a perda da identidade
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a perda da identidade
por Fabio Henrique Cano J ames Houston estava certo quando disse que “de todas as emoções, a felicidade talvez seja a mais fácil de identificar, a mais difícil de obter, e a mais problemática de definir”.1 A cada momento a pergunta: ‘Qual o caminho da felicidade?’ é feita trivialmente. Ela sempre se manteve rigorosamente persistente por entre as eras, culturas e classes sociais. Quando perguntamos de que modo podemos conseguir a felicidade, no fundo, procuramos por critérios de uma vida mais autêntica cercada de orientação, cura, raízes e propósito interior. Acredito que o homem não pode descobrir sua felicidade aparte de sua pessoalidade, porque a alegria não se trata de algo externo, mas algo que se constrói ou recebe na condição interior. Se o objeto de estudo ‘felicidade’ parte da premissa de que ela é “o estado de agradável satisfação da mente resultante de sucesso ou da obtenção do que é considerado bom” pelo indivíduo (definição segundo dicionário Oxford), dialogar com a felicidade só acontece à medida que compreendemos o homem que a abarca, isto é, aquele que considera o que é bom. Assim, a felicidade não define o homem, mas o contrário. O que torna o homem feliz não está essencialmente fora dele, mas dentro dele. Os anseios que cada pessoa retém e a busca de preencher vazios não são produzidos pelo meio externo, apenas sugerido por ele. Tais anseios representam necessidades arraigadas no interior, geradas intrinsecamente na composição humana, parte de sua natureza comum. Se desejarmos dialogar com a felicidade, evidentemente, a compreensão da pessoalidade (o conhecimento de quem o homem é) deve ser um ponto de partida indispensável. Por o homem constituir-se ser integral (com mente, físico, emoções, e espiritualidade), sua felicidade também apresenta características dinâmicas, não se posiciona neutra ao meio externo em que a cerca. Além disso, essa interação entre felicidade e mundo externo, está essencialmente vinculada ao homem, por aquilo que ele é, a sua maneira de interpretar, explicar e reagir ao mundo. Em ultima instância, encontrar a felicidade tem a ver com encontrar a nós mesmos, voltar às origens. Quando o homem procura sua felicidade, na realidade ele está à procura de sua própria identidade, aquilo que o faz ser completo. Portanto, a busca à felicidade sempre será frustrante à medida que o ser humano desprezar sua pessoalidade. Essa percepção torna a questão ainda mais problemática: não estamos lidando com o que o homem simplesmente deseja, mas questionando o que ele realmente necessita e o que o faz um ser completo. As propostas da sociedade ocidental para a vida bem-sucedida nos iludem a esconder nossa identidade confusa e frágil à projeção de sermos um sucesso. Incentivam-nos a reduzir o valor do ser humano segundo sua utilidade profissional. O apelo é evitarmos enfrentar nossas fraquezas interiores, pois não queremos nos sentir depreciados em nosso senso de liberdade e autoconfiança. Preferimos muitas vezes encobrir nossa fragilidade acreditando ser isso domínio próprio e seguirmos nossos caminhos confiantes em nossas compulsões e suposta liberdade, a ter que lidar com o campo minado de nosso apavorante eu e nos descobrirmos ali soterrados em medo, angústia, fraqueza e solidão. Assim é mais conveniente àquele que deseja a felicidade, ao invés de enfrentar o percurso de compreender sua identidade, direcionar seus esforços e convivência para objetos externos, uma vez que o mundo das coisas (negócios ou imagem) não o compromete como ser humano. O homem paradoxalmente é seu maior inimigo. Ele procura sua felicidade fugindo de si mesmo, preferindo as armadilhas pseudo satisfatórias enaltecidas por uma sociedade narcisista a que travar uma agonizante guerra contra seu adversário ‘eu’. De modo contraditório, a mentalidade característica de nosso mundo aplaude as propostas que mais trazem senso de liberdade, mesmo que essas conduzem o homem para escravidão de todo tipo. Se desejo me enriquecer, penso em quantas ‘liberdades’ novas terei opção de escolher ou na luxúria que poderei ostentar, e não em quantas armadilhas novas o dinheiro procurará me aprisionar e me roubar a paz. “A verdade é que somos dominados, não por um eu livre, mas por um eu compulsivo.”2 A opção que temos de fazer diariamente o que bem entendemos nos engana. Muitas vezes o que podemos chamar de ‘liberdade’ fatalmente nos conduz a vícios e prisões disfarçados. Quando o homem procura resposta à pergunta ‘qual o caminho da felicidade?’, na realidade, ele não quer complicações. Quando tal pergunta o remete ao interior de sua pessoa, expõe suas estruturas, ele é levado a fuga comodista preferindo reflexões e caminhos mais simplistas – qualquer percurso mais fácil que não tenha de lidar com o incômodo eu. Somos ensinados a acreditar em comerciais, enaltecer nossas fantasias, exibir nossas míseras habilidades pessoais, e até impressionar as pessoas que não amamos, a ter de lidar abertamente com nossa precária condição ‘eu’. Conforme Houston diz, “temos receio de experimentar nosso coração e descobrir quais possam ser os seus anseios. Tememos tornar-nos exatamente vulneráveis e honestos em relação a nós mesmos.”3 A sociedade pós-moderna em que vivemos afaga uma identidade desordenada e fragmentada transformando as reais carências humanas, a alegria serena, o amor desinteressado, e a construção de relacionamentos em significados simplistas e superficiais. Certamente um dos piores aspectos da vida moderna é sua incapacidade de sustentar a pessoalidade. A felicidade também se sustenta popularmente sob perspectivas dualísticas. Por causa da miséria e infelicidade no mundo, ela pode ser considerada uma utopia4. Ao mesmo tempo, ela pode ser compreendida como um direito de cada um conforme a revolução do pensamento ocidental. A exemplo do Brasil, o fim do sistema de governo de ditadura e a perda do monopólio da igreja católica deram início a uma nova era em que as pessoas passaram a ser ‘livres’ para pensar por si mesmas.5 Com o progresso da mentalidade democrática e consolidação do sistema capitalista, a felicidade passou a ser apresentada como uma condição de vida diretamente relacionada ao direito de liberdade e prosperidade de cada indivíduo. Conceitos que outrora fizeram parte da história como a realização dos deveres comuns e conquista coletiva perderam espaço a um contentamento automotivo. A felicidade deixou de ser um bem comum, tornando-se uma busca individual segundo o oportunismo, criatividade e habilidade de cada um. Houston comenta que a sociedade deste século caminha rumo a uma fragmentação de interesses, cada um a busca de sua própria felicidade, e não raro confrontandose em estrondosas contradições.6 Num mundo caótico, uma das maneiras que a sociedade procura compensar seu profundo senso de insegurança e inquietude interior é no campo do trabalho. A ocupação profissional serve como verdadeira distração às necessidades mais elementares do ser humano, afastando-o da comunidade e de sua própria integralidade. O trabalho tem grande potencial de nos distrair do desenvolvimento de amizades, da vida familiar, das coisas do coração. “A vida ocupada é como uma concha oca e viver dentro dela é a luxúria da realização egoísta, com todos os seus excessos, seu profissionalismo, sua organização e seu ativismo.”7 Sempre quando determinamos o valor de uma pessoa baseado em sua profissão, reduzimos sua existência a gratificações chulas e egocêntricas e incentivamos a construção de um caráter dissimulado escondido atrás de títulos e funcionalidades. Os resultados desse tipo de mentalidade reducionista são catastróficos: negligenciamos a complexidade constituinte do homem, dividimos a vida em compartimentos, particularizamos valores morais, menosprezamos a necessidade do próximo. A felicidade não pode ser reduzida à realização da vida profissional ou construída com o ativismo. A integralidade do ser humano ocupa âmbito muito mais profundo e essencial – não diz respeito à identidade do fazer, mas, ser. Outro aparato que ao longo da história tem fascinado o homem ao caminho sublime da felicidade é o intelectualismo. Muitos filósofos antigos associavam o contentamento do ser com o conhecimento. Acreditavam que a mente correspondia a um mundo imaterial e esse, por sua vez, era superior ao mundo material. Assim, acreditavam que a intelectualidade era o nível mais elevado do ser. Segundo eles, o mundo do conhecimento, por ser imaterial, era a única parte do ser que não podia sofrer influência ou contaminação do mundo mal, isto é, material. Porque toda sorte de prazeres terrenos e físicos pertenciam ao mundo material temporal, tais abarcavam numa alegria passageira e limitada. O mundo do conhecimento, por sua vez, era a experiência da verdadeira alegria – o nível súpero do ser. Pyrho, filósofo grego, interpretava a felicidade “como o desprendimento das coisas materiais, a indiferença quanto a assuntos transitórios.”8 Platão alegava que para encontrar a verdade, o homem precisava fundamentar seu conhecimento em algo superior. Uma vez que a alma do homem era perfeita e continha a essência que existe no mundo sensível, o caminho da felicidade só era possível à medida que o homem buscasse conhecer a si mesmo numa esfera profunda e contemplativa.9 Desdobrando o mesmo raciocínio, Protágoras afirma que “o homem é a medida de todas as coisas”. De fato, o conhecimento humano trouxe à modernidade benefícios extraordinários e um desenvolvimento incrível nos diversos ramos da ciência e tecnologia assegurando ao homem grande senso de autonomia e poder. A partir do século 18, época do Iluminismo em que “a modernidade foi se firmando como vontade de eliminar toda forma de conhecimento e de representação da realidade que não fosse subordinada aos princípios da razão”,10 a confiança na metafísica se desenvolveu como fundamento principal. O ser humano passou a olhar para si mesmo, sua capacidade de produzir conhecimento racional e científico, como resposta a todos os problemas do mundo. Essa percepção levado a cabo na história demonstrou sua extrema fragilidade e caráter redutivo. Crespi comenta que as concepções iluministas, com suas promessas de progresso, “estavam bem conscientes da obrigação de propor-se como novas cosmovisões de caráter totalitário.” É justamente tal redutivismo com relação à complexidade e às potencialidades da experiência humana que “acabou revertendo negativamente contra o próprio Iluminismo.”11 Os episódios horrendos das duas guerras mundiais demonstram, em certo sentido, o apogeu da confiança humana em sua própria razão e seu totalitarismo destemido, desde os estratagemas filosóficos de Adolf Hitler, até a preparação dos componentes químicos que produziram a bomba atômica que e devastaram duas grandes cidades japonesas. Neste trágico marco histórico, a humanidade se viu desiludida quanto à fé no progresso e perplexa aos efeitos do conhecimento humano. Crespi discute tais assuntos que introduziram o período pós-moderno de descrédito e pluralismo no qual vivemos: Com efeito, na nossa época, a fé no progresso e na ciência foi colocada em discussão. Assim, a tecnociência, em lugar de ser a solução de todos os males, acabou revelando-se incapaz de garantir a superação definitiva das contradições próprias da convivência social, aparecendo, aliás, por sua vez, como possível fonte de destruição, não só por causa do constante aparecimento da ameaça da utilização da energia atômica para fins ofensivos ou defensivos, mas também pelos riscos que a produção industrial e a economia consumista implicam para o equilíbrio do ambiente natural... As experiências devastadoras das guerras, a persistência das condições de pobreza e de fome no mundo, bem como o contínuo reaparecimento de regimes do tipo totalitário, tornaram insustentável a concepção da história como processo evolutivo que tende para uma constante superação... tal progresso [científico] é insuficiente para fundamentar de modo consistente as nossas identidades individuais e coletivas e, além disso, fornecer respostas adequadas às exigências vitais relativas ao sentido da nossa vida e às orientações de valor das nossas ações.12 Embora formas de pensar que apelam a fundamentos absolutos e expressão totalitária perderam proeminência no mundo pós-moderno por causa do próprio mundo globalizado, o senso de autonomia e progresso humano se reconstroem a partir do mundo de mercado capitalista. Hoje, a habilidade quanto às questões econômicas roda toda a estrutura e o universo de possibilidades. Uma questão insistentemente negligenciada pela mídia geral é que a crise econômica, assunto tão disseminado desde a sua ocorrência, não representa apenas desafortunadas rupturas ou desequilíbrios nas transações volúveis de um mercado mundial. Antes, ela nos remete a uma crise ideológica. Os números instáveis do mercado refletem, acima de tudo, a real tensão do homem ganancioso e avarento, em crise consigo mesmo e com os demais. O problema reside no interior do próprio homem. Não somos vítimas do mundo, mas o oposto. Identificar a felicidade suprema com o exercício de habilidades intelectuais é contraditório; pois, uma vez que somos o problema, estamos confiando em nossa própria ignorância. Por mais versátil que seja nossa capacidade de raciocínio, somente estaremos alimentando nosso ego e arrogância. Uma terceira maneira que o homem procura encontrar a felicidade é através da religião. Conforme Salomão afirma, Deus “pôs no coração do homem o anseio pela eternidade” 13 que se exprime na fome por espiritualidade e desejo de conhecer a verdade suprema. C.S. Lewis afirma que “as criaturas não nascem com desejos a não ser que a satisfação para esses desejos exista.” Ele argumenta que “se eu encontrar em mim um desejo para o qual não haja experiência neste mundo que me satisfaça, a explicação mais provável é que fui criado para outro mundo.”14 Assim, a religião é uma maneira que o homem procura atribuir aos aspectos ordinários e naturais da vida significados e sentidos eternos. “A religião se apresenta como uma forma de mediação específica, que leva em conta o caráter ilimitado do desejo humano e explica o mundo finito, colocando-o em relação com o horizonte infinito de um além-mundo, que assim se torna parte constitutiva da própria vida terrena.”15 Segundo Eugene Ionesco, “na história da humanidade, não há civilização ou cultura que deixe de evidenciar, de uma ou mil maneiras, a necessidade de uma realidade divina chamada céu. Uma realidade que pode ser percebida como liberdade, um milagre, um paraíso perdido para ser recuperado, paz, o progresso para além da história”.16 Freud apontava que “a religião é uma tentativa de externar nossos impulsos internos.” Religião, assim, deve ser interpretada muito mais que um conjunto de crenças ou rituais, mas uma busca humana por resposta genuína às suas necessidades e anseios mais profundos. Trata-se da expressão humana em sua interação a uma realidade superior, uma vez que o mundo terreno não é capaz de oferecer respostas adequadas aos seus anseios interiores. Ionesco estava certo quando ressaltou que “não há religião que não considere a vida cotidiana uma prisão.”17 Carlos McCord explica: Fomos feitos para desfrutar da perfeição e abundância que ansiamos, mesmo temendo que não esteja ao nosso alcance. Este desejo é universal como provado pelo seu impulso religioso interminável. Nada visível satisfaz esse anseio, assim, buscamos a fonte invisível de perfeita abundância. Não podemos e não descansaremos até que a perfeição seja encontrada. O ser humano sabe disso por intuição. Verdadeiramente, o Senhor colocou a eternidade em nossos corações.18 Contudo, devemos lembrar que as religiões em si são expressões humanas às suas próprias necessidades eternas ou transcendentais. Independente de qualquer que seja a experiência religiosa, ela sempre aponta para uma resposta suficiente ou a necessidade de redenção. A religião em si nunca é a resposta, caso contrário, ela passaria a ser o próprio objeto de busca reduzindo, assim, o infinito a sua própria finitude. Sendo assim, a religião caminha sob um dualismo inseparável: à medida que busca revelar o infinito, simultaneamente, ela o oculta pela limitação e inadequação de sua própria linguagem. Analisada em um contexto capitalista selvagem, a religião assume nuances tendenciosas. Nesses parâmetros ela também passa a funcionar segundo o sistema de mercado. Igrejas tornam-se mais um produto de consumo disposto na prateleira para garantir a satisfação e opção dos diversos clientes. Aplicando princípios semelhantes a propagandas, igrejas passam a promoter momentos de êxtase espiritual e benefícios instantâneos ao fiel tais como prosperidade, cura e libertação. Apesar de sermos livres para direcionar nossa vida às escolhas que desejamos, logo descobrimos, quer por conta própria ou não, que se o problema reside dentro de nós, todo nosso esforço quer mudando circunstâncias, construindo relacionamentos, evitando situações, aperfeiçoando habilidades, criando novos hábitos ou realizando boas obras somente servirão de subterfúgios quanto a necessidade de transformação de nossa alma. Preocupamos com uma pomposa embalagem do nosso eu e esquecemos que o conteúdo do nosso interior é extremamente frágil, debilitado e perdido. Quando priorizamos a vida profissional ou o conhecimento como a grande avenida que nos conduz à felicidade, definhamos nossa personalidade a meras projeções, ostentamos a justeza de nossos raciocínios a ponto de invalidar qualquer prova que não se adéque a eles, reduzimos nossos relacionamentos a utilidades, e nos fechamos para um mundo vazio, seco e solitário. Houston relata que “as vidas mais felizes não são aquelas dedicadas à busca do sucesso. Isso apenas fragmenta nossa humanidade. A sociedade do tipo ‘realização’ tão somente intensificará a alienação. Em lugar de realizações, precisamos buscar a totalidade do corpo, da mente e do espírito.”19 Se a felicidade está inerentemente ligada à integralidade do indivíduo, a resposta humana à felicidade será adequada apenas à medida que esta compreender todas as necessidades humanas (físicas, emocionais, sociais e espirituais). O caráter reducionista presente na sociedade moderna, isto é, a tendência intelectual em simplificar as dificuldades e valores humanos a explicações básicas e superficiais, não contribui a individualidade do ser humano. O momento histórico em que vivemos, onde as informações giram com grande velocidade e pouca ponderação, favorece uma geração fast food, viciada em respostas fáceis, soluções rápidas e modelos rasos. Houston diz que “nossa sociedade está caracterizada por um movimento sem direção, velocidade sem reflexão... Como resultado, toda a atividade humana parece ter-se soltado do seu ancoradouro, sendo carregada em ritmo cada vez mais acelerado, semelhante a um navio desgovernado em meio a uma tempestade.”20 Para encontrarmos o caminho da felicidade é imprescindível conhecermos a totalidade do nosso ser, “recuperar a plenitude de nossa humanidade há tanto tempo negligenciada no mundo moderno.”21 Quando nos voltamos às Escrituras a fim de entender à origem do universo, vemos a figura de Adão e Eva cuidando e cultivando despretensiosamente de um ambiente perfeito preparado pelo Criador e desfrutando da alegria constante de um relacionamento próximo de Deus. “Com poucas pinceladas o livro de Gênesis pinta um cenário onde há poucas regras, nenhuma vergonha, felicidades abundantes e uma série ilimitada de prazeres e tarefas criativas.”22 No Jardim do Éden direcionamos nossa consciência à origem, o sentido, e a forma que o homem foi criado – à imagem e semelhança de Deus (cf. Gn 1.26). Ali vemos o ser humano encontrando plena expressão de sua humanidade em conexão com Deus. O Éden nos ensina que fomos criados para desfrutar de um bem-estar profundo provindo da abundância de Deus e que somente a partir de um relacionamento de intimidade com Ele é que nossa humanidade se torna real e completa. Com a queda de Adão, entretanto, o homem rompeu sua conexão com Deus, desvinculandose do propósito primordial da criação divina. Porque o primeiro homem optou por ser seu próprio deus (comendo do fruto da árvore proibida), ele também optou por uma identidade distorcida, mortal, alienada do projeto original e intenções do Criador. Adão e Eva não somente foram separados de um íntimo relacionamento com Deus como também expulsos do ambiente perfeito onde a presença de Deus se perpetuava consistentemente. Eles conheceram um corpo corrompido, mortal e inclinado ao mal. Desde então, nossos anseios que revelam a extrema necessidade de relacionar-se com as perfeições de Deus foram desfigurados e desconectados da Fonte perfeita e provisão original. Segundo Houston: Cada um de nós tem dentro de si um vácuo com o formato de Deus, que só Deus pode preencher e satisfazer... Muitas pessoas banalizam seu desejo por Deus, acomodando-se com algo inferior. Quando isso ocorre, trocamos Deus por idolatria barata, quer adoremos o trabalho, o dinheiro, e sexo ou o status. Seria como tentar encher o Oceano Pacífico com pedrinhas atiradas às ondas.23 A natureza humana foi, assim, projetada por Deus com ligação ao eterno, a necessidade de um relacionamento significativo com Ele. O vazio com a forma de Deus, existente em cada coração, é um sinal explícito da eternidade. Tais vínculos entre eterno e secular, entre o céu e a terra, entre o homem e seu Criador foram corrompidos desde o Jardim do Éden e por causa disso toda a natureza geme (cf. Rm 8.19-22). O homem preferiu a suposta felicidade em conhecer o mal. Ele colheu o amargo fruto de uma identidade corrompida, distante de Deus. Com o pecado de Adão, a morte passou a existir a todos os homens: “Portanto, da mesma forma como o pecado entrou no mundo por um homem e pelo pecado a morte, assim também a morte veio a todos os homens, porque todos pecaram” (Rm 5.12). McCord comenta do seguinte modo: Quando Eva e Adão pecaram no Jardim do Éden houve uma ruptura na conexão entre Deus e o homem, e a humanidade morreu por meio deles... As suas almas foram profundamente perturbadas e se encheram de ansiedade no momento em que perderam a conexão com a perfeita presença de Deus. O resultado dessa ruptura com o Espírito de Deus tornou-se universal e disseminou-se... Ela trouxe morte em todos os níveis do nosso ser e para todos os homens.24 Começando com o primeiro homem, nossas escolhas passaram a refletir nossa triste impulsão de alimentar uma identidade corrompida, o desejo de ser como Deus (ora, o pecado consiste justamente nisso). Porque perdemos conexão com o Provedor de nossa identidade, constantemente retornamos ao pecado de Adão, “origem de nossa própria autonomia letal”.25 Embora nossos desejos nos impulsionem a buscar algo maior e ainda que consigamos vislumbrar reflexos de uma alegria suprema, não temos condições de conhecer a Verdade. Perdendo-se de Deus, perdemos tudo: a nós mesmos e a alegria. Deste modo, o pecado de Adão retrata não apenas um mau moral, ou violação jurídica à ordem de Deus, mas também a decisão para a falta de ser, a fratura da unidade natural, a perda da integridade originária, o abandono voluntário ao sentido ontológico. A menos que o homem tenha um relacionamento com Deus restaurado, a impossibilidade de resolver qualquer problema, inclusive a falta de felicidade, sempre o acompanhará. Porque somos o problema, não conseguimos resolver a nós mesmos. Essa é nossa dramática situação humana. Peter Kreeft expressa do seguinte modo: Não podemos resolver esse problema [do homem] porque nós somos esse problema. Da mesma forma que o olho pode ver um objeto, mas não a si mesmo, a mente pode conhecer qualquer objeto, mas não a si mesma, porque ela não é um objeto. Quando olhamos para nós mesmos, fazemos isso da nossa própria maneira. Ficamos na nossa própria luz e produzimos a nossa própria sombra. Precisamos conhecer a nós mesmos porque se não fizermos isso, então não saberemos de forma alguma quem é que está conhecendo qualquer outra coisa.26 Quando finalmente percebemos que a felicidade não pode ser indolente a nossa condição interior e, no entanto, estamos perdidos em relação a nós mesmos, entendemos a necessidade de voltarmos a uma fonte exterior que sacie nossa carência. Compreendemos a necessidade de um Redentor que seja tanto perfeito para superar a grave sede da alma quanto poderoso para nos envolver e transformar internamente. A felicidade é como a sede que temos por água pura e cristalina. A sede foi gerada em nosso interior; representa necessidades genuínas à maneira como fomos constituídos. Precisamos de água, no entanto, não somos capazes de produzi-la. Somente uma fonte externa e perfeita pode matar uma sede que nos palpita tão intensamente. Podemos ignorar a sede dizendo não ser necessário supri-la ou podemos nos iludir tentando satisfazê-la em fontes secas. Mas a sede, seja por quais esforços ou pensamentos nos submetemos, permanece indicando a nossa necessidade ontológica de beber de uma fonte pura e límpida a qual podemos nos saciar a cada momento. Quando encontramos essa fonte inesgotável, encontramos a própria vida, encontramos a felicidade. A conversa de Jesus com a mulher samaritana ilustra de maneira muito vivida essa realidade: a sede profunda existente no interior do homem e a fonte perfeita e inesgotável Deus. Estando em frente ao poço de Jacó, Jesus disse à mulher: “quem beber desta água terá sede outra vez, mas quem beber da água que eu lhe der nunca mais terá sede. Ao contrário, a água que eu lhe der se tornará nele uma fonte de água a jorrar para a vida eterna”.27 Um fato curioso é que esta mulher samaritana já havia se casado cinco vezes e naquele momento estava morando com outro homem. Seus inúmeros casamentos representavam as repetidas e frustradas tentativas de sua alma saciar uma sede profunda. Ela se encontrava desiludida com respeito à felicidade. Surpreendentemente as palavras de Jesus àquela mulher não foram para ela se esforçar mais para produzir uma vida mais correta e elogiável. Ele apenas ofereceu a ela uma água que saciaria sua sede uma vez por todas. Se bebesse dessa água, ela não precisaria mais procurar outras fontes de alegria porque a fonte perfeita jorraria em seu interior. Este convide impressionante de Jesus à felicidade do mesmo modo se estende a nós: “Quem crer em mim, como diz a Escritura, do seu interior fluirão rios de água viva”.28 Se a insaciável sede que possuímos no interior corresponde às necessidades integrais de um ser desvinculado de seu propósito, sentido, e moral original, devemos ser razoáveis o suficiente, para o nosso próprio bem, em não acreditar que tal carência interior pode ser saciada de qualquer forma que a sociedade nos propõe. As incertezas quanto aos ingredientes da felicidade revelam nossa distância do Éden, de conhecermos a Deus e, consequentemente, de conhecermos a nós mesmos. Quando Adão negligenciou a Deus no Éden comendo do fruto, ele negligenciou a si mesmo e suas necessidades mais profundas. Ele negligenciou a felicidade. Deste então, não sabemos o que é alegria infinda. Somente uma fonte perfeita que reúna tanto a verdade Infinda de Deus e resgate a forma original com que fomos criados é capaz de restaurar a plenitude de nossa humanidade e nos devolver a felicidade primeva. Sendo assim, a resposta mais bem-aventurada consiste em voltarmos à origem. Ora, mas é justamente a este desafio que nossa infelicidade e frustração humana se persistem: quando compreendemos que nossa limitação não nos permite chegar até a resposta, que não somos capazes de produzir uma fonte perfeita, que não conseguimos construir um Jardim do Éden, e que não conseguimos voltar às origens, reconhecemos que a verdade estará sempre tão distante de nós quanto estamos de conhecer a nós mesmos. O Deus da graça conhecendo nossa eterna impossibilidade de repararmos nossa alienação humana providenciou a que a Resposta, a Fonte das perfeições, a Verdade e a Vida viessem até nós por meio da Pessoa de Jesus Cristo. Aquilo que nos era incomunicável (i.e. o Referencial original) se tornou claro e visível por meio do Deus homem Jesus – o único mediador entre Deus e o homem, entre céu e terra.29 McCord escreve assim: A perfeição e a abundância de Deus, que a nossa alma anseia tanto, chegam a nós apenas pela presença de Cristo. A existência da água não resolve o problema da minha sede até que ela esteja ao meu alcance. É por isso que Cristo veio ao mundo: para tornar a perfeita abundância de Deus visível e disponível a nós e para trazer a água do reino para a aridez dos nossos pecados e para o deserto de nossas almas.30 O apóstolo João testifica de modo extraordinário sobre o Logos, o Verbo, isto é, a Palavra de Deus se tornando ação na Pessoa encarnada do Filho de Deus conforme os desígnios de Deus Pai: “no princípio era aquele que é a Palavra. Ele estava com Deus no princípio. Todas as coisas foram feitas por intermédio dele; sem ele, nada do que existe teria sido feito... Aquele que é a Palavra tornouse carne e viveu entre nós”.31 Cristo ao encarnar-se manifesta Sua identidade divina perfeita e a identidade humana plena na interação com Suas criaturas. Peter Kreeft ressalta que “Cristo é o perfeito anthropos... Ele é o homem como o homem é planejado para ser. Ele não é uma anomalia, nós somos a anomalia.”32 Assim, a solução definitiva e eterna para o problema do homem é Cristo, pois “só Jesus revela Deus e o homem para o homem, pois só ele é perfeitamente Deus e perfeitamente homem.”33 Ao longo da história, a ardente expectativa da humanidade, as incessantes e infindas buscas pelo verdadeiro, o profundo desejo de liberdade, as persistentes procuras por um sentido na vida, o angustioso clamor por salvação, tudo se resume, enfim, na necessidade do redentor Jesus. O apóstolo Paulo testifica: todas as coisas, sejam celestiais ou terrenas, convergem em Cristo.34 Somente Nele o problema do homem (a perda de sua identidade) é de uma vez por todas solucionado. “Se pela transgressão de um só homem [Adão] a morte reinou por meio dele, muito mais aqueles que recebem de Deus a imensa provisão da graça e a dádiva da justiça reinarão em vida por meio de um único homem, Jesus Cristo.”35 De modo plenamente satisfatório, a Pessoa de Cristo quebra todas as barreiras entre os céus e a terra, entre a morte e a vida, entre a sede humana e a Fonte insaciável (Deus). Jesus faz isso sem menosprezar as justas exigências de Deus e sem desprezar a irreversível injustiça dos homens. Longe de vir apenas como um bom mestre instruir o homem a ter um estilo de vida caridoso, Jesus veio como o caminho para reatar-nos ao desígnio originário de Deus, redimir o homem em todos os aspectos que o concerne ser humano, e transformá-lo a tal ponto que pudesse chamá-lo de novo. “Portanto, se alguém está em Cristo, é nova criação. As coisas antigas já passaram; eis que surgiram coisas novas!”36 O Deus Criador é também pessoal e constitui o fundamento da existência humana recompondo o modelo ideal do homem para todos os homens em Cristo Jesus. “É apenas ao nos entregarmos a Jesus Cristo e nos rendermos a ele que, paradoxalmente, tornamo-nos mais nós mesmos, mais pessoalmente o ‘eu’ real”.37 Deste modo, “quando reorientamos nossa vida afastandoa de nós mesmos e aproximando-a de Deus, descobrimos que estamos no caminho da alegria, da felicidade e do bem-estar. Tornamo-nos seres autênticos, visto que estamos em contato com o Original”.38 Se não nos foi possível chegar até o céu, o céu veio até nós na pessoa de Jesus Cristo. O Verbo se fez carne trazendo consigo a realidade de alegria e salvação do reino dos céus para o bem de todo o homem. Viver a proposta de felicidade eterna de Deus significa receber Seu Filho, aceitar Sua obra redentora, nascer para a vida, possuir uma nova identidade, satisfazer-se nas perfeições de Cristo, ter a garantia de que um dia a totalidade do ser será restituída com um corpo glorificado ao lado de Deus e, enfim, pertencer ao ambiente onde todos esses privilégios fluem naturalmente – o Reino de Deus. NOTAS BIBLIOGRÁFICAS 1 2 3 4 5 6 7 HOUSTON, James. Em Busca da Felicidade. Abba Press: São Paulo. 2002. p.9 Idem. p.14 Idem. p.75 Utopia: um ideal ou lugar imaginário de perfeição onde tudo se desdobra em harmonia para todos. James Houston comenta que “o trocadilho da palavra utopia em grego, cujo significado literal é “lugar nenhum”, e eu-topia, que significa “lugar agradável”, sugere que o país dos sonhos jamais aparecerá de fato no mapa.” (HOUSTON, 2002. p.9) Idem. p.50 Idem. p.52 Idem. p.136 8 Idem. p.116. Pyrho veio a se tornar um dos primeiros e mais importante expositor sobre o gnosticismo, crença que posteriormente foi rigorosamente combatida pelo discípulo João em sua primeira epístola. 9 WIKIPÉDIA: Platão. www.pt.wikipedia.org/wiki/Platão. Acesso em 04 de Janeiro de 2010 10 CRESPI, Franco. A Experiência religiosa na pós-modernidade. Bauru: EDUSC, 1999. p.11 11 Idem. p.41 12 Idem. p.12 13 Eclesiastes 3.11 14 HOUSTON, 2002. p.279 apud C.S. Lewis. O Cristianismo Puro e Simples 15 CRESPI, 1999. p.15 16 YANCEY, Philip. Rumores de Outro Mundo. Vida: São Paulo, 2005. p.153 apud IONESCO, Eugene. Present Past, Past Present. Grove Press: New York, 1971. p.158) 17 HOUSTON, 2002. p.117 18 MCCORD, Carlos. A vida que satisfaz. Propósitos: São José dos Campos, 2008. p.61 19 HOSUTON, 2002. p.112 20 Idem. p.146, 147 21 Idem. p.71 22 YANCEY, 2005. p.100 23 HOUSTON, 2002. p.281 24 MCCORD 25 Idem p.163 26 KREEFT, Peter. Jesus o maior Filósofo que já existiu. Tomás Nelson Brasil: Rio de Janeiro, 2009. p.77 27 João 4.13-14 28 João 7.38 29 2Timóteo 2.5 30 MCCORD. p.29 31 João 1.1-3, 14 32 KREEFT. p.79 33 Idem p.57 34 Efésios 1.10 35 Romanos 5.17 36 2Coríntios 5.17 37 HOUSTON, 2002. p.176 38 Idem, p.240