.25). Dentro dessa concepção, vamos encontrar três pequenos contos no interior da narrativa épica de Durão. Em cada um deles há um núcleo denso, que se espraia nas estrofes seguintes, em sintonia e articulação com a ideologia da obra. Vamos examinar esses contos e, sobretudo, a sua função, meticulosamente engendrada e articulada pelo frade-poeta. Lenda da estátua profética Trata-se do primeiro conto, em meio à narrativa épica. Apresenta-se logo no Canto I, da estrofe XXXIII à LXVI, pronunciado ao som da cítara por um profundo conhecedor das letras que naufragou junto com Diogo: Fernando. Ele teria conversado com as Musas, cantoras divinas ligadas às diversas áreas do conhecimento e das artes, a saber: música, eloquência, sabedoria e história. Fernando, que ouvira o belo conto da estátua profética, dispôs-se a recontar essa história, que pode ser verídica, embora o tempo seja duvidoso e oculto. Relatou a conversão de Guaçu e sua capacidade de 44 | P á g i n a Revista Guavira-Letras: “Poemas Narrativos”, Mestrado em Letras, Campus de Três Lagoas, UFMS, Vol. 01, n. 09 (2005 - 2009 Três Lagoas). SALES, J. Batista de. (Org.).Semestral (Jul./Dez. 2009) – Versão On-line.(Versão On-Line http://www.revistaguavira.com.br; ISSN: 1980-1858) Guavira no9 assimilar o batismo antes do último suspiro. O que efetivamente sucedeu foi descrito com profundo sentimento de sublimidade diante do espetáculo. Observe-se a seguinte estrofe: Disse; e cessando a voz e a visão bela, Viu da nuvem Auréu, que o rodeava, Transformar-se a bela alma em clara estrela, E viu que a nuvem sobre o mar voava: O cadáver também, sublime nela, Ao cume do grão pico já chegava, Onde a névoa, que no alto se sublima, Depõe como uma estátua o corpo em cima. (Canto I, LXIV) Guaçu, o indígena, que em tupi significa grande (BUENO, 1987, p. 124)tornou-se a feliz criatura que, em meio ao paganismo em que viviam os gentios, mereceu o batismo cristão e com ele o nome Félix. Auréu, o sacro enviado, revelou ao indígena moribundo a essência do cristianismo: “São três pessoas numa só unidade” (Canto I, estrofe XXXIX, verso 8). Félix ouviu atentamente as palavras proferidas pela boca sagrada de Auréu, o enviado, e aceitou a conversão ao catolicismo. Apesar de se expressarem em idiomas tão distintos entre si, eles se comunicavam. Auréu relatou em poucas palavras a criação do mundo, o paraíso perdido em decorrência do pecado original cometido por Adão e Eva, o nascimento de Jesus, o Salvador, que, ao subir aos céus, comandou a todos e enviou mensageiros com a finalidade de difundir o cristianismo na Terra. Essa estátua profética, além de conter uma lenda, vai apontar para o “áureo” Brasil, ensinando desse modo o caminho para os portugueses chegarem assertivamente ao Novo Mundo. Sumé, santo emboaba O segundo conto resgata a figura de Sumé, herói mítico indígena associado a São Tomé a partir da similaridade sonora entre os dois nomes. Em sua missão catequética, os jesuítas buscaram a semelhança entre os dessemelhantes, ou seja, entre cristãos e pagãos, tencionando provar a estes a universalidade da fé católica. Como bem observa Moreau: Assim como viram no mito da criação algo relacionado ao dilúvio, a sonoridade do nome Zumé, herói-civilizador tupi, lembrou o do 45 | P á g i n a Revista Guavira-Letras: “Poemas Narrativos”, Mestrado em Letras, Campus de Três Lagoas, UFMS, Vol. 01, n. 09 (2005 - 2009 Três Lagoas). SALES, J. Batista de. (Org.).Semestral (Jul./Dez. 2009) – Versão On-line.(Versão On-Line http://www.revistaguavira.com.br; ISSN: 1980-1858) Guavira no9 apóstolo que viajou para pregar em lugares distantes. A necessidade de os jesuítas encontrarem São Tomé está ligada à identificação com sua saga: intempéries de viagens, sofrimentos provocados pelos gentios. (MOREAU, 2003, p. 267) Nos primeiros séculos da colonização da América, conta-se a célebre lenda da chegada de São Tomé ao Novo Mundo. O santo emboaba teria mantido contato com os indígenas com o intuito de lhes ensinar a plantar e moer a mandioca, entre outras coisas. A sua chegada pelo mar, sem se afundar, é fantástica e nebulosa. Segundo a lenda, o poder de Sumé se irradiava por toda a parte: domava os ventos, o mar irado, as matas se lhe abriam, e também amansava os animais ferozes. A água transformava-se em elemento sólido para que ele pudesse passar sem se afundar. O narrador-autor prossegue a narração com o sujeito indeterminado na forma verbal “contam”, conferindo um tom que pode-se inscrever na tradição oral. Esse santo homem teria deixado na areia marcas de sua passagem, ou de sua trajetória sob a forma de pegadas. Contam que, quando aos nossos cá pregava, Poder mostrara tal nos elementos, Que às ondas punha lei, se o mar se irava, E de um aceno só domava os ventos: Os matos se lhe abriam, quando entrava, E os tigres feros, a seus pés atentos, Pareciam ouvir, como a outra gente, Festejando-o co'a cauda brandamente. (Canto III, LXXXIII) As águas donde quer, em rio ou lago, Se as chegava a tocar com pé ligeiro, Não pareciam de elemento vago, Mas pedra dura ou sólido terreiro: Só com chamar seu nome, cessa o estrago, Se o furacão com hórrido chuveiro, Quando na nuvem negra se levanta, Ou derriba a cabana ou quebra a planta. (Canto III, LXXXIV) Enfim, Sumé teria vindo para recomendar o plantio da terra e a conversão dos indígenas ao catolicismo. Durão dá curso à lenda, conforme Bosi explica: [...] os missionários fizeram uma partilha tática no conjunto das expressões simbólicas dos nativos. Colheram e retiveram das narrativas correntes só aquelas passagens míticas nas quais apareciam entidades cósmicas (Tupã), ou então heróis civilizadores (Sumé), capazes de se 46 | P á g i n a Revista Guavira-Letras: “Poemas Narrativos”, Mestrado em Letras, Campus de Três Lagoas, UFMS, Vol. 01, n. 09 (2005 - 2009 Três Lagoas). SALES, J. Batista de. (Org.).Semestral (Jul./Dez. 2009) – Versão On-line.(Versão On-Line http://www.revistaguavira.com.br; ISSN: 1980-1858) Guavira no9 identificarem, sob algum aspecto, com as figuras pessoais e bíblicas de um Deus Criador ou de seu Filho Salvador. (BOSI, 1992) Embiara e Mexira, os gêmeos caetés Durão desenvolve o tema do canibalismo neste terceiro conto, no qual fica evidenciada essa prática, inclusive entre indígenas da mesma tribo. Observe-se que a antropofagia é o que ainda nos dias atuais mais repulsa ao homem civilizado, e muito mais ao religioso. Era o que havia de mais incompatível com o cristianismo. Dois irmãos gêmeos, Embiara e Mexira, morreram em combate. Apesar de terem sido amados pelas mulheres de sua tribo, terminaram servindo de pasto aos seus iguais: os caetés. Veja-se a cena bárbara em que é descrita a mutilação dos corpos: Qualquer junto aos cadáveres se assenta, E vão talhando pés, cabeças, braços, E as vítimas fazendo em mil pedaços. (Canto V, XXVIII, 6-8) Chamam moquém as carnes que se cobrem E a fogo lento sepultadas assam; Tudo em cima com terra e rama encobrem, Onde o fogo depois com lenha façam: Entanto as voltam, cobrem e descobrem, Até que do calor se lhe repassam: Detestável empresa que escondiam Da indignação de Diogo, a quem temiam. (Canto V, XXIX) A cena preparatória do ritual antropofágico põe à mostra a diferença inconciliável entre a civilização e a barbárie, presente desde a quinta estrofe do Canto I. A descrição detalhada da prática antropofágica aparece em alguns trechos da obra de Santa Rita Durão. O frade-poeta tomou por base relatos, cartas, documentos e compêndios escritos a partir do século XVI ao XVIII. O traço antropofágico é ressaltado nos textos históricos e em relatos produzidos a respeito das tribos que habitavam o Novo Mundo, como os de Jean de Léry, Hans Staden, Padre Manuel da Nóbrega, Pero Correa, entre outros. Nesses relatos registra-se o espanto ante o canibalismo, a nudez e tantos outros costumes que constituíam parte da cultura de diversas tribos. Como bem observa Carneiro da Cunha (1990), “desde o primeiro instante não há dúvida de que são 47 | P á g i n a Revista Guavira-Letras: “Poemas Narrativos”, Mestrado em Letras, Campus de Três Lagoas, UFMS, Vol. 01, n. 09 (2005 - 2009 Três Lagoas). SALES, J. Batista de. (Org.).Semestral (Jul./Dez. 2009) – Versão On-line.(Versão On-Line http://www.revistaguavira.com.br; ISSN: 1980-1858) Guavira no9 homens”, mas, apesar dessa aparência, são seres animalizados – e é isso que provoca o mal-estar, a perplexidade diante desse outro, tão próximo e ao mesmo tempo tão distante da condição de ser humano, como sugere Raminelli (1996, p. 153), citado por Moreau (2003, p.66). As fortes impressões causadas por esses hábitos tão estranhos à cultura europeia suscitaram as inevitáveis comparações entre as duas culturas e a necessidade, por parte dos missionários, de substituir todo o conjunto de crenças e procedimentos dos nativos pelas práticas da cultura ocidental, especificamente voltadas para a cristianização. Assim, como acrescenta Raminelli, “os padres teriam a missão de trazer os ameríndios para o mesmo estádio de evolução onde se encontravam os europeus cristianizados” (1996, p. 31). Convém assinalar o fato de os contos inseridos no poema épico Caramuru colocarem à mostra os aspectos ideológicos fundamentais na estrutura da narrativa. Como se sabe, o conto é uma narrativa concisa, e extremamente densa. Os contos entrelaçados à narrativa épica vêm confirmar as questões ideológicas e, portanto, basilares deste poema. Elas podem ser mais bem observadas ao longo dos dez cantos. O narrador-autor, que tudo observa, faz uma distinção entre os indígenas: uns são bravos e intratáveis, outros, mansos. Os primeiros são aqueles que não aceitam os ensinamentos e permanecem selvagens; os segundos se tornam civilizados e cristãos. Há, por conseguinte, dois indígenas no Caramuru: o convertido e o selvagem. Guaçu e Paraguaçu exemplificam os que sofreram a conversão e o processo civilizatório; portanto, são flexíveis e mutáveis. Representam o sucesso do missionário católico e do dominador português no Novo Mundo. Jararaca e Moema, por outro lado, são impermeáveis às mudanças, permanecendo dessa forma selvagens. A morte da bela Moema e de Jararaca vêm corroborar a vitória da civilização e da Igreja em terras brasílicas. Observa-se a lenta dissolução da cultura indígena, seu mundo gradativamente desconstruído pelo europeu civilizado e cristão. Caramuru e Paraguaçu foram assimilados pela nova ordem que se instalava, evidenciando o triunfo da civilização europeia e da religião católica na América Portuguesa, aproximando assim o discurso literário ao discurso ideológico. Os primeiros versos da última estrofe da obra parecem apontar para este desfecho: Por fim publica do Monarca reto, 48 | P á g i n a Revista Guavira-Letras: “Poemas Narrativos”, Mestrado em Letras, Campus de Três Lagoas, UFMS, Vol. 01, n. 09 (2005 - 2009 Três Lagoas). SALES, J. Batista de. (Org.).Semestral (Jul./Dez. 2009) – Versão On-line.(Versão On-Line http://www.revistaguavira.com.br; ISSN: 1980-1858) Guavira no9 Em favor de Diogo e Catarina, Um Real honorífico Decreto, Que ao seu merecimento honras destina: (Canto X, LXXVII, 1-4). Resumo dos Cantos No Canto I constam: a proposição, a invocação, a dedicatória ao Príncipe do Brasil, José Francisco de Bragança (1761-1788), filho mais velho da rainha D. Maria I de Portugal; narração do naufrágio de Diogo Álvares e os seis companheiros; o encontro dos náufragos com os indígenas; lenda da estátua profética que apontava para o Brasil, na ilha do Corvo. O indígena Guaçu, convertido ao cristianismo, transforma-se na famosa estátua. Destaca-se ainda a descrição dos preparativos para o ritual antropofágico. No Canto II, prossegue a narração. Diogo, por estar enfraquecido, é poupado. Consegue recuperar sua arma de fogo, com a qual mata um pássaro em pleno voo. Com este ato, conquista a admiração dos tupinambás e o poder sobre eles, sendo por tal feito aclamado e denominado Caramuru. Diante das circunstâncias adversas e do canibalismo, bem como do estado pagão em que se encontram os selvagens, Diogo assume a missão de convertê-los ao catolicismo. Ainda neste Canto são descritas as aldeias e os costumes indígenas. Ao final, Diogo e Paraguaçu se conhecem e se apaixonam. No Canto III, as crenças, os usos e os costumes indígenas são explicados a Diogo por Gupeva, da tribo tupinambá, tendo Paraguaçu por intérprete. Finalizando o Canto, os caetés chegam para atacar os tupinambás. No Canto IV é descrito o combate entre Gupeva e Jararaca: tupinambás contra caetés. Esta tribo, em número assustador, compõe-se de figuras monstruosas. Vence Gupeva com o auxílio de Diogo e Paraguaçu. No Canto V, Diogo conversa com Paraguaçu sobre a bondade de Deus; os gêmeos Embiara e Mexira, caetés, são preparados para o ritual antropofágico. Diogo mata Jararaca com um tiro de espingarda. No Canto VI, os chefes de diversas tribos oferecem suas filhas como esposas a Caramuru, mas ele só se interessa por Paraguaçu. O casal embarca para a França, deixando para trás Moema, a indígena apaixonada por Diogo, que, inconformada com o 49 | P á g i n a Revista Guavira-Letras: “Poemas Narrativos”, Mestrado em Letras, Campus de Três Lagoas, UFMS, Vol. 01, n. 09 (2005 - 2009 Três Lagoas). SALES, J. Batista de. (Org.).Semestral (Jul./Dez. 2009) – Versão On-line.(Versão On-Line http://www.revistaguavira.com.br; ISSN: 1980-1858) Guavira no9 desprezo do amado, segue a nau e morre afogada. Diogo narra ao comandante Duplessis o descobrimento do Brasil e descreve essa “América Opulenta”, detendo-se em cada província. No Canto VII, Diogo e Paraguaçu chegam à França. Paraguaçu, que jamais vira espetáculo igual, fica encantada. O casal é recebido pelos reis da França. Paraguaçu casa-se com Diogo Álvares, após ser batizada com o nome de Catarina, em homenagem a Catarina de Médicis, sua madrinha. Diogo descreve aos reis franceses as terras, a fauna e a flora brasileira. No Canto VIII, por lealdade a Portugal, Diogo recusa a oferta de Duplessis no sentido de ajudá-lo a dominar o Brasil em favor da França. O casal embarca de volta para o Brasil. Na linha do Equador, Catarina, profundamente adormecida, tem visões proféticas do futuro do Brasil. Sua narração focaliza a invasão francesa. No Canto IX, depois de uma tempestade, prossegue Catarina relatando as guerras contra os invasores holandeses até a expulsão destes. No Canto X, Catarina, em sonho profético, vê a Virgem Maria, em grande beleza física e espiritual. Narra como foi encontrada a imagem da Virgem, roubada por um selvagem. Após a chegada à Bahia, Catarina decide mandar edificar uma Igreja. Chega Tomé de Sousa para povoar a Bahia. Catarina renuncia aos direitos herdados sobre os tupinambás. No final da obra, Diogo Álvares Correia de Viana e Catarina Álvares recebem da coroa Portuguesa “um real honorífico decreto”. 50 | P á g i n a Revista Guavira-Letras: “Poemas Narrativos”, Mestrado em Letras, Campus de Três Lagoas, UFMS, Vol. 01, n. 09 (2005 - 2009 Três Lagoas). SALES, J. Batista de. (Org.).Semestral (Jul./Dez. 2009) – Versão On-line.(Versão On-Line http://www.revistaguavira.com.br; ISSN: 1980-1858) Guavira no9 REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS A GAZETA DE LISBOA [suplemento]. N. XXX, 27 de julho de 1781. BIRON, Berty R. R. Caramuru: um poema épico da conversão e sua recepção crítica. Dissertação. 1988. (Mestrado em Letras). Pontifícia Universidade Católica do Rio de Janeiro. _____. Tradição e renovação no poema épico Caramuru. Tese. 1998. (Doutorado em Letras). Pontifícia Universidade Católica do Rio de Janeiro. BOSI, Alfredo. Dialética da colonização. 2. ed., 2. reimpres. São Paulo: Companhia das Letras, 1992. BUENO, Francisco da Silveira. Vocabulário tupi-guarani português. 5. ed. rev. e aum. São Paulo: Brasilivros Editora e Distribuidora Ltda., 1987. CARNEIRO DA CUNHA, M. Imagens de índios do Brasil: o século XVI. Rev. Estudos Avançados. São Paulo: USP 4, 1990. FREIRE, Francisco José. 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However, in mid-nineteenth, time of its publication, the work got huge success. This articles want to news about the poem, to reflect about its receipt and follow its path of oblivion. Keywords: Romanticism, brasilian poetry, receipt. Joaquim Manuel de Macedo foi romancista, dramaturgo, poeta, historiador, jornalista, político, professor, secretário e orador do IHGB, editor e colaborador de várias revistas literárias, além de ter tido uma participação no conservatório dramático. Foi um dos mais fecundos escritores brasileiros deixando, no conjunto de sua obra, uma centena de escritos, numa vasta multiplicidade de manifestações. Hoje, Macedo é conhecido como o autor de A Moreninha, a sua primeira obra, publicada em 1844. Com ela, tornou-se o maior e mais popular ficcionista nacional na época. Esse romance foi o que maior número de edições e reedições teve no Brasil. Não é à toa que, após a sua morte, o autor ficou conhecido como “o Macedo da Moreninha”. Mas o Macedinho, como era popularmente conhecido, envolveu-se em projetos mais ambiciosos. Mesmo depois do sucesso como romancista e dramaturgo, decidiu fazer uma empreitada maior, enveredando por outros caminhos. Ele já escrevia algumas poesias, muitas delas publicadas em jornais e revistas, mas resolveu compor um poema narrativo, A Nebulosa, contendo seis cantos e um epílogo, com nada menos que 293 páginas na sua edição de 1857 e 4762 versos endecassílabos brancos, narrando o amor impossível entre o Trovador e a Peregrina. A obra obteve tanto sucesso que muitos críticos chegaram a profetizar que Macedo ficaria conhecido na posteridade como poeta, previsão que não se cumpriu. * Doutora em Teoria e História Literária. IEL- UNICAMP. Este artigo é parte de minha tese com mesmo título, defendida na Unicamp em agosto de 2006. 52 | P á g i n a Revista Guavira-Letras: “Poemas Narrativos”, Mestrado em Letras, Campus de Três Lagoas, UFMS, Vol. 01, n. 09 (2005 - 2009 Três Lagoas). SALES, J. Batista de. (Org.).Semestral (Jul./Dez. 2009) – Versão On-line.(Versão On-Line http://www.revistaguavira.com.br; ISSN: 1980-1858) Guavira no9 O poema era tido, na sua época, como uma obra-prima. Sua fama atravessou o Atlântico e foi comentado em Lisboa, por Francisco Inocêncio da Silva, no seu Dicionário Bibliográfico Português, de 1858, um ano após a publicação de A Nebulosa. Ferdinand Wolf, no seu O Brasil Literário, de 1863, dedicou-lhe onze páginas, enquanto não se ocupou de mais de vinte linhas para A Moreninha e o teatro cômico de Macedo, parte da obra do autor que sobrevive até hoje. O poema causou sensação, foi prestigiado, alcançou um sucesso extraordinário na época da publicação e nos anos imediatamente posteriores, mas acabou caindo no esquecimento, no “ossuário do Romantismo”. O poema de Macedo foi muito comentado no seu próprio século, mas no seguinte, os comentários vão se tornando mais esparsos até ser praticamente esquecido atualmente, não havendo sequer um estudo aprofundado sobre A Nebulosa. Na verdade, esse esquecimento em relação à obra já se evidenciava no final do século XIX. O último comentário de fôlego sobre ele é datado de 1863, na crítica de Ferdinand Wolf. Depois disso temos um longo silêncio até 1882, ano da morte do autor. A Nebulosa, 25 anos após a sua primeira publicação, ainda era vista como obra de valor. Depois de relembrada na morte do autor, a obra é citada de tempos em tempos. É impressionante a quantidade de referências e o prestígio dos críticos que se debruçaram sobre o poema. No entanto, apesar da presença na crítica, o livro desapareceu das estantes de livrarias. Permanece, hoje, no limbo entre A Confederação dos Tamoios 12e Colombo 13. A Nebulosa pertence ao ultra-romantismo brasileiro. É um poema dramático que narra a história de amor, morte, melancolia, solidão e desespero de um homem ante uma natureza sempre indiferente à sua angústia. Grandes rochedos, abismos, tempestades, brumas contracenam com personagens pálidas como a neve, com seres fantásticos, em um cenário isolado, inacessível e por vezes tétrico, como as ruínas do cemitério ou o cume de um alto rochedo. Esse canto fúnebre nos remete a uma existência além da vida, porém mais bela e essencial, um tema caro ao Romantismo. O poema narra a história de um amor impossível entre a Peregrina e o Trovador, culminando no suicídio dele abraçado à Doida, mulher que não ama. A impossibilidade se dá por um juramento da moça feito à mãe no leito de morte. Ela jura jamais amar. 12 A Confederação dos Tamoios,de Gonçalves de Magalhães, publicado em 1856, é um poema épico indianista que,por sua visão do índio, causou polêmica na época. 13 Colombo, obra de Araújo Porto-Alegre, é um poema épico de temática nacional. O poeta trabalhou nele desde 1840, publicando episódios em revistas a partir de 1850, vindo a publicá-lo em livro somente em 1866. 53 | P á g i n a Revista Guavira-Letras: “Poemas Narrativos”, Mestrado em Letras, Campus de Três Lagoas, UFMS, Vol. 01, n. 09 (2005 - 2009 Três Lagoas). SALES, J. Batista de. (Org.).Semestral (Jul./Dez. 2009) – Versão On-line.(Versão On-Line http://www.revistaguavira.com.br; ISSN: 1980-1858) Guavira no9 Jamais é o mote de todo o poema. A história se passa num lugar indefinido, um “não lugar”, também num tempo indefinido, num tom de fantasia e sonho. O poema é permeado por descrições (muito longas), diálogos e monólogos entre cinco personagens: Trovador, Peregrina, Doida, Mãe e Nebulosa. Nenhuma delas tem nome próprio. A Nebulosa, que dá título ao poema, só aparece no início, como uma espécie de conto de fada que seria o ponto de partida para as desventuras do Trovador. No final, a morte trágica de todas as personagens na Rocha Negra e a constatação de que, no poema, não há redenção para nenhuma delas. O poema de Joaquim Manuel de Macedo compõe-se, quase todo, de monólogos e diálogos entre os quais são intercaladas partes narrativas. O enredo parte de uma lenda, conhecida pelos marinheiros, sobre uma mulher muito bela – fada ou feiticeira - que aparecia à noite sobre um penhasco e encantava os homens com seu canto, levando-os a se precipitarem no mar. 14 Essa fada só aparecia à noite, e ao raiar do dia desaparecia como se fosse feita de nuvens, por isso chamada de Nebulosa. Um jovem, chamado de Trovador, porque canta suas dores de amor acompanhado de uma harpa, sobe a esse penhasco e é advertido pelos marinheiros sobre a Nebulosa, mas não lhes dá ouvido. Surge então a segunda personagem, a Doida. Esta se diz descendente da Nebulosa, traz na testa uma marca de fogo, que indica se tratar de uma fada. Segundo ela, as fadas teriam poder para tudo, menos sanar os sofrimentos de amor. Elas mesmas viveriam uma vida de tormentos por causa da paixão, mas quando mortas, ganhariam a felicidade eterna no fundo do mar, como as ondinas. A Doida declara ao Trovador que seu destino está selado ao dele. Ele, no entanto, narra a ela anos de devoção a um amor não correspondido por uma mulher chamada Peregrina, que teria jurado no leito de morte de sua mãe jamais entregar seu coração a nenhum homem. Tanto a mãe quanto a irmã da Peregrina haviam sido vítimas da sedução dos homens, por isso foram amaldiçoadas e tiveram que se retirar da sociedade, vivendo numa floresta. Por isso, a Peregrina sempre responde ao Trovador com um “Jamais!” e lhe diz que seu amor estaria voltado apenas para Deus e a natureza. Depois de tentar de todas as formas conquistar o amor da Peregrina, durante dez anos, ele implora para que a Doida, como feiticeira e herdeira da Nebulosa, lhe produza um 14 A lenda se parece vagamente com o mito das sereias que cativam os homens com seu canto e também nos remete ao mito das Ondinas, mulheres sobrenaturais que conduziam os homens para as suas cavernas no fundo do mar, para lá viverem pela eternidade. Cf.MOTTE-FOUQUÉ, Friedrich De La. Ondina. Tradução: Karin Volobuef. São Paulo: Ed. Landy, 2006. 54 | P á g i n a Revista Guavira-Letras: “Poemas Narrativos”, Mestrado em Letras, Campus de Três Lagoas, UFMS, Vol. 01, n. 09 (2005 - 2009 Três Lagoas). SALES, J. Batista de. (Org.).Semestral (Jul./Dez. 2009) – Versão On-line.(Versão On-Line http://www.revistaguavira.com.br; ISSN: 1980-1858) Guavira no9 filtro do amor. Ela lhe responde que tal tarefa é impossível de ser realizada, até para quem tem poderes. O Trovador decide então se matar naquela mesma noite, mas antes vai até o cemitério visitar o túmulo de seu pai. É ali que aparece sua mãe, a quarta e última personagem, que ele não via há dez anos. A Mãe, assim chamada, pede ao filho que tire aquele amor infeliz de seu coração, que volte para ela. Ele responde que é tarde demais, que morreria à meia-noite. Numa tentativa desesperada, a mãe corre até a Peregrina e lhe implora que retribua o amor do Trovador. A Peregrina, desincumbida de sua promessa por uma ordem de Deus, decide ceder aos apelos da Mãe. As duas então correm até o penhasco, local de onde o Trovador afirmou que se jogaria. Nesse meio tempo, a Doida se encontra com o Trovador e declara seu amor a ele, que lamenta não poder corresponder. Ambos se beijam e se atiram do penhasco caindo no mar. A Mãe e a Peregrina chegam tarde. Surge uma tempestade e uma nuvem negra envolve o penhasco: “Tudo é trevas... horror... borrasca, e morte”. 15 Mas a tragédia ainda não terminou. A Mãe, não agüentando tanto sofrimento, falece sem forças. A Peregrina, amaldiçoada pela mãe, morre ao cair de encontro à harpa do Trovador. Tudo no poema soa como estrangeiro, embora não se possa identificar de que lugar se trata. Segundo um crítico do Diário do Rio de janeiro, em 30/09/1857, A Nebulosa “pertence à escola fantástica alemã, é um conto de Hoffman, um poema de lirismo germânico, mas não brasileiro”. A obra, de fato, tem algo de bruma nórdica, mas não alemã, filiando-se mais ao repertório literário presente em autores como Keats, Coleridge, Wordsword, conhecidos como “poetas dos lagos”. A Nebulosa nos faz lembrar das “terras altas” da Escócia e Irlanda, na matéria, na paisagem, na linguagem. O poema apareceu inicialmente como fragmento, em 1850, quando foi publicada a sua terça parte inicial na revista Guanabara. Esta revista era dirigida por Manuel Araújo Porto-Alegre, Antônio Gonçalves Dias e Joaquim Manoel de Macedo. O primeiro Canto de A Nebulosa aparece não datado, já o Canto II foi publicado em junho de 1851. Em 1857, foi publicada a primeira edição do poema completo pela Tipografia Villeneuve & Cia, no Rio de Janeiro. Uma segunda edição, com 280 páginas, foi publicada por H. Garnier, também no Rio de Janeiro. Nesta, aparecia a informação “nova edição”. Embora não datada, é possível concluir que seja depois de 1878, já que o rompimento comercial entre os irmãos Garnier se deu entre 1865 e 1878. Até esta data a 15 MACEDO, Joaquim Manuel de. A Nebulosa. Epílogo, Estrofe LVII, verso 6. 55 | P á g i n a Revista Guavira-Letras: “Poemas Narrativos”, Mestrado em Letras, Campus de Três Lagoas, UFMS, Vol. 01, n. 09 (2005 - 2009 Três Lagoas). SALES, J. Batista de. (Org.).Semestral (Jul./Dez. 2009) – Versão On-line.(Versão On-Line http://www.revistaguavira.com.br; ISSN: 1980-1858) Guavira no9 editora comercializava com o nome Garnier Irmãos, depois passa a H. Garnier, Livreiro-Editor e só depois de 1878 a editora vai para a rua do Ouvidor, 71, mesmo endereço que aparece na capa da segunda edição de A Nebulosa. Antes de sua primeira edição, o poema foi lido pessoalmente por Macedo para o Imperador D. Pedro II, no palácio de São Cristóvão, em uma das salas do Paço Imperial, oferecida pelo Imperador para as reuniões do Instituto Histórico e Geográfico Brasileiro. Quando a impressão era muito forte, o Imperador se dispunha a subsidiar a edição da obra, e assim aconteceu com A Nebulosa, pois foi D. Pedro quem financiou a publicação do poema. Foi numa das sessões do IHGB, realizadas quinzenalmente às sextas-feiras, às cinco e meia da tarde, que A Nebulosa apareceu, segundo nota do Correio Mercantil. O exemplar impresso do poema foi entregue ao Imperador na nona sessão anual do IHGB, em 25 de setembro de 1857. Nesse mesmo dia, um colunista do Diário do Rio de Janeiro diz ter recebido o exemplar: “PS. Neste momento acabo de receber a Nebulosa do Sr. Dr. J.M. De Macedo – tenho assim o prazer de dar-vos conta do mais lindo fato da semana”. Por causa de A Nebulosa, Macedo foi agraciado com a Ordem da Rosa, ordem criada para premiar militares, civis e literatos. É significativo o fato de A Nebulosa surgir exatamente em 1857, mesmo ano da publicação de O Guarani, de José de Alencar, romance que pode ser lido como resposta à acirrada polêmica entre Alencar e Gonçalves de Magalhães, com a participação do próprio imperador D. Pedro II, em torno do projeto de nacionalização da literatura e da possibilidade da elaboração de uma obra épica nacional. É, portanto, importante refletir por que a A Nebulosa foi bem recebida pela crítica e pelo leitor brasileiro, pois vinha na contramão do debate que se colocava como central no momento político da nação. Isso pressupõe uma concepção de literatura que abrange posturas distintas e mesmo contraditórias, pois seguir os modelos europeus era considerado a um só tempo servilismo e exemplaridade. Sabemos que a própria questão da identidade nacional também foi importada e parte de uma discussão maior, ou seja, o projeto de construção da identidade que ocupou grande parte do pensamento no final do século XVIII na Europa. Identificar as origens de uma nação como processo de diferenciação entre um povo e outro foi o primeiro passo na procura dessa identidade. Mais que demarcar territórios, fronteiras, línguas, paisagens, foi no campo, nos costumes do povo, nas suas tradições, na música, na poesia, no seu modo de vida rústica, que se procurou diferenciar uma nação de outra. 56 | P á g i n a Revista Guavira-Letras: “Poemas Narrativos”, Mestrado em Letras, Campus de Três Lagoas, UFMS, Vol. 01, n. 09 (2005 - 2009 Três Lagoas). SALES, J. Batista de. (Org.).Semestral (Jul./Dez. 2009) – Versão On-line.(Versão On-Line http://www.revistaguavira.com.br; ISSN: 1980-1858) Guavira no9 Ernest Renan dizia que o que faz a nação é “um legado rico de recordações” e que o “culto do antepassados é, de entre todos, o mais legítimo; foram os antepassados que nos fizeram como somos.” Com a necessidade de redefinir as relações entre universal e particular houve uma mudança cultural: a antiguidade clássica greco-romana foi substituída pelas culturas designadas de bárbaras. O mundo mediterrãneo pela Europa do norte, os salões da elite pelas cabanas rústicas. O nacional passou a ser visto como princípio criador da modernidade. Assim, definir as marcas de diferenciação entre as nações seria um trabalho de investigação das tradições do povo. Os autores, por sua vez, passaram a apresentar em suas obras o que seria o resumo e emblema da nação, esse caráter nacional, e assim o fizeram, inclusive no Brasil. Antônio Candido observou que os românticos tinham que encontrar seu lugar, considerando uma realidade local mal conhecida e a atração pelos modelos europeus. Desta forma, segundo Antonio Cândido, ao lado do nacionalismo, há no Romantismo da Europa o norte brumoso, a Espanha, sobretudo a Itália, vestíbulo do Oriente byroniano. Em Álvares de Azevedo e Castro Alves perpassam, em contraposição às belas filhas do sul, as italianas, brancas e hieráticas ou dementes de paixão, encarnando as necessidades de sonho e fuga, libertação e triunfo dos sentidos, transplantadas, como flores raras, das páginas de Byron para os jardins da imaginação tropical. É fato que o Romantismo brasileiro, na sua fase ultra-romântica, vai beber na fonte byroniana e reproduzir aqui o gosto pelo gótico, pelo satânico, pelo amor impossível, pela mulher idealizada, pela morte, como bem fez Álvares de Azevedo. Porém, o norte brumoso mirado por Macedo em A Nebulosa vai muito além da Itália, chega até as terras altas e lendárias da Escócia. A tragicidade, o horror, o sentimentalismo exacerbado dos indivíduos, o desespero exagerado das ações, a descrição e construção do cenário e das personagens, que não são de lugar nenhum, a posição ativa da mulher que tem o poder de decisão, tudo isso somado a uma narrativa heróica, faz com que pensemos em uma outra tradição que nos remete a um outro tempo ou estilo de narrativa. Em A Nebulosa o traço dominante é o contraste entre o efeito produzido pela paixão sobre o homem, no caso o Trovador, que é a personificação do amor desprezado com seu egoísmo e orgulho ferido e esse mesmo sentimento agindo sobre o coração de uma mulher, que se traduz numa resignação e devoção que chegam à loucura, como é o caso 57 | P á g i n a Revista Guavira-Letras: “Poemas Narrativos”, Mestrado em Letras, Campus de Três Lagoas, UFMS, Vol. 01, n. 09 (2005 - 2009 Três Lagoas). SALES, J. Batista de. (Org.).Semestral (Jul./Dez. 2009) – Versão On-line.(Versão On-Line http://www.revistaguavira.com.br; ISSN: 1980-1858) Guavira no9 da Doida, apaixonada pelo Trovador. Este, por sua vez, devota seu amor pela Peregrina, mulher que não se deixa dominar pelo sentimentalismo, inacessível e insensível ao amor. É a dama sem misericórdia, retratada por Keats. O tema do amor impossível em A Nebulosa já havia sido esboçado na poesia Não Sei, também de Joaquim Manuel de Macedo, publicada na revista Guanabara em 1850. Tanto em A Nebulosa quanto em Não Sei um homem tem uma louca paixão por uma virgem bela, inacessível e impiedosa. Em troca, ambos não recebem nem mesmo a esperança de amor futuro. A Peregrina, mulher fatal, responde com “Jamais” e a virgem com “Não sei”. Depois de insistirem por longos anos, os dois homens decidem morrer. A virgem do poema Não Sei sente remorsos e vai à procura do jovem apaixonado; a Peregrina, de A Nebulosa, ouve uma voz do céu e corre atrás do Trovador para salvá-lo da morte. Ambas chegam tarde demais. Detalhe da obra La belle dame sans merci, de autoria do artista inglês Frank Dicksee (1853-1928), baseada no poema homônimo de John Keats, publicado em 1819, acompanhado de versos do poema. A mulher fatal, mito de feminilidade prepotente e cruel, que leva os homens à ruína e morte, existiu ao lado de mulheres angelicais no início do Romantismo, até cerca da metade do século XIX. O Trovador, em A Nebulosa, chega a recorrer a uma feiticeira para que ela produza um filtro do amor, permitindo-nos lembrar do filtro do amor de Tristão e Isolda. Diferentemente de muitos casais apaixonados, como Lancelote e Guenevere, Romeu e Julieta, Paolo e Virgínia, cujo amor encontra obstáculos externos, a Peregrina e o Trovador sequer chegam a formar um par, pois a Peregrina não ama o Trovador, o jamais proferido por ela é o jamais amar. Mas o importante no Romantismo não é o motivo da negação do amor e sim a impossibilidade de realização desse amor, ideia resumida num dos versos de A Nebulosa : “Amei nessa 58 | P á g i n a Revista Guavira-Letras: “Poemas Narrativos”, Mestrado em Letras, Campus de Três Lagoas, UFMS, Vol. 01, n. 09 (2005 - 2009 Três Lagoas). SALES, J. Batista de. (Org.).Semestral (Jul./Dez. 2009) – Versão On-line.(Versão On-Line http://www.revistaguavira.com.br; ISSN: 1980-1858) Guavira no9 mulher um impossível”. O que interessava era a situação arquetípica do amor impossível, e isso está bem representado nos dois poemas de Macedo. Esse mesmo tema do amor impossível aparece na ópera O Trovador, de Giuseppe Verdi, composta em 1852 e baseada no drama teatral EL Trovador, de Antônio Garcia Gutierrez, estreado em Madri em 1836. Em El Trovador também temos, como em A Nebulosa, as mesmas paixões exacerbadas, o amor impossível e a morte trágica no final. Tanto no poema de Macedo quanto no drama espanhol o número de personagens é igual, a diferença é que em A Nebulosa temos um triângulo amoroso composto por duas mulheres e o trovador, além da mãe, já na peça o triângulo se faz com dois homens e uma mulher. O triângulo não é perfeito em nenhuma das obras. No poema, a Doida ama o Trovador que ama a Peregrina que não ama ninguém. No drama, o Conde ama Leonora que ama o Trovador que a ama também. Há sempre empecilhos à realização do amor. A Peregrina não pode amar, posto que fez um juramento no leito de morte da mãe. Leonora também não pode se realizar, embora tenha amor no coração, pois está impedida pela situação em que se colocou. Ambas são vítimas, cada uma a seu modo, embora a Peregrina pareça tirana e impiedosa e Leonora assemelha-se a uma vítima misericordiosa. Para o ser romântico, o obstáculo, o impedimento do amor, é motivo de sofrimento, porém, não amar – e também não ser amado, é verdade- é pior do que qualquer castigo. Embora o tema do amor impossível tenha se cristalizado como característica fundamental do Romantismo, há um conjunto muito mais amplo de elementos a serem observados. A Nebulosa é composta por seis cantos e epílogo, em versos endecassílabos. O Jornal do Commercio, de 23 de outubro de 1857, classificou o poema como endecassílabo solto. Versos soltos, de acordo com o Tratado de Versificação de Olavo Bilac 16, são aqueles sem rima, em voga entre os clássicos portugueses e brasileiros. Outro crítico que classificou o poema como escrito em versos endecassílabos soltos foi Innocêncio Francisco da Silva, no seu Dicionário Bibliográfico Portuguez. Porém, não faz mais nenhum comentário sobre a metrificação nem cita exemplos. Sílvio Romero, na sua História da Literatura Brasileira, de 1888, dizia que “A Nebulosa são escritas [sic] em versos, nomeadamente endecassílabos não rimados, 16 BILAC, Olavo. GUIMARÃES, Passos. Tratado de Versificação. Rio de Janeiro: Francisco Alves, 9ª ed., 1949, 1ª edição 1905. 59 | P á g i n a Revista Guavira-Letras: “Poemas Narrativos”, Mestrado em Letras, Campus de Três Lagoas, UFMS, Vol. 01, n. 09 (2005 - 2009 Três Lagoas). SALES, J. Batista de. (Org.).Semestral (Jul./Dez. 2009) – Versão On-line.(Versão On-Line http://www.revistaguavira.com.br; ISSN: 1980-1858) Guavira no9 pode-se dizer que a tal ou qual ênfase que se lhes nota na forma era realmente devida à influência indicada de Magalhães e do autor das Brasilianas”. 17 Romero está se referindo a A Confederação dos Tamoios, de Gonçalves de Magalhães, publicado em 1856, poema épico em dez cantos, com versos endecassílabos soltos e a Porto-Alegre, que publicou Brasilianas, em 1843, com o mesmo número de sílabas poéticas. Todos os que buscaram classificar o poema, citados acima, concordam com o endecassílabo solto ou branco ou não rimado. Entretanto, diante de versos como “Flor que veneno nos perfumes verte”, tenderíamos hoje a dizer que se trata de decassílabos. Para entendermos a classificação do poema de Macedo como endecassílabo é necessário que recorramos à métrica espanhola em oposição à francesa. Até a metade do século XIX existiam dois padrões de contagem de metros, o agudo ou francês e o grave ou espanhol. No primeiro, conta-se até a última sílaba tônica, desprezando-se as átonas seguintes. Tal padrão baseava-se no fato de a maior parte das palavras francesas serem oxítonas (ou agudas, na terminologia da época). No segundo padrão, adiciona-se uma sílaba além da última forte do vocábulo, contando sempre uma sílaba a mais se o final do verso for agudo – ou seja, terminado em palavra oxítona - e despreza uma sílaba se for esdrúxulo – ou seja, se a última palavra for proparoxítona. Por serem graves – ou paroxítonas - a maioria das palavras espanholas, adotou-se este padrão métrico. Grande parte dos vocábulos portugueses são paroxítonos e, neste caso, seria natural a utilização do modelo espanhol. De fato, os versos eram contados segundo a classificação espanhola até meados do século XIX, quando houve a chamada “Reforma de Castilho” 18, em que ele propôs a mudança para o padrão agudo ou francês e, a partir daí, foi sendo progressivamente adotado pelos metrificadores. 19 Quando contamos as sílabas dos versos do poema de Macedo atualmente, contamos 10 sílabas, porque seguimos ainda hoje a proposta de Castilho, mas no século 17 ROMERO, Silvio. História da Literatura Brasileira. Rio de Janeiro: José Olympio, 1953. Quando falamos em “Reforma de Castilho” estamos nos referindo à obra de Antônio F. de Castilho,Tratado de Metrificação Portuguesa, 1851,1ª edição. 19 Em 1882 ainda havia discussões a respeito da contagem das sílabas no Brasil. Bernardo Guimarães, no prefácio a Folhas de Outono, publicado em 1883, depois de dizer que “os brasileiros adotaram,abraçaram com um fervor, um fanatismo tal” [ o alexandrino], cita o próprio Castilho como exemplo de perfeição nos versos endecassílabos segundo o modelo espanhol. “ É dele mesmo, desse bardo imortal, que vou tirar o exemplo do quanto é superior o nosso verso de onze sílabas ao de treze para todos os assuntos e principalmente para assuntos elevados. Quem não tem lido e não sabe até de cor os Ciúmes do bardo? Esses magníficos hendecassílabos, apesar de não rimados, gravam-se por si mesmos na memória do leitor.(...)” Ora, o Ciúmes do Bardo, de Castilho, foi publicado em 1836 seguindo o padrão de metrificação espanhola, com onze sílabas, dez na francesa. Quando ele diz “treze para todos os assuntos” está se referindo ao alexandrino que, sabemos, tem doze sílabas. Isto significa que no final do século XIX muitos autores ainda preferiam o modelo espanhol à inovação de Castilho proposta em 1851. 18 60 | P á g i n a Revista Guavira-Letras: “Poemas Narrativos”, Mestrado em Letras, Campus de Três Lagoas, UFMS, Vol. 01, n. 09 (2005 - 2009 Três Lagoas). SALES, J. Batista de. (Org.).Semestral (Jul./Dez. 2009) – Versão On-line.(Versão On-Line http://www.revistaguavira.com.br; ISSN: 1980-1858) Guavira no9 XIX a maior parte dos críticos identificou 11 sílabas métricas em cada um dos versos que compõem A Nebulosa. A maioria das terminações dos versos do poema de Macedo é paroxítona, raras vezes encontramos uma palavra proparoxítona ou oxítona. Basta observar como exemplo a fala da personagem Doida, no Canto II, XX, de A Nebulosa: “Sinistro riso, que é descer da terra! Volta a cabeça e disfarçada enxuga Lágrima insana, que um mistério envolve, E enfim tremendo, mas depressa, fala.” O poema foi então classificado na época, por vários críticos, como endecassílabo solto, por seguir o modelo de metrificação espanhola e não francesa e por não ser rimado. A Nebulosa é um poema narrativo. Na época de sua publicação foi classificado no gênero poema-romance. Apareceu inicialmente na revista A Marmota, 28/08/1857; depois, respectivamente, nos periódicos, antologias, dicionários e histórias literárias: Correio Mercantil, 27/09/1857 e 18/10/1857; Revista Literária e Recreativa, 03/12/1857; INNOCÊNCIO DA SILVA, Francisco, Dicionário Bibliográfico Portuguẽs, 1858; BARRETO, Fausto e LAET, Carlos de. Anthologia Nacional, 1895, p13; BLAKE, Francisco Victorino Alves Scramento. Dicionário Biobibliográfico Brasileiro, 1898, p 183; MAGALHÃES, Basílio de. Bernardo Guimarães, 1926; CANDIDO, Antônio. Formação da Literatura Brasileira: momentos decisivos, s/d, p 98-101; STEGAGNO PICCHIO, Luciana. História da Literatura Brasileira, 1977, p 169. Os poemas narrando os feitos das antigas tribos gaélicas foram produzidos em prosa ou poderíamos dizer poemas em prosa. Difundido por toda a Europa, Ossian foi encontrar em Goethe a sua popularização, quando traduziu em prosa trechos ossiânicos e os incluiu em Werther, considerada a primeira obra romântica. Uma das características mais originais da obra poética do Romantismo europeu manifesta-se num tipo de composição lírica épico-romanesca, apelidada, conforme a nacionalidade, de balada, lied, romance, cantares, ou, muito simplesmente, poema. Se podemos dizer que há uma unidade de caráter romântico, o mesmo não se pode dizer em relação aos diversos gêneros praticados. Como resumir e separar as obras poéticas, as obras em prosa ou as 61 | P á g i n a Revista Guavira-Letras: “Poemas Narrativos”, Mestrado em Letras, Campus de Três Lagoas, UFMS, Vol. 01, n. 09 (2005 - 2009 Três Lagoas). SALES, J. Batista de. (Org.).Semestral (Jul./Dez. 2009) – Versão On-line.(Versão On-Line http://www.revistaguavira.com.br; ISSN: 1980-1858) Guavira no9 peças de teatro, quando Romantismo significa renovação poética? Todos os poetas têm um propósito comum de fusão dos gêneros em proveito de uma expressão cada vez mais perfeita. Os poetas não foram exclusivamente líricos, cultivaram também a epopéia, a poesia filosófica ou política, a sátira. Byron, um dos mais líricos, fez surgir de sua lírica uma outra inspiração, a satírica e política, como em D. Juan. Se temos exemplos dessa fusão de gêneros o mesmo não se pode dizer sobre uma teoria dos gêneros, pelo menos em Portugal e no Brasil. O que temos é uma teorização importada: Schiller, os irmãos Schlegel, Victor Hugo, reconstituída a partir dos prefácios, críticas ou artigos, tentando partir, quando possível, do legado do Romantismo europeu. Nesses textos encontraremos referências aos três grandes gêneros que a teorização romântica reencontrou: o lírico, o narrativo e o dramático. Porém, essa sistematização não é tão simples assim, pois ainda existe a tentativa de classificação dos gêneros, mesmo com a recusa dos gêneros herdados do classicismo. Como delimitar a fronteira entre poesia e prosa, poema narrativo, drama e romance? Alexandre Herculano, no prefácio a Eurico, o Presbítero, ficou na dúvida se seu livro se tratava de “crônica-poema, lenda ou o que quer que seja”. 20Quando Garrett, na sua “Introdução” ao Romanceiro dizia que “o que é preciso é estudar as nossas primitivas fontes poéticas, os romances em verso e as lengendas em prosa, as fábulas e crenças velhas, as costumeiras e as superstições antigas”, 21 ele estava se referindo a formas (romances em verso, lendas em prosa) e a conteúdos (crenças, superstições). Sendo assim, podemos dizer que o Romantismo tentou adaptar formas antigas a conteúdos novos e velhas histórias a novos gêneros. O poema narrativo, também conhecido como poema byroniano, pois foi com Byron que esse gênero se popularizou, é descendente de uma fórmula já experimentada no século XVIII com o ossianismo. A tradição de se recuperar as velhas baladas folclóricas escocesas do fim do século XVIII levou Walter Scott a produzir baladas de inspiração pessoal ou poemas que provêm da imaginação do autor, como em A Balada do Último Menestrel, e depois evoluir para o poema narrativo ornado de elementos líricos e populares, como em A Dama do Lago, fórmula do romance em verso ou poema-romance. No entanto, a obra-prima do gênero foi O Canto do Velho Marinheiro, de Coleridge, publicado em 1798, com profundos vínculos intertextuais com o ossianismo e as baladas alemãs. 20 21 Cf. Dicionário do Romantismo Literário Português, p. 212. Cf. Dicionário do Romantismo Literário Português, p. 212. 62 | P á g i n a Revista Guavira-Letras: “Poemas Narrativos”, Mestrado em Letras, Campus de Três Lagoas, UFMS, Vol. 01, n. 09 (2005 - 2009 Três Lagoas). SALES, J. Batista de. (Org.).Semestral (Jul./Dez. 2009) – Versão On-line.(Versão On-Line http://www.revistaguavira.com.br; ISSN: 1980-1858) Guavira no9 Entre os precursores do poema narrativo temos Oberon, do alemão Wieland, publicado em 1817, poema com versos endecassílabos. É interessante observar que o Romantismo, apesar de ter inovado e renovado as formas literárias quanto ao gênero, manteve uma posição conservadora em se tratando da versificação, cujo modelo era o endecassílado. Em 1825, Almeida Garrett compõe o seu poema narrativo Camões, produzido em dez cantos e mostrando forte diálogo com as obras de Byron e Walter Scott. Ainda em língua portuguesa temos Ciúmes do Bardo e Noite do Castelo, de Antônio Feliciano de Castilho, poemas endecassílabos, o primeiro com seis Cantos e o segundo com quatro. É digno de nota o fato de que a Marquesa de Alorna traduziu para o português poemas como Oberon, diretamente do alemão, e Darthula, de Ossian, nas suas Obras Poéticas, de 1844. 22 Outro poema narrativo e de vastas dimensões, chamando a atenção pela cor local, a alma nacional, amor e fatalidade, é O Mouro Enjeitado, poema endecassílabo em doze cantos, publicado pelo Duque de Rivas, em 1834. Neste mesmo ano, Novalis apresentou o seu Heinrich Von Ofterdingen, poema em prosa com uma certa meditação filosófica, carregado de lirismo e amor. Há nesse poema uma metáfora a uma flor azul. Nela, amor e morte se misturam e se confundem. Na Itália, Il Trovatore, de Berchet, é uma mistura de balada e romance que procura contar, à maneira lírica, aventuras sentimentais. A época romântica é, portanto, uma verdadeira encruzilhada de gêneros e reflete todas as tendências líricas da época. A Nebulosa certamente faz parte dessa lista de poemas narrativos exemplares e como disse Antônio Cândido, o poema é “talvez o melhor poema-romance do Romantismo” 23 . Outro ponto fundamental a ser destacado em A Nebulosa é o seu caráter melancólico. Este aspecto sentimental também é atribuído a poetas como Ugo Foscolo, Vittorio Alfieri e Leopardi, cujo Amor e Morte se percebe claramente no poema de Macedo. A poesia sepulcral ou tumular era propícia aos sentimentos de melancolia, solidão e silêncio próprios da natureza romântica, daí a escolha do cemitério como cenário privilegiado. Já no século XVIII, apareceram poemas de caráter noturno ou mesmo sepulcral. Porém, na primeira metade do século XIX, esse tipo de poesia proliferou. A escola ultra-romântica caracteriza-se por uma reflexão doentia sobre a vida, tendo como único sentido a morte e sobre esta como destino último destruidor de 22 23 ALORNA, Marquesa de. Obras Poéticas. Tomo III. Lisboa: Imprensa Nacional, 1844. CANDIDO, Antônio. Formação da Literatura Brasileira. São Paulo Livraria Martins Editora, s/d, p 98. 63 | P á g i n a Revista Guavira-Letras: “Poemas Narrativos”, Mestrado em Letras, Campus de Três Lagoas, UFMS, Vol. 01, n. 09 (2005 - 2009 Três Lagoas). SALES, J. Batista de. (Org.).Semestral (Jul./Dez. 2009) – Versão On-line.(Versão On-Line http://www.revistaguavira.com.br; ISSN: 1980-1858) Guavira no9 todas as esperanças de uma felicidade terrena. Cultivaram um pessimismo sem remissão, um desencanto perante a vida, a pátria e o mundo, cujas conseqüências pareciam ter como único resultado o desgosto, a frustração e a morte. Dos Sepulcros, de Ugo Foscolo e Amor e Morte, de Leopardi, são exemplos de obras pré-românticas que expressaram essa poesia tumular e que influenciaram diretamente toda a poesia melancólica e sepulcral do ultra-romantismo. Em A Nebulosa, um dos cantos é intitulado “Nos Túmulos”. Nele, o Trovador visita o túmulo de seu pai e expressa toda a sua desesperança sobre a vida e o seu desejo pela morte: Não posso mais com a vida! odeio o mundo, Que nas garras me aperta, e despedaça; Odeio a terra... não! meu pai, perdoa, Eu amo a terra, que teus restos cobre! Eu só detesto a vida; em prazo breve Desse fardo pesado hei de livrar-me. Pela última vez o sol no ocaso Vi-o inda há pouco; despontar brilhante Não o verei mais nunca; a noite é esta Sem termo para mim; a eternidade Das trevas abafou-me antes da morte. A Nebulosa, Canto IV, E. X Mais ao gosto romântico também encontramos em Dos Sepulcros uma extraordinária tristeza, subordinando o elemento do cenário ao sentimento de piedade contido nos versos All’ombra de’cipressi e dentro l’urne Confortate di pianto è forse il sonno Della morte men duro? Ove piú il Sole Per me alla terra non fecondi questa Bella d’erbe famiglia e d’animali, E quando vaghe di lusingheinnanzi E la mesta armonia Che lo governa, Né piú nel cor mi parlerà lo spirto Delle virgine Muse e dell’amore, Único spirto a mia vita raminga, Qual fia ristoro a’di perduti um sasso Che distingua lê mie dalle infinite Ossa Che in terra e in mar semina morte? 24. É o que percebemos também Ossian, onde o horror da noite é gratuitamente acrescido com o aproximar-se do cortejo fúnebre que, no anonimato, presta uma aura de calafrio àquele cenário: 24 FOSCOLO, Ugo. Dei Sepolcri. 64 | P á g i n a Revista Guavira-Letras: “Poemas Narrativos”, Mestrado em Letras, Campus de Três Lagoas, UFMS, Vol. 01, n. 09 (2005 - 2009 Três Lagoas). SALES, J. Batista de. (Org.).Semestral (Jul./Dez. 2009) – Versão On-line.(Versão On-Line http://www.revistaguavira.com.br; ISSN: 1980-1858) Guavira no9 Triste è la notte, tenebria s’aduna Tingesi il cielo di color di morte: Qui non si vede né Stella, né Luna, Che metta il capo fuor delle sue porte. .......... Su quell’alber cola, sopra quel tufo, Che copre quella pietra sepolcrale, Il lungo-urlante ed inamabil gufo L’era funesta col canto ferale. 25 Enquanto em Ossian a natureza é estática, barreira que impede o poeta de transcender, para Leopardi e Macedo existe uma simbiose e cumplicidade entre homem e natureza: “Oh natureza! minha dor insultas! Na tua placidez leio um sarcasmo; Abomino-te assim, amo-te horrível. Que quer dizer um mar que não rebrame, Uma terra que nada em luz de encantos Um céu que tormentoso não ribomba Quando no coração temos o inferno?... Oh!... mil vezes o horror e a tempestade! 26 Assim como foram os episódios melodramáticos que encantaram o leitor préromântico do século XVIII e firmaram a popularidade de Ossian, foram as tendências fundamentais da alma romântica, impregnadas em A Nebulosa, que garantiram o sucesso do poema em meados do século XIX. A Nebulosa dialoga com uma tradição de poesia que influenciou toda uma época. Assim como é de fundamental importância o papel de alguns românticos, tais como, Leopardi, Foscolo, Lamartine, Chateaubriand, Victor Hugo, Goethe, Hoffman,Walter Scott, Byron, Coleridge, Keats, que disseminaram o pensamento romântico, também é importante, para uma melhor compreensão do ultra-romantismo brasileiro, conhecer o poeta Macedo e trazer à luz A Nebulosa, dando a ela um lugar de destaque entre as melhores produções românticas brasileiras. REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS ALFIERI, Vittorio. Opere. Milano: Rizzoli, 1940. CANDIDO, Antônio. Formação da Literatura Brasileira. São Paulo: Martins Editora, 3º volume, s/d., 1ª edição. 25 OSSIAN. LA Notte. Tradução de Melchior Cesarotti. Opere dell’abate Melchior Cesarotti. V. IV, tomo III, p. 369. 26 MACEDO, Joaquim Manuel de. A Nebulosa. Canto I, A Rocha Negra, XVIII. 65 | P á g i n a Revista Guavira-Letras: “Poemas Narrativos”, Mestrado em Letras, Campus de Três Lagoas, UFMS, Vol. 01, n. 09 (2005 - 2009 Três Lagoas). SALES, J. Batista de. (Org.).Semestral (Jul./Dez. 2009) – Versão On-line.(Versão On-Line http://www.revistaguavira.com.br; ISSN: 1980-1858) Guavira no9 BILAC, Olavo. GUIMARÃES, Passos. Tratado de Versificação. Rio de Janeiro: Francisco Alves, 9ª ed., 1949, 1ª edição 1905. BINNI, W. “Leopardi e la poesia del secondo Settecento” In: Leopardi e il Settecento. Atti del I Convegno internazionale di studi leopardiani. Firenze: Olschki, 1964, p 77-132. CESAROTTI, Melchiorre. 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(Org.).Semestral (Jul./Dez. 2009) – Versão On-line.(Versão On-Line http://www.revistaguavira.com.br; ISSN: 1980-1858)