Edmar Guirra dos Santos
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Edmar Guirra dos Santos
UNIVERSIDADE FEDERAL DO RIO DE JANEIRO A TRAJETÓRIA DE JULES VERNE; A ARTE, O ESCRITOR E SEU EDITOR Edmar Guirra dos Santos RIO DE JANEIRO FEVEREIRO DE 2016 EDMAR GUIRRA DOS SANTOS A TRAJETÓRIA DE JULES VERNE; A ARTE, O ESCRITOR E SEU EDITOR 1 volume Tese de doutorado submetida ao Programa de Pós-Graduação em Letras Neolatinas da Universidade Federal do Rio de Janeiro – UFRJ, como parte dos requisitos necessários à obtenção do título de Doutor em Letras Neolatinas (Estudos Literários Neolatinos Opção: Literaturas de Língua Francesa). Orientador: Professor Doutor Pedro Paulo Garcia Ferreira Catharina. RIO DE JANEIRO FEVEREIRO DE 2016 FICHA CATALOGRÁFICA Santos, Edmar Guirra dos. A trajetória de Jules Verne; a arte, o escritor e seu editor/ Edmar Guirra dos Santos. Rio de Janeiro: UFRJ/Faculdade de Letras, 2016. 233 f.; il.; 31 cm. Orientador: Pedro Paulo Garcia Ferreira Catharina Tese (doutorado) – UFRJ/ FL / Programa de Pós-graduação em Letras Neolatinas, 2016. Referências bibliográficas: f. 18 1. Jules Verne. 2. Viagens extraordinárias. 3.Campo literário. 4.Trajetória. 5. Arte I. Catharina, Pedro Paulo Garcia Ferreira. II. Universidade Federal do Rio de Janeiro, Faculdade de Letras, Programa de Pós-graduação em Letras Neolatinas. III. Título. A TRAJETÓRIA DE JULES VERNE; A ARTE, O ESCRITOR E SEU EDITOR Edmar Guirra dos Santos Orientador: Professor Doutor Pedro Paulo Garcia Ferreira Catharina Tese de doutorado submetida ao Programa de Pós-Graduação em Letras Neolatinas da Universidade Federal do Rio de Janeiro – UFRJ, como parte dos requisitos necessários à obtenção do título de Doutor em Letras Neolatinas (Estudos Literários Neolatinos Opção: Literaturas de Língua Francesa). Orientador: Professor Doutor Pedro Paulo Garcia Ferreira Catharina. Examinada por: ______________________________________________________________________ Presidente, Professor Dr. Pedro Paulo Garcia Ferreira Catharina - UFRJ ______________________________________________________________________ Professora Dra. Celina Maria Moreira de Mello – UFRJ ______________________________________________________________________ Professora Dra. Rosa Maria de Carvalho Gens – UFRJ ______________________________________________________________________ Professor Dr. Armando Ferreira Gens Filho – UERJ ______________________________________________________________________ Professora Dra. Lúcia Granja – UNESP ______________________________________________________________________ Professor Dr. Fabiano Dalla Bona - UFRJ ______________________________________________________________________ Professor Dr. Leonardo Pinto Mendes - UERJ Rio de Janeiro Fevereiro de 2016 AGRADECIMENTOS É com muita satisfação que expresso o meu agradecimento a todos aqueles que tornaram a realização deste trabalho possível. Sem o empenho dos professores que me guiaram até aqui, sem o auxílio financeiro da CAPES, o acolhimento e as ricas indicações do professor Jean-Yves Mollier, a disponibilidade dos colegas do Centre International Jules Verne e a ajuda fraterna de Adriana e Alban Lamaison, estou certo de que meu trabalho teria tido outros resultados. Ao final desse período de pesquisas, que inclui uma enriquecedora estada na França, a lista de agradecimentos seria bastante longa, pois entendo que muitos que cruzaram o meu caminho têm relação direta comigo, com o meu trabalho, com o que pude aprender e, portanto, sinto o dever em agradecer-lhes. Mas não o farei aqui. Preferi memorizar na retina os incontáveis bons momentos desses anos de pesquisa e guardar as discussões na minha memória de canceriano. No entanto, não posso deixar de dizer minha gratidão a algumas pessoas. Aos membros que aceitaram participar da avaliação da Tese – Celina Maria Moreira de Mello, Lúcia Granja, Rosa Maria de Carvalho Gens, Armando Ferreira Gens Filho, Fabiano Dalla Bona e Leonardo Pinto Mendes, envio o meu respeito e os mais sinceros agradecimentos. Aos colegas de pesquisa, Gisele Batista, Marianna Vasconcelos, Fernanda Lima e Luiz Paulo Monteiro, obrigado pelos momentos de discussão e de entusiasmo compartilhados. Às amigas Luana Monçores e Lucienne Leão agradeço as palavras prudentes e o suporte que, junto daquele da minha família compreensiva me ajudou a seguir em frente. Não posso deixar de aproveitar o espaço menos acadêmico que o expediente dessa página permite para fazer alguns agradecimentos específicos. Obrigado, Celina, por acompanhar de perto minha pesquisa, pelos auxílios muito enriquecedores e pontuais que sempre renderam vontade de ir além, de descobrir mais. Merci beaucoup d’avoir éclairé ma lanterne! Muito obrigado, Pedro, pela confiança, pelo companheirismo, por diversas vezes saber como me impulsionar para ir mais longe. Obrigado pelo investimento do seu tempo, pela sua atenção, paciência e pelo carinho dispensados. Ao longo desses anos de trabalho, você contribuiu muito para eu ser uma pessoa melhor. Merci infiniment d’avoir posé les rails! SANTOS, Edmar Guirra dos. A trajetória de Jules Verne; a arte, o escritor e seu editor. Tese de Doutorado submetida ao Programa de Pós-Graduação em Letras Neolatinas da Universidade Federal do Rio de Janeiro - UFRJ, como parte dos requisitos necessários para a obtenção do título de Doutor em Letras Neolatinas, área de concentração Estudos literários neolatinos, opção Literaturas de língua francesa. Rio de Janeiro, 2016, 233 fls. RESUMO Estudo da trajetória de Jules Verne no campo literário francês, realizado através da análise dos diversos momentos de sua carreira, enfocando os questionamentos feitos pelo escritor acerca do lugar da literatura e da arte, do escritor e do artista na sociedade industrial da segunda metade do século XIX. Inserido em uma abordagem sociodiscursiva, o estudo baseia sua discussão nos conceitos de campo literário, habitus, capital, espaço dos possíveis estéticos e trajetória, propostos pelo sociólogo Pierre Bourdieu, e nos aportes da Análise do Discurso de Dominique Maingueneau, através da abordagem do discurso literário e dos conceitos de posicionamento discursivo, paratopia, ethos discursivo e cenografia enunciativa. A Tese endossa a ideia de que a produção literária de um escritor está intrinsecamente relacionada a seus sucessivos posicionamentos enunciativos e às posições assumidas no campo literário. Além disso, distante da ideia do gênio romântico solitário, consideramos a produção literária como um processo coletivo que implica diversos agentes e suas negociações. Assim, a Tese destaca, no caso da obra e da carreira de Jules Verne, o papel fundamental de seu editor, Pierre-Jules Hetzel, e dos contratos firmados por eles, na determinação das escolhas estéticas e dos posicionamentos do escritor. SANTOS, Edmar Guirra dos. A trajetória de Jules Verne; a arte, o escritor e seu editor. Tese de Doutorado submetida ao Programa de Pós-Graduação em Letras Neolatinas da Universidade Federal do Rio de Janeiro - UFRJ, como parte dos requisitos necessários para a obtenção do título de Doutor em Letras Neolatinas, área de concentração Estudos literários neolatinos, opção Literaturas de língua francesa. Rio de Janeiro, 2016, 233 fls. RÉSUMÉ Étude de la trajectoire de Jules Verne dans le champ littéraire français, menée à travers l’analyse de plusieurs moments de sa carrière, mettant en évidence l’ensemble des questions posées par l’écrivain concernant la place de la littérature et de l’art, de l’écrivain et de l’artiste dans la société industrielle de la seconde moitié du XIXe siècle. Dans une démarche sociodiscursive, l’étude s’appuie sur les concepts de champ littéraire, habitus, capital, espace de possibles esthétiques et trajectoire proposés par le sociologue Pierre Bourdieu, et sur les apports de l’Analyse du Discours de Dominique Maingueneau par l’approche du discours littéraire et des concepts de positionnement discursif, paratopie, ethos discursif et scénographie énonciative. On défend l’idée que la production littéraire d’un écrivain est directement liée à ses successifs positionnements énonciatifs et aux positions prises à l’intérieur du champ littéraire. En outre, loin de l’idée du génie romantique solitaire, on considère la production littéraire comme un processus collectif dépendant de plusieurs agents et leurs négociations. Aussi cette thèse met-elle en relief, dans le cas de l’œuvre et de la carrière de Jules Verne, le rôle fondamental de son éditeur, Pierre-Jules Hetzel, et des contrats qu’ils ont signés pour la détermination des choix esthétiques et des positionnements de l’écrivain. LISTA DE ILUSTRAÇÕES ILUSTRAÇÃO 1 ILUSTRAÇÃO 2 ILUSTRAÇÃO 3 ILUSTRAÇÃO 4 ILUSTRAÇÃO 5 ILUSTRAÇÃO 6 ILUSTRAÇÃO 7 ILUSTRAÇÃO 8 ILUSTRAÇÃO 9 ILUSTRAÇÃO 10 ILUSTRAÇÃO 11 ILUSTRAÇÃO 12 ILUSTRAÇÃO 13 ILUSTRAÇÃO 14 ILUSTRAÇÃO 15 ILUSTRAÇÃO 16 ILUSTRAÇÃO 17 ILUSTRAÇÃO 18 ILUSTRAÇÃO 19 ILUSTRAÇÃO 20 ILUSTRAÇÃO 21 ILUSTRAÇÃO 22 ILUSTRAÇÃO 23 ........................................................................................... ........................................................................................... ........................................................................................... ........................................................................................... ........................................................................................... ........................................................................................... ........................................................................................... 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........................................................................................... ........................................................................................... ........................................................................................... ........................................................................................... ........................................................................................... ........................................................................................... p.47 p.47 p.50 p.50 p.52 p.54 p.56 p.60 p.61 p.63 p.67 p.67 p.70 p.79 p.122 p.135 p.148 p.150 p.165 p.172 p.172 p.177 p.181 SUMÁRIO 1- INTRODUÇÃO ........................................................................................ 1 2- QUESTÕES METODOLÓGICAS ........................................................ 10 2.1 Sobre a teoria do campo literário ................................................................ 2.2 Por uma abordagem discursivo-literária ..................................................... 2.3 Da picturalidade das descrições .................................................................. 10 17 22 JULES VERNE E O CAMPO LITERÁRIO ......................................... 26 3.1 Os possíveis estéticos para Jules Verne ...................................................... 3.2 A revista-vitrine de Hetzel e a colaboração de Jules Verne ....................... 3.3 A “hetzelização” de Jules Verne ................................................................. 26 46 73 3- 4- AS REPRESENTAÇÕES DA ARTE E DO ARTISTA NA OBRA DE JULES VERNE: POSICIONAMENTOS NO CAMPO LITERÁRIO ............................................................................................ 4.1 As comédias La Guimard e Monna Lisa .................................................... 4.2 Jules Verne, crítico de arte .......................................................................... 4.2.1 A instituição Salão e a figura do crítico ............................................ 4.2.2 Jules Verne, crítico do Salão de 1857 ................................................ 4.2.3 O exemplo de Courbet ....................................................................... 4.3 Paris no século XX ..................................................................................... 4.3.1 Fracasso de um romance e romance do fracasso ............................... 4.3.2 A literatura e o personagem paratópico na Paris “futurista”............... 4.4 Representações artísticas nas Viagens extraordinárias .............................. 4.4.1 O gabinete de curiosidades do capitão Nemo ..................................... 4.4.2 Os personagens pintores de O Raio verde e de O segredo de Wilhelm Storitz ......................................................................................................... 84 84 107 109 112 120 126 127 131 147 147 173 5- CONCLUSÃO .......................................................................................... 187 6- ANEXOS ................................................................................................... 192 6.1 Contratos .................................................................................................... 6.1.1 Contrato para Cinco semanas num balão (1862) .............................. 6.1.2 Contrato para Viagens e aventuras do capitão Hatteras (1864) ........ 6.1.3 Contrato de 1865 ............................................................................... 6.1.4 Contrato de 1875 ............................................................................... 6.2 Paratextos do Magasin d’Éducation et de Récréation ................................ 6.2.1 À nos lecteurs ……………………………………………………… 6.2.2 Avis de l’éditeur ………………………………………………...…. 6.2.3 Avertissement de l’éditeur …………………………………………. 192 192 193 195 197 202 202 204 205 6.2.4 Prospectus ......................................................................................... 6.3 Imagens ...................................................................................................... 6.3.1 Érasistrate découvrant la cause de la maladie d’Antiochius ou Les Amours de Stratonice et d’Antiochus ......................................................... 6.3.2 Mademoiselle Guimard en Terpsichore ............................................ 6.3.3 Le Serment des Horaces .................................................................... 6.3.4 Combat de Mars contre Minerve ....................................................... 6.3.5 La Joconde ou Portrait de Mona Lisa .............................................. 6.3.6 La Cène ............................................................................................. 6.3.7 Léonard de Vinci peint Monna Lisa ................................................... 6.3.8 Romains de la décadence ................................................................... 6.3.9 Appel des dernières victimes de la Terreur à la prison Saint Lazare à Paris......................................................................................................... 6.3.10 Le supplice de Jane Grey ................................................................ 6.3.11 Cromwell et Charles I ..................................................................... 6.3.12 Dante et Virgile aux enfers ou La Barque du Dante ........................ 6.3.13 La justice de Trajan ......................................................................... 6.3.14 Le Martyre de Saint-Symphorien ..................................................... 6.3.15 Homère déifié ou L’Apothéose d’Homère 6.3.16 Les Demoiselles des bords de la Seine (été)...................................... 206 207 BIBLIOGRAFIA ..................................................................................... 216 De Jules Verne ........................................................................................... Sobre Jules Verne ....................................................................................... Bibliografia Geral ...................................................................................... Periódicos e Boletins consultados .............................................................. 216 221 225 233 77.1 7.2 7.3 7.4 207 208 209 209 210 210 211 211 212 212 213 213 214 214 215 215 1 – INTRODUÇÃO Jules Verne (1828-1905) é até hoje um nome conhecido no seu país e no mundo inteiro. Segundo os últimos dados do Index Translationum - repertório das obras traduzidas organizado pela UNESCO -, ele é o segundo autor mais traduzido no mundo, ficando atrás somente de Agatha Christie. Verne escreveu sessenta e três romances conhecidos como As Viagens extraordinárias. Frequentemente desprezada pela Academia Francesa, sua obra foi recomendada e chamada de “viagens imaginárias” pelo escritor romântico Théophile Gautier, em artigo publicado no jornal Le Moniteur Universel, de 1866, em que faz uma curta análise dos quatro romances de Jules Verne já publicados à época - Cinq semaines en ballon (1863), Voyages et aventures du capitaine Hatteras (1864), Voyage au centre de la Terre (1865), De la Terre à la lune (1865): O melhor a se fazer em tal situação é fechar tudo, persianas, venezianas e cortinas, estender-se numa poltrona de moleskine, enrolado num albornoz argelino, e ler a meia-luz, à qual o olho se adapta rapidamente, algum livro agradável e refrescante, as viagens imaginárias do senhor Jules Verne, por exemplo, cujos títulos, apenas, já fazem correr um leve frisson sobre a pele.1 Nesse texto, sem incluir Verne explicitamente em uma escola literária específica, Gautier afirma ainda que o segundo romance é uma narrativa “[...] exata, minuciosa como um livro de bordo que faz surgir a absoluta sensação da realidade. A tecnicidade marítima, matemática e científica empregada sobriamente imprime uma realidade a esse fantástico Forward”,2 indicando assim as balizas que determinaram o gênero “romance científico” para Jules Verne. O defensor da arte pela arte ainda caracteriza a obra de Verne como sendo do mais alto grau de perfeição, comparando-a àquelas de Edgar Allan Poe e Daniel Defoe: “Há mais no senhor Jules Verne de Edgar Poe e de Daniel de Foe que de Swift ou, para melhor dizer, ele encontrou seu próprio método e o trouxe, de uma só vez, ao mais alto grau de “Ce qu’il y a de mieux à faire, c’est de fermer tout, persiennes, stores, rideaux, de s’allonger sur un fauteil de moleskine enveloppé dans un burnous algérien, et de lire dans la sémi-obscurité à laquelle l’oeil se fait bien vite, quelque livre agréable et rafraîchissant, les voyages imaginaires de M. Jules Verne par exemple, dont les titres seuls vous font courir sur la peau un léger frisson. Texto crítico de Théophile Gautier intitulado “Les voyages imaginaires de M. Jules Verne”, publicado em Le Moniteur Universel, nº 197, 16 juillet 1866. Consultado nos arquivos da Bibliothèque nationale de France (BNF) referência BN. GD. Fº2, p. 114. 2 Forward é o nome da embarcação do Capitão Hatteras. “[récit] exact, minutieux comme un livre de bord, fait naître l’absolue sensation de la réalité. La technicité maritime, mathématique et scientifique employée sobrement imprime uune vérité à ce fantastique Forward.” GAUTIER, 1866. 1 1 perfeição”.3 Essa excelência talvez não tivesse sido alcançada se não fossem as relações estreitas entre Jules Verne e Pierre-Jules Hetzel (1814-1886), seu editor, com suas ações empreendedoras no mundo da edição e no campo literário. No entanto, embora muito se conheça sobre os bem-sucedidos romances de aventura destinados ao público juvenil de Verne, sabe-se muito pouco sobre a fase da carreira que antecede as Viagens extraordinárias. Esta Tese pretende lançar luz sobre esse período de produção literária de Verne, levando em conta igualmente sua relação com o editor Pierre-Jules Hetzel e as tensões do campo literário nos diversos momentos da trajetória do escritor. No ano de 1851, Jules Verne desejava abandonar seus estudos de Direito em Paris e seguir carreira no mundo das Letras. Frequentando alguns Salões da época, conhecerá Alexandre Dumas Filho. Em 1852 desiste de um cargo de advogado e se engaja como secretário no Théâtre-Lyrique, em Paris, que conta com a direção de Jules Seveste. Nesse momento, já havia escrito tragédias, vaudevilles e comédias. O jovem Verne inspirava-se em Victor Hugo, chef de file da escola romântica, que via como um semideus. Desejava conhecê-lo e, para isso, confiava em seus contatos sociais. Aguardava que o Conde de Coral, redator do jornal La Liberté e amigo de Madame de Barrère, proprietária da casa onde Verne morava, os apresentasse.4 O desejado encontro com Victor Hugo permiti-nos cogitar em uma tentativa da parte de Verne de filiação ao grupo romântico. Um dos primeiros traços discursivos de um Verne romântico em potencial aparece no fim da comédia Quiridine et Quidinerit. Escrita em 1850 e nunca encenada, Jules Verne, através das palavras do personagem do boticário, deixa claro a tentativa de filiação ao grupo romântico: Au public Mesdames et Messieurs, La pièce que ce soir nous avons eu l’honneur De jouer devant vous, n’est ni d’un grand seigneur, Ni d’un poète, ni d’un faiseur dramatique, Mais d’un pauvre amoureux dans le genre romantique Qui n’affriande point l’appât des droits d’auteur, Et qui se dit ici votre humble serviteur.5 “Il y a plus chez M. Jules Verne d’Edgar Poë et de Daniel Defoë, que de Swift, ou pour mieux dire il a trouvé son procédé lui-même et l’a porté du premier coup au plus haut degré de perfection.” GAUTIER, 1866. 4 “Elle me fera connaissance avec un jeune homme ami intime de Victor Hugo. Lequel jeune homme pourra réaliser le plus cher de mes rêves. Ce Coral, ami de Hugo, me conduira chez lui dès que ce demi-dieu pourra me recevoir.” VERNE, apud PROUTTEAU, Gilbert. Le grand roman de Jules Verne, sa vie. Paris: Stock, 1979, p. 89. 5 VERNE, Jules. Quiridine et Quidinerit. (1851) In: ___. Théâtre inédit. Sous la direction de Christian Robin. Paris Le Cherche midi, 2005, p. 566. 3 2 Além dessa comédia, Jules Verne escreveu mais vinte e nove textos dramáticos entre os anos de 1845 e 1867. A maioria das peças escritas por ele nunca foi encenada. A publicação de alguns desses textos foi feita em Manuscrits nantais pela Biblioteca Municipal da cidade de Nantes, em 1991. A tiragem muito pequena não permite que se encontre essa compilação à venda.6 No entanto, uma nova publicação foi realizada em 2005. Organizadas por Christian Robin, algumas dessas peças foram compiladas e publicadas com o título Théâtre inédit pela editora Cherche midi. Os dramas vernianos também podem ser encontrados na biblioteca de Nantes e na casa de Jules Verne, situada na mesma cidade. Analisaremos nesta Tese as peças La Guimard, comédia em prosa escrita em 1850, e Monna Lisa, comédia em verso escrita em 1851 “no gênero das peças de Musset”,7 ambas nunca encenadas, mas que, por tratarem do tema “arte e artista”, foram privilegiadas pela análise. Além dessas duas peças, a fim de pontuar a trajetória de Jules Verne no campo literário, estudaremos brevemente também aquelas que foram encenadas e seriam, portanto, responsáveis pela legitimação de Verne como escritor para as artes do espetáculo. São elas: Les Pailles rompues, comédia em versos escrita em colaboração com Alexandre Dumas Filho e encenada em 1850 no Théâtre-Historique, célebre sala situada no “Boulevard du crime”; Le Colin-Maillard e Les compagnons de la Marjolaine, escritas em 1852 e 1853 respectivamente, ambas óperas-cômicas encenadas no ThéâtreLyrique; Monsieur de Chimpanzé de 1857, opereta encenada no Théâtre des BouffesParisiens; e ainda, Onze jours de siège, comédia em prosa escrita entre os anos de 18541860, que contou com apresentação única em 1861 no Théâtre Vaudeville. No mesmo período que Verne tem representadas essas peças, também escreve algumas novelas e artigos para a revista Musée des familles como Les Premiers navires de la marine mexicaine (1851), Maître Zacharius ou l’horloger qui avait perdu son âme (1854) e Edgard (sic) Poë et ses oeuvres (1862). Embora não façam parte de nossas análises, dois carnês de poemas, iniciados em 1847-1848 e descobertos no final dos anos de 1980, e algumas letras de música também têm espaço nesse momento da carreira do escritor. 6 Informação já assinalada por William Butcher na biografia de referência que dedica a Jules Verne. Cf. BUTCHER, William. Jules Verne; The definitive biography. New York: Thunders mouth press, 2006, p. 320. 7 TOUTTAIN, Pierre-André (dir.). Jules Verne. Paris: 25, L'Herne, 1974, p. 23. 3 No ano de 1857, o jovem Verne publica um estudo substancial sobre o Salão do mesmo ano. Visto sua extensão – trinta e duas mil palavras –, sua unidade temática e seu título único, Salon de 1857 – o estudo é considerado por William Butcher, especialista na obra de Jules Verne, como a primeira longa obra em prosa de Verne: Sem nenhum esforço aparente, ele publicou oito longos artigos relativos ao “Salon de 1857”, resultando num total de surpreendentes 32.000 palavras. Levando em conta a extensão e, sobretudo, a unidade do tema, podemos legitimamente considerar esses estudos coletivamente como um livro. O Salon de 1857representa, assim, o primeiro grande trabalho verniano em prosa terminado sem grandes esforços [...] O livro foi publicado sob a forma de artigos na Revue des beaux-arts: La tribune des artistes.” 8 Nenhum pesquisador da obra de Verne havia anteriormente suspeitado do interesse do escritor pela crítica de arte, já que a existência desses artigos críticos só veio a público no ano de 2006, divulgada por Butcher, e publicados no fim de 2008.9 A importância desses artigos para o desenvolvimento artístico e intelectual de Jules Verne é significativa, pois nos anos que se seguirão, depois de muitas decepções – literárias, artísticas, profissionais –, Jules Verne parece alcançar seu objetivo de legitimar-se como escritor. Em 1862, depois de um encontro cuja origem nunca foi esclarecida pelos biógrafos de Verne, ele apresenta ao editor Pierre-Jules Hetzel o manuscrito de um romance intitulado Voyage en l’air – une découverte de l’Afrique inconnue, survolée par un ballon manœuvrable. Escrito como um autêntico relato de viagem, o texto leva Hetzel a pensar ter encontrado o escritor para seu futuro projeto editorial-pedagógico, o Magasin d’Éducation et de Récréation – revista de publicação quinzenal composta por textos agradáveis e divertidos e textos didáticos e instrutivos, com o objetivo de formar o capital intelectual da juventude de seu tempo. O editor aceita publicar o romance e a obra aparecerá em 1863 com o título Cinq semaines en ballon – Voyage de découvertes en Afrique par trois Anglais. Devido ao sucesso de vendas, um outro contrato é assinado e Jules Verne pôde, finalmente, começar a viver da sua literatura. Esboçam-se assim as diretrizes gerais fundadoras da obra de “With no apparent effort he published eight long review articles of the 1857 Salon, an amazing total of 32.000 words. Given their scope and unity of theme, we should undoubtedly consider the articles collectively to be a book. The Salon 1857 thus constitutes Verne’s first completed prose endeavor of any length. […] Verne’s book appeared as individual articles in the Revue beaux-arts: Tribune des artistes […]” BUTCHER, 2006, p. 129-130. 9 VERNE, Jules. Salon de 1857. Éd. Établie, présentée et annotée par William Butcher. [S.L.]. Acadien, 2008. 8 4 Jules Verne, dentre as quais se destaca a utilizaçãode fontes temáticas extraídasdos domínios científicos e das descobertas da sua época. Para cumprir com o número de três volumes anuais, como rezava o terceiro contrato assinado em 1864 entre Verne e Hetzel, Verne submete ao seu editor, em 1864, o romance Paris au XXe siècle, escrito em torno de 1860-1861, portanto anterior a Cinq semaines en ballon. O texto foi fortemente criticado por Hetzel em carta datada de 25 de abril de 1864. Nessa carta, Hetzel critica ferozmente a atitude infantil e ingênua de Jules Verne ao retratar uma Paris ambientada no futuro com a finalidade de mostrar os resultados negativos dos avanços científico-tecnológicos da época. O editor se recusou então a publicar o romance. O texto foi, portanto, abandonado e reencontrado aproximadamente cento e trinta anos depois. A saga da descoberta do manuscrito de Paris au XXe siècle no cofre do bisneto de Jules Verne, em 1989, e sua publicação na França, no outono de 1994, foram amplamente difundidas em todo o mundo. Caracterizado por Piero Gondolo Della Riva, colecionador e especialista da obra de Jules Verne, como um texto que não tem as mesmas qualidades dos romances que sustentaram a reputação do autor por mais de um século, Paris au XXe siècle apresenta traços originais da fase inicial da carreira de Jules Verne, isto é, sem as recorrentes intervenções do seu editor. Em linhas gerais, Paris au XXe siècle é caracterizado por sua descrição da idade moderna. A trama ambientada na Paris do ano 1960 é composta por descrições dos novos costumes e de uma cidade marcada pelas descobertas tecnológicas. O tom do romance já é apresentado no título do primeiro capítulo - “A sociedade geral do crédito instrucional” - que “respondia perfeitamente às tendências industriais do século: o que se nomeava Progresso, há cem anos, teve um enorme desenvolvimento”.10 Protagonista do romance, o jovem Michel Dufrénoy mostra-se um indivíduo atordoado diante das modificações tecnológicas proporcionadas pelo desenvolvimento científico. Poeta, com dedicação aos estudos clássicos, Michel se sente deslocado em um mundo “futurista”, onde só a escrita tecnológica é favorecida e onde o “artista só serve para distrair a digestão alheia”.11 O protagonista de Paris au XXe siècle poderia ser caracterizado como um romântico perdido num mundo industrial, um poeta solitário que termina sua carreira jogando violetas no túmulo de Musset, no encerrar da trama. 10 11 VERNE, Jules. Paris au XXe siècle. Paris: Hachette, 1995, p. 27. VERNE, 1995, p. 52. 5 Cronologicamente, esse texto situa a linha de partida do percurso romanesco de Jules Verne, seu posicionamento em início de carreira e a interrogação que lhe parece fundamental: o questionamento sobre o papel da literatura e do escritor na sociedade industrial. A recusa de Hetzel em publicar o romance é sintomática: ela permite identificar uma mudança estética em Jules Verne, que havia aderido ao projeto de Hetzel, ao qual o romance não se adequava. Hetzel no “Aviso do editor” na ocasião da publicação em fascículos das Voyages et aventures du capitaine Hatteras (1866) afirma: “é necessário dizer que a arte pela arte não é mais suficiente na nossa época e que a hora chegou em que a ciência tem seu lugar reservado na literatura.”12 Nesses moldes modernos, Jules Verne escreveu as suas Viagens extraordinárias, abandonando a orientação primeira de uma tentativa de filiação ao Romantismo, aquela da desconfiança face ao progresso, da nostalgia e da concepção da arte e do artista em filiação romântica que aparece em Paris au XXe siècle. Para a Tese, entendemos que a tentativa de desenvolver uma carreira no Romantismo se estende também para quase toda a produção literária que antecede Paris au XXe siècle. Portanto, afim de analisar as sucessivas escolhas de Jules Verne, levaremos em consideração o conjunto de textos dramáticos que produziu, as novelas que publicou e a crítica que fez ao Salão de 1857. Esses textos compõem o momento anterior ao encontro com o editor Hetzel. Somando essa produção ao romance fronteiriço Paris au XXe siècle e a obras que integram as Viagens extraordinárias definimos o corpus desta Tese de Doutorado. A opção de recorte proposta para a Tese - o estudo das concepções da arte pensadas na perspectiva da trajetória de Jules Verne no campo literário da segunda metade do século XIX francês - delimita a vastidão desse corpus. Ao decidirmos estudar a carreira de Jules Verne, as relações entre o escritor e seu editor e as representações da arte, selecionamos da obra de Verne os trabalhos que apresentam dados para esta discussão. Para contemplar o momento anterior à associação do escritor com o editor Jules Hetzel, priorizaremos os textos dramáticos La Guimard, comédia publicada no Théâtre inédit, em 2005, por trazer como personagem o pintor Jacques-Louis David e por ser ambientada em seu ateliê; e Monna Lisa, publicado no “Il faut bien se dire que l’art pour l’art ne suffit plus à notre époque et que l’heure est venue où la science a sa place faite dans la littérature.” HETZEL, Jules. “Avertissement de l’éditeur” In: MACÉ & STAHL, Magasin d’Éducation et de Récréation. Tome II, 1867, p. 1-2. 12 6 Cahier L’Herne, em 1974. Escrita ao “gosto das peças de Musset”, a comédia Monna Lisa se passa na Florença do Renascimento e traz o pintor Leonardo da Vinci e a modelo do famoso retrato como personagens, além da menção a gêneros da pintura e a quadros diversos. A crítica do Salão de 1857, escrita por Jules Verne e publicada em 2008 pelo pesquisador William Butcher, também integrará o corpus desta pesquisa. A crítica de arte, gênero literário, será analisada a fim de se delinearem traços do projeto estético do autor. Confrontaremos, quando possível, algumas semelhanças ou dissonâncias dos artigos críticos com a obra romanesca de Verne. Por se situar no momento fronteiriço em que Jules Verne conhece seu editor e passa a escrever os trabalhos mais conhecidos de sua carreira, o romance Paris au XXe siècle será privilegiado na análise. Nesse romance, em que vemos encenados os impasses de carreira aos quais Verne se via confrontado, o narrador se vale do personagem principal, o poeta Michel Dufrénoy, para sair em defesa da arte em filiação romântica em detrimento de uma arte industrial que utiliza a ciência e os avanços da tecnologia para se legitimar. Não deixaremos de lado a referência à arte ou ao artista que apareça nos romances que compõem as Viagens extraordinárias de Jules Verne. Priorizaremos a análise de Vingt mille lieues sous les mers (1870) e o salão-museu de Nemo, o capitão-esteta; e, para alimentar a discussão, utilizaremos igualmente os romances Le Rayon vert (1882) e Le Secret de Wilhem Storitz (escrito em 1898 e publicado postumamente em 1910), por envolverem na trama personagens pintores. Destacando as representações artísticas presentes nas obras, pretendemos apresentar a trajetória do autor e investigar sua importância no campo literário francês. Ao fazê-lo, definiremos em que medida existe uma ambivalência na carreira de Jules Verne “antes e depois” do encontro com o editor das Viagens extraordinárias. Buscaremos também investigar como o autor apresenta na sua obra o questionamento sobre o papel da literatura e da arte, assim como do escritor e do artista na sociedade industrial da segunda metade do século XIX. Investigaremos ainda, como são discutidos os valores estéticos veiculados na sua crítica de arte. Tentaremos provar que a fase da carreira que vai até o primeiro romance escrito de Verne, Paris au XXe siècle, diferencia-se consideravelmente do restante da sua obra romanesca, já que o autor hesita entre duas orientações contrárias quanto a seus ideários, um majoritariamente romântico e o outro completamente cientificista e “futurista”, para 7 usar um termo ulterior. Isso não significa que a primeira orientação não se manifestará mais na obra verniana após o contrato que restringe o autor à produção das Viagens extraordinárias. Existe certo grau de ambivalência dos romances e este pode ser verificado, sobretudo, através das representações da arte e do artista presentes na sua crítica de arte e na produção anterior à sociedade com Hetzel, mas também nas suas Viagens extraordinárias. Todos os itens que compõem o corpus da pesquisa serão analisados sob uma perspectiva sociodiscursiva. O estudo do fato literário enquanto discurso, que leva em consideração outros fatores que não só o texto em si, permitirá verificar os posicionamentos de Jules Verne, sua relação com o editor e traçar a trajetória do autor no campo literário. Para a investigação dos problemas, lançamos mão da teoria do campo literário do sociólogo Pierre Bourdieu e os conceitos a ela ligados – capital, habitus, espaço de possíveis, posição e trajetória. Recorremos à Análise do Discurso proposta por Dominique Maingueneau – sobretudo aos conceitos de cenografia enunciativa, posicionamento, paratopia e ethos. Respeitando a cronologia da trajetória de Jules Verne no campo literário, estabelecemos a organização dos capítulos e subcapítulos dessa Tese da seguinte maneira: no capítulo 2, QUESTÕES METODOLÓGICAS, apresentamos a teoria sociodiscursiva que ampara a pesquisa; no capítulo 3, JULES VERNE E O CAMPO LITERÁRIO, analisamos a trajetória do escritor no campo literário enfatizando em 3.1 as vias estéticas que se apresentaram como possíveis para os primeiros investimentos genéricos de Jules Verne, antes do encontro com seu editor; em 3.2, trataremos da criação da revista-vitrine da editora Hetzel e da contribuição de Jules Verne para esse empreendimento literário suporte que conformará o recorte genérico para o escritor; na seção 3.3, abordaremos o processo que chamamos de “hetzelização” de Jules Verne, em uma análise de seus contratos e suas negociações com o editor. Com base no que foi apresentado, no capítulo 4, AS REPRESENTAÇÕES DA ARTE E DO ARTISTA NA OBRA DE JULES VERNE – POSICIONAMENTOS NO CAMPO LITERÁRIO, estudaremos as concepções artísticas presentes na obra de Verne, verificando como o escritor apresenta a relação entre a arte e a ciência e os questionamentos sobre o papel da literatura e da arte, assim como aquele do escritor e do artista na sociedade industrial da segunda metade do século XIX. Para tanto, enfocamos alguns momentos de sua trajetória no campo literário. Aprofundaremos na seção 4.1 a 8 análise das comédias La Guimard e Monna Lisa, que trazem para a cena diversas referências metapicturais; no item 4.2, estudaremos as concepções artísticas de Jules Verne em sua atividade como crítico de arte; em 4.3, analisaremos o romance desprezado por Hetzel, Paris au XXe siècle, e o personagem paratópico; e na seção 4.4, focalizaremos finalmente as representações artísticas nas Viagens extraordinárias, buscando referências para a discussão no gabinete de curiosidades do capitão Nemo e nos personagem pintores dos romances Le Rayon vert e Le secret de Wilhelm Storitz. Os itens 5, 6 e 7 da Tese destinam-se à Conclusão, aos Anexos e à Bibliografia, respectivamente. A edição das peças que destacamos na Tese será aquela publicada pela editora Le cherche midi, o Théatre inédit, de 2005, organizada por Christian Robin; para a peça Monna Lisa, utilizamos o número 25 do Cahier l’Herne, publicado em 1974, dirigido por André Touttain. A crítica de arte será referenciada com base na edição da editora Acadien, de 2008, com comentários de William Butcher. Para os romances que usamos para leitura, análise e citação na Tese, recorreremos principalmente às edições publicadas pela editora Michel de l’Ormeraie, entre os anos de 1970 e 1980, que reproduz as edições princeps da editora de Hetzel e, eventualmente, lançaremos mão de outras edições importantes, que serão indicadas em nota e arroladas na Bibliografia. No geral, quando não houver uma versão em português das citações usadas nesta Tese, optamos por traduzi-las. Incluem-se nesse modo de organização as referências teóricas da pesquisa ou aquelas que dão suporte aos nossos argumentos. Não traduziremos as eventuais críticas de arte dos outros críticos mencionados, contemporâneos de Jules Verne, os textos assinados pelo autor e a correspondência entre Verne e seu editor. Excetuam-se a essa organização os paratextos editoriais dos periódicos que citamos, traduzidos ao longo do texto e mantidos na íntegra em “Anexos”. Ainda em “Anexos”, encontra-se em a transcrição dos contratos entre Jules Verne e seu editor. Quando necessário, remeteremos o leitor aos contratos concernentes à publicação dos romances Cinq semaines en ballon e Les voyages et aventures du capitaine Hatteras, assim como aqueles de 1865 e de 1875. Os quadros aludidos ou referenciados nas peças e na crítica de arte de Jules Verne poderão, igualmente, ser encontrados em “Anexos”. 9 2- QUESTÕES METODOLÓGICAS Definimos o aparato teórico para esta Tese refletindo sobre a escassez de pesquisas que explorem a trajetória de Jules Verne no campo literário. Procuramos enfatizara relação de Verne com seu editor e observaras representações da “arte” e do “artista” na sua obra, levando em conta uma análise que priorize o texto e o contexto de produção. A fim de destacar os valores estéticos que Jules Verne propõe na sua obra, pensando no “abandono” de uma orientação romântica, na associação com o editor PierreJules Hetzel, nas “escolhas” genéricas que precisou efetuar e na sua situação no campo literário francês da segunda metade do século XIX, buscamos os elementos conceituais na teoria do campo literário desenvolvida por Pierre Bourdieu. Associamos a teoria do sociólogo à Análise do Discurso de linha francesa pois estapropõe a definição de campo discursivo como uma rede de relações em que se constrói um espaço discursivo cuja descrição deve dar conta do dialógico e da relação interdiscursiva sem deixar de considerar a singularidade da obra. Além disso, a Análise do Discurso oferece instrumentos para a leitura das marcas discursivas presentes em uma cena que permite legitimar uma obra. Portanto, para otimizar um estudo que priorize a obra de Jules Verne relacionando-a à sua instância enunciativa e ao seu campo de produção, servimo-nos dos conceitos da Análise do Discurso literário desenvolvidos por Dominique Maingueneau aos quais vêm juntar-se as noções desenvolvidas por Liliane Louvel em seus estudos sobre a picturalidade de uma descrição. 2.1- Sobre a teoria do campo literário A teoria social em Pierre Bourdieu orienta-se, ao longo da sua obra, pela construção de uma sociologia relacional, centrada sobre a ação dos agentes e as instâncias simbólicas que expressam e realizam a dominação social. Em outras palavras, o sociólogo tem a tarefa de desvendar os mecanismos da reprodução social que legitimam as diversas formas de dominação. Grosso modo, tem como estratégia de análise a compreensão da relação entre as estruturas objetivas presentes nos campos sociais – onde os agentes se 10 dispõem e onde suas práticas estão estruturadas – e as estruturas incorporadas que informam a prática social dos agentes, os modos de se sentir, pensar, julgar etc. Para realizar sua teoria sociológica e desvelar o funcionamento do sistema sumariamente descrito acima, Bourdieu desenvolve conceitos específicos, deslocando os fatores econômicos do centro das análises da sociedade. O espaço social, para Bourdieu, deve ser compreendido à luz de dois conceitos fundamentais: campo e habitus. Embora sejam conceitos apresentados de maneira estanque, devem ser compreendidos na sua interdependência e na sua articulação com os conceitos de capital, violência simbólica e trajetória que são secundários, mas nem por isso menos importantes, e que formam a explicação das relações internas do objeto social. Campo, na teoria proposta pelo sociólogo, representa um espaço simbólico no qual as lutas dos agentes determinam, validam e legitimam representações. Nele se estabelece uma classificação dos signos, do que é adequado, do que pertence ou não a um código de valores.13Para Bourdieu, tal pressuposição permite entender algumas oposições como indivíduo/sociedade, desinteressado/interessado, natural/social presentes nas ciências sociais. No campo da arte, por exemplo, as lutas simbólicas determinam o que é erudito ou o que pertence à indústria cultural, quais valores e quais rituais de consagração serão legítimos dentro do campo. Cada espaço social corresponde, assim, a um campo específico – cultural, econômico, científico, jornalístico, literário etc –, no qual são determinados a posição social dos agentes e o espaço em que se revelam, por exemplo, as figuras de “autoridade”, detentoras de maior volume de capital. Para Bourdieu, o que organiza os agentes sociais no campo e os estrutura no universo social é a posse de diferentes tipos de capital. Em uma primeira análise, o conceito de capital está ligado à abordagem marxista. A analogia se explica pelo significado reconhecido da palavra capital: ele se acumula por meio de operações de investimento, transmite-se pela herança, permite extrair lucros segundo a oportunidade que seu detentor tiver de operar aplicações mais rentáveis. No entanto, como propõe Bourdieu, seu uso não é limitado apenas à área econômica, ou seja, para o sociólogo, o capital não é apenas o acúmulo de bens financeiros, mas todo recurso que se manifesta em uma atividade social. 13 Cf. BOURDIEU, Pierre. Coisas ditas. Trad. Cássia Silveira & Denise Pegorim. São Paulo: Brasiliense, 1990, p. 149-168. 11 Bourdieu repertoria assim quatro tipos de capital: 1) capital econômico –salários, imóveis, obras de arte, posse de bens materiais em geral; 2) capital cultural – saberes e conhecimentos intelectuais transmitidos pela escola ou pela família, ou adquiridos pelos agentes em outros espaços; 3) capital social – relações sociais que podem ser convertidas em recursos de dominação; 4) capital simbólico – o que chamamos prestígio ou honra e que permite identificar os agentes no espaço social. No capítulo em que trata do campo literário e das lutas simbólicas em pesquisa empreendida sobre a obra de Joris-Karl Huysmans, Pedro Paulo Catharina menciona este último tipo de capital como sendo “trunfos usados nos jogos sociais”.14 Compreende-se que todo agente, indivíduo ou grupo, para subsistir socialmente dentro de um campo, deve participar desses “jogos sociais” que lhe impõem sacrifícios e escolhas. Nesses jogos, alguns dos jogadores se creem livres, outros determinados. Para Bourdieu, contrariamente a essa ideia, os indivíduos estão sujeitos a estruturas profundas. Têm, inscritos neles, os princípios geradores e organizadores das suas práticas, das suas ações e pensamentos. Por este motivo, Bourdieu não usa o conceito de sujeito, preferindo o de agente. Os indivíduos são agentes na medida em que atuam socialmente e que são dotados de um senso prático, um sistema adquirido de preferências, de classificações, de percepção, o que o sociólogo chama de habitus.15 O habitus é um conceito com uma longa história: de Aristóteles, a Merleau-Ponty passando por Mauss, Hegel e Heidegger.16 De maneira geral, para Bourdieu, as disposições que orientam as práticas dos agentes constituem o habitus. Este é construído durante os processos de socialização nos diferentes espaços sociais nos quais o agente esteve inserido: familiar, escolar, profissional etc. Retomado por inúmeras vezes em diversas obras de Bourdieu, o conceito de habitus, em geral, é o que norteia a percepção da situação, a ação, as preferências e a visão de mundo dos agentes sociais. Ele fundamenta a resposta dos indivíduos a uma determinada situação; é passível de mudanças, modificando e sendo modificado pelas estruturas sociais. O conceito de habitus proposto pelo sociólogo mostra que ele engendra e é engendrado pela lógica do campo social e que as escolhas e as ações dos agentes em um determinado campo são produtos da experiência biográfica individual, da experiência 14 CATHARINA, Pedro Paulo Garcia Ferreira. Quadros literários fin-de-siècle; um estudo de Às avessas, de Joris-Karl Huysmans. Rio de Janeiro: 7Letras/Faculdade de Letras UFRJ, 2005, p. 44. 15 Cf. BOURDIEU, Pierre. Razões Práticas; sobre a teoria da ação. Trad. Mariza Corrêa. São Paulo: Papirus, 1996, p. 44. 16 Cf. BOURDIEU, 1990, p. 24. 12 coletiva e da interação entre ambas. Em suma, o habitus constitui uma maneira de perceber, julgar e valorizar o mundo e conforma a maneira de agir, corporal e materialmente. Nas lutas travadas no campo, os agentes investem capitais conquistados em enfrentamentos anteriores. Esses capitais asseguram ao agente, como vimos, seus direitos e seu reconhecimento social. Essa nominação oficial é uma das manifestações típicas da violência simbólica. Esse termo, para Bourdieu, explica a adesão dos dominados em um campo: trata-se da dominação inconscientemente consentida e da incapacidade crítica de reconhecer a arbitrariedade das regras impostas por autoridades dominantes de um campo. Ainda sustentando a metáfora topográfica do campo como espaço de conflitos entre posições de investimentos de capitais para modificação ou manutenção de habitus, Bourdieu trata do conceito de trajetória. Esta é definida como a série de posições sucessivamente ocupadas por um mesmo agente ou por um mesmo grupo de agentes em espaços sucessivos.17 Esse conceito é produtivo para compreender a reconstituição do percurso biográfico, intelectual e profissional de um agente, mapeando suas relações com outros agentes do campo, seus investimentos ao longo da vida e suas sucessivas mudanças de posição no campo. Os conceitos acima descritos têm papel essencial para uma reflexão acerca do discurso literário, visto que auxiliam a romper as barreiras existentes entre “a obra”, “o criador” e “a sociedade”, frequentemente vistos como instâncias isoladas. Com os conceitos de Pierre Bourdieu propomos que, para se compreender a gênese de uma obra literária, sejam levadas em conta as relações do artista no campo de produção simbólica a que pertence, bem como as coerções sociais e materiais a que está submetido. Mas, se por um lado existem leis gerais do campo, por outro, informa Bourdieu, existem características específicas próprias a cada campo particular. Em cada um deles a luta entre dominados e dominantes, as definições dos comportamentos legítimos e regras de pertencimento têm propriedades específicas. Cabe-nos, portanto, fazer reflexões acerca das particularidades que dizem respeito ao campo literário e o processo de autonomização. Para Bourdieu, o campo literário na França, na segunda metade do século XIX, tem seu funcionamento baseado em uma inversão da lógica econômica. Este 17 Cf. BOURDIEU, 1996, p. 78-79. 13 funcionamento consiste no princípio de recusa do lucro econômico com a vendagem do produto artístico, ou do capital simbólico, como o reconhecimento do grande público. Em geral, nos termos de Bourdieu, no campo literário, o critério para julgar se determinada obra é legítima é o fato de ela estar desvinculada de qualquer coerção material. O próprio conceito de campo implica em uma noção de sua autonomia em relação a outros campos. No caso do campo literário, essa luta por autonomia é definida, assim como para os outros campos, por enfrentamentos entre seus agentes. Esses embates se dão entre aqueles que se distiguem por produzir para o grande público e estão mais interessados nos lucros financeiros, e os outros que se apegam ferrenhamente à noção de autonomia artística. Quanto mais autônomo é o campo em questão, mais poder no interior do campo têm aqueles que fazem da sua arte um exercício de recusa de interesse, enquanto os outros dominados no campo gozam de prestígio e poderes de outras espécies, que não são específicos do mundo artístico, mas de outros setores da sociedade. Assim, a respeito do campo literário, existem dois eixos de hierarquização que incidem sobre seus agentes: um princípio de hierarquização interna que define dominantes e dominados dentro do campo e que favorece os escritores conhecidos e reconhecidos por seus pares, e um princípio de hierarquização externa que situa o campo e seus agentes no conjunto do universo social. Pela lógica de distribuição dos capitais no espaço social, o campo literário ocupa uma posição dominada no campo do poder:18 “[os campos de produção cultural] por mais livres que possam estar das sujeições e das solicitações externas, são atravessados pelas necessidades dos campos englobantes, a do lucro econômico ou político”.19 Por conseguinte, o campo literário é o espaço de lutas entre os dois princípios de hierarquização: o da heteronomia, favorável àqueles que dominam o campo econômico e político – Bourdieu insere aqui os defensores da “arte burguesa” –, e o princípio da autonomia, no qual Bourdieu inclui os agentes partidários da “arte pela arte”. A essas duas correntes somam-se a “arte social”, que tem estatuto ambíguo por compartilhar com a “arte pela arte” a recusa do sucesso mundano, e a “arte burguesa” que o reconhece, em detrimento dos valores de “desinteresse”.20 Segundo Bourdieu, o campo do poder é “o espaço das relações de força entre agentes e instituições que têm em comum possuir o capital necessário para ocupar posições dominantes nos diferentes campos (econômico ou cultural, especialmente). Cf. BOURDIEU, Pierre. Les Règles de l’art. Genèse et structure du champ littéraire. Paris: Seuil, 1998 (1992), p. 353. 19 BOURDIEU, 1998, p. 355. 20 BOURDIEU, 1998, p. 355. 18 14 No livro As Regras da arte, Bourdieu trata dessas três tendências que formam, em estrutura triangular, uma relação de oposição entre elas. Ao propor um estudo minucioso do romance L’Education sentimentale (1869),de Gustave Flaubert, o sociólogo faz uma análise do campo literário francês do século XIX e de seu processo de autonomização. Bourdieu explica como os escritores tentam conquistar essa autonomia de pensamento e ação diante dos poderes político e econômico. A reivindicação da “arte pela arte” é compreendida como o direito de escrever sem engajamento político nem necessidade comercial. Bourdieu argumenta que a independência do campo artístico teria sido assegurada por meio da recusa de duas possibilidades de engajamento cultural, disponíveis para Flaubert e seus pares, todos participantes de uma revolução estéticopolítica: a “arte burguesa” e a “arte social”. A primeira teria se caracterizado pela subordinação estrutural aos dominantes, contrastando-se com a dependência do artista em relação a um mecenas. Esta nova forma de submissão, estrutural, teria sido instituída através de duas mediações principais, o mercado e o Estado: De um lado o mercado, cujas sanções ou sujeições se exercem sobre as empresas literárias, seja diretamente, através de cifras de venda, do número de recebimentos, etc., seja indiretamente, através dos novos postos oferecidos pelo jornalismo, a edição, a ilustração e por todas as formas de literatura industrial; de outro lado as ligações duradouras, baseadas em afinidades de estilo de vida e de sistema de valores que especialmente por intermédio dos salões, unem pelo menos uma parte dos escritores a certas frações da alta sociedade, e contribuem para orientar as generosidades do mecenato do Estado. Na ausência de verdadeiras instâncias específicas de consagração, as instâncias políticas e os membros da família imperial exercem um domínio direto sobre o campo literário e artístico, não apenas pelas sanções que atingem jornais e outras publicações [...], mas também por intermédio dos proveitos materiais e simbólicos que estão em condição de distribuir [...]. Os gostos dos novos ricos instalados no poder voltam-se para o romance, em suas formas mais fáceis - como os folhetins, disputados nas cortes e nos ministérios, e que dão lugar a empresas de edição lucrativas; ao contrário, a poesia, ainda associada às grandes batalhas românticas, à boemia e ao engajamento em favor dos desfavorecidos, constitui objeto de uma política deliberadamente hostil, em especial da parte do ministério de Estado.21 Os fundadores do campo artístico autônomo, além de se opor a essa arte vendida, teriam rejeitado a arte social. Os novos artistas abominariam o desrespeito dos colegas engajados na defesa de uma concepção utilitária da arte, tão moralizadora quanto aquela a que visavam se opor. A ruptura com esses polos – o da “arte burguesa” e o da “arte 21 BOURDIEU, Pierre. As regras da arte. Gênese e estrutura do campo literário. Trad. Maria Lúcia Machado. São Paulo: Companhia das Letras, 2006, p. 66. 15 social”, – teria fundado o campo artístico autônomo. Em oposição à arte burguesa, a nova arte pretenderia se libertar da submissão ao Estado, das imposições do mercado e, por conseguinte, dos gostos burgueses. Bourdieu sublinha que o resultado sociológico desta atitude teria sido a instalação de um mundo econômico às avessas: De fato, eles não podem triunfar do burguês na luta pelo domínio do sentido e da função da atividade artística sem o anular ao mesmo tempo como cliente potencial. [...] Alguns escritores, como Leconte de Lisle, chegam ao ponto de ver no sucesso imediato a marca de uma inferioridade intelectual. [...] Estamos, com efeito, em um mundo econômico às avessas: o artista só pode triunfar no terreno simbólico perdendo no terreno econômico.22 Para Bourdieu, a hostilidade à mercantilização da obra de arte acaba paradoxalmente por favorecer, nessa nova posição, agentes dotados de capital econômico, o que os libertaria das coerções do campo econômico. Além desta independência econômica, Flaubert e seus companheiros da arte pura partilhariam mais um traço nessa tomada de posição: o berço em uma burguesia ilustre ou em uma nobreza tradicional que: [...] têm em comum favorecer disposições aristocráticas que levam esses escritores a sentir-se igualmente afastados das declamações demagógicas dos defensores da “arte social”, que identificam com a plebe jornalística da boemia, e dos divertimentos fáceis dos “artistas burgueses” que, oriundos, na maior parte, da burguesia de negócios, não passam para eles de mercadores do templo.23 É a partir destas coordenadas no espaço social que Bourdieu se propõe analisar as posturas de Flaubert em relação à literatura, condensadas na máxima “escrever bem o medíocre”, nas quais se perceberia claramente o mesmo tom de dupla ruptura com os dois polos literários descritos anteriormente. Tomamos como base a teoria do campo de Pierre Bourdieu e as peculiaridades do funcionamento do campo literário descritas acima, visando estabelecer uma linha de coerência entre as tendências literárias em voga à época de Jules Verne e seu pertencimento ao campo literário. Investigando a trajetória de Jules Verne no campo, verificamos como o escritor se posiciona diante da luta pela autonomia do campo literário e da autodeterminação de sua obra, levando em conta alguns dados pontuais: o seu esforço para se tornar escritor, o abandono de uma orientação romântica, a sua relação com o editor Pierre-Jules Hetzel e a participação no projeto pedagógico de sua editora. Para a discussão trago reflexões sobre temas, gênero, aparelho retórico e o estilo de Jules Verne, 22 23 BOURDIEU, 2006, p. 102. BOURDIEU, 2006, p. 105. 16 além de análises paratextuais. Lançaremos mão das noções que compõem a estrutura triangular formada pela oposição entre os três polos de produção da arte que descrevemos. Sustentamos a hipótese de que o autor se afasta de uma orientação romântica inicial em sua carreira, para realizar as Viagens extraordinárias, momento mais científico e “industrial” na sua trajetória, o que marca as imposições que o campo econômico exerce sobre o campo literário. No entanto, defendemos ainda que as representações artísticas veiculadas na sua obra poderão provar um vínculo com os valores românticos identificados no início de sua trajetória. 2.2- Por uma abordagem discursivo-literária Ampliaremos o eixo teórico privilegiado nesta Tese utilizando conceitos da Análise do Discurso, aqueles desenvolvidos por Dominique Maingueneau (1993; 2006). Traremos para a discussão uma abordagem discursiva das obras literárias, aquela que não considera somente o texto literário em si, mas prefere ver o fato literário na sua inseparabilidade do contexto social de sua produção e circulação, levando em conta a situação de enunciação,as condições de vida do escritor, as coerções editoriais, a fortuna crítica etc. Com o objetivo de pensar em uma “sociabilidade” constitutiva do texto sem recair em uma teoria do “reflexo”, em Discurso literário,24 Dominique Maingueneau recusa tanto a abordagem histórica, para a qual o texto é produto de seu tempo, quanto a abordagem estilística, que considera o texto como um universo fechado em si mesmo. Como o próprio título do seu trabalho indica, a noção de “discurso” para uma abordagem da literatura promove a convergência da ideia da linguística do discurso como “objeto”, da noção pragmática dos modos de apreensão desse objeto e, ainda, de uma concepção semântica que prevê que todo discurso é uma forma de ação, contextualizado e assumido por um sujeito, regido por normas, e só adquire sentido em relação a outros discursos (princípio da primazia do interdiscurso sobre o discurso). Em suma, considerar o fato literário como discurso é pôr em xeque a ausência de comunicação com o que seria considerado externo à obra. Para Maingueneau, as condições do dizer permeiam o dito que, por sua vez, remete a suas próprias condições de enunciação: o estatuto do escritor 24 Cf. MAINGUENEAU, Dominique. Discurso literário. Trad. Adail Sobral. São Paulo: Contexto, 2006. 17 vinculado ao seu posicionamento no campo literário, os papéis associados aos gêneros, a relação com o destinatário, os suportes e os modos de circulação dos enunciados. Para dar conta das condições de enunciação do dito, Maingueneau se vale da teoria do campo literário, do sociólogo Pierre Bourdieu, referida anteriormente, considerando a obra literária como produto e produtora de um espaço discursivo e desenvolvendo os conceitos de posicionamento e cenografia enunciativa, que articulam a inscrição social do escritor e a situação de enunciação da obra. Com o conceito de posicionamento discursivo, rediscutido por Maingueneau em Imagens de si no discurso, livro organizado por Ruth Amossy, o linguista designa o tom que caracteriza a vocalidade do fiador no interior de um texto escrito. Esse tom faz parte não só da construção da sua identidade, que é compatível com o mundo que se supõe que ele faz surgir em seu enunciado, mas também de um posicionamento discursivo.25 Em uma abordagem discursiva, o conceito de posicionamento define uma identidade enunciativa e um lugar de produção discursiva específico.Segundo Maingueneau, o posicionamento designa ao mesmo tempo as operações pelas quais essa identidade enunciativa se instaura e se conserva em um campo discursivo, e essa própria identidade. Ele não diz respeito apenas aos conteúdos, mas às diversas dimensões do discurso, manifestando-se na escolha destes ou daqueles gêneros de discurso e no modo de citar.26 Respeitando a lógica da significação por oposição, o posicionamento do autor também é definido por aquilo que se exclui do processo de seleção, isto é, dentre as opções existentes no campo, as escolhas abandonadas também auxiliam na construção do posicionamento do escritor. O conceito de posicionamento será produtivo para esta Tese, na medida em que é apresentado como uma das formas de inscrição do autor, no caso Verne, no campo literário. Pretendemos mostrar que, em análise à trajetória de Jules Verne enfocando as representações da arte e do artista na sua obra, o escritor explicita sua filiação a movimentosestéticos, distingue e classifica escolas artísticas e define seu projeto literário. Como dissemos, a noção de enunciação literária que traz a Análise do Discurso de Maingueneau desestabiliza a representação dicotômica do “dentro/fora” do campo que Cf. MAINGUENEAU, Dominique. “Ethos, cenografia, incorporação”. In: AMOSSY, Ruth (org.) Imagens de si no discurso; a construção do ethos. Trad. Dilson Ferreira, Fabiana Komesu e Sírio Possenti. São Paulo: Contexto, 2008c, p. 73. 26 Cf. CHARAUDEAU, Patrick & MAINGUENEAU, Dominique. Dictionnaire d’analyse du discours. Paris: Seuil, 2002. 25 18 se faz habitualmente. Assim, o linguista conceitua paratopia como um traço constitutivo da posição de artista, marcando seu pertencimento social impossível do campo literário. Ainda que faça parte do campo, estaria à margem do mesmo, num jogo que gera a sua existência e do qual se nutre. Em um mesmo movimento, o artista deve reduzir e preservar uma exclusão que se torna conteúdo e motor da sua criação. Ligado ao processo de criação artística, o teórico afirma que “a paratopia não é origem nem causa, e menos ainda uma condição: [...] só existe paratopia elaborada mediante uma atividade de criação e de enunciação.”27 O conceito será testado na investigação de uma paratopia literária de Jules Verne ao estabelecermos relação com o personagem paratópico de Paris au XXe siècle, aquele que não encontra lugar, e de uma “topia” enunciativa depois da associação ao editor Pierre-Jules Heztel. Valendo-se da metáfora teatral, Maingueneau propõe igualmente o conceito de cenografia,28 afirmando que cada gênero discursivo se caracteriza por uma cena, cada uma requerendo para si uma dramaturgia específica, implicando tempo e espaço igualmente específicos e uma figura de enunciador e coenunciador. A cena não pode ser concebida como um quadro simples previamente construído do qual emerge o discurso. Deve ser entendida como constitutiva do discurso.29 É esse conceito que nos permite associar o texto ao seu contexto. Em sua obra Discurso Literário, Dominique Maingueneau propõe uma análise da cena de enunciação em três cenas distintas: cena englobante, cena genérica e cenografia.30 A cena englobante, comumente entendida como um tipo de discurso (político, científico, religioso etc.), é aquela que sinaliza um estatuto pragmático ao gênero de discurso de onde provém o texto, para nós, o texto literário; a cena genérica define-se pelos gêneros do discurso, é a instituição discursiva; a cenografia, implicando a figura de um enunciador e uma correlativa de coenunciador, é a cena com a qual o leitor se depara em primeiro plano, já que as cenas englobante e genérica são deslocadas para o segundo plano. Ainda no que diz respeito à cenografia, esta não é imposta pelo gênero do discurso, mas instituída pelo discurso. O discurso determina sua cenografia logo no início e, no seu desenrolar, busca justificar-se enquanto a constitui, como num processo em espiral. Assim, a cenografia é considerada a gênese e a finalidade do discurso; legitima e 27 MAINGUENEAU, 2006, p. 109. Cf. MAINGUENEAU, 2006, p. 253. 29 Cf. CHARAUDEAU & MAINGUENEAU, 2006, p. 95-96. 30 Cf. MAINGUENEAU, 2006, p. 251-253. 28 19 é legitimada no e pelo discurso que, por sua vez, estabelece sua cenografia específica. Como evidencia Maingueneau, a cenografia não é tão somente um cenário no interior do qual o discurso aparece como um espaço já construído e independente dele; ela é a enunciação que, ao se desenvolver, constitui progressivamente, e paradoxalmente, o seu próprio dispositivo de fala; a cenografia é “[...] ao mesmo tempo fonte do discurso e aquilo que ele engendra; ela legitima um enunciado que, por sua vez, deve legitimá-la estabelecendo que essa cenografia onde nasce a fala é precisamente a cenografia exigida para enunciar como convém.”31 Maingueneau explicita ainda que a cenografia implica um momento específico (cronografia) e em um lugar específico (topografia) de onde o discurso emerge. A determinação da identidade dos parceiros da enunciação está em estreita relação com a definição de um conjunto de lugares (saberes partilhados e mundos possíveis) e de momentos de enunciação (instante da interação). Esses dados, se somados aos conteúdos, aos níveis de língua, ao ritmo, ao gênero e ao ethos do enunciador, auxiliam na (re)construção da cenografia em que se inscreve uma obra literária. Dentre as três cenas, a cenografia aparece como a cena de enunciação mais propícia aos investimentos de criação do discurso. Nela se formam o simulacro de um momento, de um espaço e dos papéis sociais conhecidos e compartilhados culturalmente. Maingueneau ressalta que os indícios que compõem a cenografia enunciativa de uma obra podem se manifestar no próprio texto, nas informações paratextuais ou de maneira implícita. Assim, o conceito terá sua produtividade testada na investigação da cenografia de cada item da obra de Verne que analisaremos: os textos dramáticos La Guimard (1850) e Monna Lisa (1851) e, a crítica de arte do Salão de 1857, o romance Paris au XXe siècle (1861) e certos romances que integram as Viagens extraordinárias. Em “Ethos, cenografia, incorporação”,32 Maingueneau sintetiza o seu tratamento para o conceito de ethos em consonância com a Análise do Discurso e mediante tênue diálogo com a tradição retórica, cuja presença é reconhecida na gênese de tal conceito. Na reflexão do autor, é fundamental a concepção da manifestação do ethos associado à enunciação em detrimento de um enfoque do “caráter” do orador obtido por intermédio de concepções prévias a seu respeito. Com tal escolha, o linguista considera desenvolver um trabalho acerca do ethos capaz de suplantar os limites de teorias da argumentação. Em outras palavras, Maingueneau pretende demonstrar que sua abordagem propicia uma 31 32 MAINGUENEAU, 2006, p. 253. Cf. MAINGUENEAU, 2008c, p. 69-92. 20 análise que vai além do aspecto intradiscursivo por contemplar aspectos sócio-históricos, institucionais e extensivos às condições de produção do discurso. O diferencial da proposta é marcado pelo exame da atuação do ethos em textos de modalidade escrita ao invés da oralidade visada no/pelo aporte retórico, desprovidos de uma organização em sequência argumentativa nos moldes dos estudos de Jean-Michel Adam e desvinculados de circunstâncias argumentativas ou da funcionalidade de gêneros argumentativos. As formulações teóricas de Maingueneau a respeito do ethos (2005; 2006; 2008c) viabilizam a nossa proposta de discutir peculiaridades observadas no texto dramático, em um gênero discursivo como a crítica de arte e nos textos romanescos que compõem o corpus da tese por unir a noção de “corpo” enunciador ao discurso. A relação entre corpo e discurso decorrente de uma “reflexividade enunciativa”33 encerra outro ponto essencial da proposta de Maingueneau que nos interessará neste trabalho. Essa relação diz respeito às justificativas do linguista para o caminho assumido no trabalho com o ethos. Para tanto, o autor é categórico ao sublinhar a insuficiência analítica do estudo da manifestação do ethos através do discurso exclusivamente como uma posição ou função a ser ocupada. Quanto a essa perspectiva de análise, encontramos esclarecimento na recuperação que Amossy faz da concepção sociológica de Pierre Bourdieu, pela qual o enunciador ou locutor desempenham a função de “porta-voz autorizado”.34 Levando em conta que a eficácia do discursoreside mais na reconhecida função social de quem profere o dizer, observamos que, a partir desse viés de cunho sociológico e extradiscursivo, a análise do ethos traria à tona uma representação sempre previsível para o coenunciador, oriunda de um conhecimento antecipado sobre a fonte da enunciação. Trata-se do ethos pré-discursivo,35 definição que vai de encontro ao interesse de Maingueneau, o ethos discursivo. Para este trabalho, confirmaremos ou infirmaremos que mesmo que o coenunciador não saiba nada previamente sobre o enunciador, o simples fato de um texto pertencer a um gênero de discurso ou a certo posicionamento ideológico induz expectativas em matéria de ethos. Dizer que toda a discussão que gira em torno do conceito de ethos remete à caracterização do corpo de um enunciador (segundo os estudos de Maingueneau), faz 33 MAINGUENEAU, Dominique. Archéologie et analyse du discours. Texto. Jun/2005, p. 70. Disponível em: http://www.revue-texto.net/Reperes/Themes/Maingueneau_Archeologie.html. 34 AMOSSY, Ruth. O ethos na interseção das disciplinas: retórica, pragmática, sociologia dos campos. In: ___. (Org.) Imagens de si no discurso: a construção do ethos. São Paulo: Contexto, 2008, p. 120-121. 35 Cf. MAINGUENEAU, 2006, p. 270. 21 emergir uma “instância subjetiva encarnada”36 que exerce o papel de fiador, aquele que, “por meio de seu tom, atesta o que é dito”.37 O fiador tem sua figura construída pelo leitor com base em indícios textuais de diversas ordens e é esse mesmo leitor que o verá investido de caráter e corporalidade. Queremos dizer que o poder das palavras deriva da adequação entre a função social do enunciador e seu discurso. Entendemos que o discurso não pode ter autoridade se não for dito pela pessoa legitimada a pronunciá-lo em uma situação legítima, portanto, diante de coenunciadores legítimos. Assim, para delinearmos a concepção de arte e a representação do artista transmitidas nas peças La Guimard e Monna Lisa, na crítica do Salão de 1857, no romance Paris au XXe siècle e em romances que compõem as Viagens extraordinárias, reconstituiremos o ethos e a corporalidade do fiador tentando investigar no dito do autor dramático, do crítico e do romancista: 1) o papel social da arte; 2) a posição do artista na sociedade; 3) o estatuto da arte em relação à(s) outra(s) forma(s) de expressão; 4) as qualidades que uma obra de arte deve ter; assim como 5) temas e procedimentos técnicos apropriados para expressar a arte e alcançar uma posição legitimada. Conseguindo desenvolver tais problemas de investigação, acreditamos entender na trajetória de Jules Verne as concepções artísticas que compõem o seu projeto estético. 2.3- Da picturalidade das descrições Como mostrado na dissertação de Mestrado Retratos literários: o discurso científico na obra de Jules Verne,38 os retratos dos personagens que compõem as Viagens extraordinárias apresentam interdiscursividade com a ciência e a história e são carregados de sentidos. Para chegarmos a essa conclusão, analisamos as passagens descritivas concernentes aos personagens de Cinq semaines en ballon (1863), Les enfants du capitaine Grant (1867-1868) e Le Chancellor (1875),com base na teoria do descritivo de Philippe Hamon. Em geral, por se tratar de romances de aventura, Verne recorre à intriga, à expectativa típica do narrativo, e preenche seus romances de imagens pitorescas, de 36 MAINGUENEAU, 2005, p. 72. MAINGUENEAU, 2006, p. 271. 38 Cf. SANTOS, Edmar Guirra dos. Retratos literários: o discurso científico na obra de Jules Verne. Rio de Janeiro: Faculdade de Letras – UFRJ, 2010a. Dissertação de Mestrado. 37 22 passagens que podem ser recriadas visualmente pelo leitor ao elaborar mentalmente a imagemsugerida pela descrição. Assim, é evidente a importância que o descritivo assumirá no conjunto da obra. Não são raras as referências picturais nessas passagens na sua obra romanesca. Elas aparecem ao longo das tramas, seja através de citações diretas, ou através de passagens de dominante descritiva. Como na Dissertação de Mestrado, pretendemos, nesta Tese, estudar o descritivo dessas passagens, porém, desta vez, a fim de identificar as referências picturais que compõem o projeto estético do autor e definir marcas de seu posicionamento na luta pela autonomia do campo artístico. Eventualmente evocaremos o aparato conceitual da teoria do descritivo com base nos estudos de Philippe Hamon (1981 e 1993) e Adam & Petitjean (1989), mas manteremos o foco nos índices picturais no texto. Para tanto, basearemos a pesquisa nos trabalhos de Liliane Louvel (1997; 2002; 2013). Muitas das construções em Jules Verne, mescladas ao enredo pelo mecanismo da descrição, estão diretamente relacionadas às artes visuais e à pintura. Elas constituem menções que o leitor experimentado deve deter e ativar, para obter bom desempenho no ato de fruição da obra. Assim, as teorias do descritivo de Philippe Hamon encontram eco nos trabalhos de Liliane Louvel e sua proposta de identificação e análise da picturalidade de uma descrição. A relação entre os sistemas semióticos adquire configurações diversas nos trechos em que aparece, uma vez que o emprego da referência pictural no texto literário se dá a partir de diferentes mecanismos. Em um texto, a representação do pictural pode ocorrer tanto por meio de uma forma mais subjetiva e rarefeita, como o “efeito-quadro”, quanto a partir de um adensamento da referência pictórica, com o emprego da descrição pictural e, enfim, da ekphrasis, representação com maior grau de picturalidade, categorias de que trataremos a seguir. Para inquirir essa aproximação entre visual e verbal, em que o texto literário se imbui de pictórico, a metodologia de análise sugerida por Liliane Louvel, que propõe uma reflexão em torno da presença do pictural no escritural, torna-se bastante pertinente. Pesquisadora das relações entre pintura e literatura, Liliane Louvel averigua os diferentes níveis de saturação pictural das obras literárias.39 Fundamentando sua proposta e identificando as nuances ou variações do grau de picturalidade do texto, a autora Cf. LOUVEL, Liliane. A descrição “pictural”: por uma poética do iconotexto. In: ARBEX, Márcia (Org.). Poéticas do visível: ensaios sobre a escrita e a imagem. Belo Horizonte: Programa de Pós-graduação em Letras/Estudos Literários, Faculdade de Letras da UFMG, 2006 (1997), p. 191-220. 39 23 estabelece a existência de diversos marcadores picturais, que podem ser diretos ou indiretos, explícitos ou implícitos. Grosso modo, esses marcadores podem ser definidos como tudo que abre o texto à imagem pictural. Muitos já sendo reconhecidos nas propostas de Hamon, Louvel destaca as evidências que marcam a picturalidade de uma passagem: 1) o enquadramento que limita o espaço (início e fim da passagem) reservado ao “quadro”; 2) a presença de personagem pintor ou esteta que evidenciam a qualidade pictural do texto e exercem efeito de real; 3) o uso de dêiticos que designam o lugar e o tempo da imagem, mas também recupera o focalizador e/ou enunciador; 4) a presença de mise-en-abyme ou “a narrativa dentro da narrativa”; 5) a presença de personagem em posição de voyeur; 6) a modalização que marca o ponto de vista daquele que vê e informa o leitor; 7) os tempos e aspectos verbais com suas propriedades de suspensão da ação e dilatação que evidenciam o quadro; 8) o uso de léxico especializado como menção a técnicas da pintura, destaque de cores, formas, luz, claro-escuro, perspectivas etc.; 9) a presença de temas dos quais a pintura se serve como aqueles ligados à religiosidade, à mitologia ou à história; 10) a presença de objetos de arte como pinceis, telas, cavaletes etc., ou objetos caros à pintura como quadros, miniaturas, esculturas, joias, móveis, livros etc.; 11) as referências metapicturais como a menção a gêneros e escolas de pintura. Em seu livro Texte Image, de 2002,40 Louvel aborda as eventuais marcas que indicariam o grau de saturação pictural de um texto. Ela salienta que, em função de sua dimensão pictural, concretizada ou não a partir de marcadores de picturalidade, podemos encontrar efeitos que indicariam diferenças no grau de picturalidade.41 Assim, Louvel classifica os textos em função da quantidade e dos tipos de marcadores observados, assim como em função dos efeitos que são produzidos. Louvel destaca os possíveis graus de saturação pictural: 1) efeito-quadro: aparecimento na narrativa de imagens-pintura produzindo um efeito de sugestão. Sem referências diretas à pintura, esta seria a forma mais diluída de inscrição pictural no texto (ex.: um barco que aporta sugeriria uma marinha); 2) vista pitoresca: em diálogo mais próximo com as fontes da pintura, a vista pitoresca era de fato um gênero pictórico.42 Implicando a presença e identificação de um nome que evoca um lugar particular, a vista pitoresca, reconstruída pela memória, faz surgir no pensamento do leitor cenas de lugares que sugerem paralelos com quadros; 3) 40 LOUVEL, Liliane. Texte Image; images à lire, textes à voir. Rennes: Presses Universitaires de Rennes, 2002. 41 Cf. LOUVEL, 2002, p. 33-43. 42 Cf. LOUVEL, 2002, p. 35. 24 hipotipose: citando Fontanier, Louvel explicita que, essafigura de retórica que designa a ação de descrever uma cena ou circunstância, utiliza cores intensas, afim de fazer com que o leitor tenha a sensação de que as percebe pessoalmente. Sendo um modo híbrido entre descrição e narração ou descrição narrativizada,43 Louvel salienta que este grau está ligado à pintura de história, mas se faz presente sem referências diretas à pintura; 4) quadros-vivos: grau que se aproxima da cena teatral na qual personagens se encontram em posição que sugere a ação de falar e, portanto, reproduzem uma cena pictural específica. Menos sujeito à subjetividade do leitor, os quadros-vivos são criados pela vontade do narrador; 5) organização estética: inscrito o olhar do personagem ou do narrador, a organização estética pressupõe uma intenção consciente de que se produza um efeito artístico. Concentrando-se em um quadro, o narrador funciona como operador de visão.44 Esse grau permitiria realizar, por exemplo, uma cena de banquete em natureza morta; 6) descrição pictural: neste grau, os marcadores de picturalidade repertoriados por Louvel devem necessariamente estar presentes para que o pictural fique evidente; 7) ekphrasis: mais alto grau na escala de saturação, a ekphrasis é a descrição de uma obra de arte, ou de um objeto estetizado que valha como tal.45 Além das peças La Guimard e Monna Lisa, com suas referências metapicturais, da crítica ao Salão de 1857, que surge da observação de obras de arte, Jules Verne, na maioria de seus romances, se vale do tema da viagem para erguer suas tramas, nas quais o visual é muito importante. O subtítulo dado ao conjunto da obra – “Viagens extraordinárias aos mundos conhecidos e desconhecidos” – sugere não só a importância que o descritivo assumirá no texto, mas a dimensão pitoresca da obra romanesca de Verne, na medida em que busca apresentar aos leitores personagens e espaços exóticos, desconhecidos, pouco explorados ou inexplorados à época. No intuito de trazer o quadro para o texto, ou de fazer do texto um quadro, verificamos em que medida Verne parece lançar mão da sua única experiência como crítico de arte na composição de descrições picturais na sua obra romanesca, além de inquirir sobre a função das mesmas. Verificamos igualmente de que maneira estas descrições estão vinculadas ao projeto estético do autor e ao seu posicionamento no campo literário. 43 Cf. LOUVEL, 2002, p. 37. Cf. LOUVEL, 2002, p. 40. 45 Em artigo mais recente, Liliane Louvel revisita seus conceitos, revisa e resume as definições de Ekphrasis. “Disputes intermédiales: le cas de l’Ekphrasis. Controverses.” Textimage – Nouvelles approches de l’Ekphrasis. Le conférencier. Revue online: mai/2013. Disponível em: http://www.revue-textimage.com/conferencier/02_ekphrasis/louvel1.html#_ftnref2> Consultado em 17/08/2015 44 25 3- JULES VERNE E O CAMPO LITERÁRIO Qualquer que seja a pesquisa empreendida sobre a obra de Jules Verne, não se pode deixar de reservar interesse ao seu encontro com o editor Pierre-Jules Hetzel. As biografias do escritor inscrevem esse momento da sua trajetória no campo literário, em 1862, como o acontecimento inaugural que conduzirá a carreira de Verne para horizontes de notoriedade e para a posteridade, engajando o escritor na arte da ficção pelas vias do “romance científico”, programada através do lançamento das Viagens extraordinárias. Atribuir um espaço a esse encontro em um trabalho de pesquisa que leva em conta a trajetória de Verne no campo literário é, portanto, legítimo. Definitivamente, PierreJules Hetzel, editor capaz de verificar o valor literário de Verne, caucionado por um público ávido pela ciência, será promotor de uma renovação da visão editorial sobre a literatura para crianças e jovens e integrará Verne à equipe fundadora do Magasin d’Éducation et de Récréation, em 1864. Em suma, é engajando-se na editora Hetzel que Jules Verne dispõe de um potencial de publicação que lhe permitirá adquirir status de “escritor”, garantido pelos sucessivos contratos assinados entre os anos de 1862 a 1871. No entanto, como apresentado sumariamente na Introdução desta Tese, antes de 1862, data do primeiro contrato de Verne, o escritor já havia realizado diversas tentativas de entrada no universo da literatura escrevendo poemas, textos dramáticos, novelas para o periódico Musée des familles e um artigo crítico sobre o Salão de 1857. Neste capítulo, apreciaremos criticamente, portanto, os possíveis estéticos para Jules Verne até o momento que caracterizamos como o de sua “hetzelização”, incluindo este último na análise. Levaremos em consideração as indeterminações do campo literário no Segundo Império e na Terceira República, relacionando-as à(s) escolha(s) genérica(s) do escritor. 3.1 Os possíveis estéticos para Jules Verne Até o momento da publicação do manuscrito de Voyage en l’air, nome original de Cinq semaines en ballon, alguns posicionamentos marcam a trajetória de Verne no campo literário, todos pouco explorados diante da importância que terá o primeiro contrato de Verne e suas consequências. Afinal, o contrato atesta juridicamente sua associação a uma editora, em outubro de 1862, o que lhe permite “tornar-se” escritor (ver 6.1.1). 26 A difusão de Cinq semaines en ballon, em janeiro de 1863, permite cernir, entre outros, a habilidade comercial de Hetzel em harmonia com as expectativas do público e os acontecimentos da época, comoa fundação da “Sociedade de encorajamento à locomoção aérea por aparelhos mais pesados que o ar”, por Félix Nadar, e o lançamento do balão Le Géant, em Paris, que inspirará inclusive um artigo de Verne para o Musée des familles.46 No entanto, esses fatos, que alimentaram o sucesso da trama do jovem romancista, não são suficientes para explicitar a obra literária ulterior, cujo programa será marcado em 1867 pelo título genérico de Viagens extraordinárias. Evocar um retorno aos acontecimentos que antecederam a publicação de Cinq semaines en ballon, articulando-os à teoria do campo literário, é tirar o foco de uma possível imagem de um Jules Verne de 1848 “determinado, objetivamente e subjetivamente, à indeterminação.47 Se assim procedêssemos nos nossos estudos, estaríamos reduzindo nossa análise da trajetória do autor. Neste item, percorreremos criticamente a obra do aspirante a uma posição literária enquanto se esforça para constituir sua identidade de escritor, verificando suas negociações com seu editor para a elaboração de um empreendimento literário. O encontro entre Verne e Hetzel é frequentemente interpretado pela via das mediações simbólicas, o que traz um significado intrínseco ao fato: faz-se referência a esse encontro como se fosse um rito de passagem a partir do qual Jules Verne se torna escritor, considerado sob a influência do ciclo romanesco. Ao invés de tentar elucidar a história do encontro entre Verne e Hetzel, interrogamo-nos sobre a importância do editor para a criação das Viagens extraordinárias, observando a correlação entre as circunstâncias do encontro e a interação entre os protagonistas. De fato, do ponto de vista de Jules Verne, esse encontro se apresenta como a oportunidade para a realização da sua busca de ser (ou de se tornar) escritor. O contrato para a publicação de Voyage en l’air, que exploraremos no próximo item, legitima sua qualidade de autor confirmado pela unanimidade do sucesso junto ao público. VERNE, Jules.“À propos du Géant” Musée des familles, vol. 31, nº 3, décembre 1863, p. 92-93. Cf. BOURDIEU, Pierre. “L’invention de la vie d’artiste.” Actes de la recherche en sciences sociales, vol. 1, nº 2, 1975, p. 67-93. Disponível em: http://www.persee.fr/web/revues/home/prescript/article/arss_03355322_1975_num_1_2_2458 Apesar da interpretação de Jean Chesneaux sobre a influência da tradição “quarante-huitarde” nos anos de formação parisiense de Jules Verne (CHESNEAUX, Jean. Jules Verne, une lecture politique de Jules Verne. Paris: Maspéro, 1971.), seria difícil aproximá-lo do personagem Frédéric Moreau, de Flaubert, que Pierre Bourdieu trabalha para constituir como símbolo dessa indeterminação do escritor, tomando l’Éducation sentimentale como referência sócio-analítica da autonomização do campo literário depois de 1848. Cf. BOURDIEU, 1998, p. 17. 46 47 27 Na lógica da exploração de fronteiras que buscamos, o sucesso de Cinq semaines en ballon constitui, para Verne, um sinal de reconhecimento da consciência de si mesmo enquanto escritor, que coincide com as representações feitas pela crítica ao fundador do “roman scientifique”. Para além da originalidade e do sucesso nas vendas, o que confirma o valor desse romance, fez-se necessário que Hetzel garantisse a Jules Verne condições de validade de ser (ou tornar-se) escritor, propondo-lhe uma garantia a longo prazo do seu estatuto de autor através da associação duradoura com sua editora. Para Verne, o contrato é uma garantia de acesso a uma posição dentro do campo. No entanto, elejá escrevia e publicava antes desse marcoda sua trajetória. Questionamo-nos, então, a partir de que momento Verne pode, efetivamente, considerar-se escritor? No seu estudo sobre a singularidade, Nathalie Heinich propõe pensar balizas de indeterminação entre as quais, quem quer que seja que esteja relacionado com a criação literária, transita. Segundo a socióloga, do momento da alfabetização de um indivíduo à sua eventual atividade de escrita literária, existem dois aspectos a serem considerados. Segundo Heinich, o primeiro é o interesse de ser um indivíduo da escrita na medida em que a passagem do “escrever” transitivo ao “escrever” intransitivo sinaliza uma disposição existencial daquele que escreve. O outro é a efetiva passagem à publicação, que constituiria uma verdadeira identidade de escritor.48 Esse processo se mostra importante para analisarmos o caso de Jules Verne, pois ele atribui “superioridade” ao fato de ser escritor, como atesta a carta de 25 de abril de 1864. Enviada a P.-J. Hetzel, Verne agradece as duras críticas do editor após submissão e recusa de publicação do romance Paris au XXe siècle justificando que o editor sabe, melhor do que ninguém, da sua aspiração de se tornar um escritor: “Vous savez que je veux, avant tout, devenir un écrivain”.49 Considerando-se a importância dessas balizas de indeterminação para a constituição de uma identidade de escritor, podemos afirmar que, apesar de ter escrito diversos textos dramáticos e de assimilá-los inicialmente à sua vocação literária, Jules Verne não pôde desenvolver uma singularidade e ser reconhecido como autor por sua atividade de escrita para o teatro, visto o número de peças escritas em diversos gêneros, sem sucesso no palco ou até mesmo nunca encenadas. De 31 peças escritas, cinco foram 48 Cf. HEINICH, Nathalie. Être écrivain. Paris: La découverte, 2000, p. 61. VERNE, Jules. Correspondance inédite de Jules Verne et de Pierre-Jules Hetzel (1863-1886). Tome I (1863-1874). Établie par Olivier Dumas, Piero Gondolo Della Riva & Volker Dehs. Genebra: Slatkine, 1999, p. 28. 49 28 encenadas e somente três tiveram relativo sucesso junto público. Destaca-se a peça Les Pailles rompues, que contou com a colaboração de Alexandre Dumas filho, e foi representada no Théâtre Historique, em 12 de junho de 1850. Este foi o primeiro sucesso de Jules Verne no teatro antes de 1862. Essa peça será reencenada no Théâtre du Gymnase em dezembro de 1853. As outras duas peças - Le Colin-Maillard et Les Compagnons de la Marjolaine, foram encenadas no Théâtre-Lyrique, em 1853 e 1855 respectivamente. Em sua busca por uma posição no campo literário, Verne foi confrontado a uma outra oportunidade que poderia decidir seu destino nas artes dramáticas. Em 17 de fevereiro de 1858, a representação de Monsieur de Chimpanzé no Théâtre des BouffesParisiens revelou seus talentos de libretista, em um momento em que as inovações da opereta estavam em desenvolvimento.50 Com música de seu amigo compositor Aristide Hignard, essa ópera-bufa, rica em potencialidades, não permite a Verne construir uma carreira no teatro lírico, mesmo em um momento em que, graças a Offenbach, a opereta evolui. Robert Pourvoyeur defende que, cogitar a hipótese de uma colaboração de Verne com o “Mozart dos Champs-Élysées” traz um aspecto de mudança biográfica que levaria a relativizar o papel fundador do encontro com P.-J. Hetzel. O articulista e especialista em Verne o afirma, analisando as tentativas de posicionamento de Jules Verne como autor de óperas-cômicas em busca de um diretor de teatro no campo da arte lírica de boulevard da Paris dos anos de 1850.51 Ao invés de estudar a atividade de escritor dramático de Jules Verne adotando uma visão de ruptura entre um antes e um depois de Cinq Semaines en ballon, Pourvoyeur prefere considerar essa experiência dramatúrgica como uma reserva mnemônica de técnicas para o romance científico que será criado. O especialista defende que Verne é um “romancista dramático”.52 É coerente afirmar que as decepções de Verne no teatro podem ter provocado seu investimento no gêneroromance. Na lógica do campo literário do Segundo Império, as razões se justificam por sua própria estrutura, cuja hierarquia piramidal foi sublinhada 50 No início da carreira em Paris, Jacques Offenbach procura um teatro que lhe permitisse encenar suas óperas-bufas. A fundação em 1855 do Théâtre des Bouffes-Parisiens, inaugurado na Exposição Universal, marca seus primeiros sucessos junto ao Tout-Paris levando à abertura de uma nova sala na passagem Choiseul na qual Verne tem representada sua ópera-bufa em um ato, sem grande sucesso (quinze apresentações). Cf. POURVOYEUR, Robert.“Jules Verne aux Bouffes-Parisiens.”Bulletin de la Société Jules Verne, vol. spécial théâtre nº1, nº 57, 1er trim., 1981, p. 2-10. 51 Verne tem três óperas-cômicas escritas com a colaboração de Michel Carré e música de Aristide Hignard: Le Colin-Maillard (1853), Les Compagnons de la Marjolaine (1855) citadas acima, e L’Auberge des Ardennes (1860). Cf. POURVOYEUR, Robert.“Les trois opéras-comiques de Verne.” Bulletin de la Société Jules Verne, vol. 18, nº 70, 2ème trim., 1984a, p. 71-78. 52 Cf. POURVOYEUR, Robert. “Jules Verne, écrivain de théâtre ou romancier dramatique?”Bulletin de la Société Jules Verne, vol. 18, nº 70, 1er trim., 1984b, p. 54-57. 29 por Pierre Bourdieu. Dividida do ponto de vista simbólico entre a poesia, no cume, e o teatro, na base, essa hierarquia, inversa do ponto de vista econômico, reserva ao romance um lugar intermediário que nos permite organizar um leque de posicionamentos possíveis por conta da sua dispersão entre os polos consagrados pelo prestígio da tradição ou da instituição.53 Se, nessa lógica, em função do prestígio ligado ao sucesso comercial, o teatro tem um atrativo, a busca pelo capital de reconhecimento assegurado pelas representações em salas de prestígio se torna complexa. Assim, em função das coerções do campo literário e da sua posição dominada em relação ao campo econômico, Jules Verne teria optado pela escrita romanesca desviando dos gêneros poéticos que não lhe traziam mais frutos. Inclui-se aqui também o abandono da poesia de juventude que, embora Verne nunca tivesse mostrado disposição em publicar, na cronologia da escrita, é o primeiro gênero no qual o escritor se lança. Desde 1848, dividido entre a escrita de poemas e o interesse em ser representado nos teatros, Verne não se mobilizou para desenvolver seus sonetos para além da esfera íntima dos seus carnês de poemas. Revelados no final dos anos 1980, esses dois pequenos carnês reúnem coleções de poesias que Jules Verne escreveu entre os anos de 1847-1848. Inacabado, o segundo carnê atesta a persistência desse gênero na carreira de Verne, visto que foi regularmente enriquecido com novos trabalhos até o ano de 1891. 54 Cientes de que estamos tratando de gêneros distintos, poesia e teatro são para Jules Verne, nesse momento da sua carreira, gêneros que reúne em um mesmo conjunto, como veremos a seguir. Em entrevista em 1904, Verne confidencia ao jornalista Gordon Jones que desde a adolescência não parava de escrever e trabalhava sobretudo a poesia.55 Essa declaração deve ser vista com cautela pois, em entrevistas anteriores, o escritor deixa entrever que não estimava seus dons poéticos, denegrindo junto ao jornalista Robert Sherard, em 1895, seus ensaios de juventude: “J’ai commencé à écrire à l’âge de douze ans. Uniquement la poésie, de l’affreuse poésie.”56 Atribuindo essa inclinação pelos versos a um atavismo, Verne considera as extensões da poesia no plano da escrita teatral. Ele reúne os dois gêneros e afirma em entrevista, em 1895, à Marie A. Beloc, a força que a arte dramática exerceu em sua geração: “J’ai débuté ma carrière littéraire par de la poésie qui – suivant 53 Cf. BOURDIEU, 1998, p. 193. Cf. VERNE, Jules. Poésies inédites.Sous la direction de Christian Robin. Paris: Le cherche midi, 1989. 55 VERNE, Jules. Entretiens avec Jules Verne 1873-1905. Réunis et commentés par Daniel Compère et Jean-Michel Margot. Genève: Slatkine, 1998, p. 214. 56 VERNE, 1998, p. 88. 54 30 en cela la plupart des littérateurs français en herbe – s’est transformée en tragédie en cinq actes.”57 Com a decepção diante da sua posição de escritor não reconhecido, Verne relega a poesia e o teatro em verso ao espaço de possíveis improváveis por considerar que suas primeiras disposições para esses gêneros consagrados pelo Romantismo não se harmonizavam mais com a constituição de uma posição inovadora no campo literário. Logicamente, essa tomada de posição não está desvinculada das coerções do campo literário e da sujeição deste ao campo econômico. Após a apresentação malsucedidada comédia em prosa Onze jours de siège, em 1861, dá-se a ruptura de Verne com a carreira dramática na arte burguesa parisiense. Cabe-nos fazer, portanto, algumas observações sobre a situação do romance naquelemomento, gênero no qual Verne investirá. É comum ressaltar na história do romance francês sua passagem de gênero popular a gênero reconhecido pela crítica e pelo público burguês. Antônio Candido sublinha que, até a meados do século XIX, o romance era visto com certa desconfiança junto aos homens de letras, sendo considerado uma criação menor, em comparação com as artes plásticas, o teatro ou a poesia.58 Considerado como arte menor, mas com apelo popular, o romance será assim caracterizado até a metade do século XIX.59 Na década de 1860, portanto, o romance já tinha sido alçado ao nível de gênero literário prestigiado e integra a esfera da literatura reconhecida pelos polos dominantes do campo literário. A respeito dessa mudança, Albert Thibaudet sinaliza que tudo se passa como se nos anos cinquenta do século XIX, decisivos para a história do romance, se desenvolvesse de Balzac a Flaubert uma “lógica interior ao romance” que, a partir da segunda metade do século, lhe confere estatuto literário às custas de certo caráter ingênuo da criação. Thibaudet explica que isso acontece quando o gênero abandona, especialmente com os romances de Flaubert, seu cunho popular e espontâneo adquirindo a condição de obra de arte moderna.60 Auxiliado pelo desenvolvimento da imprensa, o romance se beneficiou, ainda, da difusão através do formato folhetim e do progresso da alfabetização para aumentar seu 57 COMPÈRE, 1998, p. 100-101. Cf. CANDIDO, Antonio. “A timidez do romance”. In: ___. A educação pela noite e outros estudos. 3ª ed. São Paulo: Ática, 2003, p. 82-99. 59 Como ressaltado por Milner e Pichois, o “maior fenômeno da história literária na metade do século é a conquista pelo romance de seu reconhecimento como gênero literário”. Cf. MILNER, Max & PICHOIS, Claude. De Chateaubriand à Baudelaire (1820-1869). Paris: Arthaud, 1990, p. 39. 60 THIBAUDET, Albert. In : RAIMOND, Michel. Le roman depuis la Révolution. 9ª ed. Paris: Armand Colin, 1988, p. 93. 58 31 público e diversificar seus leitores, fatos que não estão dissociados da evolução imposta pelo surgimento de estruturas editoriais para a produção e difusão de obras depois da crise dos anos 1826-1830. Essa crise, ritmada por inúmeras falências, rompe com a era da “librairie romantique”, o que contribuirá para a emergência dos “novos homens para novos tempos” – os editores, entre os quais Hetzel, que enfrentará o problema propondo uma revitalização do mercado através da difusão do novo livro ilustrado.61 Os editores, “altos barões da feodalidade industrial”,62 investidores no mercado de bens simbólicos, se situam em um lugar intermediário entre o campo literário e o campo econômico. O campo editorial poderia ser tratado inclusive como um campo a parte.63 A vulnerabilidade a riscos financeiros permite-lhes adaptar a profissão à produção romanesca promovida, entre outros, pelo aumento do mercado com as novas categorias de leitores que surgem com o progresso da alfabetização. Assim, novas formas literárias resultam dessa situação, levando autores a criarem suas obras com base em ideias estéticas originais, engajandose em abordagens estratégicas diante das diferentes categorias de editores. Essa inserção do campo editorial no sistema da comunicação literária motivou a evolução das relações entre escritorese editores para realizarem uma personalização das associações contratuais que poderiam - e no caso de Jules Verne pôde - vincular os escritores a uma editora. Esse sucinto panorama da situação do romance e da sua relação com o campo editorial nos auxilia a avaliar as circunstâncias da futura associação entre Verne e Hetzel. Consideramos esse encontro entre Verne e Hetzel como o resultado de duas trajetórias biográficas que se cruzam no interior do campo literário. Enquanto conjunto de posições sucessivas ocupadas por um agente no espaço de possíveis, a trajetória permite interpretar os fatos biográficos como “posicionamentos nos diferentes estados sucessivos da estrutura na qual se distribuem os diversos tipos de capital em jogo no campo”.64 É da escolha das bifurcações no caminho biográfico que pode proceder o sentido e o valor que os acontecimentos terão, como aquele da travessia dos limites que Cf. MARTIN, Henri-Jean & Odile. “Le monde des éditeurs”. In : CHARTIER, Roger & MARTIN, Henri-Jean (dir.). Histoire de l’édition française; le temps des éditeurs. Paris: Fayard, 1985, p. 176-244. 62 REGNAULT, Elias. “L’éditeur” In: CURMER, Léon. Les Français peints par eux-mêmes, T. II. Paris: Omnibus, 2003, p. 952. 63 Embora Jean-Yves Mollier, especialista do mundo da edição, não tenha sistematizado em seus trabalhos, compreendemos, na esteira de seus estudos, o campo editorial como um campo que se situa na interseção entre os campos econômico e literário. Para nós, o campo editorial é um lugar de confronto e colaboração: o editor dita coerções norteadas pela indústria e o escritor reivindica liberdade, arte e ideal. O livro surge do entendimento entre os dois. 64 BOURDIEU, 1998, p. 425. 61 32 balizam a indeterminação. Queremos dizer que, se Jules Verne não tivesse fracassado na poesia e no teatro, talvez ele não tivesse tentado uma nova forma do gênero romanesco. Observando a trajetória de Jules Verne, poderíamos considerar a história de seus posicionamentos no campo literário como a narrativa de uma escolha diante de uma alternativa: ela contaria um percurso no espaço de possíveis em forma de idas e vindas a partir da bifurcação que pode ser definida pela publicação da novela Les Premiers navires de la marine mexicaine, em 1851, no periódico Musée des familles.65 Jules Verne relata a seu pai que, nessa primeira novela, à maneira do escritor americano James Cooper,66 conta a história de um desentendimento gerado por um oficial criminoso que, em 1825, a bordo de dois navios de guerra espanhóis, deseja vender as embarcações ao governo mexicano. No entanto, uma vez aportados, dois marinheiros fiéis ao seu capitão e à sua pátria, conseguem eliminar o renegado. Primeiro trabalho de Jules Verne publicado depois de escrever sete peças e ter somente uma encenada (Les Pailles rompues) - esse “texto-gênese” da obra verniana, e não Maître Zacharius67 como apontado por Alain Froidefond-,68 a novela seria a que define que Verne já teria tomado o caminho que lhe será produtivo em toda a carreira que se seguirá: o uso dos relatos de viagens, um dos itens previstos no gênero “romance científico” que desenvolverá. O vai e vem entre gêneros - a novela e o teatro - só cessará em 1855. Depois de Les premiers navires de la marine mexicaine de 1851, até 1855, Jules Verne ainda publica no mesmo periódico a novela Un Voyage en ballon, em agosto de 1851, a comédia em um ato Les Châteaux en Californie, ou Pierre qui roule n'amasse pas mousse, em junho de 1852, Martin Paz - nouvelle historique, em julho/agosto de 1852, a novela fantástica Maître Zacharius ou l'horloger qui avait perdu son âme. Tradition genevoise, em abril de 1854 e a novela Un Hivernage dans les glaces, em março/abril de 1855.69 65 A novela foi publicada no t.8 do periódico, em julho de 1851, p. 304-312. “Mon article Pitre-Chevalier n’est qu’une simple aventure que je fais passer à l’intérieur du Mexique à la façon de Cooper”. Estas correspondências são anexos da biografia editada por Olivier Dumas. VERNE, Jules. Jules Verne: avec la publication de la correspondance inédite de Jules Verne à sa famille. Sous la direction de Olivier Dumas. Lyon: La Manufacture, 1988, carta 30, p. 289. 67 VERNE, Jules.“Maître Zacharius ou l’horloger qui avait perdu son âme. Tradition génevoise.” Musée des familles, T. 21 - avril 1854, p. 193-200, mai 1854, p. 225-231. 68 Cf. FROIDEFOND, Alain. Voyage au centre de l’horloge. Essai sur un texte-genèse “Maître Zacharius”. Paris: Lettres Modernes, 1988. 69 A seguir, listo os textos escritos por Verne, publicados no periódico, acompanhados de suas referências: Les Premiers navires de la marine mexicaine, t. 8 - juillet 1851, p. 304-312; Un Voyage en ballon, t. 8 août 1851, p. 329-336; Les Châteaux en Californie, ou Pierre qui roule n’amasse pas mousse, t. 9 - juin 1852, p. 257-271; Martin Paz, nouvelle historique, t. 9 - juillet 1852, p. 301-313 e août 1852 p. 321-335; Maître Zacharius ou l'horloger qui avait perdu son âme. Tradition génevoise, t. 21 - avril 1854 p. 193-200, 66 33 No mesmo período da publicação dessas novelas, Jules Verne escreve onze textos para o teatro, e terá somente dois deles encenados: as óperas-cômicas Le Colin-Maillard e Les Compagnons de la Marjolaine que, como relatamos anteriormente, se unem ao relativo sucesso de Les Pailles rompues, peça em versos. As duas únicas críticas à carreira dramática de Jules Verne já encontradas dizem respeito a essas duas peças. Em janeiro de 1853, o Mercure de France, que entre os anos de 1835-1882 se apresentava como um complemento do Musée des familles, anuncia que no Théâtre-Lyrique “ensaia-se uma opéra do Senhor Vernes (sic) e do Senhor Ignard (sic) da qual se prediz o sucesso”,70 o que será confirmado em abril: Prevendo o sucesso de Colin-Maillard do nosso colaborador, o Sr. Jules Verne, nós tínhamos certeza de não estarmos enganados. Le ColinMaillard obteve sucesso, com efeito. É uma das criações mais graciosas que tenham sido dadas à música. O Sr. Hignard, digno aluno do Sr. Halévy, preencheu essa criação com melodias ao mesmo tempo hábeis e charmosas, que todo mundo aplaudiu e que cada um repetia saindo da representação. Não conhecemos elogio mais decisivo para uma obra musical.71 Em outubro do mesmo ano, o Mercure de France dá novamente notícias sobre as produções do Théâtre-Lyrique: “Fala-se de uma representação dos Compagnons de la Marjolaine de M. Jules Verne e Hignard, os espirituosos autores do Colin-Maillard.72 Em 1853, há uma volta de Verne ao gênero breve. Pitre-Chevalier, diretor do Musée des familles à época, pede ao escritor para escrever um complemento de “L’Histoire de l’horlogerie”,73 cuja publicação estaria prevista para início de 1854 para ocupar a rubrica “Science en famille. Mécanique”. Jules Verne concebe, portanto, a novela fantástica Maître Zacharius ou l’horloger qui avait perdu son âme, na qual um mai 1854 p. 225-231; Un Hivernage dans les glaces, t. 22 - mars 1855, p. 161-172, avril 1855 p. 209-220; À Propos du Géant, t.31 - décembre 1863 p. 92-93; Edgard Poë et ses œuvres, t.31 - avril 1864, p. 193208; Le Comte de Chanteleine - Épisode de la révolution, t. 32 - octobre 1864 p. 1-15, novembre 1864, p. 37-51, décembre 1864, p. 73-85; Les Forceurs de blocus, t.33 - octobre 1865, p. 17-27, novembre 1865, p. 35-47; Une Fantaisie du docteur Ox, t.39 - mars 1872, p. 65-74, avril 1872, p. 99-107, mai 1872, p. 133141. 70 Anônimo. “Salons et Théâtre” Mercure de France, 15 janvier au 15 février 1853, p. 9. 71 “En prédisant le succès au Colin-Maillard de notre collaborateur M. Verne, nous étions sûrs de ne pas être démenti. Le Colin-Maillard a réussi, en effet. C’est un des cadres les plus gracieux qui aient été donnés à la musique. M. Hignard, digne élève de M. Halévy, a rempli ces cadres de mélodies savantes et charmantes à la fois, que tout le monde a applaudies et que chacun répétait en sortant de la représentation. Nous ne sachions pas d’éloges plus décisif pour une oeuvre musicale.” Anônimo. “Théâtres, concerts”, Mercure de France, 15 avril au 15 mai 1853, p. 15-16. 72 “On parle de la représentation des Compagnons de la Marjolaine de M. Jules Verne et Hignard, les spirituels auteurs du Colin-Maillard.” Anônimo. “Théâtres”. Mercure de France, 15 octobre au 15 novembre 1853, p. 4. 73 “L’Horloge et la montre. Histoire chronométrique”. Musée des familles, T. 21, février 1854, p. 129-135 et mars 1854, p. 161-168. 34 relojoeiro genebrino se indispõe com um ser demoníaco que bloqueia todos os seus relógios e ameaça raptar sua filha, levando-o a renegar suas convicções mais nobres e sua honestidade. A novela termina com a morte do relojoeiro e com o demônio blasfemador sendo engolido pela terra. Em 1855, Verne publica a novela Un hivernage dans les glaces, sua última contribuição à revista nesse período pré-Hetzel. Trata-se de uma publicação encomendada e “remunerada” por Pitre-Chevalier.74 A história narra uma expedição de salvamento nos mares nórdicos de um homem desaparecido em condições heróicas. Os personagens, equipados com peles e trenós, passarão, como o título indica, um inverno aprisionados em terras geladas. No mesmo ano, o Mercure de France, que acompanha as novidades teatrais de Jules Verne, informa aos leitores sobre o ensaio no Théâtre-Lyrique de “Les Compagnons de la Marjolaine - um ato-bijou do Sr. Jules Verne, com música do Sr. Aristide Hignard, que o Colin-Maillard já havia colocado no topo, e que, como todos os verdadeiros talentos, se superou, diz-se na sua segunda obra.”75 Ao analisarmos essas idas e vindas de Jules Verne entre o teatro e o gênero narrativo breve, podemos inferir que há uma tentativa do escritor de abandono das artes do espetáculo. O sucesso das peças que consegue levar para a cena é relativo. Ora, o único jornal que dá conta dessas apresentações é justamente o complemento daquele com o qual Verne colabora – o Musée des familles. Jean-Louis Mongin afirma, nos seus estudos sobre o trabalho de Verne para o periódico, que as críticas positivas às peças foram publicadas anonimamente, como pudemos de fato verificar, e, portanto, não descarta a hipótese de terem sido escritas pelo próprio Jules Verne.76 Além disso, ele tem a comodidade de ter as peças encenadas no Théâtre-Lyrique – espaço do qual é secretário até 1855. Em suma, essas razões somadas à possibilidade de Jules Verne não ser pago pelas novelas que escreve, só as publicando no intuito de se fazer conhecer, nos levam a crer que, naquele momento de sua trajetória, Verne ainda não se vê como o “escritor” que deseja se tornar, já que, em certa medida, continua quase desconhecido dentro do campo literário. Além dessas reflexões, a ideia de que Jules Verne deseja abandonar as artes do espetáculo poderá ser verificada no problema anunciado em uma carta a seu pai, datada Verne faz questão de dizer que ele será “remunerado” em carta a seu pai, em 29 de abril de 1853. Isso dá margem para pensar que ele pudesse não ser pago sistematicamente por suas contribuições ao Musée des familles. VERNE, 1988, carta 65, p. 337. 75 “Les Compagnons de la Marjolaine - un acte-bijou de M. Jules Verne, musique de M. Aristide Hignard, que le Colin-Maillard avait déjà placé si haut, et qui, comme tous les vrais talents, s’est surpassé, dit-on dans son second ouvrage.” “Théâtre, Littérature”. Mercure de France, 15 mars au 15 avril 1855, p. 14. 76 Cf. MONGIN, Jean-Louis. Jules Verne et le Musée des familles. Amiens: Encrage, 2013, p. 118. 74 35 de 19 de abril de 1854. Nela, Verne relata seu descontentamento com o teatro e seu desejo de deixar a secretaria do Théâtre-Lyrique onde trabalha. Confessa a seu pai que o acúmulo de capital social não tem ocorrido satisfatoriamente e, portanto, no que diz respeito ao seu trabalho literário, ele tem estudado muito porque “percebe novos sistemas”: [...] Cette lettre interrompue est reprise aujourd’hui, jeudi 20, jour où je reçois la tienne: tu vois donc, mon cher père, que je t’envoie toutes sortes de renseignements. Je ne crois pas que M. Perrot me soit utile, et il n’est presque plus rien dans la direction des Beaux-Arts; au surplus, il est facile de voir que les protections ne sont pas d’une grande utilité. Dans toutes les boutiques de théâtre, il y a une chose très vraie; on y arrive quand on y est... j’y suis, donc. J’étudie encore plus que je ne travaille car j’aperçois des systèmes nouveaux, j’aspire avec ardeur au moment où j’aurai quitté ce Théâtre-Lyrique qui m’assomme; j’attends la fermeture. Sur ce, je vous embrasse tous, sans distinction d’âge, ni de sexe, ni de nature (ceci est pour le chat). Quand Paul aura 5 minutes, qu’il m’écrive 5 lignes. Ton fils respectueux. Jules Verne77 Por mais lacônico que Verne seja anunciando que “percebe novos sistemas”, compreendemos que, no jogo entre a tradição e a inovação, a noção de “sistema” está associada ao “novo”. Essa aspiração à novidade condiciona as iniciativas criativas do século das revoluções para o qual o novo é definido como um absoluto da inovação. É no século XIX que se multiplicam os movimentos literários - Romantismo ao Realismo, Naturalismo e Simbolismo - e os debates e conflitos característicos que trazem à literatura desse século as interrogações quanto à ontologia da própria Literatura. É essa pluralidade de “sistemas” que dá suas condições de possibilidade estéticas à gênese do campo literário cuja estrutura organiza os lugares e as posições de acordo com polos concorrentes que regulam as lutas pela defesa das fronteiras dos modos, gêneros ou formas legítimas. Essas regras do jogo marcam os embates dos escritores que se posicionam a favor ou contra a mudança de hierarquias instituídas pela relação de força em razão da rede de coerções que se podem infligir ao espaço de liberdade literária. Esse espaço é orientado por uma “rede de potencialidades objetivas”78 na qual se revelam disposições para novos posicionamentos. Portanto, diante da problemática de um “gênero virtual”, na carta de abril de 1854, Jules Vernepôde vislumbrar a perspectiva de “novos sistemas”, no sentido de uma diversidade de escolhas possíveis entre doutrinas literárias, dentro dos limites de 77 78 VERNE, 1988, carta 77, p. 350. BOURDIEU, 1998, p. 384. 36 um contexto sócio-histórico que evoca uma abordagem de descoberta do génie próprio ao desenvolvimento do seu interesse em inovar. A esse respeito, é pertinente caracterizar o período da produção de Verne até 1855, como um momento de busca criativa que permite localizar, em contraponto com a atividade teatral de bulevar, o interesse de Verne por gêneros narrativos breves, no caso, a novela. Mais do que um simples percurso legitimador no universo da imprensa literária, essas tentativas moldaram uma experiência mais fundamental para Verne na medida em que levaram o escritor a refletir sobre as perspectivas possíveis para um posicionamento no campo literário. Ao observar os títulos da produção de Verne para o Musée des familles, nota-se uma orientação em direção à aventura ou ao fantástico e ainda a recorrência da utilização do tema de viagem na elaboração dessas novelas, fator indicativo do desenvolvimento de um savoir-faire técnico de pesquisas em relatos de viajantes. No entanto, essas novelas não apontam para a tendência de uma combinação narrativa entre tecnologia científica e ficção, da qual Jules Verne lançará mão na sua obra romanesca. Por outro lado, a colaboração do escritor para o periódico já indicaria sua posição em uma região do campo literário que condicionará os deslocamentos da sua trajetória biográfica. Com a ideia de difundir a “ciência em família”, Pitre-Chevalier orientava as contribuições feitas à sua revista no sentido de uma literatura didática que deveria atender a um público tanto social quanto culturalmente diferente, isto é, leitores de diversas camadas sociais. Com o intuito de atenderindististamente a todos, o discurso “neutro” da ciência permitia promover a “arte de divertir e instruir” subordinando a produção dos autores à lógica da utilidade das lições em família. Desse modo, tornava-se, portanto, incompatível com o perfil da revista qualquer colaboração que atendesse aos preceitos da “arte pela arte” encerrando a criação na esfera da “arte útil”. Apesar dos esforços consideráveis de reposicionamento no campo literário, o jovem novelista do Musée des familles terá dificuldades de emigrar do polo da arte útil. Dentro da estrutura dual do campo literário, esse período de buscas de Verne por “novos sistemas”, anunciado na carta ao pai, só se concluirá efetivamente depois do seu encontro com Hetzel, quando se associa, em 1864, ao magazine didático-literário para jovens – o Magasin d’Éducation et de Récréation. Dessa afirmação - “percebo novos sistemas” -, presente na carta de Verne, depreendemos uma iniciativa de posicionamento no campo literário em um futuro indeterminado. A correspondência com sua família não traz informações que permitam 37 confirmar que uma nova via criativa tenha sido tomada depois da sua colaboração com o Musée des familles de Pitre-Chevalier. Quando, em 1855, deixa sua função de secretário no Théâtre-Lyrique, Verne não parece aproveitar essa liberdade para se lançar nesses “sistemas”, distinguindo-se por uma criação literária original. Nesse momento da sua trajetória, o escritor não destina imediatamente um interesse ao gênero romanesco que pudesse anunciar a descoberta de uma forma nova demarcando uma distinção no seu percurso no campo literário. Caracterizado pelos especialistas como um período de falta de fecundidade literária, os anos entre 1855 e 1861 podem ser revistos graças a três produções: a primeira, já conhecida pelos estudiosos da obra de Verne, diz respeito à elaboração dos versos da peça Monna Lisa; a segunda, a uma descoberta recente - ainda não considerada em trabalhos de pesquisa até o momento -, a publicação dos artigos críticos que Verne escreveu sobre o Salão de 1857; e a última, diz respeito à escrita do romance Paris au XXe siècle nos anos de 1860-1861. Essa infertilidade literária é frequentemente evocada e justificada pelo casamento de Jules Verne com a jovem viúva Honorine Deviane.79 Hoje, é possível afirmar que a redução a esse fato biográfico é um erro de perspectiva, e que o casamento entre o escritor e a viúva, em janeiro de 1857, não é sinal do fim do período que antecedeu a produção romanesca de Jules Verne. A duração do processo de escrita da peça Monna Lisa é uma das evidências. Seguindo o modelo das comédias do escritor romântico Alfred de Musset, Jules Verne escreveu e reescreveu entre os anos de 1851 e 1855 o texto que, de maneira jocosa, dramatiza o dilema da relação entre o amor e a arte, interrogando a singularidade do “criador” à época. A peça aponta, ao mesmo tempo, para a duplicidade das preocupações sócio profissionais de Verne no campo: sua “fachada burguesa”.80 A segunda produção que nega qualquer tentativa de pontuar uma lacuna literária nesse período da trajetória de Jules Verne é a existência do seu trabalho como articulista para o jornal Gazette des Beaux-Arts, em que critica o Salão de 1857. Ano dos processos de Madame Bovary, de Gustave Flaubert e de As Flores do mal, de Charles Baudelaire, 79 Embora evocada por diversos especialistas, referimo-nos à menção que William Butcher faz na biografia de referência que escreveu sobre Jules Verne. Cf. “Tribulations of a frenchman in France: 1854-1857”. In: BUTCHER, 2006, p. 103. 80 Evocamos aqui a expressão de Jean Chesneaux extraída dasua leitura política sobre Jules Verne, arrolada na bibliografia (CHESNEAUX, Jean. Une lecture politique de Jules Verne. Paris: Maspero, 1971). Na perspectiva socioanalítica do campo literário que propomos na pesquisa, a expressão cunhada por Chesneaux nos permite apontar para a evolução do itinerário biográfico de Jules Verne do ponto de vista social. 38 ambos vítimas de censura, acusados de intentar contra a moral pública, religiosa e os bons costumes, 1857 é o período em que Verne investe em um gênero nunca antes testado por ele: a crítica de arte. Isolada dentro da sua trajetória no campo, a crítica ao Salão de 1857 publicada na rubrica “Tribune de artistes” do jornal referido acima, não é aleatória em sua carreira. Na perspectiva do campo, sabemos que o escritor está construindo o seu próprio projeto criador em função de sua percepção das possibilidades estéticas disponíveis, oferecidas pelas categorias de percepção e de apreciação (“novos sistemas”), inscritas em seu habitus por sua trajetória e também em função da propensão a acolher ou recusar tal ou qual desses possíveis, que os interesses associados à sua posição no jogo lhe inspiram.81 Assim, esses seis artigos críticos publicados em dias diferentes podem ser tomados ao mesmo tempo como um distanciamento dos gêneros aos quais Verne já havia se dedicado e uma nova tentativa de entrada no campo literário, testando mais um “novo sistema” - o gênero cuja criação atribui-se a Diderot. Reportando-nos àquele momento, depois da renúncia de alguns gêneros (teatro, poesia e novela), o escândalo que envolveu Madame Bovary, de Flaubert, pode ter reforçado o interesse de Jules Verne em investir no gênero romance em uma visada crítica da instituição social, como se fosse um desafio. A reconstituição cronológica do processo de escrita de Jules Verne nos mostra que, depois da peça Monna Lisa, nunca encenada, e da publicação dos textos que surgem da observação de obras de arte situando-se entre o literário e o pictural, Verne não só se aproxima do romance como transforma sua literatura em crítica da instituição social como um todo, no momento em que, depois das desilusões sobre as chances de deslanchar no mundo do teatro burguês e das publicações esporádicas das novelas, intenta contra o mercantilismo tecnológico do Segundo Império escrevendo, em torno de 1860-1861, o romance panfletário Paris au XXe siècle. O período ao qual se atribui essa esterilidade literária de Verne é, na verdade, um momento de (re)posicionamentos no campo e de afirmação do caráter irrevogável da sua vocação literária. Desde 1856, diante das dificuldades financeiras que enfrenta depois de sair da secretaria do teatro, em cartas a seu pai, Verne debate unicamente sobre o seu talento, cujo reconhecimento acha provável já que trabalha incessantemente sua escrita: [...] Il est moins question que jamais d’abandonner la littérature; C’est un art avec lequel je me suis identifié et que je n’abandonnerai jamais. [...] Non! J’en reviens à ceci, j’ai du temps et de l’activité à utiliser! Profitons-en! Si j’ai du talent littéraire, je le verrai bien, et j’arriverai 81 Cf. BOURDIEU, 1996, p. 64. 39 forcément car jamais je ne cesserai de travailler ces oeuvres qui me séduisent d’autant plus qu’elles deviennent sérieuses.82 Tu parles de découragement littéraire; eh bien, je te jure qu’il n’existe pas; je vois seulement qu’une situation littéraire ne peut être faite que par ce temps de ponte et d’éclosion perpétuelles, avant l’âge de 36 ans au moins.83 Em suma, visto o caráter único da crítica ao Salão de 1857 na trajetória de Verne no campo literário, podemos afirmar que embora não haja uma tendência do escritor para um investimento contínuo nesse gênero, é possível verificar relações com sua obra romancesca. Já sua produção novelística para o Musée des familles, além de ter sido mais duradoura em comparação à critica de arte, funciona como um período de aquisição de savoir-faire técnico para Jules Verne. A necessidade de se documentar para escrever suas novelas o levou a frequentar bibliotecas ricas em informações históricas, geográficas e científicas. Despertando uma atração pela veia enciclopédica, essas pesquisas provocaram em Jules Verne uma reavaliação do uso de documentos na escrita literária que contribuiu para direcionar seu trabalho para a constituição de uma reserva de conhecimentos sobre os mais diversos temas científicos, servindo-se da tendência do século de compilação do conhecimento em dicionários, enciclopédias e na imprensa de vulgarização científica. Na medida em que o discurso enciclopédico é atravessado por uma linguagem especializada, afirmamos que Verne pôde aproveitar a acumulação desse conhecimento técnico, o que lhe permitiu, mais tarde na sua carreira, detectar as virtudes estilísticas quando as exigências do didatismo hetzeliano o levarão a fazer listas e a usar nomenclaturas genéricas ou específicas para falar de descobertas ou, simplesmente, descrever espaços ou coisas. Concluimos que sua aptidão em manejar as informações extraídas de documentos técnicos e científicos contribuiu parainstaurar a reputação de “savant” que Jules Verne terá -, interessante aos olhos de seu futuro editor, e que, portanto, sua contribuição ao periódico Musée des familles não se limitou unicamente a lhe ensinar as técnicas do gênero narrativo breve. Após suas contribuições para o periódico e sua atividade pontual como crítico de arte, Jules Verne investirá no romance. Passar da novela ou da crítica de arte para o romance supõe uma mudança de posicionamento no campo literário na medida em que o escritor não pôde vislumbrar um investimento nesse gênero sem ter uma ideia literária 82 83 Carta ao seu pai em 29 de maio de 1856. VERNE, 1988, Carta 115, p. 400-401. Carta ao seu pai em 9 de julho de 1856. VERNE, 1988, Carta 120, p. 408. 40 que oriente seu projeto estético-criativo. Para alcançar o domínio de sua atividade de escrita foi necessário, para Verne, articular um encontro com alguém que revelasse o romancista a ele próprio. No entanto, antes do encontro com o editor Hetzel, Verne já se interessara pela narrativa romanesca, após mais de dez anos como errante no campo literário, ao se deparar com a obra de Edgar Allan Poe. Em 1861, se dá um retorno de Verne ao gênero breve: publica À propos du Géant, novela baseada no voo do balão de Félix Nadar em Paris, e em 1862, Charles Wallut, diretor do Musée des familles à época, anuncia a publicação na revista de um longo artigo crítico de Jules Verne sobre a obra de Poe. Efetivamente publicado em abril de 1864, o artigo é a única contribuição dentro do gênero da crítica literária que Verne tem em sua obra.84 A elaboração desse texto institui, dentro de uma trajetória biográfica instável, um marco determinante que aponta para o posicionamento ulterior de Verne no campo literário em direção ao romance científico. Mesmo que as traduções das Histórias extraordinárias, As novas histórias extraordinárias e As aventuras de Gordon Pym feitas por Charles Baudelaire tenham sido publicadas por Michel Lévy em 1856, 1857 e em 1858, respectivamente, não significa que Verne tenha se interessado por esses livros no momento de sua primeira difusão. Foi entre os anos de 1861 e 1862 que Jules Verne parece ter se interessado pelo universo imaginário da obra de Edgar Allan Poe, quando recebe a encomenda do artigo crítico por Wallut. O interesse em Poe e a elaboração do artigo coincidem ainda com um possível início da escrita de Voyage en l’air, romance que será submetido a Hetzel em 1862 e será publicado em 1863 sob o título Cinq semaines en ballon. A partir do ano de 1857, a atenção à obra de Poe entra em uma fase de depressão na França em função do efeito que a crítica burguesa arquitetou contra Charles Baudelaire com o escândalo provocado pelo processo de As Flores do Mal. A reputação do artista americano é associada àquela de Baudelaire. Léon Lemonnier sinaliza que é somente em 1862 que o escritor americano ganha novamente a popularidade,85 da qual o mercado editorial se aproveitará, inclusive P.-J. Hetzel, lançando os Contes inédits, traduzidos por W. L. Hughes.86 O anúncio de publicação do artigo Edgard Poë et ses oeuvres deve ser situado, portanto, no contexto de um reinteresse do público e do mercado editorial pela VERNE, Jules.“Edgard Poë et ses œuvres.” Musée des familles, T. XXXIe, n° 7, avril, 1864. O artigo crítico pode ser consultado na sua integralidade em: http://jv.gilead.org.il/almasty/aepoe/ 85 Cf. LEMONNIER, Léon. Edgar Poe et la critique française de 1845 à 1875. Paris: PUF, 1928, p. 194. 86 POE, Edgar Allan. Contes Inédits. Trad. de W. L. Hughes. Paris: Hetzel, 1862. Disponível em: http://gallica.bnf.fr/ark:/12148/bpt6k2558853/f1.item 84 41 figura literária de Poe, que tinha sido associada àquela de Baudelaire e, portanto, vilipendiada moral e socialmente. A esse respeito, no incipit do seu ensaio crítico, Jules Verne dissocia o “homem” da “obra”; Verne opõe a assinatura da obra que identifica a singularidade do escritor na esfera literária à fama em torno de Edgar Allan Poe enquanto “autor”, permitida pela circulação do seu nome na crítica francesa: Voici mes chers lecteurs un romancier de haute réputation; vous connaissez son nom, beaucoup sans doute, mais peu ses ouvrages. Permettez-moi donc de vous raconter l’homme et son œuvre; ils occupent tous les deux une place importante dans l’histoire de l’imagination, car Poë a créé un genre à part, ne procédant que de luimême, et dont il me paraît avoir emporté le secret ; on peut le dire chef de l'Ecole de l'étrange. [...] Je vous dirai tout d’abord qu'un critique français, M. Charles Baudelaire, a écrit, en tête de sa traduction des œuvres d'Edgard Poë, une préface non moins étrange que l’ouvrage luimême. [...] M. Charles Baudelaire était digne d’expliquer l'auteur américain à sa façon, et je ne souhaiterais pas à l'auteur français d'autre commentateur de ses œuvres présentes et futures qu'un nouvel Edgard Poë. A charge de revanche; ils sont tous deux faits pour se comprendre. D'ailleurs, la traduction de M. Baudelaire est excellente, et je lui emprunterai les passages cités dans ce présent article.87 Para o Jules Verne de 1862, na iminência de conhecer seu futuro editor, não há ainda nenhuma preocupação evidente em escrever uma poética do extraordinário, como Poe fez, e sobre a qual poderia se basear o romance científico. No entanto, afirmamos que é dessa leitura de Poe que Jules Verne extrai motivação para investir no gênero romanesco de maneira a inovar, elegendo uma associação entre arte e ciência, através do interdiscurso. Não nos causa estranheza, assim, que, dessa leitura de Edgar AllanPoe, advenha um reforço na experiência de Verne no investimento no relato de viagem enquanto gênero. No contexto europeu do século XIX, as representações geográfica e etnográfica do globo terrestre procuram a legitimidade do gênero literário na arte de narrar a viagem que oscila entre dois polos: o relato autêntico da pesquisa científica e o divertimento literário cuja “verdade” só pode ser preservada por uma ficção geográfica verossímel. As viagens que Verne escreverá serão o exemplo da ficcionalização de relatos de viagem. O autor que, depois de sua leitura de Poe, reavalia o potencial de renovação que o insólito do escritor americano pode trazer para a tradição da viagem imaginária, equilibra o relato de viagem com uma verossimilhança ficcional e toma para si a postura enunciativa do escritor-viajante, que guiará sua futura obra. 87 VERNE, 1864, s.p. 42 Com a criação de Voyage en l’air, Verne estreia como um romancista que, entre outros, se debruçou sobre o material da novela de Poe. Surge pela primeira vezuma montagem ficcional que excede o capital de experiência adquirido no gênero breve quando escrevia para o Musée des familles. Para esse romance, Verne se vale de três fórmulas-tema gerais. Afim de explorar o interdiscurso com a ciência, o primeiro interesse é pelo tema do balonismo, alimentado tanto pelos acontecimentos da época, quanto pela falsa história de Edgar Allan Poe: Le Canard au ballon (The Balloon hoax), de 1844. Em seguida, apropriando-se dos relatos de viagem, Verne funde dados históricos e científicos transformando-os em romance de aventura. Por fim, ambientando o romance na África das explorações e das expedições coloniais, o romancista dispõe de vasto material para conceber uma renovação do romance na forma pedagógica da telemaquia, aquele em que o personagem amadurece ao longo da viagem: Cinq semaines en ballon. Desde a declaração a seu pai sobre a irrevogabilidade de sua vocação literária, a trajetória biográfica de Verne mostra que a escolha do romance não se impôs de imediato ao seu julgamento estético como investimento genérico mais adequado à sua intenção de inovar, como foi declarado na carta de 1854. Essa tomada de posição se dá pari passu com o envelhecimento social, que as indeterminações do postulante à profissão de escritor contribuíram a constituir através dos dez anos de busca de capital simbólico.88 Os posicionamentos e reposicionamentos de Jules Verne no campo literário, desde os anos de 1850, são condicionados por questões estéticas, mas igualmente pelas coerções do campo econômico. Eles desembocam e coincidem, em 1862, com o encontro com Hetzel. Este, por sua vez, explorará um aspecto que Verne já desenvolvia embrionariamente e lhe foi apresentado na forma do romance Voyage en l’air. Na trajetória apresentada nesta Tese, Jules Verne não é, portanto, “inventado” pelo seu editor, o que não diminui a importância desse encontro na sua carreira. No entanto, é somente a partir dele que Verne disporá das condições necessárias para se tornar o “escritor” que almeja ser. O esquema a seguir é uma síntese da cronologia dessa trajetória: 88 Cf. BOURDIEU, 1996, p. 81 e 292. 43 Vocação literária (1848) Arte burguesa Arte útil Pitre-Chevalier / Ch. Wallut Imprensa literária Dumas Filho / Jules Seveste Teatro (Novelas) (Dramas, comédias,Vaudevilles) Divertimento + Normas morais e sociais Ciência +Valores familiares Les Pailles rompues “systèmes nouvea------Textos-gênese----(1850) Navires de la marine mexicaine (1851) Perspectivas de inovação “systèmes nouveaux” (Carta 19/04/1854) Fracasso na opereta M. de Chimpanzé (1858) + Fracasso em Onze jours de siège (1861) = Abandono das artes dramáticas Salon de 1857 (Crit. de arte) + Estudo lit. sobre Edgar Poe (1862) = Reposicionamento em direção ao romance --- P.-J. Hetzel --1863 – 5 semaines en ballon 1864 – Engajamento no Magasin Voyages extraordinaires... A síntese acima permite-nos melhor visualizar duas evidências: a primeira trata do vai e vem de Jules Verne entre gêneros, dado evidenciado pelas datas, expondo e ilustrando as tentativas de Verne de entrada no campo literário; a segunda diz respeito à via da “arte útil” que, desde o “início” se apresentou como mais propícia aos investimentos de uma carreira de sucesso. Em 1862, portanto, a redação do ensaio crítico Edgard Poë et ses oeuvrespode ter motivado Jules Verne a percorrer a esfera literária como romancista, inovando com uma forma de combinação entre ciência e narrativa ficcional, vinculada a um imaginário geográfico moldado pela experiência da viagem e sua narrativa. Embora não tenha sido alocado no esquema acima por não ter sido publicado, o romance Paris au XXe siècle tem um lugar importante na trajetória de Jules Verne, na perspectiva desta Tese. Se Voyage en l’air é um romance com cujo gênero e temas o escritor já se apresenta “tal como será”, é o manuscrito que o precede – Paris au XXe siècle (1860-1861), que marcará o reposicionamento de Verne em direção ao romance. Em suma, queremos dizer que o novo investimento genérico, ocorrido em torno de 1860, 44 se impõe a Verne em função das coerções do campo; e a confirmação dos aportes estéticos – as narrativas de viagem, o insólito e o extraordinário – teria a marca da leitura de Poe, em torno de 1862. Não resta dúvida de que a iniciativa de Flaubert de escrever um “livro sobre nada”,89 que resulta em um primeiro momento em Madame Bovary, somado à publicidade de seu processo em 1857, são fatores que contribuem para uma revolução romanesca, pela proposta de combinação inovadora entre a dignidade da forma e a mediocridade do assunto, produtora de novos esquemas de pensamento sobre as possibilidades criativas do gênero. Queremos acreditar que existe uma relação entre esses acontecimentos que movimentaram o campo literário francês no final da década de 1850 e o investimento de Verne no romance. Não queremos afirmar que, por esse ângulo, Jules Verne teria entrado em contato com os preceitos da “Arte pela arte”. Ao contrário. As discussões em torno do gênero romanesco à época só reforçaram a tendência romântica “anacrônica”, por assim dizer, em Jules Verne quando escreve Paris au XXe siècle - romance panfletário no qual prevê a ausência de espaço para as artes, sobretudo para a literatura romântica, depois do pernicioso desenvolvimento tecnológico e científico do século XIX. A discussão em torno da obra de Flaubert, em 1857, como acontecimento importante no campo literário, indicaria para Verne a confirmação das mudanças que aconteciam e a perda de espaço do Romantismo, sobretudo se somado à morte de Alfred de Musset naquele mesmo ano, um dos expoentes da escola romântica e modelos para Verne. Paris au XXe siècle se configura na trajetória do escritor, portanto, como um romance de despedida da escola romântica, à qual nunca conseguiu se afiliar concretamente, e uma abertura ao “novo sistema” que se apresenta: Voyage en l’air, intitulado na sua publicação, em 1863, Cinq semaines en ballon. De fato, a inovação de Voyage en l’air ia modificar a posição literária de Verne na medida em que o ato de batismo desse novo sistema engajava duravelmente sua trajetória com sua admissão no círculo restrito de uma editora parisiense, alocando-o em uma região precisa do campo literário. Essa responsabilidade caberá às negociações e aos acordos entre o editor P.-J. Hetzel e escritor depois do sucesso de Cinq semaines en ballon. Se esse encontro com o editor tem o valor de um acontecimento biográfico “O que me parece belo, o que gostaria de fazer, é um livro sobre nada, um livro sem vínculo exterior, que se cumprisse (ou conservasse) por si mesmo, pela força internado seu estilo”. Gustave Flaubert em correspondência com Louise Colet. FLAUBERT, Gustave. Correspondance, T. II. Carta de 16 de janeiro de 1852. Paris: Louis Conrad Libraire-Editeur, 1926-1933, p. 342-348. 89 45 importante na trajetória de Verne, é primeiramente por que Hetzel soube persuadir o jovem romancista, que ambicionava ser reconhecido como escritor, usando da sua autoridade conferida pelo capital simbólico acumulado, quando o contrata para publicar romances visando um público ávido pela ciência vulgarizada através da ficção romanesca. Contratos e coerções editoriais constituem somente uma contrapartida desse posicionamento: é, ao mesmo tempo, garantia de segurança profissional para Jules Verne. A ambição romanesca do escritor permitirá assegurar a coerência do projeto ideológico de uma literatura para crianças e jovens, constituído pelo lançamento do Magasin d’Éducation et de Récréation, em 1864. 3.2 A revista-vitrinede Hetzel e a colaboração de Verne O Magasin d’Éducation et de Récréation não foi uma criação rapidamente concebida por Hetzel e seus colaboradores. O projeto de uma revista para o público jovem ganha forma e amadurece ideologicamente ao longo de quase vinte anos, a partir de 1843. De imediato, o título do periódico merece esclarecimento. Philippe Hamon explica que o termo “magasin” (e seu correlativo em inglês magazine) serve para designar o lugar onde se reúnem e se vendem produtos naturais ou manufaturados; é igualmente um tipo de publicação descritiva e enciclopédica com intenções claramente pedagógicas.90 Hetzel já havia usado o termo quando propôs seu Nouveau magasin des enfants, publicado em formato in-18, de 1843 a 1857, que contou com a colaboração de Charles Nodier, Tony Johannot, Alexandre Dumas e George Sand, e foi ilustrado por Bertall e Gavarni. Dois anos mais tarde, o editor pensa em fundar com Théophile Lavalée o Journal d’éducation et de récréation, mas o projeto não terá futuro. Somente depois do retorno de seu exílio em Bruxelas, em razão do golpe de estado de 1859,Hetzel publicará a revista-vitrine da sua editora. Sem adentrar na história da imprensa dos magazines, já amplamente desenvolvida,91 exploraremos nesse item do capítulo a concepção de literatura para 90 Cf. HAMON, Philippe. Du descriptif. Paris: Hachette, 1993, p. 207. Aludimos aqui aos trabalhos de LATZARUS, Marie-Thérèse. La littérature enfantine en France dans la seconde moitié du XIXe siècle. Paris : PUF, 1924; CHARTIER, Roger & MARTIN, Henri-Jean (dir.). L’Histoire de l’édition française. Le temps des éditeurs, t. III. Paris : Promodis, 1990, capítulos : “Le livre conquérant”, “L’élargissement du public”, “Des livres pour tous”, “Les nouveaux lecteurs” e “Le livre pour la jeunesse”; FOURMENT, Alain. Histoire de la presse des jeunes et des journaux d’enfants (1768-1988). Paris: Éole, 1987 e KALIFA, Dominique, RÉGNIER, Philippe, THÉRENTY, Marie-Ève & VAILLANT, 91 46 crianças e jovens segundo Hetzel, analisando prefácios e editoriais de obras que lançou antes do Magasin d’Éducation et de Récréation. Compararemos o periódico a outras revistas, notadamente La Semaine des enfants, seu concorrente direto, situando o todo no contexto dos magazines ilustrados para a juventude da época. Na história da edição, o desenvolvimento de uma nova economia do livro ao longo do século XIX está atrelado ao surgimento de um “tempo dos editores”, tornado possível graças a conjunturas que tiveram papel de catalisador em um meio profissional ainda em definição. Na Monarquia constitucional, momento em que a imprensa romântica passa pela crise de crescimento dos anos 1830,92 Hetzel mostra tato no que diz respeito às decisões que o conduzem a modificar as práticas da edição tradicional, lançando com Paulin et Curmer iniciativas-piloto para o desenvolvimento do livro ilustrado. Em 1837, eles publicam o primeiro impresso ilustrado por uma máquina de imprensa mecânica: o Livre des enfants (Fig. 1 e Fig. 2).93 Fig.1- frontispício - Le livre des enfants (1837) Fig. 2 - contracapa: “Aux enfants - Pour les récréeren exerçant leur imagination; pour former leur goût par des modèles de langage.” Alain (dir.). La civilisation du journal. Histoire culturelle et littéraire de la presse française au XIXe siècle.Paris: Nouveau monde, 2011, p. 97-140, p. 383-416, p. 565-582, p. 745-772 e p. 1467-1476. 92 Da crise no mundo da imprensa nos entornos dos anos 1830, Henri-Jean Martin estuda as consequências desastrosas de diversos casos de falência. Lista as causas conjunturais – superprodução dos anos 1820-1826 – e causas estruturais – organização do mundo editorial durante a Monarquia constitucional, para interpretar a crise que deveria levar a uma tomada de consciência do problema do mercado francês. Cf. “Le cercle de la librairie” In: CHARTIER & MARTIN, 1990, p. 185. 93 Coleção de contos de fadas, o Livre des enfants das Senhoras Élise Voïart e Amable Tastu foi lançado em formato in-16, ilustrado por Johannot, Séguin, Gigoux e Meissonier, em 1837. 47 Essa coleção é o primeiro trabalho de Hetzel para o público infantil e juvenil. No início do século XIX, não se recusa mais à infância e à juventude o direito de se ver atribuída uma literatura própria. Embora falte um estatuto autônomo dentro da nomenclatura dos gêneros literários, essa literatura é reconhecida no comércio da edição. De fato, entre 1820 e 1830, as condições do desenvolvimento do livro para criança - manuais escolares e abecedários, primeiramente - respondem aos requisitos da ideologia burguesa pós-revolucionária para uma alfabetização das massas através do ensino do “saber ler”.94 A publicação do Livre des enfants, naquele momento, sinaliza, portanto, o interesse de Hetzel por essa idade do ouro da “literatura infantil”. O editor pressentia as potencialidades do mercado com a expansão do público leitor, o que influirá nos seus futuros projetos, notadamente na sua associação a J.-B. Paulin.95 No entanto, não deixa de trabalhar em projetos paralelos que lhe dão renome junto à imprensa ilustrada romântica dos anos 1840. Para citar dois de seus grandes projetos, depois do Français peints par eux-mêmes, coleção de Léon Curmer publicada entre 1840 e 1842, Hetzel também lança sua coleção de fisiologias – trata-se das Scènes de la vie privée et publique des animaux96 e, ainda, em associação com Charles Furne, publica, entre 1842 e 1848, dezoito volumes de La Comédie Humaine a cinco francos.97 Cabe-nos aqui um breve parêntese no que diz respeito à sociedade entre Hetzel e Furne. Além de ilustrar o problema das relações entre editores independentes e o capital na Monarquia de Julho, marca, em alguma medida, o papel decisivo que ambos têm no projeto de Balzac. Ora, os editores investem em um conjunto de romances organizados de acordo com um plano preestabelecido, mas ainda em gestação. O todo, como sabemos, 94 As análises de Maurice Crubellier nos esclarecem sobre a passagem de uma alfabetização generalizada à leitura: há uma polissemia da expressão “savoir lire” que permite medir a distância entre o aprendizado escolar e a familiaridade com os livros, dividindo os públicos socialmente em função da sua “arte da leitura” de acordo com a expressão de Legouvé. Cf.: “L’élargissement du public” In: CHARTIER & MARTIN, 1990, p. 15-41. 95 Hetzel se associa ao cofundadordo jornal republicano Le National e a um outro livreiro, J.-J Dubochet, e instala uma editora no bairro de Saint-Germain, em Paris. Os três livreiros dispunham de independência nas suas atividades editoriais (serviço de produção com contabilidades distintas), sendo somente associados pela livraria (serviço de difusão e distribuição). A sociedade Hetzel-Paulin termina em 1843. Cf.: PARMÉNIE, A. & BONNIER DE LA CHAPELLE, C. Histoire d’un éditeur et de ses auteurs. P.-J Hetzel (Stahl). Paris: Albin Michel, 1985 (1953), p. 15. 96 Com o subtítulo de Études de moeurs contemporaines, Hetzel faz um quadro satírico da sociedade de sua época. Ilustrados com vinhetas de J.J. Grandville, a coleção publicada de 1840 a 1842, dava ao público leitor retratos maliciosos escritos por uma dezena de nomes conhecidos. Entre eles, destacam-se Balzac, Paul e Alfred de Musset, George Sand, Charles Nodier, Louis Viardot e Jules Janin. Uma edição completa e revisada, foi publicada pela editora Hetzel em 1867, em formato in-8. Para um exame da gênese dessa obra coletiva Cf. PARMÉNIE, A. & BONNIER DE LA CHAPELLE, C., 1985, p. 19. 97 Sobre a publicação da primeira edição de La Comédie Humaine remetemos a “Le monde des éditeurs” In: CHARTIER & MARTIN, 1990, p. 200. 48 já recebera o título de La Comédie Humaine. Isso nos leva a comparar o caso de Balzac com aquele de Verne no que tange ao papel de Hetzel na definição do título da obra verniana (Voyages extraordinaires), descrito no “Avertissement de l’éditeur” do Magasin d’Éducation et de Récréation (ver 6.2.3), por ocasião da publicação em fascículo do segundo romance de Jules Verne – Voyages et aventures du capitaine Hatteras (1865). Definir o nome do conjunto de romances antes que ele exista é não só a confirmação do acordo feito, mas também a garantia de que os romances sejam escritos dentro dos moldes que esses paratextos ditam, obedecendo ao gênero, aos temas e visando um potencial público leitor. Além disso, a troca no eixo paradigmático do termo “Histoires” por “Voyages” valida a cena98 remetendo o leitor francês do século XIX à obra de Edgar Allan Poe. A dissolução da sociedade com Charles Furne quase leva Hetzel à falência.Ele aproveitará a Revolução de Fevereiro para manifestar seus ideais republicanos, militando em favor da República de 1848. Figura emblemática do espírito editorial empreendedor da Monarquia de Julho, Hetzel adquire, no mercado do livro ilustrado, os capitais necessáriosque o favorecerão diante das exigências capitalistas da edição moderna, na segunda metade do século. Sem a contribuição de um capital social, por exemplo, nenhuma editora independente resistiria ao processo de transformação e de reunião das grandes editoras em sociedades, característica da indústria do livro no Segundo Império. No entanto, na dialética da arte e do dinheiro no interior do campo literário, editores não podiam mais sustentar a imagem de líderes contando somente com suas relações sociais para realizar boas sociedades em caso de riscos comerciais. Como sublinha Jean-Yves Mollier, com a complexificação das lógicas industriais, as táticas dos grandes nomes da extinta imprensa romântica cedem às exigências de pensamentos estratégicos que forçam os editores a refletir sobre as chances ideais de investimento no campo, extraindo suas linhas principais de ação de uma política de implantação do mercado dos bens simbólicos.99 Essa condição da edição moderna se impôs a Hetzel na medida em que, com o lançamento do Livre des enfants, o editor desenvolverá disposições para o domínio De acordo com Dominique Maingueneau, a cena validada é uma cena “instalada na memória coletiva” como antimodelo ou modelo valorizado. O título dado ao conjunto de romances de Verne o vincula à obra de Poe e constituiria uma apropriação de um modelo de sucesso, portanto, de uma cena validada. MAINGUENEAU, 2008c, p. 80. 99 Cf. MOLLIER, Jean-Yves. “Posface”. In: CHARTIER & MARTIN, 1990, p. 569-593. 98 49 editorial da literatura para crianças e jovens, levando, a partir de 1842, a se posicionar contra uma determinada concepção de livros que “ensinam divertindo”, dentro do setor editorial especializado nessas publicações. Esse posicionamento é notado através da análise paratextualque se pode realizar em diversos prefácios de obras que Hetzel resgata de contistas e fabulistas que lhe permitiram assumir um papel de mediador entre autores e leitores, usando o filtro crítico da sua pena de escritor: em 1842-1843, é publicada uma série de livros moralistas com o título Voyage où il vous plaira, assinada com pseudônimo P.-J. Stahl. Será com esse pseudônimo que o autor-editor aproveita a edição de J. J. Dubochet das Fables de J.J. Claris de Florian (ou Les Fables de Florian – Fig. 3 e Fig. 4) para inserir uma “Notice sur la vie et les ouvrages de Florian”, na qual faz um retrato resumido do fabulista do século XVIII e reflexões sobre o que é o “bom livro”. Fig. 3 – Capa- Fables de Florian (1842) Fig. 4 – Frontispício Na primeira intervenção crítica no âmbito da literatura para crianças e jovens, quando escreve o retrato literário de Florian, Hetzel traz argumentos sobre o problema da diferença entre o livro para crianças e o livro para adultos. A reflexão que faz diz respeito às condições de criação de obras literárias iguais para todas as idades. Hetzel o afirma pelo conteúdo da obra: 50 As Fábulas de Florian são um desses livros muito raros em que o pensamento é tão casto e a forma é tão cuidada que parecem ter sido escritos quase unicamente para os jovens leitores. E ele não o é. Entre diversos outros preconceitos há, na França, um preconceito fatal contra a juventude. Esse preconceito consiste em acreditar que, para ser conveniente às crianças, um livro deve ser feito em condições tais que a idade madura não possa tirar proveito.100 Cabe-nos abrir um breve parêntese sobre a ambiguidade que se instala com essa afirmação. Ao analisar esse prefácio e outras revistas que pesquisamos, inclusive o Magasin d’Éducation et de Récréation, o discurso de apresentação -, seja um prefácio, um editorial ou até mesmo um cartaz publicitário, é frequentemente ambíguo ao informar tratar-se de um empreendimento “para todos” ou “para que os pais leiam e as crianças aproveitem”, por exemplo. No entanto, é bastante clara a tendência dessas revistas em lançar uma literatura para crianças e jovens, ou seja, afirma-se que é “para todos”, quando o conteúdo é estritamente para o público infantil ou juvenil. Nada impede que um leitor adulto leia tal impresso. Inclusive, essa maneira de enunciar parece convidá-los para ler para suas crianças, como se a leitura devesse ser uma atividade encorajada a ser realizada junto à família. Ora, essas informações paratextuais (editorial, prefácio) são destinadas aos pais. São eles quem compram um exemplar ou assinam uma revista. Além disso, ao observar outras revistas e jornais com os quais nos deparamos ao longo da pesquisa, que são de fato para público “adulto”, como Le Journal des débats, Le Temps, L’Artiste ou Le Tour du monde, não existe o cuidado de dizer que se trata de um impresso “para todos”. Para as revistas que analisamos, fazer esse tipo de adendo, marca que o impresso é destinado a jovens ou crianças. Talvez essa seja uma estratégia hetzeliana para angariar mais leitores. Essa mesma enunciação será explorada quando comentarmos o projeto do Magasin d’Éducation et de Récréation, em 1864. Prevendo uma mudança no ramo da literatura para crianças no início da segunda metade do século, Hetzel contribui para a discussão sobre o lugar e o papel dos “bons livros” no mercado. Em função do desenvolvimento da arte técnica do livro, muitas obras se transformam em simples mercadoria, o que é criticado por Hetzel nesse momento. Além disso, o conformismo do conteúdo recreativo atrai julgamentos negativos de Hetzel “Les Fables de Florian sont un de ces livres très rares où la pensée est si chaste et la forme si attentive, qu’ils semblent avoir été écrits presque uniquement pour des jeunes lecteurs. Et pourtant il n’en est rien. Parmi beaucoup d’autres préjugés, il y a en France un préjugé à la jeunesse. Ce préjugé consiste à croire que pour convenir aux enfants, un livre doit être fait dans des conditions telles que l’âge mûr n’y puisse trouver son compte.” STAHL, P.-J. “Notice sur la vie et les ouvrages de Florian”. In: Fables de Florian. Illustrées par J. J. Grandville. Paris: J.-J. Dubochet et Cie., 1842, p. VI. 100 51 que se questiona sobre o valor simbólico do livro infantil e juvenil. Em La Comédie enfantine (Fig. 5), livro infantil que Hetzel irá prefaciar sob o pseudônimo de P.-J. Stahl, lança: Essas penas mercenárias que só se preocupam em escrever às dúzias esses livros sem cheiro nem sabor, esses livros rasos e sem brilho, livros bobos aos quais parece reservado o privilégio indevido de falar em primeiro lugar ao que há de mais fino, de mais sutil e de mais delicado no mundo, à imaginação e ao coração das crianças.101 Fig. 5 - Frontispício - La Comédie enfantine (1861) Ainda na “Notice sur Florian”, Stahl propõe, portanto, uma primeira discussão que constitui uma apresentação das condições de base para uma literatura infantil de excelência. “O que são bons livros?”: o prefaciador traz, nos seus argumentos, uma questão retórica que visa apresentar o modelo das fábulas de Claris de Florian para justificar a importância da literatura que será apresentada: [...] Poderíamos escrever um livro que as mentes mais elevadas pudessem olhar como uma obra-prima, e que, no entanto, apenas em virtude de sua pureza, merecesse ser colocada sobretudo nas mãos da juventude. O autor de Paulo e Virgínia já o provou. Florian, com suas fábulas, e em uma lógica diferente, provou por “Ces plumes mercénaires qui font métier d’écrire à la douzaine ces livres sans goût ni parfum, ces livres plats et sans relief, ces livres bêtes auxquels semble réservé le privilège immérité de parler les premiers à ce qu’il y a de plus fin, de plus subtil et de plus délicat au monde, à l’imagination et au coeur des enfants.” STAHL, P.-J. La comédie enfantine. Préface. Paris: Michel Lévy frères, 1861, p. 6. 101 52 sua vez que o que convém aos adultos podia convir também aos mais jovens.102 Para Stahl, as obras literárias que se empenham em servir aos adultos e às crianças são modelos de resposta à questão retórica que escreve no prefácio das fábulas de Florian: O que é necessário para que um livro convenha à juventude é, primeiramente, que ele seja simples; [...] em seguida, que não se faça confusão entre o bem e o mal, e que um seja separado do outro bem escrupulosamente para que um mau espírito não encontre neles sua justificativa. Ora, para fazer tal livro, é necessário ser ao mesmo tempo um grande cérebro e, sobretudo, um honnête homme. E é precisamente porque a reunião dessas duas condições é essencial, que esses livros que podem instruir todas as idades e agradar a todos, sem ferir nenhuma, que os bons livros enfim, como dissemos, são extremamente raros.103 Através desse julgamento, Stahl revela os valores culturais que vislumbra para uma nova literatura para crianças. Para se conceberem “bons livros” requerem-se dos escritores talentos de moralista, caracterizados ao mesmo tempo pela sagacidade de um grande cérebro e o brio do “honnête homme”.104 Em uma visão ambiciosa, lamentando a carência desses “bons livros” que correspondem ao credo “instruir e agradar”, Stahl julga que uma literatura infantil de qualidade tem raras ocorrências na história literária: É preciso admitir, nossa literatura francesa é, mais do que nenhuma outra, pobre desses livros que poderíamos chamar de livros de família, nos quais o que é correto e honesto nunca é sacrificado ao espírito e ao gosto de agradar.105 “On pourrait écrire un livre que les plus forts esprits puissent regarder comme un chef-d’oeuvre, et qui pourtant, par la seule vertu de sa pureté, pût mériter d’être mis surtout entre les mains de la jeunesse. L’auteur de Paul et Virginie l’a prouvé. Florian, par ses fables et dans un ordre différent, a prouvé à son tour que ce qui convenait à la maturité pouvait convenir aussi au premier âge.” STAHL, P.-J, 1842, p. VI. 103 “Ce qui est nécessaire pour qu’un livre convienne à la jeunesse, c’est d’abord qu’il soit simple [...] c’est ensuite que dans ce livre il n’y a point de confusion entre le bien et le mal, et que l’un y soit séparé de l’autre assez scrupuleusement pour qu’un méchant esprit n’y puisse trouver sa justification. Or, pour faire un tel livre, il faut être à la fois un grand esprit et surtout un très honnête homme. Et c’est précisément parce que la réunion de ces deux conditions est essentielle, que ces livres qui peuvent instruire tous les âges et plaire à tous les âges sans en blesser aucun, que les bons livres enfin, sont, comme nous l’avons dit, extrêmement rares.” STAHL, P.-J, 1842, p. VI. 104 Figura que surge do crescimento da burguesia no século XVII francês, o honnête homme guarda em si um modelo de humanidade generalista: supõe uma representação unificada do saber. Sintetizado, frequentemente, pela máxima de Montaigne: “Uma cabeça bem-feita vale mais do que uma cabeça cheia”, o honnête homme é definido, ainda, por ser dotado de “bom gosto” e ser conhecedor e respeitador das regras de conveniência social. 105 “Il faut avouer, notre littérature française est, plus qu’aucune autre, pauvre de ces livres qu’on pourrait appeler des livres de famille, où ce qui est droit et honnête n’est jamais sacrifié à l’esprit et au désir de plaire.” STAHL, P.-J, 1842, p. VI. 102 53 Aqui, se o prefaciador P.-J. Stahl mostra dificuldades em enumerar trabalhos que correspondam a seus critérios, o editor P.-J. Hetzel constata, nas Fables de Florian, o indício de que a literatura francesa deve reunir escritores de talentoem torno da elaboração desses raros “livros de família”. Nessa perspectiva, a “Notice de Florian” constitui as premissas de objetivos editoriais ideais para se projetar no futuro uma literatura para crianças e jovens de qualidade. Somam-se a isso as intenções de produzir uma literatura para jovens baseada na utilidade e no divertimento. Stahl retoma essa ideia no prólogo que escreve das Nouvelles et seules véritables aventures de Tom Pouce (1843 – Fig. 6), livro infantil publicado em sua editora: “Minhas caras crianças, vocês não aprenderão neste livrinho tudo o que terão que saber um dia, mas encontrarão aqui algumas dessas lições de que, é preciso dizer, às vezes vocês necessitam.”106 Fig. 6 - Frontispício -Tom Pouce (1843) Com esses argumentos, a crítica sobre os “bons livros” indica o posicionamento de Hetzel no campo literário, vislumbrando o desenvolvimento de atividades editoriais inovadoras, sobretudo no gênero da literatura para crianças, o que desembocará na criação do Magasin d’Éducation et de Récréation. “Vous n’apprendrez pas dans ce petit livre tout ce que vous aurez à savoir un jour; mais vous y rencontrerez, à l’occasion, quelques-unes de ces leçons dont, entre nous soit dit, vous avez bien besoin quelques-fois mes chers petits.” STAHL, P.-J. Nouvelles et seules véritables aventures de Tom Pouce. Paris: Hetzel, 1843, p. 13. 106 54 Várias razões motivaram P.-J. Hetzel a criar o Magasin d’Éducation et de Récréation, projeto destinado a transmitir suas concepções literárias no que diz respeito aos “bons livros”. Não há dúvidas de que Hetzel tenha sido marcado pelas consequências de sua participação ativa como republicano, na França da Segunda República, como chefe de gabinete de Alphonse de Lamartine, então Ministro das Relações exteriores. De 1852 - depois do Golpe de Estado que institui o Segundo Impérioe colocou no trono Luis Napoleão Bonaparte - a 1860, Hetzel vive seu autoexílioem Bruxelas.107 O contato com Victor Hugo reforçou a ideologia republicana, cujos primeiros sinais apareceram na sua trajetória através da relação com os fundadores e colaboradores do jornal Le National.108 Engajado politicamente contra o regime imperial de Napoleão III, Hetzel publica clandestinamente Les Châtiments, de Victor Hugo, sem, no entanto, tomar qualquer atitude radical em favor da República que pudesse pôr em risco suas atividades editoriais no campo literário do Segundo Império. Mesmo que a concepção institucional da democracia oponha Hetzel ao regime autorirário de “Napoleão – o pequeno”, o editor não recusa sua volta para Paris nos primeiros sinais de uma liberalização do poder imperial. Hetzel vê na concessão da anistia em 1859 uma via de reconciliação que, depois de quase dez anos de afastamento do país, lhe permitirá participar do movimento de modernização da economia do livro, engendrado pelo clima de prosperidade do Segundo Império. Em 1860, o editor se engaja novamente na edição parisiense e conta com o controle jurídico da administração imperial, que lhe concede a permissão para o exercício de seu brevê de livreiro. Observando o advento do capitalismo industrial durante o Segundo Império, Hetzel estava atento à popularidade das ciências, ao desenvolvimento do progresso científico e suas aplicações industriais e ao movimento que essas mudanças traziam para a sociedade. Para Hetzel, a curiosidade do público voltada para a busca de conhecimento nessas áreas motiva a pujança de um projeto editoriallegítimopara a literatura para crianças e jovens. Isso o autoriza a conceber a promoção dos “bons livros” através da combinação do conto moderno, já testado no Nouveau magasin des enfants, com uma pedagogia do conhecimento científico. Nesse aspecto, a associação entre P.-J. Hetzel e 107 Sobre o período de exílio de Pierre-Jules Hetzel, indicamos a segunda parte da biografia escrita por seus descendentes – “L’exil” In: PARMÉNIE, A. & BONNIER DE LA CHAPELLE, C., 1985, p. 161-325. 108 Joëlle Dusseau, em um artigo sobre as opiniões políticas de Jules Verne, faz um panorama sobre o republicanismo de Hetzel e o papel do jornal na sua concepção liberal da República. Cf. “Les idées politiques de Hetzel et leur influence sur Jules Verne” In: ROBIN, Christian (dir.). P.-J. Hetzel; un éditeur et son siècle. Saint-Sébastien: ACL Edition/Société Crocus, 1988, p. 33-44. 55 Michel Lévy para a publicação da coleção intitulada Les bons romans representa uma etapa essencial na elaboração da estratégia de Hetzel que desembocará na concepção da política editorial da revista-vitrine da sua editora: o Magasin d’Éducation et de Récréation. Diante do desenvolvimento do gênero romanesco no campo literáriofrancês e no Ocidente, um mesmo objetivo reúne Hetzel e Lévy em um projeto para realizar a publicação de romances em um contexto sociocultural marcado pelo acesso de todas as categorias de público à literatura. Da associação Hetzel-Lévy, a partir de 1860, nasce Les Bons Romans.109 Embora Les Bons Romans não seja um jornal destinado ao público juvenil, referimo-nos aqui à expansão do público leitor jovem. Desde 1833, esse setor cresce graças à Lei Guizot. Enquanto Ministro da Instrução Pública, François Guizot institui que para cada Comuna francesa de quinhentos habitantes deveria haver ao menos uma escola primária para meninos. A resolução de Guizot teria sido o pontapé inicial para se voltar a atenção para alfabetização das massas que será desenvolvida ao longo do século XIX na França e, consequentemente, motor para formação de leitores. Fig. 7 – Bandeira da capa - Les Bons romans (1860) Publicado semanalmente, esse jornal de oito páginas, impresso em três colunas, ilustrado com duas gravuras - uma na primeira e outra na quinta página-, encadernado semestralmente no formato in-4º, era administrado por Émile Aucante, colaborador de Michel Lévy à época. Trabalhando desde 1º de fevereiro de 1860 para Michel Lévy Frères, Émile Aucante nãoeracompletamente desconhecido para Hetzel.110 Estabelecido 109 Para mais informações sobre a associação de Hetzel com Michel Lévy ver MOLLIER, Jean-Yves. Michel et Calmann Lévy ou la naissance de l'édition moderne - 1836-1891. Paris: Calmann-Lévy, 1984. 110 Como ex-secretário de George Sand, Aucante realizou papel de intermediário entre o editor e Sand quando da disputa da venda de sua propriedade literária, em 1855. Cf. PARMÉNIE, A. & BONNIER DE LA CHAPELLE, C., 1985, p. 242 e 344. 56 para um contrato de cinco anos, o jornal, lançado em 8 de maio de 1860, objetivava gerar uma coleção de obras dignas de serem lidas e perpetuadas. A sociedade aberta entre os dois previa que cada um investisse cinco mil francos e trouxesse seus autores para o projeto: Victor Hugo, para Hetzel enquanto Michel Lévy se incumbiria de Alexandre Dumas e George Sand, por exemplo. O seu “Aviso aos leitores” deixa claro seu suporte e o público a que visa: Nosso objetivo, publicando o jornal Les Bons Romans, não foi acrescentar mais um jornal aos inúmeros jornais, mas tornar acessíveis aos bolsos menos favorecidos, nessa forma popular, as obras mais bem-reputadas dos nossos grandes escritores contemporâneos, aquelas que tinham permanecido, até então, até mesmopor conta do preço, privilégio de uma certa classe de leitores.111 Com o jornal, Hetzel e Lévy visavam apostar na aliança entre a política do bom preço ea estratégia de expansão de um segmento do mercado dos bens simbólicos para além da classe leitora para a qual o privilégio social valia comoprivilégio cultural: o periódico tinha como alvo um público menos favorecido visto ser vendido a cinco centavos de franco cada número.112 A relação entre os editores não duraria pois, contrariamente a Michel Lévy, Hetzel desejava criar uma estratégia editorial que atribuísse uma marca à sua novíssima editora, situada no número18 da Rua Jacob, em Paris, posicionando-a no mercado dos bens simbólicos ao publicar impressos para leitura em família.113 Nesse sentido, o perfil de Les Bons Romans corresponderia, em parte, à concepção de Hetzel das práticas de leitura pela eloquência iconográfica do frontispício que ilustra o jornal. Na imagem (Fig. 7), pode-se “Notre but, en publiant le journal Les Bons Romans, n’a pas été d’ajouter un journal à des journaux déjà nombreux, mais de rendre accessibles aux plus petites bourses, sous cette forme populaire, les oeuvres les plus justement réputées de nos grands écrivains contemporains, celles qui étaient restées jusqu’alors, à raison de leur prix même, le privilège d’une certaine classe de lecteurs.” AUCANTE, Émile. Prospectus. Les Bons Romans. T. I, 8 mai-2 novembre 1860, quarta capa. 112 Segundo o artigo “De la valeur des choses dans le temps” de Jean Monange mantido no site http://www.histoire-genealogie.com/spip.php?article398&lang=fr 1 F, de 1860, equivaleria, hoje, a 2 €. Portanto, 0,05 F corresponderiam a 0,10 €. Para uma comparação mais crível, um dicionário de língua francesa autorizado pela Instrução Pública custava 8 Francos; um frasco de analgésico poderia ser comprado por 5 Francos e um avental de cozinha era vendido por 1 Franco, no Magasin Tapis Rouge, em Paris. Extraimos estas informações dos “Classificados” do Journal des débats, exemplar de 25 de janeiro de 1860. Disponível em: http://gallica.bnf.fr/ark:/12148/bpt6k4522306.item.r=journal+des+d%C3%A9bats JeanYves Mollier retoma a discussão sobre o valor do jornal em MOLLIER, Jean-Yves. Un éditeur emblématique du XIXe siècle. Revue Jules Verne, nº 37. Amiens: Editions du Centre International Jules Verne, 2013, p. 18. 113 A respeito da patente e da constituição da Société Hetzel et Cie. Cf. PETIT, Nicolas. Éditeur exemplaire, modèle de père, héros de roman: figures d’Hetzel. In: Bibliothèque de l'école des Chartes. T. 158, S. l., 2000, p. 197-221. Disponível em: http://www.persee.fr/web/revues/home/prescript/article/bec_03736237_2000_num_158_1_451022 Este artigo sintetiza sua Tese de doutorado: PETIT, Nicolas. Un éditeur au XIXe siècle. P.-J. Hetzel et les éditions Hetzel (1837-1914). Thèse de l’École de Chartres, 1980. 111 57 notar o círculo familiar em torno da figura moral do pai, fiador do valor instrutivo da literatura que se conjuga ao momento de diversão das crianças. A esse respeito, mesmo a noção de “bons romances” do título do jornal poderia ser comparada à concepção de Stahl, pseudônimo de P.-J Hetzel, de “bons livros” explorada na Notice sur Florian. No entanto, os títulos publicados pelo periódico nos quatro primeiros anos não revelam nenhuma atenção à literatura para jovens. Por conta da hegemonia da literatura romântica, o administrador de Les Bons Romans respeitará o contrato enunciativo do prospecto que citamos acima em que expressa a ideia de um jornal literário “para todos”, mas esse “todos” não parece incluir exatamente crianças e jovens. Assim, uma mudança na linha editorial de Les Bons Romans é vislumbrada por Hetzel no sentido de uma reorientação do seu perfil à maneira do público que o Magasin d’Éducation et de Récréation terá. Em 1863, uma discordância notada na confecção de um catálogo para Les Bons Romans faz P.-J. Hetzel quebrar o contrato com Michel Lévy. A desarmonia entre os projetos editoriais dos dois sóciosé revelada na carta de Émile Aucante de 6 de junho de 1863. A carta, endereçada aos cuidados de Michel Lévy Frères, reproduz literalmente uma carta de Hetzel que propõe ao sócio a lista de possíveis títulos a serem lançados em folhetim. O que segue é a citação integral do texto que Aucante retoma da correspondência de Hetzel: Senhores Michel Lévy Frères, La femme en blanc sendo inteiramente composta, pedi a M. Hetzel que me fornecesse uma outra obra para colocar em primeiro lugar em Les Bons Romans. Eis aqui uma cópia textual de sua resposta: Eu acho que o que teria de mais simples a fazer para o romance do primeiro lugar seria aproveitar um corte em Les Puritains para subir com Les Puritains para o primeiro lugar. Estou certo de que se esse romance tivesse ficado em primeiro lugar, ele teria tido sucesso. Para o romance em segundo lugar, tenho: 1º Schniderhan (sic) ou les bandits du Rhin 2º Voyages et aventures du baron Wogan (que seriam muito bons para nosso público, mesmo em 1º mas isso só dá um volume) - La cause du beau Guillaume de Duranty - La mionnette de Muller - Le fou Yegof – Daniel Rock – Le joueur de Clarinette, de Chartian - La sorcière de l’ambre (muito bom para nós) - Gens de bohème - Une cause secrète - Récits d’une paysanne - Histoire d’une bouchée de pain - Lady Isabelle 2 vol. - Sans nom 2 vol. - Les chauffeurs indiens, de Bréhat 58 - Le casse-noisette, de Dumas (se esses senhores não quiseremDumas) - La princesse Sophie – Adrien Robert – bom para nós - Cinq semaines en ballon - Un drame en province – Claude Vignon - Quelques contes du petit château, de Macé - Les aventures d’un petit parisien, de Bréhat. Como não cabe a mim adotar, sem seu consentimento, a combinação proposta pelo Sr. Hetzel; como eu não saberia escolher entre as obras que ele coloca à disposição do jornal, eu lhes agradeceria, Senhores, se me indicassem sua apreciação pessoal. Senhores, recebam os meus mais devotados sentimentos. Emile Aucante114 Já publicadas ou não à época, as obras propostas fazem parte do acervo da livraria de Hetzel. Cabe-nos questionar sobre o que leva o editor a revelar as tramas que constituirão trunfos para futuras lutas no campo, já que o catálogo proposto na carta prova a intenção do editor não só em publicar o que foi elencado, mas direcionar LesBons Romans para a literatura juvenil, contribuindo com alguns romances de temas históricocientíficos em uma visada didática, base do futuro Magasin d’Éducation et de Récréation. Dessa lista, no qual vemos figurar o romance verniano Cinq semaines en ballon, Hetzel faz julgamentos de valor que guiariam sua escolha em função do critério de recepção: “Muito bom para nosso público”. Três referências recebem essa crítica: La princesse Sophie, La sorcière à l’ambre e Voyages et aventures du baron de Wogan.115 Por que 114 Agradecemos a Jean-Yves Mollier por ter cedido uma cópia da carta da coleção particular de Cécile Alapetite-Hofer, herdeira dos documentos de Émile Aucante. O documento faz parte, hoje, dos arquivos Calmann-Lévy. Segue citação do original: “Messieurs Michel Lévy Frères, La femme en blanc étant entièrement composée, j’ai prié M. Hetzel de me fournir un autre ouvrage pour mettre en premier dans Les Bons Romans.Voici une copie textuelle de sa réponse:Je crois que ce qu’il y aurait de plus simple pour le roman en 1e, ce serait profiter d’une coupure dans les Puritains pour faire remonter les Puritains en premier. Je suis certain que si ce roman eût été en premier, il eût réussi. Comme roman en second j’ai : 1º Schniderhan (sic) ou les bandits du Rhin ; 2º Voyages et aventures du baron Wogan (qui seraient très bonnes pour notre public, même en 1e mais cela ne fait qu’un volume) ; - La cause du beau Guillaume de Duranty ; - La mionnette de Muller ;- Le fou Yegof – Daniel Rock – Le joueur de Clarinette, de Chartian ; - La sorcière de l’ambre (très bonne pour nous) ; - Gens de bohème ; - Une cause secrète ; - Récits d’une paysanne ;- Histoire d’une bouchée de pain ; - Lady Isabelle 2 vol. ;- Sans nom 2 vol. ; - Les chauffeurs indiens, de Bréhat ; - Le casse-noisette, de Dumas (si ces messieurs ne veulent pas donner de Dumas) ; La princesse Sophie – Adrien Robert – bon pour nous ; - Cinq semaines en ballon ; - Un drame en province – Claude Vignon ; - Quelques contes du petit château, de Macé ; - Les aventures d’un petit parisien, de Bréhat. Comme il ne m’appartient pas d’adopter, sans votre assentiment, la combinaison proposée par M. Hetzel; comme je ne saurais davantage prendre sur moi de choisir parmi les ouvrages qu’il met à la disposition du journal, je vous serais obligé, Messieurs, de vouloir bien me faire connaître votre appréciation personnelle. Recevez, je vous prie, messieurs, l’assurance de mes sentiments les plus dévoués.” 115 Segundo Philippe Scheinhardt, em artigo sobre a colaboração Hetzel-Lévy, a primeira trama versa sobre os trágicos amores de uma princesa; o segundo título é umafarsa literária ambientada no contexto da Guerra dos trinta anos; já a terceiro romance trata de tema que será diversas vezes explorado por Jules Verne: narrativa de viagem etnográfica baseada em relato real previamente publicado na revista Le Tour du monde, 59 esses textos têm a preferência de Hetzel para as próximas publicações do jornal? E por que Michel Lévy não cede aos pedidos de Hetzel, já que a pesquisa revela que nos últimos meses de 1863 só foram publicados Les chauffeurs indiens e Schinderhannes ou les bandits du Rhin?116 Uma conjectura que se pode fazer é que os dois sócios não concordavam mais no que diz respeito à linha editorial dada a Les Bons Romans. P.-J. Hetzel decide, portanto, quebrar o contrato com Michel Lévy, assinando em 26 de setembro de 1863 a cessão da sua parte da sociedade por vinte mil francos. Assim, Hetzel, dispõe do capital necessário para a criação do Magasin d’Éducation et de Récréation (Fig. 8) no ano seguinte, em 1864. Fig. 8 - Capa - Magasin d’Éducation et de Récréation (1864) Segundo Jean-Yves Mollier, é legítimo supor que a degradação dessa relação profissional e da ruptura entre os sócios tenha sido decisiva para que Hetzel lançasse uma nova revista literária. Em 20 de março de 1864, Hetzel, unido a Jean Macé (1815-1894), publica o primeiro número do Magasin d’Éducation et de Récréation, oferecendo às de Édouard Charton. Cf. SCHEINHARDT, Philippe. “Une collaboration insolite? J. Hetzel et Michel Lévy”. In : COMPÈRE, Daniel & SOUBRET, Robert (dir). Rocambole – Hetzel éditeur populaire, nº 6869, s.l: Concours du Centre International du Livre, 2014, p. 66. 116 Em Les Bons Romans, nº 343 ao nº 357 de 21 de julho a 8 de setembro de 1863; e nº 358 ao nº 365 de 11 de setembro a 6 de outubro de 1863, respectivamente. 60 famílias uma revista cujas concepções ideológicas amadureceram ao longo de anos de reflexão.117 Frequentemente, a crítica verniana apresenta o encontro entre o editor e Macé quando este publica L’histoire d’une bouchée de pain, que gira em torno das suas atividades de vulgarização científica, pela editora de Hetzel, em julho de 1861. Fig. 9 - Frontispício - L’Histoire d’une bouchée de pain (1861) Professor de um pensionato feminino em Beblenheim, comuna da região da Alsácia, à época do encontro com o editor, Jean Macé tenta instaurar uma biblioteca comunal na região, enquanto Hetzel milita pela instrução pública. Suas características de vulgarizador científico somadas à sua militância republicana em matéria de política socioeducativa formaram os trunfos para que Hetzel concebesse com Macé o Magasin d’Éducation et de Récréation, revista através da qual ele poderá enfim compor e transmitir sua recente iniciativa no setor editorial, no caso, a constituição de uma 117 O franco-maçon Jean Macé, pedagogo, professor, jornalista e escritor, era um antigo colega de escola de P.-J. Hetzel. Fundador da “Liga do ensino” em 1866, Macé se posiciona ao longo de sua trajetória nos campos literário e jornalístico como defensor da laicidade e da instituição de uma escola republicana. DESHOGUES, Yannick. “Hetzel et Macé: la foi dans le livre”. In : COMPÈRE, Daniel & SOUBRET, Robert (dir). Rocambole – Hetzel éditeur populaire, nº 68-69, s.l: Concours du Centre National du Livre, 2014, p. 73. 61 Bibliothèque illustrée des familles que se tornará, na verdade, a Bibliothèque d’Éducation et de Récréation, área do Magasind’Éducation et de Récréation na qualalocará os romances de Jules Verne. A revista-vitrine da editora de Hetzel já foi amplamente estudada por diversos pesquisadores. Recentemente, Philippe Scheinhardt publicou um artigo em que trata doeditorial do Magasin d’Éducation et de Récréation na sua gênese, recorrendo aos manuscritos dos arquivos Hetzel da Biblioteca Nacional da França.118 Nesse artigo, Scheinhardt declara que os suportes necessários para a investigação que permitiriam esclarecer a duração do processo de produção editorial da revista, cuja primeira ideia teria sido expressa em 1858, não estão disponíveis ou não existem. No entanto, a volumosa correspondência entre Hetzel e Jean Macé pode trazer um ponto de apoio à questão graças às discussões sobre a publicação de L’histoire d’une bouchée de pain.119 Em duas das cartas, Jean Macé defende que o “Prospectus” para o Magasind’Éducation et de Récréation – brochura impressa que circulou antes da publicação do primeiro número do periódico – deveria ser publicado ao fim do seu romanceArithmétique du Grand Papa. Por duas vezes, Jean Macé insiste que seu romance deveria vir anexado ao Prospectus: Atribuo agora importância ainda maior à Aritmética pois a vejo como uma introdução imediata da nossa revista para o público. Seria necessário apressá-la para sair um pouco antes da Páscoa, lançá-la rapidamente sem levar em conta os custos com anúncios, e lançar um mês ou seis semanas depois [o Magasin] no auge do sucesso do livro. Não é possível que ele fracasse se você conseguir que falem dele. Coloque o prospecto do Magasin no final da Aritmética e seus amigos poderão matar dois coelhos com um artigo só.120 SCHEINHARDT, Philippe. “Genèse et structure du Magasin d’éducation et de récréation.” In : COMPÈRE, Daniel & SOUBRET, Robert (dir). Rocambole – Hetzel éditeur populaire, nº 68-69, s.l: Concours du Centre International du Livre, 2014, p. 81-99. O artigo é resultado do remanejamento de um capítulo da sua Tese de doutorado. Orientada por Philippe Hamon e defendida em 2005 com o título Jules Verne: génétique et poïetique (1867-1877). A Tese inaugurou uma série de estudos dos manuscritos dos romances de Jules Verne. 119 BNF, Dépt. de manuscrits, Archives Hetzel – dossier “Jean Macé”. Referências NAF 16073 para a correspondência e NAF 16074 para documentos diversos. A troca de correspondências informa ainda sobre sociedade entre Macé e Hetzel a partir de 1862, quando se iniciam as relações contratuais para o lançamento do Magasin d’Éducation et de Récréation. 120 “J’attache d’autant plus d’importance maintenant à cette Arithmétique que je la regarde comme une introduction immédiate à notre magasin vis-à-vis du public. Il faudrait la pousser lestement pour arriver un peu avant Pâques, la lancer rondement sans regarder les frais d’annonces, et paraître un mois ou six semaines après dans tout le fort du succès du livre. Il n’est pas possible qu’il rate si tu viens à bout d’en faire parler. Mets le prospectus du Magasin en queue de l’Arithmétique et tes amis pourront faire de l’article deux coups” (5 de fevereiro de 1863 – BNF, Dépt. de manuscrits, NAF 16073 fº 118). 118 62 De qualquer modo, considero nossa Aritmética como um prospecto do Magasin e insistirei muito para que ela seja publicada primeiro, com pelo menos um mês de antecedência.121 Fig. 10 – “Prospectus” do Magasin (1863) Em função de atrasos no lançamento da revista, o editor não segue a sugestão de Jean Macé, como veremos a seguir no texto do prospecto lançado a que tivemos acesso no seu manuscrito (ver 6.2.4).122 O texto do prospecto será ainda reproduzido em um prefácio publicado com o título “À nos lecteurs” (ver 6.2.1) no volume do primeiro semestre de 1864-1865.123 As precisões sobre o processo genético desse prospecto e do prefácio da revista já foram longamente analisadas por Philippe Scheinhardt no seu trabalho com manuscritos vernianos, em 2005. Embora tenhamos tido acesso ao material, não retornaremos aqui aos rascunhos que deram origem a esses documentos. Debruçando-nos no que de fato foi publicado, analisaremos o conteúdo desse discurso de reclame. O início e o fim do texto “De toute façon je considère notre Arithmétique comme un prospectus du Magasin, et je tiendrais beaucoup à ce qu’elle parut la première, avec au moins un mois d’avance” (22 de março de 1863 – BNF, Dépt. de manuscrits, NAF 16073 fº 134). 122 Magasin d’éducation et de récréation – Encyclopédie de l’enfance et de la jeunesse. BNF, Dépt. de manuscrits, archives Hetzel, dossier “Maison d’édition”, NAF 17062 fº165-168. 123 “À nos lecteurs” In : Magasin d’éducation et de récréation, I, 1er semestre, 1864-1865, p. 3-4. 121 63 são eloquentes no que diz respeito à envergadura do projeto. De imediato o discurso estabelece um contrato enunciativo com base em um ethos pedagógico: Ao iniciar a publicação desta Revista de Educação e de Recreação, temos a consciência de empreender uma obra difícil, e se não recuamos diante da dificuldade da empresa é porque temos ao mesmo tempo a consciência da sua grande utilidade. Aqui, evocando características inerentes ao projeto, o editor declara que o magazine irá perseverar na ideia da utilidade de sua criação. Perfazendo o discurso publicitário, o parágrafo final de “À nos lecteurs” implica os assinantes em uma ação comum. Com o expediente próprio de um correio de leitores, a ideia de solidariedade intelectual é lançada pelos editores quando convocam os leitores a ajudarem os autores, participando da sua tarefa didática para com a infância, ponto central da publicação: Pedimos a todos os assinantes que se considerem nossos colaboradores. Quando ocorrer-lhes uma ideia que acreditarão útil nos comunicar, nós acolheremos com gratidão. Uma mão lava a outra. Colocando nossa boa-vontade a seu serviço, acreditamos poder invocar o seu. É uma obra de família que abordamos. É somente com a ajuda das famílias que ela pode obter sucesso. Certamente, a concepção de uma literatura para crianças não é nova no século XIX. Inúmeras publicações para esse público podem ser recenseadas entre os anos 18301860, nomeadamente Le Journal des enfants (1832) e La Semaine des enfants (1857) do qual falaremos mais adiante. Em geral, essas revistas trazem a escola para o seio familiar com histórias moralistas que visam formar meninos e meninas burgueses nos valores de sua classe social, ou seja, transmitir e perpetuar um habitus dominante. Se, em alguma medida, ele não inova nesse aspecto no mundo da imprensa infantil, o projeto do Magasin d’Éducation et de Récréation reavalia os princípios da união entre a educação e a recreação. O argumento desenvolvido na passagem do Prospecto citada abaixo pressupõe uma crítica dos procedimentos comerciais usados nessas revistas destinadas aos jovens com o “para nós” da instância de enunciação que marca a diferença com as outras revistas, militando em favor da reabilitação de um “ensino de família no verdadeiro sentido da palavra”: Trata-se, para nós, de constituir um ensino de família no verdadeiro sentido da palavra, um ensino sério e atraente ao mesmo tempo, que agrade aos pais e seja proveitoso para as crianças. Educação – Recreação são, em nossa opinião, dois termos convergentes. O instrutivo deve se apresentar de um jeito que provoque o interesse: sem isso ele repele e cansa; a diversão deve conter uma realidade moral, ou seja, útil: sem isso ela se torna fútil e esvazia as cabeças ao invés de enchê-las. 64 Nisso deverá residir a unidade da nossa obra, que poderá, se obtiver sucesso, contribuir para o aumento da massa de conhecimentos e de ideias sadias, de bons sentimentos, de inteligência, de razão e de gosto que forma o que poderíamos chamar de capital moral da juventude intelectual da França. Para Hetzel e Macé, a inovação do Magasin d’Éducation et de Récréation está no elo evidente que liga Educação à Recreação. O título da revista tem o papel de marcar a orientação do seu perfil apesar de pecar por um “excesso”, apontado por Macé em correspondência a Hetzel: “Se você tem realmente razões para insistir no anexo: recreação, eu não insistirei. Era com intuito de abreviar o título. Os melhores títulos são um pouco como as melhores loucuras” (Carta do 30 de janeiro de 1863).124 Para P.-J. Hetzel, excluir do título a palavra “Recreação”, como quisera Jean Macé, seria privilegiar o perfil pedagógico da revista, não reservando espaço à sua predileção: a literatura infantil e juvenil. Manter o título completo corresponde, portanto, ao desejo do editor-autor de manter o duplo objetivo que caracteriza sua associação com Jean Macé. Com esse dispositivo de interesses, Hetzel e Macé estavam atentos a duas instituições que condicionam o projeto da Encyclopédie pour l’enfance et la jeunesse, subtítulo do Magasin d’Éducation et de Récréation: enquanto o editor focava na imbricação dos campos editorial e literário, o professor mirava no sistema escolar, considerando a contribuição da revista no movimento de reforma da instrução pública: Acrescentar à lição forçosamente um pouco austera do colégio e do pensionato uma lição mais íntima e mais penetrante, completar a educação pública pela leitura no seio familiar, tornar-nos os amigos da casa em todos os lugares que pudermos entrar, agir ao mesmo tempo em todos os elementos de que ela se compõe, responder a todas as necessidades de aprender que se desenvolvem no lar, desde o berço até a maturidade, tal é nossa ambição. Cabe-nos fazer um breve parêntese no que diz respeito à intenção do periódico de completar a educação pública através da leitura. O propósito mostra-se revelador para a construção do ethos da revista e, por conseguinte, do ethos e da cenografia enunciativa dos romances de Jules Verne que serão publicados no periódico. Aqui,mais do que evidenciar o caráter didático e pedagógico da revista ou de um ou outro romance de Verne, o projeto se coaduna com o discurso escolar republicano da época que se preparava para a laicidade da escola francesa, só efetivamente concretizada com as leis de Jules “Si tu as réellement des raisons pour tenir à l’annexe: récréation, je n’insisterai pas. C’était l‘histoire de raccourcir le titre. Les meilleurs titres sont un peu comme les meilleures folies.”BNF, Dépt. de manuscrits, archives Hetzel, dossier “Correspondance Macé-Hetzel”, I, NAF 16073, fº117. 124 65 Ferry, em 1882. Dominique Maingueneau escreveu um artigo sobre o assunto intitulado “Les Voyages extraordinaires et le discours scolaire républicain”.125 O artigo trata, numa abordagem discursiva, das fronteiras entre os discursos dos manuais escolares da escola leigafrancesa e das “Viagens extraordinárias”. Maingueneau conclui que os dois discursos, o escolar e o verniano, embora não possam ser colocados no mesmo plano - já que um constitui um corpus extenso, uma enorme massa documental desenvolvida por um aparelho do estado que deseja inscrever duravelmente seus princípios na sociedade e o outro um empreendimentoliterário singular -, assemelham-se em objetivos; e que o discurso escolar contra o qual se estabelece uma relação de distanciamento é o discurso de um aparelho engajado contra a escola religiosa, num combate incessante e multiforme. Ora, embora não pretendamos tratar da questão que, cremos, merece análises mais aprofundadas, cabe-nos levar em consideração o tom laico do discurso de construção da revista que se posiciona contra a escola confessional, como pretende Maingueneau no referido artigo. Dissimuladas no prospecto do Magasin d’Éducation et de Récréation, as intenções incisivas e pretenciosas trabalham implicitamente o discurso na medida em que os fundadores da revista desejam impor sua marca no mercado da imprensa infantil e juvenil. O discurso publicitário do prospecto exibe o desejo de resolver o problema posto no título em uma abordagem lógica que consiste em inferir uma unidade entre a Educação e a Recreação. Desse ponto de vista, a combinação do educativo e do recreativo do Magasin não pode ser considerada original diante do extenso corpus de jornais e revistas da época, todos mais ou menos destinados à promoção da dita “literatura em família”, exploradores da fórmula “instrução e diversão” e, sobretudo, da receita do folhetim. Desde 1833, Jules Janin, que se vale do uso dos romances folhetins para fidelizar o público leitor do Journal des enfants,126 abre concorrência com diversos outros títulos, especialmente Le Journal des jeunes personnes (1833), Le Journal des Demoiselles MAINGUENEAU, Dominique. “Les voyages extraordinaires et le discours scolaire républicain”. Artigo inédito gentilmente cedido pelo autor no ano de 2010. Algumas discussões desse artigo foram revistas e publicadas em MAINGUENEAU, Dominique. “Faire adhérer sans argumenter. Manuels scolaires et “Voyages extraordinaires” à la fin du XIXe siècle”. In: Revue électronique Retor (Associación Argentina de Retórica), vol.1, n°1, 2011, p. 24-42. Disponível em: (http://www.revistaretor.org/vol1num1.html) 126 O jornal é lançado em 1832 por Saint-Charles Lautour Mézeray. Trata-se neste magazine da fórmula do romance folhetim de Illusions maternelles de Louis Desnoyers, primeira versão de Les Aventures de JeanPaul Choppart. Este é considerado o primeiro romance folhetim infantil (Cf.: MARCOIN, Francis. Les Aventures de Jean-Paul Choppard de Louis Desnoyers; le premier roman-feuilleton. Revue de littérature comparée, no 304, 2002/4, p. 431-443. Disponível em: www.cairn.info/revue-de-litterature-comparee2002-4-page-431.htm. 125 66 (1833), Cendrillon journal des petites Demoiselles (1850), Le Magasin de l’enfance chrétienne (1851), para citar alguns aos quais tivemos acesso e quecirculavam na primeira metade do século. Depois dos anos 1850, a editora Hachette ganha o mercado com os três magazines: La semaine des enfants (Fig. 11 e Fig. 12), La Poupée modèle e Le Journal de la jeunesse, lançados respectivamente em 1857, 1863 e 1872. Circulando desde 1857, La Semaine des enfants, de Louis Hachette é concorrente do Magasin d’Éducation et de Récréation. A comparação da revista de Heztel com aquela de Hachette pode auxiliar na compreensão do aporte original do Magasin d’Éducation et de Récréation em meio a massa de impressos que circulava para o público jovem. Fig. 11– Frontispício La Semaine des enfants (1857) Fig. 12 – Primeira página Com o subtítulo Magasin d’images et de lectures amusantes et instructives, o jornal infantil de Louis Hachette custava dez centavos o número e seis francos a assinatura anual.127 O periódico trazia oito páginas e, como o Magasin, objetivava instruir e divertir: La Semaine des Enfants, destinado a divertir seus jovens leitores instruindo-os, excitará vivamente sua curiosidade por relatos interessantes e por belas gravuras e direcionará seu ardor, assim, para o prazer em proveito de um ensino bem elementar com certeza, mas útil para o presente e fecundo para o futuro. Nas nossas histórias tudo será simples, tudo será curto, e tudo, portanto, será divertido, mas, ao mesmo tempo, tudo será instrutivo esobretudo moral, e tenderá a incutir 127 0,10 F, hoje, corresponderiam a, aproximadamente, 0,25€; 6 F a 12€. 67 imperceptivelmente nos jovens corações o amor pela religião e pela virtude.128 Dividido em três partes – relatos históricos; contos, historietas e dramas; variedades e pequenas crônicas –,o intuito moralista cristãodo jornal é preponderante. Na primeira história, no primeiro número do periódico, por exemplo, nota-se de imediato essa diferença: Hachette inaugura sua revista publicando Clotilde – relato histórico sobre a esposa que converte seu marido Clóvis ao cristianismo. Entre outros traços, a defesa de uma moral cristã marcará a primeira grande distinção paracom o Magasin de Hetzel, que responde mais ao movimento de uma moral laica em harmonia com futuros valores da Terceira República. Em março de 1864, o Magasin d’Éducation et de Récréation terá a mesma quantidade de páginas que a Semaine des enfants e será distribuídoatravés de uma assinatura de doze francos por ano.129 O preço mais elevado talvez se deva ao investimento de Hetzel na ilustração do seu periódico, no qual a imagem tem lugar importante. Com esse princípio, ele reúne para o projeto nomes como Eugène Froment (1820-1900), Lorenz Froelich (1820-1908), Édouard Riou (1833-1900), Yan’Dargent (1824-1899), todos artistas e futuros ilustradores dos romances de Jules Verne, para a criação de gravuras e vinhetas decorativas. Constituídoporduas colunas de quarenta linhas cada, o Magasin d’Éducation et de Récréation é mais rico em imagens, mais legível e fácil de manusear secomparado ao Semaine des enfants. Os números lançados quinzenalmente recebiam uma paginação específica para se transformarem em volumes ao final de um semestre com o objetivo de compor uma biblioteca, formando, assim, a Bibliothèque d’Éducation et de Récréation – projeto mais amplo da editora de Hetzel voltado para a reunião de obras para o público jovem. O Magasin d’Éducation et de Récréation é, portanto, um prescritor de produtos e bens culturais, isto é, para P.-J. Hetzel, criarum periódico com a finalidade de compor uma “Biblioteca” é um indício que revela seu investimento no mercado dos bens simbólicos. Isso configuraria um traço de originalidade da revista em relação às outras do “La Semaine des Enfants, destinée à amuser ses jeunes lecteurs en les instruisant, excitera vivement leur curiosité par des récits intéressants et par de belles gravures, et fera ainsi tourner leur ardeur pour le plaisir au profit d’un enseignement, très-élémentaire sans doute, mais utile pour le présent et fécond pour l’avenir. Dans nos récits, tout sera simple, tout sera court, et tout aussi sera amusant; mais en même temps, tout sera instructif et surtout moral et tendra à faire pénétrer insensiblement dans les jeunes coeurs l’amour de la religion et de la vertu.”“Aux pères et aux mères de famille” La Semaine des enfants. Magasin d'images et de lectures amusantes et instructives, nº1, 1er semestre. Paris: Hachette, 1857, p. 2. 129 Aproximadamente 24€. 128 68 gênero. Híbrido de revista e livro, a revista-vitrine propõe aos jovens leitores ter acesso a uma diversidade de textos norteados pelos princípios da Educação-Recreação com a intenção não só de enriquecer as bibliotecas com os fascículos reunidos no fim de cada semestre, mas também de inscrever-secomo um aparelho de promoção de uma gama de produtos editoriais da “marca” P.-J. Hetzel et Cie., na medida em que os textos publicados na revista, inclusive aqueles de Jules Verne, constituíam um acervo de referência destinado a compor um conjunto maior: a Collection Hetzel. Se a preocupação com a estrutura material da revista-vitrine está ligada à promoção da Coleção Hetzel, o mesmo acontece com a estrutura intelectual do periódico. Este outro ponto original do Magasin d’Éducation et de Récréation é configurado desde o momento da realização da sociedade entre Hetzel e Macé. A associação dos dois subordina a sinergia de obras literárias e de informação histórica e científica a uma distribuição dos textos de acordo com as rubricas “Educação” e “Recreação” do periódico. Os talentos de moralista levam Hetzel, com o pseudônimo de P.-J. Stahl, a ocupar o terreno da literatura recreativa enquanto o espaço reservado para o pedagogo Jean Macé será o educativo. Esta rubrica que reunirátextos de vulgarização científica ao longo dos anos de existência da revista será aquela na qual Jules Verne terá alguns de seus romances publicados em fascículo. Será o contrato de publicação de Voyage en l’air, cujo título original se transformará em Cinq semaines en ballon à época da publicação (ver 6.1.1), que permitirá ao editor pensar ter descoberto um escritor com autoridade enunciativa suficiente para a escrita de textos de base histórico-científica à altura das pretensões da revista, auxiliando, assim, Macé na rubrica do educativo. Em 23 de outubro de 1862, pouco mais de um ano antes do lançamento do magazine de Hetzel, Jules Verne assina o contrato para publicar o manuscrito. No documento, Pierre-Jules Hetzel prevê imprimir dois mil exemplares no formato in-18, não ilustrado, e pagar a Jules Verne quinhentos francos (vinte e cinco centavos por volume) pelos direitos do autor. No caso de reedições, estas não devendo ser inferiores a mil exemplares, Hetzel recalcularia o valor do exemplar pago a Verne. Por conta dos preços e gastos mais elevados para a produção de futuras edições ilustradas, os direitos do autor seriam acrescidos de 5%.130 A publicação e o sucesso do romance, em 1863, revela Verne, portanto, como um autor digno em auxiliar Macé na rubrica. Essa 130 Essas informações resumem duas páginas do contrato que pode ser encontrado na BNF, Dépt. de manuscrits, Archives Hetzel, dossier “Contrats, reçus et pièces comptables”, NAF 17007, fº1. 69 foi a porta de entrada de Jules Verne para a editora de Hetzel. O encontro com Jules Verne tem, portanto, papel crucial no processo genético do Magasin d’Éducation et de Récréation pela coesão que Verne trará unindo-se à direção da revista e pela coerência que as potencialidades da sua literatura conferirão à estratégia editorial de P.-J. Hetzel. Jules Verne adere ao projeto de Hetzel e, como sabemos, escreverá toda sua obra apoiada nesse perfil. Fig. 13. Página de apresentação dos colaboradores do Magasin, em 1864 Questionamo-nos, inicialmente, sobre uma possível incongruência na colaboração de Verne para esta “obra de família”, como descrito no Prospecto que abordamos, a ponto de gerar um posicionamento paradoxal e, portanto, conflitante para o escritor no campo literário. O problema consistiria no confronto entre um potencial posicionamento de Verne, em um momento em que havia concluído a escrita de Paris au XXe siècle (18601861) - romance que denuncia a incursão da ciência e dos adventos tecnológicos na literatura, e seu efetivo posicionamento quando publica Cinq semaines en ballon e aceita compor, em seguida, a rubrica educativa e de vulgarização científica da revista de Hetzel (1863-1864). Esse possível posicionamento paradoxal nos levaria a atribuir a Jules Verne uma posição de vítima das coerções do seu editor, o que é frequentemente difundido entre especialistas. Ainda que essa visão se apresente como possível para nós, a vemos com cautela. Havíamos considerado a possibilidade de que o primeiro romance publicado de Jules Verne, Cinq semaines en ballon, pudesse estar isento, em alguma medida, das coerções ideológicas de Hetzel fixadas para a revista e estendidas, posteriormente, à toda a sua obra. Isso se deveria ao fato de que este é um romance anterior ao projeto do 70 Magasin e, portanto, o único publicado diretamente em volume, integrando a posteriori o conjunto das Viagens extraordinárias. No entanto, como vimos, após alguns anos de tentativas de ocupar um lugar no campo literário, testando diferentes gêneros, Jules Verne, com as novelas publicadas no Musée des familles, já apresentava a tendência literária que seria “descoberta” e explorada por Hetzel. Além dessa evidência, o breve catálogo de Hetzel descrito na carta de Émile Aucante proposto pouco tempo antes da ruptura da sociedade Hetzel-Lévy, no qual figura o romance, permite-nos notar de que maneira a relação entre escritor e editor para a publicação desse manuscrito se integra às estratégias de Hetzel e às coerções ideológicas da sua editora, o que invalida nossa consideração. Ainda que não seja extenso diante das obras publicadas por Hetzel em torno de 1860, esse catálogo prova as opções do editor que seleciona autores de acordo com seus investimentos nos gêneros narrativos adaptados ao desenvolvimento de sua editora em direção à literatura para jovens. Na lista enviada para seu sócio, Hetzel diversifica as obras apresentadas. Ora propõe textos para o público jovem como l’Histoire d’une bouchée de pain e Quelques contes du petit château de Jean Macé, ou Les Aventures d’un petit parisien, de Alphonse de Bréhat; ora textos que não se limitam somente em promover uma literatura didática, como por exemplo o romance Maître Daniel Rock, de Emile Erckmann-Chatrian, que traz reflexões sobre os problemas sociais do progresso. Ainda assim, essa lista se harmoniza com os princípios do Magasin d’Éducation et de Récréation cujo objetivo declarado no editorial era “transmitir um ensino de família”. Portanto, o romance Cinq semaines en ballon já integraria o projeto de Hetzel mesmo antes do Magasin d’Éducation et de Récréation existir. Uma carta de Jean Macé para Hetzel, datada de janeiro de 1863, na qual elogia o romance de Verne, também nos auxilia chegar a essa conclusão: “Leio para as crianças o livro que as diverte muito. Todas estão com seus atlas abertos e nós acompanhamos no mapa. É a verdadeira maneira de ler o livro e, desse modo, o interesse por ele dobra”.131 Não obstante sua orientação não exclusiva para um público leitor específico, Cinq semaines en ballon não escapará à regra, portanto, por fazer parte desta lista de referências que pretende atender às famílias enquanto romance científico mesclado com o discurso didático. O catálogo da carta de Émile Aucante nos auxilia a definir que esse momento “Je lis aux enfants le livre qui les amuse beaucoup. Elles ont toutes leurs atlas ouverts et nous suivons sur la carte. C’est la vraie manière de lire cela, et l’intérêt en est doublé.” (Carta do 30 de janeiro de 1863). BNF, Dépt. de manuscrits, archives Hetzel, dossier “Correspondance Macé-Hetzel”, I, NAF 16073, fº117. 131 71 da trajetória do escritor no campo literário confirma a existência de uma intenção prévia que leva progressivamente Hetzel a impor a Jules Verne um posicionamento coercitivo no campo literário em função da sua própria interpretação do jogo de lutas entre polos antagonistas, em proveito da “utilidade da literatura”. Além do discurso paratextual do prospecto e da apresentação publicitária dos nomes que compõem o ethos da revista, cada qual ocupando uma rubrica diferente no periódico, o posicionamento de Jules Verne no campo literário é ainda reforçado quando da publicação do “Avis de l’éditeur” (ver 6.2.2). O paratexto informa sobre a composição de uma equipe de redação que estabelece uma hierarquia entre os diversos escritores, importante para a definição do lugar e do papel atribuído a cada um dentro dessa cenografia enunciativa: Comentário do editor Nós também não teríamos empreendido esta tarefa verdadeiramente inquietante de publicar esta coleção para a infância e a juventude, se não tivéssemos contado com a colaboração exclusiva e preciosa do autor de l’Histoire d’une bouchée de pain, dos Contes e do Théâtre du petit château, de l’Arithmétique du Grand-Papa; se o jovem e amável erudito que escreveu Cinq Semaines en ballon, Sr. Jules Verne, não nos tivesse, como o Sr. Macé, assegurado sua colaboração por longos anos; se o editor, Sr. Hetzel, não tivesse sido fortemente encorajado, que nos seja permitido dizê-lo, pelo autor, Sr. Stahl; se ilustres membros do Instituto, eminentes professores, se distintos escritores, uns já célebres, outros dignos de se tornarem, para a parte Recreação, não nos tivessem trazido o apoio indispensável de suas luzes e de seus talentos; se, enfim, artistas devotados à nossa ideia, uns já apreciados, como o Sr. Froment, o Sr. Froelich, por suas requintadas habilidades de reproduzirem cenas da infância e da juventude, outros completamente novos, o que também tem seu valor, não nos tivessem dado de antemão séries de desenhos refinados, castos e charmosos, alegres e agradáveis ao mesmo tempo, cujo sucesso não poderia nos parecer contestável. O editor Aqui, o sucesso de Cinq semaines en ballon sugere a popularidade do nome de Verne entre as famílias, confirmando-opara ocupar o lugar de colaborador da revista que pressupõe a imagem de um escritor savant que trabalha em prol da instrução da infância e da juventude. Qualificado como escritor “jovem e amável erudito”, Verne é, portanto, incluído no corpo organizador do magazine enquanto representante do “romance científico” na área Educação, parte em que se concentram os textos de vulgarização científica, o que convém ao plano de difusão enciclopédica de Hetzel, marca do Magasin d’Éducation et de Récréation. 72 Nesse capítulo, procuramos mostrar como duas trajetórias se cruzaram e como, a partir de uma interseção de interesses mútuos, definiram-se as bases para a carreira romanesca de Jules Verne. Distando da perspectiva de “Hetzel descobridor de Jules Verne”, apresentamos que o escritor já trazia consigo o interesse pelo interdiscurso científico nas obras literárias desde as novelas publicadas no Musée des familles, quando ficcionalizava baseando-se em relatos reais de viajantes, o que serviu como meio seguro para atrair o editor. Depois de um processo que passará, inclusive, por negociações que envolvem o literário e o econômico, a principal diferença que o escritor irá apresentar depois do encontro com o editor é a aceitação em participar do projeto ideológico editorial de Hetzel que prevê, entre outros, a exaltação da ciência e da tecnologia através de uma literatura escrita pelas vias do didático. Nesta Tese, caracterizamos o abandono de uma tendência literária romântica da parte de Verne e sua entrada nos modelos literários de didatização da ciência, assegurados pelo envelhecimento social do escritor, como um processo que chamaremos de “hetzelização” de Jules Verne. 3.3 A hetzelização de Jules Verne Após o primeiro contrato que define a publicação de Cinq semaines en ballon, Jules Verne é pouco a pouco inserido, não sem seu próprio consentimento, nas vias do romance didático, uma vez que o científico já se apresentara em Jules Verne sendo, inclusive, o motivo pelo qual ele chama a atenção do editor. Assumindo esse posicionamento, o escritor não poderá escapar à contaminação da sua criação literária pelos traços do instrutivo e do divertido, próprios à definição de P.-J. Hetzel da literatura para jovens. Além de ser qualificado como erudito, como vimos, e de ser designado para a seção “Educação” do magazine de Hetzel, o discurso que vincula o escritor a uma colaboração contratual exclusiva “por longos anos” é sintomático. Certamente, essa projeção a longo prazo assegura ao público assinante da revista a longevidade da sociedade editorial cuja ambição pedagógica supõe a perenidade de uma equipe de redação capaz de orientar a revista. Questionamo-nos, assim, se a justificativa editorial da divisão das responsabilidades é suficiente para atender aos anseios do romancista, cujo objetivo no campo literário não visava intencionalmente posicioná-lo como um savant écrivain. De fato, os outros romances de Verne serão publicados no mesmo gênero do romance Cinq Semaines en ballon, como reza o seu segundo contrato (ver 6.1.2). 73 O contrato de 11 de dezembro de 1865132 (ver 6.1.3) é o divisor de águas na carreira de Jules Verne. Ele define seis anos de engajamento com a editora a contar do dia 1º de janeiro de 1866 (o que se estenderá por mais de quarenta anos, com sucessivas renovações). No artigo segundo do contrato, o editor exige do escritor “três volumes por ano escritos no mesmo gênero dos romances precedentes (Cinq semaines en ballon e Les voyages et aventures du capitaine Hatteras), e ainda assinados com o mesmo nome de autor, feitos para o mesmo público e tendo a mesma extensão”. Pagando ao autor o valor de três mil francos por cada volume ou setecentos e cinquenta francos mensais, o que perfaz o total de nove mil francos por ano, Hetzel se autoriza a publicá-los “nos jornais que melhor lhe convier, com ou sem ilustrações”. O artigo terceiro prevê que cada volume será propriedade exclusiva da editora de Hetzel pelos dez anos que seguem a contar da sua data de publicação. Sobre as edições ilustradas, o artigo quarto, que faz referência às gravuras, prevê que as ilustrações dos romances de Jules Verne poderiam ser reutilizadas pelo editor. Com essa cláusula, Hetzel poderia republicá-las como e onde melhor lhe conviesse, de acordo com esclarecimentos do Professor Jean-Yves Mollier, sem ter que incluir Verne na transação. O contrato de 1865, proíbe Verne de “publicar qualquer outra obra, em qualquer outro veículo, suporte ou editora sem o consentimento de Pierre-Jules Hetzel.” No que diz respeito às novelas que Verne publicou no periódico Musée des familles, a última cláusula é definitiva: o editor deixa claro que o autor ainda poderá publicar uma por ano, se assim o desejar; no entanto, só poderão ser republicadas ou serem objeto de um volume se o forem pela editora Hetzel. Tendo comprado a propriedade dos romances anteriores a esse contrato por cinco mil e quinhentos francos, em 1865, Hetzel garante para sua editora o poder total sobre a produção de Jules Verne, enquanto este se beneficia de uma quantia fixa por volume. O contrato de 1865 será renovado em 1868, antes mesmo do seu término, que deveria ser em 1871. Esse documento não existe nos arquivos manuscritos da BNF. Só sabemos dessa informação através de um contrato-resumo datado de 1875. Nesse documento, cujo conteúdo transcrevemos no item 6.1.4, Hetzel resumirá e acrescentará cláusulas que guiarão o futuro da obra de Verne. Desse resumo em 1875, depreendemos informações sobre negociações contratuais feitas entre o período de 1865 e 1875. Ora, o contrato de 1875 menciona dois detalhes renegociados até aquele momento: em 1868, O contrato pode ser consultado na BNF, Dépt. de manuscrits, Archives Hetzel, dossier “Contrats, reçus et pièces comptables”, NAF 17007, fº17. 132 74 Verne passou a receber 10 mil francos anuais e, em 1871, passou a entregar anualmente dois volumes ao invés de três, e a ganhar doze mil francos por esse acordo. Era da preferência de Jules Verne receber o montante fixo por volume desde 1865 e não depender dos valores aleatórios das vendas, o que poderia lhe garantir mais estabilidade financeira. Após esse resumo feito dos detalhes contratuais, Hetzel estabelece as projeções que guiarão em definitivo a produção de Verne dos anos seguintes. A modificação contratual mais considerável, entre 1865 e 1875, tange à maneira pela qual Hetzel pagará Jules Verne. Afirmando estar desejoso em dividir lucros, Hetzel, argumenta que o escritor deveria aproveitar da excelente vendagem de Le Tour du monde en 80 jours (1874)133 e convence Verne a rescindir a cláusula de 1871 de receber um valor fixo pela entrega de volumes. A partir de 1875, o escritor passa a receber somente por venda de exemplar. Porém, o artigo 10 esclarece que nos dois primeiros anos dessa nova convenção firmada, Jules Verne ainda receberá mais mil francos mensais. As informações adicionais desse contrato de 1875 esmiuçam, ainda, os ganhos sobre essas vendas: em 1875, Hetzel, a pedido de Jules Verne, anuncia um “acerto de contas” que será realizado em 1882 sobre os volumes in-18 (volumes não ilustrados). Até então, em aproximadamente doze anos de produção romanesca, Jules Verne não ganhava sobre as vendas desses volumes. A rubrica “Règlement pour les oeuvres antérieures à ce jour non illustrées” prevê que somente em 1882 Verne receberá cinquenta centavos por volume vendido do conjunto de obras publicadas até aquele momento, isto é, 13 romances a contar de Cinq semaines en Há alguns detalhes que devemos levar em conta para se definir o que foi um “best-seller” na carreira de Jules Verne. As estatísticas de vendas das Viagens extraordinárias vão variar de acordo com, por exemplo, o formato do volume (in-18 para as primeiras tiragens), se se inclui ou não nessa contagem as reimpressões realizadas, ou ainda, se é levado em consideração o número das tiragens das famosas edições ilustradas in8. Isso sem contar com a pré-publicação em folhetim em jornais, caso de Le Tour du monde em 80 jours que foi publicado, em 1872, no jornal Le Temps, ou no Magasin d'Éducation et de Récréation. Para tentar chegar a uma resposta, diria que muitos romances de Verne poderiam ser considerados como best-sellers, mas Le Tour du monde en 80 jours (1873), Cinq semaines en ballon (1863) e Vingt mille lieues sous les mers (1871) encabeçariam a lista. Martin Lyons que estudou os best-sellers do século XIX (CHARTIER & MARTIN, 1985, p. 409-448), para seus estudos no ano de 1850. Excluindo os clássicos e os livros escolares, Lyons cita como best-sellers Les trois mousquetaires, de Dumas, Le juif errant, de Sue e Histoire des Girondins, de Lamartine, todos tendo tido como primeira edição algo em torno de 15 ou 20 mil exemplares e em cinco anos, nada além de 35 mil. Para se ter uma ideia do sucesso de alguns romances de Jules Verne, a primeira edição in-18 sem ilustração de Cinq semaines en ballon (1863) tem tiragem de 40 mil exemplares, Voyage au centre de la terre (1864) de 32 mil, Les aventures du Capitaine Hatteras (1866) de 36 mil e Le Tour du monde em 80 jours de 121 mil exemplares. Usar os números desse último romance como argumento foi suficiente para convencer Verne a rescindir com a cláusula que previa o recebimento de um valor fixo pelos volumes escritos. Sobre as tiragens em Jules Verne remetemos a DEHS, Volker. “Les tirages des éditions Hetzel: une mise au point” Revue Jules Verne. Amiens: Encrage éditions, nº5, 1998, p. 89-94. Este artigo é tomado como referência para responder sobre as estatísticas de venda dos romances de Jules Verne. 133 75 ballon (1863) até L’île mystérieuse (1875). Concernente às obras futuras, ainda sobre os volumes in-18, a nosso ver para não acumular débitos, o editor já iniciará o pagamento a Verne dos mesmos cinquenta centavos por exemplar vendido a partir da publicação do Courrier du Czar (1º volume de Michel Strogoff – 1876). O contrato reza ainda que sobre as famosas edições ilustradas, Verne ganhará 5% do bruto dos primeiros vinte mil exemplares vendidos e 10% sobre os outros e, ainda, ganhará 50% com a publicação em revistas e jornais, na França e no estrangeiro. A análise desses contratos nos permite perceber que, aos poucos, Verne se fideliza à editora Hetzel. Dois períodos marcariam essa fidelização: de 1862 a 1865 com os contratos para Cinq semaines en ballon e Voyages et aventures du capitaine Hatteras momento de testes da parte de Hetzel; e de 1865 a 1875, com os contratos de três volumes, depois de dois volumes anuais. Em uma relação mútua, editor e escritor investem nos potenciais um do outro, beneficiando-se dos resultados, cada qual com seu objetivo. A análise desses contratos, na perspectiva da trajetória, evidencia que, em 1875, Jules Verne já acumulou capitais financeiros e sobretudo simbólicos suficientes para fazer as exigências que desejasse junto ao editor. Embora ambos tenham se beneficiado financeiramente, fica claro que Jules Verne representou grandes lucros para a editora de Hetzel, pelo menos pelo período aproximado de doze anos (1863 – 1875). Entre esses dois momentos da fidelização de Verne à editora, temos de ressaltar um aspecto. O primeiro momento é marcado ainda pela submissão do manuscrito de Paris au XXe siècle. As cláusulas contratuais de 1865 encerram Verne, antes de tudo, em um rítmo de escrita e gênero específicos. Esse fato está na base da discussão sobre a recusa do romance Paris au XXe siècle. A crítica tem documentada a troca de correspondência que envolve o manuscrito de Paris au XXe siècle que citamos, em parte. Sabe-se que foi no ano de 1863 que se deu a recusa de publicação deste romance futurista avant la lettre. Poderíamos inferir, portanto, que a discussão entre escritor e editor tenha estabelecido uma relação circunstancial com a escrita e publicação do “Avis de l’éditeur”, acima citado. Caso pudesse ser confirmada, essa hipótese permitiria situar no eixo diacrônico o traço genético do “Avis” relativo a essa discussão ocorrida no fim de 1863, considerando como limite cronológico da redação do paratexto a data do lançamento do Magasin d’Éducation et de Récréation - 20 de março de 1864. Assim, no período de três meses, aproximadamente, definiu-se o futuro literário de Jules Verne. As repercussões da crítica ferrenha que Hetzel faz ao romance e ao escritor não provam a anterioridade do seu 76 “Avis” em relação ao envio do manuscrito de Paris au XXe siècle. Ainda que escrito nesse período de tensão, a redação pode ter sido interrompida quando Jules Verne finalmente aceita abandonar a escrita no gênero do romance visionário para tomar um posicionamento literário adaptado à estratégia de promoção de uma literatura para jovens através do canal de uma revista de vulgarização literário-científica. Endossando sua colaboração na rubrica didática do periódico de Hetzel, o argumento anunciado no “Avis de l’éditeur” (ver 6.2.2) adverte também Verne de que ele não pode mais ignorar as regras coercitivas às quais estará ligado por seu contrato de exclusividade com a editora Hetzel, a partir de 1865. A publicação em fascículo de Les Anglais au Pôle Nord – primeira parte do romance Voyages et aventures du capitaine Hatteras, em 1864, no primeiro número do Magasin d’Éducation et de Récréation, é o primeiro sinal de fidelidade do romancista às exigências do seu diretor literário. A tática de Hetzel foi produtiva, pois Jules Verne entra neste sistema de razão prática que obedece às coibições do Magasin d’Éducation et de Récréation. Contudo, só poderá se dar conta das implicações sobre sua criação literária quando Hetzel finalizar sua lógica editorial, levando o romancista à gênese programática do ciclo das Viagens extraordinárias, lançadas publicamente em 1867. Esse processo complexo que se deu em meio a conflitos e negociações, que fez Jules Verne entrar em um sistema do qual também se beneficiou, pode ser caracterizado como sua “hetzelização”. A ideia de uma hetzelização de Jules Verne deriva da leitura de um artigo escrito por Michel Contat, escritor, cineasta e crítico literário, especialista entre outros, na obra de Jean-Paul Sartre. “De «Melancholia» à La nausée: la normalisation NRF de la Contingence”134 trata da trajetória da publicação do romance La Nausée, de Sartre, que, inicialmente com o título “Melancholia”, foi submetido e recusado pelas edições NRF, em 1936, mas aceito por Gaston Gallimard, em 1937. Na ocasião, Brice Parain, encarregado na Gallimard para a publicação do livro, incita Sartre a excluir passagens de inspiração “populista” e a suavizar partes do texto de cunho sexual. Sartre consente às condições sugeridas, pois gostaria de ser publicado. Através de um retorno aos manuscritos desse romance, Michel Contat, que editou as obras completas de Sartre para a Bibliothèque de la Pléiade, em 1982, mostra que os cortes que dizem respeito à “estética literária” foram feitos por Sartre com boa vontade. Contat chega a essa conclusão depois CONTAT, Michel. “De “Melancholia” à La Nausée: la normalisation NRF de la Contingence”. Genesis, n° 21, 2003, p. 75-94. Disponível no site do Institut de textes et manuscrits modernes (Item): http://www.item.ens.fr/index.php?id=27113. Última consulta: 10/10/2015. 134 77 de analisar as correções feitas no manuscrito antes dos cortes do editor. No caso de Sartre, segundo ele, parece impossível definir um “espírito NRF” por uma uniformidade no seu estilo, mas não há dúvida que a obediência a uma certa estética exclui a publicação pela Gallimard de textos que se oponham a essa estética difusa. Sartre, cedendo às injunções da Gallimard, procede a uma relativa “gallimardização” de seu romance. Contat conclui que, se o romance fosse publicado como seu autor o escreveu primeiramente, o texto pareceria com uma obra compósita, mais barroca e mais original do que aquela que foi finalmente publicada. Observamos, em aspectos gerais, semelhança desse acontecimento com o caso de Jules Verne e seu editor P.-J. Hetzel. Embora não sejam objetos de nossa análise, os manuscritos dos romances de Jules Verne, organizados na casa-museu na cidade de Nantes, guardam as marcas das muito discutidas intervenções do editor em sua obra. A título de exemplo, afim de verificarmos em que nível se davam as “sugestões de correção” nos textos de Verne, segue um fac-símile de uma página manuscrita que transcrevemos em seguida.135 Trata-se do manuscrito de L’Île mystérieuse, publicado em volume em 1875, cujo título original era “Robinson”. Em 2 de fevereiro de 1873, em carta ao seu editor, Verne presta conta do que está fazendo - verificando as últimas provas du “Tour du monde” e remanejando o Pays des fourrures, e anuncia o “novo” título do romance: Je suis tout entier au “Robinson”, ou pour mieux dire à L’Île mystérieuse. [...] Ce sera un roman chimique. Je ménage avec le plus grand soin l’intérêt dû à la présence ignorée du capitaine Nemo sur l’île, de manière à voir un crescendo réussi, comme des caresses à une jolie femme que l’on veut conduire où vous savez. Voici mon état de situation au 2 février, et je vous le fais connaître.136 Observa-se como Hetzel intervém criticamente, na coluna da direita, espaço frequentemente destinado às correções, e faz “sugestões” de modificação do texto: 135 Valemo-nos desse exemplo, mas poderíamos usar o manuscrito de qualquer outro romance de Verne exceto o de Cinq semaines en ballon, pois não existe manuscrito deste romance -, para mostrarmos em que medida se dá a hetzelização de Jules Verne. Escolhemos este e não outro por tratar da incursão mais polêmica do editor e, portanto, mais discutida entre especialistas da obra verniana. 136 VERNE, 1999, p. 189. 78 Fig. 14. Página do manuscrito de L’Île mystérieuse Transcrevemos abaixo o fac-símile que trata da morte do capitão Nemo no romance L’Île mystérieuse, em que o personagem reaparece, seis anos depois da publicação de Vingt mille lieues sous les mers, e profere sua polêmica última frase. Sublinhamos as incursões diretas do editor – marcadas em azul no texto, e sinalizamos seus cortes: 79 La nuit était venue, bien qu’il fut impossible de s’en apercevoir dans cette immense crypte, toujours éclairée par les feux électriques du Nautilus. Aucun des colonsmais ni Cyrus Smith, ni ses compagnons n’avaient songé à la quitter, ni à voir si la tempête se déchaînait au dehors, si les feux du mont Franklin s’élevaient se déchaînait au dehors! Ils étaient là comme s’ils avaient enfouis profondément dans les entrailles du globe./Le capitaine Nemo s’affaiblissait de plus en plus ne souffrait pas, mais il déclinait. Sa belle et noble noble figure, pâlie par les approches de la mort, était calme. [...] Une ou deux fois encore, il adressa la parole aux colons rangés près de lui, et qui l’observaient dans un douloureux silence. Il leur souriait de ce dernier sourire qui se continue presque dans la mort. [...] Puis, murmurant ces mots : « Indépendance », «Dieu et Patrie!» il expira doucement, sans agonie, sans que son visage ne décèle même une souffrance / Cyrus Smith, s’inclinant alors, ferma les yeux de celui qui avait été « le prince Dakkar » de ce grand patriote indien, de celui qi fut le capitaine Nemo et qui n’était même plus le capitaine Nemo. Harbert et Pencroff pleuraient. Ayrton essuyait une larme furtive. Nab était à genoux près du reporter, changé en statue. Cyrus Smith, élevant la main au-dessus de la tête du mort: «Que Dieu ait son âme!» dit-il, et, se retournant vers ses amis, il ajouta: «Prions pour celui que nous avons perdu!» -----------------------------------------------------------------------------------------------Quelques heures après les colons remplissaient la promesse faite au capitaine. A palavra-chave, não somente dessa cena, mas de toda existência do capitão Nemo é “Indépendance!”. Embora seja a modificação mais discutida de um texto de Jules Verne, William Butcher acusa os especialistas de nunca terem analisado essa correção minuciosamente. Em seu recente estudo sobre os manuscritos vernianos, Butcher afirma que essa mesma moral já está inserida nos subtítulos do capítulo XVII desse romance.137 O especialista diz que, de fato, no momento da passagem a limpo do manuscrito, o bloco gráfico guarda essa mesma proclamação “Indépendance!”, mas tem ainda uma rasura a lápis, feita pelo editor, seguida de uma espessa rasura azul autógrafa. Na margem, vê-se a nova versão em tinta azul - “Dieu et Patrie”-, escrita por Verne e sobreposta a uma versão aparentemente editorial, a lápis, quase completamente apagada. Butcher reitera que quem corrige - certamente o editor -, também modifica a lápis os vocábulos “ce mot” para “ces mots”, o que ainda é possível notar.138 Ora, tal modificação feita por Hetzel surpreende o leitor atento da obra verniana pela incoerência revelada. Em Vingt mille lieues sous les mers, Nemo passa a vida a se 137 138 BUTCHER, William. Jules Verne inédit: les manuscrits déchiffrés. Lyon: ENS éditions, 2015, p. 342. BUTCHER, 2015, p.342. 80 opor ao patriotismo, definindo-se por sua qualidade moderna de exilado universal, de apátrida ou de cidadão do mundo. A incoerência se intensifica quando o personagem menciona Deus. Tendo sua nacionalidade indiana revelada em L’Île mystérieuse, é pouco provável que o personagem acreditasse em um só Deus. Diante das incursões de Hetzel, Verne não se sente capaz de resistir e renuncia em tentar manter uma coerência em seu personagem. Verne cede à edição de Hetzel, como inúmeras vezes fará, assim como Sartre à Gallimard, em 1937. Esse não é o primeiro aspecto de uma “hetzelização” de Verne. Aproximamos a situação de Verne do caso de Sartre pois este, na passagem de “Melancholia” a La nausée, fez sacrifícios para adotar o que Michel Contat qualifica como “escrita NRF”. Para Sartre, esse foi o primeiro passo para se responsabilizar em um engajamento NRF; para Verne, em 1875, essa foi apenas mais uma concessão. Sua “hetzelização” já havia acontecido e os traços se confirmam na medida do tempo. A primeira disposição para essa normatização se dá quando Verne assina o contrato de 1865 que o encerra em publicações escritas dentro de um gênero, tema e ritmos de escrita específicos, produzidas para um público bem definido, como afirmamos no fim do item anterior e pudemos confrontar com a transcrição em 6.1.3. Sob esse contrato, Jules Verne se engaja por seis anos e ganhará os três mil francos por volume até o ano de 1868, quando terá o contrato revisto, passando a ganhar dez mil francos anuais. Embora já tivesse incursionado no gênero da narrativa de viagem antes de 1865, data do contrato, é com esse documento jurídico que essa opção literária se define como uma imposição editorial a Jules Verne. Se existe um traço que reúna todos os romances de Verne em um único conjunto, este traço é o tema da viagem. A segunda evidência vem de maneira a reiterar a primeira. Em 1867, no “Avertissement de l’éditeur” (ver 6.2.3) do Magasin d’Éducation et de Récréation, institui o nome do conjunto da obra que ainda escreverá e “relembra” Jules Verne das suas obrigações contratuais, distanciando-o de uma vez por todas de qualquer tentativa de aproximação dos preceitos da “arte pela arte”, ou das opções estéticas ensaiadas no início de sua trajetória, sobretudo as de traços românticos, que se apresentam em sua obra teatral e novelística insistindo, assim, no caráter didático e útil que sua obra deverá ter: Os críticos mais autorizados saudaram no senhor Jules Verne um escritor de um temperamento excepcional, ao qual, desde seu início, era justo designar um lugar de destaque nas letras francesas. Ele criou um novo gênero. O que se promete com frequência, o que se dá raramente, a instrução que diverte, o divertimento que instrui, o senhor Jules Verne o prodigaliza sem economizar em cada uma das páginas de suas 81 narrativas emocionantes. Os romances do senhor Jules Verne chegaram, aliás, ao ápice. Quando se vê o público se apressar em correr para as conferências que se abriram em mil pontos da França, quando se vê que ao lado dos críticos de arte e de teatro foi necessário dar lugar nos jornais aos boletins da Academia de Ciências, é necessário dizer que a arte pela arte não é mais suficiente na nossa época e que a hora chegou em que a ciência tem seu espaço feito na literatura. O mérito do senhor Jules Verne é de ter sido o primeiro a colocar os pés nessa nova terra. As novas obras do senhor Jules Verne virão somar-se sucessivamente a essa edição que nós teremos o cuidado de manter informada. As obras publicadas e aquelas a serem publicadas englobarão assim, no seu conjunto, o plano a que se propôs o autor quando ele deu como subtítulo da sua obra aquele de Viagens extraordinárias aos mundos conhecidos e desconhecidos. Seu objetivo é, com efeito, resumir todos os conhecimentos geográficos, geológicos, físicos, astronômicos reunidos pela ciência moderna e refazer, sob a forma atraente e pitoresca que a caracteriza, a história do universo. Conscientes da distância temporal e das diferentes relações que têm com os pares no campo, ambos os casos - a “hetzelização” de Verne e a gallimardização de Sartre operam na mesma lógica e têm o mesmo motivo gerador: sem a conformação dos manuscritos, seja os de Verne à editora Hetzel ou os de Sartre aos padrões Gallimard, eles não teriam sido editados, pelo menos não pelas editoras que se incumbiram desse trabalho, e suas carreiras nas Letras, portanto, teriam tomado um outro rumo. Jules Verne e Jean-Paul Sartre fazem suas entradas em suas respectivas editoras polindo seu estilo, atenuando seus textos, modificando ou suprimindo alguns elementos narrativos afim de modificar sua tonalidade, adequando os textos aos padrões desejados por seus editores. No caso de Verne, uma outra injunção é ainda focalizada: o escritor não pode se desviar daquela estética prescrita para os colaboradores do Magasin d’Éducation et de Récreation ou do monumento “Collection Hetzel”. Para se tornar um escritor reconhecido com largo capital simbólio e, por que não dizer, financeiro, como o desejava, Jules Verne cede às condições que lhe foram apresentadas como condição sine qua non para obter reconhecimento no campo. O sentido de responsabilidade e confirmação de engajamento se apresentam a Verne quando, definitivamente, obtem sucesso com a venda de seus romances; ele “cria um novo gênero”, como atesta a apresentação-programa que citamos acima, e adquire aura de celebridade criada em torno do seu nome de autor. Coube-nos perguntar se Jules Verne é completamente dependente e servidor do seu editor, cedendo à ciência e à literatura industrial139 em detrimento da arte burguesa 139 Referimo-nos à categoria mencionada por Sainte-Beuve, em 1839, na Revue des Deux mondes, em artigo em que constata a coexistência de duas literaturas em posição desigual: uma comercial e outra “expressão 82 ou da arte pela arte, para voltarmos à tríade de Bourdieu. É nossa hipótese nesta Tese que, mesmo que sua “hetzelização” pareça se dar sem nenhum sentido crítico, é com plena consciência que o escritor traça sua trajetória de sucesso em associação com seu editor, pois Jules Verne logrou construir uma carreira sólida e internacional, ainda em vida, provando que sua união com Hetzel foi fundamental para a construção de seu nome de autor. A maior parte de sua obra - a mais conhecida e difundida - não pode ser entendida sem a presença de Pierre-Jules Hetzel. No entanto, ainda assim, parece-nos que Verne deixa transparecer aqui e ali nas Viagens extraordinárias - mas talvez inconscientemente – seus valores de escritor romântico tardio da primeira fase de sua trajetória. Essas manifestações podem ser verificadas nas representações da arte e do artista presentes na sua obra. delicada de talento própria a engendrar monumentos”, para citar suas palavras. Cf. SAINTE-BEUVE, Charles-Augustin. “De la littérature industrielle ». Revue des Deux mondes, T.19, 1839. 83 4- AS REPRESENTAÇÕES DA ARTE E POSICIONAMENTOS NO CAMPO LITERÁRIO DO ARTISTA: Ao decidirmos estudar as representações da arte e do artista presentes na obra de Jules Verne, selecionamos de seus trabalhos aqueles que apresentam dados para essa discussão. Trataremos de desvelar as concepções artísticas que compõem o projeto estético de Verne e, portanto, estão vinculadas às tentativas de posicionamento no campo literário. Com esse objetivo, realizaremos um breve estudo das comédias La Guimard e Monna Lisa e das referências metapicturais presentes nessas peças. Apresentaremos igualmente análises da crítica do Salão de 1857, escrita por Jules Verne e publicada em 2008 pelo pesquisador William Butcher. Gênero que se situa entre os discursos literário e pictórico, a crítica de arte de Verne será analisada a fim de identificarmos possíveis afinidades com as representações artísticas presentes na obra romanesca do autor. Priorizaremos, em um terceiro item, as representações artísticas presentes na sua obra romanesca: o lugar da literatura em Paris au XXe siècle e a paratopia do personagem poeta do romance; o salão-museu de Nemo, personagem esteta e capitão do submarino Nautilus que figura no romance Vingt mille lieues sous les mers (1870); e os personagens pintores de Le Rayon vert (1882) e Le secret de Wilhelm Storitz (1910). Para todas as discussões, basearemos nossas análises na teoria do campo de Bourdieu, nos estudos de Análise do Discurso de Dominique Maingueneau ao qual se une Liliane Louvel com apropostados graus de picturalidade de uma passagem descritiva. 4.1 As comédias La Guimard e Monna Lisa Na sua carreira, a vertente de autor dramático que Jules Verne incarna é uma das mais desconhecidas da sua trajetória no campo literário francês e, no entanto, bastante prolífica. Desde 1845,Verne tenta, durante aproximadamente quinze anos, se assemelhar a Victor Hugo, Alfred de Musset ou a Alexandre Dumas na cena parisiense. Dramas históricos, comédias sentimentais e de costumes e vaudevilles atestam as primeiras tentativas de Verne de entrada no campo literário. Podemos afirmar que essa via literária permite-lhe exercitar seu estilo, aceitando as coerções dos gêneros e do campo literários à época e elaborando, assim, estratégias deescrita literária das quais se apropriará. 84 Listamos abaixo a produção dramática do autor com todas as informações que possuímos. As datas dos textos remetem à época da sua escrita: Título da peça Ano da escrita Encenação La conspiration des poudres 1846 Un drame sous Louis XV 1846 Alexandre VI 1846-1847 Le quart d’heure de Rabelais 1847 Une promenade en mer 1847 Don Galaor 1847 Les pailles rompues 1849 Le coq de bruyère Abd’allah 1849 1849 On a souvent besoin qu’un plus petit que soi La mille et deuxième nuit 1849 Tragédia em versos, cinco atos. (Não encenada) Tragédia em versos, cinco atos. (Não encenada) Drama em versos, cinco atos. (Não encenada) Comédia em versos, um ato. (Não encenada) Vaudeville, um ato. (Não encenada) Sinopse de comédia, um ato. (Não encenada) Comédia em versos, um ato. (Encenada doze vezes no Théâtre Historique em jun/1850) Sinopse. (Não encenada) Vaudeville, dois atos. (Não encenada) Sinopse. (Não encenada) Quiridine et quidinerit 1850 La Guimard 1850 Les savants 1851 Les fiancés Bretons De Charybde en Scylla 1851 1851 Monna Lisa 1851 Les châteaux en Californie, ou Pierre qui roule n’amasse pas mousse 1851 La Tour de Montlhéry 1852 Le Colin-Maillard 1852 1850 Peça em versos, um ato. (Não encenada) Comédia em versos, três atos. (Não encenada) Comédia, dois atos. (Não encenada) Comédia, três atos. Texto perdido Texto perdido Comédia, um ato. (Não encenada) Comédia em versos, um ato. (Não encenada. Publicada em L’Herne, 1974) Comédia, um ato. (Não encenada. Publicada no magazine Musée des familles Jun/1852) Drama, cinco atos. (Não encenada) Ópera-cômica, um ato. (Encenada quarenta e cinco vezes no Théâtre Lyrique em 1853. Publicada no Boletim da Sociedade Jules Verne BSJV, nº120) 85 Les Compagnons de la Marjolaine 1852 Un fils adoptif 1853 Guerre aux tyrans 1854 Au bord de l’Adour 1855 Les heureux du jour 1856-57 Monsieur de Chimpanzé 1857 Onze jours de siège 1854-60 L’auberge des Ardennes 1859 Un neveu d’Amérique ou Les deux Frontignac 1860 Les sabines 1867 Ópera-cômica, um ato. (Encenada vinte e quatro vezes no Théâtre-Lyrique em 1855) Comédia. (Não encenada. Publicada no BSJV, nº 143) Comédia em versos, um ato. (Não encenada) Comédia em versos, um ato. (Não encenada) Comédia em versos, cinco atos. (Não encenada) Opereta, um ato. (Encenada de 17 fev. a 3 mar. no Théâtre des BouffesParisiens em 1858. Publicada no BSJV nº57) Comédia, três atos. (Uma única apresentação em 1º de junho de 1861 no Théâtre Vaudeville) Ópera-cômica, um ato. (Única apresentação em 1 de setembro de 1860 no Théâtre Lyrique) Comédia, três atos. (Encenada por dois meses no Théâtre Cluny, em 1873. Publicada por Hetzel junto com o romance Clovis Dardentor) Opereta-cômica, três atos (Não encenada, somente o primeiro ato existe) Em 26 de janeiro de 1851, Jules Verne, aos vinte e três anos, tendo abandonado os estudos em Direito, anuncia mais uma vez à sua mãe sua vontade de se lançar no mundo da literatura: “Ne croyez pas que je m’amuse ici, mais il y a une fatalité qui m’y cloue; je puis faire un bon littérateur, et ne serais qu’un mauvais avocat, ne voyant dans toutes choses que le côté comique et la forme artistique, et ne prenant pas la réalité sérieuse des objets”.140Com um argumento peremptório, o jovem Verne não hesita em apresentar suas ambições literárias como uma “fatalidade”. Os textos La Guimard e Monna Lisa fazem parte dos primeiros resultados dessa “fatalidade”. Assim como La Guimard, a comédia Monna Lisa tem suas consequências 140 VERNE, 1988, p. 285. 86 sobre a poética de Jules Verne no sinuoso percurso literário que o levou dos dramas românticos e comédias à escrita das Viagens extraordinárias. De imediato, podemos afirmar que a conscientização dessa “fatalidade” por parte de Verne procede de uma reflexão oportunista sobre a carreira literária. Butcher, em sua biografia sobre o autor, observa que, logo na sua chegada em Paris, Verne se dedica à escrita de dramas românticos inspirados em Victor Hugo em 1847 e 1848, e depois em Alexandre Dumas.141 O biógrafo reitera que a evolução desta “inspiração” teatral em Verne lhe foi ditada por uma preocupação comercial, sendo a veia dumasiana mais propensa ao sucesso do que o modelo hugoliano. Essa é a mesma preocupação que o jovem autor evoca, em carta ao seu pai, para justificar um posicionamento em favor da comédia, naquele momento de sua trajetória: C’est moi seul, qui voyant les difficultés créées par la censure ait (sic) retiré le drame sous Louis XV: il y aurait certainement échoué; je verrai à présenter la Conspiration des poudres ; mais je ne compte aucunement sur ces œuvres, parce que ce sont des drames, et que les drames littéraires ont vécu: néanmoins, ce n’est pas un travail perdu ; ce que je ne puis faire recevoir maintenant, je l’imposerai plus tard. Revenons donc à la comédie. Je mettrai Quidinerit en deux actes. J’ai trois actes sérieux commencés de haute Comédie de mœurs. Voilà les nouvelles littéraires.142 Observamos aqui uma lógica objetiva de estratégia literária e comercial. Butcher sublinha que, nesse início de carreira, tudo acontece como se os insucessos dos primeiros dramas ajudassem o aspirante a escritor a descobrir sua “verdadeira natureza na literatura”,143 ou, para usar as palavras do próprio Verne, sua “fatalidade”. Mesmo iniciando sua escrita dramática com duas tragédias em versos a partir de 1845, começam a coexistir em Jules Verne as veias dramática e cômica em 1847 já que, além de La conspiration des poudres, Verne havia redigido dois vaudevilles em um ato – Une promenade en mer e Le quart d’heure de Rabelais –, assim como a sinopse de uma comédia. Nos anos seguintes, entre outras, Verne escreve o vaudeville Abd’Allah e a comédia em versos Quiridine et Quidinerit. As doze representações da comédia Les Pailles rompues no palco do Théâtre Historique de Alexandre Dumas, de 12 de janeiro a 25 de junho de 1850, contam positivamente na escolha em realizar a manutenção no drama. O jovem escritor, ávido de triunfo, encontra novas esperanças frequentando Alexandre Dumas Filho, autor de La 141 BUTCHER, 2006, p. 77-79. VERNE, 1988, p. 285. 143 BUTCHER, 2006, p. 80. 142 87 dame aux Camélias e colaborador de Les Pailles rompues. A importância dessa colaboração pode ser atestada por uma carta que Verne envia a seu pai, datada de 28 de junho de 1850: “Je ne sais quand je pourrai t’envoyer Les Pailles rompues; il y a des tracas pour l’impression du manuscrit ; on n’imprime guère les pièces en un acte ; et il est important pour moi qu’elle le soit ; enfin A. Dumas s’est chargé de cette affaire”.144 Primeiro texto encenado, Les Pailles rompues, funciona, portanto, como um verdadeiro impulso na carreira de Verne, autorizando a afirmação de seus talentos de autor cômico. A partir daí, Verne só se envolve na escrita de um drama pela última vez em 1852, com La Tour de Montlhéry. O termo “fatalidade” que ora recuperamos de Verne se impõe também sobre o autor. Jules Verne, que havia projetado obter sucesso escrevendo para um gênero já reconhecido pela crítica e pelo público, como fizeram os grandes autores que admira, com o sucesso da comédia Les Pailles rompues vê-se confrontado com uma realidade que o distancia desse destino de “fracasso”. O rumo que essa peça segue aponta a aceitação do autor da “moda literária” e a sujeição da sua criação a critérios comerciais – característica do campo de força de que fala Bourdieu, em que o campo econômico se sobrepõe ao campo literário. Em torno de 1850-1852, Verne tem algumas poucas peças conhecidas por terem sido encenadas ou publicadas. Como vimos acima no quadro das peças, Verne, sem muito sucesso, teria encenado Les Pailles rompues, como dissemos, mas também Le ColinMaillard e Les Compagnons de la Marjolaine e publicado Les châteaux en Californie, ou Pierre qui roule n’amasse pas mousse. A editora Le Cherche midi, publicou em Nantes em 2005 a reunião desses textos dramáticos e outros em Théâtre inédit, arrolado na bibliografia. Com essa publicação, tomamos conhecimento do texto de La Guimard (1850) e relemos a peça Monna Lisa (1851) já publicada no caderno L’Herne, em 1974. Para integrar o estudo da trajetória de Jules Verne no campo literário, enfocando o recorte que pretendemos na Tese, não se poderia excluir a análise desses textos. Ambos trazem referências picturais. Para La Guimard, Jules Verne insere como personagem o pintor francês Jacques-Louis David e ambienta a peça em seu ateliê em 1775, um ano depois de o pintor ser premiado, em Roma, pelo quadro Les Amours de Stratonice et d’Antiochius (ver 6.3.1); para a peça Monna Lisa, as ações acontecem no ateliê do pintor Leonardo da Vinci, desenrolam-se em Florença e têm como um dos personagens a senhora Joconda. 144 VERNE, 1988, p. 280. 88 Embora estejamos cientes da diferença entre a escrita em prosa para a primeira peça citada, e em versos, para a segunda, aglutinamos os dois textos em um único item em função da sua unidade temática e da sequencialidade de datas de elaboração: antes de desenvolver a “ideia romântica e masoquista da recusa da felicidade em busca do absoluto”,145 em Monna Lisa (1851), Jules Verne já havia se questionado em La Guimard (1850) sobre o diálogo entre o amor e a arte e a complexidade da relação, amorosa para ambos os casos, entre pintor e modelo. Sabendo que a elaboração dessas peças acontece após o primeiro texto encenado de Verne - Les Pailles rompues, estudaremos as estratégias vernianas para tentativa de se manter, portanto, no campo literário. Para tanto, utilizaremos os conceitos de posicionamento e cenografia enunciativa do texto literário extraídos dos trabalhos de Dominique Maingueneau. Os estudos de Liliane Louvel que versam sobre os marcadores de picturalidade nos permitirão orientar essa parte do trabalho em direção a um diálogo intersemiótico entre literatura e pintura. O texto La Guimard não é a primeira comédia em prosa de Jules Verne. Abd’Allah já havia sido escrita, em 1849. A intriga de La Guimard gira em torno da relação que existiu entre o pintor Jacques-Louis David (1748-1825) e Marie-Madeleine Guimard (1743-1816), célebre dançarina da Ópera de Paris, a partir de 1762. Patrick Berthier escreve, na breve explicação que acompanha a publicação dessa peça no já citado Théâtre inédit, que a peça se situa no ano em que David ganha finalmente o prêmio de Roma, depois de ter tentado quatro vezes. Pela legitimação que o prêmio lhe conferiu, JacquesLouis David retorna a Paris e é encarregado pela Senhora Guimard de terminar a decoração de um cômodo de sua casa, iniciada e abandonada por Fragonard (1732-1806) em 1775. Satisfeita com o resultado, a Senhora Guimard encomenda um retrato seu a David146 (ver 6.3.2). Jules Verne inscreve a peça nessa cenografia. Na cronografia em que a ação se desenrola, a Srª Guimard, com trinta e dois anos, é uma dançarina de balé da Comédie Française desde 1759, e David, ainda que tenha obtido o Prêmio de Roma, é pouco conhecido: está distante dez anos do seu primeiro triunfo – Le Serment des Horaces, obra neoclássica, exposta do Salão de 1785 (ver 6.3.3). 145 Observação da especialista Agnès Marcetteau sobre essas duas peças de Jules Verne. MARCETTEAU, Agnès. “Des aperçus nouveaux dans l’abyme du cœur. Œuvres dramatiques de Jules Verne conservées à la Bibliothèque Municipale de Nantes”. Revue Jules Verne – Le théâtre de jeunesse. Amiens : Éditions du Centre International Jules Verne, nº11, 1er semestre 2001, p. 27. 146 BERTHIER, Patrick. “Notice” In: VERNE, Jules. Théâtre inédit. Édition dirigée par Christian Robin. Paris: 2005, p. 571. 89 A peça tem dois atos divididos em trinta e quatro cenas para oito personagens: Jacques-Louis David, a Srª Guimard, Valentine, Rémy Sirésol, professor de dança de cinquenta anos de idade, Sr. Vergy, de quarenta anos, Sr. D’Abrecourt, quarenta e cinco anos, Chandas, 47 anos, e um tenente de polícia. Segundo a didascália, a peça tem como topografia o ateliê do pintor: Le théâtre représente un atelier de peinture de médiocre apparence. Des toiles appuyées au mur; un grand tableau tournant le dos au public ; un chevalet supportant un portrait de femme à demi terminé. Des chaises de paille, à droite, au 2e plan, une porte vitrée ouvrant sur un cabinet - porte au fond.147 A intriga dessa comédiaé relativamente simples: para que tenha seu retrato pintado, a Senhora Guimard visita, regularmente, o ateliê do pintor. Na época, David está apaixonado por Valentine, de quem Marie-Madeleine Guimard tem ciúmes. Tentando uma relação com David, a Srª Guimard usa Chandas e Abrecourt, rivais de David e adoradores de Guimard, como fantoches para conseguir o que deseja. A intriga se complica quando o Senhor Vergy, membro-chefe do júri do Instituto, desejando ajustar um casamento entre seu sobrinho e Valentine, torna-se aliado objetivo da Senhora Guimard contra o amor de David. Depois do intervalo que separa os dois atos, a Guimard parece afastar Valentine de David que é “sequestrado” e, mesmo assim, com um desfecho bastante inverossímil e pouco claro, ela mesma entrega Valentine ao pintor, contentando-se somente com o prazer que a arte de David lhe proporciona. Patrick Berthier afirma que não se conhecem precisamente as circunstâncias que permitiram Verne se interessar por tal tema.148 O que se pode afirmar é que Jules Verne está construindo sua carreira profissional dentro de um habitus romântico. Desde 1828, Alfred de Musset, escritor romântico que Jules Verne homenageará no romance Paris au XXe siècle, escreve uma peça em torno da famosa Marie-Anne de Camargo (1710-1770), bailarina da geração precedente. Embora não encenada, Verne pode ter lido a peça publicada em Contes d’Espagne et d’Italie (1829) ou na coleção Premières poésies (1840). A peça de Musset, além de trazer para a cena a história real de uma dançarina, primeiro ponto em comum com a peça de Verne, aborda o tema da angústia de uma mulher que viu a juventude passar e que se questiona sobre o seu poder de sedução. Quanto à Guimard, a personalidade ainda é evocada, mais tarde, por Théophile Gautier 147 148 VERNE, Jules. “La Guimard”, 2005, p. 575. BERTHIER, Patrick. “Notice” In: VERNE, 2005, p. 572. 90 quando publica crítica à ópera Le Dieu et la Bayadère no folhetim do jornal La Presse, em 1837. Discorrendo sobre a dançarina Louise Fitz James, Gauthier escreve: “ela é magra como um lagarto, como uma minhoca da seda, mais magra que a famosa Senhorita Guimard que vivia, no entanto, às custas do Senhor de Jarente;”149 evocada também por Balzac, quando escreve sobre a fictícia dançarina Claudine e sua pomposa vida parisiense: “Para encontrar analogias ao luxo que cintilava em sua casa, deve-se voltar aos belos dias de Guimard, de Sophie Arnould, de Duthé que devoraram fortunas principescas”.150 Escolhendo tratar no teatro da vida da Srª Guimard, Jules Verne se inscreve na linha daqueles que ilustram e alimentam a curiosidade do seu século por essas personalidades míticas. No entanto, deve-se prestar atenção que, nesta peça, a Guimard, mesmo sendo a personagem principal, divide o “estrelato” com David, por assim dizer, para quem o status de “artista” tem também importância. No início da peça, o leitor pode acreditar, em uma primeira leitura, que Valentine posa para um retrato que a representa. Compreende-se imediatamente que, na verdade, Valentine posa somente para o pintor retratar a atitude, os gestos e a disposição geral, mas que o retrato pintado é justamente aquele da Guimard. Aqui reside o motivo primeiro do ciúme de uma pela outra. Nessa primeira cena, discorrendo sobre a relação entre o amor e a arte, Jules Verne apresenta ainda sua variante sobre um tema já tratado por Musset a interferência entre a arte e o amor: David ama Valentine? Ou ele ama muito mais, como Valentine reclama, o resultado do trabalho dos seus pincéis e paletas? David Eh bien, mon amour est couleur d’outre-mer en ce moment. [...]As-tu donc oubliéque mon cerveau est loin de mon cœur, et, tandis que celui-là ravit à son essence le feu sacré qui doit animer cette toile insensible, dans l’autre, ton image adorée s’illumine d’une chaste clarté, comme une madone de Raphaël ; regarde dans mon cœur ma bien aimée, et tu t’y verras ressemblante, car le génie tenait les pinceaux de mon amour!151 No desenrolar da peça, nenhuma das duas mulheres, nem mesmo Valentine, que é comparada a uma madona de Rafael - pintor enaltecido pelaestética classicista -, se engana no que diz respeito à resposta dessa questão. A arte terá mais importância do que “Elle est maigre comme un lézard, comme un ver à soie, plus maigre que Mlle Guimard, qui vivait cependant sur une bonne fuille, la feuille de M. de Jarente.” GAUTIER, Théophile. “Feuilleton de La Presse”, 27 novembre 1837. Disponível em: http://gallica.bnf.fr/ark:/12148/bpt6k427220h.item 150 “Pour trouver des analogies au luxe qui scintillait chez elle, on doit remonter jusqu’aux beaux jours de Guimard, de Sophie Arnould, de Duthé qui dévorèrent des fortunes princières”. BALZAC, Honoré de. “Les Fantaises de Claudine”. Revue Parisienne, 25 août 1840. Disponível em: http://gallica.bnf.fr/ark:/12148/bpt6k1065498g.r=%22Revue%20parisienne%22 151 VERNE, 2005, p. 576. 149 91 o amor que David nutre por uma ou outra. Aos olhos do leitor/espectador, o desfechobastante fraco, em relação ao que foi construído ao longo da trama, se justifica porque Valentine apesar de gentil, jovem e sincera - aspectos que David parece valorizar em detrimento da astúcia apresentada pela Guimard, é ingênua e insignificante diante do retrato que o artista pintou. A discussão entre a relação arte e amor, lugar-comum da arte romântica, será retomada por Jules Verne no ano seguinte. Em 1851, Verne começa a escrever os versos para Léonard de Vinci que será intitulado, finalmente, Monna Lisa. Na peça, tendo concluído o famoso retrato da Senhora de Joconda, uma das questões que se apresenta ao pintor é a mesma que aparece em La Guimard: Leonardo gosta da modelo do seu quadro ou gosta mais ainda da sua própria arte? O desfecho da peça traz a resposta: mesmo que ele declare seu amor pela Joconda, seu valete lhe anuncia ter encontrado o modelo de Judas para concluir o trabalho da Última Ceia. O pintor se precipita em acompanhá-lo, abandonando a Sra Joconda. Em La Guimard, a reflexão sobre o tema não se estende. O texto é frívolo e lacunar em comparação aos versos de Monna Lisa. No entanto, o assunto esboçado nos permite conjecturar acerca de outras questões sobre arte, mas de ordem institucional, o que auxilia a compor a cenografia em que se inscreve a obra, sobretudo no que tange à submissão da pintura à Academia e ao sistema de mecenato ao qual os artistas se submetiam. Ora, em 1775, ano em que se desenrola a peça, Jacques-Louis David já havia sido premiado, em 1771, com o quadro Le combat de Mars contre Minerve (ver 3.6.4) obtendo o segundo lugar no Prêmio de Roma – premiação que designava o concurso das Academias reais do Antigo Regime e a pensão em Roma que permitia a jovens artistas se formarem na Itália. Na peça, em diálogo com Valentine, David discute sobre a possível submissão de um quadro152 aos membros do júri para uma nova tentativa de obter o primeiro lugar: David Et ton amour aussi, ma bien-aimée, ton amour ne m’abandonnera jamais; ton amour, le mien, toi et moi, nous irons tous quatre à Rome. Oh ! Rome!153 […] Valentine Bon, ne vous attristez pas! Et tâchez d’envoyer votre grand tableau au concours. [...] Cher David il faudra prendre votre courage à deux mains, Trata-se de Les Amours de Stratonice et d’Antiochus, exposto, atualmente, na École Nationale Supérieure des Beaux-Arts, em Paris. 153 VERNE, 2005, p. 577. 152 92 et visiter les membres du Jury. Vous avez négligé toutes vos connaissances, et il n’en est pas une qui vous reconnait désormais! Vous avez obtenu déjà le second prix il y a trois ans, c’est bon augure...154 No entanto, essa designação - o Prêmio de Roma, abarcando concurso e pensão em Roma, forjada no século XIX -, é imprópria para uso no Antigo Regime pois o sucesso nos concursos acadêmicos e a atribuição de uma pensão em Roma não estavam automaticamente relacionados.155 Era necessário lutar também pela busca de capital social junto ao rei Luís XVI. O contato com pessoas influentes poderia favorecer a obtenção desse favor real. Valentine, na peça, é a personagem-chave que encarnará a detenção desses capitais. Se ela encoraja David a submeter um novo quadro para o concurso alegando que o pintor já é “reconhecido” por seus pares à época, e, portanto, detentor de capital simbólico suficiente para novas tentativas, ela também mostrará que o campo artístico está submetido às coerções do campo econômico ainda longe de sua autonomização:156 Valentine Vous êtes parvenu à l’estime de vos amis! et ce n’est pas la moindre recompense du travail que de s’entendre applaudir par de ces mains que l’on peut serrer sans honte.157 Jules Verne, distante mais de cinquenta anos do século XVIII quando escreve essa peça, realiza a manutenção da discussão sobre a autonomia do campo artístico e confere à personagem Valentine o poder de fiar seu posicionamento a respeito do acúmulo dos capitais que julga necessários para que o artista obtenha sucesso e seja, definitivamente, reconhecido. Na passagem a seguir, notamos que os capitais social e econômico estão 154 VERNE, 2005, p. 577. Embora trate de um período sob o reinado de Louis Philippe, Isabelle Chave ressalta em seu artigo sobre a formação de artistas ganhadores do prêmio de Roma, a importância da busca de capital social junto ao rei. Cf. CHAVE, Isabelle. “Après le prix de Rome. La formation à l’Académie de France à Rome sous le directorat d’Horace Vernet (1829-1834), à travers sa correspondance.” In: Romantisme; Revue du dixneuvième siècle – Le Prix de Rome. 3e trim., Nº 153. Paris: Editions CDU-SEDES, 2011, p. 39. 156 Sobre a autonomia do campo artístico no século XIX complementamos a leitura em Arnold Hauser que vê o classicismo como o espaço contra o qual o moderno se insurge. Para o autor, o classicismo seria justamente o espaço que se academiza em definitivo durante o século XIX na França, cristaliza valores estéticos como a tendência ao monumental, a ligação direta ao poder do Estado, o “Grand Prix” de Roma, a devoção a Rafael, a Poussin e à Antiguidade Clássica, a paixão pelo naturalismo e pela perspectiva renascentista,a normalização hierarquizada de temas e formas, o controle máximo do mercado e a capacidade interna, quase absoluta de consagração ou exclusão, enfim, tudo o que servia bem ao controle do Estado e ao classicismo distanciaria o campo artístico da sua autonomização. Cf. HAUSER, Arnold. História social da arte e da literatura. São Paulo: Martins Fontes, 2000, p. 631-646. 157 VERNE, 2005, p. 578. 155 93 relacionados e podem ser trunfos para a luta de David desejoso em ser efetivamente reconhecido no campo artístico: Valentine [...] ma famille est riche et puissante ; elle jouit d’un crédit invincible, dont vous auriez profité peut-être. Faut-il donc que mon éloignement d’elle et ma présence ici vous ait non seulement jeté dans les tourments d’une misère prochaine, mais privé de protections assurées!158 A questão do investimento dos capitais social e econômico e sua relação com a autonomia do campo artístico ainda é retomada na passagem em que Vergy, aquele que deseja arranjar um casamento entre seu sobrinho e Valentine, assume que deverá punir David, aprisionando-o na Bastilha e subtraindo a “glória” adquirida com o segundo lugar no Prêmio de Roma, em 1771. Em um anacronismo, Jules Verne caracteriza o personagem de Vergy como o chefe dos membros do júri do “Instituto”. No entanto, a instituição só é criada no ano de 1795, após a Revolução, e não em 1775, ano em que a trama se desenrola: Vergy Jugez-en! J’ai des amis hauts placés, je suis et j’obtiens ce que je veux! Pour me venger de ce peintre, je me suis fait nouveau chef du jury de l’Institut, et pour l’emprisonner j’ai obtenu cet ordre! Je punirai ainsi sa gloire et lui!159 Ainda que de maneira incipiente, Verne levanta outra questão sobre a arte que faz parte das discussões daquele momento da sua trajetória: o enaltecimento do que é nobre em pintura e o lugar que os gêneros ocupam em uma possível hierarquia. Para a produtividade desta pesquisa em que colhemos dados sobre o posicionamento de Jules Verne afim de compreendermos o seu projeto estético, a passagem que segue é, portanto, exemplar. Não incorrendo em um anacronismo, Verne enobrece os fatos do passado e posiciona o gênero retrato em lugar de inferioridade em relação aos outros gêneros na hierarquia dos gêneros da pintura. Ambos os posicionamentos vão em favor da manutenção de uma tradição e estão em harmonia com o momento em que a peça se desenrola. No entanto, por falta de desenvolvimento por parte do escritor e de um tom mais ou menos irônico nas passagens, não pudemos afirmar se, nesse momento, Verne sai em defesa desses modelos tradicionais ou os critica: 158 159 VERNE, 2005, p. 578. VERNE, 2005, p. 591. 94 David Pourquoi donc les beautés de la nature ont-elles impressionné mon esprit, puisque je ne puis les réproduire! pourquoi les hauts faits de l’antiquité ravissent-ils mon âme entière, puisque ma main ne peut les retracer aux yeux modernes, et ressusciter après deux mille ans les héros des temps anciens! [...] Est-ce le bonheur, est-ce le bien-être ? est-ce la vie ? Eh non ! la voilà ! peindre des portraits, et se faire payer au plus haut prix ! – fatalité!160 A tentativa de trazer para a cena de 1850 o pintor Jacques-Louis David e as discussões institucionais acerca da arte anteriores à Revolução Francesa indicariam, antes de tudo, um posicionamento indeciso pela atualização e a manutenção de valores românticos. O texto de Monna Lisa que analisaremos adiante clarificará, talvez, o posicionamento verniano assim como aqueles explicitados tanto na crítica de arte do escritor, quanto nos seus romances. Sobre a questão do retrato em Jules Verne e a importância desse gênero em pintura e em literatura, remetemos à nossa Dissertação de Mestrado defendida no ano de 2010.161 Na pesquisa, fizemos um estudo contrastivo dos retratos literários de brancos e “selvagens” nos romances Cinq semaines en ballon (1863), Les enfants du capitaine Grant (1867) e Le Chancellor (1875), apresentando as afinidades entre os romances de Jules Verne e as teorias de Lavater, Gall, Gobineau, Darwin e textos e iconografia veiculados no magazine Le Tour du monde, destacando as relações intertextuais e interdiscursivas entre o discurso literário e o científico. Destinamos um capítulo daquela pesquisa a fazer um histórico das interfaces pictural e literária do retrato e a possível interseção entre ambas. Em linhas gerais, na obra de Jules Verne, o gênero retrato, em pintura ou em literatura, terá importância fundamental, pois é usado para veicular construções determinadas por um habitus que se desejava perpetuar. Analisando La Guimard, notamos que o interesse de Jules Verne pelo retrato, na sua interface pictural, se manifesta muito tempo antes de se dedicar à escrita romanesca. Isso é reiterado pelo fato de Verne realizar a manutenção do uso temático do retrato enquanto gênero em pintura no texto Monna Lisa, imediatamente seguinte a La Guimard. Enfim, na sua obra, o gênero será um meio através do qual se transmitem ideias que se 160 VERNE, 2005, p. 578. SANTOS, Edmar Guirra dos. Retratos literários: o discurso científico na obra de Jules Verne. Rio de Janeiro: UFRJ, Faculdade de Letras, 2010. Dissertação de Mestrado apresentada do Programa de PósGraduação em Letras Neolatinas da UFRJ na opção Literaturas de Língua Francesa. Orientação do Professor Dr. Pedro Paulo Garcia Ferreira Catharina. 161 95 desejam perpetuar ou uma via temático-discursiva tomada do chavão romântico que permite, entre outros, que o leitor verifique o posicionamento do escritor. Quando examinamos as tentativas de posicionamento no percurso estético de Jules Verne e, mais particularmente, o texto de Monna Lisa, escrito em 1851, observamos a retomada das discussões iniciadas com o texto La Guimard. Ambientada em um ateliê de pintor naFlorença do Renascimento, trazendo para a cena Leonardo da Vinci, Jules Verne extrai o tema de Monna Lisa das peças André del Sarto (1833) e Lorenzaccio (1834), de Alfred de Musset. Na perspectiva discursiva que pretendemos aqui, trata-se de afirmar que Verne funda a cenografia de sua peça em um cenário preexistente, novamente, aquele explorado por Musset. A adoção de uma estrutura dramática e temática semelhante àquela do drama romântico pode ser lida como um investimento do autor em um gênero literário de prestígio à época e, em consequência disso, como a tentativa de legitimação do seu discurso face ao público francês. Essas reflexões nos encaminham para duas questões: qual é a relação entre a escolha de Jules Verne, que prefere inscrever a cenografia de sua obra na Florença do século XVI, e o habitus literário da França em 1850? Qual é a relação entre essa escolha e a tentativa de Verne de fazer parte do campo literário? Essa comédia de costumes, usada, entre outros, para uma sátira ou crítica social, “no gênero das peças de Musset”,162 recebeu primeiramente o título de Léonard de Vinci, como Jules Verne diz em carta a seu pai que o reprova por não escrever mais em versos: “[...] mais j’en fais toujours et beaucoup et dans ce moment mon Léonard de Vinci m’occupe tout entier”.163 Na verdade, Verne escrevia outras peças paralelamente e, ainda, alguns artigos para a revista Musée des familles.164 Somente em 1874, já com o título definitivo Monna Lisa, a peça foi lida pelo seu autor na Academia de Amiens, cidade de residência de Jules Verne e, até a publicação no Cahier L’Herne, em 1974, a peça permanece inédita, nunca tendo sido encenada. Monna Lisa é uma comédia que se passa na Itália cujo tema é o amor de Leonardo da Vinci e da senhora de Joconda. A peça tem um ato que é dividido em vinte cenas para cinco personagens: o pintor Leonardo da Vinci; Monalisa, a modelo e esposa do senhor de Joconde; Joconde, elegante senhor da Florença; Pazzeta, dama de companhia de 162 Cf. TOUTTAIN, 1974, p. 23. VERNE 1988, p. 310. 164 Trata-se dos artigos Martin Paz e Les Châteaux en Californie e da peça Pierre qui roule n’amasse pas mousse. 163 96 Monalisa; e Bambinello, aprendiz de pintor cujo mestre é Leonardo da Vinci. Segundo a didascália, a peça se passa em Florença e o cenário representa o ateliê de Leonardo: Le théâtre représente l’atelier de Léonard de Vinci, luxe merveilleux : entassement pittoresque de choses d’art, armes, instruments de musique, statuettes, tableaux, cartes géographiques, livres et tapisseries. Au fond, d’une fenêtre gothique à vitraux de couleur, la vue donne sur d’immenses jardins. Portes au dernier plan à droite et à gauche. Sur un chevalet repose le fameux tableau de la Joconde que l’on peut admirer au Musée du Louvre.165 Fazemos aqui um breve parêntese para tratar da menção ao Louvre enquanto espaço museal tal como citado por Verne na didascália. Para a produtividade da pesquisa essa menção é marca de um posicionamento. No momento em que Jules Verne inicia a escrita da peça (1851), o Louvre é um Museu Imperial. Até 1848, sua manutenção dependia da “Lista civil” de Luís Felipe - documento que designava a alocação e a doação financeira da qual dispunha o rei. Depois do golpe de Estado, em dezembro de 1851, e a restauração do Império, o Louvre passou a depender da Lista civil do imperador Napoleão III. A partir de 1851, o Louvre é administrado por um único homem, Alfred-Émilien de Nieuwerkerke, superintendente dos museus imperiais, nomeado por Napoleão III, personalidade que será retomada por Jules Verne nos seus artigos críticos sobre o Salão de 1857. Ele dirige o Louvre ainda que ministérios e ministros tutelares se modifiquem.166 Segunto Bertinet, esse fato gerou críticas concernentes ao estatuto das obras conservadas no Louvre, inclusive o retrato da Monalisa, na medida em que pertenciam à lista civil da mesma maneira que as obras localizadas na residência imperial. Ora, nesse momento, o Louvre é, ao mesmo tempo, museu e residência imperial. A possibilidade de confusão entre as coleções incomodava, de um ponto de vista ético, porque as obras poderiam ser deslocadas das salas do museu (ou dos museus imperiais) para os aposentos do Imperador para sua apreciação. Temia-se que, com essa possibilidade de mudança, eventuais apropriações das obras pudessem acontecer. Somente com os artigos 6 e 7 do senatusconsulte de dezembro de 1852167, será determinado que as obras presentes nas residências imperiais dependem da lista civil e pertencem à doação da coroa, o que excluía qualquer possibilidade de apropriação das obras por parte do Imperador. Sendo inalienáveis e imprescritíveis, portanto, Napoleão poderia gozar das obras em seus aposentos, mas não 165 TOUTTAIN, 1974, (didascalie), p. 24. BERTINET, Arnaud. Les musées de Napoléon III. Une institution pour les arts (1849-1872). Paris : Mare et Martin, 2015, p. 33. 167 Cf. BERTINET, 2015, p. 47. 166 97 como bens pessoais. As obras não lhe pertenciam. Nessa didascália, quando Verne alude à Monalisa (ver 6.3.5), que pode ser admirada no espaço “Museu do Louvre”, estaria se posicionando a favor de uma exposição pública no espaço instituído como museu. Por extensão, esse posicionamento indicaria uma possível crítica ao império de Napoleão, como veremos, também, ao analisar a crítica de arte do Salão de 1857. O texto dramático Monna Lisa que Verne escreve em 1851 apresenta ainda outras marcas de posicionamento no que diz respeito a questões artísticas. A ação da peça se desenvolve a partir de um encontro secreto entre Leonardo e Monalisa. Ela, desejosa em encontrá-lo antes de posar para o quadro, a fim de confessar seu amor por ele, pede a Pazzetta, sua dama de companhia, para avisá-lo de suas intenções. Leonardo se mostra muito ocupado com seus afazeres artísticos, sobretudo com o retrato inacabado de Monalisa e com seu modelo de Judas, ainda não encontrado, para o afresco da Última Ceia (ver 6.3.6). O senhor Joconde, por sua vez, percebendo mudanças físicas no rosto de Monalisa - o que poderia interferir na qualidade do quadro -, e, se dando conta da possível paixão entre o pintor e sua esposa, deseja que o retrato seja terminado o quanto antes. No entanto, crendo na impossível aliança entre a arte e o amor, ele decide ir ver esse encontro. No momento da sessão de pose para o quadro, Leonardo e Monalisa falam de amor enquanto ele pinta seu quadro, até o momento em que o pintor vê o bracelete que a modelo usa. Ele se ajoelha para apreciá-lo, o que a deixa enfurecida. Nessa ocasião, ela suplica a atenção de Leonardo, que mostra amá-la tanto quanto o camafeu. Ao final, com o retrato concluído, o senhor Joconde pede a um valete para levar o quadro; Monalisa, enraivecida com Leonardo por ter terminado a pintura de seu retrato,exige a companhia do marido para ir embora do ateliê; Leonardo, depois de ter encontrado seu modelo com ares de bandido para representar Judas, deixa Florença e parte para Milão, a fim de terminar o afresco da Última Ceia. O amor que infantiliza, o amor sublime que se torna patético em alguns momentos, é o sentimento-tema da peça, comparadocom a arte e com o artista, como exploraremos a seguir. Isto é, o desenvolvimento da peça vem colocar a arte a serviço do amor e “unir l’amour de l’art et l’art de l’amour”,168 para retomar a passagem com o qual Monalisa defende a sensibilidade de Leonardo junto a seu marido. O senhor de Joconde, na verdade, sustenta que a mulher “au lieu d’être un objet d’amour pour Léonard, / [...] n’est plus 168 VERNE in TOUTTAIN, 1974, scène 6, p. 35. 98 qu’un objet d’art”.169Crendo nessa certeza, objetivando trazer sua esposa de volta para casa, ele se impõe uma prova cruel, mas decisiva: alimentar a paixão da modelo pelo pintor, a fim de levar Leonardo a revelar suas carências amorosas. Assim, a ação de Monna Lisa opõe a união às ilusões do ideal da arte. Monalisa, personagem epônima, vê no pintor a encarnação de um sentimento de amor perfeito, liberto de exigências carnais: Il n’a rien de commun : l’amour d’un grand artiste Avec de vains plaisirs, sans lequel il existe ! Il se sent, se comprend et ne s’explique pas. Il n’est donc pas soumis à l’erreur ici-bas ; Son attrait est divin, sa durée infinie : L’artiste est plus qu’un homme ! Il aime avec génie !170 Provocado pelo senhor de Joconde, Leonardo define a complementaridade da arte e do amor como poder criador legado por Deus a suas criaturas: L’amour inspire à l’art ses oeuvres poétiques, Et l’art donne à l’amour cet idéal côté Qui le relève un peu de la vulgarité, [...]. Aussi, je le soutiens contre votre système, L’art complète l’amour, il l’embellit, et même Une femme d’esprit doit dans leur union Trouver le dernier mot de toute passion.171 Por parte do pintor, o amálgama com a arte libera o amor da “vulgaridade” da carne. A arte tem o efeito de idealizar o amor. No entanto, Monalisa se vê ultrajada, não vendo correspondido seu amor carnal. Com efeito, quando Leonardo, declarando seu amor, descobre no braço de Monalisa o bracelete que o senhor de Joconde havia dado de presente à sua esposa, seu espírito de esteta atravessa o sentimento que tem, o que percebemos nas palavras de Monalisa: “Hélas! d’amour et d’art incroyable mélange ! / Sortira-t-il enfin de cette extase étrange !”172 As palavras de amor dão espaço às reprovações e Leonardo lamenta os desejos ordinários de sua modelo: “[...] mais il vous plaît d’être aimée ! / Comme une femme!”173 Apesar das ilusões da mulher e das manifestações do pintor, a arte e o amor são apresentados de maneira inconciliável como na peça André del Sarto, de Alfred de Musset, que também é ambientada em Florença. Em Monna Lisa, a mulher é apresentada de maneira mais ligada à carne do que pensa, e o artista, ainda menos do que ele diz. De 169 VERNE in TOUTTAIN, 1974, scène 6, p. 35. VERNE in TOUTTAIN, 1974, scène 5, p. 31. 171 VERNE in TOUTTAIN, 1974, scène 9, p. 42. 172 VERNE in TOUTTAIN, 1974, scène 15, p. 50. 173 VERNE in TOUTTAIN, 1974, scène 15, p. 51. 170 99 qualquer forma, ele está condenado a sempre se desapontar com as mulheres reais, como diz Leonardo na passagem: Ah ! Laure et Béatrix! Votre exemple a tenté Plus d’une fois déjà quelque belle impudente Qui ne savait, hélas ! Que si Pétrarque et Dante N’ont cessé de vous plaire et de tant vous chanter C’est que vous aviez soin de ne pas exister !174 A conclusão lógica dessa relação entre arte e amor apresentada na peça, sua moral, por assim dizer, é a imagem de um artista que só pode amar uma mulher ideal, uma mulher de sonhos, aquela que tenha o “soin de ne pas exister”. Se, por um lado, os fracassos no amor se justificam pelo gosto do pintor pela arte, por outro, a arte protege o pintor dos avatares do amor. Assim, paradoxalmente, Monalisa, retornando ao lar, dá razão a Joconde para melhor preservar o artista Leonardo de qualquer decepção amorosa. A presença do artista pintor Leonardo da Vinci, a imagem que se apresenta da arte e do artistasão temas nucleares na peça. Segundo a didascália, a cena é situada na época da pintura do retrato, entre os anos 1503 e 1506. Jules Verne coloca na cena a figura de um “homem completo”, um humanista, cujas qualidades o fazem o protótipo do homem do Renascimento. Por diversas vezes, Vernedestacao caráter humanista de Leonardo, pintor excessivamente ocupado. A fim de marcar o encontro entre Monalisa e o pintor, Pazzetta o procura, mas só encontra seu aluno Bambinello que anuncia: Bambinello Peut-être! Pazzetta ! Qui peut dire où se trouve mon maître, Où demeure l’éclair, où couche l’ouragan ! Ah ! quel cerveau brûlé, quel être extravagant, Qui toujours affairé ne peut tenir en place, Et ne se laisse pas apercevoir de face ![...].175 O caráter humanista que pretendemos ressaltar aqui provém do pensamento filosófico existente durante o período de Renascimento europeu no século XVI e consiste em valorizar o homem, em colocá-lo no centro do universo. Nessa perspectiva, o homem está de posse de suas capacidades intelectuais potencialmente ilimitadas. Na peça, as características desse homem em busca do saber e do domínio de diversas disciplinas necessárias ao bom uso dessas faculdades são mais claras na passagem em que Bambinello, em diálogo com Pazzetta, descreve as atividades de seu mestre: 174 175 VERNE in TOUTTAIN, 1974, scène 20, p. 55. VERNE in TOUTTAIN, 1974, scène 2, p. 25. 100 Bambinello En secret ! – Je comprends, Pazzetta ! Qu’elle vienne, Car, à moins qu’il ne soit sur la méridienne A contempler aux Cieux des prodiges nouveaux Ou la lyre à la main, à vaincre ses rivaux, Ou même à soutenir une thèse publique Touchant la médecine et le droit canonique, Elle peut y compter, Léonard de Vinci, S’il n’est pas autre part, sera peut-être ici. Pazzetta Bambinello, ton maître est peintre, j’imagine ? Bambinello Ma foi, c’est un docteur très fort en médecine. Pazzetta C’est un peintre avant tout ! Bambinello Des plus originaux, Qui construit des palais et perce des canaux !176 Enfocando o recorte que propomos para a Tese, observando esse momento da carreira de Verne, questionamo-nos se a figura do pintor não tem uma metafunção: nesse momento de sua trajetória no campo, essa representação é a maneira pela qual Jules Verne vê um verdadeiro artista. E se nos estendermos mais e considerarmos sua carreira após 1863, quando assina contrato com o editor Hetzel para a realização das Viagens extraordinárias, teríamos ainda outras indagações. Aproximando-nos da Florença contemporânea deLeonardo, observaremos que a imensa cultura científica é o fundamento de todas as pesquisas desse artista. Além da pintura, muito se sabe sobre os estudos incisivos de Da Vinci sobre as ciências da sua época, a arquitetura, o corpo humano, as máquinas projetadas, o que nos permite identificá-lo como um humanista. Podemos, talvez, afirmar que esse é o modelo de artista valorizado por Jules Verne, nesse momento de sua trajetória. Ainda que conscientes da distância cronológica entre Jules Verne escritor para as artes do espetáculo e escritor de romances, permitimo-nos aproximar um e outro no que diz respeito às características humanistas valorizadas: ao longo de sua carreira romanesca, Jules Verne se interessará pelas descobertas científicas e tecnológicas de sua época. O contrato que o restringirá à produção das Viagens 176 VERNE in TOUTTAIN, 1974, scène 2, p. 25. 101 extraordinárias prevê que ele reúna e realize o resumo de todos os conhecimentos que as ciências produziram na sua época e os transforme em literatura. No “Avertissement de l’éditeur” (ver 6.2.3) do Magasin d’Éducation et de Récréation, lemos o objetivo de sua obra: “Seu objetivo é, com efeito, resumir todos os conhecimentos geográficos, físicos, astronômicos, reunidos pela ciência moderna, e refazer, sob a forma sedutora e pitoresca que lhe é própria, a história do universo”.177 Ao longo de sua carreira romanesca, Jules Verne cumprirá com esse objetivo. Ele tentará aproximar a arte da ciência e a ciência da arte o que, em resumo, caracterizará a visão enciclopédica (e por que não humanista?) de sua parte e da parte do seu editor que objetivava, com o magazine, contribuir para a educação da juventude francesa. Além da presença do pintor Leonardo da Vinci, outras referências picturais podem ser observadas nesse texto dramático. Elas reiteram a discussão sobre a arte e o artista e auxiliam a evidenciar a picturalidade da peça. Seguindo as categorizações de Liliane Louvel (1997), resumimos e afirmamos aqui que a pintura pode se fazer presente em uma obra literária de três maneiras: pela descrição de quadros célebres, pela descrição de quadros fictícios e pela descrição com valor pictural. Como tratamos em 2.3, Louvel afirma que quando o quadro pertence ao mundo real, é possível observar a simetria ou a dissimetria entre a obra e sua “tradução” literária através do que ela nomeia por “translação pictural”, ou seja, a passagem de um significante pictural para um significante linguístico. Nos mesmos estudos, Louvel também tenta dar conta dos graus de picturalidade de uma passagem literária quando desenvolve os indícios que intitula “marcadores de picturalidade”. Testando a produtividade de seus conceitos nos nossos estudos, destacamos de imediato a presença do personagem pintor Leonardo da Vinci na peça Monna Lisa, e ainda a do pintor Jacques-Louis David, no texto La Guimard, que, segundo a pesquisadora das relações entre texto e imagem, evidencia a qualidade pictural de um texto. A didascália de ambas as peças que citamos aqui, indicativas do aparato cênico que o autor das peças define, são marcadas inicialmente pela modalização indicada pelo adjetivo em “luxe merveilleux” para descrever o espaço de Monna Lisa e “atelier de HETZEL, Jules. “Avertissement de l’éditeur” In: Magasin d’éducation et de récréation. Tome II, 1867, p. 1-2. 177 102 peinture de medíocre apparence” para a Guimard; as duas modalizações marcam o ponto de vista e, portanto, a subjetividade daquele que informa. No que tange ao espaço, a informação “L’atelier du peintre” ou “Un atelier de peinture” das didascálias, além de fixar o enquadramento da cena, anunciam uma descrição: para Monna Lisa, um “entassement d’objets d’art”: armas, instrumentos de música, estatuetas, quadros, mapas, livros e tapetes; um vitral gótico ilumina toda a cena e o retrato de Monalisa que repousa sobre um cavalete. Para a Guimard, um ambiente menos suntuoso e mais escuro é descrito: telas escoradas na parede, um grande quadro de costas para o público, um cavalete com um retrato feminino meio terminado, cadeiras de palha e, em terceiro plano, uma única porta de vidro dando para um gabinete. As referências picturais em La Guimard só irão se reforçar pela manutenção do nome de David ao longo da peça, reiterada, esporadicamente, pelo uso das palavras “quadros”, “pincel” ou “pinceis”, e a alusão às questões institucionais como o “Prêmio de Roma”, “membros do júri” ou “Instituto”. Para esta peça, Jules Verne não desenvolve o argumento pictural. Ainda que com a presença de um personagem pintor e o uso de léxico especializado com objetos caros à pintura como quadros e pincéis, Verne parece dedicar-se mais às discussões institucionais. Caso diferente ocorre na peça Monna Lisa, texto mais rico em elementos picturais e, portanto, mais saturado picturalmente, nos termos de Liliane Louvel. Para a peça Monna Lisa, o escritor, além da descrição que situa o público no ateliê de um pintor humanista, ambienta a comédia em Florença - cidade cenário de obras de artistas do Renascimento como Michelangelo, Rafael, Boticelli, além do próprio Leonardo da Vinci -, sendotambém mais um indício da picturalidade da peça. A menção a Florença é igualmente uma referência metapictural, já que a cidade representa uma célebreescola italiana em pintura. Essa escola, da qual Leonardo da Vinci fazia parte, defendia a primazia do desenho (dessin) que rivalizava com a escola de Veneza, aquela que defendia a cor (coloris) acusada de ser responsável pela corrupção das artes visuais. Jacqueline Lichtenstein observa que o debate entre os partidários do desenho e aqueles da cor renasceria no século de Louis le Grand (Luís XV): O debate entre os partidários do desenho e aqueles da cor, que tinha ocupado a cena italiana durante longo tempo na época do Renascimento ia renascer na França um século mais tarde, no entanto, sob novas formas, em grande parte determinadas pelas condições políticas e institucionais do século de Luís o Grande.178 “Le débat entre les partisans du dessin et ceux du coloris, qui avait longtemps occupé la scène italienne à l’époque de la Renaissance, allait renaître en France un siècle plus tard mais sous des formes nouvelles 178 103 A pesquisadora ressalta que, na França, a primazia do desenho era defendida por uma instituição a serviço da monarquia e que a cor era vista como um “desvio estético”, um atentado político, já que o desenho era, desde Aristóteles, a maneira privilegiada para dar forma narrativa à representação, ou seja, para definir um quadro como uma história. O que une a pintura ao discurso passa pelo fundamento de uma autoridade real cujos representantes sediam a Academia,179 daí o status atribuído à pintura de história, cujo privilégio corresponde ao mesmo tempo aos interesses do rei, do discurso e do desenho. Por parte do autor de Monna Lisa, vemos certa atenção em apresentar um Leonardo mais preocupado com o desenho do que com a cor. No início da peça, não é Leonardo que prepara as cores para o retrato de Monalisa, mas sim seu aluno, Bambinello, que reclama de realizar essa tarefa: (Bambinello frotte la palette de son maître) Que le sort à chacun donne ici-bas un rôle, Je n’y vois aucun mal ; mais il me semble drôle Que l’un passe sa vie à gratter les couleurs Dont l’autre peint les dieux, les femmes et les fleurs, Et livre sa jeunesse à cette tâche ingrate !... Et dire que des deux je suis celui qui gratte !180 Enquanto Bambinello prepara a cores, Leonardo se preocupa com a estrutura do retrato. Nota-se isso em diversas passagens ao longo da peça: “La main gauche n’a pas de grâce dans sa pose, / Et ce n’est pas ainsi que Dieu la façonna”.181Enquanto dura a sessão de pose de Monalisa, o pintor vê passar seu modelo de Judas para o afresco da Última Ceia, sai em busca dele e volta com um esboço na mão: “[...] avec une esquisse à la main: Je le tiens mon Judas!... L’oeil est faux, insolent!”182 Além de referência metapictural, a presença do pintor e seu aprendiz compõe a cenografia do texto, de que fala o linguista Dominique Maingueneau. Ao trazer Leonardo da Vinci e Bambinello, seu aprendiz, para a cena em 1851, inscritos na Florença do século XVI, Jules Verne retoma a querela italiana entre a cor e o desenho e se posiciona na discussão que lhe é contemporânea sobre a autonomia do campo artístico: o autor ridiculariza a hierarquia “mestre/aprendiz” e as coerções que a Academia Real de Pintura e Escultura realizava no mercado de produções artísticas. Pelo tom irônico que dá à en grandes parties déterminées par les conditions politiques et institutionnelles du siècle de Louis le Grand.” LICHTENSTEIN, Jacqueline. La couleur éloquente. Paris : Flammarion, 1999, p. 161. 179 Cf. LICHTENSTEIN, 1999, p. 163. 180 VERNE in TOUTTAIN, 1974, scène 1, p. 24. 181 VERNE in TOUTTAIN, 1974, scène 4, p. 28. 182 VERNE in TOUTTAIN, 1974, scène 20, p. 54. 104 passagem do personagem Bambinello citada acima, Verne se une àqueles que seguem a vertente de ataque ao modelo acadêmico, pregando uma prática centrada na originalidade e independência individuais dos artistas, além de usar da ironia para caracterizar o trabalho menos nobre, por assim dizer, de Bambinello, denunciando o aspecto negativo que existe na relação entre mestre e aprendiz cara ao modelo tradicional. A evocação ao quadro Monalisa (1503-1506) (ver 6.3.5) e o afresco de A Última Ceia (1495-1498) (ver 3.3.6) é uma dupla referência metapictural pois trata-se não só de uma referência a quadros conhecidos, mas também de uma referência implícita aos gêneros retrato e pintura de história, o primeiro ocupando um lugar inferior na hierarquia entre os gêneros da pintura, e o segundo um lugar de destaque por poder cumular todos os outros gêneros nele. No que diz respeito a quadros presentes no texto, citamos ainda a passagem em que Leonardo evoca Zeuxis (464 a.c. – 398 a.c): Peintres Grecs! Il faudrait avoir votre génie ! On dit que les oiseaux d’Athènes ont jadis Becqueté les raisins au tableau de Xeuxis ; [...].183 Zeuxis é o célebre pintor grego de um quadro cuja anedota é conhecida: por ocasião de uma competição com o artista Parrhasius, Zeuxis pinta uvas com tanta realidade que pássaros vinham bicá-las, enquanto o outro pintor representa uma pequena cortina pintada tão realisticamente que, ao mostrar a Zeuxis, este pede-lhe que retire a cortina para que veja o quadro. Reconhecendo sua ilusão, Zeuxis se dá por vencido, dizendo que ele conseguiu enganar pássaros, mas que Parrhasius conseguiu iludir os olhos de um homem por ter pintado de maneira tão real um objeto. Essa alusão permite a Verne se posicionar em relação ao que é valorizado em um quadro, nesse caso, o grau de realidade do que foi representado. Ao longo da peça, temos ainda uma profusão de termos caros à pintura. Esses indícios são, como propõe Liliane Louvel, marcadores de picturalidade de um texto. Entre os nomes, encontramos: “palette”, “modèle”, “séance de pose”, “tableau”, “portrait”, “peintre”, “chevalet”, “esquisse” e “pinceau” ; e ainda verbos que aludem ao ato de pintar: “frotter (la palette)” e “gratter (les couleurs)”. Na comédia, há ainda uma última referência metapictural. No momento em que Leonardo retoma a pintura do quadro de Monalisa, ele convoca cantores e músicos e, pede à sua modelo para tomar a postura habitual para o retrato e sentar-se no meio desse 183 VERNE in TOUTTAIN, 1974, scène 4, p. 29. 105 grupo. Essa “imagem” retoma aquela que diversos pesquisadores de Leonardo da Vinci mencionam em suas biografias sobre o pintor. Sylvie Béguin afirma que, como Monalisa era bela, o pintor mantinha um ambiente de alegria no seu ateliê quando a pintava para evitar o ar de melancolia frequentemente presente nos retratos: “Como a Monalisa era muito bela, enquanto Da Vinci a pintava, havia sempre cantores, músicos e bufões perto dela, a fim de a manter em calma alegria e de evitar o efeito de abatimento e de melancolia quase inevitável nos retratos.”184 Na peça, Jules Verne contribui para a reafirmação da anedota e se vale dela para citar, entre parênteses, como uma didascália, o quadro Léonard de Vinci peint Monna Lisa (ver 3.6.7), de Aimée Brune Pagès que data de 1845: Joconde (avec vivacité) Prenez vos pinceaux... Léonard (à Monna Lisa) Dès que vous le voudrez : Car je me sens heureux ! J’ai la main animée ! (il fait asseoir Monna Lisa au milieu des chanteurs et des musiciens comme dans le tableau de Brune Pagès) Veuillez prendre à présent la pose accoutumée Au milieu de ce groupe, avec moins d’embarras. Et laisser s’arrondir plus mollement vos bras ! (Il va à son chevalet et commence à peindre).185 O quadro evoca uma cena romântica do ateliê do pintor com todas as referências citadas na didascália inicial e, portanto, poderia ser lido como o cenário original para essa peça. Observa-se neste último indício de picturalidade do texto a presença de uma mise-en-abyme, ou seja, a representação de um quadro dentro de outro quadro: o retrato de Monalisa no quadro de Brune Pagès. Reconhecemos também a cena descrita acima: para que a modelo não se canse e se mantenha bonita, Leonardo chama músicos e cantores para distraí-la. A música cantada na cena é anunciada por parênteses depois dos quais o autor menciona: (Musique) / (Un chanteur) / (Villanelle).186 A inclusão dessa música na cena permite ao autor ilustrar a associação entre literatura, pintura e a música em uma cena do 184 BÉGUIN, Sylvie. Léonard de Vinci au Louvre. Paris: Éditions de la Réunion des musées nationaux, 1983, p. 74. 185 VERNE in TOUTTAIN, 1974, scène 4, p. 46. 186 VERNE in TOUTTAIN, 1974, scène 14, p. 46-47. 106 Renascimento italiano (como no quadro de Pagès), idealizada pelos autores românticos. Como tratou Luiz Paulo dos Santos Monteiro na sua dissertação de mestrado, “o drama romântico deve ser a expressão de uma arte completa”.187Além disso, trazer para a cena de 1850 o retrato da Monalisa em uma peça em versos, equivaleria tentar filiação, tardiamente nesse caso, ao grupo romântico que valorizava não só a forma, como a perspectiva renascentista, alimentando, assim, o clichê fundado no Romantismo em torno do retrato da Monalisa. Parece-nos que Jules Verne acompanhou bastante fielmente as concepções de gênero inscritas no campo literário francês da época da escrita de Monna Lisa. Sob o modo de um possível oportunismo literário, escrever essa comédia de costumes teria permitido ao jovem Verne realizar a tentativa de legitimar seu discurso teatral pelo viés romântico, o que não foi levado a cabo pela encenação, já que o texto nunca foi encenado ou publicado. Quanto aos posicionamentos de Verne que contribuiriam para a discussão da autonomização do campo artístico, não nos parece que o escritor parta nitidamente em defesa de uma autonomia do campo. No entanto, parece apontar e criticar, mesmo que de maneira incipiente, o sistema ao qual o campo artístico se submete. Constatamos que Verne aponta os aspectos negativos da submissão do campo artístico ao campo econômico e os abusos do Estado em La Guimard, por exemplo, e com o texto Monna Lisa, ataca o modelo acadêmico e critica a relação pintor/aprendiz cara à lógica em que opera o modelo tradicional. 4.2 Jules Verne, crítico de arte Jules Verne é um nome inesperado no elenco de escritores que praticaram a crítica de arte como gênero. Isso parece justificar as palavras do jornalista Ernest-Charles em 1906 no jornal Gil Blas: “Enquanto Jules Verne não morrer, ele continuará a escrever”.188 O que traz uma importância extraordinária à descoberta recente do Salon de 1857, realizada e divulgada em 2006 por William Butcher, professor e diretor de pesquisa do 187 MONTEIRO, Luiz Paulo dos Santos. O pintor-artista em Lorenzaccio de Alfred de Musset: marcas de um posicionamento no campo artístico. Rio de Janeiro: Faculdade de Letras da UFRJ, 2006, p. 71. Dissertação de Mestrado. 188 “Tant que Jules Verne sera mort, il continuera d’écrire”. ERNEST CHARLES. “Morts et vivants”. Gil Blas nº 9.626, 23 déc. 1906, p. 1. Disponível em: http://gallica.bnf.fr/ark:/12148/bpt6k75376013/f1.zoom.r=gil%20blas.langPT 107 Centro de Linguagem de Hong Kong, é que esse documento não é mais um romance póstumo do autor das Viagens extraordinárias que tenha aparecido entre os anos de 1905 e 2005,189 mas textos publicados quando Verne era praticamente desconhecido no campo literário e que permaneceram por muitos anos inéditos. Como vimos, Jules Verne viera para Paris em 1848 para concluir seus estudos de Direito, mas se lançara no mundo do teatro no qual esperava obter sucesso.190 No entanto, essas esperanças não se concretizaram. O cargo de secretário no Théâtre Lyrique que ocupou entre os anos de 1852 a 1854 não lhe permitiu angariar capital social necessário com pessoas do mundo literário que, talvez, pudessem ajudá-lo. Até 1857, havia publicado algumas novelas no periódico Musée des familles que passaram quase despercebidas. Em janeiro de 1857, Verne se casa com Honorine Morel, jovem viúva com duas filhas. Mesmo trabalhando na Bolsa de Valores, não abandona a escrita nem a tentativa de ver suas peças encenadas, o que deverá esperar até o ano de 1860 quando tem Monsieur de Chimpanzé, ópera-cômica em um ato, encenada, ainda que sem sucesso, no teatro Bouffes Parisiens. Esse panorama em torno do ano 1857 na vida do autor das Viagens extraordinárias nos auxilia a entender a situação de Jules Verne quando são publicados os sete artigos críticos sobre o Salão daquele ano, na Revue des Beaux-Arts. Sabendo que a crítica do Salão de 1857 é, antes de tudo, um documento inscrito em uma realidade histórica, publicado em um periódico que visa, entre outros, à divulgação do evento, à adesão dos leitores às ideias, concepções artísticas e discussões sobre estética ali lançadas, interessa-nos estudar esses elementos explorando o discurso de Jules Verne enquanto crítico. A partir dos conceitos da Análise do Discurso do linguista Dominique Maingueneau, desenvolvidos em 2.3, sobretudo a propósito do ethos, do fiador e da cena enunciativa, procuraremos compreender a concepção de arte que Jules Verne deseja transmitirna crítica do Salão de 1857. Tendo a existência revelada por William Butcher, em 2006, em sua biografia sobre Jules Verne, os artigos críticos sobre o Salão de 1857 foram reunidos, publicados, ilustrados e receberam um breve prefácio em 2008, pelo mesmo pesquisador. Publicados inicialmente na Revue des Beaux-Arts – Tribune des artistes, dirigida por Félix Pigeory, 189 Contam-se entre eles aqueles modificados e publicados pelo filho de Verne, Michel, entre 1905 e 1919, passando por Paris au XXe siècle (Hachette, 1994) até o recente Théâtre inédit (Le cherche midi, 2005). 190 Essas informações sobre a vida do autor foram extraídas das biografias de DUSSEAU, Joëlle. Jules Verne. Paris: Perrin, 2005 e BUTCHER, William. Jules Verne – The definitive biography. New York: Thunder’s mouth press, 2006. Sinalizaremos quando houver divergências nas informações. 108 entre os meses de junho e setembro do ano de 1857, os artigos críticos do Salão de 1857 foram divididos originalmente em seis partes. Para uma melhor visualização, organizamos a seguir as datas de publicação de cada artigo na Revue des Beaux-Arts: 15 de junho de 1857 1 julho de 1857 15 de julho de 1857 1 de agosto de 1857 15 de agosto de 1857 1 de setembro de 1857 15 de setembro de 1857 Abertura do Salão – Publicação do “Artigo preliminar” Publicação do primeiro artigo Publicação do segundo artigo Publicação do terceiro artigo Publicação do quarto artigo Publicação do quinto artigo Encerramento do Salão – Publicação do sexto artigo Nos próximos itens, além de destinarmos uma parte à exploração do Salão de 1857 enquanto evento social inserido no contexto histórico, analisaremos alguns aspectos dos artigos críticos, cruzando-os com alguns dados da carreira romanesca do escritor e confrontaremos a opinião crítica de Verne com a de outros críticos. Tomaremos como exemplo Les Demoiselles des bords de la Seine, quadro de Gustave Courbet, visando traçar a concepção artística do crítico Jules Verne, o que integraria seu projeto estético. 4.2.1 A instituição Salão e a figura do crítico A exposição de quadros, desenhos e esculturas era um dos grandes acontecimentos da vida social parisiense. O evento era realizado anualmente ou a cada dois anos, às vezes em espaços diferentes, mas guardando o nome Salon que remetia ao Salon carré do Louvre, onde aconteciam as exposições desde 1737. O número de visitantes regulares ao evento revela que o fluxo era considerável: por exemplo, entre 1 e 1,2 milhão de espectadores até 1848, ano que marcou a entrada com pagamento obrigatório, exceto aos domingos. A partir de então, o público visitante foi reduzido à metade, exatamente a 447.766 espectadores em 1857, o que é, face à população de 1.174.000 de parisienses à época, ainda assim, um número considerável.191 Cf. HOEK, Léo H. Titres, toiles et critiques d’art. Déterminants institutionnels du discours sur l’art au dix-neuvième siècle en France. Amsterdam: Rodopi, 2006, p. 89-91. 191 109 O que constituía a especificidade e originalidade do Salão como evento era, entre outros fatores, a capacidade de concentrar em um só lugar e num período determinado o que era julgado essencial da atividade artística. Ainda que o Salão fosse considerado um espaço de divertimento, era igualmente necessário para artistas que não tinham outra oportunidade de obter semelhante prestígio para expor e vender suas obras. Cabia a um júri a escolha dos trabalhos a serem expostos, função do personagem de Vergy na peça La Guimard, por exemplo. O caráter arbitrário dessas decisões gerava, muitas vezes, conflitos entre artistas e a direção do Salão. Uma vez aceitos para expor, era necessário que os artistas conquistassem o interesse do público, sobretudo de possíveis compradores, a atenção dos críticos e a boa vontade dos membros do júri que julgavam e distribuíam prêmios em dinheiro, ou ainda a bolsa do “Prêmio de Roma”, e medalhas de honra aos melhores. No que diz respeito ao Salão de 1857, Jules Verne e os críticos que citaremos mais adiante, são unânimes:192 esta exposição não foi tão grandiosa se comparada ao tamanho e sucesso da exposição de 1855. Essa grandiosidade que caracterizou o Salão de 1855 se justifica pela quantidade de obras, sobretudo. O número de objetos diminuíra de aproximadamente 6.000 obras para exatas 3.474, das quais 2.715 quadros de 1.166 pintores diferentes, como revela William Butcher em pesquisa ao catálogo oficial do Salão de 1857.193 Ainda que Jules Verne realize uma “maratona” pelas diferentes salas organizadas no Palácio da Indústria, onde hoje se encontra o Petit Palais, ele não cita todos os artistas nos seis artigos críticos que irá escrever, mas identifica e lista mais de 260, dentre os quais se destacam representantes das estéticas neoclássica, romântica e realista. Nesse Salão, é nítido que os críticos se interessaram mais pela hierarquia dos gêneros das obras do que pelos diferentes estilos. Os quadros sobre a atualidade e cenas de batalhas travadas pelo exército francês ocupam a maior parte das críticas que pesquisamos, talvez por serem mais numerosos, como Jules Verne irá sinalizar no artigo preliminar: Ainsi, par exemple, la guerre de Crimée aura certainement les honneurs du Salon; ses principaux événements s’y trouvent développés sous toutes les formes possibles ; il n’est pas un épisode qui n’y soit reproduit avec satiété [...] Après la guerre de Crimée, les inondations de la Loire et du Rhône ont fourni leur contingent de situations dramatiques.194 192 Objetivando uma coleta de informações e uma comparação com a crítica que Jules Verne faz do salão de 1857, documentamo-nos em ensaios de outros críticos, a saber: Théophile Gautier, Jules-Antoine Castagnary, Maxime Du Camp, Louis Auvray, Edmond About e Félix Nadar. 193 BUTCHER in VERNE, 2008, p. 13-14. 194 VERNE, 2008, p. 43. 110 Em seguida, os temas religiosos e de história também gozam de espaço importante, seguidos por retratos, cenas de gênero, paisagens, marinhas e, por fim, quadros de animais e flores. Mesmo não tendo exposto nesse Salão, ainda é o nome do pintor romântico Eugène Delacroix que atrai a crítica de admiradores, mas será Gustave Courbet que provocará o público com a escolha de temas julgados grosseiros. A simultaneidade de estilos e de gêneros distintos contribuía para se ter a impressão geral de que faltava uma “identidade” à pintura daquela época. Essa impressão é compartilhada por diversos críticos, mesmo os mais conservadores. Assim, Maxime Du Camp resume suas análises com uma afirmação decisiva: “Se o fogo destruísse por completo o Salão de 1857. Isso seria uma perda para a arte? Não. Não existe sequer um objeto cujo equivalente não seja fácil.195 William Butcher ressalta que foram duas as únicas obras que “resistiram à evolução do gosto e aos caprichos da glória” e encontraram um espaço na História da Arte: Les Demoiselles des bords de la Seine, de Courbet, e Les Glaineuses, de Millet.196 Se o primeiro quadro é criticado negativamente por Jules Verne, como veremos, o mesmo não acontece com o segundo. Postas essas duas obras à parte, o leitor das críticas analisadas, inclusive aquela de Jules Verne, encontrará alguns nomes bastante conhecidos na História da Arte como os de Gustave Doré, Horace Vernet, Camille Corot e Charles François Daubigny. No entanto, cabe-nos pensar nos nomes esquecidos (ou conscientemente excluídos) que são acompanhados, evidentemente, por um sem-número de obras que assinaram, e no papel do crítico de arte na difusão e perpetuação de tais nomes. Percebe-se que a figura do crítico e seu trabalho encenam papel importante, pois circulam entre as dimensões estéticas, político-administrativas e comerciais do Salão. Desde o surgimento da crítica de arte no século XVIII com os escritos de Diderot,197 os escritores serão os porta-vozes do discurso sobre a arte. A partir do Romantismo, os críticos de arte apoiam as lutas dos artistas na tentativa de operar uma ruptura ética e estética com instituições como a Academia e os Salões, objetivando a autonomia do “Le feu détruirait de fond en comble le Salon de 1857. Serait-ce une perte pour l’art ? Non. Il n’existe pas un objet dont l’équivalent ne soit facile.” DU CAMP, Maxime. Le Salon de 1857. Paris : Librairie Nouvelle, 1857, p.175. Disponível em: http://gallica.bnf.fr/ark:/12148/bpt6k552044/f178.image.r=maxime%20du%20camp%20salon%201857.la ngPT 196 BUTCHER in VERNE, 2008, p. 9. 197 Cf. HOEK, 2006, p. 240. 195 111 campo artístico, ainda vinculado a coerções corporativistas e institucionais. Descobrir o nome de Jules Verne, praticamente desconhecido no campo literário à época, como autor nesse gênero nos obriga a situá-lo na esteira de nomes que contribuem para essa autonomização do campo artístico e a ler, nas concepções artísticas anunciadas na crítica, a composição do projeto estético que permeará seu trabalho mais conhecido, as Viagensextraordinárias. 4.2.2 Jules Verne, crítico do Salão de 1857 Os leitores da Revue des Beaux-Arts - Tribune des artistes, revista conservadora dirigida pelo arquiteto Félix Pigeory, teriam se perguntado quem seria aquele jornalista que assinava as críticas de arte da revista. Em 1857, naquele momento de sua trajetória, Jules Verne, corretor na Bolsa de Paris, já havia colaborado igualmente para a revista de Félix Pigeory com um artigo que retratava a vida e a obra do compositor Victor Massé. Esse artigo, com o título de Portraits d’artistes – XVIII, foi publicado na Revue des Beaux-Arts, vol. 8, nas páginas 115 e 116, em 15 de março de 1857,198 três meses antes dos seus artigos de crítica de arte. De acordo com essas datas, podemos afirmar que Jules Verne já era conhecido narevista de Pigeory. No entanto, a razão pela qual Verne obteve o espaço de crítico de arte é desconhecida. A possível explicação, aceita por pesquisadores da obra de Jules Verne, é que, com a morte de Georges Guénot, redator da revista, Pigeory se viu obrigado a se unir a novos colaboradores. Pitre-Chevalier, diretor do Musée des Familles, tinha relações comerciais com Pigeory e, portanto, pode ter servido de intermediário. Mesmo que a última contribuição de Jules Verne ao Musée des familles date de 1855, ele não havia abandonado a colaboração com a revista: em 10 de setembro de 1856, o então corretor de ações da Bolsa de Paris escreve ao seu pai: “Je vais aller passer trois ou quatre jours à la campagne chez Pitre-Chevalier pour qui j’ai un travail à finir.”199 O retrato do músico Victor Massé, escrito segundo o modelo da biografia assim como a praticava Sainte-Beuve em seus Portraits littéraires, Portraits contemporains e Portraits de femmes, publicados a partir de 1844, mostra que Verne escrevia de maneira agradável, entusiasmada. Questionamo-nos se isso era suficiente para que ele fosse convidado a escrever artigos críticos para o Salão do ano, já que a concorrência era 198 199 VERNE, 1857, reproduzido em VERNE, 2008, p. 30-35. VERNE, 1988, p. 415. 112 grande. Nomes já bastante conhecidos poderiam ocupar essa função como Edmond About (Le Moniteur Universel), Maxime Du Camp (La Revue de Paris), Théophile Gautier (L’Artiste), Émile de la Bédollière (Le Siècle), Eugène Pelletan (Le Courrier de Paris), e alguns caricaturistas que também atuavam como críticos de arte como Nadar (Rabelais) cujas crítica e caricatura serão citadas mais adiante, Bertall (Le Journal Amusant) e Cham (Le Charivari). Há ainda o nome de Jules-Antoine Castagnary que publicou suas críticas na Revue Moderne, editadas posteriormente em volume e intituladas Philosophie du Salon de 1857.200 Castagnary ousará romper com a tradição, não considerando a hierarquia oficial dos gêneros e tratando as escolas clássica e romântica como antiquadas. O verbete para o nome do crítico no Dicionário Larousse de 1864 comprova sua originalidade e ousadia: Ele chegou a esta conclusão que a pintura religiosa e a pintura de história estavam acabadas enquanto gêneros artísticos, e que a nova arte devia ter por único objeto a natureza, ser apenas a expressão da vida universal em todos os seus modos e em todos os graus, sem nenhuma mescla de convenção nem de ideal. [...] Coerente em seus princípios, não se deteve, no seu Salão, nem nos quadros religiosos, nem nos quadros de história, e discorreu exclusivamente sobre a paisagem, o retrato e os quadros de gênero, estes, segundo ele, devendo ocupar a primeira posição na pintura. Essas ideias, desenvolvidas com vigor e talento, causaram sensação no mundo das artes, e muitos declararam que não haviam visto, desde os Salões de Diderot, nada mais original e notável do que elas.201 Essa longa citação nos permitirá melhor situar a abordagem crítica de Jules Verne. Sete anos antes de escrever os artigos para a Revue des Beaux-Arts, seu tio, o pintor Chateaubourg,202 pedira ao sobrinho para lhe dar alguns detalhes sobre o Salão daquele ano, que aconteceu entre janeiro e março de 1851. Esse Salão foi o evento que recebeu o tão criticado trabalho Un Enterrement à Ornans, de Gustave Courbet, pintor que se CASTAGNARY, Jules-Antoine. “Philosophie du Salon de 1857”. In : ___. Salons (1857-1870). 1er Tome. Paris: Charpentier, 1892. Disponível em: http://gallica.bnf.fr/ark:/12148/bpt6k550068/f63.image 201 “Il en arriva à cette conclusion que la peinture religieuse et la peinture d’histoire étaient finies comme genres artistiques, et que l’art nouveau devait avoir pour objet unique la nature, n’être que l’expression de la vie universelle dans tous ses modes et à tous ses degrés, sans aucun mélange de convention ni d’idéalité. […] Conséquent avec ses principes, il ne s’occupa, dans son Salon, ni des tableaux religieux ni des tableaux d’histoire, et parla exclusivement du paysage, du portrait et des tableaux de genre, appelés suivant lui à prendre le premier rang dans la peinture. Ces idées, développées avec vigueur et talent, firent sensation dans le monde des arts, et beaucoup déclarèrent qu’on n’avait rien vu de plus original et de plus remarquable depuis les Salons de Diderot.” LAROUSSE, Pierre: Grand Dictionnaire universel du XIXe siècle. Paris: Larousse, 1864-1877, p. 513-514. Disponível em: http://gallica.bnf.fr/ark:/12148/bpt6k507258/f516.image.r=larousse%201867.langPT 202 Francisque de la Celle de Chateaubourg (1789-1879) se casara em 1823 com Caroline Allotte de la Fuÿe, tia de Jules Verne pelo lado materno. Chateaubourg, pintor de retratos, vem de uma família de pintores: seu pai Charles Joseph era miniaturista e seu avô, Paul François de la Celle de Chateaubourg era igualmente pintor de retratos. DUSSEAU. Joëlle. Jules Verne. Paris: Perrin, p. 31. 200 113 permitiu tratar uma cena” de gênero rústica nas proporções em que comumente se pintavam cenas históricas: o painel mede 315 cm x 668 cm. Jules Verne, não muito à vontade, cita a situação em carta endereçada a seu pai, em Nantes: Je vais écrire à mon oncle Chateaubourg les détails qu’il me demande sur l’exposition ; mais je ne m’y connais pas le moins du monde, et en fait d’école, je crains bien de n’être que de la mienne ! Il ferait bien mieux de venir former son opinion à Paris – C’est si près !203 Essa situação lembra a do próprio Diderot, que inaugura o gênero e começa sua carreira de crítico de arte desta maneira. Diderot descreve e julga, a pedido de seu amigo Melchior Grimm, as exposições da Academia Real de Pintura e Escultura, para a Correspondance Littéraire,a partir de 1759. Em razão da ausência total de documentação das cartas entre Jules Verne e seu tio, não podemos afirmar como o escritor desenvolveu essa “crítica”. No entato, ainda que não possamos dizer o que ocorreu entre essa carta e a crítica de 1857, parece-nos, ao menos, que esse mal-estar, por assim dizer, em escrever uma crítica, possa ter sido resolvido em 1857. Enquanto crítico, Verne, ao contrário de Castagnary, está longe de explicitar ou desenvolver alguma teoria original e não defende nenhum novo sistema estético. Como o autor declara no segundo artigo: “Notre but est de raconter tout simplement ce qu’on y voit et ce qu’on y entend, de présenter quelques observations personnelles, de résumer les diverses impressions des visiteurs, en un mot, de faire moins la critique que la chronique du Salon de 1857”.204 Com essa modesta pretensão, Jules Verne circula por entre as nove salas do Palácio da Indústria cuja ordem de visita lhe dita a apresentação das obras: Dans ce Salon, si l’on ne veut parler que des œuvres remarquables, il faut marcher au hasard et sans livret: si l’on doit parler de tout à peu près, il me paraît convenable de tout voir, et conséquemment de procéder avec méthode; commençons donc par la première salle, finissons par la dernière, et que le public excuse les fautes de l’auteur.205 Iniciando por um artigo preliminar, publicado no mesmo dia da abertura do Salão - o que significa dizer que os críticos faziam parte de um seleto grupo que visitava o Salão antes da abertura oficial, podendo realizar, assim, a pré-divulgação do evento nos jornais ou revistas -, Jules Verne se esforça para dar conta do maior número possível de artistas expositores, ao invés de se dedicar à análise precisa de obras. Ele lista artistas como fará mais tarde no romance Vingt mille lieues sous les mers, de 1871, para decorar com 203 VERNE, 1988, p. 284. VERNE, 2008, p. 85. 205 VERNE, 2008, p. 55. 204 114 quadros as paredes do gabinete de curiosidades do capitão Nemo. No romance, no bloco descritivo que trata do interior da sala, o narrador distingue os pintores antigos dos modernos, incluindo na segunda categoria os nomes de Delacroix, Ingres, Decamp, Troyon, Meissonier e Daubigny. O primeiro citado, representante da escola romântica, aparece no artigo preliminar da crítica de Jules Verne embora não tenha exposto no Salão de 1857. Jules Verne torna Delacroix presente quando menciona de maneira bastante elogiosa a lamentável ausência do pintor no Salão. Citado junto a outros nomes, Verne dá as primeiras pistas de que precisamos para entender suas concepções artísticas. Ao criticar o excesso de quadros militares nesse Salão, afirma: Les abstentions parmi les maîtres de l’art moderne sont-elles nombreuses à ce Salon de 1857 ? Cela est à craindre, et bien des noms célèbres manqueront à bien des toiles ; c’est un fait regrettable, et qui tend à se reproduire trop souvent, comme le résultat d’un parti pris [...]; [Concernant la peinture militaire] Nous le répétons, il n’est ici question que du sujet, et non du talent avec lequel il peut être traité; au surplus, ces toiles sont éminemment patriotiques et trouveront beaucoup d’admirateurs ; mais, peut-être aussi, le connaisseur, l’artiste, le poète, égaré au milieu de ce fracas militaire, aura-t-il quelque peine à rencontrer une grande œuvre qui symbolise une grande idée ; peut-être cherchera-t-il en vain une Orgie romaine, de Couture, un Dernier jour des condamnés, de Müller. L’actualité, nous le croyons du moins, n’a jamais été un élément de succès en peinture proprement dite, comme elle peut l’être dans les productions littéraires de l’imagination; aussi, les maîtres de l’art moderne ne lui ont-ils pas demandé leurs effets, quand ils signaient Paul Delaroche, Ingres et Delacroix, la Jane Grey, le Cromwell, la Barque du Dante, la Justice de Trajan, le Saint Symphorien et l’Homère déifié.206 Em detrimento da pintura militar que usa temas da atualidade como a Guerra de Crimeia, os pintores e quadros citados (Ver de 6.3.8 a 6.3.15) permitem mostrar o posicionamento do crítico no que diz respeito ao gênero e aos temas representados. Aqui, a figura do crítico se encarna assumindo o papel de fiador, mostrando-se, portanto, autorizado a transmitir tais opiniões, pois está legitimado para pronunciar seu discurso em situação legítima, ou seja, legitimado pela mídia,diante de receptores legítimos. Ora, os quadros citados na passagem acima, de pintores ainda vivos em 1857 e já consagrados, fazem parte do gênero pintura de história que, na hierarquia dos gêneros, tinham maior prestígio. Considerando que esse ponto de vista é defendido no artigo preliminar, aquele em que o crítico Jules Verne apresenta de maneira geral o Salão, inferimos que tudo o que será apresentado e criticado nos artigos seguintes estará em nível inferior a esses quadros. Logo, podemos considerar que o crítico assume uma posição entre o 206 VERNE, 2008, p. 43-45. 115 acadêmico/neoclássico (Thomas Couture, Charles Müller, Paul Delaroche) e o moderno/romântico (Dominique Ingres, na transição para o Romantismo; Eugène Delacroix); ao rejeitar os temas da atualidade, ele se inscreve na linha de críticos que aceitam e perpetuam a hierarquia dos gêneros na pintura, encabeçada pela pintura de história; por outro lado, defende a cor dos pintores românticos, considerados como “mestres da arte moderna”. Há ainda certo número de princípios que Jules Verne usa nas suas argumentações críticas que nos permitem delinear suas concepções artísticas. Ele atribui importância primordial à cor que é “le sang de la peinture”207:“Si le dessinest indispensable en peinture, la couleur est néanmoins, pour ainsi dire, la première qualité d’un peintre, puisqu’elle seule fait respirer, fait palpiter, fait vivre”.208Em defesa da cor, Verne critica o pintor Paul Alfred de Curzon cujos quadros “règnent dans l’empire des ombres et des brouillards”209 e se indigna:“Depuis quand la peinture n’a-t-elle plus mission de charmer les regards par la ligne et par la couleur? Doit-elle donc se réduire aux effets fades désavantageux de la grisaille ? Non, cent fois non! ”210 Cabe-nos investigar a transição entre a defesa do neoclássico e a modernidade no uso da cor empreendidas pelo crítico e o possível conservadorismo do romancista sob a ótica sociológica que trazemos para a pesquisa, adotando a perspectiva da trajetória. Em “Modos de produção e modos de percepção artísticos” - sexto capítulo de A economia das trocas simbólicas,211 Pierre Bourdieu analisa a arte, sua percepção e produção, como umsistema simbólico capaz de ser tomado como instrumento de poder e legitimação da ordem vigente. O autor escolhe as artes plásticas como referência para sua análise e fala sobre o conservadorismo estético das classes dominantes, quando recusam romper com os códigos conhecidos, rejeitando, assim, a arte moderna. Essa recusa se assemelharia bastante à exigência de realismo nas obras por parte do gosto “popular”. Para Bourdieu, a “arte nova”, que transformou a maneira de produzir e apreciar as obras de arte, teria originalmente a intenção de excluir a burguesia, tornando a arte ininteligível para esse grupo. Porém, não demorou muito até a burguesia dominar os códigos que possibilitariam alcançar essa competência estética. Ironicamente, o estandarte da arte 207 VERNE, 2008, p. 56. VERNE, 2008, p. 125. 209 VERNE, 2008, p. 137. 210 VERNE, 2008, p. 138. 211 BOURDIEU, Pierre. A economia das trocas simbólicas. Trad. Sérgio Miceli e Silvia de Almeida Prado. São Paulo: Perspectiva, 2007, p. 269-294. 208 116 “pura” ou da arte pela arte coube confortavelmente aos burgueses cultos, pois se antes temiam o artista engajado em uma “arte social”, desde então “não podem deixar de regozijar-se com a declaração de ‘neutralidade’ professada pelos defensores da arte pela arte, oponentes tanto da arte burguesa como da grossura socialista”.212 Bourdieu explica essa tendência conservadora como uma espécie de inércia, onde as obras produzidas segundo um novo modo de produção estariam fadadas a serem vistas através dos antigos códigos de percepção, ao menos durante um tempo, até ser criado um novo habitus. Assim, na perspectiva da trajetória, suspeitamos que o crítico Jules Verne se inclua no grupo que sai em defesa de uma certa “modernização” da arte e da modificação do habitus dominante ao criticar positivamente Delacroix e a valorização da cor na pintura em detrimento do desenho, ainda que não aceite temas do presente e prefira a manutenção da pintura de história, o que poderia apontar para traços de conservadorismo estético ao criticar, mais tarde, os impressionistas que adotam temas do cotidiano e rejeitam os gêneros dominantes da pintura. Excluindo todo tipo de exagero, extravagância de estilo ou de escolha do tema, Jules Verne dá preferência ao meio termo, valorizando a simplicidade ou a ingenuidade de uma obra que, para ele, são sinônimos de verdade. Partindo dessa premissa, o neoclássico Jean-Léon Gérôme é, para Verne, uma espécie de nec plus ultra: [...] c’est par la simplicité la plus absolue que M. Gérôme est arrivé à l’effet le plus vrai, le plus pénétrant, le plus réussi ; l’Orient, l’islamisme tout entier est là, et jamais il n’aura été donné d’en recevoir une plus complète impression : il semble que l’art ne puisse aller au delà.213 O gosto conservador do crítico se reforça na crítica ao quadro La rencontre de Saint Bonaventure et Saint-Thomas d’Aquin, de Dominique-Antoine Magaud.214 O julgamento é reiterado por um “sentimento religioso”: [...] le peintre n’a pas cherché son effet dans les proportions colossales ordinaires à ce genre d’ouvrage, mais il est simple et vrai ; on y sent la conviction, et surtout la foi ; le sentiment qui s’en dégage est essentiellement catholique.215 212 BOURDIEU, 2007, p. 277. VERNE, 2008, p. 96. 214 A única referência de imagem que encontramos para este quadro não pôde ser copiada. Em razão da ausência de outros sites de referência para realizarmos comparações, preferiríamos não arriscar sobre a autenticidade deste quadro. Remetemos o leitor ao único site encontrado: http://www.artnet.com/artists/antoine-magaud/la-recontre-de-saint-bonaventure-et-saint-thomasTYQyuemg8ocgA7FNXJMuFA2 215 VERNE, 2008, p. 154-155. 213 117 De acordo com Verne, muitos pintores não possuem as qualidades de simplicidade, verdade e sentimento nessa época de “sécheresse et de maigreur dans l’art”.216 Essa qualificação remete ao discurso pessimista do poeta Michel Dufrénoy, personagem do romance Paris au XXe siècle escrito em 1861, que vive em uma Paris modificada pela ciência e pela tecnologia, onde a arte e o artista não têm espaço e, portanto, não são valorizados. No seu Salão de 1857, Jules Verne não deseja ser acusado de esquecimento ou omissão e, portanto, atenta para que todos os gêneros e temas encontrem seu espaço. Quanto aos quadros inspirados nos temas literários, o crítico menciona cenas extraídas de Shakespeare, La Fontaine, Goethe e E.T.A. Hoffmann e os louva quando os pintores são fiéis às histórias, não se permitindo liberdades em relação aos seus modelos literários. Esse é o caso, por exemplo, da crítica ao quadro Faust et Wagner217, de M. Dumarest cujo germanismo é “très-réussi; c’est là de la bonne et vraie peinture allemande comme il convenait à l’interprétateur de Goëthe”218 ou ainda quando trata do quadro Le loup garou219, de M. Sand: […] sujet tiré d’un conte d’Hoffmann, le Pot d’or [...] le côté fantastique est rendu. [...] la difficulté de ce genre de sujet demande un talent spécial que M. Sand paraît posséder au plus haut degré. [...] Mêmes remarques pour son tableau traité d’après Hoffmann, où le personnage de l’archiviste, dont l’habit se soulève au vent, se déploie à l’horizon d’une façon très fantastique.220 De maneira recorrente, encontramos na sua crítica menções aos quadros que representam a atualidade, sobretudo as batalhas da Guerra da Crimeia, finda em 1856. Observamos aqui não só uma maneira de propaganda a Napoleão III por parte dos artistas pintores, mas uma marca de competição entre eles para obterem encomendas e/ou medalhas por parte do Estado. No entanto, Jules Verne deixa claro sua opinião sobre as cenas militares da atualidade e a quantidade excessiva e inútil de grandes pintores que se dedicaram a esse gênero oficial: N’est-ce pas peut-être un abus, et ne doit-on pas regretter que beaucoup d’artistes de mérite se condamnent à une siimpérieuse spécialité ; le sujet est en dehors du talent, je le sais ; mais pourquoi ne pas laisser aux maîtres dans ce genre de peinture officielle, le soin de conserver à la postérité le souvenir de nos gloires militaires ?221 216 VERNE, 2008, p. 150. Embora tenhamos realizado buscas, uma imagem para este quadro não foi encontrada. 218 VERNE, 2008, p. 101. 219 Como o quadro Faust et Wagner, de Dumarest, não encontramos imagem para ilustrar este. 220 VERNE, 2008, p. 91. 221 VERNE, 2008, p. 43. 217 118 Talvez seja nessa passagem em que critica esse gênero oficial na pintura, o único momento em que o futuro autor das Viagens extraordinárias mencionará a relação entre pintura e literatura, distanciando-as no seu uso. Não falamos aqui da fraterna emulação entre literatura e pintura expressa na fórmula horaciana do Ut pictura poesis, tratamos da função do pintor e do escritor na sociedade. Verne afirma que cabem à literatura temas da atualidade e que os pintores devem se incumbir de temas da história, mas não atuais. Ele vai adiante: “L’actualité, nous le croyons du moins, n’a jamais été un élément de succès en peinture proprement dite, comme elle peut l’être dans les productions littéraires de l’imagination.”222Aqui, implicitamente, Jules Verne atribui e distingue funções sociais para pintores e escritores e sai em defesa do gênero de maior prestígio na hierarquia dos gêneros, a pintura de história, em detrimento da pintura militar. Além disso, Verne critica o desperdício, por assim dizer, de pintores que se dedicam à pintura militar somente para enaltecer os feitos de Napoleão III, afim de obterem prêmios, entre os quais o “Prêmio de Roma”, aquele aludido na peça La Guimard. Em termos de papel social da arte encontramos, implicitamente, menção à função educativa da arte focada na experiência individual que o espectador deve ter diante do objeto artístico. No artigo preliminar, tratando do novo espaço, da iluminação e das disposições dos quadros nas paredes do Palácio da Indústria, o crítico elogia: [...] nous n’aurons pas de ces tableaux accrochés dans les ténébreux couloirs où la foule se presse sans s’arrêter, ni de ces toiles juchées à des hauteurs incommensurables, où le regard humain ne peut atteindre ; tout sera visible, et, nous aimons à le croire, tout sera vu. Les exposants anglais de 1855 avaient, dit-on, mathématiquement calculé l’angle d’inclinaison à donner aux tableaux pour les baigner dans ces ondes lumineuses qui en rehaussent si merveilleusement les effets ; il paraît qu’on a profité de leur expérience ; ainsi donc, au milieu de ces paysages, de ces marines, de ces batailles, de ces scènes historiques, il y aura de l’air et de la lumière pour les exposants, tout autant que pour leurs admirateurs.223 Tratando da disposição das obras e da atenção dada à sua iluminação, percebemos um dado em discussão no século XIX: as paredes tapeçadas de quadros que impedem a contemplação e a fruição da arte. Com a valorização do indivíduo, cara ao Romantismo, essa discussão se intensifica e vai desembocar no que surge ao final do século XIX: quadros organizados lado a lado, ou pelo menos até onde a visão do visitante alcança, 222 223 VERNE, 2008, p. 44. VERNE, 2008, p. 39-40. 119 distando uns dos outros de maneira a não interferir na contemplação das obras de arte. Trata-se para nós de pensar que o crítico Jules Verne, colocando-se no lugar de visitante, concebe como papel social da arte a valorização da experiência individual e, por conseguinte, a educação do e pelo olhar. Isso nos permite refletir sobre os modos de transmissão e perpetuação do habitus, de que falamos, que faz com que os dominados reconheçam os valores dominantes como valores incorporados. 4.2.3 O exemplo de Courbet Seguindo os objetivos do crítico que, declaradamente, desejava realizar uma crônica do Salão, podemos afirmar que Jules Verne se informou e, muito provavelmente, se baseou em duas publicações críticas de Théophile Gautier. Segundo um inventário do conteúdo da biblioteca pessoal de Jules Verne feito por Magda Kiszely,224L’Art moderne (Michel Lévy, 1856) e Les Beaux-arts en Europe, 1855 (Michel Lévy, 3 volumes, 18551857) figuravam entre os livros que podem ter servido de modelo ao jovem Jules Verne. Isso constitui um forte argumento para estabelecermos relações entre a identidade crítica de Verne e a de Gautier. No entanto, Gautier apresenta certa indulgência em seus artigos críticos, característica da qual Jules Verne se aproxima com cautela, como veremos. Para se ter uma ideia de como os críticos do Salão de 1857 abordaram uma obra controversa, escolhemos Les Demoiselles des bords de la Seine (été) (ver 6.3.16), de Gustave Courbet, com a finalidade de comparar o julgamento de Jules Verne àqueles de seus colegas críticos. Nitidamente, Jules Verne se apresentará bastante conservador: Nous arrivons enfin à M. Courbet ; il est généralement admis qu’il a de grandes qualités de peintre; or, il vaudrait peut-être mieux qu’il n’en eût pas, ce serait moins embarrassant pour le jury d’admission; [...] Pour les Demoiselles du bord de la Seine, ce sont effectivement des demoiselles ; elles sont étendues sur l’herbe, l’une sur le côté, l’autre à plat ventre ; elles portent des robes de grenadine et des châles d’été ; elles se roulent sur toute cette toilette fripée, qui n’a jamais dû être neuve pour elles ; elles adressent au public des sourires non équivoques. M. Courbet, où donc va-t-il chercher ses modèles! Voilà donc ce qu’il expose en public! Des demoiselles qui ont profité de leur jeudi pour aller se vautrer sur l’herbe. Nous ajouterons que le dessin de ce tableau est grossier et incorrect, que la couleur est d’un jaune désagréable, et que d’après les règlements de police, ce tableau ne devrait être visible que de huit à onze heures du soir.225 Cf. KISZELY, Magda. “La bibliothèque de Jules Verne”. Bulletin de la Société Jules Verne, nº 118, 2e trimestre, 1996, p. 45-46. 225 VERNE, 2008, p. 109-111. 224 120 Em tom de condenação da obra de Courbet, Jules-Antoine Castagnary se une a Verne: Ses toiles, faites pour la foule, n’ont jamais eu de prise sur elle. Et Courbet, qui commence à le comprendre, s’en venge cette année en exposant, double injure à Paris et au peuple, les Demoiselles des bords de la Seine, dont le titre jovial indique assez la pensée impertinente. En bafouant ainsi la majeure partie de ses admirateurs, Courbet se condamne lui-même. En résumé, Courbet est un brave ouvrier peintre, qui, faute de comprendre l’esthétique de son art, gaspille sans profit de belles et rares qualités. Comme peintre de genre, il a pu croire autrefois que la peinture devait avoir une destination sociale ; mais, à l’heure qu’il est, il n’en croit plus un mot, et [...] se moque de lui-même, des autres et de son art.226 Sem se incomodar com o aspecto moral como seus contemporâneos, Maxime Du Camp censura o quadro de Courbet pela imperícia e inabilidade com a pintura: On regarde les tableaux de M. Courbet avec étonnement et curiosité, comme on regarderait une tapisserie bien faite ou des persiennes bien peintes, mais voilà tout ; en eux rien n’émeut, rien ne trouble, rien ne vit ; quels que soient ses sujets, c’est toujours de la nature morte. Les demoiselles du bord de la Seine sont deux créatures qui, sans doute, sont sorties le matin même de la rue de Courcine, et qui, danshuit jours, y retourneront. […] Ces deux espèces, d’un dessin plus de douteux, apparaissent comme un paquet d’étoffes, très réussies du reste, d’où sortent des bras et des têtes; le corps est absent, point d’anatomie, c’est un ballon dégonflé. […] [Courbet] ne sait ni chercher, ni composer, ni interpréter ; il peint des tableaux comme on cire des bottes ; c’est un ouvrier de talent, ce n’est pas un peintre.227 Nadar, por sua vez, se mostra reservado e se nega a fazer uma análise do quadro de Courbet cujos modelos serão tratados como duas marionetes: C’est en pleine pâte que travaille M. Courbet ; il gâche et plaque hardiment ses tons en épaisseurs et si la délicatesse et l’exquisivité [sic] manquent dans cette peinture-là, au moins est-elle de franc et véritable aloi. Une bonne école pour M. Courbet, l’atelier de Courbet. Mais – son Concert d’Ornans, son Enterrement, ses Lutteurs, sa Baigneuse, ses Demoiselles des bords de la Seine (sic) de cette année l’ont surabondammantprouvé, – M. Courbet doit se résigner à n’être ni un peintre d’histoire, ni même jusqu’ici, et je le crains bien jamais, un peintre de figures. Ce n’est pas seulement le goût, c’est la pensée qui manque, mais manque absolument, radicalement, à cette œuvre toute de main, si solide et vitale que soit cette main. Je ne veux pas réveiller le 226 227 CASTAGNARY, 1892, p. 29-30. DU CAMP, 1857, p. 102-105. 121 souvenir grotesque des grandes toiles à personnages de M. Courbet, et je me tais même sur ses Demoiselles des bords de la Seine.228 Fig. 15 Caricatura do quadro, por Nadar Nadar – Jury du Salon de 1857, p. 5 Com essa crítica, Nadar se junta ao crítico e escultor conservador Louis Auvray que insistirá nas capacidades limitadas do artista: M. Courbet est un artiste de talent, mais d’un talent qui réside plus dans la main qu’au cerveau ; en terme d’atelier, il a de la pâte. On prétend que les peintures bizarres qu’il a exposées, il les a faites tout exprès pour attirer l’attention et répandre son nom dans le public. Si c’est un moyen, il a parfaitement réussi; mais ce renom-là peu d’artistes le rechercheront, et il est temps que M. Courbet devienne plus correct, plus sérieux. Pour nous, nous n’avons jamais ajouté foi à ces prétendues manœuvres, à ces calculs; nous pensons que cet artiste peint comme il sait, car nous trouvons toujours et partout dans ses ouvrages les mêmes défauts et les mêmes qualités. Ainsi, son ridicule tableau: les Demoiselles des bords de la Seine manque de perspective et les figures sont laides, plates et sans modèle.229 Entre tantos críticos, encontramos duas raras críticas elogiosas. Edmond About afirma: M. Courbet est de la foule. Il se jette sur la nature comme un glouton ; il happe les gros morceaux, et les avale sans mâcher avec un appétit d’autruche. Il saisit la nature, non par les côtés les plus intimes, mais par les plus apparentes. […] Il y a des prodiges de trompe-l’œil dans les Demoiselles des bords de la Seine. Je n’ai pas besoin de vous recommander une certaine paire de gants frais, exécutée dans la dernière perfection. Ce qui est peut-être encore plus miraculeux, c’est l’éclat luisant de ces deux figures lunaires dont l’épiderme se graisse d’un commencement de sueur. Ceci posé, j’ai quelque peine à retrouver 228 NADAR. Nadar-Jury au Salon de 1857. Paris: Librairie Nouvelle, 1857, p. 14. Para a caricatura ver p. 5. Disponível em: http://gallica.bnf.fr/ark:/12148/bpt6k1104393/f6.image.r=salon%20de%201857%20nadar.langPT 229 AUVRAY, Louis. Salon de 1857. Paris: Au Bureau de l’Europe artiste, 1857, p. 66-67. Disponível em: http://gallica.bnf.fr/ark:/12148/bpt6k6216292r/f76.image.r=louis%20auvray%20salon%20de%201857.langFR 122 un corps féminin dans chacune des deux robes. M’est avis que la demoiselle du premier plan possède en moins ce que la baigneuse avait en trop. Celle du second plan, j’ai regret de le dire, n’est pas tout à fait à son plan.230 Théophile Gautier vai além e concede a Courbet uma expressão pessoal que, talvez, não fosse considerada como incapacidade ou incompetência pelos outros críticos. O difusor do princípio da “arte pela arte” se mostra mais aberto que os outros em reconhecer as qualidades de Courbet entre os pintores franceses: Le maître peintre d’Ornans, M. Courbet, a été assez sage cette année ; il n’a pas logé le Réalisme dans une barque comme un monstre de la foire, et il a exposé tout tranquillement, comme les autres, des tableaux qui, sauf les Demoiselles de la Seine, n’ont rien de trop excentrique et renferment, nous nous plaisons à le reconnaître, de franches et robustes qualités. Si M. Courbet n’a pas l’intelligence de l’art, il en a du moins le tempérament. C’est un peintre né, et quelque emploi qu’il en fasse, son talent subsiste. […] Les Demoiselles de la Seine (un singulier titre) rentrent dans le genre extravagant auquel l’artiste a dû sa célébrité. C’est un coup de tampon à tour de bras sur le tam-tam de la publicité, pour faire retourner la foule inattentive. Deux grosses créatures, à qui ce serait fait honneur que de les appeler lorettes, sont étendues dans l’herbe, au bord du fleuve, l’une à plat ventre, l’autre sur le côté, affublées de toilettes du plus mauvais goût, et semblent cuver à travers un demi-sommeil le petit bleu dont les cabarets d’Asnières arrosent leurs fritures. Un arbre aux larges feuillages découpés dans du papier vert laisse apercevoir au fond de la toile une eau d’un azur bien napolitain pour la Seine ; – tout cela forme un paysage de haute fantaisie comme on en voit sur les papiers d’auberge en province. Quant à la demoiselle étalée sur le ventre, si l’idée lui prenait de se redresser, de déposer ses habits sur la rive et de se mettre dans l’eau le bout du pied comme une nymphe antique ou comme une canotière, elle ne causerait pas le même scandale de ronde bosse que la Vénus capitonnée à l’exposition des menus-Plaisirs. Aucune forme ne bombe sous les plis de sa robe. M. Courbet a tout dépensé en une fois ! – Il y a pourtant dans ce tableau, volontairement grotesque, d’excellentes parties de couleur; le châle ramagé de broderies est fait à merveille. Sur le visage vulgaire de la seconde dormeuse brille la fleur de la vie et perle la moiteur du sommeil. Les bras, le col et la joue de la première demoiselle sont d’un ton vrai, solide et fin qui ne se trouve que sur bien peu de palettes.231 Em geral, se caracterizássemos a abordagem de Jules Verne em relação aos outros críticos, todos mais experientes do que ele, poderíamos dizer que Verne enumera mais do que descreve e descreve mais do que analisa. As comparações acima 230 ABOUT, Edmond. Nos Artistes au Salon de 1857. Paris: Hachette, 1858, p. 154-155. Disponível em: http://gallica.bnf.fr/ark:/12148/bpt6k6485867v/f156.image.r=Salon%20de%20%201857%20about.langPT GAUTIER, Théophile. “Salon de 1857”. L’Artiste, 2e tome, n° 3, 20 septembre, 1857, p. 34. Disponível em: http://gallica.bnf.fr/ark:/12148/bpt6k220833h/f35.image.r=L%27artiste.langFR 231 123 nos permitem afirmar o caráter moralista e conservador do crítico Jules Verne, sobretudo diante da crítica feita por Théophile Gautier. Este se mostra mais indulgente, menos conservador e menos moralista, o oposto do que Jules Verne traz para compor o conjunto de ideias normativas que adota em relação à natureza e à função da arte, às técnicas artísticas e às qualidades que ele julga indispensáveis à obra de arte. Em suma, espera-se de um artigo crítico sobre arte que ele descreva, interprete e avalie a produção e a recepção de obras, de estilos, de artistas. Que leve em conta movimentos estéticos, acontecimentos institucionais como a entrega de prêmios e medalhas. Uma crítica de arte pressupõe, portanto, a exterioridade do objeto que estará ligada a esse movimento descritivo, interpretativo e avaliativo. A análise desses critérios de juízo, que norteiam o gênero desde Diderot, permite extrair normas e valores constitutivos do que tratamos aqui como a concepção de arte do crítico. Com a perspectiva discursiva que pretendemos aqui, entendemos que a escolha de um nome para criticar um Salão por uma revista especializada em artes seria suficiente para conferir a autoridade necessária a Jules Verne para intervir como crítico. A Revue des Beaux-Arts o legitima e o autoriza a pronunciar tais julgamentos. Entretanto, ausência de informações sobre outros trabalhos críticos anteriores ao Salão de 1857 e a escassez de textos que o autor publicara antes daquele ano não nos auxilia conjecturar sobre a figura do crítico, isto é, não é possível fazer suposições sobre o ethos pré-discursivo do crítico ao procedermos à análise dos seus ensaios. Essa constatação reitera a ideia de que escrever uma crítica de arte, para Jules Verne, é uma tentativa de inscrever seu nome no campo literário. O gênero serve para que Verne, como para muitos outros, se faça conhecer pelo público leitor e estabeleça alianças no campo das artes. Na sua crítica, Jules Verne se vale de instrumentos que lhe permitem justificar o julgamento que pronuncia sobre a obra de arte. Esses instrumentos são esquemas argumentativos, retóricos e estratégicos que auxiliam a atribuir à obra qualidades valorizadas. Através desses instrumentos discursivos, com base em indícios textuais, pudemos investir de caráter e corporalidade o ethos do crítico e construir a figura do fiador, reunindo a função social do enunciador e seu discurso. A atribuição desses valores/qualidades por parte do crítico Jules Verne indica algumas de suas ideias a respeito da arte que, em conjunto, comporiam seu projeto estético naquele momento. Objetivando desvendar suas concepções em matéria de arte, propusemo-nos algumas questões que permitiram guiar nossa busca. Analisando a crítica, tentamos desvelar o papel social da arte, a posição do artista na sociedade, o estatuto da 124 arte em relação à(s) outra(s) forma(s) de expressão, as qualidades que uma obra de arte deve ter e os temas e procedimentos técnicos são apropriados para expressar a arte. Tendo estudado esses seis artigos críticos sob a ótica dessas questões, podemos afirmar que o estilo de aprendiz crítico é fluido. Na esteira de Diderot, Jules Verne mostra que a crítica de arte é composta por diferentes tipos de discurso que tratam do literário, do artístico e do histórico. Em forma de narrativa, valendo-se ainda do descritivo e do argumentativo, Jules Verne não apresenta seus ensaios organizados de acordo com os gêneros acadêmicos da pintura, embora os valorize; tampouco os organiza por nome do pintor, como outros fazem; Verne procede à maneira de um simples espectador que passeia pelo salão, escolhe o quadro e o critica. No que diz respeito à relação entre pintura e outras formas de expressão, nesse caso a literatura, embora não faça profundas reflexões, o crítico defende que os assuntos da atualidade nunca foram temas de sucesso para a pintura, como são para as produções literárias. Com essa afirmação, Verne parte em defesa da hierarquia dos gêneros da pintura encabeçada pela pintura de história em detrimento da pintura militar, o que implicitamente, pode ser lido também como uma crítica aos feitos do Império de Napoleão III e à submissão da arte ao Estado já que pintores não especialistas no gênero oficial precisam se render a ele para poder obter prêmios, acumular capitais. A ideia da defesa da hierarquia dos gêneros e da valorização da pintura de história é reiterada pela menção de cinco quadros que não estão expostos no Salão de 1857. Esses quadros figuram, por assim dizer, no “museu imaginário” do crítico. Eles nos servem de referência para situar o que Jules Verne projeta como qualidade na pintura e o que é uma pintura de qualidade. Observamos uma regularidade genérica nessa lista de quadros: todos extraem seus temas da história, da Bíblia ou da literatura. Ao mencionar a disposição das obras nas paredes e a iluminação das salas que priorizarão a experiência do visitante trazendo os quadros para uma altura que permita que sejam vistos, Verne fala sobre o papel social da arte de maneira implícita. Elogiando essa nova organização, o crítico valoriza a experiência individual e, em consequência, a educação do/pelo olhar que deve estar ligada a um habitus dominante que se deseja modificar. Ao longo dos ensaios, o crítico concede ao leitor algumas noções que permitem revelar como suas concepções artísticas deverão se manifestar cinco anos mais tarde na sua produção romanesca: conservador e moralista, defenderá a hierarquia dos gêneros da 125 pintura, diferenciará antigos e modernos e criticará qualquer tentativa que se distancie de uma concepção romântica da arte. 4.3 Paris no século XX Desde o desenvolvimento das mídias impressas e da edição durante a Monarquia de Julho, na França, o ideal romântico da “sagração do escritor”, como proprõe Paul Bénichou,232 foi bastante modificado pelas lógicas econômicas capitalistas da indústria do impresso que extrapolaram as relações entre arte e dinheiro no campo literário. Como mencionado no capítulo 3 desta Tese, Gustave Flaubert caracteriza negativamente a situação do escritor no campo literário quando trata de sua situação financeiradurante o triunfo do liberalismo no Segundo Império. O escritor não tinha muita escolha quando decidia viver da sua pena. Desprovido de capital econômico, só lhe restava alienar sua independência, cedendo ao jornalismo, ao folhetim, enfim ao sistema de obras por encomenda. As condições de produção, no caso de Jules Verne, provam as premissas de uma profissionalização do escritor que a negociação com o editor contribuiu para instituir nas práticas contratuais, à medidaque seu papel de intermediário entre autores e leitores se tornou cada vez mais importante no campo literário, regido por tensões entre o econômico e o simbólico. Essa reflexão se faz necessária quando tratamos do romance Paris au XXe siècle, pois a admissão de Jules Verne na editora de Hetzel representou para ele a esperança de uma existência para e pela literatura. Essa entrada na editora de Hetzel indicaria também a que ponto Verne integra as aspirações da sua geração à profissionalização do homem das letras, como pudemos observar no contrato de 1865 que rezava o recebimento mensal de 750 francos por três volumes escritos. De fato, depois do primeiro contrato de 23 de outubro de 1862 para a publicação de Cinq Semaines en ballon, Hetzel mostrou certa astúcia publicando em fatias os romances Voyage au centre de la Terre e De la Terre à la lune de modo a “testar” a recepção do escritor. Se, depois da recusa de Paris au XXe siècle, um segundo contrato é assinado em 1 de janeiro de 1864 para a publicação em 232 Aludimos ao trabalho de referência sobre o Romantismo, elaborado pelo especialista em história da literatura Paul Bénichou. BÉNICHOU, Paul. Le sacre de l’écrivain, 1750-1830. Essai sur l’avènement d’un pouvoir spirituel laïque dans la France moderne. Paris : NRF-Éditions Gallimard, 1996. 126 volume das duas partes de Voyages et aventures du capitaine Hatteras (quarto romance de Verne), nenhuma promessa, senão verbal, indica uma clara intenção de ambas as partes emcontraírem um acordo que daria forma aos futuros romances de Jules Verne. As publicações de Voyage au centre de la Terre (segundo romance) e De la Terre à la lune (terceiro romance), não asseguram ao escritor as chances de um contrato fixo com o editor que parece hesitar diante da espera de um último veredito do público. A ausência de uma garantia legal deixa Jules Verne vulnerável ao poder do editor que só decide engajá-lo definitivamente na sua editora uma vez que o escritor tenha sua popularidade estabelecida pelo público. O terceiro contrato, que data de 11 de dezembro de 1865, fecha esse acordo em um compromisso delongo prazo por três volumes por ano, como sabemos.Verne pôde, enfim, conciliar a arte e o ofício de escritor graças aos valores que receberia por cada volume in-18. Nesse momento, a publicação de Voyages et aventures du capitaine Hatteras, no formato in-8, em 1867, aloca oficialmente a criação verniana em um empreendimento ideológico do contrato didático com o “Avertissement de l’éditeur” do Magasin d’Éducation et de Récréation (ver 6.2.3), anunciando um programa de literatura enciclopédica e lançando o ciclo romancesco das Voyages extraordinaires. Nessa perspectiva contratual, compreendemos que nenhum autor poderia associar-se à equipe do Magasin d’Éducation et de Récréation, portanto, sem o aceite das injunções de escrita impostas pelo pacto de leitura do prospecto da revista. Talvez por uma interpretação muito rápida dessas condições de produção literária, Verne tenha se chocado contra a incompreensão do seu editor que fez de Paris au XXe siècle um entrave do qual o romancista não mediu todas as consequências no que diz respeito ao seu futuro na editora. Apesar da confirmação da sua notoriedade junto ao público, seu engajamento só será efetivamente endossado por Hetzel quando uma série de regras didáticas e ideológicas limitará sua criação literária de maneira “pública”, com o anúncio do paratexto editorial das Voyages et aventures du capitaine Hatteras do programa enciclopédico das Voyages extraordinaires. 4.3.1 Fracasso de um romance e romance do fracasso Para Jules Verne, escritor que começa a ter seu nome celebrado junto ao público em razão do sucesso da sua primeira publicação, a recusa radical do manuscrito de Paris 127 au XXe siècle, romance caracterizado como impublicável por parte do editor, pode ser caracterizado como uma queda cruel. O que designamos como queda diz repeito ao fato de se tratar de um romance laudativo ao Romantismo e, portanto, de clara tentantiva de filiação a esta estética. A tentativa de sua publicação foi radicalmente abortada pelo editor. Embora Verne se valha dos acontecimentos científicos ocorridos naquele momento como o desenvolvimento da eletricidade e o advento dos motores a ar, para escrever esse romance, é o tom de crítica, desprezo e de censura contra a “Ciência” e suas “incursões nas artes” que sobressai na trama. Antes de tratarmos das representações artísticas românticas em detrimento do excesso de cientificismo caro a Hetzel e àquele momento histórico, cabe-nos um tratamento um pouco mais extenso da carta de Hetzel cujo julgamento não sanciona Paris au XXe siècle. O discurso de Pierre-Jules Hetzel nessa carta de quatro pequenas páginas escritas em 1864 visa justificar o problema da recusa do manuscrito, negociar com Jules Verne e persuadi-lo de que o livro não devia ser publicado: Mon cher Verne, je donnerais je ne sais quoi pour n’avoir pas à vous écrire aujourd’hui. Vous avez entrepris une tâche impossible – et pas plus que vos devanciers dans des choses analogues – vous n’êtes pas parvenu à la mener à bien. C’est à cent pieds au-dessous de Cinq semaines en ballon. [...] C’est du petit journal et sur un sujet qui n’est pas heureux. [...] Dieu sait pourtant que si votre livre avait été seulement un quart réussi j’étais décidé à le trouver bon tout à fait.233 Com um discurso persuasivo e ao mesmo tempo incisivo para afirmar com certa violência a sua oposição radical ao romance, Hetzel parece usar uma argumentação um tanto sedutora através da qual mostra seu poder de editor de vencer resistências, atribuindo a uma coletividade a legitimidade do seu bom senso: “Enfin, c’est raté, raté! et cent mille hommes me diraient le contraire que je les enverrais promener. Malheureusement cent mille hommes parleraient comme moi.234 Essa caução de “cem mil homens” não confina a retórica de Hetzel em uma lógica da exclusão, que se limitaria a dar a Jules Verne um lugar no banco dos réus nesse “processo” de Paris au XXe siècle. O esforço do discurso de sedução se nota também nos estratagemas que o editor evoca para sensibilizar e convencer Verne: Je ne vois rien à louer dans votre affaire, rien à louer franchement. Je suis désolé, désolé de ce que je dois vous écrire là. Je regarderai comme un désastre pour votre nom la publication de votre travail. Cela donnerait à voir que le Ballon est un heureux raccroc. Moi qui ai le Capitaine 233 234 HETZEL in VERNE, 1999, p. 25. HETZEL in VERNE, 1999, p. 25. 128 Hatteras je sais que le raccroc c’est cette chose manquée au contraire mais le public ne le saurait pas.235 Prevenindo Verne do desastre para seu “nome”, Hetzel evoca habilmente o que diz repeito ao essencial para o ego de um escritor que deseja ser publicado, lido e reconhecido: é através do nome que se dá a singularidade do escritor, pela assinatura que se efetua a identidade do escritor. Hetzel compara explicitamente “o trabalho” de Verne àquele de Cinq semaines en ballon ou ao do Capitaine Hatteras reunidos em um mesmo conjunto de obras de sucesso, do qual só pode ser excluído essa “coisa falha” que é Paris au XXe siècle. Pelo seu critério de classificação, o editor traça uma linha que separa o bom do ruim, o publicável do impublicável, a fim de explicar a Jules Verne que a reputação de uma assinatura engaja uma responsabilidade em relação à unidade de sua imagem de autor ainda em construção no campo e em fixação nas representações dos leitores. O falso dilema sobre o “feliz acaso” pressiona o escritor a refletir sobre a ruptura que a publicação desse manuscrito poderia causar na continuidade da construção de seu “nome” no campo trazendo a dúvida para o público, confiante na promessa que foi Cinq semaines en ballon. Quaisquer que tivessem sido as intenções de Jules Verne, com os dois manuscritos que Hetzel tinha em mãos, ao mesmo tempo, naquele momento, o escritor lhe oferece a possibilidade de julgar se ele tem as aptidões necessárias para escrever romances científicos com talento. Entre Paris au XXe siècle e o Capitaine Hatteras, o editor não hesita em sacrificar a exceção pela regra, o “acaso” pela garantia de uma estética romanesca em harmonia com o ideal de savant-écrivain aguardado por Hetzel e Macé para o lançamento do Magasin d’Éducation et de Récréation. O discurso persuasivo de Hetzel indica, sobretudo, uma censura. Do ponto de vista do ato de recusa desse manuscrito, não há dúvida que o editor aplica uma censura prévia como qualquer editor que usa da sua prerrogativa profissional para recusar ou aceitar a inscrição de um título no catálogo da sua editora em nome do seu papel comercial de intermediário no mercado dos bens simbólicos. Com o caso de Paris au XXe siècle, essa censura tem também um valor simbólico, em função do registro crítico que o romance tem em relação à situação de controle exercida pelo poder imperial autoritário sobre a profissão de editor cujo trabalho poderia ser visto como prejudicial à autoridade do Estado. Esse aspecto político do romance poderia ter sido considerado como um fator de menor importância por Hetzel se ele não tivesse observado a fraqueza literária de Jules 235 HETZEL in VERNE, 1999, p. 25. 129 Verne tanto no elogio que faz à sua editora,236 como na crítica dos mecanismos industriais e financeiros de Napoleão III.237 Nas relações entre um autor e um editor tem de existir uma razão determinante para se tomar a decisão de uma censura que rompa com o circuito da comunicação, perturbando o consenso do contrato. Essa questão, que envolve legitimidade, está no cerne dos argumentos de Hetzel sobre a “mediocridade” de Jules Verne em Paris au XXe siècle: Vous êtes dans le médiocre là, jusqu’aux cheveux. Il n’y a pas de vraie originalité, il n’y a pas d’esprit, il n’y a pas en un mot ce qui peut faire une carrière de six mois à un livre. Il y a de quoi vous faire un tort irréparable.238 Depois do nome, a originalidade é o outro elemento importante para ascender ao status de autor. É o que o editor elenca com a sua pena, a fim de apontar a falta de estilo do manuscrito de Verne. A originalidade deveria ser algo, portanto, que diferenciasse Jules Verne da massa de literatos de sua época. A autêntica originalidade é definida pelo editor quando lista as características essenciais para se obter um “bom livro” na Notice sur la vie et les ouvrages de Florian, redigida por Stahl, pseudônimo de Hetzel, em 1842. As referências à “simplicidade” e à “inteligência” retornam como critérios de avaliação da escrita - fora, contudo, do contexto de situação argumentativa de origem -, em prol de uma literatura para todas as idades. Implícito, o modelo das Fables de Florian sustenta o discurso de legitimação de censura que permite Hetzel destacar os valores primordiais que marcam a criatividade literária que faltam no manuscrito de Verne, impedindo, por esse motivo, qualquer chance de “carreira” para esse livro. Para convencer Verne do fracasso que a publicação do manuscrito poderia ter, Hetzel termina sua carta de recusa de maneira que o escritor tome consciência da reflexão que não fez sobre as exigências do tipo de ficção que tentou escrever. Hetzel traz para Verne a consciência da posição incipiente que ocupa no campo literário, naquele momento de sua trajetória: “Vous n’êtes pas mûr pour ce livre-là, vous le referez dans vingt ans.”239 Aludimos aqui ao capitulo X do romance em que Jules Verne elogia a editora Hetzel dizendo que “ela editava muito cuidadosamente seus livros”. VERNE, Jules. Paris au XXe siècle. Paris: Hachette, 1995, p. 121. 237 Referimo-nos ao registro panfletário de todo o romance mas, sobretudo, ao capítulo I em que critica, entre outros, a maneira como a Educação é tratada como uma operação industrial – para citar um exemplo. Cf. VERNE, 1995, p. 12. 238 HETZEL in VERNE, 1999, p. 25. 239 HETZEL in VERNE, 1999, p. 26. 236 130 A inadequação ao gênero e ao tema são características sublinhadas pelo editor para justificar a recusa da publicação. Excluindo da sua argumentação qualquer possibilidade de melhora ou reescrita do texto, o editor conta com o choque que essa censura total poderia causar no escritor para que este note as incoerências na sua ambição em escrever dentro do gênero de romance futurista, para usar uma terminologia ulterior. É dessa maneira que a crítica de Hetzel constrói para Verne as condições de possibilidade de uma criação romancesca encerrada nos limites da literatura didática para a juventude. Essas condições são confirmadas na carta de resposta de Jules Verne, datada de 25 de abril de 1864: Que vous me connaîtrez mal si vous pensiez un instant que votre lettre n’a pas été la bienvenue. Je vous affirme que j’en tiendrai compte car toutes vos observations sont justes. [...] D’ailleurs, je vais vous dévoiler toute ma pensée, mon cher Hetzel; je ne tiens pas énormément à être un arrangeur de faits; par conséquent je serai toujours prêt à modifier pour le bien général. Ce que je voudrais devenir avant tout, c’est un écrivain, louable ambition que vous approuverez pleinement.240 Cabe-nos verificar o que causou tal repulsa a Hetzel para que o editor recusasse a publicação do manuscrito e quais são os dados que informam sobre o projeto estético abortado do escritor. 4.3.2 A literatura e o personagem paratópico na Paris “futurista” A crítica verniana relata frequentemente que o estilo imaturo desse manuscrito criticado por Hetzel teria contribuído para o sucesso de Verne e reiterado o caráter científico da sua obra. De fato, se tivesse sido publicado, Paris au XXe siècle teria se unido aos outros romances das Voyages extraordinaires e poderia endossar a justicativa tão retomada por vernianos e não vernianos, difundida no meio escolar e perpetuada por escritores, roteiristas e diretores de filmes como Guerra nas estrelas (1977), De volta para o futuro (1985) A liga extraordinária (2003), entre tantos outros, querotulam o escritor como o pai da ficção científica. Escritas num mundo distante das possibilidades acenadas pela alta tecnologia de hoje, as Voyages extraordinaires são ricas em detalhes e escritas em tom de diário de viagem,com temas extraídos da leitura que Verne fazia de obras de outros autores, como 240 HETZEL in VERNE, 1999, p. 28. 131 o norte-americano Edgar Allan Poe, de revistas como Le Tour du Monde, e de conversas com amigos sobre descobertas e avanços científicos da época, como o fotógrafo Félix Nadar, interessado em navegação aérea e balonismo, tema recorrente em diversos romances de Verne, por exemplo. O resultado é uma mescla de ficção e realidade, aventura e princípios científicos, que lhe renderam, inclusive, o título de visionário, profeta de feitos que a ciência produziria, pelo menos, seis décadas mais tarde, como em seu De la Terre à la lune, romance de 1865, com eventos que se assemelham ao programa de exploração da Lua, concretizado em 1969. Seus últimos trabalhos tratavam dos impactos da tecnologia no ambiente, como em L’île à l’hélice (1895), no qual populações nativas de ilhas da Polinésia são destruídas, ou em Le sphynx des glaces (1897), no qual prevê a dizimação de baleias. A última obra foi L’invasion de la mer (1905), na qual um projeto de criação de um mar através de canais de comunicação com o Mediterrâneo é mal recebido pela população local, que vê seu estilo de vida ameaçado. A mudança do tom dos romances de Jules Verne, inicialmente otimista em relação aos benefícios que a tecnologia poderia trazer à humanidade, aconteceu, principalmente, depois da morte de Jules Hetzel, em 1886. Atribui-se esse pessimismo, com frequência, a outros fatos biográficos como uma crise no seu casamento, a morte de uma possível amante e um atentado de seu sobrinho esquizofrênico, que deixou oescritor coxo depois de 1886. Porém, Paris au XXe siècle, manuscrito do entorno de 1860 e ambientado na Paris de 1960, é um texto em que vemos acumular características paradoxais: mesmo que o narrador reconheça alguns aspectos positivos do progresso tecnológico - a modernização advinda da eletricidade, do uso do ferro nas construções e da velocidade, elementos que nos dão margem para falar de um Jules Verne, não só visionário, mas futurista antes do tempo. O que salta aos olhos no romance, são os resultados e consequências dessa modernização, as características pessimistas em relação ao crescimento exacerbado da indústria que faz apagar da história da arte e da literatura todas as referências românticas - para adiantarmos algumas conclusões. Jules Verne se vale da trama que se passa cem anos adiante de seu tempo para criticar asociedade e os meios de produção artística coetâneos. Para isso, cria o jovem personagem Michel Dufrénoy, poeta e latinista, que vive em uma Paris de arranha-céus, trens de alta velocidade, carros movidos a gás, uma cidade na qual não encontra a felicidade diante de um ambiente altamente materialista, resultando em um fim trágico. 132 Em traços gerais, Paris au XXe siècle é caracterizado por sua descrição da idade moderna. Ambientada na Paris do ano 1960, a trama é povoada por descrições dos novos costumes e de uma cidade atingida pelas descobertas tecnológicas. O segundo capítulo, intitulado “Apanhado geral das ruas de Paris”, é usado pelo narrador para descrever minuciosamente o espaço com atenção às modernas, rápidas e eficientes vias férreas que passam por cima das casas: “[...] suivant l’axe des boulevards, à cinq mètres des maisons, au-dessus de la bordure extérieure des trottoirs; d’élégantes colonnes de bronze galvanisé les supportaient et se rattachaient entre elles”.241 Sem economizar ao citar nomes das ruas da capital francesa, o narrador dá conta das estações por onde passam e param os trens com os quais era possível circular de uma extremidade à outra de Paris com a maior rapidez: “Les stations du railway des boulevards se trouvaient situées au Trocadéro, à la Madeleine, au bazar Bonne Nouvelle, à la rue du Temple et à la Place de la Bastille”.242 A energia elétrica tem sua presença marcada na descrição do espaço desse romance: La foule encombrait les rues. La nuit commençait à venir; les magasins somptueux projetaient au loin des éclats de lumière électrique. Les candelabres établis d’après le système Way par l’électrisation d’un filet de mercure rayonnaient avec une incomparable clarté; ils étaient réunis au moyen des fils souterrains; au même moment, les cent mille lanternes de Paris s’allumaient d’un seul coup.243 Os carros não puxados por cavalos, como observado pelo narrador, também têm seu lugar nessa cidade desenvolvida tecnologicamente: “En effet, de ces innombrables voitures qui sillonnaient la chaussée des boulevards, le plus grand nombre marchait sans chevaux ; elles se mouvaient par une force invisible, au moyen d’un moteur d’air dilaté par la combustion du gaz”.244 Diante de tais modificações na cidade de Paris, o narrador, instalado no século XX, se pergunta: Qu’eût dit un de nos ancêtres à voir ces boulevards illuminés avec un éclat comparable à celui du soleil, cent mille voitures circulant sans bruits sur le sourd bitume des rues, ces magasins riches comme des palais, d’où la lumière se répandait en blanches irradiations, ces voies de communication larges comme des places, ces places vastes comme des plaines, ces hôtels immenses dans lequels se logeaient somptueusement vingt mille voyageurs, ces viaducs si légers, ces longues galeries élégantes, ces ponts lancés d’une rue à l’autre, et enfin 241 VERNE, 1995, p. 26. VERNE, 1995, p. 27 243 VERNE, 1995, p. 28-29. 244 VERNE, 1995, p. 29. 242 133 ces trains éclatants qui semblaient sillonner les airs avec une fantastique rapidité.245 Em suma, tais descrições que o narrador apresenta da cidade de Paris nos lembram características da vertente artística Futurista cujo manifesto só se dará no início do século XX. Sabe-se que o Futurismo foi introduzido por Filippo Marinetti, poeta italiano, com o seu “Manifesto Futurista”, publicado na primeira coluna do jornal francês Le Figaro, em 20 de fevereiro de 1909: 245 VERNE, 1995, p. 30. 134 Fig. 16 (Le Figaro, 20 février 1909 – Gallica BNF) 135 O manifesto marcou a fundação do Futurismo, um dos primeiros movimentos da arte moderna. Entre diversas características, o movimento futurista trata da exaltação dos movimentos tecnológicos, da velocidade, da energia e da força, a par de uma inquestionável crença no progresso científico-tecnológico, anunciando paralelamente uma nova concepção estética, simbolizada por exemplo, pelo automóvel. O item quatro, ditado no manifesto, atesta essa característica: Nós afirmamos que a magnificência do mundo enriqueceu-se de uma beleza nova: a beleza da velocidade. Um automóvel de corrida com seu cofre enfeitado com tubos grossos, semelhantes a serpentes de hálito explosivo... um automóvel rugidor, que parece correr sobre a metralha, é mais bonito que a Vitória de Samotrácia.246 De fato, quando falamos de Jules Verne, a compreensão do significado de futurista vem da acepção primeira da palavra, e não do movimento artístico que tomou tal nome. O termo futurista já existia antes desse movimento, significando algo que está “à frente de seu tempo”, o que se aplica provavelmente ao pensamento dos Futuristas a respeito de si mesmos e aos clichês que envolvem o nome de Jules Verne. Mas o que propomos aqui com essa alusão é dizer que tais características em Jules Verne apontam o autor como um futurista antes do tempo, futurismo, aqui, enquanto movimento estético; sendo o romance Paris au XXe siècleo mais representativo dessas características. No entanto, como sinalizamos anteriormente, um paradoxo se instala, já que o personagem principal, o jovem Michel Dufrénoy, mostra-se um indivíduo atordoado diante das modificações tecnológicas proporcionadas pelo desenvolvimento científico. Esse aspecto se sobrepõe às características de exaltação da tecnologia. O que sobressai para o leitor, é que o autor tem a intenção de descrever os avanços tecnológicos para, em seguida, mostrar sua perniciosidade para a literatura e para a pintura. As representações da arte e do artista, portanto, não são realizadas sob aspectos positivos. Com elas, o narrador constata a “morte” definitiva do Romantismo. Com base nesse momento da trajetória de Jules Verne no campo literário, podemos ler essa informação como uma obra autobiográfica: o personagem Michel Dufrénoy sendo o próprio Verne. Poeta bretão que escreve versos e vai a Paris em busca de um editor e para receber um prêmio de poesia latina, Michel Dufrénoy se sente deslocado na cidade futurista, onde só a escrita tecnológica e científica é favorecida e onde oartista só serve para distrair a digestão alheia: “Or, l'artiste n'est pas loin du grimacier auquel je jette cent sols de ma 246 Original disponível no site da BNF http://gallica.bnf.fr/ark:/12148/bpt6k2883730.r=.langfr. Última consulta: 20 de novembro de 2015. 136 stalle pour qu’il amuse mes digestions”247, como profere Stanislas de Boutardin, tio e tutor do órfão Michel, aquele que o recebe e o abriga em Paris. Banqueiro, Stanislas é um personagem que incarna toda opinião a qual se opõe Michel; ele valoriza somente a utilidade das coisas e despreza a arte: M. Stanislas Boutardin était le produit naturel de ce siècle d’industrie; homme pratique avant tout, il ne faisait rien que d’utile, tournant ses moindres idées vers l’utile, avec un désir immodéré d’être utile, qui dérivait en un égoïsme véritablement idéal; joignant l’utile au désagréable, comme eût dit Horace; sa vanité perçait dans ses paroles, plus encore dans ses gestes, et il n’eût pas permis à son ombre de le précéder; il s’exprimait par grammes et par centimètres [...] il méprisait royalement les arts, et surtout les artistes, pour donner à croire qu’il les connaissait; pour lui, la peinture s'arrêtait au lavis, le dessin à l'épure, la sculpture au moulage, la musique au sifflet des locomotives, la littérature aux bulletins de Bourse.248 Obrigando o jovem Michel a trabalhar no seu banco, Stanislas Boutardin tenta distanciá-lo da sua arte. A passagem abaixo relembra o momento da trajetória de Jules Verne que, quando vai para Paris, precisa trabalhar na Bolsa de Valores a fim de honrar, inclusive, os contatos sociais feitos por seu pai que, inicialmente, recusava a ideia de que seu filho se tornasse escritor: Monsieur, vous allez entendre des paroles que je vous prie de graver dans votre mémoire. Votre père était un artiste. Ce mot dit tout. J’aime à penser que vous n’avez pas hérité de ses malheureux instincts. Cependant j'ai découvert en vous des germes qu'il importe de détruire.Vous nagez volontiers dans les sables de l’idéal et, jusqu'ici, le résultat le plus clair de vos efforts a été ce prix de vers latins, que vous avez honteusement remporté hier. Chiffrons la situation. Vous êtes sans fortune, ce qui est une maladresse ; un peu plus, vous étiez sans parents. Or, je ne veux pas de poètes dans ma famille, entendez-vous bien !249 No quarto capítulo do romance, intitulado “De alguns autores do século XIX e da dificuldade de obtê-los”, temos descrita a visita do personagem a uma biblioteca pública, na qual vai procurar autores como Victor Hugo, Honoré de Balzac, Alfred de Musset e Alphonse de Lamartine, todos referências românticas. Entretanto, no lugar de NotreDame de Paris ou da Comédie humaine, encontra Harmonias elétricas de Martillac, Meditações sobre o oxigênio, do Sr. Pulfasse, O paralelograma poético e as Odes descarbonadas. Estupefato e aterrorizado, exclama: “L’art n’avait donc pas échappé à 247 VERNE, 1995, p. 39. VERNE, 1995, p. 35. 249 VERNE, 1995, p. 38-39. 248 137 l'influence pernicieuse du temps! La science, la chimie, la mécanique, faisaient irruption dans le domaine de la poésie!”250 Aproximadamente três anos após a escrita desse romance, Jules Verne se tornará o escritor savant que atenderá Hetzel e Macé na composição da equipe do Magasin d’Éducation et de Récréation que, entre outros, será o lugar de exposição do espaço que a ciência tem na literatura, como informa um dos paratextos que estudamos no capítulo 3 desta Tese. No romance, diálogo entre um empregado da biblioteca e Michel dá conta, não somente da constatação do lugar que a literatura tem em meio ao desenvolvimento científico tecnológico do século -, e já desejamos dizer, da literatura romântica - como também do valor negativo que um “savant” adquire em oposição a um “auteur”: L’employé ouvrit des yeux démesurés. Victor Hugo?, dit-il. Qu’est-ce qu’il a fait? - C’est un des grands poètes du XIXe siècle, le plus grand même, répondit le jeune homme en rougissant. - Connaissez-vous cela ? demanda l'employé à un second employé, chef de la Section des Recherches. - Je n’en ai jamais entendu parler, répondit ce dernier. Vous êtes bien sûr du nom ? demanda-t-il au jeune homme. - Parfaitement sûr. - C’est qu’il est rare, reprit le commis, que nous vendions ici des ouvrages littéraires. Mais enfin, puisque vous êtes certain... Rhugo, Rhugo,... dit-il en télégraphiant. - Hugo, répéta Michel. Veuillez demander en même temps, Balzac, de Musset, Lamartine. - Des savants ? - Non! Des auteurs. - Vivants? - Morts depuis un siècle. - Monsieur, nous allons faire tous nos efforts pour vous obliger ; mais je crains bien que nos recherches ne soient longues, sinon vaines. - J’attendrai, répondit Michel. Et il se retira dans un coin, abasourdi! Ainsi, toute cette grande renommée ne durait pas un siècle! Les Orientales, les Méditations, les Premières Poésies, la Comédie humaine, oubliées, perdues, introuvables, méconnues, inconnues! [...] Quoi! se disait Michel, de la science! de l'industrie! et rien pour l’art!251 Na ocasião, não sem dificuldade, Michel consegue um exemplar de Notre-Dame de Paris, de Victor Hugo e, ao fazer o empréstimo do livro descobre que, Huguenin, um velho bibliotecário amante de leitura, é um outro tio seu, irmão de sua mãe. Espantado com o reencontro e com a ausência dos autores que procurava, indaga seu tio sobre essa 250 251 VERNE, 1995, p. 40. VERNE, 1995, p. 44 138 falta. Valendo-se de termos ligados à “morte”, o narrador insinua nessa passagem a constatação do escritor face ao fim simbólico da literatura romântica, fato que poderíamos relacionar ao momento da trajetória de Jules Verne no campo literário: Michel parla du but de sa visite à la bibliothèque, et interrogea son oncle sur la décadence de la littérature. “La littérature est morte, mon enfant”, répondit l’oncle ; vois ces salles désertes, et ces livres ensevelis dans leur poussière; on ne lit plus; je suis ici gardien de ce cimetière, et l’exhumation est interdite.252 Dufrénoy, ainda assim, determinado em ser um artista, trabalha no banco de seu tio, onde conhece seus colegas de trabalho Quinsonnas, um pianista, e Jacques, seu ajudante, e usa o restante de suas horas diárias para escrever um livro de poesias, mesmo achando que seria impossível encontrar um editor e público leitor que se interessasse. Discutindo sobre esse trabalho de poesia, Quinsonnas o desencoraja, mostrando o lugar que a literatura tem no campo literário em busca de autonomização, cuja maior característica é a submissão ao campo econômico, nos termos de Bourdieu. O narrador compara o campo literário e, por extensão o campo editorial, a um “mercado”, uma “imensa feira”. Ironicamente, é esse sistema criticado no manuscrito ao qual Jules Verne terá de ceder para se tornar “escritor”: Ce cher enfant, répliqua Quinsonnas, il espère, il travaille, il s’enthousiasme pour les bons livres, et quand on ne lit plus Hugo, Lamartine, Musset, il espère se faire lire encore! Mais, malheureux! astu donc inventé une poésie utilitaire, une littérature qui remplace la vapeur d’eau ou le frein instantané? Non? eh bien! ronge le tien, mon fils! si tu ne racontes pas quelque chose d’étonnant, qui t’écoutera ? L’art n’est plus possible que s’il arrive au tour de force! De notre temps, Hugo réciterait ses Orientales en cabriolant sur les chevaux du cirque, et Lamartine écoulerait ses Harmonies du haut d’un trapèze, la tête en bas! - Par exemple, s’écria Michel bondissant. - Du calme, enfant, répondit le pianiste, et demande à Jacques si j’ai raison! - Cent fois, dit Jacques; ce monde n’est plus qu’un marché, une immense foire.253 Em uma de suas visitas frequentes ao seu tio Huguenin, Michel Dufrénoy reencontra um antigo professor de grego e latim cuja filha, Lucy, se torna sua companheira de passeios em Paris, namorada e encorajadora do seu trabaho de poesia. Ainda que esperançoso em se casar com a jovem Lucy, Michel se vê em um impasse 252 253 VERNE, 1995, p. 51. VERNE, 1995, p. 80-81. 139 diante das dificuldades de ser poeta depois de ter sido demitido e expulso da casa de seu tio-tutor. No capítulo XIII do manuscrito, intitulado “Onde é tratado da facilidade com a qual um artista pode morrer de fome no século XX”, o narrador reitera não só a ideia da morte da literatura, como também da pintura. Tentando mais uma vez desencorajá-lo na ideia de ser artista, Quinsonnas, ex-colega de trabalho de Michel, lança: - Je ne plaisante pas, j’argumente! Tu veux être artiste à une époque où l’art est mort ! - Oh! mort! - Mort! enterré, avec épitaphe et urne funéraire. Exemple: es-tu peintre? Eh bien, la peinture n’existe plus; il n’y a plus de tableaux, même au Louvre; on les a si savamment restaurés au siècle dernier, qu'ils s’en vont en écaille ; les Saintes Familles de Raphaël ne se composent plus guère que d'un bras de la Vierge et d’un œil de saint Jean; ce qui est peu; Les noces de Cana t'offrent au regard un archet aérien qui joue d’une viole volante; c'est insuffisant! Les Titien, les Corrège, les Giorgione, les Léonard, les Murillo, les Rubens ont une maladie de peau qu'ils ont gagnée au contact de leurs médecins, et ils en meurent; nous n’avons plus que des ombres insaisissables, des lignes indéterminées, des couleurs rongées, noircies, mêlées, dans des cadres splendides! On a laissé pourrir les tableaux, et les peintres aussi; car il n’y a pas eu une exposition depuis cinquante ans. Et c’est heureux!254 Como nas outras passagens, o personagem, situado no século XX, faz uma crítica a seu tempo. Quando se trata em falar da manutenção das obras de arte do Museu do Louvre, é categórico: “Deixou-se estragar os quadros! E os pintores também.” Mesmo que de maneira, incipiente, essa crítica integra a discussão que se travava desde 1848 sobre o surgimento, a institucionalização e a profissionalização de outras áreas ligadas ao museu no Segundo Império. Além dos conservadores dos museus imperiais, inspetores de sala, restauradores, fotógrafos e guias procuravam ser reconhecidos pela instituição. Bertinet trata na sua obra de referência sobre os museus de Napoleão III da questão polêmica que envolvia o trabalho da restauração e do ofício do restaurador. Ele relata, por exemplo, que as intervenções na Vênus de Milo, em 1854, e na Vitória de Samotrácia, ocorrida de 1864 a 1866, tiveram resultados ruins a ponto de serem notícias em diversos jornais e revistas da época, o que contribuiu para a difamação do trabalho do restaurador, cujo talento consistiria somente em reparar perdas sem repintar o remoldar, trazer novamente harmonia à obra com a menor quantidade de trabalho possível.255 Para a pintura, o exemplo do qual Bertinet se vale é exatamente o mesmo que aquele usado nos argumentos do personagem Quinsonnas, de Jules Verne. 254 255 VERNE, 1995, p. 161. Cf. BERTINET, 2015, p. 185. 140 Les Noces de Cana, painel de Veronese pintado entre 1562 e 1563, conservado no Museu do Louvre, foi restaurado em torno dos anos de 1850 e, em 1851, se tornou notícia devido à acusação feita a Villot, a quem se encomendou a restauração do painel, de ter modificado a pintura.256 Afora as considerações estéticas sobre as restaurações, o discurso do personagem do romance de Jules Verne reforça os escândalos que se multiplicam à época sobre o trabalho dos conservadores e restauradores do Louvre - cujo métier se profissionaliza e se distancia da esfera de influência da Academia e dos pintores e restauradores independentes que têm tendência em considerar qualquer intervenção em uma obra como reservado ao seu domínio porque “somente o talento do artista é capaz de estabelecer uma restauração boa ou ruim”.257 Ao trazer essa discussão para Paris au XXe siècle Verne se posiciona contra o trabalho de restauração, tendo uma visão de inferioridade em relação à área e, portanto, conservadora sobre esse ofício. A discussão do personagem nos aproxima do posicionamento conservador de Verne no que diz respeito à pintura que ainda pode ser verificado na passagem que segue o diálogo que citamos acima. O personagem Quinsonnas julga ser bom o fato de não ter tido uma exposição na cidade há cinquenta anos: - Sans doute, car, au siècle dernier déjà, le réalisme fit tant de progrès qu’on ne put le tolérer davantage! On raconte même qu’un certain Courbet, à une des dernières expositions, s’exposa, face au mur, dans l'accomplissement de l’un des actes les plus hygiéniques, mais les moins élégants de la vie! C’était à faire fuir les oiseaux de Xeuxis.258 No trecho, além de aludir à anedota sobre o quadro de Zeuxis, referência já usada na peça Monna Lisa, o personagem evoca o pintor Courbet e a escola Realista em pintura para criticá-los. Seu conservadorismo reside em verificar que o “progresso” da escola realista em pintura, cujo maior expoente é Gustave Courbet, seria, na verdade, uma involução. Essa constatação remete às opiniões conservadoras de Verne enquanto crítico de arte do Salão de 1857 quando julgou o quadro Les demoiselles au bord de la Seine, de Courbet. Ainda em busca de um espaço no campo das artes, Michel Dufrénoy é conduzido a trabalhar no “Grand entrepôt dramatique”, sociedade que empregava homens “práticos e industriais” para reescreverem peças de teatro ao gosto do século XX. Como uma usina 256 Cf. BERTINET, 2015, p. 186. BERTINET, 2015, p. 187. 258 VERNE, 1995, p. 161. 257 141 de fabricação de textos, o que pode lembrar aos leitores do século XXI o modo das produções de Hollywood, das adaptações e séries de TV, a inclusão na trama desse “armazém dramático” permite Verne criticar, no capítulo XIV do romance, a industrialização das artes do espetáculo. Como funcionários do Estado, os admitidos pela “empresa” recebiam mensalmente salários por adaptarem textos. No caso de Michel, dezoito francos semanais seria a soma recebida para refazer comédias, segundo um teste de aptidão que precisou fazer. De acordo com o personagem, o “Grande armazém” não produzia nada além de textos que divertiam “les populations dociles par de paisibles ouvrages”.259 Para enfatizar a mediocridade das obras produzidas em ritmo de fábrica, o narrador coloca em paralelo a essa frase a falta dos autores dramáticos românticos: “Quelquefois, et par exception, on donnait du Molière au Palais Royal; mais Hugo, Dumas, Ponsard, Augier, Scribe, Sardou, Barrière et Vacquerie se trouvaient éliminés en masse”.260 Nesse capítulo, Jules Verne parece basear seu julgamento na sua infértil experiência na cena teatral parisiense, denunciando a pobreza das peças da época. O narrador alude a uma única peça de sucesso refeita por essa empresa: C'est ainsi que l’administration venait d’obtenir un immense succès au théâtre du Gymnase avec le Demi-Monde ingénieusement retourné ; la baronne d’Ange était devenue une jeune femme naïve et sans expérience qui manquait de tomber dans les filets de de Nanjac; sans son amie, madame de Jalin, ancienne maîtresse dudit Nanjac, le coup était fait ; l’épisode des abricots, et la peinture de ce monde de gens mariés dont on ne voyait jamais les femmes, enlevait la salle.261 Mais uma vez, o autor se vale do argumento do futuro para criticar o tempo que lhe é atual. Le Demi-Monde de Alexandre Dumas, peça de 1855, na época mais célebre que La Dame aux camélias, de 1848, sofre com a industrialização das artes do espetáculo e deixa claro a impossibilidade de um artista escapar a esse sitema. Em quinze dias de trabalho no armazém, tendo sido promovido ao departamento do drama, Michel recebe a tarefa de refazer Nos Intimes, texto de Victorien Sardou, de 1861. Sentindo-se incapaz de realizar as modificações que o “Grand entrepôt” exigia, Michel se demite e passa a deambular na miséria pela cidade de Paris. Nos dois últimos capítulos do romance, “O demônio da eletricidade” e “Et in pulverem reverteris”, o escritor descreve a infelicidade de Michel diante dessa sociedade industrial e excessivamente tecnológica através um 259 VERNE, 1995, p. 170. VERNE, 1995, p. 170. 261 VERNE, 1995, p. 174. 260 142 passeio do personagem, em uma noite de inverno em que, tendo ido visitar Lucy, fica desnorteado com o excesso de luz elétrica e termina no cemitério Père Lachaise. Errando entre os túmulos com um buquê de violetas na mão, o narrador se vale da cena para citar nomes de referências das artes que jazem no cemitério, pretexto para constatar a morte das suas contribuições para a arte. Da música à literatura passando por referências a pintores enterrados nesse cemitério, o narrador prefere reservar a última cena a uma dupla alusão a referências românticas - explicitamente a Alfred de Musset e, de maneira mais velada, a Honoré de Balzac: Plus bas, Alfred de Musset, mutilé sur sa stèle funéraire, voyait mourir à ses côtés le saule qu'il avait demandé dans ses vers les plus doux et les mieux soupirés. En ce moment, la pensée revint au malheureux ; son bouquet de violettes s'échappa de sa poitrine ; il le ramassa, et le déposa en pleurant sur la tombe du poète abandonné. Puis il remonta plus haut, plus haut encore, se souvenant et souffrant, et par une éclaircie de cyprès et de saules, il aperçut Paris. Au fond, le Mont Valérien se dressait, à droite Montmartre, attendant toujours le Parthénon que les Athéniens eussent placé sur cette acropole, à gauche, le Panthéon, Notre-Dame, la Sainte-Chapelle, les Invalides, et, plus loin le phare du port de Grenelle jetant sa pointe aiguë à cinq cents pieds dans les airs. Au-dessous Paris, et ses cent mille maisons entassées, entre lesquelles surgissaient les cheminées empanachées de dix mille usines. Plus audessous, le bas cimetière; de là, certains groupes de tombes apparaissaient comme de petites villes, avec leurs rues, leurs places, leurs maisons, et leurs enseignes, leurs églises, leurs cathédrales, faites d'un tombeau plus vaniteux. Enfin, au-dessus, les ballons armés de paratonnerres, qui étaient à la foudre tout prétexte de tomber sur les maisons non gardées, et arrachaient Paris tout entier à ses désastreuses colères. Michel eût voulu couper les cordes qui les retenaient captifs, etque la ville s’abîmât sous un déluge de feu! Oh! Paris! Oh Lucy! s'écria-t-il en tombant évanoui sur la neige.262 Depois de depositar o buquê de violetas sobre o túmulo de Alfred de Musset em um gesto de homenagem ao poeta romântico, não sem a tristeza da constatação de que a literatura que fizera teria igualmente morrido, Michel continua seu caminho em direção ao alto do cemitério e perde a consciência vendo a cidade de Paris modificada pelos avanços industriais e tecnológicos do século. A cena lembra a cena final do romance Le Père Goriot, de 1835, escrito por Honoré de Balzac, em que o jovem e ambicioso personagem Eugène de Rastignac, do alto do mesmo cemitério, lança o famoso desafio à cidade de Paris, comparada a uma colmeia da qual escuta os zumbidos: “À nous deux maintenant!”. Podemos estabelecer uma relação de oposição quanto às atitudes dos personagens de Verne e de Balzac; Michel, depois de não conseguir sobreviver da sua 262 VERNE, 1995, p. 210. 143 arte, de perceber que a ciência, a indústria e os avanços tecnológicos mataram, por assim dizer, suas referências artísticas, confunde a cidade de Paris com um cemitério. Tomando a visão de William Butcher263, que afirma, entre outros especialistas, que este é um romance biográfico, essa relação de oposição entre o personagem disposto e ambicioso de Balzac e Michel - o próprio Verne nesse momento da sua trajetória -, reforçaria a visão pessimista de Jules Verne sobre sua própria carreira e os rumos que ela teria de tomar. Até este momento da sua trajetória no campo literário, Verne tinha colecionado poucos sucessos mesmo realizando tentativas em diversos gêneros, como o teatro e a crítica de arte, defendendo um ponto de vista romântico sobre a arte, como mostrado nas análises de La Guimard e Monna Lisa, por exemplo. Conhecer o editor Jules Hetzel e começar a publicar fará com que Verne se insira dentro do sistema que critica em Paris au XXe siècle. Ora, a alienação do poeta Dufrénoy vivendo na experiência do desconforto provocado pela transformação de um mundo no qual não se enquadrava como artista, numa sociedade que não valoriza mais uma certa arte literária, permite-nos falar do seu lugar problemático na sociedade e aproximá-lo, assim, de Jules Verne. Nesse momento da sua trajetória no campo literário, fim de 1863 e início de 1864, o escritor, tendo publicado Cinq semaines en ballon e enviado Les Voyages et aventures du capitaine Hatteras para leitura de Hetzel, já havia tido fracassos no teatro, mas também experimentado outros gêneros literários. Embora já tivesse dado alguns passos adiante engajando-se com a editora e mostrado disposições para um possível abandono das suas tendências românticas com a trama Cinq semaines en ballon, romance que atraiu P.-J Hetzel, Verne submete o manuscrito de Paris au XXe siècle, escrito entre 1860-1861. Nesse romance de caráter futurista, o escritor exalta o Romantismo e constata o fim dessa estética. A submissão desse manuscrito, portanto, seria o indício de uma última tentativa de filiação ao movimento romântico. O personagem escritor de Paris au XXe siècle encontra-se à margem, em um não lugar, podendo ser, desse modo, caracterizado como paratópico, na acepção dada por Dominique Maingueneau, ao dizer que “o escritor [paratópico] nutre seu trabalho com o caráter radicalmente problemático de seu próprio pertencimento ao campo literário e à sociedade.264 A paratopia do personagem seria, assim, homóloga à própria experiência de 263 BUTCHER, 2006, p.137. MAINGUENEAU, Dominique. O contexto da obra literária. Trad. Marina Appenzeller. São Paulo: Martins Fontes, 1995, p. 27. 264 144 Jules Verne enquanto escritor, em um momento semelhante de sua trajetória literária. Quando Verne tinha a mesma idade de Dufrénoy, também se dividia entre a carreira de Direito, pretendida por sua família, e o desejo de se fazer conhecido no campo literário. Verne, assim como Dufrénoy, abandonou o caminho que tinha sido estabelecido para ele: mudou-se para Paris, trabalhou e abandou o emprego na Bolsa de Valores e tentou entrar no mundo das letras. Nessa época de atribulações, indecisões e fracassos, sobretudo nas suas investidas de adesão tardia à estética romântica, escreve o romance Paris au XXe siècle, apontando para a tentativa fracassada de um jovem escritor que tenta ter sua arte reconhecida e valorizada. A situação paratópica de um escritor o conduz a se identificar com todos aqueles que parecem escapar das linhas estabelecidas, diz Maingueneau, como os boêmios, judeus, mulheres, prostitutas, artistas, palhaços, aventureiros, índios da América. Jules Verne, à época ainda não muito conhecido do público nem dos pares, parece assim ter-se identificado com um poeta problemático instalado no futuro, tendo visto os modelos artísticos que reverenciava serem eclipsados pela ciência e pela indústria. O cerne da questão da paratopia é uma discussão que faz oscilar a condição do autor/escritor, enquanto agente de produção de sentido, entre espaços paradoxais: o campo literário, a sociedade, sua posição dentro desses dois espaços e seu posicionamento na obra, entre o valor de uma literatura original e sua aceitação no campo. O caráter paradoxal reside nos extravasamentos do personagem paratópico desse romance, assim como a literatura que nele se apoia não tem realmente um lugar designado na sociedade. Extrai-se força dessa sua marginalidade, transformando-a em motor de escrita, nutrindo, por sua vez, essa paratopia. Esse manuscrito, divisor de águas na trajetória de Jules Verne, como pretendemos na introdução dessa Tese, incita os leitores a pensar nas divergências tangentes ao projeto estético de Verne, observando, sobretudo, uma primeira fase de sua carreira, antes que ele se aliasse ao editor Hetzel no projeto de produzir uma literatura destinada à juventude, atrelada à ciência e com forte apelo comercial. A trama do romance Paris au XXe siècle pode ser representativa de uma escrita futurista avant la lettre, porém marcada pela confrontação entre o otimismo em relação ao progresso científico, caro a um Jules Verne posterior, em sua carreira já sedimentada, e o olhar crítico e desiludido do personagem principal do romance diante da cidade modernizada do futuro e seus automóveis rugidores, intuindo de forma pessimista o lugar da literatura e das artes no mundo moderno, o que o aproxima de um jovem Jules Verne, anterior ao encontro com Hetzel. 145 Julgado como impublicável, a crítica do editor que censurou Verne não o aprisionou em uma ideia de fracasso. A censura lhe trouxe ensinamentos úteis. Sabendo que o problema do manuscrito gira em torno, essencialmente, da questão do tipo de posicionamento discursivo sobre a ciência em literatura, é através de uma retirada tática em direção à ideologia do progresso, endossado pela recepção de Cinq semaines en ballon, que se pode apagar qualquer imbróglio sobre as relações entre editor e autor. Embora a correspondência não traga nada além do que já citamos sobre o desfecho dessa crise, as primeiras publicações das edições Hetzel na linha do romance do Capitão Hatteras atestam pelo menos o impacto da carta de Hetzel. O escritor tira dessa prova a consciência do risco que correria escrevendo contra as conveções de certo grupo cujo principal fiador era o próprio editor. Deixando claro suas intenções em se tornar um escritor reconhecido desde as primeiras cartas, Jules Verne supera as críticas sobre Paris au XXe siècle para investir em um gênero e se posicionar em uma doutrina cujas coerções foram aceitas tacitamente depois das tensões desse fim de 1863, início de 1864. Mesmo assim, nos limites da “arte útil”, o romancista conseguirá retomar, em certa medida, o seu projeto estético fundado em uma nostalgia do romantismo. Naquele momento da sua trajetória no campo, o manuscrito de Paris au XXe siècle representa uma “pá de cal” em uma tentativa de filiação tardia ao Romantismo. A corrente da “antecipação científica” inaugurada com a publicação do romance De la Terre à la lune, em 1865, que Verne contribui a fundar é, de fato, consensual: o escritor orienta a ficção futurista iniciada com Paris au XXe siècle para uma previsão imaginativa de invenções técnicas extraordinárias compatíveis com a lógica do progresso científico e conserva uma enunciação ligada ao progresso da sociedade, ancorada nas revoluções industriais do século. No entanto, na impossibilidade de apagamento do seu habitus, Verne marcará sua escrita em alguns momentos com o espírito das inovações dos projetos que comporão as Voyages extraordinaires com representações da arte e do artista articuladas a elementos valorizados pelo Romantismo. 146 4.4 Representações artísticas nas Viagens extraordinárias 4.4.1 O gabinete de curiosidades do capitão Nemo265 Objeto enorme, comprido e fusiforme, às vezes fosforescente, infinitamente maior do que uma baleia e com uma velocidade de locomoção incrível, tais são as primeiras características que o submarino Nautilus recebe na trama de Vingt mille lieues sous les mers, sexto romance de Verne,publicado no Magasin d’Éducation et de Récréation, no final de 1869 e em volume em 1870. Em oposição às características maravilhosas, o que mais assombrava na história eram os acidentes que ele supostamente provocava, levando alguns navios a pique e deixando outros com sérias avarias. O professor do Museu de História Natural de Paris, M. Aronnax, tentando decifrar a identidade do “monstro”, criou a hipótese de que seria um enorme cetáceo que precisava ser capturado. Com esta finalidade, a fragata Abraham Lincoln parte pelos mares à procura do monstro. Aronnax é convidado para essa viagem junto com seu fiel ajudante Conseil. A bordo, conhecem Ned Land, o rei dos arpoadores. Depois de percorrerem os mares à procura do cetáceo, finalmente o encontraram e, após várias tentativas de atingilo, a estranha criatura provoca o naufrágio da fragata. O professor Aronnax, Conseil e Ned Land são resgatados pelos tripulantes daquilo que achavam ser um cetáceo, mas que, para surpresa dos três, era um “submarino”. Já instalados no seu interior, conhecem o estranho Nemo, que se apresenta como sendo dono e capitão do Nautilus. Ele conta que, com a tripulação, partiu da terra para nunca mais voltar, que sua vida era nas profundezas da água de onde retirava alimento, roupas e outras riquezas. Para preservar sua sigilosa existência, Nemo decide manter os três a bordo do Nautilus, negando-lhes a possibilidade de voltarem à terra. A partir de então se inicia uma grande aventura pelos mares do planeta. Partindo do oceano Pacífico nas costas do Japão, o Nautilus navega ainda pelo Índico, Mar Vermelho, Mediterrâneo, Atlântico, os mares austrais e boreais, percorrendo um total de vinte mil léguas. Por se tratar de um romance que traz como base da trama o tema da viagem de descobertas, sobretudo deespaços desconhecidos ou pouco conhecidos, cremos ser evidente a importância que o descritivo assume no conjunto do texto. Perseguindo o Partes desse subitem já foram publicadas no artigo GUIRRA, Edmar. “Os Jardins submersos de Jules Verne: ciência e literatura em Vinte mil léguas submarinas”. Revista Interfaces. Rio de Janeiro: 7Letras, vol. 1, nº 16. Jan-Jun 2012, p. 30-48. 265 147 recorte a que nos propomos, enfocaremos aqui as passagens que se referem ao Nautilus e, mais particularmente, ao salão-museu do submarino. Em linhas gerais, para a apresentação do salão do Nautilus, o narrador se vale de uma longa pausa descritiva. A ela se interpõe uma ilustração referente ao salão-museu. Para a análise dessa passagem descritiva, tomaremos como ponto de partida a proposta teórica desenvolvida por Philippe Hamon e as considerações sobre o pictórico no literário, desenvolvidas por Liliane Louvel. Em seguida, cruzaremos os dados obtidos concernentes às representações da arte e do artista com a questão enunciativa e o posicionamento do autor no campo literário. Como mencionamos no capítulo 3 desta Tese, Jules Verne satisfaz seu editor, Jules Hetzel, com aproximadamente três e depois dois volumes anuais ao longo de pouco mais de trinta anos de dedicação à escrita, iniciada em 1864. A soma perfaz um total de sessenta e três romances, associados ao projeto editorial lúdico-instrutivo de Hetzel e nomeados no seu conjunto como Voyages extraordinaires. O progresso da ciência e das artes gráficas na segunda metade do século XIX permitia colocar nas mãos das crianças livros tão atraentes por sua forma quanto interessantes por seu conteúdo. Assim, a ilustração assumia um papel importante nos famosos volumes de capa vermelha e douradura nas páginas. Fig. 17 Capa original do romance – Edição Hetzel 148 Frequentemente, os pesquisadores da obra de Verne reservam um espaço considerável em seus estudos para as imagens e ilustrações dos romances do autor. Para citar os mais recentes, temos o artigo de Laurie Viala, “Les Voyages extraordinaires: une invitation aux images (2005);266 o artigo de Lionel Dupuy, “Inter et intrasémioticité dans l’oeuvre de Jules Verne” (2008);267 o livro que trata de um dos ilustradores vernianos, Edouard Riou, dessinateur,268 organizado por Guy Gauthier (2008); e ainda o artigo “Léon Benett: de la conception de l’illustration à la gravure”,269 de Marie-Annick Benet, (2012). Tendo em vista que o livro ilustrado era algo valorizado à época, podemos inscrever a ilustração em Verne emuma problemática global de sua obra; ela poderia contribuir para uma melhor compreensão das Viagens extraordinárias. Podemos considerar que existe uma relação entre o fato de os romances do autor geralmente serem conhecidos e mais vendidos em sua versão ilustrada e o grande malestar que o atormentava nos últimos anos de sua carreira: “[...]Un petit peu plus de justice à mon égard de la part de mes compatriotes m’aurait été infiniment plus chère que les milliers de dollars que mes livres auraient dû me donner. Voilà ce que je regrette et ce que je regretterai toujours”,270 declarou o escritor em entrevista no ano de 1893. A partir desse dado, uma questão pode ser levantada: Verne estaria associando a ilustração de seus romances à classificação de sua obra como literatura para crianças, ou até mesmo como paraliteratura, para utilizar uma categoria ulterior, e lamentando esse fato? Ao mesmo tempo, a ilustração não era uma exigência da classe burguesa emergente, público de Verne? Percebemos desde já, a que ponto a contribuição da ilustração modifica a recepção da obra, orienta o seu destino e, portanto, seria elemento na composição daquilo que Dominique Maingueneau nomeia como cenografia enunciativa, de que trataremos adiante. Cf. VIALA, Laurie. “Les Voyages extraordinaires : une invitation aux images”. In : PICOT, Jean-Pierre & ROBIN, Christian (dir.). Jules Verne 100 ans après – Actes du Colloque de Cerisy : Rennes : Terre de Brume, 2005, p. 109-122. 267 Cf. _____. “Inter et intrasémioticité dans l’œuvre de Jules Verne”. Applied Semiotics - Semiotics and Intermediality. Toronto: vol. 7, n° 20, 2008b, s.p. Disponível em: http://french.chass.utoronto.ca/assa/ASSA-No20/Article3fr.html 268 Cf. GAUTHIER, Guy. Édouard Riou, dessinateur. Entre Le Tour du monde et Jules Verne. Paris : L’Harmattan, 2008. 269 Cf. BENET, Marie-Annick. “Léon Benett : de la conception de l’illustration à la gravure.” Revue Jules Verne - Les Arts de la représentation. Amiens : Éditions du Centre International Jules Verne, nº 33-34. 2e semestre 2012, p. 183-195. 270 VERNE in BOIA, Lucien. Jules Verne - les paradoxes d’un mythe. Paris: Les Belles lettres, 2005, p. 11. A entrevista original e integral apareceu com o título “Jules Verne at home: his own account of hislife and work”, in McClures Magazine, vol. 11, n° 2, jan. 1894, p. 115-124. Traduzido do inglês por Sylvie Malbraneq, foi publicada no Magazine Littéraire, nº 281, em outubro de 1990, e se encontra disponível em: http://jv.gilead.org.il/butcher/sherard.html Última consulta: 18/07/2012. 266 149 Não intencionamos estudar exaustivamente as ilustrações da obra de Jules Verne. Para essa pesquisa, selecionamos uma única imagem acompanhada de sua respectiva descrição que traz recursos para a discussão que levantamos na Tese. Fig. 18 Desenho de Riou – Gravado por Hildibrand. VERNE, 1975, p. 102.271 Trata-se daquela que ilustra o salão do submarino Nautilus do capitão Nemo, personagem do romance Vingt mille lieues sous les mers, publicado em 1870. Um estudo desse conjunto texto-imagem nos traz dados suficientes para uma reflexão acerca do fato literário segundo a abordagem discursiva que adotamos. Nessa abordagem, elementos que eram considerados como exteriores à obra, como a ilustração, a correspondência com os colaboradores, coerções editoriais, meios de divulgação, o uso do suporte de publicação em volume, entre outros componentes, integram-se à exploração e à compreensão da obra. Respeitaremos em nossa leitura a ordem da dicotomia signo escrito/signo pictórico. Por uma questão de organização, em um primeiro momento, trataremos da descrição que diz respeito ao salão do Nautilus, passagem que pode ser recriada 271 As ilustrações do romance foram criadas por Alphonse de Neville (1836-1885) e Édouard Riou (18331900) e gravadas por Hildibrand para a edição de 1871. A que reproduzimos aqui é exclusivamente da autoria de Riou. Para acesso às ilustrações originais, remetemos ao site: jv.gilead.org.il/rpaul/. 150 visualmente pelo leitor ao elaborar mentalmente a imagem sugerida pela descrição. Para tanto, recorreremos eventualmente à poética do descritivo desenvolvida por Philippe Hamon e traremos reflexões acerca da imagem que ilustra essa passagem descritiva, parte materialmente visível no romance. Do visual ao visível, tal é o percurso de análise que pretendemos fazer. *** Com frequência, atribui-se a Jules Verne a paternidade do gênero literário que se convencionou chamar de ficção científica. Longe de querermos entrar no mérito que exige a discussão, cabe-nos dizer que Jules Verne não foi um cientista, nem um descobridor, tampouco um viajante explorador. No entanto, ao realizar uma leitura da sua obra, deparamo-nos com duas características que se mesclam e pertencem a esse gênero: a vulgarização do que já existia ou já era cogitado pela ciência e ainda uma faceta do autor capaz de realizar “previsões”. Dizemos que são características que se mesclam, pois as “profecias” de Verne, que giram em torno de descobertas científicas, são produtos de uma leitura atenta de muito do que se produziu em termos de conhecimento em seu século e anteriormente. Em seus romances, encontramos alusões a automóveis, aeroplanos, helicópteros; referências a pavimentos móveis, levantamentos geológicos, ar comprimido, motores elétricos, alimentos condensados, etc. A lista das maravilhas extraordinárias de Jules Verne é extensa e, na sua época, algumas eram impossíveis de serem realizadas. Não se podem desprezar as alusões às célebres viagens interplanetárias dos romances De la Terre à la Lune (1865) e Autour de la Lune (1869), por exemplo, que constituem hoje assunto permanente da imprensa, além da criação do que era apenas um embrião cientificamente possível: as viagens submarinas. O romance Vingt mille lieues sous les mers, publicado em formato de folhetim em 1869-1870,272 é exemplar a esse respeito. A trama representa, no conjunto da obra, uma espécie de caso limite, tanto pela carga de conhecimento científico quanto pelo conteúdo didático apresentados. Mais do que em outro de seus romances, aqui essa fusão é 272 Ao longo da pesquisa, encontramos divergências nas datas de publicação deste romance: 1869, 1870 e 1871. No processo de documentação, percebemos que os livros (biografias e fortunacrítica de Jules Verne) ora tratavam da(s) data(s) de publicação em formato de folhetim, ora em volume, ou ainda da edição princeps ilustrada. Para este romance, especificamente, tivemos ainda outro agravante: o formato volume foi publicado em dois tomos, em anos diferentes. Na tentativa de indicar datas mais precisas, preferimos adotar aquelas da biografia de referência escrita por William Butcher (2006) em que temos difundidas as seguintes datas: em formato folhetim, no Magasin d’Éducation et de Récréation, de março de 1869 a junho de 1870. A publicação em volume se deu em dois tomos: o primeiro em outubro de 1869 e o segundo somente em junho de 1870. A edição a que fazemos referência nesta seção é aquela de Michel de l’Ormeraie de 1975, que imita a edição princeps, como referenciado no capítulo introdutório à Tese. 151 reivindicada, desenvolvida, exibida, às vezes até mesmo em detrimento da legibilidade e da compreensão do texto. As passagens descritivas, portanto, encenarão importante papel na trama. Em carta ao seu editor, datada de 28 de março de 1868, pouco mais de um ano antes da publicação de Vingt mille lieues sous les mers, Jules Verne preparava o terreno para introduzir a obra: Je travaille avec rage. Il m’est venu une bonne idée. Il faut que cet inconnu n’ait plus aucun rapport avec l’humanité dont il s’est séparé. Il n’est plus sur terre, il se passe de la terre. La mer lui suffit, mais il faut que la mer lui fournisse tout, vêtement et nourriture. Jamais il ne met pied sur le continent. Les continents et les îles viendraient à disparaître sous un nouveau déluge, et je vous prie de croire que son arche sera un peu mieux installée que celle de Noé. Je crois que cette situation “absolue” donnera beaucoup de relief à l’ouvrage. Ah! mon cher Hetzel, si je ratais ce livre-là, je ne m’en consolerais pas. Je n’ai jamais eu un plus beau sujet entre les mains.273 Para que ocapitão Nemo não tenha mais contato com a humanidade, o escritor o encerrará no Nautilus, submarino que lhe serve de casa e servirá detúmulo no romance L’Île mystérieuse (1875), romance em que este personagem reaparece. Embora se trate de uma máquina, o Nautilus é praticamente um personagem na trama, já que será o motor de todos os acontecimentos. Tomado por sua curiosidade de estudioso, Aronnax pergunta ao capitão quais os recursos disponíveis no fantástico veículo. A lista não é pequena: aparelhos diversos de navegação, bússolas, termômetros, barômetros, higrômetros, sextantes, velocímetros, sem contar a iluminação e o aquecimento que dependem da geração de eletricidade. No entanto, não é somente a versatilidade tecnológico-científica do Nautilus que é destacada no romance. No segundo capítulo, temos a primeira longa passagem descritiva (entremeada de curtas passagens narrativas) que trata da decoração do interior da embarcação, da riqueza artística dos salões do submarino. O fim do primeiro capítulo, que funciona como um gancho para o leitor continuar a leitura do próximo - “Maintenant, monsieur le professeur, dit-il, si vous voulez visiter le Nautilus, je suis à vos ordres.”274 somado ao título do segundo capítulo (“O Nautilus”) já são índices de que o leitor verá descritoo interior do submarino. O título “O Nautilus” servirá, portanto, de pantônimo275 geral que será desenvolvido largamente pela descrição dos cômodos do submarino ao 273 VERNE, 1999, p. 80. VERNE, 1975e, p. 96. 275 Philippe Hamon se refere a esse termo para designar o equivalente a “objeto descrito” passível de ser denominação ou identificação de um enunciado metalinguístico. Cf. HAMON, 1981, p. 140. 274 152 longo do capítulo, isto é, a expectativa criada por esses elementos será cumprida ao longo da leitura. Constata-se, no desenrolar da descrição, a constituição canônica da passagem descritiva no que tange à composição de espaços: de fora para dentro, como propõe Hamon. Seguindo esse modelo, o leitor, como o professor Aronnax, também se sente entrando no submarino como convidado e descobrindo seus aposentos. Depois da nomeação do espaço que coube ao título do capítulo e de uma demarcação do espaço e do movimento:“Le capitaine Nemo se leva. Je le suivis. Une double porte, ménagée à l’arrière de la salle, s’ouvrit, et j’entrai dans une chambre de dimension égale à celle que je venais de quitter”.276Anunciando a apresentação do “quadro” descritivo, ideia reforçada pela presença da porta que, segundo Hamon, servindo de passagem de um ambiente a outro, propõe a necessidade de exploração por se tratar de uma abertura num espaço fechado que esconde outro. A partir dessa abertura, a descrição se desenrola assim: C’était une bibliothèque. De hauts meubles en palissandre noir, incrustés de cuivre, supportaient sur leurs larges rayons un grand nombre de livres uniformément reliés. Ils suivaient le contour de la salle et se terminaient à leur partie inférieure par de vastes divans, capitonnés de cuir marron, qui offraient les courbes les plus confortables. De légers pupitres mobiles, en s’écartant ou se rapprochant à volonté, permettaient d’y poser le livre en lecture. Au centre se dressait une vaste table, couverte de brochures, entre lesquelles apparaissaient quelques journaux déjà vieux. La lumière électrique inondait tout cet harmonieux ensemble et tombait de quatre globes dépolis à demi engagés dans les volutes du plafond. Je regardais avec une admiration réelle cette salle si ingénieusement aménagée.277 Como unidade descritiva mínima, o espaço apresentado acima revela os processos regulares de formação segundo o sistema elaborado por Philippe Hamon, tal como vemos a seguir: 276 277 VERNE, 1975e, p. 97. VERNE, 1975e, p. 97. 153 Pantônimo Nautilus (Biblioteca) Expansão Lista ou nomenclatura Estantes (contornando a sala) Divãs (na base das prateleiras) Carteiras Mesa (no centro) Luz (teto) Predicados altas em jacarandá escuro, incrustadas com peças de cobre abrigavam um grande número de livros encadernados sobre compridas prateleiras amplos e confortáveis estofados em couro marrom leves e móveis aproximando-se e afastando-se à vontade permitiam descansar o livro a ser lido grande, coberta de publicações entre as quais sobressaiam alguns periódicos já amarelecidos elétrica inundava todo aquele harmonioso conjunto, tombando de quatro globos foscos parcialmente embutidos nas volutas do teto. A fórmula comum do bloco descritivo para o espaço descrito é desenvolvida segundo o processo canônico que, partindo do pantônimo, se desenrola, em seguida, em uma série mais ou menos longa de nomes associados a predicados e/ou enumeração de partes. Esse esquema descritivo faz uma espécie de trabalho de ordenação, de agrupamento de informações, o que Hamon chama de grades descritivas. Para a biblioteca do submarino Nautilus, que será mais bem explorada pelo professor Aronnax, personagem a quem se delega o olhar descritor, há no bloco descritivo a menção do nome do aposento seguido dos móveis que preenchem o espaço (estantes, divãs, carteiras, mesa), detalhes de sua composição material (de jacarandá, em couro), qualidades dos objetos (amplos, confortáveis, leves, móveis, grandes) e sua localização no cômodo (contornando a sala, na base das prateleiras, no centro, no teto). Naturalmente, os elementos que compõem essa grade descritiva contribuem para a visualidade e organização mental do cômodo. A visão é permitida graças à luz artificial (no caso, elétrica) que encena um papel importante nas descrições de interiores, segundo Hamon.278 Ela facilita a visualização e inspira, sobretudo no leitor do século XIX, o mesmo sentido de admiração e deslumbre que sente o professor Aronnax. Ao fim da descrição, antes de passar efetivamente à exploração da biblioteca, fator que permitirá ao leitor acompanhar e conhecer mais detalhes dos livros que a compõem, o narrador-personagem arremata com uma frase de passagem que naturaliza o fim da descrição/início da narração, aquela 278 Cf. HAMON, 1993, p. 172-173. 154 que Hamon chama de força centrípeta, necessária à conclusão da passagem descritiva279: “Je regardais avec une admiration réelle cette salle si ingénieusement aménagée, et je ne pouvais en croire mês yeux.”280 A impressão de vista do todo com a frase que fecha esse bloco descritivo perfaz uma sequencialidade que testemunha e justifica a amplitude do panorama. Depois de uma curta passagem narrativa em que o professor elogia a grande biblioteca, Nemo põe seus livros à disposição de Aronnax: “Ces livres, monsieur le professeur, sont d’ailleurs à votre disposition, et vous pourrez en user librement”. 281 Ao se aproximar dos livros, Aronnax prossegue: “Je remerciai le capitaine Nemo, et je m’approchai des rayons de la bibliothèque”; é atribuído aoprofessor o olhar descritor e, portanto, há oindício para se iniciar uma descriçãomais detalhada da biblioteca: Livres de science, de morale et de littérature, écrits en toute langue, y abondaient ; mais je ne vis pas un seul ouvrage d’économie politique ; ils semblaient être évèrement proscrits du bord. Détail curieux, tous ces livres étaient indistinctement classés, en quelque langue qu’ils fussent écrits, et ce mélange prouvait que le capitaine du Nautilus devait lire couramment les volumes que sa main prenait au hasard. Parmi ces ouvrages, je remarquai les chefs-d’oeuvre des maîtres ancienset modernes, c’est-à-dire tout ce que l’humanité a produit de plus beaudans l’histoire, la poésie, le roman et la science, depuis Homère jusqu’à Victor Hugo, depuis Xénophon jusqu’à Michelet, depuis Rabelais jusqu’à Mme Sand. Mais la science, plus particulièrement, faisait les frais de cette bibliothèque ; les livres de mécanique, de balistique, d’hydrographie, demétéorologie, de géographie, de géologie, etc., y tenaient une place non moins importante que les ouvrages d’histoire naturelle, et je compris qu’ils formaient la principale étude du capitaine. Je vis là tout le Humboldt, tout l’Arago, les travaux de Foucault, d’Henry Sainte-Claire Deville, de Chasles, de Milne Edwards, de Quatrefages, de Tyndall, de Faraday, de Berthelot, de l’abbé Secchi, de Petermann, du commandant Maury, d’Agassis, etc., les mémoires de l’Académie des sciences, les bulletins de diverses sociétés de géographie, etc., et, en bon rang, les deux volumes qui m’avaient peut-être valu cet accueil relativement charitable du capitaine Nemo. Parmi les oeuvres de Joseph Bertrand, son livre intitulé les Fondateurs de l’Astronomieme donna même une date certaine ; et comme je savais qu’il avait paru dans le courant de 1865, je pus en conclure que l’installation du Nautilus ne remontait pas à une époque postérieure. Ainsi donc, depuis trois ans, au plus, le capitaine Nemo avait commencé son existence sous-marine. J’espérai, d’ailleurs, que des ouvrages plus récents encore me permettraient de fixer exactement cette époque ; mais j’avais le temps de faire cette recherche, et je ne voulus pas retarder davantage notre promenade à travers les merveilles du Nautilus.282 279 Cf. HAMON, 1993, p. 173. VERNE, 1975e, p. 97. 281 VERNE, 1975e, p. 98. 282 VERNE, 1975e, p. 98-99. 280 155 Nessa passagem, o narrador faz um inventário da biblioteca do capitão Nemo. Para a tarefa de estabelecimento da cenografia enunciativa do romance, procedemos à classificação dos nomes citados e notamos uma linha de coerência entre eles. A biblioteca do Nautilus abrange a literatura greco-latina e francesa das origens (“antigos”) até meados do século XIX (“modernos”) em seus três principais gêneros: poesia (“de Homero a Victor Hugo”), história (“de Xenofonte a Michelet”) e romance (“de Rabelais a Georges Sand”). Além disso, dois escritores franceses citados e suas obras, contemporâneos do autor, formam matrizes intertextuais literárias diretas para Vingt mille lieues sous les mers, segundo Jacques Noiray:283La mer (1861), de Jules Michelet assumindo sua veia literária, e Les travailleurs de la mer (1866), de Victor Hugo. O romance de Hugo seria a matriz com a qual se estabelece um diálogo intertextual, “os ecos livres de um texto”, como sintetizaram Maingueneau e Patrick Charaudeau,284 visto o sucesso do romance à época, inspirando até mesmo o famoso episódio do ataque do polvo gigante ao submarino Nautilus. Mais do que uma homenagem ou simples alusão, os nomes citados estão ligados à questão da legitimação do discurso em Verne. Maingueneau explicita que o ethos pode “incidir sobre o conjunto de uma cena de fala, apresentada como modelo ou um antimodelo da cena de discurso”.285 Tal cena é nomeada por ele como cena validada, em que o adjetivo quer dizer “instalada na memória coletiva” como antimodelo ou modelo valorizado. Os nomes dos autores de romance e obras mencionados pelo narrador constituiriam, portanto, uma apropriação de modelos romanescos de sucesso, de cenas validadas. Igual tentativa de vincular a trama a nomes da literatura científica, trazendo um tom de autoridade para o que é dito no romance, é a longa lista de livros da biblioteca elaborada com os nomes de eminentes cientistas. Figuram na lista o naturalista e explorador Alexandre Humboldt (1769-1859), o cartógrafo Auguste Petermann (18221878), os físicos François Arago (1786-1853) e Léon Foucault (1819-1868), o astrônomo e físico François Faraday (1791-1867), o físico John Tyndall (1820-1893), os químicos Saint-Claire Deville (1818-1881) e Berthelot (1827-1907), o matemático Michel Chasles (1793- 1880), o especialista em crustáceos Henri Milne-Edwards (1800-1885), o ictiólogo Cf. NOIRAY, Jacques. “L’inscription de la science dans le texte littéraire : l’exemple de Vingt mille lieues sous les mers.” In : REFFAIT, Christophe & SCHAFFNER, Alain (dir.). Jules Verne ou les inventions romanesques. Amiens: Encrage université, 2007, p. 31. 284 CHARAUDEAU & MAINGUENEAU, 2002, p. 324-329. 285 MAINGUENEAU, 2008c, p. 80. 283 156 e geólogo Louis Agassiz (1807-1873), o biólogo e zoólogo Armand de Quatrefages (1810-1892), o jesuíta e astrônomo italiano Angelo Secchi (1818-1878) e Matthew Maury (1806-1873), que foi um oficial da marinha dos Estados Unidos e auxiliou o desenvolvimento da astronomia, da oceanografia, da meteorologia e da geologia modernas, graças às suas observações e à sua participação em diversos organismos internacionais. Jules Verne faz ainda outras citações a Maury nesse romance. O nome de Joseph Bertrand (1822-1900) recebe destaque nessa extensa lista de cientistas. Eleensinou matemática na Escola Politécnica, na Escola Normal Superior, no Collège de France e na Sorbonne. Foi eleito para a Academia francesa em 1884. Essa profusão de nomes que aparece no texto em forma de citação direta, categoria estudada por Gérard Genette,286 todos contemporâneos de Jules Verne, corrobora a ideia de cumprimento com a imposição que o editor Hetzel lhe faz: reunir e resumir o que a ciência de sua época produzia, transformando a massa de conteúdo científicoem literatura. É o que se percebe ao procedermos à leitura do “Avertissement de l’éditeur” (ver 6.2.3) em número do Magasin d’Éducation et de Récréation, de 1867: Os críticos mais autorizados saudaram no senhor Jules Verne um escritor de um temperamento excepcional, ao qual, desde seu início, era mais do quejusto designar um lugar de destaque nas letras francesas. Ele criou um novo gênero. O que se promete com frequência, o que se dá raramente, a instrução que diverte, o divertimento que instrui, o senhor Jules Verne o prodigaliza sem economizar em cada uma das páginas de suas narrativas emocionantes. Os romances do senhor Jules Verne chegaram, aliás, ao ápice. Quando se vê o público se apressar em correr para as conferências que se abriram em mil pontos da França, quando se vê que ao lado dos críticos de arte e de teatro foi necessário dar lugar nos jornais aos boletins da Academia de Ciências, é necessário dizer que a arte pela arte não é mais suficiente na nossa época e que a hora chegou em que a ciência tem seu espaço feito na literatura. O mérito do senhor Jules Verne é de ter sido o primeiro a pisar nessa nova terra. [...] As novas obras do senhor Jules Verne virão somar-se sucessivamente a esta edição que nós teremos o cuidado de manter informada. As obras publicadas e aquelas por serem publicadas englobarão assim, no seu conjunto, o plano a que se propôs o autor quando ele deu como subtítulo a sua obra aquele de Viagens extraordinárias aos mundos conhecidos e desconhecidos. Seu objetivo é, com efeito, resumir todos os conhecimentos geográficos, geológicos, físicos, astronômicos reunidos pela ciência moderna e refazer, sob a forma atraente e pitoresca que a caracteriza, a história do universo. 286 Cf. GENETTE, Gérard. Palimpsestes. Paris : Seuil, 1982, p. 7-19. 157 Após sua publicação no Magasin da editora Hetzel, os fascículos de Verne eram reunidos, organizados e publicados na sua integralidade. Essa publicação integral ocupava uma parte do próprio Magasin intitulada “Bibliothèque d’Éducation et de Récréation”. Ou seja, os romances vernianos publicados no periódico, dos quais Vingt mille lieues sous les mers faz parte, conheciam uma publicação integral pós formato fascículo, que ainda não eram em volume. Essa seção era precedida pelo “Avertissement de l’éditeur” que citamos longamente acima, uma apresentação-programa que define o que deve ser a obra verniana editada na coleção intitulada Voyages extraordinaires. Na ausência de informações que prefaciem a obra de Verne, podemos tomar como legítimo prefácio o paratexto “Avertissement de l’éditeur” acima e, portanto, elemento constituinte da cenografia enunciativa do romance. Ele guiará não só o romance do capitão Nemo, mas todos aqueles publicados no Magasin. O nítido objetivo de reunir o que a ciência da época produzia, transformando essa massa documental de conhecimentosem literatura, justifica e se legitima com os nomes dos cientistas citados na descrição. A maneira que o narrador encontra de povoar a biblioteca do capitão Nemo, trazendo para o texto tais nomes, vincula interdiscursivamente ciência e literatura. Ainda explorando a biblioteca do Nautilus, o capitão Aronnax é convidado a fumar a bordo. O fato dá margem ao narrador para realizar um pequeno diálogo entre os personagens antes que seja interrompido por Nemo: “A ce moment, le capitaine Nemo ouvrit une porte qui faisait face à celle par laquelle j’étais entré dans la bibliothèque, et passai dans un salon immense et splendidement éclairé.”287 Esta demarcação anuncia o quadro descritivo que seguirá: C’était un vaste quadrilatère, à pans coupés, long de dix mètres, large de six, haut de cinq. Un plafond lumineux, décoré de légères arabesques, distribuait un jour clair et doux sur toutes les merveilles entassées dans ce musée. Car c’était réellement un musée dans lequel une main intelligente et prodigue avait réuni tous les trésors de la nature et de l’art, avec ce pêle-mêle artiste qui distingue un atelier de peintre. Une trentaine de tableaux de maîtres, à cadres uniformes, séparés par d’étincelantes panoplies, ornaient les parois tendues de tapisseries d’un dessin sévère. Je vis là des toiles de la plus haute valeur, et que, pour la plupart, j’avais admirées dans les collections particulières de l’Europe et aux expositions de peinture. Les diverses écoles des maîtres anciens étaient représentées par une madone de Raphaël, une vierge de Léonard de Vinci, une nymphe du Corrége, une femme du Titien, une adoration de Véronèse, une assomption de Murillo, un portrait d’Holbein, un moine de Vélasquez, un martyr de Ribeira, une kermesse de Rubens, deux paysages flamands de Teniers, trois petits tableaux de genre de Gérard Dow, de Mestu, de Paul Potter, deux toiles de Géricault et de 287 VERNE, 1975e, p. 99. 158 Prud’hon, quelques marines de Backuysen et de Vernet. Parmi les œuvres de la peinture moderne apparaissaient des tableaux signés Delacroix. Ingres, Decamp, Troyon, Meissonier, etc., et quelques admirables réductions de statues de marbre ou de bronze, d’après les plus beaux modèles de l’antiquité, se dressaient sur leurs piédestaux dans les angles de ce magnifique musée. Cet état de stupéfaction que m’avait prédit le commandant du Nautilus commençait déjà à s’emparer de mon esprit.288 Procedendo de acordo com a constituição canônica das frases descritivas, o narrador apresenta uma visão geral do espaço, mas de maneira bem precisa - “C’était un vaste quadrilatère, à pans coupés, long de dix mètres, large de six, haut de cinq -, para somente então passar a aspectos mais detalhados como aqueles do teto: “Un plafond lumineux, décoré de légères arabesques, distribuait un jour clair et doux sur toutes les merveilles entassées dans ce musée”. Aqui, a fonte de luz facilita o olhar e serve para justificar a descrição. Ao final dessa apresentação, temos uma comparação do “salão” que o narrador-personagem vê como um “museu”. Cabe aqui um parêntese em relação à noção de museu apresentada na descrição. O surgimento do museu enquanto instituição encontra seus contornos definitivos no século XIX. Charlotte Klonk afirma que estudiosos que se admiravam com a quantidade de elementos que a antiga sabedoria não havia documentado transformaram itens e vestígios em objetos portadores de um valor no presente.289 Na introdução do seu livro, a autora afirma que esta dupla matriz, a relação com a memória e com o tempo vivido, funda a noção moderna de “objeto museológico”. Essa noção funciona até mesmo no caso dos objetos do Museu do Louvre que, guardando toda as peculiaridades da história e da museificação do espaço, é maior referência museal na França do Segundo Império, quiçá no mundo, momento da escrita e publicação desse romance. A noção moderna de museu como espaço particular destinado à visitação de uma elite econômica ou política e o valor que têm seus objetos é a mesma apresentada até este momento da passagem descritiva do romance verniano. Ora, o salão-museu de Nemo abriga uma coleção, é um espaço particular, reservado a satisfazer a curiosidade de Nemo e de seus seletos convidados, isto é, de uma determinada elite. No entanto, à medida em que o salãofor sendo apresentado aos leitores através dos olhos do narrador, o leitor poderá relativizar essa comparação com a instituição “museu”, como apresentaremos. 288 VERNE, 1975e, p. 99-101. KLONK, Charlotte. Introduction. Spaces of experience. Connecticut: Yale University Press, 2005, p. 110. 289 159 Seguindo a intenção de hierarquizar e classificar, cara ao autor das Voyages extraordinaires, o capitão Nemo reúne grandes nomes da pintura, os isola no Nautilus e ordena os quadros respeitando uma hierarquia genérica e cronológica, assim como fez anteriormente com os escritores que povoam a biblioteca. Essa reunião, isolamento e ordenação dão a ver um universo museológico. É baseado nesse fato que o narrador associa o espaço à ideia de museu. O quadro abaixo permitirá melhor visualizar a riqueza no que diz respeito aos gêneros picturais que a coleção de Nemo abrange, mostrando, mesmo que emum esboço, uma hierarquia entre eles. Procuramos distinguir antigos e modernos, seguindo a ordem em que as obras são ditadas pelo narrador na passagem descritiva: Antigos uma madona Rafael uma virgem Leonardo da Vinci uma ninfa Corrège uma mulher Ticiano uma adoração Veronese uma assunção Murillo um retrato Holbein um monge Velásquez um mártir Ribera uma quermesse Rubens duas paisagens flamencas Teniers Três quadros de gênero Gérard Dew, Metsu e Paul Potter duas telas Géricault e Prudhon diversas marinhas Backuysen e Vernet 160 Paul Potter Modernos Delacroix Ingres Decamp Troyon Meissonier Daubigny O museu do Nautilus traz uma riqueza genérica que vai da pintura de história e alegóricaaté quadros de marinhas, passando por retratos, cenas de gênero e paisagens. A ordem apresentada pelo narrador na descrição aponta para uma intenção de hierarquização entre os gêneros da pintura assim como Jules Verne o fez enquanto crítico do Salão de 1857 atribuindo maior valor à pintura de história em detrimento, por exemplo, das pinturas militares ou do retrato. Este último, na peça La Guimard, também é caracterizado como um gênero de menor prestígio na hierarquia dos gêneros em pintura. A ideia de hierarquia é corroborada pelo fato de que a quantidade de obras possuídas aumenta significativamente quando o gênero tem menor prestígio, paisagem e marinha, no caso. Além disso, a descrição apresenta uma ordenação que vai dos “antigos mestres” aos “modernos”, segundo as categorias do narrador. Estas nos parecem um tanto incongruentes: Géricault e Prudhon não podem ser classificados como “antigos”. Viveram até 1823 e 1824, respectivamente, quatro anos antes ao nascimento de Jules Verne. São, portanto, quase contemporâneos ao autor. Levando em conta que o romance foi ecrito em 1869-1870, o narrador resolveria essa incongruência se hierarquizasse esses pintores como “contemporâneos”. Ao observarmos os nomes que encabeçam ambas as listas -, Rafael e Leonardo da Vinci nos “antigos mestres” e Eugène Delacroix representando os “modernos”, notamos uma clara alusão aos modelos valorizados pela estética romântica e uma referência a essa escola em pintura que formou parte do capital cultural de Jules Verne. No momento da trajetória no campo em que o escritor produziu textos para as artes do espetáculo e a crítica de arte, mostramos que os nomes desses artistas aparecem sempre matizados em aspectos positivos em tom de reverência ou homenagem. Em Paris au XXe siècle é com certo saudosismo que o narrador alude a essas referências. Nesse momento da trajetória 161 de Verne, já conformado dentro do gênero dos romances científicos e consagrado pelo público, as referências românticas apararecem diluídas na sua obra romanesca, sobretudo nas representações artísticas. Seguindo a lógica da significação por oposição, o que se exclue também é significativo. A ausência de uma referência a Gustave Courbet, cujo trabalho é fortemente criticado por Verne em 1857 e no romance Paris au XXe siècle, por exemplo, reitera a importância das referências românticas, assim como a não referenciação a Édouard Manet, Paul Cézanne ou a Camille Pissarro que, desde o Salão dos Recusados290, em 1863, integravam a lista de nomes daqueles que produziam o que havia de mais moderno em pintura. No entanto, não é só a arte pictural que preenche o salão do Nautilus. Estátuas e armaduras também povoam o salão e, como veremos, uma coleção de conchas, um órgão, uma fonte e outros objetos mobiliam o “museu”. Como dissemos, à medida que esse “espaço” vai sendo apresentado, o leitor/espectador pode relativizar a noção de museu sugerida pelo narrador. Ora, reunir, isolar e ordenar, tais são os objetivos motores do que se convencionou chamar de “Gabinete de curiosidades” ou “A câmara das maravilhas” que designam os lugares em que, durante a época das grandes explorações e descobrimentos dos século XVI e XVII, se colecionavam uma multiplicidade de objetos raros ou estranhos dos três ramos da biologia considerados na época: animalia, vegetalia e mineralia; além das realizações humanas como quadros, esculturas etc. Patrick Mauriès, em seu livro de referência Cabinets de curiosités, afirma que o segredo fundador de um gabinete de curiosidades é duplo: não se trata somente de encontrar, isolar e ter uma peça rara ou única, mas, ao mesmo tempo, de inscrevê-lo em um espaço particular que lhe confere significações.291 A excentricidade, originalidade e a privacidade que sugere o submarino Nautilus ilustrariam esse espaço particular que abriga a coleção de Nemo comparada a um museu pelo narrador. Maravilhado com as obras de arte do salão, o narrador-personagem traz um diálogo para preencher o espaço de fechamento da descrição que deu a ver as obras de arte do salão do Nautilus. Perguntando ao capitão se poderia reconhecê-lo como um 290 Este foi o nome dado à exposição paralela ao Salon de Paris, em 1863. No Salon des Refusésforam expostas as obras de arte recusadas pelo júri no salão oficial, que era destinado aos artistas membros da Real Academia Francesa de Pintura e Escultura. A exposição paralela foi organizada por determinação do imperador Napoleão III, em resposta aos fortes protestos dos artistas recusados, entre os quais, Manet, Cézanne e Pissarro. LOBSTEIN, Dominique. Les Salons au XIXe siècle. Paris: La Martinière, 2006, p. 174. 291 Cf. MAURIÈS, Patrick. Cabinets de curiosités. Paris: Gallimard, 2011, p. 25. 162 artista, Aronnax tem como resposta que Nemo é “no máximo um diletante”. A passagem serve de abertura para uma reflexão do próprio Nemo sobre o ato de colecionar: J’aimais autrefois à collectionner ces belles oeuvres créées par la main de l’homme. J’étais un chercheur avide, un fureteur infatigable, et j’ai pu réunir quelques objets de haute valeur. Ce sont mes derniers souvenirs de cette terre qui est morte pour moi. À mes yeux, vos artistes modernes ne sont déjà plus que des anciens ; ils ont deux ou trois mille ans d’existence, et je les confonds dans mon esprit. Les maîtres n’ont pas d’âge.292 O trecho ainda nos permite caracterizar o Nautilus como sendo uma espécie de Arca de Noé para Nemo, como pretendido por Jules Verne em carta a seu editor que ora citamos. Segundo a religião abraâmica, a arca consistiu em um grande navio construído por Noé, a mando de Deus, para salvar a si mesmo, sua família e um casal de cada espécie de animais do mundo, antes que viesse o Grande Dilúvio da Bíblia. A história é contada em Gênesis 6-12, assim como no Alcorão. Em uma releitura do episódio bíblico por Jules Verne, portanto, servindo-se de uma cena validada, Nemo encarna Noé, fugindo da perversidade humana e criando para si sua arca para guardar as espécies que lhe são caras e únicas, em uma espécie de memória da humanidade. Continuando sua visita, Aronnax diz respeitar o momento de recolhimento e reflexão do capitão e, em uma passagem que anuncia um novo e longo quadro descritivo, afirma “je continue de passer en revue les curiosités qui enrichissaient ce salon”:293 Auprès des oeuvres d’art, les raretés naturelles tenaient une place très importante. Elles consistaient principalement en plantes, en coquilles et autres productions de l’Océan, qui devaient être les trouvailles personnelles du capitaine Nemo. Au milieu du salon, un jet d’eau, électriquement éclairé, retombait dans une vasque faite d’une seule tridacne. Cette coquille, fournie par le plus grand des mollusques acéphales, mesurait sur ses bords délicatement festonnés une circonférence de six mètres environ ; elle dépassait donc en grandeur ces belles tridacnes qui furent données à FrançoisIer par la république de Venise, et dont l’église Saint-Sulpice, à Paris, a fait deux bénitiers gigantesques. Autour de cette vasque, sous d’élégantes vitrines fixées par des armatures de cuivre, étaient classés et étiquetés les plus précieux produits de la mer qui eussent jamais été livrés aux regards d’un naturaliste. On conçoit ma joie de professeur. L’embranchement des zoophytes offrait de très curieux spécimens de sesdeux groupes des polypes et des échinodermes. Dans le premier groupe, des tubipores, des gorgones disposées en éventail, des éponges douces de Syrie, des isis des moluques, des pennatules, une virgulaire admirable des mers de Norvège, des ombellulaires variées, des alcyonnaires, toute une série deces madrépores que mon maître Milne Edwards a si sagacement classés en sections, et parmi lesquels je 292 293 VERNE, 1975e, p. 100. VERNE, 1975e, p. 101. 163 remarquai d’adorables flabellines, des oculines de l’île Bourbon, le «char de Neptune» des Antilles, de superbes variétés de coraux, enfin toutes les espèces de ces curieux polypiers dont l’assemblage forme des îles entières qui deviendront un jour des continents. Dans les échinodermes, remarquables par leur enveloppe épineuse, les astéries, les étoiles de mer, les pantacrines, les comatules, les astérophons, les oursins, les holoturies, etc., représentaient la collection complète des individus de ce groupe. Un conchyliologue un peu nerveux se serait pâmé certainement devant d’autres vitrines plus nombreuses où étaient classés les échantillons de l’embranchement des mollusques. Je vis là une collection d’une valeur inestimable, et que le temps me manquerait à décrire tout entière. Parmices produits, je citerai, pour mémoire seulement, l’élégant manteau royal de l’océan Indien, dont les régulières taches blanches ressortaient vivement sur un fond rouge et brun, un spondyle impérial, aux vives couleurs, tout hérissé d’épines, rare spécimen dans les muséums européens, et dont j’estimai la valeur à vingt mille francs, un marteau commun des mers de la Nouvelle-Hollande, qu’on se procure difficilement, des bucardes exotiques du Sénégal, fragiles coquilles blanches à doubles valves, qu’un souffle eût dissipées comme une bulle de savon, plusieurs variétés des arrosoirs de Java, sortes de tubes calcaires bordés de replis foliacés, et très disputés parles amateurs, toute une série de troques, les uns jaunes verdâtres, péchés dans les mers d’Amérique, les autres d’un brun roux, amis des eaux de la NouvelleHollande, ceux-ci venus du golfe du Mexique et remarquables parleur coquille imbriquée, ceux-là trouvés dans les mers australes, et enfin, le plus rare de tous, le magnifique éperon de la Nouvelle-Zélande; puis d’admirables tellines sulfurées, de précieuses espèces de cythérées et de vénus, le cadran treillisé des côtes de Tranquebar, le sabot marbré à nacre resplendissante, les perroquets verts des mers de Chine, le cône presque inconnu du genre Coenodulli, toutes les variétés de porcelaines qui servent de monnaie dans l’Inde et en Afrique, la «gloire de la mer», la plus précieuse coquille des Indes orientales; enfin des littorines, des dauphinules, desturritelles, des janthines, des ovules, des volutes, des olives, des mitres, des casques, des pourpres, des buccins, des harpes, des rochers, des tritons, descérites, des fuseaux, des strombes, des ptérocères, des patelles, des hyales, des cléodores, coquillages délicats et fragiles, que la science a baptisés deses noms les plus charmants. À part, et dans des compartiments spéciaux, se déroulaient des chapelets de perles de la plus grande beauté, que la lumière électrique piquait de pointes de feu, des perles roses arrachées aux pinnes marines de la mer Rouge, des perles vertes de l’haliotyde iris, des perles jaunes, bleues, noires, curieux produits des divers mollusques de tous les océans et de certaines moules des cours d’eau du Nord, enfin plusieurs échantillons d’un prix inappréciable qui avaient été distillés par les pintadines les plusrares. Quelques-unes de ces perles surpassaient en grosseur un oeuf de pigeon: elles valaient, et au-delà, celle que le voyageur Tavernier vendittrois millions au schah de Perse, et primaient cette autre perle de l’iman de Mascate, que je croyais sans rivale au monde. Ainsi donc, chiffrer la valeur de cette collection était, pour ainsi dire, impossible. Le capitaine Nemo avait dû dépenser des millions pour acquérir ces échantillons divers, et je me demandais à quelle source il puisait pour satisfaire ainsi ses fantaisies de collectionneur, quand je fus 164 interrompu par ces mots: «Vous examinez mes coquilles, monsieur le professeur.»294 Tomamos a liberdade de citar longamente essa passagem para justificar a caracterização desse salão como um gabinete de curiosidades e apresentar como Jules Verne se vale da descrição para apresentar espaços, nesse caso objetos, plantas e animais afim de cumprir com o objetivo didático-enciclopédico fixado por Hetzel. Fatos históricos são mesclados à passagem de dominante descritiva para conferir grau de realidade ao que se lê. As conchas tridacnas citadas no trecho, conhecidas popularmente como ostragigante, foram realmente dadas ao rei Francisco I como presente do governo de Veneza e, de fato, existem na Igreja de Saint-Sulpice, em Paris, como itens do mobiliário sacro. A importância extraordinária reside no tamanho daquelas que Nemo possui, pois são maiores do que as mostradas abaixo: Fig.19 – Pias para água benta – Escultura de Jean-Baptiste Pigalle Igreja Saint-Sulpice – Paris Como podemos perceber, a coleção do capitão Nemo guarda uma multiplicidade de espécimes raros dos três ramos da biologia: animal, vegetal e mineral, além das realizações artísticas humanas. O mobiliário, os objetos de decoração e de exposição deste salão encapsulados no Nautilus nos permitem, portanto, aproximar esse espaço da ideia de um gabinete de curiosidades se seguirmos a definição de Patrick Mauriès: 294 VERNE, 1975e, p. 102-103. 165 O termo câmara das maravilhas [ou gabinete de curiosidades] designa um lugar fechado, não muito grande, às vezes retirado, caracterizado por um emprego singular do espaço, uma cuidadosa organização de objetos reunidos mais para serem estudados do que vistos. [...] Os objetos reunidos, dispostos e enumerados fazem sentir a ambição universal: naturalia, mirabilia, artefacta, scientifica, antiquitat, exotica. Ou ainda: espécimes de história natural, fósseis, amostras botânicas ou zoológicas nas suas formas normais ou anormais; pinturas, esculturas, ouro e prata, têxtil, objetos de metal, de cerâmica ou de cera, instrumentos científicos, autômatos, objetos etnográficos. A fisionomia singular de cada coleção reflete o rosto daquele que a forma.295 Em seu livro sobre a experiência kitsch que os gabinetes de curiosidades ou “os quartos das maravilhas” oferecem, Celeste Olalquiaga relata que esses espaços, cujo auge se deu entre os séculos XVI e XVIII, formam a base da criação do que conhecemos como museu.296 Para nós, relativizar as palavras do narrador, aproximando o que o leitor vê não de um museu, mas a um gabinete de curiosidades, contribui para constatar a tensão que existia no século que deu origem ànoção moderna de museu. Queremos dizer com isso que a classificação dada pelo narrador ao salão do Nautilus é produto de discussões que se travavam à época, constituindo elementos da cenografia do romance. O salão, afinal, é um gabinete de curiosidades ou um museu? Acreditamos que, na tentativa de relacionar esse espaço a uma noção mais próxima de discussões modernas, maneira de mostrar um discurso em harmonia com os debates da época, o narrador decide por museu. Para nós, trata-se de um gabinete de curiosidades. Para a abordagem discursiva que pretendemos no trabalho, procedendo à leitura da cenografia enunciativa do romance, é produtivo afirmar que o romance Vingt mille lieues sous les mers alimenta e, por sua vez, é alimentado pelas tensões existentes na passagem do que conhecemos como gabinete de curiosidades para a instituição museu, espaço destinado a preservar, estudar e expor objetos protegidos, posto em usufruto de uma comunidade específica. Ao final da descrição que citamos longamente acima, em sinal de fechamento da mesma, um diálogo é reestabelecido entre o capitão Nemo e o professor Aronnax. Nele, o professor destaca a presença de instrumentos e aparelhos no salão do Nautilus: “Le terme chambre des merveilles designe un lieu clos, souvent exigu, parfois retiré, caractérisé par un emploi singulier de l’espace, par une organisation savante d’objets réunis moins pour être vus que pour être étudiés. [...] Les objets rassembés, disposés et énumérés font sentir l’ambition universelle: naturalia, mirabilia, artefacta, scientifica, antiquitat, exotica. Ou encore: spécimens d’histoire naturelle, fossiles, échantillons de botanique ou de zoologie dans leurs formes normales et anormales; peintures, sculptures, or et argent, textiles et objets de métal, de céramique ou de cire, instruments scientifiques, automates, objets éthnographiques. La physionomie singulère de chaque collection reflète le visage de celui qui la forme. MAURIÈS, 2011, p. 50-51 296 OLALQUIAGA, Celeste. Introduction. The artificial kingdom: a treasury of the kitsch experience. Minessota: Pantheon, 1998. 295 166 Cependant, j’avoue que ce Nautilus, la force motrice qu’il renferme en lui, les appareils qui permettent de le manoeuvrer, l’agent si puissant qui l’anime, tout cela excite au plus haut point ma curiosité. Je vois suspendus aux murs de ce salon des instruments dont la destination m’est inconnue. Puis-je savoir ?… – Monsieur Aronnax, me répondit le capitaine Nemo, je vous ai dit que vous seriez libre à mon bord, et, par conséquent, aucune partie du Nautilus ne vous est interdite. Vous pouvez donc le visiter en détail, et je me ferai un plaisir d’être votre cicérone.297 A presença desses aparelhos que não receberam descrição detalhada na trama viria corroborar a ideia de que o salão é um verdadeiro gabinete de curiosidades, como defendemos, estando em concordância com a definição de Patrick Mauriès. O término do capítulo destinado à apresentação do gabinete de curiosidades do Nautilus é usado para mostrar aos leitores, emuma curta descrição, o quarto reservado ao professor Aronnax. Mais uma vez, o fim de um diálogo traz as marcas necessárias para a mudança de pacto de leitura, avisando o leitor da passagem de uma dominante narrativa para uma dominante descritiva: “Mais auparavant, venez visiter la cabine qui vous est réservée. Il faut que vous sachiez comment vous serez installé à bord du Nautilus.”298 A frase é seguida de mais uma abertura de portas que anuncia o último quadro descritivo do capítulo. A descrição se desenrola assim: Je suivis le capitaine Nemo, qui, par une des portes percées à chaque pan coupé du salon, me fit rentrer dans les coursives du navire. Il me conduisit vers l’avant, et là je trouvai, non pas une cabine, mais une chambre élégante, avec lit, toilette et divers autres meubles. Je ne pus que remercier mon hôte.299 Em uma curta descrição, o quarto do professor Aronnax é apresentado aos leitores. A nosso ver, a passagem figura somente como uma maneira de fechar o capítulo de dominante descritiva. Compreendemos que a extensão dessa descrição e a localização no excipit do capítulo é uma astúcia do narrador para que os leitores não percam o foco em toda ariqueza que lhes foi apresentada quando da descrição do salão, espaço que recebe maior ênfase no capítulo, vistos seu detalhamento e extensão. Esquematizamos abaixo a construção do capítulo objetivando uma melhor visualização da organização textual entre narração e descrição. Chamamos atenção para os nomes “museu” e “gabinete de curiosidades” que usamos. Estes não tratam de lugares diferentes, mas de momentos distintos na passagem descritiva concernente ao salão do Nautilus: emum primeiro 297 VERNE, 1975e, p. 104. VERNE, 1975e, p. 105. 299 VERNE, 1975e, p. 105. 298 167 momento, o foco do narrador recai sobre o museu (quadros) depois, completando-se, sobre o gabinete de curiosidades (maravilhas naturais): Incipit: “O capitão Nemo levantou-se. Segui-o. Nos fundos da sala uma porta dupla se abriu. ” Abertura de porta = descrição geral da biblioteca Narração – diálogo sobre a biblioteca Descrição detalhada da biblioteca Narração – diálogo sobre cigarros; pausa para fumar Abertura de porta = descrição geral do salão + descrição detalhada do “museu” – (quadros) ILUSTRAÇÃO Narração – diálogo sobre o órgão e músicos Descrição detalhada do “gabinete de curiosidades” (raridades naturais) Narração – diálogo sobre a riqueza da coleção Abertura de porta = curta descrição do quarto Excipit: Narração “Queira sentar-se – disse-me o capitão Nemo apontando uma cadeira. Sentei-me e ele tomou a palavra nos termos que se seguem.” Em linhas gerais, o capítulo trata da descrição de três aposentos do Nautilus: a biblioteca, o salão e o quarto de Aronnax. A construção do capítulo é calcada na intercalação descrição/narração, com predominância da primeira. A travessia dos personagens de um espaço para o outro é auxiliada e justificada pela abertura de portas. A construção do capítulo suscita, assim, um efeito surpresa no espectador/leitor que aguarda o que vem depois da abertura da porta, como num espaço de sucessão de salas em um museu. O leitor tem possivelmente sua curiosidade aguçada a cada abertura de portas e é incitado a descobrir as maravilhas do Nautilus. Ao ler o capítulo, visualizando mentalmente as imagens, a possível surpresa do leitor é interrompida e, ao mesmo tempo, renovada pela presença de uma ilustração, a única que mostra o salão do Nautilus. Na edição em volume que usamos e retoma a edição princeps do romance, de 1975, a ilustração é situada após a descrição detalhada do museu, como se houvesse a intenção 168 de confirmação ou reelaboração por parte do leitor da imagem mental que a descrição permitiu realizar. A ilustração, nesse caso, associa-se ao texto com uma intenção de colaboração, expressando a ideia de que texto e imagem trabalham em conjunto em vista de um sentido comum, excluindo, assim, uma possível noção de redundância. A ilustração traz informações importantes para a reconstituição da cenografia enunciativa do romance. Tratando exclusivamente do que ora chamamos de “visível”, traremos no próximo item reflexões sobre a ilustração objetivando conhecer sua função dentro da narrativa, suas particularidades e a relação com a composição da cenografia em que se inscreve o romance. No percurso que pretendemos fazer, a ilustração ocupa o espaço materialmente visível no texto. Distingue-se, assim, das imagens mentais, portanto visuais, criadas virtualmente pelo leitor com base na leitura da passagem descritiva. Tecendo considerações acerca de uma ilustração em Jules Verne, não procuramos oferecer neste item tecnicidade teórica, mas simpropostas de investigação sobre a função da ilustração na trama de Verne e sua integração ao sistema do texto. Em um primeiro momento, deparamo-nos com a questão da leitura da imagem, isto é, a ilustração, esta de que tratamos em especial, pode se mostrar como uma arte quaseestéril já que se inscreve sempre em uma relação de subordinação ao texto. Queremos dizer com isso quesua margem de autonomia é ínfima pois extrai do texto sua existência. O campo de ação que é dado a Édouard Riou e a Neville, ilustradores de Vingt mille lieues sous les mers, se inscreve entre o risco da traição do texto verniano e aquele da redundância, sem contar com possíveis exigências coercitivas do editor Hetzel. Para estabelecer a natureza da ligação da imagem com o texto, é necessário nos questionarmos sobre o trabalho dos ilustradores, essa interface entre o texto e o corpo ilustrador. Podemos nos questionar também se a ilustração não objetiva tão somente transpor o mesmo conteúdo de uma linguagem para outra. Além disso, em termos de imaginário, podemos lançar a questão: a escrita não é superior à imagem a partir do momento emque ela oferece a priori mais “espaço” ao leitor para ser o próprio ilustrador do seu romance pela recriação mental? Podemos responder de antemão que o papel da ilustração na obra de Verne não é somente reproduzir, reduzindo as significações do texto. Se Hetzel, em concordância com Verne, contrata ilustradores para um trabalho complementar, é porque ambos estimam a possibilidade do enriquecimento do texto pela imagem, o que se coaduna com o programa de difusão e aproveitamento das técnicas de 169 ilustração desenvolvidas no século XIX. Dessa maneira, a narrativa se torna indissociável das ilustrações. Ilustradores, editor e Jules Verne trabalhavam em estreita colaboração. As relações entre esses agentes reforçam a ideia de que um empreendimento literário, no caso as Voyages extraordinaires, é resultado do trabalho de duas ou mais pessoas, nos referimos aos ilustradores, visando um determinado público e mercado – as edições pós formato folhetim ou as edições de luxo de final de ano para crianças, por exemplo. Esse argumento importa para Tese, pois nos permite escapar da visão romântica perpetuada até a hoje de que o texto é fruto simplesmente da criação do autor. Em carta ao seu editor, datada de 26 de dezembro de 1868, momento em que Jules Verne escrevia Vingt mille lieues sous les mers e já havia publicado cinco de suas tramas e gozava de sucesso junto ao publico leitor, deixa evidente a importância que a ilustração ocupará em seu(s) romance(s). Essa carta é particularmente significativa, pois trata exatamente da ilustração do salão do Nautilus. Jules Verne escreve: J’ai reçu les croquis de Riou. J’ai des observations à faire. Je vais lui écrire en les renvoyant. Je pense qu’i faut faire les personnages beaucoup plus petits, et montrer le salon beaucoup plus en grand. Ce ne sont que des coins de salon, qui ne donnent pas l’idée des merveilles du Nautilus. Il devra dessiner tous les détails avec une extrême finesse. 300 Como pudemos observar na ilustração que citamos acima, os personagens desenhados em uma escala menor dão a ver com mais destaque o salão do Nautilus, o que fora desejado por Verne.301 Distanciando-nos de uma concepção meramente ilustrativa que pode se atribuir à iconografia, entendemosa relação entre texto e imagem em termos de interação semiológica. O texto produzirá possíveis interpretativos que a imagem permitirá filtrar e vice-versa. Desejando inibir interpretações indesejáveis no interior do mesmo domínio semiológico (o texto ou a imagem), cabe ao texto e à imagem se controlarem reciprocamente, o que corrobora a ideia de que os recursos visuais devem, preferencialmente, fazer parte dos objetivos do texto, isto é, entre outros, das intenções didáticas dos romances de Jules Verne. O visível atende e reitera os objetivos enciclopédicos do projeto de Pierre-Jules Hetzel. Em suma, desejamos mostrar que o ilustrador dos romances de Jules Verne é quase exclusivamente considerado como um artesão, isto é, que eletem o savoir-faire necessário para a arte, mas não lhe é dadaliberdade de interpretação. A carta citada nos permiteafirmar que as ilustrações são executadas à medida que o texto é escrito, seguindo 300 301 VERNE, 1999, p. 89. Cf. GUIRRA, 2012. 170 passo a passo o processo de criação e as eventuais mudanças. Nota-se, assim, a que ponto a concepção das ilustrações está imbricada no processo da escrita do romance. Apostando na ilustração, escritor e editor se lançam em dois terrenos que, por ora, ocupam espaços distintos. Conhecemos as motivações pedagógicas de Hetzel. No entanto, questionamo-nos como essa intenção era recebida pelo escritor que desejava ser reconhecido como estilista sério.302 Indagamo-nos, portanto, se Verne não via nessas imagens algo a mais que um simples aporte didático. Tudo nos leva a crer que sim, visto a insistência comque o escritor impõe suas escolhas aos seus colaboradores. Além das modificações de conteúdo que ele exige, é também Verne quem decide o lugar das vinhetas no livro e aquele que oferece as fontes e os documentos de estudo para a composição das ilustrações. Em carta datada de 21 de setembro de 1872, Hetzel recomenda a Jules Verne se antecipar e ajudar Riou nos seus trabalhos: “Lancez-vous dans la recherche des portraits, des photos qui pourraient vous guider”303. Riou pede indicações, em carta de 21 de novembro do mesmo ano: Eu me uno ao Senhor Hetzel para lhe pedir para me dar suas indicações, a fim de reunir os documentos necessários antes de começar meus croquis dos personagens e das cenas. Eu desejaria fazer as matrizes de madeira só tendo certeza e depois de ter muito visto e corrigido os projetos. Nós discutiremos sobre os detalhes na sua próxima viagem a Paris e eu me alegro de retomar com ardor e perfeição minha colaboração com a sua obra.304 No que diz respeito à ilustração, Verne tinha uma ambição literária que ultrapassava a do seu editor. O escritor de Vingt mille lieues sous les mers tinha consciência do poder da imagem. Essa é a razão pela qual ele aceita incorporá-la na obra. A descrição do salão do Nautilus, sua respectiva ilustração e as trocas epistolares que giram em torno do assunto testemunham a compreensão, por parte do escritor, da importância que a ilustração possui. O tema da viagem a espaços desconhecidos já traz para texto verniano umtraçopitoresco. Integrando a imagem ao seu projeto de escrita, Verne reafirma o espaço para a picturalidade no seu romance. Os quadros do salão do capitão Nemo são obras às quais o próprio autor se afeiçoa. Verne afirma, em diferentes “Tout ceci”, escreve o romancista ao seu editor, em 25 de abril de 1864, “c’est pour vous dire combien je cherche à devenir un styliste, mais sérieux; c’est l’idée de toute ma vie.” VERNE, 1999, p. 28. 303 VERNE, 1999, p. 180. 304 “Je me joins à M. Hetzel, pour vous prier de me donner vos indications, pour réunir les documents nécessaires avant de commencer mes croquis de types et de scènes. Je désirerais en faire les bois qu’à coup sûr et après avoir énormément revu et corrigé les projets. Nous causerons des détails à votre prochain voyage à Paris et je me réjouis de reprendre avec fougue et perfectionnement ma collaboration à votre œuvre.” RIOU in VERNE, p. 184. 302 171 ocasiões, “ma délectation pour les beaux-arts”, “qui me fait entrer dans chaque museum, dans chaque musée de peinture, oui, je dirais chaque musée d’importance en Europe.”305 Associar a natureza discursiva do texto à imagem já tem seus primeiros efeitos realizados na ilustração de capa e frontispício de cada romance quando publicado em volume. Essas imagens têm importância particular na viagem que o autor propõe aos leitores. Elas compõem o primeiro sinal de picturalidade, juntamente com o título, produzido pelo livro. Fig. 20 Capa original do romance Fig. 21 Frontispício (Desenho de Riou) A ilustração do salão de Nemo ou, poderíamos generalizar, as ilustrações realizadas para os romances de Jules Verne não encontram legitimação no plano semiológico, no sentido de que o texto não precisa recorrer à imagem para expressar toda a amplitude que objetiva e, especialmente, sua proposta visual. No entanto, ela se justifica se considerarmos a atração indubitável que opera ao longo da narrativa, o prazer do surgimento entre as páginas da imagem - quando se reconhece a cena representada depois da passagem evocada -, casos da ilustração que analisamos. A obra de Verne se torna um projeto artístico global no qual a imagem encontra sua inclusão. As Viagens extraordinárias podem ser consideradas como objetos proteiformes e compósitos, feitos de textos, de imagens, mas sobretudo da colaboração entre escritor, editor e ilustradores. 305 VERNE, 1998, p. 88. 172 Procedendo à reconstrução da cenografia enunciativa do romance Vingt mille lieues sous les mers, mostramos que o projeto de Verne é polifônico, fruto da colaboração entre diversos atores e, igualmente, polimodal, ao mesmo tempo texto e imagem. A relação do texto com a ilustração no romance não se formula tanto pela transposição fiel do signo escrito ao signo pictórico mas, sobretudo, na relação entre visual e/ou visível. O “visual” é a maneira virtual da imagem que se atualiza somente no momento da leitura na forma de visualizações mentais que as passagens descritivas permitem, ou seja, demanda uma competência do público leitor. Já o “visível” emerge no trabalho do ilustrador, se coaduna ao projeto enciclopédico previsto por Hetzel, e é a forma “tal qual” da imagem, sua manifestação estável e fixa. Informação integrante do romance e, portanto, componente da sua cenografia enunciativa, a ilustração do salão-museu do Nautilus, que ora tratamos como gabinete de curiosidades, é mais um aspecto editorial do que o projeto artístico verniano. Hetzel dá à coleção vermelha e dourada uma ambição enciclopédica e pedagógica. Trata-se de propor a um público juvenil burguês acesso à cultura científica. A função atribuída à ilustração pelo editor consiste primeiramente em dar leveza à leitura e a oferecerum complemento visível à descrição. Além disso, a ilustração traz para a relação didática um aspecto lúdico, cumprindo com o programa-chave da editora: educar, divertindo. Seguindo essa diretriz, como sabemos, Jules Verne torna palatável o que se produz de científico na sua época e escreverá toda a sua obra romanesca. No entanto, depois de Paris au XXe siècle há uma ruptura no que diz respeito às representações do casamento entre a arte e a ciência. Os romances Le Rayon vert, de 1882 e Le secret de Wilhelm Storitz, de 1910 podem atestar da supremacia da arte em detrimento do discurso sobre a ciência e o científico. 4.4.2 Os personagens pintores de O Raio verde e de O segredo de Wilhelm Storitz Ambos os romances, Le Rayon vert e Le secret de Wilhelm Storitz, são escritos sob o que reza o último contrato que exige de Verne dois volumes anuais, aquele de 1875. Para o primeiro romance, Jules Verne ainda negocia com P.-J. Hetzel tudo o que diz respeito à sua elaboração e publicação. Depois da morte do editor, em 1886, o seu filho, Louis-Jules Hetzel, assume a editora e se incumbirá da publicação de todos os romances posteriores a essa data, inclusive Le secret de Wilhelm Storitz, escrito em torno de 1898, mas publicado em 1910, depois da morte do escritor, em 1905. 173 O romance Le Rayon vert é publicado primeiramente em folhetim no jornal Le Temps de 17 de maio a 23 junho de 1882, antes de ser publicado em volume em 24 de julho do mesmo ano, acompanhado da novela Dix heures en chasse, que também pertence ao conjunto das Viagens extraordinárias. A intriga do romance Le Rayon vert gira em torno da tentativa de dois tios - Sam e Sib - em convencer sua sobrinha, Helena Campbell, a se casar com o jovem cientista Aristobulus Ursiclos. Diante da obstinação de seus tios, Helena confessa que não se casará nunca: “Jamais mes oncles! Jamais! Du moins tant que je n’aurai pas vu [...] le rayon vert”.306 A condição exigida pela personagem se baseia em uma antiga lenda, de acordo com a qual esse raio tem o poder de fazer com que aquele que o veja não se engane jamais sobre o amor; sua aparição destrói ilusões e mentiras. Aquele que for agraciado em poder vê-lo uma vez, poderá entender claramente os seus sentimentos e aqueles do outro. Nessas condições, os tios de Helena Campbell não têm outra alternativa a não ser realizar uma longa viagem em busca dos horizontes marítimos da Escócia, local onde pode acontecer esse fenômeno atmosférico no momento do pôr do sol. A trama apresenta uma longa sequência de dificuldades que se opõem à visualização do fenômeno do raio verde. Quando as condições atmosféricas são favoráveis, é a vela de um barco no horizonte, uma revoada de pássaros ou ainda a repentina aparição de uma nuvem de fumaça que impedem a observação do fenômeno e servem de motor para que a viagem continue. Para cada situação que faz os personagens perderem a oportunidade de ver o raio verde, Artistobolus Ursiclos, sábio cientista importuno e pretendente da Senhorita Campbell, tenta explicar as razões que geram esses problemas, com o ar pedante que lhe é característico. O personagem nunca se contenta em só expor suas ideias sobre o raio verde, ele apresenta explicações científicas à Helena que não se interessa em ter os sonhos desfeitos com explicações de natureza física. Além do recorrente tom de “viagem guiada” palas ilhas escocesas, esse romance descreve com veemência a antinomia entre a ciência e a arte; uma, árida e fria, encarnada pelo cientista Aristobulus Ursiclos, e a outra, humana e sensível, representada pelo pintor Olivier Sinclair, segundo pretendente de Helena Campbell, que aparecerá mais adiante na viagem, só sendo apresentado aos leitores no capítulo XI do romance, quando tem uma tela atingida por uma bola do jogo de críquete enquanto pintava. 306 VERNE, 1977a, p. 353. 174 Embora estejamos distantes vinte anos da escrita de Paris au XXe siècle, este personagem pode ser comparado a Michel Dufrénoy por seu discurso crítico sobre a ciência e a tecnologia. Como de hábito, os retratos literários na obra de Jules Verne informam não só sobre a aparência física do personagem (prosopografia), como anunciam suas futuras atitudes na trama através de traços morais (etopeia). Os aspectos que oporão Ursiclos a Sinclair e, por conseguinte, a ciência à arte, se apresentam nesse tipo de passagem descritiva. Para o cientista Aristobolus Ursiclos, temos: C’était un “personnage”de vingt-huit ans, qui n’avait jamais été jeune et probablement ne serait jamais vieux. Il était évidemment né à l’âge qu’il devait paraître avoir toute sa vie. De tournure, ni bien ni mal; de figure, très insignifiant, avec des cheveux trop blonds pour un homme; sous ses lunettes l’œil sans regard du myope; un nez court, qui ne semblait pas être le nez de son visage. Des cent trente mille cheveux que doit porter toute tête humaine, d’après les dernières statistiques, il ne lui en restait plus guère que soixante mille. Un collier de barbe encadrait ses joues et son menton, ce qui lui donnait une face quelque peu simiesque. [...] Aristobulus Ursiclos était riche d’argent et encore plus riche d’idées. Trop instruit pour un jeune savant, qui ne sait qu’ennuyer les autres de son instruction universelle, gradué des Universités d’Oxford et d’Édimbourg, il avait plus de science physique, chimique, astronomique et mathématique que de littérature. Au fond, très prétentieux, il ne s’en fallait de presque rien qu’il ne fût un sot. Sa principale manie, ou sa monomanie, comme on voudra, c’était de donner, à tort et à travers, l’explication de tout ce qui rentrait dans des choses naturelles; enfin une sorte de pédant, de relation désagréable. On ne riait pas de lui, parce qu’il n’était pas risible, mais peut-être s’en riait-on, parce qu’il était ridicule. Personne n’eût été moins digne que ce faux jeune homme de s’approprier la devise des francs-maçons anglais: Audi, vide, tace. Il n’écoutait pas, il ne voyait rien, il ne se taisait jamais. En un mot, pour emprunter une comparaison qui est de circonstance dans le pays de Walter Scott, Aristobulus Ursiclos, avec son industrialisme tout positif, rappelait infiniment plus le bailli Nicol Jarvie que son poétique cousin Rob-Roy Mac-Gregor. Et quelle fille des Highlands, sans en excepter Miss Campbell, n’eût préféré Rob-Roy à Nicol Jarvie? Tel était Aristobulus Ursiclos.307 O narrador se vale de aspectos bastante negativos para caracterizar este personagem que representará a ciência ao longo da trama. Importunar os outros com sua instrução universitária baseada mais nas ciências física, química, astronômica e matemática do que em literatura, faz de Aristobolus um jovem cientista pretensioso, pedante e ridículo. Esse retrato dá-nos a pensar no próprio Jules Verne que, com a incumbência de transformar ciência em literatura adquire o título de savant, de acordo com o projeto da editora de Hetzel. Aqui, Verne parece estar pintando um retrato pouco 307 VERNE, 1977a, p. 385-388. 175 elogioso do personagem do savant, em um discurso marcado por uma reflexão metadiscursiva repleta de autoironia. Ao final do retrato literário que o apresenta, Ursiclos é comparado a Nicol Jarvie por seu “industrialismo positivo”. Nicol Jarvie, personagem de Walter Scott (1771-1832), se opõe por sua falta de poesia a Rob-Roy Mac-Gregor, uma espécie de Robin Hood, filho de um comerciante inglês que viaja às terras altas da Escócia para coletar um débito devido a seu pai, no romance Rob-Roy, publicado em 1817. Tendo alimentado toda uma geração romântica na França, citado, inclusive, no Avant-propos de La Comédie humaine de Balzac, em 1842, Walter Scott é uma referência relevante no retrato do personagem representante do discurso científico desse romance de Jules Verne. A referência conhecida dos leitores - ou a cena validada, para usar os termos de Maingueneau -, usada, inicialmente, para ilustrar a oposição antagonista/protagonista (Rob-Roy/Nicol Jarvie) reforçaria o caráter negativo do personagem de Verne que é comparado a Jarvie. Além disso, o escritor escocês, com seus romances Rob-Roy (1817) seguido de Ivanhoé (1820), criou o romance dito “histórico”, de larga difusão na literatura ocidental. Esse gênero instaura e alimenta as discussões em torno da história da nação, como propõe Anne-Marie Thiesse no capítulo IV de seu livro sobre a criação das identidades nacionais.308 Ambientado na Idade Média da época das cruzadas, Ivanhoé, por exemplo, expressou o gosto romântico de reviver o mundo gótico dos castelos, do amor cortês e das aventuras extravagantes e, assim como Rob-Roy, ambientado em 1715 em pleno momento de rebeliões jacobitas nas Ilhas britânicas do início do século XVIII, constituem exemplos de um gênero romanesco que serviu de modelo narrativo para a elaboração de histórias nacionais assim como se tornou vetor de difusão de uma nova visão do passado.309 Tais características, exaltadas pelo movimento romântico, evocadas implicitamente através do retrato desse personagem, endossam a ideia que sustentamos nessa Tese: a da permanência de um primeiro Jules Verne de valores românticos, disperso na sua carreira romanesca. Essa hipótese se torna ainda mais evidente quando Aristobolus Ursiclos é colocado em relação de oposição com o pintor Olivier Sinclair. É durante uma partida de críquete, pretexto do narrador para Aristobolus Ursiclos dar suas lições científicas à jovem Helena Campbell, que o próprio Ursiclos cria a situação THIESSE, Anne-Marie. La création des identités nationales – Europe XVIIIe-XXe siècle. Paris: Seuil, 2001 (1999). 309 THIESSE, 2001, p. 133. 308 176 em que ela conhecerá Olivier Sinclair. Com a bola do jogo, Helena atinge uma pintura de marinha que Olivier estava pintando en plein air, como um pintor impressionista: La boule s’élança hors du périmètre circonscrit par le petit fossé, du côté de la mer, s’enleva en rebondissant sur un galet, et, comme eût dit Aristobulus Ursiclos, sa pesanteur multipliée par le carré de la vitesse aidant, elle dépassa la lisière de la grève. Coup malheureux! Un jeune artiste était là, assis devant son chevalet, en train de prendre une vue de la mer, bornée par la pointe méridionale de la rade d’Oban. La boule, atteignant la toile en son plein, tacha sa couleur verte de toutes les couleurs de la palette qu’elle frôla en passant, et renversa le chevalet à quelques pas de là.310 Fig. 22 “On previent avant de commencer un bombardement! ” Desenho de Benett – Gravado por T. Delangle. VERNE, 1975, p. 416 Em oposição ao personagem de Ursiclos, depois dessa cena, o leitor será apresentado a Olivier Sinclair que, em uma atitude calma, constata: “Nous ne sommes pas en sûreté ici!”. É sob aspectos unicamente positivos que o pintor será revelado: Cet Olivier Sinclair était un “joli homme”, pour employer l’expression jadis usitée en Écosse à l’égard des garçons braves, prompts et alertes; mais, si cette expression lui convenait au moral, il faut avouer qu’elle ne lui convenait pas moins au physique. Dernier rejeton d’une honorable famille d’Édimbourg, ce jeune Athénien de l’Athènes du Nord était le fils d’un ancien conseiller de cette capitale du MidLothian. Sans père ni mère, élevé par son oncle, l’un des quatre baillis de l’administration municipale, il avait fait de bonnes études à l’Université; puis, à l’âge de vingt ans, un peu de fortune lui assurant au moins l’indépendance, curieux de voir le monde, il visita les 310 VERNE, 1977a, p. 412. 177 principaux États de l’Europe, l’Inde, l’Amérique, et la célèbre Revue d’Edimbourg ne refusa pas, en quelques occasions, de publier ses notes de voyages. Peintre distingué, qui aurait pu vendre ses œuvres à haut prix, s’il l’eût voulu, poète à ses heures, – et qui ne le serait à un âge où toute l’existence vous sourit? – cœur chaud, nature artiste, il était pour plaire et plaisait sans pose ni fatuité. [...] Olivier Sinclair était bien fait pour inspirer plus que de la sympathie à quelque jeune et blonde fille de l’Écosse. Sa taille élégante, sa physionomie ouverte, son air franc, sa mâle figure, énergique par les traits, douce par les yeux, la grâce de ses mouvements, la distinction de ses manières, sa parole facile et spirituelle, l’aisance de sa démarche, le sourire de son regard, tout cet ensemble était de nature à charmer.311 Bravura, presteza e atenção são as três primeiras características usadas pelo narrador para pintar o retrato desse personagem. Pintor independente desde a idade de vinte anos, Sinclair poderia representar uma classe abastada de artistas que, como Gustave Flaubert no campo literário, lutam pela autonomia do campo artístico e saem em defesa dos preceitos da arte pela arte ou de uma arte autônoma, nos termos de Bourdieu. Em um paralelo com Jules Verne, diferentemente do pintor, o escritor com a mesma idade, dependia de seus pais e , como vimos no capítulo 3, precisou envelhecer socialmente e reunir capitais ao longo de anos de percurso no campo literário, para decidir investir na corrente da arte útil - aquela que se apresentou como a via mais propícia para seus investimentos. Atribuindo distinção a esse pintor e poeta de “coração quente” e “charmoso”, o narrador matiza sua natureza artística com traços fortes com a finalidade de salientar os aspectos positivos do personagem - trunfos que usará para conquistar Helena Campbell. O narrador usa do confronto dos retratos literários de ambos e da sua posição de antagonistas na trama para colocar em tensão as relações entre a arte e a ciência que se desenvolverão ao longo do romance. Na trama, Olivier Sinclair vai rivalizar com Ursiclos pela mão da jovem Campbell, ou seja, a relação entre arte e ciência é problematizada de maneira que uma única sobressairá, vencerá, por assim dizer, e obterá um lugar privilegiado em detrimento da outra. Essas tensões poderiam representar esse momento da trajetória de Jules Verne que, embora suficientemente “hetzelizado”, isto é, escrevendo dentro dos moldes que aceitou ao assinar os contratos, anos após ter escrito Paris au XXe siècle, parece ainda pôr em xeque a ciência e a necessidade de incorporação didática do interdiscurso científico pela literatura. Isso transparece na constituição do personagem Ursiclos, ridicularizado pelo 311 VERNE, 1977a, p. 413-414. 178 narrador verniano que, como o personagem, traz sempre uma explicação “científica” onde caberia sobretudo aspectos de descrição literária ou de narratividade. Tal é o caso da descrição dos cabelos de Ursiclos dentro da passagem prosopográfica, citada anteriormente: “Des cent trente mille cheveux que doit porter toute tête humaine, d’après les dernières statistiques, il ne lui en restait plus guère que soixante mille.” Na continuação da cena descrita acima, aceitando as desculpas de Helena sobre o acontecido, Olivier diz que procurava justamente o efeito de rebentação de ondas que o golpe da bola do jogo de críquete causou: “Je cherchais à obtenir un effet de lames déferlantes, et il est probable que votre boule, comme l’éponge de je ne sais plus quel peintre de l’antiquité, jetée en travers de son tableau, aura produit l’effet que mon pinceau cherchait vainement à rendre!312 Nessa passagem, em que o personagem diz não se lembrar do nome de um pintor da Antiguidade, poderíamos, sob o risco de extrapolar nossa interpretação, afirmar que as referências antigas valorizadas em um momento da trajetória de Jules Verne nos campos literário e artístico são, aqui, esquecidas ou desvalorizadas. A ideia se reforça pelo traço de modernidade atribuído a Olivier Sinclair: tendo abandonado o espaço do atelier, se une aos pintores impressionistas para pintar telas que exigirão técnicas diferentes e distantes daquelas valorizadas pela Academia. Essa característica é valorizada pelo narrador, pois este caracteriza o personagem como um “distinto pintor”. Poderíamos dizer que Jules Verne apresenta um posicionamento conflitante já que suficientemente “hetzelizado” nesse momento, com uma única referência implícita a modelos românticos, no caso, aos personagens de Walter Scott, ainda mostra de maneira diluída que defende o “artístico” em detrimento do “científico”. Afim de marcar a distância entre arte e ciência, o narrador intervém ao fim dessa passagem afirmando que Ursiclos não tinha tomado parte na conversa, pois não poderia pôr em prática seus conhecimentos teóricos: Il est bon d’observer que Aristobulus Ursiclos n’était point venu prendre part à cet échange d’excuses et de politesses. Le jeune savant, très vexé de n’avoir pu mettre ses connaissances théoriques d’accord avec ses aptitudes pratiques, s’était retiré pour rentrer à l’hôtel. On ne devait même pas le voir avant trois ou quatre jours, [...] il voulait étudier, au point de vue géologique, les riches ardoisières. L’entretien ne pouvait donc être gêné par les interventions explicatives qu’il n’eût point manqué de faire sur la tension des trajectoires ou autres questions relatives à l’accident.313 312 313 VERNE, 1977a, p. 415. VERNE, 1977a, p. 415-416. 179 Ao longo do romance, aos poucos, o narrador onisciente vai esmiuçando um discurso a favor da arte e em detrimento da ciência através das caracterizações negativas que faz a Aristobolus Ursiclos: Pourquoi ne pas avouer que le jeune peintre était maintenant épris du rayon vert, tout autant que Miss Campbell? Il avait enfourché ce dada en compagnie de la belle jeune fille. Il courait avec elle les champs de l’espace. Il chevauchait cette fantaisie avec non moins d’ardeur, pour ne pas dire non moins d’impatience que sa jeune compagne. Ah! il n’était pas un Aristobulus Ursiclos, lui, la tête perdue dans les nuages de la haute science, plein de dédain pour un simple phénomène d’optique! Tous deux se comprenaient et tous deux voulaient être de ces rares privilégiés que le rayon vert aurait honorés de son apparition!314 Em tentativa de definir a impossibilidade do entendimento entre a arte e a ciência, o mesmo narrador onisciente opõe as categorias “artista” e “cientista” e, novamente, pinta este último com aspectos negativos: Le jeune savant et le jeune artiste, à diverses reprises, s’étaient aussi rencontrés, soit sur la plage, soit dans les salons de Caledonian Hotel. Les deux oncles avaient cru devoir les présenter l’un à l’autre. - Monsieur Aristobulus Ursiclos, de Dumfries! - Monsieur Olivier Sinclair, d’Édimbourg! Cela avait coûté à chacun de ces jeunes gens un salut médiocre, une simple inclinaison de tête, à laquelle le corps, raidi outre mesure, n’avait point pris part. Évidemment il n’y aurait jamais sympathie entre ces deux caractères. L’un courait le ciel pour y décrocher les étoiles, l’autre pour en calculer les éléments; l’un, artiste, ne cherchait point à poser sur le piédestal de l’art; l’autre, savant, se faisait de la science un piédestal, sur lequel il prenait des attitudes.315 A intenção do narrador em opor sempre a arte à ciência e o resultado dessa rivalidade são anunciados desde o frontispício que ilustra o romance: 314 315 VERNE, 1977a, p. 423. VERNE, 1977a, p. 425-426. 180 Fig. 23 Frontispício de Le Rayon vert Desenho de Benett – gravado por F. Meaulle A imagem que abre o romance já ilustra sua conclusão: o personagem pintor Olivier Sinclair termina por “vencer” Aristobolus Ursiclos, conseguindo a mão de Helena Campbell no fim do romance. O casal, no centro da imagem, iluminado pelo fenômeno do raio verde, incluído em uma espécie de círculo que também engloba os outros personagens do romance, à exceção de Aristobolus Ursiclos. Este, no alto da montanha, à esquerda, observa a cena e está fora da órbita que engloba o êxito da visualização do fenômeno do raio verde e a felicidade do casal. Observa-se que, naquele momento da carreira de Jules Verne, em 1882, a representação da arte se dá novamente em contraposição à ciência. A pertinência da informação reside no fato de ser justamente esse conflito que Verne apresentará em outras de suas tramas e que o acompanha em sua carreira. Já “hetzelizado”, ocupando uma posição tópica no campo literário, para retomar a conceituação proposta por Maingueneau, é através da tensão entre a arte e a ciência que Jules Verne apresenta em alguns de seus romances das Viagens Extraordinárias seu posicionamento conflituoso em relação às suas próprias crenças e tomadas de posição no campo literário. Nesse momento da sua trajetória, não se trata mais de reivindicar uma posição paratópica em que parta na tentativa de filiação à estética romântica, como em Paris au XXe siècle, tampouco há alusões explicitas à referências e modelos românticos como aquelas que 181 povoam o salão do capitão Nemo em Vingt mille lieues sous les mers. Parece-nos que as negociações com seu editor ao longo de sua carreira e o envelhecimento social de Verne trazem para essa trama um discurso diluído e pessimista sobre a ciência quando diante da arte. O pessimismo sobre a ciência é ainda observado em Le secret de Wilhelm Storitz. Ainda que de maneira incipiente, o personagem pintor desse romance poderá integrar a discussão que realizamos nesta Tese. Esse romance foi escrito em dois momentos na carreira de Jules Verne: o início, em torno de 1898, talvez depois da leitura do sucesso do inglês H. G. Wells, O homem invisível, romance de 1897; e depois foi retomado em 1901. A história tem como cenário a cidade de Hagz, na Hungria, e se passa, segundo a versão publicada, em 1757 – portanto seria um romance do passado, numa cronografia diferente daquela da maioria dos romances que compõem as Viagens extraordinárias. O engenheiro ferroviário francês Henri Vidal, narrador e personagem do romance, vai até a Hungria assistir ao casamento de seu irmão, o pintor de retratos Marc Vidal, com Myra Roderich. O casamento e a festa das bodas serão atrapalhados por Wilhelm Storitz, químico alemão que decide se vingar da jovem por ter sido rejeitado. O personagem tem uma fórmula que lhe permite tornar-se invisível depois de bebê-la. Embora tenha sido concluído em torno de 1904 e 1905, esse manuscrito será publicado postumamente, em 1910. Em um dado momento, Jules Verne parece hesitar sobre sua publicação, sem que se conheçam exatamente as causas, como podemos acompanhar através da sua correspondência com o Louis-Jules Hetzel, filho do editor. Em 14 de fevereiro de 1904 Verne escreve : “Au lieu de l’Invisible (Le secret de Wilhelm Storitz), dont je vous avais parlé, je préfère vous adresser Maître après Dieu (Maître du Monde) qui me paraît devoir être le dernier mot de l’automobilisme”.316 Em 24 de setembro do mesmo ano, prevendo sua morte iminente, o escritor mostra sua vontade de ver o manuscrito publicado: “Mer saharienne (L'Invasion de la mer) sera suivi du Secret de Storitz, un volume chacun, que je désire voir publier de mon vivant. Je vous écris comme je peux avec mes mauvais yeux”.317 Em 25 de fevereiro de 1905, aguardando a escolha de Louis Hetzel sobre o suporte em que o manuscrito seria publicado - em folhetim, portanto, em um jornal, ou em 316 VERNE, Jules. Correspondance inédite de Jules et Michel Verne avec l’éditeur Louis-Jules Hetzel (1886-1914). Tome II. Établie par Olivier Dumas, Piero Gondolo Della Riva & Volker Dehs. Genebra: Slatkine, 2006a, p. 134. 317 VERNE, 2006a, p. 140. 182 fascículo, no Magasin d’Éducation et de Récréation, Verne escreve: “Je vous enverrai prochainement le nouveau manuscrit. Ce ne sera probablement pas celui dont je vous ai parlé, L’Invisible, mais Le Phare du bout du monde, à la dernière pointe de la Terre de Feu”.318 Em última carta sobre Le Secret de Wilhelm Storitz, datada de 5 de março de 1905, dezenove dias antes de sua morte causada pelas complicações do diabetes, Verne anuncia o envio do romance ao editor. Nessa carta, comparando-se, em certa medida, a E.T.A. Hoffmann (1776-1822) - jurista, compositor e escritor alemão expoente da literatura romântica na sua vertente fantástica, muito difundida na França junto à geração romântica -, Jules Verne o evoca afirmando que este não teria ido tão longe com o tema sobre a invisibilidade: “Puisque vous préférez Le Secret de Storitz, je vous l’enverrai mercredi et vous le recevrez jeudi. Storitz, c’est l’invisible, c’est du pur Hoffmann, et Hoffmann n'aurait pas osé aller si loin. Il y aura peut-être un passage à adoucir pour le Magasin, car le titre de cet ouvrage pourrait être aussi La Fiancée invisible”.319 As cartas trocadas entre escritor e editor auxiliam a compreensão das modificações radicais às quais o romance foi submetido, sobretudo no que diz respeito às representações da arte ou do artista. O romance não será publicado em 1905 como Verne o desejou, mas somente em 1910, com inúmeras modificações feitas por seu filho, Michel Verne. No entanto, conhecido desde 1996 graças ao trabalho do especialista Olivier Dumas, a Société Jules Verne junto com a editora Archipel republicaram o romance na sua versão original.320 Della Riva e Lanthony, ambos especialistas da obra de Jules Verne, já dedicaram artigos nos quais exploram as passagens desse manuscrito que Michel Verne reescreveu.321 Analisamos na pesquisa as duas versões, a publicada em 1910, confrontando com aquela original de 1996. Embora as referências à arte e ao artista sejam escassas para realizarmos uma discussão na perspectiva da trajetória de Jules Verne no campo literário, há duas diferenças que devem ser observadas. Uma das modificações realizadas por Michel Verne 318 VERNE, 2006b, p. 145. VERNE, 2006b, p.147. 320 A versão original sem as modificações do filho de Jules Verne foi publicada em 1996, pela editora Archipel. De domínio público, esta versão pode ser lida também em formato e-book desde maio de 2015. http://www.ebooksgratuits.com/pdf/verne_secret_wilhelm_storitz_vo.pdf 321 Diversos são os artigos que se dedicaram à discussão sobre as modificações e a versão original deste romance. Aludimos àqueles que nos auxiliaram a compreender a problemática: DELLA RIVA, Piero Gondolo. “À propos du manuscrit de Storitz”. Bulletin de la Société Jules Verne, nº 46, 2e trim., 1978, p. 160-163; DELLA RIVA, Piero Gondolo. “Encore à propos du manuscrit de Storitz”. Bulletin de la Société Jules Verne, nº 58, 2e trim., 1981, p.72 e LANTHONY, Philippe. “En lisant le vrai Storitz”. Bulletin de la Société Jules Verne, nº 77, 1er trim., 1986, p.15-18. 319 183 que teriam afetado diretamente a nossa interpretação, é o tempo histórico em que a trama se desenvolve. Embora não mencione explicitamente, Jules Verne a situa no século XIX, em razão de algumas evidências textuais, provavelmente depois da guerra francoprussiana ocorrida entre 1870 e 1871. Por exemplo, Henri Vidal, narrador-personagem do romance, não poupa desprezo pelos alemães depois do conflito que marcou a tomada da maior parte do território da Alsácia-Lorena pela Prússia, o fim do Segundo Império francês e início da Terceira República, como podemos verificar nas passagens abaixo: À le bien considérer, ce personnage, j’avais lieu de penser que c’était un Allemand, très probablement originaire de la Prusse. Si je ne faisais pas erreur, il n’aurait pas plus envie d’entrer en relation avec moi que moi avec lui, lorsqu’il apprendrait que j’étais un Français. Oui, un Prussien, cela se sentait, comme on dit, et tout en lui portait la marque teutonne. Impossible de le confondre avec ces braves Hongrois, ces sympathiques magyars, vrais amis de la France.322 C’est un Allemand ? repris-je. À n’en point douter, monsieur Vidal, et je pense même qu’il l’est deux fois, car il doit être Prussien. Eh ! C’est déjà trop d’une! M’écriai-je.323 Já o romance publicado em 1910 pela editora Hetzel, Michel Verne remaneja esse contexto histórico e atrasa o tempo do romance para o século anterior, situando a trama em 1757. Ao receber a carta de seu irmão pintor convidando-o para seu casamento, Henri Vidal lança: “Ainsi se terminait la lettre que j’ai reçu de mon frère, le 4 avril 1757”.324 Dessa modificação advêm incontáveis anacronismos como alguns que mostraremos a título de exemplo. Ora, reconfigurar uma trama que se passaria na Terceira República da França para a França monárquica de 1757, pressuporia modificações profundas no romance. O retrato literário do personagem pintor Marc Vidal mostra os erros grosseiros que resultaram dessa modificação: Mon frère Marc, alors âgé de vingt-huit ans, avait déjà obtenu de grands succès aux Salons comme peintre de portraits. La médaille d’or et la rosette d’officier de la Légion d’honneur, c’était justice de les lui avoir accordées. Il occupait un haut rang dans l’art des portraitistes de son temps, et Bonnat pouvait être fier de l’avoir eu pour élève. [...] En effet, il s’agissait d’un mariage. Depuis quelque temps déjà, Marc résidait à Ragz, une importante ville de la Hongrie méridionale. Plusieurs semaines passées à Budapest, la capitale, où il avait fait un certain 322 VERNE, Jules. Le secret de Wilhelm Storitz. E-books, maio de 2015, p. 24. Disponível em: http://www.ebooksgratuits.com/pdf/verne_secret_wilhelm_storitz_vo.pdf Remetemos o leitor igualmente ao texto de 1910 remanejado por Michel Verne mas não modificado para a passagem citada: VERNE, Jules. Le secret de Wilhelm Storitz. Paris: Michel de l’Ormeraie, 1981, p. 361. 323 VERNE, 2015, p. 26 ou VERNE, 1981, p. 362. 324 VERNE, 1981, p. 342. 184 nombre de portraits très réussis, très largement payés, lui avaient permis d’apprécier l’accueil qui attend en Hongrie les artistes et particulièrement les artistes français, des frères pour les Magyars.325 Somente nessa breve passagem o narrador, encerrado no ano de 1757, incorre em dois anacronismos: o primeiro quando alude à “rosette” da Légion d’honneur (Legião de honra), condecoração honorífica francesa que só será instituída em 1802 por Napoleão Bonaparte em recompensa a méritos militares ou civis à nação; a segunda, quando cita o pintor Léon Bonnat (1833-1922), retratista de diversas personalidades do século XIX como Victor Hugo, Louis Pasteur e Jules Ferry, portanto, contemporâneo de Jules Verne. Uma segunda modificação considerável concerne à conclusão do romance. Na versão de 1910, Michel Verne ressuscita a personagem Myra Roderich depois de dar à luz a um filho do pintor Marc Vidal. Na versão de Jules Verne, Myra se torna invisível para sempre por ter ingerido a fórmula de Storitz. O fim melancólico é endossado pelo fato de os personagens só poderem “vê-la” através do retrato pintado por seu noivo, Marc Vidal. Este subitem da Tese prevê a análise do personagem pintor do romance Le secret de Wilhelm Storitz através dos dados que poderíamos extrair da trama. No entanto, a escassez de informações nos conduzem a realizar observações pela ausência de elementos concernentes às representações da arte ou do artista. Seja na versão de 1910 ou naquela de 1985, Marc Vidal é apresentado como um pintor de retratos dotado dos capitais necessários para ser reconhecido. Porém, tem sua vida pessoal e felicidade atrapalhados por um cientista que importuna suas bodas. Ora, como em Le Rayon vert, o personagem que representa a ciência é pintado com aspectos negativos. Para nós, quanto mais se dá o processo de envelhecimento social de Jules Verne dentro do campo literário, maior é seu pessimismo em relação à ciência. Não queremos dizer com isso que Jules Verne não continue se valendo do intertexto e do interdiscurso científico ficcionalizado em seus romances de aventura. Um contrato o restringia nessa produção. No entanto, é notório que o discurso do autor matiza negativamente o próprio espaço no campo literário que construiu para si em colaboração com seu editor - aquele que garante à ciência um espaço na literatura. Os quatro romances que analisamos - Paris au XXe siècle, Vingt milles lieues sous les mers, Le Rayon vert e Le secret de Wilhelm Storitz -, focalizados dentro dos aspectos que recortamos para esta Tese, parecem se inscrever em uma trajetória que vai de um 325 VERNE, 1981, p. 342. (Versão remanejada por Michel Verne) 185 Jules Verne que constata a morte do romantismo e, portanto, das referências e modelos que constituíam seu habitus de juventude, a um Jules Verne que não reverencia mais esses modelos, pois verifica que, para estar em harmonia com a modernidade, ser reconhecido simbolicamente no campo literário e obter vantagens financeiras, tem que negociar com seu editor e consigo mesmo, afim de dar lugar ao discurso científico, fonte das suas tramas, dentro do discurso literário. A maneira que encontra, consciente ou inconscientemente, para insurgir-se contra o que alimenta sua própria obra é olhar negativamente para isso. Na perspectiva da trajetória, queremos afirmar que o discurso científico continua presente na obra de Verne, porém cada vez mais apresentado de maneira pouco elogiosa. 186 5- CONCLUSÃO Ao final da pesquisa, verificamos que a obra de Jules Verne, vista nos diversos momentos de sua trajetória, escapa de qualquer classificação que se queira atribuir, em razão da sua complexidade em reunir gêneros diversos: da poesia ao romance, passando pelo teatro, pela novela e pela crítica de arte, sua obra engloba referências românticas mescladas ao discurso científico, histórico-geográfico inicialmente, e tecnológicos posteriormente, amalgamando e difundindo as mensagens mais variadas. Podemos dizer que Verne constrói uma trajetória não linear no início, em 1851, e mais uniforme a partir de 1862, traçado que pressupõe mudanças de ordem estética. Um “antes e depois” foi conjecturado no início da pesquisa para estudarmos a carreira de Jules Verne na perspectiva do campo literário, levando em conta que o encontro com o editor Pierre-Jules Hetzel tenha sido um divisor de águas na carreira do escritor. Essa hipótese foi de fato produtiva, embora parcialmente contestada. De 1851 a 1862, duas vias paralelas se apresentaram ao escritor como espaços possíveis para investimentos genéricos. Nesse período da sua trajetória, Verne tateia entre teatro e imprensa literária, ou seja, entre a arte burguesa e o jornalismo, a fim de encontrar um lugar no campo literário no qual pudesse ser reconhecido como escritor. Ora, de textos para as artes do espetáculo como Les Pailles rompues, La Guimard e Monna Lisa, isto é, de uma literatura voltada para o divertimento social, construída com posicionamentos que valorizavam modelos românticos, para novelas baseadas no discurso científico dos relatos de viagem como Les premiers navires de la marine mexicaine, para citar apenas um exemplo, e uma crítica de arte e a crítica literária sobre a obra de Edgar Allan Poe, Jules Verne opta pela via que lhe foi mais frutuosa economicamente e lhe rendeu mais possibilidades no que diz respeito à difusão de seu “nome” no campo literário. Devido à coleção de fracassos para a cena teatral, a literatura em uma linha utilitária, com intuitos pedagógicos, revelou-se potencialmente como a via mais produtiva para seus investimentos. Queremos dizer que o investimento no gênero romance, que ocorrerá em torno de 1860 e 1862, impõe-se a Verne em função das coerções do campo e de sua ambição profissional; e a confirmação dos aportes estéticos - as narrativas de viagem, o insólito e o extraordinário - advêm sobretudo da leitura de Edgar Allan Poe, em torno de 1862. 187 Ao conhecer o futuro editor, Pierre-Jules Hetzel, em 1862, Jules Verne já trazia consigo tanto as disposições literárias com base no discurso científico dos relatos de viagem, testadas na revista Musée des familles, quanto o aspecto do “extraordinário” tomado de Poe, o que agradou a Hetzel, mas ainda trazia em si o traço romântico da sua formação geracional. O contrato assinado, em 1862, para o romance Cinq semaines en ballon e sua publicação, em 1863, revelam para Jules Verne que os “novos sistemas” que relatara em carta a seu pai em abril de 1854 começavam, finalmente, a se perfilar e render frutos. É, de fato, graças a Hetzel e seus empreendimentos no campo editorial e no campo literário que Jules Verne obterá sucesso com esse romance e poderá vislumbrar a possibilidade de viver da sua pena. Desde a nossa primeira reflexão sobre a realização do estudo da trajetória de Jules Verne, que atentava para as especificidades do contexto histórico e a relação do escritor com seu editor, dificuldades surgiram, sobretudo quando definimos uma abordagem em termos sociodiscursivos, que leva em conta as tomadas de posição no campo literário e os posicionamentos discursivos do escritor. Poderíamos ter incorrido, por exemplo, no problema de realizar análises do tipo “psicológicas” partindo da associação entre Jules Verne e P.-J. Hetzel depois do encontro de 1862, como fizeram certos biógrafos do escritor ao considerarem Hetzel como um “pai espiritual”. Ou mesmo nos ter fixado em um “antes” e um “depois” desse encontro, sem considerar as nuances do percurso de Verne. Uma outra forte tentação foi estabelecer uma idealização tanto da figura de Verne quanto a de Hetzel, demonizando este último e vitimizando o primeiro. Desse ponto de vista, Hetzel teria sido um editor astucioso, interesseiro, que teria se aproveitado de Verne para fazer fortuna, não levando em conta suas disposições estéticas e abafando seus talentos. No entanto, o trabalho de pesquisa reiterou a ideia de que a produção literária de um escritor está intrinsecamente relacionada a seus sucessivos posicionamentos enunciativos e às posições assumidas por ele no campo literário, a fim de construir uma carreira e de definir seus rumos. Distante da ideia do gênio romântico encerrado em sua torre de marfim, vemos a produção literária como um processo coletivo que implica diversos agentes e suas negociações, nem sempre fáceis, em vista de produzir bens simbólicos e financeiros. Unimos, nesta pesquisa, portanto, a interpretação da obra à análise das condições técnicas ou sociais de sua publicação e circulação. Pela importância das táticas e estratégias do mundo da edição, o investimento no gênero romance científico com Cinq semaines en ballon engajou Jules Verne, em busca 188 de legitimidade, em uma via estética da qual o escritor não previa as implicações e obrigações antes do lançamento do Magasin d’Éducation et de Récréation, em 1864. Os discursos paratextuais dessa revista para crianças e jovens atestam as coerções poéticas segundo as quais devem ser considerados os contratos ideológicos constituídos para a promoção do ciclo romanesco, sob a égide do mito da “grande obra”. Como pudemos mostrar, os paratextos da revista-vitrine de Hetzel condicionaram a política de planejamento do ciclo romanesco Viagens extraordinárias, em harmonia com os princípios estruturantes de uma literatura expositiva, didática e enciclopédica, capaz de formar as novas gerações. Tal é o um dos aportes de Hetzel aos aspectos que Verne já trazia das experiências vividas no campo literário. Tais princípios estarão, igualmente, na base dos argumentos que não sancionam o romance de ode ao Romantismo - Paris au XXe siècle. Embora uma crítica à exaltação feita ao Romantismo não esteja explícita na carta de recusa de P.-J. Hetzel, podemos dizer que, por se tratar de um romance dedicado inteiramente a referenciar e a reverenciar os modelos românticos, opondo-os à ciência e à tecnologia, o editor o recusou por ele não se adequar ao seu projeto estético-editorial que visava, entre outros objetivos, garantir um lugar para a ciência na literatura. Este fato teria servido como uma pá de cal sobre as potencialidades românticas tardias de Jules Verne, que certamente tinha a consciência do desgaste da estética romântica, apresentada como morta na cenografia do romance, e já vinha buscando novas vias, “novos sistemas”. Assim, na lógica da exploração de fronteiras que adotamos nesta Tese, o romance Paris au XXe siècle tem um lugar importante na trajetória do autor. Dentro da perspectiva discursiva que propomos, tratamos de associar Michel Dufrénoy, personagem paratópico por excelência, ao não lugar do próprio Jules Verne nos anos de 1860-1862. O escritor se vale desse caráter problemático de não pertencimento para nutrir sua criação. Se Cinq semaines en ballon (1863) é um romance com cujo gênero e temas o escritor já se apresenta “tal como será”, é o manuscrito que o precede - Paris au XXe siècle (18601861), que marca em definitivo o reposicionamento de Verne em direção ao romance. Por apresentar o conflito entre a literatura e a arte em filiação romântica no embate com a ciência e os avanços tecnológicos, caros ao século das revoluções industriais como vimos, Paris au XXe siècle se configura na trajetória do escritor como um romance de despedida da escola romântica, à qual nunca conseguiu se afiliar concretamente. “Refazer a história do universo”. Tal passou a ser o projeto de Verne depois do encontro com Pierre-Jules Hetzel. Contratos e coerções que garantem a Jules Verne o 189 status de escritor marcarão esse momento imediatamente posterior à publicação de Cinq semaines en ballon, Voyages et aventures du capitaine Hatteras e a recusa de Paris au XXe siècle. É precisamente com a atitude de apreender um vasto conjunto científico e tecnológico, segundo aporte de Hetzel para a literatura de Verne, transformando-o em romances, que as Viagens extraordinárias encontram sua singularidade. Questionado sobre seu método de trabalho pela jornalista Marie A. Belloc, em 1895, Jules Verne fala em termos de “cuisine littéraire”326. Por mais prosaica que seja, a expressão corresponde à mistura de ingredientes, tirados daqui e dali, meticulosamente dosados e transformados pela competência do escritor na obra que se perpetuou até os dias de hoje. O programa que se articulou entre escritor e editor para a fundação das Viagens extraordinárias ambicionava um objetivo estético de totalidade análogo àquele de Honoré de Balzac, com sua Comédie humaine cujo “Avant-propos” foi publicado em 1842. Para Jules Verne, as Viagens extraordinárias serão produto de um processo coletivo, um trabalho em colaboração, que implicou diversas negociações e contratos, no sentido jurídico do termo. Quanto mais obtém sucesso junto ao público, o que é confirmado pelas vendas, mais o escritor cede às coerções editoriais e se fideliza à editora em um processo que chamamos de hetzelização - endossado pelos diversos contratos firmados entre os dois agentes do campo literário. Entre 1863, data do primeiro contrato que o engaja com a editora de Hetzel, a 1875, ainda que ambos se beneficiem financeiramente das vendas dos romances, P.-J. Hetzel, homem de negócios e não artista, lucrou muito mais do que o escritor. Dos três formatos de publicação previstos para cada volume – a primeira em fascículo, anexada a sua própria revista-vitrine ou a um jornal, seguida de uma publicação in-18 não ilustrada e, ainda, de uma terceira publicação grand in-8 ilustrada, a famosa edição da capa vermelha e douradura nas páginas que serviu a muitos pais como presente de final de ano a seus filhos - Verne, entre os anos de 1863-1875 só recebia um valor fixo por manuscrito entregue. Afirmamos, portanto, que Jules Verne representou a galinha dos ovos de ouro para a editora de Hetzel nesse período. É somente em 1868, e depois em 1871, mas finalmente em 1875 que os contratos serão revistos e beneficiarão mais o escritor. Por seu lado, Verne obterá com a associação com o editor Hetzel e seus descendentes a segurança de uma carreira sólida e a garantia de um nome para a posteridade. Hetzel, para além dos grandes lucros, tomou em suas mãos a carreira de Verne e soube garantir sua manutenção no campo literário francês ao mesmo tempo que 326 VERNE, Jules. Entretiens avec Jules Verne - 1873-1905. Réunis et commentés par Daniel Compère et Jean-Michel Margot. Genève: Slatkine, 1998, p. 106. 190 a projetou internacionalmente. Através de contratos firmados com editores e livreiros de inúmeros países, Hetzel assegurou a tradução e a internacionalização das Viagens extraordinárias, formando um número imenso de jovens leitores mundo afora. Depois de doze anos de tentativas de entrada no campo literário, mais doze anos de produção romanesca, Jules Verne conseguiu finalmente reunir os capitais suficientes para obter um lugar de destaque no campo literário, mesmo que isso se deva sobretudo por sua aceitação incontestável junto a um público fiel. Para concluir, devemos afirmar que, ainda que Jules Verne esteja incluído no programa cujo objetivo era esquadrinhar o globo terrestre, apresentando os conhecimentos científicos e tecnológicos produzidos à época sob a forma do romance didático, seus posicionamentos discursivos serão marcados por disposições que ainda apontam para a literatura e a arte, para o escritor e o artista em filiação romântica. As representações artísticas na obra de Jules Verne atestam da subsistência de um gosto romântico. As peças de teatro analisadas, cujos modelos eram extraídos de peças de Alfred de Musset, teriam servido ao Verne dramaturgo para se filiar ao Romantismo. Os apontamentos das técnicas, gêneros e pintores ainda valorizam a estética romântica na crítica de arte do Salão de 1857. Já em 1860-1861, em Paris au XXe siècle, Verne parece fazer o luto do Romantismo sempre reverenciado, mas visto com grande saudosismo. No gabinete de curiosidades do capitão Nemo em Vingt mille lieues sous les mers, romance de 1871, embora as telas representativas da estética romântica se misturem com quadros de gêneros variados e “curiosidades”, elas ainda ocupam o lugar de destaque da passagem descritiva. Resta lembrar que elas estão encerradas no Nautilus, logo, perdidas para a humanidade. Mais tarde, um posicionamento discursivo diluído se articula em torno da antinomia entre a arte - sem filiação romântica - e a ciência, através de alusões esparsas nos romances Le Rayon vert, de 1882, e Le secret de Wilhelm Storitz, de 1910. Na perspectiva da trajetória, observamos uma espécie de enfraquecimento da recorrência aos modelos românticos pari passu com o envelhecimento social do escritor. No percurso apresentado nesta Tese, concluímos igualmente que Jules Verne não é “inventado” pelo seu editor, o que não diminui a importância desse encontro para sua carreira. Porém, podemos também afirmar que é somente a partir das injunções genéricas, contratuais e ideológicas, expressas pelo projeto editorial de Hetzel em prol de uma literatura didática e enciclopédica, que devemos visitar a obra criada por Jules Verne e os questionamentos que faz sobre a arte. 191 6 – ANEXOS 6.1 – Contratos 6.1.1 - Contrato para Voyage en l’air (Cinq semaines en ballon) (1862) Entre les soussignés, M Jules Vernes demeurant passage (ilegível) nº 18 d’une part ; Et M Jules Hetzel éditeur demeurant 18, Rue Jacob d’autre part ; Il a été dit ce qui suit : Monsieur Jules Vernes cède et vend le droit de publier à réservation de tous autres un ouvrage de lui intitulé Voyage en l’air aux conditions suivantes : Art. 1e. La première édition sera tirée à deux mille exemplaires avec papier (ilegível) dans le format in-dix huit de la Collection Hetzel. Art. 11. Le prix (ilegível) à l’auteur pour cette première édition est de cinq cents francs soit vingt cinq centimes par volume que M Hetzel paiera à M Jules Vernes en son billet à son ordre à 4 mois à la mise en vente de l’édition. Art 111. Il est dit que pour cette même édition il sera fait sept cents francs d’annonces. Art. IV. Pour les éditions suivantes le prix fixé pour chaque exemplaire sera de vingt cinq centimes. Ces éditions ne pourront être à un nombre moins de deux mille. Art V. Si après deux éditions épuisées M Hetzel juge utile à la vente de monter les prix et les conditions de la publication pour toutes les éditions ordinaires les droits de l’auteur seront calculés dans la proportion de dix pour cent du prix fort. Pour les éditions illustrées dont le prix et les dépenses sont plus élévés les droits de l’auteur seraient calculés à 5% du prix fort. Paris le 23 octobre 1862 J’approuve (Assinatura de Jules Verne) (Assinatura de Jules Hetzel) 192 6.1.2 - Contrato para Voyage et aventures du capitaine Hatteras (1864) Entre les soussignés, Monsieur Jules Verne, homme de lettres, demeurant Auteuil, 39, Rue de la fontaine, d’une part ; Et Monsieur J. Hetzel, libraire éditeur, demeurant à Paris, Rue Jacob, 18, d’autre part ; Il a été dit ce qui suit : M Verne cède à M Hetzel, qui l’accepte le droit de publier à l’exclusion de tous autres les deux volumes dont il est l’auteur, intitulés : Voyages et aventures du capitaine Hatteras ou Les Anglais au Pôle Nord,pour la première partie, et Les Robinsons dans les glaces, pour la seconde partie aux clauses conditions suivantes : Art. 1er. Il est dit qu’en échange de la somme de trois mille francs, que M Hetzel règle à M Verne, contre la signature des présentes, M Verne cède à M Hetzel 1 - un droit à tirage de dix mille exemplaires (ilegível) doubles de deux volumes dont s’agit, divisés selon les (ilegível) de la vente en une ou plusieurs éditions ; 2- le droit de publier le dit ouvrage dans le Magasin d’Éducation et de Récréation dirigé par M Macé et Stahl. Art. 2. Après ces dix milles exemplaires tirés, épuisés, M Hetzel donnera à M Verne pour tous les tirages supplementaires, trente centimes par volume – à cette fin, toutes les fois que M Hetzel devra mettre en vente un nouveau tirage il en donnerait avis à M. Verne et lui reglèrai le montant du dit tirage en son billet à son ordre à trois mois. Art. 3. Pour les éditions illustrées, s’il paraît à M Hetzel que le succès du livre les comporte, il est dit que les droits d’auteur seraient de dix pour cent du prix fort, quelque soit ce prix, qu’il n’ait pas possible de déterminer à l’avance. Art. 4. En ce qui concerne les éditions non-illustrées le présent traité lie M Hetzel M Verne pour dix ans qui courront à partir de la mise en vente de la première édition. Ces dix ans passés, M Verne devra (ilegível) à prix égal à M Hetzel sur tous autres éditeurs, pour le renouvellement du dit traité. Art. 5. Quant aux éditions illustrées les bois/gravures faits pour ces éditions devant rester de non-valeurs dans les mains de l’éditeur, si le texte pouvait aller d’un côté et les gravures rester sans texte de l’autre, le droit de tirage de M Hetzel est absolu, exclusif, non limité à la charge par lui d’acquitter entre les mains de M Verne les droits d’auteur à lui attribués aux termes de l’article 3. Art. 6. Les droits de traduction et de reproduction seront partagés entre M Verne et M Hetzel par moitié. 193 De plus : M Verne se proposant d’écrire deux ouvrages intitulés l’un : Nouvelles histoires générales des voyages, l’autre Nouveau voyage autour du monde, il a été dit entre lui et M Hetzel qu’il aide ces deux ouvrages au dit M Heztel, dans les mêmes conditions que celles des Voyages et aventures du capitaine Hatteras, avec cette seule différence que ces deux ouvrages étant à faire au lieu d’être faits, il est dit que M Hetzel pour faciliter à M Verne son travail soumettra à M Verne, à partir de fin février prochain, la somme de trois cents francs, par mois, à valoir sur la livraison des dits ouvrages. Il est entendu que la Nouvelle Histoire générale des voyages ne pourra se composer de plus de six volumes et Le Nouveau voyage autour du monde de plus de deux volumes – chacun de ces volumes devant avoir outre son titre général son titre particulier. Il est dit aussi que M Verne s’oblige à livrer à M Hetzel un minimum de deux volumes par an et qu’il s’oblige en outre à ne publier en dehors des ouvrages dont s’agit, aucun autre ouvrage, tant qu’ils ne seraient pas achévés sans l’agrément de M Hetzel. Fait double à Paris, le premier janvier mille huit cent soixante quatre. Approuvé (Assinatura de Jules Verne) (Assinatura de Jules Hetzel) 194 6.1.3 – Contrato de 1865 Entre les soussignés, Monsieur Jules Verne, homme de lettres, demeurant Auteuil, 39, Rue de la fontaine, d’une part ; Et Monsieur Jules Hetzel, éditeur, demeurant à Paris, Rue Jacob, 18, d’autre part ; Il a été dit ce qui suit : Art. 1er. Les conventions suivantes ont été établies entre M Hetzel et Verne, qui couront du premier janvier mille huit cent soixante six jusqu’au trente et un décembre mille huit cent soixante et onze. Art. 2. Pendant ces six années M Hetzel s’engage à prendre M. Verne et par chaque année trois volumes composés dans le genre de ceux qu’il a précédement écrits du même auteur pour le même public et de la même étendue. Art. 3. M Hetzel aura pendant dix années un droit exclusif de propriété sur chacun de ces volumes à partir de la date de sa publication ; il pourra le publier dans tel journal qui lui conviendra et sous quelque forme que ce soit, avec ou sans illustrations. Art. 4. Quant aux éditions illustrées les bois et gravures à faire pour ces éditions devant rester des non-valeurs dans les mains de l’éditeur si le texte pouvait aller d’un côté et les gravures de l’autre, il est dit que M Hetzel en aura la propriété absolue et sans limites.327 Art. 5. Comme prix des ouvrages cédé dans les conditions suivantes par M Verne à M Hetzel, celui-ci paiera à l’auteur la somme de trois mille francs par volume ou pour la (ilegível) de M Verne la somme de sept cent cinquante francs par mois à partir du premier janvier prochain. Art. 6. M Verne s’engage égalément pendant toute la durée des présentes conventions, à ne publier aucun autre ouvrage, soit par lui-même, soit dans un autre journal, soit chez un autre éditeur, sans l’agrément de M Hetzel. Art. 7. Il est entendu que ces conditions s’appliquent égalément aux ouvrages précedemment publiés par M Jules Verne : Cinq semaines en ballon, Voyage au centre de la Terre, De la Terre à la lune, Les Anglais au pôle nord et Le désert de glace dont M Hetzel a acqui la propriété de M Verne moyennant la somme complémentaire de cinq mille cinq cents francs qu’il règle à M Jules Verne, en (ilegível) déjà payées par lui sur les dits ouvrages. 327 Em nota na margem esquerda da página: « En un mot il est entendu entre M Hetzel et M Verne que sa propriété absolue et indéfinie des ouvrages faisant l’objet des présentes conventions est cédée par M Verne pour l’exploitation des dits ouvrages en éditions illustrées au dit M Hetzel. » 195 Art. 8. M Jules Verne a publié dans les Musée des familles un certain nombre de nouvelles et est autorisé à en publier encore un par année ; il est dit que ces nouvelles ne pourront être publiées en volumes que par M Hetzel, soit en totalité, soit en partie à son choix, si elles lui paraissent de nature à être réunies en volume. Fait double à Paris, le onze décembre mille huit cent soixante cinq Approuvé (Assinatura de Jules Verne) (Assinatura de Jules Hetzel) 196 6.1.4 – Contrato de 1875 Entre les soussignés, Monsieur Jules Verne, homme de lettres, habitant à Amiens, Boulevard Longueville nº44, d’une part ; Et Messieurs J. Hetzel et Cie, libraires éditeurs, à Paris, 18, Rue Jacob, d’autre part ; Il a été dit comme résumé des nos conventions passées et préliminaire utile des conventions destinées à régler à l’avenir, ce qui suit: Résumé du passé et préliminaires de l’avenir Messieurs J. Hetzel et Cie ont actuellement l’exploitation exclusive des œuvres de M Jules Verne aux termes d’un traité en date du 25 décembre 1871 et dans des conditions de temps et de paiements énoncées dans ce traité. Ce traité du 25 décembre 1871 est lui-même la suite et la dernière modification d’une série de traités dont le premier remonte au 23 octobre 1862 et qui relatif à Cinq semaines en ballon, premier ouvrage de M Jules Verne assurait à ce dernier un droit sur les exemplaires de cet ouvrage. Un deuxième traité fut conclu le premier janvier 1864 sur des bases analogues pour différents autres volumes. L’artice 5 de ce traité spécificiait que : En ce qui concerne les éditions illustrées, les bois et les gravures devant rester des nonvaleurs dans les mains de l’éditeur si le texte pouvait aller d’un côté et les gravures rester de l’autre sans texte, le droit de propriété cédé à M M J. Hetzel et Cie serait absolu, exclusif et non limité. Plus tard, et sur la demande de M Jules Verne qui préférait un revenu fixe au revenu aléatoire établi sur le chiffre de vente, un troisième traité fut conclu à la date du 11 décembre 1865 qui stipulait que M Jules Verne fournirait pendant six ans à M M J. Hetzel et Cie et tous les ans à l’exclusion de tous autres trois volumes in-18 confinant au même public que ceux qu’il avait déjà écrits et ce contre un revenu annuel de neuf mille francs. Ce traité fut remanié le 8 mai 1868 et la somme payable annuellement partie par Messieurs J. Hetzel et Cie à dix mille francs. Enfin un cinquième traité fut signé le 25 décembre 1871. Dans ce traité (ilegível) en maintenant sur le désir de M Jules Verne, le principe du revenu fixe M M J. Hetzel et Cie désireux de ménager l’effort de M Jules Verne et de régler en même temps vis à vis du public sa production, en ne l’exagérant pas lui ont offert de renoncer au troisième volume annuel qu’il était obligé de leur fournir, et d’éléver cependant à douze mille francs la 197 somme annuelle à lui payer. De son côté M Jules Verne (ilegível) dans les vues de M M J. Hetzel et Cie et prorogeait de trois ans les dates d’expirations des traités antérieurs. Accesoirement il y a lieu de mentionner ici que sur le désir de M Jules Verne, deux dérogations furent faites à ce traité. La première en acceptant de publier dans la même année tois volumes au lieu de deux , la deuxième en prenant un volume composé de nouvelles déjà parues dans les Musées des familles, dans les mêmes conditions que les inédits. Le succès de M Jules Verne ayant grandi à la suite de la publication du Tour du monde, M M J. Hetzel et Cie désireux de faire participer M Jules Verne au succès croissant de son œuvre, lui ont déclaré il y a quelques mois, que leur intention était de renoncer au bénéfice du traité du 25 septembre 1871 qui devait terminer en 1881 et avait encore plus de dix ans à courir et l’ont engagé, de son côté, à renoncer au système de revenu fixe préféré par lui jusque-là et à s’associer au succès de ses œuvres futures par la perception d’un droit d’auteur fixé sur le chiffre des exemplaires vendus. Un nouvel et définitif accord est intervenu aujourd’hui entre Messieurs Jules Verne et J. Hetzel et Cie qui, tout en réglant les nouvelles conditions de l’avenir, arrête et fixe les conditions et les règlements du passé. Règlement pour les œuvres antérieures à ce jour et illustrées Art. 1er. Les œuvres antérieures à ce jour et illustrées c’est-à-dire celles publiées depuis Cinq semaines en ballon, jusque et y compris L’île mystérieuse dont la première partie paraît en ce moment dans le Magasin d’Éducation et de Récréation sont et demeurent aux termes des anciens traités la propriété pleine et entière de M M J. Hetzel et Cie, les droits d’entière propriété sur ces œuvres ayant été acquittées par M M J. Hetzel et Cie en execution des traités qui les concernent. Art. 2. En ce qui concerne la Géographie de la France conformément à l’article VII du traite du 8 mai 1868, il est dit encore que la Géographie illustrée ou même non illustrée avec introduction de Théophile Lavallée texte par M Jules Verne est et demeure la propriété exclusive de M M J. Hetzel et Cie tous les droits d’auteur revenant de ce chef à M Jules Verne ayant été également acquittés. Règlement pour les œuvres antérieures à ce jour non illustrées Art. 3. En ce qui concerne les volumes in-18 seules éditions publiées jusqu’à ce jour sans illustrations de l’œuvre antérieure de M Jules Verne à commencer par Cinq semaines en ballon et à finir par les trois volumes de L’île mystérieuse in-18 monsieur Jules Verne ayant désiré pour éviter la confusion qu’aurait pu amener dans les réglements de la 198 différence des dates d’expiration résultant de la succession des anciens traités, il est dit aux termes d’une moyenne établie par M. Jules Verne entre les plus repprochées et les plus éloignées que ces diverses écheances sont et demeurent ramenées à une date unique : celle de 1882 que M Jules Verne aura à toucher sur l’ensemble de tout son œuvre non illustrée in-18, un droit de cinquante centimes par volume vendu. Règlement concernant l’avenir et les œuvres futures Art.4. Il est dit qu’à partir de cette année 1er mai 1875, M M J. Hetzel et Cie sont et resteront aux clauses qui vont être dites et à l’exclusion de tous autres aux termes de la loi qui régit la durée des droits de la propriété littéraire, seuls éditeurs de toutes les œuvres de M Jules Verne tant en éditions illustrées qu’en édition in-18, ou en tout autre mode de publication que les changements de temps et les besoins de l’exploitation pourront amener dans l’intérêt de la propagation des dits ouvrages le tout sans restrictions et sans réserves d’aucun espèce, de même qu’il en était pour les œuvres antérieures. Monsieur Jules Verne fournira par an comme auparavant à M M J. Hetzel et C ie deux volumes de la même valeur et étendue que ceux qu’il a déjà publié chez les mêmes éditeurs. Art. 5. M Jules Verne percevra sur les volumes in-18 à commencer par le tome I du Courrier du Czar un droit de cinquante centimes par exemplaire vendu. Art. 6. M Jules Verne percevra sur les éditions illustrées de ces œuvres futures, à commencer par le Courrier du Czar cinq pour cent du prix fort des unités vendues sur les vingt milles premiers exemplaires et dix pour cent sur tous ceux qui suivront. Par le mot « unité » nous entendons les livraisons, séries, fractions de volumes ou volumes suivant les divers modes de nos ventes. Art. 7. A partir du Courrier du Czar et du Voyage dans le monde solaire, et pour toutes les œuvres futures de M Jules Verne tous les droits de publications dans les Journaux et Revues de reproduction et de traduction, soit en France soit à l’étranger, seront à l’avenir partagés par moitié entre M Jules Verne et M M J. Hetzel et Cie. Quand M Jules Verne aura remis à M M J. Hetzel et Cie le manuscrit d’une œuvre nouvelle Messieurs J. Hetzel et Cie feront choix avant de la publier en volume du journal, du receuil ou de la revue auxquels ou à laquelle il sera plus utile ou plus profitable d’en céder la primeur. Quand ils publieront dans le Magasin Illustré d’Éducation et de Récréation celles de ces œuvres nouvelles qui leur paraitront le mieux appropriées à leur public ils paieront à M Jules Verne le même droit que celui qui lui serait revenu pour sa moitié sur la publication 199 par le dernier journal auquel M M Jules Hetzel et Cie auraient cédé le dernier ouvrage de Monsieur Jules Verne. Le produit de la vente des clichés constituant le matériel d’exploitation fabriqué par M M Jules Hetzel et Cie et à leur frais appartiendront seuls aux éditeurs. Conditions de paiement Art. 8. Pour la repartition des droits d’auteur revenant à M Jules Verne, il est dit : Le compte des ventes faites sera arrêté deux fois par an – le 30 avril et le 31 octobre de chaque année et payé à M Jules Verne par M M Jules Hetzel et Cie de mois en mois en dix mois et par fractions mensuelles égales et en espèces. M M Jules Hetzel et Cie suivant l’usage général de la librairie n’auront point à leur compte à M Jules Verne de droits d’auteur pour les exemplaires dits « de mains de passe » destinés à couvrir les (ilegível) volumes donnés pour la publicité ou défectueux. Art.9. Présentement la maison Jules Hetzel et Cie se trouve en avance vis à vis M Jules Verne d’une somme de dix mille francs que M Jules Verne devait couvrir en livrant le tome I du Courrier du Czar et le tome I du Voyage dans le monde solaire. Messieurs Jules Hetzel et Cie faisant entrer ces deux volumes dans la convention nouvelle qui régit l’avenir, M Jules Verne couvrira cette avance en livrant à M M Jules Hetzel et Cie en plus des deux volumes annuels, et ce, d’ici trois ans les tomes 2 et 3 compléments de L’histoire générale des voyages. Art. 10. La convention nouvelle devant, jusqu’à ce que le jeu des ventes soit (ilegível) apporter une interruption momentanée dans les résultats que l’ancienne assurait à M. Verne, il est dit que, pendant la première et la seconde année Monsieur Jules Verne continuera à toucher chaque mois mille francs chez M M Jules Hetzel et Cie qui se couvriront sur ce que donneront en plus les premiers comptes semestriels dont il est question à l’article 8. Art. 11. Pour garder son unité à l’exploitation de l’œuvre de M Jules Verne il est dit enfin que, conformément à l’article 4, M Jules Verne ne pourra publier ses pièces de théatre s’il en fait de nouvelles avec non plus qu’aucun autre œuvre littéraire que chez M M Jules Hetzel et Cieles droits d’auteur (ilegível) à ces ouvrages seront réglés quant aux conditions de vente par les articles 5 et 6 du présent traité. Art. 12. Dans dix ans c’est-à-dire à partir de fin 1885, M M Jules Hetzel et Cie auront la faculté de renoncer le bénéfice de l’article 4, en ce qui concernerait les œuvres de M Jules Verne postérieures à cette époque. Mais dans ce cas ils devraient renoncer le traité trois 200 ans à l’avance à M Jules Verne de sorte que ce ne serait que fin 1888 que la réalisation deviendrait effective si elle avait été dénoncée en 1885. Fait double à Paris le dix sept mai mille huit cent soixante quinze Approuvé (Assinatura de Jules Verne) (Assinatura de Jules Hetzel) 201 6.2 – Paratextos do Magasin d’Éducation et de Récréation 6.2.1 À nos lecteurs MAGASIN D’EDUCATION ET RECREATION ENCYCLOPEDIE DE L’ENFANCE ET DE LA JEUNESSE Directeurs: Jean Macé; -P. –J. STAHL En commençant la publication de ce Magasin d’Education et de Récréation, nous avons la conscience d’entreprendre une oeuvre difficile, et si nous ne reculons pas devant la difficulté de l’entreprise, c’est que nous avons en même temps la conscience de son extreme utilité. Il s’agit pour nous de constituer un enseigment de famille dans le vrai sens du mot, un enseignement sérieux et attrayant à la fois, qui plaise aux parents et profite aux enfants. Education, récréation – sont à nos yeux deux termes qui se rejoignent. L’instructif doit se présenter sous une forme qui provoque l’intérêt: sans cela il rebute et dégoûte de l’instruction; l’amusant doit cacher une réalité morale, c’est-à-dire utile: sans cela il passe au futile, et vide les têtes au lieu de les remplir. Là devra être l’unité de notre ceuvre, qui pourra, si elle réussit, contribuer à augmenter la masse de connaissances et d’idées saines, la masse de bons sentiments, d’esprit, de raison et de goût qui forme ce qu’in pourrait appeler le capital moral de la jeunesse intellectuelle de la France. Ajouter à la leçon forcément un peu austère du collège et du pensionnat une leçon plus intime et plus pénétrant, compléter l’éducation publique par la lecture au sein de la famille, devenir les amis de la Maison partout où nous pourrons pénétrer, agir à la fois sur tous les éléments dont elle se compose, répondre à tous les besoins d’apprendre qui se développent autour du foyer, depuis le berceau jusqu’à la maturité, telle est notre ambition. On est enfant à tout âge pour ce qu’on ignore; n’est-on pas de même un enfant pour tout ce qu’on a oublié? En se penchant sur nos pages pour les faire goûter à nos petits à nos jeunes lecteurs, les parents, nous en avons la confiance, sentiront peu à peu le bon parfum de leur jeunesse remonter jusqu’à eux. Le Magasin d’Education et de Récréation, avons-nous besoin de le dire, n’est pas et ne devrait pas être une oeuvre improvisée. Il y a six ans que le plan en a été conçu, médité, arrété. Les matériaux don’t il se composera d’abord ont été choisis et amassés patiemment, lentement, page à page, et préparés ainsi de longue main. Nous sommes assez riches, dès à présent, pour ne rien admettre de nouveau qui ne nous paraisse digne de notre but. Nous attendons d’ailleurs de confiance le concours de tous les esprits distingués que préoccupe le noble souci de l’éducation des générations nouvelles; nous comptons qu’ils voudront bien seconder notre mouvement et unir leurs efforts à ceux des savants, des artistes dont le secours nous est déjà assuré. A côté des travaux écrits spécialement pour notre recueil, nous donnerons, à l’occasion, place, dans une partie spéciale de nos colonnes, à la reproduction, à la nouvelle mise en lumières des rares oeuvres qui, dans le passé, ont mérité de devenir des classiques de l’enfance et de la jeunesse. Nous ne remplirions qu’imparfaitement notre tâche, nous ne justifierions pas notre titre, si nos petits lecteurs ne pouvaient pas y trouver des joyaux qui sont pour eux comme le patrimoine de leurs pères. Au risque donc de donner en double à quelques-uns d’entre 202 eux un petit nombre de livre qui déjà peut-être sont dans leurs mains, nous réimprimerons ces bons livres. Disons toutefois que ces réimpressions seront, sous plus d’un rapport, des oeuvres encore nouvelles, et que ceux qui les connaissent déjà auront profit à les relire dans nos colonnes. Sans parler du complément de charme at d’utilité qu’ajoute une illustration intelligente et attentive à certains livres, quelle est l’oeuvre à laquelle des notes, une révision consciencieuse n’apporte pas une saveur nouvelle? La Science, grâce à Dieu, dans notre siècle si agité, a fait des pas de géant, et il est tel livre irréprochable à son origine, excelente dans son ensemble, le Robinson suisse, par exemple, pour n’en citer qu’un, le premier que nous devions réimprimer, qui fourmille d’erreurs graves dans les détails, et qu’il; était indispensable de ne pas laisser plus longtemps dans les mains de la jeunesse avec les notions fausses en ce qui touche l’histoire naturelle, les sciences physiques et même la morale, qui y abondent et le déparent. Nos réimpressions auront donné un but: celui de mettre au niveau des progrès modernes les ceuvres en quelques peu vieillies et dépassées, et de les sauver ainsi de l’oubli qu’elles allaient mériter. Si nous avions un regret à exprimer, ce serait de ne trouver qu’un trop faible appoint dans l’héritage du passé. La littérature de l’enfance proprement dite a été si singulièrement négligée dans notre pays de France, qu’à côté des milliers de livres excellents à l’usage de l’âge mûr que nous ont légués nos pères, ils ne nous en ont pas, à coup sûr, légué cinquante à l’usage de nos enfants. Les lacunes enormes laissées par cette indigence relative dans la bibliothèque de l’enfance et de la jeunesse sont assez nombreuses, hélas! Ce sera un effort assez grand pour nous d’avoir à tenter de les combler, pour que nous n’ayons pas le droit de faire fi de ce qui a survécu au naufrage du temps. Nous ne pourrons tout dire à la fois, bien entendu; mais en voyant nos livraisons et nos volumes se succéder, nos lecteurs comprendront que, toute vaste qu’elle est, aucun point essentiel de notre tâche n’aura été par nous négligé. – Le champ est immense, il faut bien nous resigner à ne le labourer que sillon à sillon. Nous avions à choisir: ou faire une publication à l’usage des seuls bébés, ou parler et pour eux et pour les jeunes gens et les jeunes filles, et par suite, que les parents nous permettent de le dire, pour les jeunes pères et les jeunes mères aussi. – C’est le parti que nous avons pris, bies assurés que tout convient à l’enfance elle-même, de ce qui a les qualités mais non les défauts de l’âge mûr. Nous prions nos abonnés de se considérer tous comme nos coopérateurs. Quand donc il leur viendra une pensée qu’ils croient utile de nous communiquer, nous l’accueillerons avec reconnaissance. Donnant, donnant. En mettant notre bon vouloir à leur service, nous croyons pouvoir invoquer le leur. C’est une oeuvre de famille que nous abordons, c’est avec l’aide des familles seulement qu’elle peut réussir. P.-J. STAHL. – JEAN MACE. 203 6.2.2 - Avis de l’éditeur Nous n’aurions pas, non plus, entrepris cette tâche véritablement inquiétante de publier un recueil à l’usage de l’enfance et de la jeunesse, si nous avions été assuré du concours exclusif et précieux de l’auteur de l’Histoire d’une Bouchée de pain, des Contes et du Théâtre de Petit-Château, de l’Arihmétique du Grand-Papa, si le jeune et aimable savant qui a écrit Cinq semaines en ballon, M. Jules Verne, ne nous avait, comme M. Macé, assuré sa collaboration pour de longues années; si l’éditeur, M. Hetzel, n’y avait été très vivement poussé, qu’il nous soit permis de le dire, par l’auteur, M. Stahl; si d’illustres membres de l’Institut, des professeurs éminents pour la partie éducation; si des écrivains distingués, les uns déjà célèbres, les autres dignes de le devenir, pour la partie récréation, ne nous avaient apporté le concours indispensable de leurs lumières et de leurs talents; si, enfin, des artistes dévoués à notre idée, les uns appréciés déjà, M. Froment, M. Froelich, pour leur exquise aptitude à reproduire les scènes de l’enfance et de la jeunesse, les autres tout à fait nouveaux, ce qui a bien son prix aussi, ne nous avaient fourni à l’avance des series de dessins exquis, chastes et charmants, gai et doux à la fois, dont les succès n’a pu nous paraître douteux. Bien que, à notre grand regret, nous ne donnions pas cette publication absolument pour rien, nous prions constamment les familles de vouloir bien croire que si nous n’avions qu’un but de spéculation, que si nous n’obéissions pas à un goût, à une préoccupation tout à fait spéciale, nous n’aurions pas pensé à l’oeuvre d’une si grande difficulté que nous entreprenons aujourd’hui. Qu’elles nous aident dans notre tâche, qu’elles s’en fassent les amies, les soutiens, et elles sentiront peu à peu que c’est d’une maison, que c’est d’un foyer qu’elle part, et non pas d’une boutique don’t tout le souci serait seulement de voir grossir sa caisse. Faire des affaires! Rien de plus légitime sans doute; mais faire celles pour lesquelles on se sent un goût déterminé, une vocation particulière, celles don’t on attend mieux qu’une satisfaction morale, voilà ce qui peut surtout expliquer notre entreprise. Si nous adressions à ce qu’on appelle le grand public des grands, nous ne tiendrions pas ce langage, naïf à force d’être sincère; mais pourquoi, quand nous avons la conscience de faire oeuvre de famille, ne parlerions nous pas un père de famile, à des pères, à des mères, à des enfants, et dans le langage qu’autorise commun amour de l’enfance et de la jeunesse. P.-J. Hetzel 204 6.2.3 – Avertissement de l’éditeur Les excellents livres de M. Jules Verne sont du petit nombre de ceux qu’on peut offrir avec confiance aux générations nouvelles. Il n’en est pas, parmi les productions contemporaines, qui répondent mieux au besoin généreux qui pousse la société moderne à connaître enfin les merveilles de cet univers où s’agitent ses destinés. Il n’en est pas qui aient mieux justifié le rapide succès qui les a accuellis dès leur apparition. Si le capriche de public peut s’égarer un instant sur une oeuvre tapageuse et malsaine, son goût ne s’est jamais fixé en revanche d’une façon durable que sur ce qui est fondamentalement sain et bon. Ce qui a fait la double fortune des ceuvres de Jules Verne, c’est que la lecture de ses livres charmants a tout à la fois les qualités d’u aliment substantiel et la saveur des mets les plus piquants. Les critiques les plus autorisés ont salué dans M. Jules Verne un écrivain d’un tempérament exceptionnel, auquel, dès ses débuts, il n’était que juste d’assigner une place à part dans les lettres françaises. Conteur plein d’imagination et de feu, écrivain original et pur, esprit vif et prompt, égal aux plus habiles dans l’art de nouer et de dénoeur les drames inattendus qui donnent un si puissant intérêt à ses hardies conceptions, et à côté de cela profondément instruit, il a créé un genre nouveau. Ce qu’on promet si souvent, ce qu’on donne si rarement, l’instruction qui amuse, l’amusement qui instruit, M. Verne le prodigue sans compter dans chacune des pages de ses émouvants récits. Les romans de M. Jules Verne sont d’ailleurs arrivés à leur point. Quand on voit le public empressé courir aux conférences qui se sont ouvertes sur mille points de la France, quand on croit qu’à côté des critiques d’art et de théâtre, il a fallu faire place dans nos journaux aux comptes rendus de l’Académie des Sciences, il faut bien se dire que l’art pour l’art ne suffit plus à notre époque, et que l’heure est venue où la science a sa place faite dans le domaine de la littérature. Le mérite de M. Jules Verne, c’est d’avoir le premier, et en maître, mis le pied sur cette terre nouvelle, c’est d’avoir mérité qu’un illustre savant, parlant des livres que nous publions, en ait pu dire sans flatterie: “Ces romans, qui vous amuseront comme les meilleurs Alexandre Dumas, vous instruiront comme les livres de François Arago.” Petits et grands, riches et pauvres, savants et ignorants, trouveront donc plaisir et profit à faire des excellents livres de M. Jules Verne les amis de la maison et à leur donner une place de choix dans la bibliothèque de la famille. Les éditions illustrées que nous donnons des ceuvres de M. Jules Verne, à bon marché inusité et dans des conditions qui en font des livres de vrai luxe, témoignent de la confiance que nous avons dans leur valeur et dans la popularité toujours croissante qui les attend. Les ouvrages nouveaux de M. Jules Verne viendront s’ajouter successivement à cette édition, que nous aurons soin de tenir toujours au courant. Ils embrasseront dans l’ensemble le plan que s’est proposé l’auteur, quand il a donné pour sour-titre à son ceuvre celui de Voyages extraordinaires dans les mondes connus et inconnus. Son but, est en effet, de résumer toutes connaissances géographiques, géologiques, physiques, astronomiques, amassées par les sciences modernes, et de refaire, sous la forme attrayante et pittoresque qui lui est propre l’histoire de l’univers. P.-J. Hetzel 205 6.2.4 – Prospectus En commençant la publication de ce Magasin d’Education et de Récréation, nous avons la conscience d’entreprendre une ceuvre difficile, et si nous ne reculons pas devant la difficulté de l’entrepise, c’est que nous avons en même temps la conscience de son extreme utilité. Il s’agit pour nous de constituer un enseigment de famille dans le vrai sens du mot, un enseignement sérieux et attrayant à la fois, qui plaise aux parents et profile aux enfants. Education, récréation – sont à nos yeux deux termes qui se rejoignent. L’instructif doit se présenter sous une forme qui provoque l’intérét: sans cela il rebute et dégoûte de l’instruction; l’amusant doit cacher une réalité morale, c’est-à-dire utile: sans cela il passe au futile, et vide les têtes au lieu de les remplir. Là devra être l’unité de notre ceuvre, qui pourra, si elle réussit, contribuer à augmenter la masse de connaissances et d’idées saines, la masse de bons sentiments, d’esprit, de raison et de goût qui forme ce qu’on pourrait appeler le capital moral de la jeunesse intellectuelle de la France. Ajouter à la leçon forcément un peu austère du collège et du pensionnat une leçon plus intime et plus pénétrant, compléter l’éducation publique par la lecture au sein de la famille, devenir les amis de la maison partout où nous pourrons pénétrer, agir à la fois sur tous les éléments dont ele se compose, répondre à tous les besoins d’apprendre qui se développent autor du foyer, depuis le berceau jusqu’à la maturité, telle est notre ambition. On est enfant à tout âge pour ce qu’on ignore; n’est-on pas de même un enfant pour tout ce qu’on a oublié? En se penchant sur nos pages pour les faire goûter à nos petits à nos jeunes lecteurs, les parents, nous en avons la confiance, sentirons peu à peu le bon parfum de leur jeunesse remonter jusqu’à eux. Le Magasin d’Education et de Récréation, avons-nous besoin de le dire, n’est pas et ne devrait pas être une ceuvre improvisée. Il y a six an que le plan en a été conçu, médité, arrété. Les matériaux don’t il se composera d’abord ont été choisis et amassés patiemment, lentement, page à page, et préparés ainsi de longue main. Nous sommes assez riches, dès à présent, pour ne rien admetre de nouveau qui ne nous paraisse digne de notre but. Nous attendons d’ailleurs de confiance le concours le concours de tous les esprits distingués que préoccupe le noble souci de l’education des générations nouvelles; nous comptons qu’ils voudronts bien seconder notre mouvement et unir leurs efforts à ceux des savants, des artistes dont le secours nous est déjà assuré. Nous ne pourrons tout dire à la fois, bien entendu; mais en voyant nos livraisons et nos volumes se succéder, nos lecteurs comprendront que, toute vaste qu’elle est, aucun point essentiel de notre tâche n’aura été par nous négligé. – Le champ est immense, el faut bien nous résigner à ne le labourer que sillon à sillon. Nous avions à choisis: ou faire une publication à l’usage des seuls bébés, ou parler et pour eux at pour les jeunes gens et jeunes files, et par suíte, que les parentes nous permettent de le dire, pour les jeunes pères et les jeunes mères aussi. – C’est le parti que nous avons pris, bien assurés que tout convient à l’enfance ele-même, de ce qui a les qualités mais non les défauts de l’âge mûr. Nous prions nos abonnés de se considérer tous comme nos coopérateurs. Quand donc il leur viendra une pensée qu’ils croient utile de nous communiquer, nous l’accueillerons avec reconnaissance. Donnant, donnant. En mettant notre bon vouloir à leur service, nous croyons pouvoir invoquer le leur. C’est une ceuvre de famille que nous abordons, c’est avec l’aide des familles seulement qu’elle peut réussir. P.-J. Hetzel 206 6.3 – Imagens 6.3.1 Érasistrate découvrant la cause de la maladie d’Antiochus ou Les Amours de Stratonice et d’Antiochus Jacques-Louis David - 1774 École nationale supérieure des beaux-arts, Paris 207 6.3.2 Mademoiselle Guimard en Terpsichore Jacques-Louis David - 1775 Coleção particular 208 6.3.3 Le Serment des Horaces Jacques-Louis David - 1785 Musée du Louvre, Paris 6.3.4 Combat de Mars contre Minerve Jacques-Louis David – 1771 Musée du Louvre, Paris 209 6.3.5 La Joconde ou Portrait de Mona Lisa Leonardo da Vinci – 1506 Musée du Louvre, Paris 6.3.6 La Cène Leonardo da Vinci – 1497 Refeitório do Convento Santa Maria delle Grazie, Milão 210 6.3.7 Léonard de Vinci peint Monna Lisa Aimée Brune Pagès – 1845 (Gravura de Charles Lemoine segundo o original) Bibliothèque Nationale, Paris 6.3.8 Romains de la décadence Thomas Couture - 1847 Musée d’Orsay, Paris 211 6.3.9 Appel des dernières victimes de la Terreur à la prison Saint Lazare à Paris Charles-Louis Müller – 1850 Musée National du Château de Versailles 6.3.10 Le supplice de Jane Grey Paul Delaroche – 1833 National Gallery, Londres 212 6.3.11 Cromwell et Charles I Paul Delaroche – 1831 Musée des beaux-arts de Nîmes 6.3.12 Dante et Virgile aux enfers ou La Barque du Dante Eugène Delacroix – 1822 Musée du Louvre, Paris 213 6.3.13 La justice de Trajan Eugène Delacroix - 1840 Musée des beaux-arts de Rouen 6.3.14 Le Martyre de Saint-Symphorien Dominique Ingres – 1834 Cathédrale Saint-Lazare, Autun – França 214 6.3.15 Homère déifié ou L’Apothéose d’Homère Dominique Ingres – 1827 Musée du Louvre 6.3.16 Les Demoiselles des bords de la Seine (été) Gustave Courbet – 1857 Musée des beaux-arts de la ville de Paris – Petit Palais, Paris 215 7 – BIBLIOGRAFIA 7.1 - De Jules Verne Peças e/ou livretos: La conspiration des poudres, 1846. Tragédia em versos, cinco atos. (Não encenada) Un drame sous Louis XV, 1846. Tragédia em versos, cinco atos. (Não encenada) Alexandre VI, 1846-47. Drama em versos, cinco atos. (Não encenada) Le quart d’heure de Rabelais, 1847. Comédia em versos, um ato. (Não encenada) Une promenade en mer, 1847. Vaudeville, um ato. (Não encenada) Don Galaor, 1847. Sinopse de comédia, um ato. (Não encenada) Les Pailles rompues, 1849. Comédia em versos, um ato. (Encenada doze vezes no Théâtre Historique em jun/1850). Le coq de bruyère, 1849. Sinopse. (Não encenada) Abd’allah, 1849. Vaudeville, dois atos. (Não encenada) On a souvent besoin qu’un plus petit que soi, 1849. Sinopse. (Não encenada) La mille et deuxième nuit, 1850. Peça em versos, um ato. (Não encenada) Quiridine et quidinerit, 1850. Comédia em versos, três atos. (Não encenada) La Guimard, 1850. Comédia, dois atos. (Não encenada) Les savants, 1851. Comédia, três atos. Texto perdido. Les fiancés Bretons, 1851. Texto perdido. 216 De Charybde en Scylla, 1851. Comédia, um ato. (Não encenada) Monna Lisa, 1851. Comédia em versos, um ato. (Não encenada. Publicada em L’Herne, 1974) Les châteaux en Californie, ou Pierre qui roule n’amasse pas mousse, 1851. Comédia, um ato. (Não encenada, porém publicada no magazine Musée des familles Jun/1852) La Tour de Montlhéry, 1852. Drama, cinco atos. (Não encenada) Le Colin-Maillard, 1852. Ópera-cômica, um ato. (Encenada quarenta e cinco vezes no Théâtre Lyrique em 1853. Publicada no Boletim da Sociedade Jules Verne - BSJV, nº120) Les Compagnons de la Marjolaine, 1852. Ópera-cômica, um ato. (Encenada vinte e quatro vezes no Théâtre lyrique em 1855) Un fils adoptif, 1853. Comédia. (Não encenada, porém publicada no BSJV, nº 143) Guerre aux tyrans, 1854. Comédia em versos, um ato. (Não encenada) Au bord de l’Adour, 1855. Comédia em versos, um ato. (Não encenada) Les heureux du jour, 1856-57. Comédia em versos, cinco atos. (Não encenada) Monsieur de Chimpanzé, 1857. Opereta, um ato. (Encenada diversas vezes no Théâtre des Bouffes-Parisiens em fev/1858. Publicada no BSJV nº57) Onze jours de siège, 1854-60. Comédia, três atos. (Única apresentação em 1 de junho de 1861 no Théâtre Vaudeville) L’auberge des Ardennes, 1859. Ópera-cômica, um ato. (Única apresentação em 1 de setembro de 1860 no Théâtre Lyrique) Un neveu d’Amérique ou Les deux Frontignac, 1860. Comédia, três atos. (Encenada por dois meses no Théâtre Cluny em 1873. Publicada por Hetzel junto com o romance Clovis Dardentor. Les sabines, 1867. Opereta-cômica, três atos (Não encenada, somente o primeiro ato existe) 217 *** VERNE, Jules. “Les Premiers navires de la marine mexicaine”. Musée des familles, T. 8 - juillet 1851, p. 304-312. ______. “Un Voyage en ballon”. Musée des familles, T. 8 - août 1851, p. 329-336. ______. “Les Châteaux en Californie, ou Pierre qui roule n’amasse pas mousse”. 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