o poema infinito de wlademir dias-pino
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o poema infinito de wlademir dias-pino
O POEMA INFINITO DE WLADEMIR DIAS-PINO Ao completar três anos de existência, o Museu de Arte do Rio faz um convite ao público: percorrer o surpreendente universo poético de Wlademir Dias-Pino. Artista seminal para a história da poesia visual, da arte concreta, do poema/processo, do design e da educação no Brasil, a enorme contribuição de sua obra – iniciada desde a adolescência, com trabalhos já aos 11 anos de idade – ainda não foi plenamente reconhecida. É preciso entender sua vida partilhada entre duas cidades (Rio de Janeiro e Cuiabá) e os diversos focos de seu trabalho, do dia a dia de artista à atuação política na fundação da Universidade da Selva (hoje Universidade Federal do Mato Grosso) – experiência inovadora no campo universitário brasileiro na década de 1970 –, e também a intensa atividade como teórico do design e programador visual. A escolha por esses territórios, discretos se comparados à estridência hegemônica de outros centros do Brasil, certamente segredaram as inovações e as experimentações de Wlademir. É, portanto, com especial entusiasmo que o MAR apresenta a mostra O poema infinito de Wlademir Dias-Pino, organizada pelo artista e curador Evandro Salles. A exposição enriquece um dos principais focos do programa curatorial do museu: apresentar artistas cuja obra encontra pouca circulação no Sudeste e revisar as narrativas da história da arte. Nestes três anos, o MAR realizou, com essa intenção, exposições individuais de Berna Reale (PA), Yuri Firmeza (CE), Grupo EmpreZa (GO), Jonathas de Andrade (AL/PE), Rossini Perez (RN/RJ) e Fernando Lindote (RS/SC). Além disso, fomenta constantemente a presença de artistas do Norte, Nordeste e Centro-Oeste em suas mostras coletivas, cuja produção vem ingressando na Coleção MAR. Tal como Wlademir Dias-Pino e seus interlocutores exploraram a dimensão cuiabana de centro geodésico da América do Sul, também o Museu de Arte do Rio aspira tornar-se o principal repositório da obra do artista e de suas referências. Esta exposição é um dos pontos de partida desse programa. Luiz Chrysostomo, membro do CONMAR Museu de Arte do Rio – MAR ____ O poema infinito de Wlademir Dias-Pino Estamos diante de uma obra que não possui um começo e um fim: ela consiste em um todo em processo, como um labirinto, no qual cada parte se entrelaça à outra, formando uma rede de confluências advindas de pontos distintos. Da mesma forma que diante de uma pintura, podemos adentrar a obra-labirinto de Wlademir Dias-Pino por qualquer um de seus lados, de suas pontas ou portas. Prestes a completar 89 anos, Wlademir trabalha, como sempre o fez, intensa e proficuamente, idealizando projetos dos quais produz longas séries de trabalhos, milhares de imagens. Sua obra visual/literária é, ainda, em larga medida inédita, desconhecida mesmo de seus admiradores. Esta obra materializa-se hoje como um campo de descobertas e revelações surpreendentes, impondo uma urgente revisão de seu papel nas vanguardas artísticas brasileiras. O poema Dia da cidade, de 1948, ou a Enciclopédia visual brasileira, aqui expostos pela primeira vez com suas necessárias configurações e grandezas, bem como a oportunidade de conhecer as edições originais raríssimas dos livros A ave e Solida, são exemplos gritantes dessa urgência. Por isso, mesmo que possa parecer absurdo construir uma cronologia para um labirinto, esta exposição inicia-se com uma "cronobiografia" que nos ajudará a estabelecer marcos importantes, permitindo relacionar elementos da obra de Wlademir Dias-Pino com a história da arte e da literatura brasileiras, dando continuidade a uma releitura dessa obra em sua significação. Tendo criado na década de 1940 em Mato Grosso o movimento intensivista, que rompe com os preceitos modernistas; tendo sido em 1956 um dos seis poetas participantes da fundação do movimento concreto; e, finalmente, tendo organizado na década de 1960 o mais radical dos movimentos literários de vanguarda, o poema/processo; a obra de Wlademir Dias-Pino confunde-se com a história das vanguardas no Brasil. A cronologia nos apresenta também o romance de uma vida pautada por um rigor ético extremo em torno do fazer artístico, configurando-se como um verdadeiro projeto políticocultural, cuja prática se delineia como um quase sacerdócio e crença em seu poder e função. Wlademir Dias-Pino, por uma opção estritamente teórico-ideológica, sempre evitou o mercado de arte: seu trabalho busca instaurar processos e não reduzir-se à feitura de objetos únicos. Os objetos únicos que produz – sujeitos à serialização e abertos à apropriação poética pública por meio da criação do que denomina versões – propõem sistemas e não modelos formais acabados. Percorrendo a obra-labirinto, essa é a chave para entender o que poderíamos chamar – usando um termo caro ao poema/processo – seu "contra-estilo": incontáveis camadas de significantes se superpõem livremente se autodesconstruindo umas às outras para revelar a estrutura do sistema que as originou, a lógica interna, a ideia que brilha e sustenta a montanha de imagens que produz. O conceito de autoria então se esgarça, fazendo com que o gesto poético, o gesto criador – do próprio poeta-artista e/ou do leitor-consumidor que recria a obra com sua ação-investigação sobre ela – abarque tanto o momento da inscrição primeira do poema-obra como o de sua leitura-consumo, tanto o passado histórico em que o sistema se construiu, como o presente imediato no qual ele é reconstruído em inevitável versão. Se a cronologia oferece um panorama o mais amplo possível de sua trajetória (apesar de inevitavelmente incompleto), as séries de trabalhos que compõem a mostra articulam-se entre si segundo uma lógica atemporal, de núcleos que reúnem diferentes vertentes do trabalho e que configuram de maneira significativa partes do todo-labirinto de um poema, muitas vezes de desenvolvimento simultâneo e/ou paralelo – e definitivamente inacabado porque, enquanto obra-processo, estará sempre disponível à sua própria reinvenção. Evandro Salles, curador _____ Solida 1956-1962 Em 1956, Wlademir Dias-Pino participa da Exposição Nacional de Arte Concreta, no Museu de Arte Moderna de São Paulo (MAM/SP), com outros cinco poetas: Augusto de Campos, Haroldo de Campos, Décio Pignatari, Ronaldo Azeredo e Ferreira Gullar, além de 25 artistas plásticos. Poesia, pintura e escultura foram apresentadas conjuntamente, reafirmando a correspondência estabelecida pelo concretismo entre as diversas formas de manifestação artística, entre o verbal e o visual como elementos indissociáveis na construção de sentido na obra de arte. Dos seis poetas revelados, Dias-Pino era o que apresentava uma proposta formal mais radical. Na exposição, foi exibida a primeira versão de Solida em cartazes, que, tendo como matriz a palavra-título do poema, se desdobra em operação matemática numa série de palavras: “solidão / só / lida / sol / saído / da / lida / do / dia”. Em seguida, as palavras são recodificadas em grupos de figuras geométricas, perfurações e gráficos estatísticos. Décio Pignatari, que produzia poemas semióticos com Luis Ângelo Pinto em 1964, afirma o papel precursor do poema Solida na exploração do código semiótico. Em 1962, Solida seria relançado como livro-poema, impresso em serigrafia. O poema é apresentado em páginas soltas dentro de uma caixa e se divide em um apêndice – que funciona como um manual didático de leitura do poema, expondo a palavra geradora – e em cinco séries de poemas visuais. As séries são conjuntos de nove páginas que recodificam cada uma das (nove) palavras do poema-matriz em elementos gráficos que evoluem do ponto para a linha, o plano e, por fim, esculturas montáveis em papel. Em Solida, Dias-Pino radicaliza questões de recodificação já presentes em A ave, mas, desta vez, faz uso do texto com chave-léxica para o desdobramento cada vez mais autônomo das imagens nas séries do poema, evidenciando sua lógica construtiva para favorecer a elaboração de novas versões por parte dos leitores. No livro-poema Solida, o limite da página é usado como expressão: o plano se arma em escultura, rompendo conceitos de gênero, “criando a leitura esférica globalizante”. Ao não fazer uso da língua, afirma Dias-Pino, o poema “torna-se uma linguagem visual universal, dando uma nova escala ao conceito territorial”. Rogério Câmara, no livro de Rogério Camara; Priscilla Martins (Org.). Poesia/poema: Wlademir Dias-Pino, 2015. ___ A origem do livro-poema Álvaro de Sá As tentativas de reformulação e inauguração de novos sistemas poéticos por que passou a poesia mundial na década de 1950 trouxeram uma série de contribuições substanciais da poesia concreta brasileira. A falta de repertório da crítica da época fez com que esse movimento passasse à história da literatura por meio do que escreveram alguns de seus fundadores. Como os que mais publicaram teoria foram os componentes do grupo Noigandres, tende-se a tomar a teoria desse grupo como sendo a oficial do movimento, o que é um equívoco. De uma perspectiva informacional mais completa, torna-se nítido que o movimento concreto respondeu a um estágio do desenvolvimento da sociedade brasileira, constituindo-se de uma frente ampla poética, aglutinadora de três correntes totalmente distintas: 1. A simbólico-metafísica, cujo principal representante foi Ferreira Gullar, que desembocaria no neoconcretismo. 2. A de rigor estrutural, compreendendo os integrantes do grupo Noigandres – atuando dentro do concretismo – e seus continuadores. Esse rigor, que o tipo futura documenta, levou à repetição e ao fechamento, trazendo mais tarde, como segunda reação, a poesia práxis. 3. A de linguagem matemática, apresentada por Wlademir Dias-Pino, precursora do poema/processo e dividida em dois caminhos: A ave: o ordinal – linha de continuidade / sucessão ordenada / origem do unitário / Numéricos. Solida: o cardinal – geometria / coleções estrutura(s) / empilhamento (opacidade) / superposição / Elementos. Assim, podemos dizer que a preocupação da corrente simbólico-metafísica era a expressão; a de Noigandres, a construção; e a de Wlademir Dias-Pino, a função. Esta é a base com que as três correntes atacaram o problema do livro, sendo pela primeira vez no Brasil considerado como parte inseparável do trabalho intelectual, e que é, em última instância, a diferença entre a poesia-livro, o poema-livro e o livro-poema. O livro-poema tem seu primeiro exemplo conhecido em A ave, de Wlademir Dias-Pino, cuja produção editorial se inicia a partir de 1954, com lançamento em abril de 1956. O que caracteriza o livro-poema é a fisicalidade do objeto-livro como parte integrante do poema, apresentando-se como um corpo físico, de tal maneira que o poema só existe porque existe o objeto (livro). A intenção do livro-poema não é a produção de um objeto acabado, mas, por meio de sua lógica interna, formar o poema durante o uso do livro, que funciona como um canal que, em seu manuseio, "limpa" a leitura fornecendo a informação, possibilitando assim um novo explorar em nível já de "escrita" sobre o livro "limpo": recuperação criativa dos seus dados informativos (versão). A função do livro é ser gerador de informação através de seu processo. Enquanto numa poesia simbólica ou em um poema estrutural a leitura esgota a comunicação do poeta com o consumidor, no livro-poema a comunicação primeira inicia um novo universo para o consumidor, levando-o à posição de criador e distinguindo radicalmente a "leitura" da "escrita", ou seja, o ato mental de captar a intencionalidade do poeta do ato físico exploratório do livro-poema. ___ A ave 1948-1956 O livro-poema A ave é resultado de um longo período de elaboração: foi iniciado em 1948 por meio da feitura de várias versões, até seu formato final ser alcançado em 1954. A partir dessa data foram editados artesanalmente, até 1956, em torno de 300 exemplares. O livro foi finalmente lançado em abril de 1956 no Rio de Janeiro. A edição foi distribuída pelo autor diretamente a pessoas conhecidas, nunca permitindo sua reedição. A ave realiza o ideário do movimento literário denominado intensivismo, organizado por Wlademir Dias-Pino em Cuiabá com um grupo de jovens escritores. Propunha a superposição no poema de camadas de significados e, para tanto, necessitava de uma nova codificação, pois o alfabeto não permite tal superposição. Apesar de sua aparente proximidade com o universo formal concretista, é resultante direto do intensivismo – e sua busca por uma cuiabania –, movimento que antecipa procedimentos desenvolvidos posteriormente pelas tendências construtivas. A ave é um livro que inaugura uma série de conceitos e rompe com outros dentro das fronteiras da literatura: – a leitura feita pelo próprio poema em sua condição de máquina que se faz e se refaz; – livro que, ao considerar o uso como leitura de sua fisicalidade específica, cria uma nova categoria: o objeto-poema; – a inclusão da participação do leitor em sua estrutura, inaugurando tal procedimento; – o romper definitivo do uso do verso (linha debaixo de linha); – o criar da leitura contínua proposta pelo intensivismo; – inventa o indicador de leitura (gráficos); – abrindo-se socialmente, inventa o conceito de VERSÃO em oposição a TRADUÇÃO; – o poema tratado como ideia; – ao sobrepor duas abstrações (páginas duplas), estabelece a separação entre escritura (página-matriz, tábua de palavras) e leitura (uso); – o poema como escultura transformável; – a geometrização como possibilidade de superposição de informação; – o poeta como um desenhista de circuitos, cristal de conexões; – o uso da transparência e da perfuração; – A ave é considerado o primeiro livro semiótico da literatura universal. ___ Programação visual Em decorrência das atividades profissionais da família, desde a infância Wlademir DiasPino guarda enorme intimidade com o universo da gráfica e da programação visual: diagramador e produtor de seus próprios livros, editor de jornais e revistas literárias na juventude, projetista de logomarcas e publicitário, ao longo dos anos foi programador visual de todo tipo de publicação. Depois de sua volta ao Rio de Janeiro, em 1952, começa a trabalhar profissionalmente como editor e programador visual, assumindo a execução de duas diferentes revistas nas quais desenvolve seus conceitos visuais construtivos: Movimento, editada pela UNE, e a revista de divulgação institucional do Ministério dos Transportes, chamada Brasil Constrói. Nas duas, implanta uma visualidade construtiva altamente sofisticada, fortemente marcada pelo uso do branco como expressão gráfica e por formas abstratas que têm origem no seu trabalho visual como artista e poeta e nas teorias do intensivismo, que propunham uma geometria que incluísse a linha inclinada e uma leitura "de vértices". Ainda no final da década, executa no Rio de Janeiro, na Praça Mauá, a primeira decoração de Carnaval com temática abstrata, o que causa enorme polêmica e escândalo. Nas décadas de 1970 e 1980, ainda no Rio de Janeiro – antes de sua volta para Cuiabá, onde desenvolveria a identidade visual da Universidade da Selva, e, posteriormente, com a implantação da universidade –, vive um período de intensa atividade na área gráfica e editorial, realizando inumeráveis edições de livros, revistas e jornais, entre os quais alguns emblemáticos da gráfica brasileira: o livro A marca e o logotipo brasileiros, os cinco volumes publicados da Enciclopédia visual brasileira ou a série de revistas editadas em Cuiabá, com o título geral de Cadernos de medicina cuiabana. ____ painel da frente Enciclopédia visual brasileira 1970–2016 A Enciclopédia visual brasileira é um projeto desenvolvido por Wlademir Dias-Pino desde a década de 1970 até os dias de hoje. É composta de 1001 volumes divididos em 28 séries temáticas, cada série contendo 36 volumes e cada volume contendo 36 páginas. As páginas contêm imagens coletadas na iconografia universal sobre uma infinidade de temas (dos desenhos pré-históricos à história em quadrinhos, dos primórdios da escrita às linguagens computadorizadas, dos clássicos da pintura ao imaginário da publicidade). Essas imagens são coletadas em diversas fontes e depois trabalhadas pelo artista em camadas que se superpõem, sendo articuladas umas às outras, coloridas e modificadas. Durante muitos anos, o método preferencial de trabalho do artista foi o recorte e a colagem, reelaborando as imagens por meio de um sistema de cópias e recolagem. Hoje, sua opção é a de trabalhar diretamente a imagem digitalizada. O que diferencia a enciclopédia wlademiriana das demais é que sua forma de organização não é ordinal, mas cardinal: não há verbetes em ordem alfabética para organizar os temas com suas ilustrações; mas coleções de imagens reunidas em torno de temas e que trazem em si toda a carga informativa que possuem e que o artista reconfigura potencializando e rearticulando seus conteúdos e significados. Na instalação da enciclopédia aqui apresentada, além dos títulos dos 1001 volumes e das 28 séries – que em si perfazem um poema – podem ser vistas 164 colagens originais e 26 imagens digitais impressas. painel de trás MUNDUS IMAGINALIS (Algumas notas) “O homem é imagem” José Lezama Lima I) A razão maior da Enciclopédia visual, segundo aponta seu autor, o poeta e artista visual Wlademir Dias-Pino, além do primordial argumento de querer dar conta, visualmente, pela primeira vez, de toda uma memória imagética, no sentido amplo e, em suma, de numerosas questões culturais da história da arte e dos signos, talvez seja outra, a organizativa, a de maior relevância, pois trata-se da própria orientação taxonômica, e portanto conceitual, de uma forma de arrumar o mundo baseada na escolha de utilizar, cardinalmente, seu bastidor indicial de outro modo: “[...] não se trata de uma enciclopédia ilustrada, mas, sim, de um trabalho em que a iconografia substitui o caráter ordinal da ordem alfabética. Para tanto, receberá um tratamento cardinal ou emblemático”. É, portanto, nesse seu moto-contínuo de recusa de uma certa ordem textual que se encontra a realidade de seu infinito, aquele que supera o próprio criador, pois a obra se erige sempre maior que o artista, como, aliás, deve acontecer com toda obra de linguagem que não simule o narcisismo. Não obstante, e deve-se reconhecer também em seguida, é tudo um sintoma dessa obra, o ponto de partida fulgurante dos conteúdos dos próprios volumes, seu itinerário anunciado como uma procura trans-poética: (10) O homem sempre procurou um apoio entre o seu corpo e as coisas: destrezas do intervalo. (50) A iluminação supersticiosa da forma. (63) Os degraus sensíveis do sexo /:/ O pedestal de tudo o que é prazer. (65) A dificuldade de imaginar a beleza renovável do milagre. (84) O outro mundo, a relatividade do significado (constituição) da imagem. (156) A luz na contraluz (o catastrófico). (157). A página deserta da natureza /:/ A disponibilidade absurda do deserto. (251) Estamos escutando a torre de Babel como se fosse um caracol. Esses são alguns exemplos dos títulos – ou melhor, enunciados, chamados, conjuros – que se vertebram nas 28 diferentes séries da Enciclopédia, de 36 volumes cada uma, vislumbrando não só o vasto horizonte cultural, histórico e antropológico que subjaz neste rebatizado do real, quanto a sua subjacente oferenda lírica, sua condição mista de pensamento e visualidade aforística. II) O valor primordial concedido à imagem, como acontece com outras produções de Wlademir Dias-Pino – vejam-se os envelopes-signos do poema/processo ou os mais recentes poemas-conceito, ou então sua presença em obras-primas pioneiras em diferentes âmbitos, o lado visual no poema-gráfico Dia da cidade (1948), no livro de artista A ave (1956) ou no volume A marca e o logotipo brasileiros (1974) –, coloca este trabalho específico em coordenadas próximas ao Atlas mnemosyne ou ao Musée imaginaire, de Aby Warburg e André Malraux, respectivamente, em que já se produz um entendimento da tradição e do passado como algo que não é necessário eliminar e, sim, articular como uma nova história das imagens e, portanto, outra cultura. Como toda enciclopédia, ela descansa no jogo de referências cruzadas, da transversalidade, o jogo das ressonâncias visuais, numa subtextualidade implícita que aqui funciona em forma de retroimagens mnemotécnicas, com alusões metonímicas à história da arte, em que as partes enunciam um todo ausente como totalidade ou narração linear. Ao mesmo tempo, a Enciclopédia visual do poeta brasileiro também des-neutraliza o poder anestesiante que tem o acervo da cultura mimética – como o museu, diria Adorno – para reatualizar sua temporalidade inquieta a base de conexões trans-temporais. De fato, as imagens deste projeto – desta obra-arquivo como suma poética – querem dar conta de 1.001 aproximações a itens emblemáticos – declarados de interesse universal também pela condição humanista de seu autor –, mas sobretudo embaralham o universo iconográfico e referencial de onde procedem e, à maneira sofista, se convertem em elaborações artísticas que bebem e modulam-se no diapasão do paradoxo visual, na metamorfose livre das experiências de uma linguagem gráfico-poética, como acontece com o estabelecimento de uma poiesis (que nunca deve esquecer sua órbita maior pois, ao espírito da Enciclopédia, também se deve associar e compartilhar o inclassificável livro de artista A marca e os logotipos brasileiros (1974), os grandes cadernos educativos feitos para a chamada Universidade da Selva – UFMGS, década de 1990, ou os mais próximos no tempo Poemas-Conceito mas de datas menos fixas). ............. Adolfo Montejo Navas (ver texto completo impresso disponível nesta exposição) ___ Elogio ao A//a Seleção de 60 imagens da série constituída por mais de 4 mil trabalhos, tendo como objeto principal: a letra A, a primeira do alfabeto. Entre as imagens selecionadas está o conjunto no qual o artista se apropria de trabalhos clássicos da gráfica tipográfica modernista relacionando-os ao seu objeto, a letra A//a. ___ Poema-Conceito 1973-2016 38 trabalhos selecionados da série que se caracteriza pela articulação de uma informação visual com outra verbal, de uma imagem com uma frase, sendo que nenhuma das duas guarda qualquer proximidade de significado. Entretanto, o trabalho estabelece uma real interação de sentido entre imagem e texto, criando uma surpreendente unicidade poética e conceitual. Poema/processo A seleção de pranchas da série Elogio ao A//a, situada na parede em frente, revela um artista às voltas com a representação da língua e, em especial, com o alfabeto. Não sem ironia, criar 4 mil formas de representar a letra A é também um projeto de esvaziamento de todo sentido essencialista que poderia ser atribuído a esse signo. Para Wlademir Dias-Pino, primeiramente o A interessa por sua materialidade gráfica: através dela, o artista critica e reinventa a dimensão sígnica da letra. De tanto repeti-lo e recriá-lo, o A se torna outra coisa, adquire novo corpo. Tal posição diante da língua e, consequentemente, da linguagem está na origem do movimento poema/processo, lançado por Wlademir e parceiros em 1967. Se, para o artista, a poesia se preocupa com a inteireza significante da língua – ou seja, se lida com os sentidos das palavras, suas interpretações e construções –, o poema se diferenciaria da poesia por lidar com a inscrição da linguagem para além da palavra. Sem estar vinculado ao código da língua, o poema se dá no vasto e experimental campo da linguagem compreendida como processo infinito de arranjos e modos de relação entre formas, fluxos e sentidos. Assim, em sua radicalidade singular, o poema/processo tomou como foco aspectos como a estrutura do poema, sua materialidade, sua dimensão funcional, seu caráter participativo, seu alcance didático, seus modos de distribuição e consumo. Tratava-se de politizar não o tema de um poema, mas sua própria existência. Como corpo social, o poema é um modo de estar no mundo e, como tal, deve ter claras as suas escolhas: para o poema/processo, uma sociedade democrática pede uma poética não autoritária, aberta a processos de reorganização, coautoria, reprodutibilidade, inteligibilidade. Imbuídos de espírito revolucionário, artistas de diversas partes do Brasil (em especial, do Rio de Janeiro, de Cuiabá e de Natal) constituíram uma das mais intensas redes de troca e criação dos anos 1960/1970 em torno do poema/processo, do qual a seleção de trabalhos aqui apresentada é uma pequena – porém significativa – mostra. O movimento, que por conta do regime militar instituiu uma “parada tática” em 1972, é uma das forças centrais da obra de Wlademir Dias-Pino, que foi ao mesmo tempo artista e teórico dos pressupostos e produções do poema/processo. Clarissa Diniz _______ Dia da cidade foi escrito em 1948, no mesmo ano em que Waldemir Dias-Pino criou, em Cuiabá, o movimento de vanguarda chamado intensivismo. A proposta do intensivismo era afirmar intensidades em lugar de sentidos. Imperativo era liberar o poema do alfabeto das palavras. Afirmação de intensidade requer um antialfabeto, construído mediante superposição de imagens e camadas, uma espécie de “pantanal” de códigos, poema visual, figurativo, escultural. Dia da cidade marca a passagem dos poemas da infância e juventude como Os corcundas (1939), A fome dos lados (1940), A máquina que ri (1941), A máquina ou a coisa em si (publicado em 1955) para os poemas que realizam de forma mais completa a proposta intensivista, como o poema pioneiro A ave (realizado entre 1948 e 1956) e o poema, igualmente pioneiro, Solida (1956-1962). Dia da cidade é um poema-cidade. Pode ser considerado um poema tipográfico de Cuiabá em que versos viram linhas, registro de como versos param diante das linhas e como linhas reviram versos. Dia da cidade é um poema entre linhas, imprimindo sobre papel um “gráfico de certos choques que minhas jovens pilhas psíquicas à deriva receberam de uma cidade carregada de fantasmas encurralados nos confins das latentes distâncias remotas”, como disse o próprio poeta. O poema possui 48 páginas impressas, que deveriam ser apresentadas tal qual um livro fantástico com todas as páginas abertas ao mesmo tempo, feito uma grande planta baixa, uma espécie de urbanograma poético. Um livro assim não tem entrada ou saída certas. Sua leitura demanda olhar de voo cego. É um labirinto habitado por sonâmbulos, esses estranhos caminhantes pelo “itinerário cego dos meandros do cérebro”, andarilhos no “chão exposto ao tempo”, no “chão de ecos”. Nesse poema, as palavras são “pedras sonâmbulas”. Nesse poema entre linhas, o que se lê são as passagens e não as palavras, o que se vê é o vendo e não imagens. O que se processa é o processo mesmo de ler e escrever, processo ele mesmo sem palavras e sem imagens, mas que no poema só aparece no cruzamento com as palavras e as imagens. Dia da cidade busca encontrar na posição das palavras a expressão do sem palavra, na posição das imagens a impressão do sem imagem. Por isso, o labirinto desse livro-cidade é ele mesmo o cruzamento de labirinto e desmedido, de máquina e organismo vivo, de homem e terra, de verso e linha, de figura e não figura, de sentido e além do sentido. Na tensão de verso e linha, salta aos olhos, como o sem forma aparece no caminhar sonâmbulo pelas formas e seus sentidos. Todo o poema repete de algum modo em cada página uma exigência entre linhas: intensificar a leitura é expandir a escrita e vice-versa. E o resto é processo, um amanhã. Marcia Sá Cavalcante Schuback >>> VERSÕES INTEGRAIS DOS TEXTOS DE MARCIA E ADOLFO MUNDUS IMAGINALIS (Algumas notas) Adolfo Montejo Navas “O homem é imagem” José Lezama Lima I) A razão maior da Enciclopédia visual, segundo aponta seu autor, o poeta e artista visual Wlademir Dias-Pino, além do primordial argumento de querer dar conta, visualmente, pela primeira vez, de toda uma memória imagética, no sentido amplo e, em suma, de numerosas questões culturais da história da arte e dos signos, talvez seja outra, a organizativa, a de maior relevância, pois trata-se da própria orientação taxonômica, e portanto conceitual, de uma forma de arrumar o mundo baseada na escolha de utilizar, cardinalmente, o seu bastidor indicial de outro modo: “[...] não se trata de uma enciclopédia ilustrada, mas, sim, de um trabalho em que a iconografia substitui o caráter ordinal da ordem alfabética. Para tanto, receberá um tratamento cardinal ou emblemático”. É, portanto, nesse seu moto-contínuo de recusa de uma certa ordem textual que se encontra a realidade de seu infinito, aquele que supera o próprio criador, pois a obra se erige sempre maior que o artista, como, aliás, deve acontecer com toda obra de linguagem que não simule o narcisismo. Não obstante, e deve-se reconhecer também em seguida, é tudo um sintoma dessa obra, o ponto de partida fulgurante dos conteúdos dos próprios volumes, seu itinerário anunciado como uma procura trans-poética: (10) O homem sempre procurou um apoio entre o seu corpo e as coisas: destrezas do intervalo. (50) A iluminação supersticiosa da forma. (63) Os degraus sensíveis do sexo /:/ O pedestal de tudo o que é prazer. (65) A dificuldade de imaginar a beleza renovável do milagre. (84) O outro mundo, a relatividade do significado (constituição) da imagem. (156) A luz na contraluz (o catastrófico). (157). A página deserta da natureza /:/ A disponibilidade absurda do deserto. (251) Estamos escutando a torre de Babel como se fosse um caracol. Esses são alguns exemplos dos títulos – ou melhor, enunciados, chamados, conjuros – que se vertebram nas 28 diferentes séries da Enciclopédia, de 36 volumes cada uma, vislumbrando não só o vasto horizonte cultural, histórico e antropológico que subjaz neste rebatizado do real, quanto a sua subjacente oferenda lírica, sua condição mista de pensamento e visualidade aforística. II) O valor primordial concedido à imagem, como acontece com outras produções de Wlademir Dias-Pino – vejam-se os envelopes-signos do poema/processo ou os mais recentes poemas-conceito, ou então sua presença em obras-primas pioneiras em diferentes âmbitos, o lado visual no poema-gráfico Dia da cidade (1948), no livro de artista A ave (1956) ou no volume A marca e o logotipo brasileiros (1974) – coloca este trabalho específico em coordenadas próximas ao Atlas mnemosyne ou ao Musée imaginaire, de Aby Warburg e André Malraux, respectivamente, em que já se produz um entendimento da tradição e do passado como algo que não é necessário eliminar e, sim, articular como uma nova história das imagens e, portanto, outra cultura. Como toda enciclopédia, ela descansa no jogo de referências cruzadas, da transversalidade, o jogo das ressonâncias visuais, numa subtextualidade implícita que aqui funciona em forma de retroimagens mnemotécnicas, com alusões metonímicas à história da arte, em que as partes enunciam um todo ausente como totalidade ou narração linear. Ao mesmo tempo, a Enciclopédia visual do poeta brasileiro também des-neutraliza o poder anestesiante que tem o acervo da cultura mimética – como o museu, diria Adorno – para reatualizar sua temporalidade inquieta, a base de conexões trans-temporais. De fato, as imagens deste projeto – desta obra-arquivo como suma poética – querem dar conta de 1.001 aproximações a itens emblemáticos – declarados de interesse universal também pela condição humanista de seu autor –, mas sobretudo embaralham o universo iconográfico e referencial de onde procedem e, à maneira sofista, se convertem em elaborações artísticas que bebem e modulam-se no diapasão do paradoxo visual, na metamorfose livre das experiências de uma linguagem gráfico-poética, como acontece com o estabelecimento de uma poiesis (que nunca deve esquecer sua órbita maior pois, ao espírito da Enciclopédia, também se deve associar e compartilhar o inclassificável livro de artista A marca e os logotipos brasileiros (1974), os grandes cadernos educativos feitos para a chamada Universidade da Selva – UFMGS, década de 1990, ou os mais próximos no tempo Poemas-Conceito mas de datas menos fixas). III) Como se comportam essas imagens? Como florescem esses oximoros visuais? Se a estratégia intervencionista aqui é plural e reabilita procedimentos já clássicos da colagem ou da montagem gráfica, seja a via apropriacionista ou a transformação digital, o repertório dessas composições (sempre lâminas do mesmo formato) vem alimentado pela procedência multifocal, transversal das referências em jogo, a intuição quase libertária das aproximações (uso de imaginários e iconografias de várias épocas, tipologias, emblemas e design diversos, geometrias, construtivismos, cromáticas distantes, etc.), tudo como uma verdadeira dança dos signos que percorre a história da humanidade. Assim, as modulações, trocas, mutações do que vemos e considerávamos conhecido (em sua origem e procedência) causam assombro, surpresa, perplexidade. Há pois uma retroalimentação visual que excede qualquer padrão ou mainstream, já que se trata de uma imagética politeísta que sabe religar universos dissímeis, ícones e figuras de diferentes culturas (iconografia geral, história da arte, cultura visual etc.), tudo transformado com a energia que emana do propósito abrangente de uma Enciclopédia visual. Daí também o viés alegórico que tem a imagem ampliada, pois a utilização de suas camadas é muito maior que uma mera situação ou relação de fundo e figura. Uma simples reprodução de Angelus, de Millet, recebe, precisamente, uma luz extra (geométrica), ou então vemos imagens de comics norte-americano ganhar diferentes leituras cromáticas, transformando sua codificada imagem; pois, no fundo, e como em todo atlas que se aprecie, canta-se o humano como num livro das maravilhas, ou seja, fazem-se reconhecíveis, antropologicamente, todas as esferas do humano. Porque tudo é plausível de outra significação, quando se sabe olhar, em parte pela provocadora interdependência de tudo: “Quem olha é responsável pelo que vê”, como dito num poema-conceito paradigmático de Dias-Pino. IV) O resultado ou a natureza das imagens vive então de sua abertura: as imagens se abrem mais que se fecham, pois elas não respondem completamente à diretriz traçada previamente, a seu verbete taxonômico – de enciclopédia modelar –, pelo contrário, oferecem um sincretismo visual, um hibridismo iconográfico que supera todas as expectativas de nossa humilde consulta. Estamos perto, portanto, de uma obra caleidoscópica, que gira, faz girar nossa percepção ontológica – o ser das coisas – para um fluxo maior que religa Heráclito e Fluxus sem contradição alguma. As respostas visuais dessa Enciclopédia são novas formulações, interpretações interregnas e não axiomas monolíticos, já que nunca se trata de uma iconografia ao uso, meramente instrumental apesar de sua sonhada função utilitária, ou de um mainstream visual do qual sabemos de antemão suas direções. Contudo, a Enciclopédia visual não é metáfora de alguma realidade predeterminada senão sua quimera. Aliás, a metáfora nunca foi desígnio exclusivo da literatura ou da poesia e, sim, índice ou sinal para a vida, logos-tropos operativo. Por sua desmedida ambição poética, de amplo espectro, esta obra está acasalada desde o começo ao infinito de seu desejo inconcluso, a ser parte de um processo, um work in progress em que os signos em rotação (em palavras de Octavio Paz) propõem sua utopia. V) Mas uma coisa é a obra, a sua fenomenologia em si, e outra bem diferente é como ela se inscreve nos contextos, da arte ou da época, na história visual das imagens em suma. O ser da fabulação, da alegoria, está aqui onipresente, na medida em que, precisamente, o substrato a que se alude, seja o que seja – via tema, índice, verbete – recebe aqui uma interferência digamos “quântica” nas suas várias camadas imagéticas pelos seus deslocamentos, montagens, desvios. Sendo estranha ou rarefeita a sua condição visualconceitual, a pele da imagem não fica nunca tão explícita ou no mero trânsito de sua superfície. A imagem é sempre superposição de imagens, dança visual: uma gravitação grávida em torno do cruzamento imagem-imaginário-imaginação. E esta tríade ganha força indissolúvel, pois a inter-relação nesta obra é estrutural e simbiótica, em parte porque se produz uma operação de ressignificação das imagens depois da perda de antigos significados ou a decadência de suas auras. Assim, na Enciclopédia se produz uma vigília visual que reconhece a ambiguidade e a “história da difícil relação entre o homem e suas imagens”, como diz Giorgio Agamben. De fato, a tarefa de uma obra deste propósito e categoria, segundo o mesmo filósofo italiano (no caso, a propósito do historiador Aby Warburg), também é “o mapa que deve orientar o homem em sua luta contra a esquizofrenia da própria imaginação”. Porque à desmesura do mundo – do ser no mundo – responde a potencialização da imago, sua capacidade relacionável, copulativa, de gênese, como outra desmesura (aquela derivada da linguagem), como reconstrução de uma natureza perdida que só a imagem pode ressuscitar. VI) Por último, até que ponto a Enciclopédia visual é uma dramaturgia, tem a reconhecível possibilidade de dramatizar o universo iconográfico a que alude? E pode, assim, resistir- se a ser absorvida no mero “devir imagem do mundo” (como diria Jean Baudrillard), mergulhando nele sem maiores consequências? Até que ponto a aludida quimera desta Enciclopédia mantém suas constantes transcendentes num mundo cada vez mais curtocircuitado entre a representação e as coisas? No universo atual da sociedade estetizada, inundado de visualidade instrumental, esta especulação imagética ainda propõe um sentido libertador para nossa sempiterna fragmentação, na medida em que não separa o mnemônico do visual. A aura viva e ao mesmo tempo expansiva desta obra ainda demanda referencialidade, conexões, interlocução. No entanto, se na dialética do ver, como diz Hal Foster, a própria dialética da reificação e reanimação continua aberta, faz parte da tensão entre arte e cultura, hoje de maneira até mais intensa, a Enciclopédia visual de Wlademir Dias-Pino se inscreve na segunda opção (reanimação) como sobrevida, também como topos e heterotopia, instâncias plausíveis de serem conjugadas sem cair no dilema de escolher arte, cultura ou visualidade, talvez porque suas imagens guardem significados flutuantes, indeterminados, sempre uma quota alta de significação em suspenso. Não é a toa que a natureza das imagens desta obra deve-se reconhecer como metamórfica – trabalha a metamorfose de um imenso background histórico e cultural –, são imagens-operações que combinam documento, singularidade, associação sígnica, adquirindo capacidade de formulação, enunciado, em suma, o sonho da re-nomeação, essa fronteira entre o visível e o invisível. A coexistência e dialética de tanta coisa, tantos temas – como acontece na obra seminal de Jean-Luc Godard, Histoire(s) du cinéma (1988-1998) –, apontam mais para um vocabulário que um dicionário, uma construção mais que uma ordem, em que as fronteiras das culturas e das épocas se diluem por meio da circularidade visual criada, do funcionamento das imagens como índex do outro, do que permite trocas, um jogo das distâncias e das aproximações como se fosse uma nova origem. E esse grau de potência ou de negociação crítica das imagens é contemplado como indispensável agora na arte: “O trabalho da arte é, portanto, jogar com a ambiguidade das semelhanças e a instabilidade das dessemelhanças, operar uma redisposição local, um rearranjo singular das imagens circulantes” (Jacques Ranciére). VII) Será que a cultura brasileira é capaz de respeitar, dinamizar e proteger este legado frente a demandas muito mais imediatistas, instrumentalizadoras ou espetaculares? De incorporar a memória heterogênea de suas imagens impuras e híbridas em outra frequência, além das domesticadas narrativas em uso na história da visualidade? Será possível então retribuir coletivamente o esforço prometeico desta Enciclopédia visual que conecta imagem e história numa complexa temporalidade e memória e, portanto, assumir de vez sua coleção quase infinita de paradoxos imagéticos como acervo ímpar? Da resposta possível a esta obra única de Wlademir Dias-Pino o Brasil sairá retratado, pois esta obra-compêndio promete-se já a seu destino e vida própria, como se daqui a 50 anos pudesse ser um raro documento para uma aproximação futurista, ou para seres em outra história. O resultado cartográfico desta já mítica Enciclopédia é uma guia da imaginação quase fantasmática, todavia uma possibilidade fundadora ou, em outras palavras, o umbral de um presente imagético que já nos sobrevive, se move paralelamente, também como pós-vida ou certo acordar. Assim como o tempo destas imagens está virado ao avesso, eliminada qualquer noção de factualidade e reconhecida a capacidade de interrogação que tem o anacronismo, sua dupla faz temporal, este mesmo signo temporal parece nos dizer, de forma goethiana: “Não há presente, só devir”. Já o grau de aparição, interseção e energia das imagens desta Enciclopédia abriga certa força insurrecional, outras rítmicas semânticas. Naturalmente, não se está diante de uma história das formas e, sim, diante de um campo de forças... um mundus imaginalis que pede outra versão de nossa cumplicidade. (janeiro de 2016) Wlademir Dias-Pino – um poema entre linhas Dia da cidade é um poema-cidade. Foi escrito em 1948, no mesmo ano em que Wlademir Dias-Pino criou em Cuiabá o movimento de vanguarda chamado intensivismo. A proposta do intensivismo era a afirmação de intensidades mediante a liberação do poema do alfabeto das palavras. Assim liberado, o poema aparecia como superposição de imagens e de camadas, um “pantanal” de códigos pelo qual não mais caberia decidir se é questão de poema visual, figurativo ou escultura. A ave, poema realizado entre 1948 e 1956, foi assumido pelo poeta como o exemplo mais intenso de seu buscado intensivismo. Frente à intensidade de A ave, Wlademir considera o Dia da cidade um poema de passagem do pré-intensivismo dos primeiros poemas Os corcundas (1939), A fome dos lados (1940), A máquina que ri (1941) e A máquina ou a coisa em si, este último editado em 1955. Comparando-se a força poético-formal desses poemas pré-intensivistas com o intensivismo de A ave, pode-se perceber que a fase pré-intensivista se insinua na fase intensivista, que o antes prossegue depois e o depois não se separa do antes. Mistérios da intensidade e de seus processos. Dia da cidade difere, todavia, dos demais poemas pré-intensivos, por se fazer mediante sucessivas dobras, em que escrita fonética vira e se desdobra em escrita visual e vice-versa. Encontramos aqui a antecipação de uma via plástica marcante para vários outros artistas, como Lygia Clark, Lygia Pape e Amílcar de Castro. Dia da cidade é um poema à beira da intensidade não por uma datação urgida pela teoria literária e pela economia estética de movimentos, mas por ser literalmente poema das “dobras de papel das esquinas da procura”, como comentou Wlademir esse poema, num outro poema de nome A cidade. Dia da cidade é o poema de uma intensa cidade buscando rumos para chegar ao poema da concretização do intenso, que é A ave. Dia da cidade pode não ser intensivista, mas não deixa de ser e ter uma “inten-cidade”. Afinal é cidade à beira de virar ave. Esse poema de 48 se compõe de 48 páginas, 48 anos-páginas, contadas na versão publicada em formato de livro, mas pensada para ser o livro aberto de uma página do imenso. Em cada uma delas, os versos se mostram linhas e alinhamentos de palavras. Versos viram linhas, registrando como versos param ao ver linhas e como linhas reviram versos. Esse poema entre linhas registra de forma inesperada essa cidade Cuiabá, cidade à beira do rio de mesmo nome, do rio que “é um escudo indígena”. “A cidade é um livro-‘matriz’ em permanência”, insiste Wlademir. Não deve porém ser confundido com um “poema topográfico” de Cuiabá, à maneira de um Balzac, o Balzac de Italo Calvino, pois em jogo está mais a tipografia da cidade do que sua topografia. Incisivas são as marcas do labirinto da cidade, a sua tipografia. Dia da cidade é mais um “poema tipográfico de Cuiabá”, das marcas e tatuagens, das inscrições e dos arranhões do labirinto chamado Cuiabá, cidade e rio, geodesia e pantanal, máquina e desmedido. É assim seu registro inesperado, um “gráfico que certos choques que minhas jovens pilhas psíquicas à deriva receberam de uma cidade carregada de fantasmas encurralados nos confins das latentes distâncias remotas”, como explica Waldemir o seu poema. Esse poema tipográfico de Cuiabá é um livro que é uma cidade que é um labirinto, um livro escrito num ritmo alheio a tantos livros modernistas transplantados. É que, em vez da tautologia da rosa que é rosa de Gertrude Stein, encontramos no Dia da cidade a rosa “passando da rosa a espinho” do ritmo de um “centro sem retorno”. Esse é, segundo o poeta, “o ritmo que deveria ter um habitante do labirinto”. Esse livro-labirinto só pode ser habitado – há que sempre lembrar que quando o poema é cidade só é possível ler ao habitá-lo – quando seu habitante, seu leitor, tem o ritmo de um “centro sem retorno”. Um centro sem retorno é um centro desempossado de todo atributo de centro: ponto amplo de partida e de chegada, pontocircunferência de reunião e concentração. A questão passa a ser como ler esse poema que é cidade, essa cidade que é livro, esse livro que é labirinto, como chegar ao centro sem a ele retornar. Na já mencionada reflexão sobre o poema, o poeta fala da “importância da saída/entrada no poema sem intervalos (teia): tentativa de imobilização da tensão” e ainda sobre “o itinerário cego dos meandros do cérebro”. Assinala a importância de se ler o poema colocando-se na sua teia, sem procurar intervalos, seguindo o movimento contínuo de versos que viram linhas e linhas revirando versos, onde qualquer ponto é ponto de entrada e saída, de luz e de sombra, de cor e de forma. Ler é um modo de imobilizar a tensão. Não de superar a tensão entre leitura e escrita, não de decifrar códigos ou sobreposições, mas de imobilizar as tensões e, assim, guardá-las em altatensão. Ler seria, assim, andar sobre fios de tensão, da alta-tensão de um “chão exposto ao tempo”, de um “chão de ecos”. É o que fazem os sonâmbulos, esses pedestres que seguem “o itinerário cego dos meandros do cérebro”, equilibristas sobre fios de altatensão. Sonâmbulo anda dormindo e, assim, desenhando com “pés de metal” linhas e traços mais rentes do que retos, pois cada linha é dobradiça e soleira de entrada e saída, vida e morte se tocando. Lembrando mais uma passagem de sua metarreflexão, Wlademir considera que os habitantes que saem desse “livro-matriz”, desse livro que é labirinto, que é alçapão, são “sonâmbulos (imantados de lendas)”. Mas quem são esses habitantes sonâmbulos imantados de lendas saindo desse livro? O que sai de livros são palavras. E desse livro-cidade-labirinto, desse poema tipográfico de Cuiabá, o que vemos sair são não apenas palavras, não quaisquer palavras, mas: “Palavras – pedras sonâmbulas”. Palavras – nesse livro-cidade-labirinto saem como o que são, pedras e blocos de letras, linhas de tensão entre a figura e o figurado, entre letras impressas e o impressionante sem figura. E se a ambição do poema parece ser a de conseguir, de uma só vez, ver tudo e olhar a cidade do alto, como se esta – este livro – nada mais fosse do que uma planta baixa, um plano-piloto ou um organograma urbano, a luta sonâmbula entre verso e linha, entre figuras de sentido e sentidos sem figura, faz aparecer a fatalidade do livro: ritmo de dobras, quinas e esquinas, interrompendo toda linha contínua dos sentidos. E mesmo quando o livro se abre feito plano da cidade, longe de uma poética dos desdobramentos e continuidades, o que se vê são riscos sem cor como se traçados por “peixes afiadíssimos” de rio, esses que ficam “afiando as imagens pontudas”. E, nesses traçados, linhas sem tinta compõem, com a tinta negra das linhas de versos e dos versos em linha, riscos de “-pássaros gravados no vento ________”, gravura ‘nítida de poética’. Nessa procurada nitidez poética, o leitor se descobre lendo o passar de um traço a outro, de uma linha à outra, de um rumo a outro, e não os “tentaculares (...) corredores de símbolos” e os “condutores espremidos” dos significados. O que se lê são as passagens, o que se vê é o vendo, o processo mesmo de ler e escrever, processo ele mesmo sem palavras e sem imagens, mas que no poema só aparece no cruzamento com as palavras e as imagens. É a busca de encontrar na posição das palavras a expressão do sem palavra, na posição das imagens a impressão do sem imagem. Por isso, o labirinto desse livro-cidade é ele mesmo o cruzamento de labirinto e desmedido, de máquina e organismo vivo, de homem e terra, de verso e linha, de figura e não figura, de sentido e além do sentido. Na tensão de verso e linha, salta aos olhos – essa forma de “água cega”, como o sem forma aparece no caminhar sonâmbulo pelas formas e seus sentidos. Todo o poema repete de algum modo em cada página: “o em si mesmo da ambivalência: o humanamente primitivo”, sempre envolto de tatos e incerto de vidas, a “tatuar geograficamente o nosso planeta”. Não há como definir a entrada e a saída do poema. Dia da cidade não tem entrada nem saída porque toda palavra é entrada e saída de um verso e todo verso entrada e saída de uma linha. Dessa cidade que é livro que é labirinto surge “ao inesperado da flor” um “tu” imprensado e destacado, em “sombr-tu-as” e “senti-tu-mentos”, “dego-tu-ladas de ago-tu-(ra)nia”, sob “can-tu-saços”, para lembrar que tu, leitor(a), leitura, é caminho de sonâmbulo equilibrista nas linhas vertidas, invertidas, divertidas e revertidas do poema. Explicar o poema com discursos estéticos, defender seu grau de intensivismo e concretismo, situá-lo no caminho poético rumo ao poema de processo, seja A ave seja Solida, conta mais da narrativa estética do que desse poema tipográfico da cidade à beira de um rio, de um verso à beira de uma linha, desses versos em linha e linhas de versos. Muito se pode dizer sobre a poética do poema, o seu lugar na história da poesia visual e gráfica e sobre sua busca de desalfabetizar as palavras no intuito de encontrar uma organografia não da linguagem, mas do vir à linguagem. Tudo isso e muito mais se pode dizer sobre esse poema entre linhas. Mas uma coisa ao menos o poema nos dá por si mesmo: “leitura intensificada e escrita expandida”. E com esse presente, diz, entre linhas que o resto é processo, um amanhã. Marcia Sá Cavalcante Schuback