A tutela jurídica do afeto na unidade familiar
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A tutela jurídica do afeto na unidade familiar
A tutela jurídica do afeto na unidade familiar: transformações tangentes ao caráter de filiação e a solidificação da socioafetividade como valor de família1 Ramon Neves Alló RABELO1, [email protected]; Emílio Mannarino NETO1; Andrea Duvanel CIRIBELLI1 1. Graduandos do 5º período de Direito da Faculdade de Minas (FAMINAS), Muriaé (MG). RESUMO: O presente estudo delineou as manifestações do instituto familiar, tratando da filiação e suas manifestações ao longo da história; também apresenta breve análise da proteção jurídica da família, desde o patriarcado até o alcance do justo material que se encontra na atualidade. Desta forma, tem-se a passagem pela observação da presunção jurídica de paternidade, bem como pela realidade biológica alcançada pelos avanços tecnológicos, mas, acima de tudo, pela visão da realidade socioafetiva, a paternidade sustentada no amor. Palavras-chave: família, filiação, paternidade, afetividade, Direito. ABSTRACT: The legal protection of affect in the family unit: transformations tangent to the character of membership and the solidification 1. Realizado sob orientação do professor Fernando Gomes Schettini. of socioaffectivity as family value. This study focuses on the manifestations of the family institution, dealing with the membership and its manifestations throughout history; also presents a brief analysis of the legal protection of the family, from patriarchy to the extent of fair material that is encountered nowadays. This way, one has to pass by observing the legal presumption of paternity, as well as by the biological reality achieved by technological advances, but, above all, by the vision of socioaffective reality, the paternity sustained in love. Keywords: family, parentage, paternity, affectivity, Right. RESUMEN: La protección jurídica de los afecta en la unidad familiar: transformaciones tangente al carácter de la pertenencia y la solidificación de socioafectividad como el valor de la familia. Este estudio se centra en las manifestaciones de la institución familiar, que trata de los miembros y sus manifestaciones a lo largo de la historia, también presenta breve análisis de la protección jurídica de la familia, desde el patriarcado en la medida justa de material que se encuentra en la actualidad. De esta manera, uno tiene que pasar por la observación de la presunción legal de paternidad, así como por la realidad biológica logrado por los avances tecnológicos, pero, sobre todo, por la visión de la realidad socioafectiva, la paternidad sostenida en el amor. Palabras clave: familia, filiación, paternidad, afectividad, Derecho. Introdução O presente opúsculo apresenta uma análise breve do instituto familiar, visando trazer um pouco de seu aspecto histórico, bem como a evolução longa e paulatina que foi lograda por este, buscando levantar desde sua origem patriarcal e econômica até os panoramas mais atuais onde a família se encontra consolidada 72 MURIAÉ – MG nos princípios estruturais da afeição e da ajuda recíproca. Também serão aqui apresentados, como temas de grande importância, mudanças no que tange à filiação, trazendo como bojo ilustrativo a família dos romanos, em que o pater famílias detinha do poder de família sobre todos aqueles que se encontravam subordinados ao seu poder patriarcal, bem como aquela dos gregos em que se considerava, mormente como filho aquele que professava a mesma religião e culto do pai. Tem-se ainda uma breve levantada dos aspectos da filiação jurídica, que é aquela que se tem declarada normativamente, ou seja, pelo direito, bem como a filiação biológica que veio a ter maior segurança em sua constatação com o advento do exame de DNA, assim como o pronto de principal importância que é a filiação socioafetiva, que é aquela que trata das relações de amor e afeto que se desenvolvem entre o adulto e a criança que não possuem vínculo biológico, mas que encontram no convívio a gênese do amor verdadeiro em família. Como ponto complementar e não de somenos importância, fez-se uma análise legal e jurisprudencial, ainda que breve, para assim obter uma visão objetiva da realidade, constatando, desta forma, a evolução lograda pela figura da família no que tange ao aspecto protetivo e garantidor da dignidade do filho por afeição e sua total equiparação aos demais. I– Família na antiguidade 1.1 – A família romana A família romana se assemelhava incontestavelmente àquela dos gregos em seu surgimento, posto ser esta totalmente voltada ao culto domiciliar, isto é, a existência da sociedade estava voltada para a figura da família como centro de reunião dos poderes civis, políticos e religiosos, onde o comando caberia a um ente predominantemente patriarcal. Na sociedade romana, este era denominado pater famílias, o qual possuía o poder supremo sobre seus membros. A família romana era constituída pelo patriarca e todos aqueles que a este se viam ligados de alguma maneira (MALUF, 2010). Logra-se deduzir, portanto, que a família que se via submetida ao comando do patriarca não haveria de possuir necessariamente vínculo algum de consanguinidade, visto que todos a ele vinculados, inclusos nestes seus escravos, servos, seus filhos, assim como as esposas destes estariam totalmente subjugados, calcados por seu poder imperioso e supremo. Aqui, como na sociedade grega antiga, o patriarca poderia dispor dos integrantes de sua família como se bens REVISTA JURÍDICA DA FAMINAS – v. 8, n. 1, jan.-dez. de 2012 73 fossem, levando consigo poder total sobre toda forma de disposição (NOGUEIRA, 2001). Ao exame da Lei das XII Tábuas, infere-se que a hierarquia com a qual se via construída a consciência da sociedade romano-clássica era aquela que retirava dos membros da família os seus direitos e os declaravam nas mãos de um só, ou seja, a única figura a possuir direitos dentro do panorama romanoclássico era aquela do pater famílias, sobrestando todas as outras possibilidades de emanação de qualquer direito. O filho tido de casamento legítimo estaria em totalidade submetido ao poder de seu pai, o qual sobre ele possuía o poder de vida e morte, bem como também poderia vendê-lo se assim lhe aprouvesse. Ainda na época da lex duodecim tabularum, pode-se verificar talvez a gênese da presunção pater is est, presunção esta mediante a qual se conclui que é filho aquele que tenha nascido de casamento legítimo, ainda que o nascimento se desse dez meses depois de dissolvido o matrimônio, chamando-se este de filho póstumo (BUENO, 2012). Há detalhes que demonstram certo arcaísmo da civilização romana com relação à grega no que diz respeito à família, posto haver desenvolvimentos similares. Na civilização romana, a lei preconizava que o pater jamais libertaria o filho, isto é, que além de não constituídos laços familiares de afetividade, também não poderia ser libertado, ainda que assim o pai desejasse, pois a lei vedava que qualquer coisa similar acontecesse, visto que a permissão não o era legada, somente encontrando a liberdade o filho quando da morte de seu pai. Já no direito grego, quando o jovem chegava a idade adulta e se visse totalmente apto física e mentalmente para os atos da vida civil, seria ele libertado dos poderes do pai, para assim gozar de sua independência (MOMMSEN, 2003). Ensinava Bertolini, que buscando a evolução do instituto familiar e também da legislação romana, o legislador criou mecanismos para combater o costume que de acordo com a exegese de seu tempo iria de encontro à natureza. Neste ponto, foram criadas duas brechas que permitiam ao pater libertar os seus, ao contrário do que versavam as leis e os costumes. Em um destes mecanismos, o pai que vendesse o filho por três vezes, poderia então o libertar do poder familiar. Vislumbra-se, desta forma, já certo progresso no que diz respeito à família e a consideração entre eles, pois o pai poderia forjar essas vendas e o filho estaria destarte liberto perante a lei (BERTOLINI, 1966). 1.1 – Família grega A família grega também era extremamente patriarcal, porquanto o homem era o detentor das vontades de todos os membros, sendo ele o juiz, o sacerdote e aquele que teria o controle de vida e morte sobre todos aqueles 74 MURIAÉ – MG que o cercavam. Um aspecto bem curioso era o fato de que o parentesco ao tempo dos gregos não se dava pela consanguinidade, mas sim pelo culto que professavam, por possuírem os mesmos deuses, sendo a linhagem praticamente transferida somente ao descendente varão, ao passo que a virago quando se casasse deixaria de fazer parte da família do pai para integrar a família do marido (COULANGES, 2011). Segundo Aristóteles (384-322 a. C), o poder supremo sobre a mulher e filhos era cabível somente ao homem, pois já que detentor dos poderes político e civil no que tange à figura da mulher e poder real no com relação aos filhos. Presume-se que o pai traga em si qualidades responsáveis por diferenciálo dos filhos. Portanto, cabalmente seria competência dele exercer o destino de comando, o poder de mandar, pois que sendo o ser mais velho, deveria se sobrepor aos seres incompletos (ARISTÓTELES, 2007). Infere-se, pois, da leitura do mestre filósofo e do eminente historiador, que a família grega era regida por um costume donde não havia afeição, sendo a mesma sustentada por motivos egoísticos e econômicos, pois o objetivo da família na antiguidade grega era tão somente a perpetuação da existência da família daquele que era o chefe. O desejo do patriarca era alguém para dar continuidade ao seu culto e prestar-lhe homenagens após a morte. Versava Fustel de Coulanges que o filho, nesta época, seria propriedade do próprio pai, pois não haveria outra opção a ele, a não ser seguir a mesma linha, os mesmos cultos e costumes do pai. Importa salientar ainda, o fato de que não poderia possuir ele família por parte materna, porquanto ao se casar, como já suprassalientado, a mulher renunciava ao culto e a família de seu pai. Neste instituto, não haveria a filiação como um estado natural, mas sim como algo egoístico, porquanto possível concluir que o filho era para a família algo, um objeto talvez, do qual se esperava que fizesse aquilo que o patriarca quisesse, sendo este o que deveria ver seus interesses sempre sobrepor aos demais membros. Ainda os filhos que conseguiam a emancipação ou se desvinculavam do culto paterno já não possuíam tanto vulto para a família, ao passo que os adotados e que passassem a professar o mesmo culto teriam algo de maior valor que o sangue, tornando-se assim verdadeiros filhos e membros daquela família (COULANGES, 2011). Destarte, vislumbra-se que, na família grega, bem como na paternidade, senão, mormente esta, verifica-se como uma situação artificial, em que não se encontrava vestígio de afeição entre seus membros, pois os integrantes da família eram como bens, mediante os quais seria tirado o melhor proveito possível por parte de seu senhor e patriarca. Uma formação humana de cálculo e fria, em que não haveria nem mesmo a presunção de afeto, pois a REVISTA JURÍDICA DA FAMINAS – v. 8, n. 1, jan.-dez. de 2012 75 família não era um instituto que buscaria o bem comum, mas o bem subjetivo de um único indivíduo. Era, acima de tudo, um núcleo de germinação de diferenças por tratar também com grande diferenciação os filhos e filhas, estas ainda nunca sendo tratadas como membro da família, pois se percebe que a mesma só teria um culto realmente quando se casasse, desvencilhando-se totalmente da casa paterna. Esta ideia de centralização do poder na figura paterna se faz tão presente na antiguidade, que até mesmo Homero em sua Odisseia, quando da chegada à terra dos Ciclopes descreve as características do patriarcado grego quando faz referência ao poder de império daqueles. Aduz que eles eram os senhores soberanos de seus filhos e mulheres, prescrevendo as suas próprias leis como bem entendessem sem nem mesmo se preocuparem uns com os outros, ou seja, exercendo cada qual o seu poder particular sobre a família (HOMERO, 1978). II – Mudanças na família do século XX e XXI 2.1 – Perspectiva patriarcal do Código Civil de 1916 Quando da leitura do art. 337 do Código Civil de 1916, percebese a diferença no tratamento da família, pois àquele tempo buscava-se tão somente a manutenção desta, não importando muito as realidades biológica ou afetiva, ficando no topo das importâncias a dita realidade jurídica, tendo a presunção de que seria pai aquele que tendo se casado, ainda que fosse esse casamento nulo, viesse a ter filhos gerados pela sua mulher na constância deste casamento. Segundo afirma Jacqueline Filgueras Nogueira (2001, p. 65): O estabelecimento da filiação através da incidência da presunção pater is est, pelo qual se atribui ao marido da mulher a paternidade dos filhos gerados por ela, na constância do casamento, é a essência da legislação presente no Código Civil pátrio. O legislador inclinou-se para as propostas albergadas no Código Napoleônico, e remonta justamente à concepção de família patriarcal e hierarquizada, onde a única forma de constituição da família era através do casamento, fonte dos filhos legítimos, pois os oriundos de relacionamentos extramatrimoniais eram considerados ilegítimos e ignorados pelo ordenamento jurídico. 76 MURIAÉ – MG Possuía-se então, a este tempo, a presunção de paternidade, bem como trazia a lume as diferenciações, que em nada haviam de coadunar com a realidade, de que existiriam por meio desta realidade jurídica e mera presunção legal a existência de filhos legítimos e ilegítimos (art. 332, CC/16), estes não tidos na constância do vínculo matrimonial, pois o matrimônio sim, este se fazia como a fonte da realidade jurídica, o que tornava essa “realidade” a única possível. Ainda como se conclui da hermenêutica do art. 358 do CCB/16, percebe-se total ausência de bom senso ao deixar a mercê de sua própria sorte as crianças que, porventura, viessem a nascer de relação que se dera entre homem casado e mulher solteira, relação esta considerada adulterina, bem como os filhos tidos de pessoas que tivessem entre si um determinado grau de parentesco que lhes impedia a possibilidade de casamento. Ainda depreende-se da lição de Nogueira (2001) que o legislador demonstrou-se totalmente incoerente e descabido em suas escolhas, posto que ao tutelar somente as relações sexuais entre pessoas casadas, age de forma antinatural ao negar a paternidade existente entre pessoas que não houvessem contraído matrimônio, criando desta forma uma maneira nefasta de tentar fazer prevalecer a falsa ética e moral em detrimento das crianças que jamais pediram para que aquela situação viesse a acontecer, sendo, a este ponto, o direito diametralmente oposto à justiça concreta (NOGUEIRA, 2001). Por se tratar de um código que se conclui estar imbuído nos costumes rígidos e formalistas trazidos dos séculos XVIII e XIX, consegue-se perceber toda influência de uma sociedade que visava resguardar a existência de uma família formalmente aceita e impregnada de dogmas religiosos, os quais se vestiam com a túnica do falso costume-moral. Ainda há outro ponto, algo que impregnou a sociedade e, por conseguinte, a ciência jurídica com esse formalismo a partir do século XIX, tentando transformar as realidades humanas em meros cálculos científicos e de prontas respostas, foi o positivismo jurídico. Como preleciona com maestria o mestre Paulo Nader (2005, p. 383) “ com a ótica das ciências da natureza, ao limitar o seu campo de observação e análise aos fatos concretos, o positivismo reduziu o significado humano”. Isso se vê confirmado no vetusto Código Civil, pois de seu art. 340, incisos I e II, encontravam- se taxativas hipóteses para que o homem pudesse contestar a filiação, podendo este fazê-lo desde que houvesse um lapso temporal sem coabitar com a mulher ou estar separado, detendo destarte de legitimidade para pretendê-lo. Não bastava nem a comprovação do adultério (art. 340, CC), tampouco a confissão por parte da mulher para afastar essa presunção legal (art. 346, CC). As medidas trazidas pela inteligência da Lei 3.071/16 substanciavam REVISTA JURÍDICA DA FAMINAS – v. 8, n. 1, jan.-dez. de 2012 77 resultados que afastavam não raras vezes a consanguinidade, desta maneira agindo em detrimento da realidade biológica no que tange a paternidade. Portanto, infere-se que o emprego da terrível realidade formal, aquela declarada positivamente pelo direito, negava totalmente a existência de justiça, visto deixar os indivíduos calcados pela lei e desprotegidos muitas vezes de uma tutela real, a qual seria a verdadeira emanação de justiça, ou seja, a equidade. Ao explicar a equidade, Aristóteles (2011, p. 121), o grande mestre, aduz que “o que origina o problema é o fato de o equitativo ser justo, porém não o legalmente justo, e sim uma correção da justiça legal”. Retomando a direção ao Código Civil de 1916, vislumbra-se uma lei de aspecto evidentemente individualista, patrimonial, estando longe do que se espera, porquanto não ofertando dignidade à pessoa, não protegendo muitas vezes a filiação biológica, bem como se fazendo como cerne de individualismo ao se preocupar somenos com as pessoas, despindo-as da correta tutela jurídica, pois o direito foi feito para o homem, não o homem para o direito. Para completar, conclui-se que “essa classificação, embora não mais vigente pelo sistema jurídico atual, além de sua importância histórica, é indispensável para a visualização dos avanços ocorridos no conceito jurídico de filho e a sua relação com a compreensão de família” (VENCESLAU, 2004). 2.2 – Contemplação evolutiva Mesmo antes da vigência do novel Código Civil, houve algumas mudanças legislativas que visavam tutelar de forma mais equânime as relações familiares de parentesco no que toca a filiação, a exemplo da Lei 6.515/77, a qual possibilitou o reconhecimento dos filhos chamados adulterinos por meio de testamento, ainda que vigente o casamento, também os equiparando aos filhos “legítimos” no que diz respeito ao direito de sucessão. Ainda nesse mesmo viés, veio a Lei n. 7.250/84, mediante a qual já seria possível o reconhecimento dos filhos ditos ilegítimos quando da separação de fato por tempo superior a cinco anos. Com extremo brilhantismo a Carta Magna de 1988 em seu art. 1º, III traz princípio basilar que passa a ser um dos sustentáculos da sociedade hodierna, qual seja a dignidade da pessoa humana, onde se veda a prática de qualquer conduta jurídica que vá de encontro as necessidades inerentes à existência da pessoa, assim como aquela que se percebe da inteligência do art. 3º,IV, CR/88, onde se substancia a vedação de criação de diferenças de quaisquer formas que sejam. De maior importância ao tema abordado se faz a menção ao art. 227, § 6º da supracitada Carta maior, texto este que foi posteriormente adotado pelo 78 MURIAÉ – MG art. 1596 do CC/02, porquanto neste caracteriza-se a igualdade plena entre os filhos, ilidindo a outrora desigualdade legal que era trazida pela antiga legislação. Desta forma, através da CR/88 foi criada a unidade de filiação, excluindo em sua totalidade as discriminações existentes outrora. Como aduz Rose Melo Venceslau (2004, p. 53): Assim, o art. 1596 do Código Civil de 2002 repete as disposições constitucionais do §6º do art.227 da Constituição Federal, com o estabelecimento da igualdade entre os filhos em direitos e qualificações. E essa é uma premissa fundamental para o desenvolvimento do sistema, assim como o Código de 1916 baseia todo o Direito de Filiação nas diferenças entre filhos legítimos e ilegítimos. Como afirma Welter (2003), o novo Código Civil, no caminho seguido pela CR/88, trouxe uma hodierna forma de ver a família de maneira mais acolhedora e amorosa, onde realmente os membros desta entidade familiar encontram fraternidade, segurança, um lugar em comum, seu “porto seguro”, onde há realmente a manifestação incondicional do amor familiar. A família então se tornou um símbolo de ajuda recíproca. De acordo com Venceslau (2004), o presente Código Civil não afastou a antiga presunção pater is est, porém a traz de forma a flexibilizar a forma com que poderá ser afastada essa presunção, sempre buscando o melhor interesse da criança. Assim, percebe-se maior interesse na busca da justiça em sua concretude, afastando o antigo formalismo que impedia a aplicação de uma regra justa. Com a entrada do vigente Código Civil, afastou-se o formalismo e a individualidade do antigo código, trazendo o atual maior preocupação com a figura do ser humano, estando assim inserida nesta a proteção à família e à filiação, posto que conhecer o seu “verdadeiro” pai se faz como verdadeiro direito do filho. Como salienta Nogueira (2001), outra figura que trouxe segurança ao reconhecimento do estado de filiação com a consequente afastabilidade da rigidez da presunção de paternidade foi o exame de DNA (Ácido Desoxirribonucleico), pois através deste pode se proceder a constatação da chamada paternidade biológica, mediante a qual se obtém os resultados provenientes de exames genéticos com resultados que possuem acerto de quase 100%. Assim, ainda comenta que o resultado biológico pela confiabilidade retira a incerteza da filiação jurídica, posto trazer em si a realidade substancial (NOGUEIRA, 2001). REVISTA JURÍDICA DA FAMINAS – v. 8, n. 1, jan.-dez. de 2012 79 Ainda aduz Welter (2003, p. 117) que “convém lembrar que, com a garantia do exame genético em DNA em praticamente 100%, estar-se-á garantindo ao investigante o estado de filho e ao ser, e não apenas conhecer, a origem genética, direitos constitucionais fundamentais que fazem parte da dignidade da pessoa humana”. Aquilo que foi supradito não deixa de manifestar verdades ao dizer que desta forma busca-se segurança mais efetiva da família e das relações de parentesco, posto que a resposta dos exames, como evidenciado, é praticamente livre de falhas. Mas, talvez seja também uma forma de institucionalizar um absolutismo em termos de paternidade, e todos sabemos que aquilo que se mostra absoluto nos obriga a fechar os olhos a outras possibilidades. Por isso, talvez o ponto mais correto seja realmente uma ponderação no que diz respeito a estes meios, para que assim se possa lograr êxito quando da necessidade de verificação justa do caso concreto. Como argumenta Jacqueline Filgueras Nogueira (2001, p. 147): Contudo a verdadeira paternidade pode não ser aquela apontada pelos resultados fornecidos nos exames genéticos, porque ao ser buscar uma paternidade mais efetiva, vivida, percebe-se que esta pode muito bem não coincidir com a descendência biológica, necessitando a presença de outros elementos. É o surgimento da valoração das relações alicerçadas no afeto, que vai ao encontro da paternidade socioafetiva. Destarte, tem-se a manifestação de uma terceira forma de paternidade, esta que se liga intimamente à evolução do estado social atual, mediante a qual se infere que a paternidade estruturada sob a égide do amor e da ajuda mútua, aquela que se desenvolve na convivência pode ser tão legítima ou até mais que a jurídico-presuntiva e a biológica. III – Realidade socioafetiva A realidade da socioafetividade pode até se mostrar proveniente de indícios que venham a talvez concluir por sua existência, contudo é algo que tem de ser realmente provado. Além disso, pode-se não se fazer presente desde o começo da vida da criança, mas se apresentar posteriormente pelas ações daquele que cuida, que declara seu amor publicamente, que dá seu nome para o filho, sendo assim feita a declaração do amor paternal (LEITE citado por WELTER, 2003, p. 165). 80 MURIAÉ – MG Portanto, é possível visualizar a família socioafetiva como aquela que se desenvolve nos laços do amor, afeto, do crescimento e desenvolvimento dos cuidados do dia-a-dia, com o pai amando e cuidando, fazendo com que a criança possa se desenvolver livremente sustentada pelo amor familiar que será a base de todo o seu existir. Corrobora Venceslau (2004, p. 112),”É preciso, então, distinguir pai de genitor. Embora possa existir um consenso geral de que o pai ame naturalmente próprio filho, há também um consenso da comunidade psiquiátrica que o genitor não é necessariamente o pai.” Desta maneira, é de fácil intelecção que a socioafetividade se faz presente através de relações de fato, as quais se sobrepõe a mera realidade biológica ou jurídica. Poder-se-á dizer que este instituto trata também de uma realidade jurídica, e não errônea seria a conclusão que nos levasse e esta lógica. Entretanto, o que dá ensejo ao surgimento desta paternidade é a relação fática que se desenvolve entre a criança e o adulto, que observada concretamente leva a firmar a realidade socioafetiva, que é a paternidade construída pelo amor. Ensina Nogueira (2001) que o objetivo com o reconhecimento do que se chama de posse de estado de filho, não é negar a realidade biológica, mas sim valorizar a realidade fática, que é aquela que se constrói no que se diz ser a real relação entre pais e filhos, pois desenvolvida ao longo do tempo, com o fato de permitirem estes que a criança tenha uma educação e se desenvolva estruturalmente como ser humano. O Superior Tribunal de Justiça tem adotado posicionamento no que tange à proteção do estado de paternidade socioafetiva, como se conclui da leitura das ementas reproduzidas abaixo: DIREITO DE FAMÍLIA. AÇÃO NEGATÓRIA DE PATERNIDADE. EXAME DE DNA NEGATIVO. RECONHECIMENTO DE PATERNIDADE SOCIOAFETIVA. IMPROCEDÊNCIA DO PEDIDO. 1. Em conformidade com os princípios do Código Civil de 2002 e da Constituição Federal de 1988, o êxito em ação negatória de paternidade depende da demonstração, a um só tempo, da inexistência de origem biológica e também de que não tenha sido constituído o estado de filiação, fortemente marcado pelas relações socioafetiva se edificado na convivência familiar. Vale dizer que a pretensão voltada à impugnação da paternidade não pode prosperar, quando fundada apenas na origem genética, mas em aberto conflito com a paternidade socioafetiva. 2. No caso, as instâncias ordinárias REVISTA JURÍDICA DA FAMINAS – v. 8, n. 1, jan.-dez. de 2012 81 reconheceram a paternidade socioafetiva (ou a posse do estado de filiação), desde sempre existente entre o autor e as requeridas. Assim, se a declaração realizada pelo autor por ocasião do registro foi uma inverdade no que concerne à origem genética, certamente não o foi no que toca ao desígnio de estabelecer com as então infantes, vínculos afetivos próprios do estado de filho, verdade em si bastante à manutenção do registro de nascimento e ao afastamento da alegação de falsidade ou erro. 3. Recurso especial não provido. (STJ - REsp: 1059214 RS 2008/0111832-2, Relator: Ministro LUIS FELIPE SALOMÃO, Data de Julgamento: 16/02/2012, T4 - QUARTA TURMA, Data de Publicação: DJe 12/03/ 2012). RECURSO ESPECIAL. PROCESSUAL CIVIL. DECLARATÓRIA DE INEXISTÊNCIA DEFILIAÇÃO. INTERESSE. EXISTÊNCIA. I. O pedido deduzido por irmão, que visa alterar o registro de nascimento de sua irmã, atualmente com mais de 60 anos de idade, para dele excluir o pai comum, deve ser apreciado à luz da verdade socioafetiva, mormente quando decorridos mais de 40 anos do ato inquinado de falso, que foi praticado pelo pai registral sem a concorrência da filha. II. Mesmo na ausência de ascendência genética, o registro da recorrida como filha, realizado de forma consciente, consolidou afiliação socioafetiva, devendo essa relação de fato ser reconhecida e amparada juridicamente. Isso porque a parentalidade que nasce de uma decisão espontânea, deve ter guarida no Direito de Família. III. O exercício de direito potestativo daquele que estabelece uma filiação socioafetiva, pela sua própria natureza, não pode ser questionado por seu filho biológico, mesmo na hipótese de indevida declaração no assento de nascimento da recorrida. IV. A falta de interesse de agir que determina a carência de ação é extraída, tão só, das afirmações daquele que ajuíza a demanda instatus assertionis -, em exercício de abstração que não engloba as provas produzidas no processo, porquanto a incursão em seara probatória determinará a resolução 82 MURIAÉ – MG de mérito, nos precisos termos do art. 269, I, do CPC. Recurso não provido. (STJ - REsp: 1259460 SP 2011/0063323-0, Relator: Ministra NANCY ANDRIGHI, Data de Julgamento: 19/06/2012, T3 - TERCEIRA TURMA, Data de Publicação: DJe 29/06/2012). Constata-se, através dos supraditos acórdãos, visão mais moderna por parte dos tribunais, buscando, dessa forma, tutelar a paternidade e a família de forma a afastar as presunções jurídicas e verdades biológicas quando estas não se fazem as mais adequadas a serem aplicadas naquelas hipóteses. Como diz Nogueira (2001), seria difícil depois daquilo que se chama de posse de estado de filho, não haver de considerar que com a construção de laços de amor e carinho que se repetem no tempo, bem como ter mediante esse auxílio, o reconhecimento de toda uma existência familiar. Sendo assim, sabe-se que com a ajuda prestada pelo pai, seja ela emocional ou material, tem-se o desenvolvimento da criança. Ainda com brilhantismo afirma que “devem, tanto os que legislam quanto os que interpretam a lei tutelar a paternidade fundada nos laços de afeto, pois somente essa traduz a real base das relações entre pais e filhos” (NOGUEIRA, 2001, p. 187). Por isso, tem-se como ponto saliente da atualidade, e no qual se fazem mergulhados estes acórdãos, o reconhecimento do afeto como valor de paternidade, de família real e concreta, posto que no mais das vezes esta é a realidade que em si demonstra a efetivação do melhor interesse da criança, quando for o caso, assim como do filho no geral naquilo que diz respeito a estrutura familiar. IV – Considerações finais O tema aqui tratado não é dos mais simples, pois que trata das relações familiares, e quando se imiscui neste tema, logra-se vislumbrar a complexidade que deste se faz imanente, visto a pluralidade de visões que se pode ter com relação às medidas com que a filiação e a família são tratados hodiernamente pelo direito. Buscando entender as várias visões de família ao longo da história, mas defronte a impossibilidade de esgotar todas elas, e tampouco esta se fez como pretensão do presente estudo, foi tentado aqui atender a uma breve visão da família, iniciando na antiguidade, analisando os tratamentos de filho e família daquele tempo, assim como a chegada ao tempo atual, onde se visualiza REVISTA JURÍDICA DA FAMINAS – v. 8, n. 1, jan.-dez. de 2012 83 uma família e paternidade, estruturados em sentimentos humanos basilares e sem os quais não seríamos diferenciados dos animais irracionais. A família socioafetiva se apresenta hoje como uma realidade de um estado de direito embasado na dignidade da pessoa humana, comprometido com a busca da justiça real, com valores sociais plurais e que tendo por diretriz tutelar a igualdade de filiação e proteção da família em suas várias formas de manifestação, constrói um estado democrático de direito mais igualitário e consciente das necessidades de seus membros no seio dessa manifestação, os quais merecem ver tutelados os direitos de maneira a permitir o desenvolvimento humano característico desta dignidade concreta, afastando o formalismo que ilide ou impede que a justiça seja feita. Referências ARISTÓTELES. A política. São Paulo: Escala, 2007. __________. Ética a Nicômaco. 5. ed. São Paulo: Martin Claret, 2011. BUENO, Manoel Carlos. Código de Hamurabi, Manual dos Inquisidores, Lei das XII Tábuas, Lei de Talião. São Paulo: Edijur, 2012. BERTOLINI, Francisco. 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