Carmen Tiburcio EXTENSÃO E LIMITES DA
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Carmen Tiburcio EXTENSÃO E LIMITES DA
Carmen Tiburcio EXTENSÃO E LIMITES DA JURISDIÇÃO BRASILEIRA: COMPETÊNCIA INTERNACIONAL E IMUNIDADE DE JURISDIÇÃO 2016 Livro 1.indb 3 08/08/2016 23:23:29 PARTE I EXERCÍCIO DA JURISDIÇÃO CIVIL COMO ATRIBUTO DA SOBERANIA: O ESTADO-JUIZ I. NOTAS PRELIMINARES No exercício da atividade jurisdicional pelos Estados nacionais, a soberania se manifesta de duas maneiras diferentes. Em primeiro lugar, a atividade propriamente dita decorre diretamente da soberania: julgar e pacificar os conflitos é função tradicionalmente estatal,11-12 regulada pela legislação do foro.13 Por essa razão o exercício da jurisdição será sempre regido pela lex fori e isso independe da matéria que está 11. Alex Mills, Rethinking Jurisdiction in International Law, BRITISH YEARBOOK OF INTERNATIONAL LAW, vol. 84, p. 201 (2014). 12. Existe, atualmente, uma parcela da doutrina que trata a jurisdição de maneira menos vinculada à soberania, como uma função que também pode ser exercida por órgãos imparciais fora da estrutura do Poder Judiciário e, inclusive, não estatais, do que a arbitragem é um exemplo. Confira-se: NICOLA PICARDI, JURISDIÇÃO E PROCESSO, p. 32 (2008): “Da mais recente evolução das ideias, em uma dimensão também supranacional parece emergir uma linha de tendência dirigida a separar a jurisdição do aparelho estatal. O juiz hoje procura a sua própria legitimação, não no Estado nacional, mas na Comunidade, e se alça, antes, a controlar o correto exercício das funções por parte dos próprios poderes estatais. A verdade é que, agora, mudaram as relações entre o juiz, Estado e Comunidade. Nessa ótica, provavelmente deve ser colocado em discussão o próprio pressuposto dessa linha de raciocínio: a tradicional concepção da jurisdição como emanação da soberania nacional”; LEONARDO GRECO, INSTITUIÇÕES DE PROCESSO CIVIL, vol. I, p. 69-70 (2015): “No nosso tempo, no estágio de desenvolvimento das relações do Estado-cidadão a que os europeus chegaram após a Segunda Guerra e a que nós chegamos com a Constituição de 1988, muitos entendem que a jurisdição não precisa ser necessariamente uma função estatal, porque a composição de litígios e a tutela de interesses particulares podem ser exercidas por outros meios, por outros órgãos, como os órgãos internos de solução de conflitos, estruturados dentro da própria Administração Pública, compostos de agentes dotados de efetiva independência e até por sujeitos privados, seja por meio da arbitragem, seja pela justiça interna das associações. Contudo, temos de reconhecer que, para que a jurisdição se desprenda do seu vínculo quase umbilical com o Estado, será preciso que esses órgãos ou esses mecanismos privados de solução de conflitos e de tutela de interesses particulares recebam poderes que, hoje, ainda em muitos países, são exclusivos da autoridade pública e, portanto, de órgãos estatais, especialmente o poder de coerção. Este é o poder de impor, pela sua própria atuação, o respeito às suas decisões. (...) Daí dizer-se que o conceito de jurisdição é um conceito em evolução, na medida em que alguns sistemas jurídicos conseguiram desprendê-lo do Estado, pelo menos em parte, e outros ainda o associam a uma função essencialmente estatal. Será que a História vai confirmar a evolução no sentido da desestatização da jurisdição? Eu pessoalmente acredito que sim, porque, a rigor, mesmo antes da formação do Estado, todos os povos juridicamente organizados instituíram os seus órgãos jurisdicionais como a exigência da própria vida em sociedade. (...) Assim, ainda não se pode desligar totalmente o conceito de jurisdição de uma função tipicamente estatal, ou preponderantemente estatal, porque, entre nós, ela ainda o é, embora essa não me pareça a sua característica essencial. É uma característica histórica da jurisdição, ou de uma boa parte dos órgãos que a exerceram nos últimos mil e setecentos anos, aproximadamente, mas que hoje apresenta sinais de desgaste, que poderão levar, num prazo que ainda não pode ser previsto, a uma superação dessa vinculação. A jurisdição é exercida por órgãos independentes e imparciais, o que não significa, necessariamente, que ela deva ser exercida por juízes”. 13. DOMINIQUE BUREAU E HORATIA MUIR WATT, DROIT INTERNATIONAL PRIVÉ, PARTIE GÉNÉRALE, vol. 1, p. 184 (2007): “Selon l’explication dominante aujourd’hui, cette compétence se fonde sur le fait que le déroulement du procès est étroitement lié à la souveraineté de l’ État, de sorte que la compétence normative exclusive de ce dernier pour ‘s´auto-organiser’ comprend nécessairement celle d’agencer et d’ actionner comme il entend son propre service public de la justice.” Livro 1.indb 19 08/08/2016 23:23:30 20 EXTENSÃO E LIMITES DA JURISDIÇÃO BRASILEIRA – Carmen Tiburcio sendo decidida. A vinculação entre soberania e jurisdição se acentua quando se pretende exercer a atividade em situações conectadas a Estados igualmente soberanos, em razão de elementos de estraneidade existentes na relação jurídica. Registre-se, porém, desde já, que o fato de se aplicar a lex fori para regular o exercício da atividade jurisdicional não inviabiliza o recurso a princípios e normas decorrentes do direito internacional público, como se verá. No contexto internacional, as normas sobre jurisdição – ou competência internacional – determinam quando as autoridades de um Estado poderão decidir questão a despeito desta também estar ligada a outros Estados (jurisdição ou competência concorrente) ou ainda quando somente as autoridades de um Estado devem decidir uma determinada matéria (jurisdição ou competência exclusiva). Essas normas sobre exercício da jurisdição têm também efeitos sobre a cooperação jurídica internacional (sobretudo com relação à homologação de sentenças estrangeiras). Admite-se, em princípio, o reconhecimento e execução de decisões prolatadas no exterior ainda que o Estado do foro tenha jurisdição (concorrente) para julgar a questão; todavia, nas hipóteses de jurisdição exclusiva não será possível esse reconhecimento. Portanto, de alguma maneira, o Estado do foro impedirá alguns efeitos da decisão emanada de outra jurisdição. Tais normas também influenciarão a possibilidade de que seja conferido algum efeito à existência de processo em curso no exterior (litispendência), já que isso só será possível nas hipóteses de jurisdição concorrente. Isso significa que nos casos de jurisdição exclusiva do foro é irrelevante que a ação no exterior tenha sido ajuizada antes ou depois daquela ajuizada no foro. Em segundo lugar, a soberania também se manifesta na determinação de algumas hipóteses nas quais o Estado exercerá a sua jurisdição. Em alguns casos, principalmente de jurisdição exclusiva, as regras criadas pelo legislador estatal baseiam-se primordialmente em razões de alguma maneira ligadas a interesses fundamentais do Estado do foro, já que naquelas situações não se reconhece a possibilidade de que outro Estado também exerça a sua jurisdição. Já se afirmou que alguns aspectos relacionados à competência internacional simplesmente não seriam relevantes em um sistema de regras de conexão harmonizadas.14 A afirmação é excessivamente simplista, pois, mesmo havendo coincidência de regras de conexão e, eventualmente, do direito material aplicável, a legislação aplicável ao processo (citação das partes, coleta de provas, execução das decisões) é fator a ser considerado e, em todo caso, a afirmação não leva em conta a relevância de conceitos como efetividade, interesse do foro e submissão das partes. Assim, mesmo nesse contexto, o tema da competência internacional não perderia a sua importância. Aliás, não sem razão, atualmente o tema do processo internacional, e mais especificamente da competência internacional, ocupa lugar de destaque na 14. Livro 1.indb 20 “[T]he Restatement’s rules were also neutral in that they did not give preference to the forum qua forum. Indeed, they explicitly aspired to eliminate or curtail forum shopping and to foster international or interstate uniformity of result by ensuring that a case would be resolved in the same way regardless of where it was litigated”. SYMEON C. SYMEONIDES, THE AMERICAN CHOICE-OF-LAW REVOLUTION: PAST, PRESENT AND FUTURE, p. 86 (2006). 08/08/2016 23:23:30 Parte I • EXERCÍCIO DA JURISDIÇÃO CIVIL COMO ATRIBUTO DA SOBERANIA: O ESTADO-JUIZ 21 teoria do direito internacional privado, posição ocupada anteriormente pelas regras de conexão e princípios da disciplina (ordem pública, qualificações, fraude à lei, reenvio).15 No Brasil, há, de fato, relativamente poucas formulações teóricas abrangentes acerca do processo civil internacional,16 carência especialmente relevante no estudo do tema da competência internacional ou jurisdição.17 As dificuldades daí decorrentes são abordadas ao longo desta primeira parte do trabalho. Antes disso, porém, é relevante fazer duas notas acerca (i) da distinção entre jurisdição e competência; e (ii) da natureza das normas que estabelecem a jurisdição internacional dos Estados. I.1. Conceito de Jurisdição. Distinção entre Jurisdição e Competência Todo Estado, no desempenho de suas finalidades, exerce três funções distintas – executiva, legislativa e jurisdicional – correspondendo majoritariamente cada uma a um dos três poderes. Segundo o conhecimento convencional, a função jurisdicional decorre da soberania estatal e é atribuída pelo Estado essencialmente ao Poder Judiciário, para exercê-la através de seus órgãos – juízes e tribunais. Todos os juízes e tribunais são igualmente investidos de poder jurisdicional: a jurisdição é una e indivisível.18 Para facilitar a prestação jurisdicional, contudo, seu exercício é organizado e distribuído entre os órgãos segundo os critérios determinados e estabelecidos pela legislação. Esta repartição das atividades jurisdicionais, que estabelece as situações nas quais cada juízo pode atuar, denomina-se competência. A jurisdição constitui, portanto, atributo de todo membro do Poder Judiciário, estabelecendo o poder/dever genérico de aplicar a lei ao caso concreto solucionando conflitos de interesses. Já a competência é um atributo específico, significando o poder para julgar uma causa determinada. Assim, a competência pressupõe a jurisdição, pois só é competente para julgar determinada causa aquele que já tem jurisdição. Por outro lado, pode-se ter 15. Diego P. Fernández Arroyo, Compétence Exclusive et Compétence Exorbitante dans les Relations Privées Internationales, RECUEIL DES COURS, vol. 323, p. 27 (2008). No mesmo sentido, LAWRENCE USUNIER, LA RÉGULATION DE LA COMPÉTENCE JURIDICTIONNELLE EN DROIT INTERNATIONAL PRIVÉ, p. 1 (2008) : «Longtemps reléguée au rang de ‘parent pauvre’ du droit international privé, considérée comme secondaire par rapport à la question plus essentielle du conflit de lois, l´étude de la compétence internationale des juridictions a connu une certaine ‘désaffection’ de la part des internationalistes français jusqu´à une époque récente. (...).” 16. Observação também verificada no contexto anglo-americano: JONATHAN HILL, ASSERTING JURISDICTION: INTERNATIONAL AND EUROPEAN LEGAL APPROACHES, p. 39 (2003). 17. Registre-se a existência de obra escrita pela professora VERA MARIA BARRERA JATAHY, DO CONFLITO DE JURISDIÇÕES: A COMPETÊNCIA INTERNACIONAL DA JUSTIÇA BRASILEIRA (2003) que resultou da sua tese de livre docência para a Faculdade de Direito da UERJ na disciplina Direito Internacional Privado, quando analisou o tema sob a ótica do direito de família. Trata-se de trabalho pioneiro na área, com excepcional pesquisa de doutrina e jurisprudência brasileiras. 18. ANTONIO CARLOS DE ARAÚJO CINTRA, ADA PELLEGRINI GRINOVER, CÂNDIDO RANGEL DINAMARCO, TEORIA GERAL DO PROCESSO, p. 160 (2010) : “A jurisdição, como expressão do poder estatal soberano, a rigor não comporta divisões, pois falar em diversas jurisdições num mesmo Estado significaria afirmar a existência, aí, de uma pluralidade de soberanias, o que não faria sentido; a jurisdição é, em si mesma, tão una e indivisível quanto o próprio poder soberano”; ATHOS GUSMÃO CARNEIRO, JURISDIÇÃO E COMPETÊNCIA, p. 29 (2007): “Como função inerente à soberania do Estado, a jurisdição, poder-dever de administrar a justiça, é una e homogênea”. Livro 1.indb 21 08/08/2016 23:23:30 22 EXTENSÃO E LIMITES DA JURISDIÇÃO BRASILEIRA – Carmen Tiburcio jurisdição – o atributo genérico – sem que se tenha a competência para julgar uma determinada questão. É possível também que tratados organizem a jurisdição no plano internacional, estabelecendo, por exemplo, que o litígio deverá ser julgado pelo Judiciário do Estado da celebração do contrato ou do lugar de sua execução ou ainda do Estado que conhecer do litígio em primeiro lugar. Nesses casos, deve-se falar em competência internacional, pois a jurisdição está sendo organizada e seu exercício dividido entre Estados soberanos.19 Nessa linha, observe-se que no direito europeu, o Regulamento nº 44/2000 do Conselho da União Europeia e o Regulamento nº 1215/2012 da União Europeia cuidam da competência e não da jurisdição, pois definem, dentre os países membros, aqueles que poderão (ou deverão) apreciar determinadas controvérsias.20 No mesmo sentido, no âmbito do direito convencional, o Código Bustamante21 em vários dispositivos se refere à competência internacional, como, por exemplo, ao determinar que compete à autoridade judiciária do lugar da situação dos bens apreciar ações reais sobre bens imóveis e para as ações mistas de limites e divisão de bens comuns.22 Existindo conflito de competência entre diferentes órgãos pertencentes a uma mesma jurisdição, há geralmente órgãos incumbidos de dirimir os conflitos decorrentes da distribuição de diferentes competências aos órgãos. Havendo conflito entre diferentes jurisdições, na ausência de tratado ou regramento que institua mecanismo que permita tal repartição de competência e crie um tribunal para apreciar a questão – nos moldes do que ocorre no âmbito europeu – não existe uma autoridade judiciária para dirimir conflitos de jurisdição entre diferentes países, pois, já que tal atributo deriva da soberania, cada país determina em que casos exercerá esta função. 19. “Las normas que cumplen con este cometido se designan comúnmente bajo el nombre de normas sobre la competencia internacional o jurisdicional. Pero hay que advertir que esta denominación puede conducir a erróneas analogías con las normas que proveen a una distribución de competencias entre varios órganos del mismo Estado, en particular con las normas sobre la competencia territorial. Ante todo los dos grupos de normas despliegan funciones de naturaleza profundamente diferente: mientras que las normas sobre la llamada competencia internacional o jurisdicional delimitan los poderes del Estado, o sea de sus órganos judiciales considerados en conjunto, las normas sobre la verdadera y propia competencia proveen a distribuir entre los singulares órganos judiciales las litis que en virtud de las normas de aquel primer grupo resultan sometidas a la jurisdicción de Estado; de manera que el funcionamiento de las normas de competencia se condiciona a la resolución afirmativa del problema a que proveen las normas sobre la llamada competencia internacional o jurisdiccional (…).Son concebibles, y existen efectivamente, normas de derecho internacional que tienen por fin una distribución de las litis entre las jurisdicciones de los diversos Estados. Frente a tales normas se podría hablar de competencia exclusiva o de competencia concurrente, para indicar que, en virtude de dichas normas, la facultad de ejercer la jurisdicción respecto de una determinada litis compete a un Estado solamente o, al mismo tiempo, a varios Estados”. GAETANO MORELLI, DERECHO PROCESAL CIVIL INTERNACIONAL, p. 86 (1953). 20. Note-se, entretanto, que o Regulamento na versão em português se refere à expressão competência, enquanto na versão na língua inglesa faz menção à jurisdição. Regulamento (CE) n.° 44/2001 do Conselho, de 22.12.2000, relativo à competência judiciária, ao reconhecimento e à execução de decisões em matéria civil e comercial. JORNAL OFICIAL nº L 012, p. 0001 – 0023 (2001). Da mesma forma, o Regulamento nº 1215/2012. Em francês, ambos se referem à competência (compétence). Por outro lado, o Protocolo de Buenos Aires sobre Jurisdição em Matéria Contratual, 1994, internalizado pelo Decreto nº 2095/96, emprega o termo jurisdição. 21. Convenção de Direito Internacional Privado de Havana de 13.08.1929, promulgada pelo Decreto nº 18.871/29 (Código de Bustamante). 22. Art. 325 do Código Bustamante. V. também arts. 324, 326, 327, 328, 329, 330, 331. Livro 1.indb 22 08/08/2016 23:23:30 Parte I • EXERCÍCIO DA JURISDIÇÃO CIVIL COMO ATRIBUTO DA SOBERANIA: O ESTADO-JUIZ 23 Note-se que o estudo da jurisdição ou competência internacional não se apresenta nas hipóteses sem qualquer elemento de estraneidade. Portanto, se o autor da ação é brasileiro, domiciliado no Brasil e propõe perante o Judiciário brasileiro ação de reconhecimento e dissolução de união estável em face de sua companheira, também brasileira e aqui domiciliada, para dissolver união aqui iniciada e desenvolvida, por fato (por exemplo, agressão) aqui ocorrido, não há dúvidas que a autoridade judiciária brasileira tem jurisdição para conhecer do pedido. Indagar-se-á somente acerca da competência interna: a ação deve ser proposta no foro do domicílio do autor, da mulher ou no lugar onde ocorreu o fato que deu causa à ação? Entretanto, se a relação jurídica a ser submetida ao Judiciário contém um (ou mais) elemento de estraneidade, seja em virtude da nacionalidade ou domicílio de uma das partes ou do lugar em que ocorreu o fato que fundamenta o pedido, cabe indagar se o Judiciário brasileiro pode decidir nesta hipótese. Dessa forma, já é possível extrair uma conclusão. As regras dos arts. 88 e 89 do CPC de 1973, que disciplinam a “competência internacional”, a rigor, enumeram as hipóteses nas quais o Judiciário brasileiro pode exercer uma das funções da soberania, decidindo o caso concreto. Trata-se, portanto, de matéria relacionada à jurisdição (e não à competência) no plano internacional.23 Registre-se que o novo 23. Livro 1.indb 23 Também na doutrina estrangeira há consenso quanto à qualificação de tais normas como reguladoras da jurisdição. Hans Sperl, em curso proferido na Academia de Direito Internacional da Haia, faz a distinção entre as duas expressões: «Une difficulté qui empêche dès le début la formation d’une doctrine claire et pratique sur la portée que joue l’examen de la compétence du juge étranger dans l’exécution internationale, reside dans l’obscurité et l’ambiguïté du terme et de la notion de ‘compétence’. Il y a dans la langue des lois et des juristes peu de termes aussi équivoques que celui de ‘compétence’, comme va nous le prouver l’examen des divers sens dans lesquels ce mot est employé. Il se retrouve, d’une part, inchangé dans d’autres langues (italien: competenza; espagnol: competencia; portugais: juiz competente); d’autre part, il se traduit dans les langues d’origine germanique par le terme: Zuständigkeit, mot suscetible d’autant d’acceptions différentes que le terme français ‘compétence’. Faisant abstraction de l’explication philologique des vocables ‘compétence’ et ‘Zuständigkeit’, il nous faut pourtant constater que la racine des deux mots nous démontre qu’il s’agit d’un pouvoir attribué par une force supérieure à une autorité exerçant des fonctions publiques. Mais il y a une foule de magistrats et de fonctionnaires publics dont les pouvoirs se touchent tellement qu’il y a souvent des controverses, des disputes sur leurs compétences respectives. Et pour désigner la délimitation de l’étendue comme du contenu de tous ce pouvoirs publics, nous n’avons qu’un seul terme, celui de ‘compétence’. Peut-être contribueronsnous à dissiper les obscurités en dissociant les éléments de cette notion trop complexe. (...) On parle de compétence quand on pense aux pouvoirs limitrophes de deux États, synonyme de souveraineté des deux pays. Il faudrait ici substituer au terme ‘compétence’ un autre terme plus spécial: ‘autorité de l’État’ (Staatszuständigkeit), ou, inspiré, du droit de procédure civile, ‘juridiction nationale’ (inländische Gerichtsbarkeit).». Hans Sperl, La Reconnaissance et L’Exécution des Jugements Étrangers, RECUEIL DES COURS, vol. 36, p.435-436 (1931). No mesmo sentido posiciona-se Fragistas, também em curso proferido na mesma Academia:»A proprement parler ce sont des problèmes de juridiction d’Etats et non compétence de tribunaux qui sont en jeu. Ce n’est que par concession à la terminologie prépondérante en Europe continentale que nous avons conservé pour le titre de ces cours le terme de compétence; le terme de juridiction internationale aurait mieux correspondu à la nature de la matière traitée..» Charalambos N. Fragistas, La Compétence International en Droit Privé, RECUEIL DES COURS, vol.104, p.158 e ss. (1962). A distinção entre os termos foi feita em interessante caso decidido pela Corte Internacional de Justiça Corfu Channel (United Kingdom of Great Britain and Northern Ireland v Albania) (Dissenting Opinion by Judge ad hoc Draxner) [1948]. Gerard Fitzmaurice, analisando a referida opinião, expressou-se da seguinte forma: “On the basis of certain remarks made by Dr Daxner, acting as Albanian judge ad hoc in that case [i.e., the Corfu Channel Case], it was suggested that there is a distinction between jurisdiction and competence, and that although these terms are often used interchangeably, they ought probably each to be confined to a particular aspect of the matter. No doubt this distinction is one which, as a matter of terminology, appears mainly in the English rather than in, for example, the French language. But that merely means that in French the term compétence is often used in two senses so that the distinction of substance remains. There is the question of the general class of case in respect of which a given tribunal has jurisdiction—the tribunal’s jurisdictional field, whether ratione materiae personae,or temporis, and there is the question of its competence to hear and determine a particular individual 08/08/2016 23:23:30 24 EXTENSÃO E LIMITES DA JURISDIÇÃO BRASILEIRA – Carmen Tiburcio Código, que vigorará a partir de março de 2016, alterou a denominação do título e capítulo correspondente, passando a utilizar a expressão “Dos limites da jurisdição nacional.” Registre-se, porém, que cabem críticas à expressão “Dos limites”, pois pode dar a errônea impressão de que a jurisdição não pode ser exercida em hipóteses não ali mencionadas, o que não é correto, como se verá. Em resumo, é correto falar-se em competência interna e jurisdição no plano internacional (sob a ótica do Estado individualmente considerado). Em situações previstas em tratados ou normas internacionais, tratar-se-ia de competência internacional. Todavia, a imprecisão terminológica popularizou-se no Brasil também por obra do próprio legislador, que na ICC de 1916, na LICC (atual LINDB) de 1942, e no CPC de 1973 tratou da “competência da autoridade” e da “competência internacional”. Ademais, “competência” é de fato o termo usado pela maioria da doutrina, para o plano interno e internacional. Nessa primeira bem como na segunda parte desta obra, portanto, feitas as distinções terminológicas, os termos serão usados indistintamente, cedendo-se à prática corrente. Por fim, ressalte-se que o tema a ser tratado nesta parte da obra é o da competência internacional direta, ou seja, o poder de decidir originalmente as controvérsias que tenham elementos de estraneidade. O tema da competência internacional indireta se insere no estudo da homologação de sentenças estrangeiras e envolve a análise da competência internacional do órgão estrangeiro prolator da decisão, sob a ótica do Estado no qual se busca o reconhecimento. É certo que as normas internas sobre competência direta serão relevantes para tal fim: essencialmente não se homologarão decisões estrangeiras sobre hipóteses de competência exclusiva do Judiciário local, por isso o tema será referido brevemente em alguns itens relativos à competência exclusiva do Judiciário brasileiro. Mas o estudo da competência internacional indireta envolve mais do que verificar se a hipótese não é da competência exclusiva do Judiciário local, pois se deve analisar se a autoridade prolatora da decisão homologanda exerceu a sua jurisdição de maneira abusiva ou exorbitante. Trata-se, portanto, de tema específico, que não se confunde com o estudo da competência internacional direta, assunto abordado a seguir. I.2. Natureza das Normas sobre o Exercício da Jurisdição As normas que tratam do exercício da jurisdição determinam as situações nas quais o Judiciário local pode (hipóteses de competência concorrente) ou deve (hipóteses de competência exclusiva) atuar a despeito dos elementos de estraneidade case—e.g., the case may not fal ratione materiae, within the tribunal’s general field; or, even if it does, may be excluded on grounds arising ratione personae or ratione temporis. A tribunal may have jurisdiction in the ‘field’ sense, yet lack competence as regards the particular case...Want of jurisdiction in the ‘field’ sense, on the other hand, necessarily involves incompetence to determine the particular case “ Citado por Veijo Heiskanen, Ménage à Trois? Jurisdiction, Admissibility and Competence in Investment Treaty Arbitration, ICSID REVIEW, vol. 29, p. 235 (2014). Livro 1.indb 24 08/08/2016 23:23:30 Parte I • EXERCÍCIO DA JURISDIÇÃO CIVIL COMO ATRIBUTO DA SOBERANIA: O ESTADO-JUIZ 25 contidos na relação jurídica.24 Como a jurisdição é uma das funções da soberania estatal, tais normas integram o direito público e são unilaterais. Ou seja, as normas sobre a matéria determinam somente quando o Judiciário local pode ou deve agir, não tendo qualquer ingerência sobre o exercício da jurisdição por parte de Judiciário estrangeiro. São, portanto, normas unilaterais. A rigor, há duas premissas distintas para a interpretação dos dispositivos que regulam o exercício da atividade jurisdicional: (1) a jurisdição preexiste, pois decorre da própria soberania estatal, não se limitando, portanto, às hipóteses descritas na legislação; (2) as normas sobre competência internacional criam a jurisdição; assim, o legislador nacional, ao estabelecer as regras sobre competência internacional, faz nascer o poder de julgar para aqueles casos mencionados. A adoção de uma ou outra corrente gera diversas consequências: a primeira implica considerar que tais normas não são taxativas, admitindo-se o exercício da atividade jurisdicional em outras situações não expressamente mencionadas na legislação; já a segunda só admitirá o exercício da jurisdição nas hipóteses ali enumeradas, concluindo-se, portanto, por sua taxatividade. Adota-se aqui o entendimento defendido pela primeira corrente, pois a jurisdição decorre da soberania estatal e está a esta indissoluvelmente ligada. Não se pode concordar com a posição que defende que o legislador processual criou a jurisdição somente nas hipóteses descritas na legislação. Por tal razão, não se concorda integralmente com a expressão “Dos Limites da Jurisdição Nacional”, utilizada no Código de 2015. Adiante, se abordar-se-á essa discussão sob o enfoque do direito brasileiro. Gaetano Morelli, ao analisar a natureza das normas sobre jurisdição sob outro aspecto, cita duas teorias existentes sobre o tema, com abordagem ligeiramente distinta da citada acima: i) as normas sobre jurisdição no plano internacional restringem o seu exercício, limitando as situações que podem ser julgadas pelo Judiciário nacional;25 e ii) as normas sobre jurisdição servem também para delimitar a esfera de eficácia do ordenamento jurídico material nacional, pois segundo Chiovenda não pode haver jurisdição se não há aplicação da lei.26 A primeira teoria parte do pressuposto de que a jurisdição preexiste e, portanto, as normas sobre exercício da função jurisdicional limitam este exercício àqueles casos enumerados. Nas situações não expressamente mencionadas, existe a jurisdição, mas esta não deve, em princípio, ser exercida, seja por não ser do interesse do Estado seja 24. Vale observar que, salvo exceções que serão vistas a seguir, sob a ótica do Judiciário brasileiro, o julgador terá sempre o dever de julgar a causa, independentemente de se tratar de competência concorrente ou exclusiva. 25. GAETANO MORELLI, DERECHO PROCESAL CIVIL INTERNACIONAL, p. 85-86 (1953). 26. “Hay que excluir que, según una tesis autorizadamente sostenida, se pueda considerar función de las normas sobre la llamada competencia internacional o jurisdiccional, la de designar los límites de eficacia del ordenamiento estatal, o sea de las normas materiales que lo componen, y reconocer que la delimitación de la jurisdicción se siga de ello únicamente por reflejo, en cuanto sobre los hechos y sobre las relaciones que escapan a la esfera de eficacia del ordenamiento jurídico y quedan, por consiguiente, jurídicamente irrelevantes, no podría ejercerse la jurisdicción por lo menos en cuanto se concreta en la aplicación del derecho objetivo. Según Chiovenda, que es ele principal defensor de la indicada tesis, puesto que la jurisdicción es aplicación de ley, como no puede haber sujeción a la jurisdicción sino donde pueda haber sujeción a la ley, así, de ordinario, donde hay sujeción a la ley hay sujeción a la jurisdicción (...)”. GAETANO MORELLI, DERECHO PROCESAL CIVIL INTERNACIONAL, p. 88 (1953). Livro 1.indb 25 08/08/2016 23:23:31 26 EXTENSÃO E LIMITES DA JURISDIÇÃO BRASILEIRA – Carmen Tiburcio em razão do princípio da efetividade, tendo em vista a existência de outros Estados, que também exercem validamente a sua jurisdição. A segunda teoria, por sua vez, resulta de confusão entre lei aplicável e exercício da função jurisdicional.27 Registre-se que, no entendimento de Chiovenda, como a jurisdição é a aplicação da lei ao caso concreto, caso o ordenamento interno não seja aplicado, não haverá jurisdição.28 Note-se que, caso o argumento se refira à extensão da legislação substantiva, material, do foro, o direito internacional privado estará sendo totalmente ignorado, já que este pode determinar a aplicação do direito estrangeiro pelo juiz nacional. Consequentemente, se o juiz nacional pode aplicar direito estrangeiro, como se pode dizer que as normas sobre jurisdição determinam o âmbito de aplicação da legislação doméstica, já que, em muitas situações, mesmo quando houver jurisdição, não haverá aplicação da lei material local? Já se o argumento se refere às normas de direito internacional privado do foro, o equívoco não é tão evidente, pois a autoridade judiciária nacional aplicará sempre as suas regras de conexão e essas podem indicar a aplicação do direito estrangeiro. Como regra geral, cronologicamente, em primeiro lugar se fixa a jurisdição para, posteriormente, se determinar a lei aplicável. A teoria defendida por Chiovenda inverte a ordem lógica, pois em primeiro lugar se determinaria a lei aplicável e, posteriormente, caso o ordenamento nacional fosse aplicável, se concluiria pela possibilidade de exercício da função jurisdicional. O CPC de 2015 parece referendar o que se vem de dizer, denominando um de seus capítulos “Dos limites da jurisdição nacional”. Assim, a lógica adotada, tal como aqui se sustentou, é a de que a jurisdição preexiste, mas é limitada pelas normas previstas no referido capítulo. A premissa é verdadeira, mas isso não significa que é imune a dificuldades: o não exercício da jurisdição em hipóteses previstas na legislação (em razão, por exemplo, do forum non conveniens ou da eleição de foro) e o exercício da jurisdição em hipóteses não expressamente previstas são temas que apresentam sutilezas teóricas, como se verá oportunamente. Desde já, contudo, vale registrar a conclusão geral de que não há como se negar que há princípios que podem impedir o exercício da jurisdição em casos expressamente previstos (e.g, soberania – imunidade de jurisdição – e boa administração da justiça – forum non conveniens, efetividade, coisa julgada) e, da mesma forma, há princípios que podem determinar o exercício da jurisdição em hipóteses não listadas na legislação (e.g. soberania, vedação à denegação de justiça). Antes de passar ao tema da influência dos princípios sobre as normas de jurisdição, é importante analisar as regras sobre o tema, primeiramente no direito estrangeiro e, em seguida, no direito brasileiro, objeto central desse estudo. 27. Morelli também aponta essa confusão: GAETANO MORELLI, DERECHO PROCESAL CIVIL INTERNACIONAL, p. 93 (1953). 28. Vide o art. 41 da lei de DIP venezuelana, de 6.8.1998, que prevê a possibilidade de exercício da jurisdição na hipótese de aplicação da lei venezuelana. “Artículo 41. Los tribunales venezolanos tendrán jurisdicción para conocer de juicios originados por el ejercicio de acciones relativas a universalidades de bienes: 1. Cuando el Derecho venezolano sea competente, de acuerdo con las disposiciones de esta Ley, para regir el fondo del litigio;”. V. também a seguir, o Código Modelo de Cooperação interjurisdicional para Ibero-América que também prevê essa hipótese de competencia internacional. Livro 1.indb 26 08/08/2016 23:23:31 Parte I • EXERCÍCIO DA JURISDIÇÃO CIVIL COMO ATRIBUTO DA SOBERANIA: O ESTADO-JUIZ 27 II. REGRAS SOBRE FIXAÇÃO DA JURISDIÇÃO II. 1. Direito estrangeiro e comunitário29 II.1.1. Bélgica O Codigo de Direito Internacional Privado de 2004 consagra a competência internacional geral do Judiciário belga quando o réu tem domicílio ou residência habitual no país.30 Além dessa competência internacional geral, o Código enumera várias hipóteses de competência internacional especial, dentre as quais em matéria de estado e capacidade (art. 32), nome (art. 36) ou ausência (art. 40), se a pessoa é belga ou tem no país seu domicílio ou residência; em matéria matrimonial, com base na nacionalidade belga ou residência habitual de um ou ambos os cônjuges na Bélgica,31 em matéria sucessória, se o de cujus tinha residência habitual no país ou se há bens a serem partilhados no país,32 dentre outros casos previstos especificamente na legislação. II.1.2. França Historicamente, o Judiciário francês era incompetente para decidir questões envolvendo estrangeiros,33 por conta dos arts. 14 e 15 do Código Civil francês, que 29. 30. 31. 32. 33. Livro 1.indb 27 A União Europeia foi criada pelo Tratado de Maastricht (Tratado da União Europeia), de 1991, com vigência a partir de 1993, mas somente após o Tratado de Lisboa de 2007, vigência em 2009, seu art 2º determinou expressamente a substituição da expressão Comunidade Economica pela União Europeia. Assim, tecnicamente não há mais que se falar em Comunidade Econômica e, consequentemente, direito comunitário. Todavia, a doutrina majoritária francesa se refere à legislação em vigor com base nos regulamentos europeus como direito comunitário. Também é referida como direito europeu, direito da União Europeia e direito unionista. Neste trabalho se adotou a terminologia direito comunitário. Confira-se: SANDRINE CLAVEL, DROIT INTERNATIONAL PRIVÉ (2012), ANTOINE MASSON, DROIT COMMUNAUTAIRE: DROIT INSTITUTIONNEL ET DROIT MATÉRIEL (2009). “Compétence internationale fondée sur le domicile ou la résidence habituelle du défendeur. Art. 5. § 1er. Hormis les cas où la présente loi en dispose autrement, les juridictions belges sont compétentes si le défendeur est domicilié ou a sa résidence habituelle en Belgique lors de l’introduction de la demande. S’il y a plusieurs défendeurs, les juridictions belges sont compétentes si l’un d’eux est domicilié ou a sa résidence habituelle en Belgique, à moins que la demande n’ait été formée que pour traduire un défendeur hors de la juridiction de son domicile ou de sa résidence habituelle à l’étranger. § 2. Les juridictions belges sont également compétentes pour connaître de toute demande concernant l’exploitation de l’établissement secondaire d’une personne morale n’ayant ni domicile ni résidence habituelle en Belgique, lorsque cet établissement est situé en Belgique lors de l’introduction de la demande.”. Disponível em <http://www.ejustice.just.fgov.be/ cgi_loi/change_lg.pl?language=fr&la=F&cn=2004071631&table_name=loi>, acesso em 12 de outubro de 2015. “Compétence internationale en matière de relations matrimoniales. Art. 42. Les juridictions belges sont compétentes pour connaître de toute demande concernant le mariage ou ses effets, le régime matrimonial, le divorce ou la séparation de corps, outre dans les cas prévus par les dispositions générales de la présente loi, si : 1° en cas de demande conjointe, l’un des époux a sa résidence habituelle en Belgique lors de l’introduction de la demande; 2° la dernière résidence habituelle commune des époux se situait en Belgique moins de douze mois avant l’introduction de la demande; 3° l’époux demandeur a sa résidence habituelle depuis douze mois au moins en Belgique lors de l’introduction de la demande; ou 4° les époux sont belges lors de l’introduction de la demande.” “Compétence internationale en matière de succession. Art. 77. Les juridictions belges sont compétentes pour connaître de toute demande en matière successorale, outre dans les cas prévus par les dispositions générales de la présente loi à l’exclusion de l’article 5, si : 1° le défunt avait sa résidence habituelle en Belgique au moment de son décès; ou 2° la demande porte sur des biens situés en Belgique lors de son introduction.” Corte de Cassação francesa, decisão de 22 de janeiro de 1806, cf DOMINIQUE BUREAU E HORATIA MUIR WATT, DROIT INTERNATIONAL PRIVÉ, PARTIE GÉNÉRALE, vol. 1, p. 141 (2007). 08/08/2016 23:23:31 28 EXTENSÃO E LIMITES DA JURISDIÇÃO BRASILEIRA – Carmen Tiburcio fixam a competência internacional em razão da nacionalidade francesa do autor ou do réu: “Art. 14. L’étranger, même non résidant en France, pourra être cité devant les tribunaux français, pour l’exécution des obligations par lui contractées en France avec un Français; il pourra être traduit devant les tribunaux de France, pour les obligations par lui contractées en pays étranger envers des Français. Art. 15. Un Français, pourra être traduit devant un Tribunal de France, pour des obligations par lui contractées en pays étranger, même avec un étranger. ” Esse regime só foi inteiramente abandonado em 1963, quando a Corte de Cassação decidiu o caso Scheffel.34 Atualmente, no regime denominado de direito comum (quando não forem aplicáveis normas da União Europeia ou de algum acordo bilateral), a primeira fonte de regras (règles ordinaires) ocorre com a transposição das normas sobre competência interna para o plano internacional. Trata-se de construção eminentemente jurisprudencial decorrente do julgamento do caso Pelassa pela Corte de Cassação, que formulou a regra “qui étend à la ordre international les règles internes de compétence”,35 reafirmada em casos posteriores.36 Ou seja, os tribunais franceses podem exercer jurisdição quando o réu for domiciliado na França (transposição da regra de competência interna prevista nos arts. 42(1)37 e 43 do Código de Processo Civil).38 Em determinadas matérias (art. 46)39, contudo, o autor pode escolher um foro alternativo ao do domicílio do réu: em matéria contratual, o foro do local da entrega efetiva da coisa ou da prestação do serviço, e, em matéria de responsabilidade civil, o local do evento ou do dano. Quanto às demandas relativas a imóveis e fundadas em direito real, a competência é exclusiva do local da situação do bem (art. 4440).41 Ademais, o art. R.114-1 do Code des Assurances42 já foi projetado para o plano internacional pela Corte de Cassação 34. “Attendu que l´extranéité des parties n´est pas une cause d´incompétence des juridictions françaises.” Corte de Cassação francesa, caso Scheffel, 30.10.1962. 35. Corte de Cassação francesa, caso Pelassa, 19.10.1959. 36. Por exemplo, Corte de Cassação francesa, caso Scheffel, 30.10.1962. Critério ainda adotado, cf SANDRINE CLAVEL, DROIT INTERNATIONAL PRIVÉ, p. 184, (2012). 37. Art. 42: “ La juridiction territorialement compétente est, sauf disposition contraire, celle du lieu où demeure le défendeur.(…) ” 38. Art. 43: “ Le lieu où demeure le défendeur s’entend: – s’il s’agit d’une personne physique, du lieu où celle-ci a son domicile ou, à défaut, sa résidence,- s’il s’agit d’une personne morale, du lieu où celle-ci est établie.» 39. Art. 46: “ Le demandeur peut saisir à son choix, outre la juridiction du lieu où demeure le défendeur: – en matière contractuelle, la juridiction du lieu de la livraison effective de la chose ou du lieu de l’exécution de la prestation de service; – en matière délictuelle, la juridiction du lieu du fait dommageable ou celle dans le ressort de laquelle le dommage a été subi; – en matière mixte, la juridiction du lieu où est situé l’immeuble; – en matière d’aliments ou de contribution aux charges du mariage, la juridiction du lieu où demeure le créancier.» 40. Art. 44: “ En matière réelle immobilière, la juridiction du lieu où est situé l’immeuble est seule compétente. ” 41. BERNARD AUDIT, DROIT INTERNATIONAL PRIVÉ, p. 289 (2006). 42. Art. 114-1: “ Dans toutes les instances relatives à la fixation et au règlement des indemnités dues, le défendeur (assureur ou assuré) est assigné devant le tribunal du domicile de l’assuré, de quelque espèce d’assurance qu’il s’agisse, sauf en matière d’immeubles ou de meubles par nature, auquel cas le défendeur est assigné devant le tribunal de la situation des objets assurés. Livro 1.indb 28 08/08/2016 23:23:31 Parte I • EXERCÍCIO DA JURISDIÇÃO CIVIL COMO ATRIBUTO DA SOBERANIA: O ESTADO-JUIZ 29 como regra de competência internacional exclusiva.43 Interessante também observar o art. 1.070 do Código de Processo Civil,44 imperativo no plano interno e relativo quando projetado para a competência internacional.45 Além da transposição de certas regras de competência interna, aplicam-se também os arts. 14 e 15 do Código Civil (os únicos, aliás, que se referem expressamente à jurisdição no direito francês). Os tribunais franceses podem exercer jurisdição com base nesses dois artigos quando: (1) o réu for um nacional francês ou (2) o autor for um nacional francês. Ambas as regras são freqüentemente criticadas,46 banidas no direito europeu47 e, mesmo no direito francês, os tribunais traçaram contornos detalhados (embora nem sempre claros) para sua aplicação.48 Ressalte-se que o privilégio conferido pelos arts. 14 e 15 aos nacionais franceses pode ser renunciado, por exemplo, com a submissão voluntária ao tribunal estrangeiro. Note-se que, em decisão de 2006, a Corte de Cassação francesa pôs fim ao entendimento até então prevalecente, afirmando expressamente que os referidos artigos tratam de competência facultativa.49 II.1.3. Itália A Itália, em sua lei de DIP, de 1995, como novidade, introduziu a possibilidade de efeitos positivos e negativos à eleição de foro no plano internacional (art. 4º) bem como conferiu efeitos à litispendência internacional (art. 7º). A legislação adota interessante critério, pois veda o exercício de jurisdição em hipótese envolvendo ações reais sobre imóveis sitos no exterior. O art. 5º estabelece: “1. La giurisdizione Toutefois, s’il s’agit d’assurances contre les accidents de toute nature, l’assuré peut assigner l’assureur devant le tribunal du lieu où s’est produit le fait dommageable. ” 43. Corte de Cassação, Equitania Insurance Company c. Société Vienna et autres, 17.06.1997. 44. Art. 1070: “ Le juge aux affaires familiales territorialement compétent est: – le juge du lieu où se trouve la résidence de la famille; – si les parents vivent séparément, le juge du lieu de résidence du parent avec lequel résident habituellement les enfants mineurs en cas d’exercice en commun de l’autorité parentale, ou du lieu de résidence du parent qui exerce seul cette autorité ; – dans les autres cas, le juge du lieu où réside celui qui n’a pas pris l’initiative de la procédure. En cas de demande conjointe, le juge compétent est, selon le choix des parties, celui du lieu où réside l’une ou l’autre. Toutefois, lorsque le litige porte seulement sur la pension alimentaire, la contribution à l’entretien et l’éducation de l’enfant, la contribution aux charges du mariage ou la prestation compensatoire, le juge compétent peut être celui du lieu où réside l’époux créancier ou le parent qui assume à titre principal la charge des enfants, même majeurs. La compétence territoriale est déterminée par la résidence au jour de la demande ou, en matière de divorce, au jour où la requête initiale est présentée.” 45. Corte de Cassação, caso Simitch, 06.01.1985. 46. Por exemplo, G. Droz, Réflexion pour une Réforme des Articles 14 et 15 du Code Civil Français, REVUE CRITIQUE DE DROIT INTERNATIONAL PRIVÉ, p. 1 (1975), citado por BERNARD AUDIT, DROIT INTERNATIONAL PRIVÉ, p. 300, nota 5 (2006). 47. Veja-se o art. 3º da Convenção de Bruxelas, reproduzido no arts. 3.2 e 4.2 do Regulamento (CE) n. 44/2001, Anexo I. Também, no art. 5.2 do Regulamento 1215/2012. 48. Cf. BERNARD AUDIT, DROIT INTERNATIONAL PRIVÉ, p. 301 e ss. (2006). 49. Corte de Cassação, Arrêt n° 857, 23.05. 2006 : «(...) Mais attendu que l’article 15 du code civil ne consacre qu’une compétence facultative de la juridiction française, impropre à exclure la compétence indirecte d’un tribunal étranger, dès lors que le litige se rattache de manière caractérisée à l’Etat dont la juridiction est saisie et que le choix de la juridiction n’est pas frauduleux ; qu’ayant retenu que les parties, toutes deux nées en Suisse, s’étaient mariées dans ce pays en convenant d’un contrat de mariage régi par le droit suisse et y avaient établi leur résidence, la cour d’appel a exactement décidé qu’en l’absence de fraude dans la saisine du tribunal étranger, celui-ci était compétent; (...)». Livro 1.indb 29 08/08/2016 23:23:31