gramática, literatura e ensino do português - SIMELP

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gramática, literatura e ensino do português - SIMELP
Língua portuguesa: ultrapassar fronteiras, juntar culturas
(Eds.) Mª João Marçalo & Mª Célia Lima-Hernandes, Elisa Esteves, Mª do Céu Fonseca, Olga Gonçalves, Ana
LuísaVilela, Ana Alexandra Silva © Copyright 2010 by Universidade de Évora
ISBN: 978-972-99292-4-3
SLG 32 – As interfaces da gramática.
GRAMÁTICA, LITERATURA E ENSINO DO PORTUGUÊS: UMA EXEMPLIFICAÇÃO EM TRÊS TEMPOS
Isabel Margarida DUARTE1
RESUMO:
Equacionaremos a relação Linguística / Literatura, problematizando,
posteriormente, o lugar da Gramática e da Literatura no ensino do Português. Tendo em
conta a interface gramática / literatura e o ensino da Língua Portuguesa, daremos
exemplos de três temas de gramática que são terreno privilegiado para o cruzamento de
perspectivas literárias e linguísticas: (1) o estudo do relato de discurso, nas suas versões
mais canónicas ou mais discretas e subtis; (2) a formação de palavras e, finalmente, (3)
a utilização literária de unidades fraseológicas fixas.
PALAVRAS-CHAVE:
interface gramática / literatura; discurso relatado; neologismos e
formação de palavras; unidades fraseológicas.
Introdução
Num primeiro momento, trata-se de equacionar a relação Linguística / Literatura
para, num segundo tempo, decorrente daquele, problematizar o lugar da Gramática e da
Literatura no ensino do Português. Por fim, dar-se-ão três exemplos concretos de itens
gramaticais cujo estudo beneficia se se atentar no modo como alguns textos literários os
exploram criativamente.
1
Universidade do Porto, Centro de Linguística da Universidade do Porto. Faculdade de
Letras. Departamento de Estudos Portugueses e Estudos Românicos, Secção de
Linguística. Via Panorâmica, s/n, 4150-564, Porto, Portugal [email protected]
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Relações Linguística / Literatura
Ao considerar o literário como a exploração máxima das potencialidades
existentes na língua, isto é, ao afirmar que as marcas de literariedade não são um desvio
à norma mas antes um explorar de forma exímia possibilidades que o sistema da língua
prevê, Coseriu (1977) abriu as portas a uma fecunda problematização das ligações entre
estudo da Literatura e estudo da gramática da língua. A gramática e o estudo da
Literatura iam de par no paradigma filológico que, como exemplarmente mostrou
Aguiar e Silva (2008) num interessante texto recente, foi posto em causa por Saussure,
abrindo caminho para o radical afastamento entre estudos linguísticos e estudos
literários, isto apesar de o melhor conhecimento recente das ideias de Saussure revelar
que ele “não contestava a relevância da linguagem literária para a linguística.” (AGUIAR
E
SILVA, 2008, p. 24). Esse afastamento extremado das duas áreas de investigação e
docência deveria ser ultrapassado, tendo Aguiar e Silva identificado quatro zonas em
que a “cooperação interdisciplinar entre o campo dos estudos literários e o campo dos
estudos linguísticos” é necessária e fecunda (AGUIAR E SILVA, 2008, p. 30), a saber: os
estudos de estilística, a linguística de texto, a pragmática do texto literário e a relação
entre poética e linguística cognitiva. Aliás, já num texto anterior, Aguiar e Silva (2005)
preconizava o regresso da Filologia à Universidade, não aquela romântica oitocentista,
que Saussurre enterrou, mas uma nova Filologia “que congraça a gramática e a retórica,
a linguística e a literatura, a textualidade e a sua inscrição na história” (AGUIAR E SILVA,
2005, p. 92).
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A defesa da inseparabilidade entre as duas disciplinas hoje tão distanciadas no
campo universitário vem sendo feita, do lado da linguística, por Fernanda Irene
Fonseca, tendo-se constituído como um dos aspectos mais marcantes da sua
investigação e do seu magistério. F. I. Fonseca utiliza, para problematizar e defender
esta interligação, uma imagem sugestiva:
[...] a especificidade relativa destas duas disciplinas [Linguística e Literatura]
não pode continuar a basear-se fundamentalmente numa espécie de «tratado de
Tordesilhas» que consigna qual a «parte» do domínio comum que uma e outra devem
investigar; ambas podem – devem – ocupar-se da totalidade do domínio – a linguagem
– e esse facto, longe de ser atentatório da sua especificidade relativa, é dela a melhor
garantia. (FONSECA, F.I., 1994, p. 39).
Linguística / Literatura e ensino da Língua Portuguesa
O entendimento do ensino da Língua Portuguesa como território privilegiado ou
dos estudos linguísticos, com enfoque principal na gramática, ou dos estudos literários,
com a consideração da leitura de um mais ou menos extenso cânone de obras literárias
como centro das preocupações didácticas desloca, a nosso ver, a necessária discussão
sobre a problematização dos objectivos do ensino do Português, para uma zona de
polémica jornalística2, privilegiada nos últimos anos em Portugal, onde ela não deveria
2
Carlos Reis (2008: 239) partilha da mesma visão sobre a necessidade de uma nova
interdisicplinaridade, quando escreve: “Questão agudamente debatida nos últimos
tempos, não raro com mais paixão do que serenidade, é a das relações entre ensino da
literatura e ensino da língua ou, mais propriamente, a questão do papel dos textos
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situar-se. Contrariamente ao que as posições mais extremistas defenderam nessas
polémicas3, para ensinar bem Português, o docente terá de possuir uma formação segura
em ambas as áreas científicas, Linguística e Literatura, como tão acertadamente propôs
Fernanda Irene Fonseca (2002) e deverá ser capaz de articular os saberes teóricos
vindos das duas zonas disciplinares, de modo a desenvolver nos alunos as competências
quer literária quer linguística, indissociáveis, porque só se gosta da língua pela leitura
dos bons textos e estes só podem ser devidamente amados por quem compreenda bem a
língua, isto é, por quem seja capaz de fruir esteticamente a exploração criativa das
virtualidades que ela contém. É pois fulcral conhecer as regras do sistema e saber
descrevê-lo mas também conseguir apreciar a estranheza provocada pela utilização
inesperada e inovadora dessas regras.
Retomando uma expressiva formulação de NEVES (2006, p. 17), diria que o
falante usufrui de “liberdade organizacional [...] dentro das restrições construcionais
(porque o falante processa estruturas regulares, mas é ele que faz as escolhas que levam
a resultados de sentido e a efeitos pragmáticos).” Qualquer falante necessita,
indiscutivelmente, de dominar o português padrão, de conhecer com rigor as “restrições
construcionais”, as regras, a regularidade das estruturas e daí a urgência do estudo
literários no ensino e na aprendizagem da língua. Um especialista de reconhecida
competência e prestígio (Vítor Manuel Aguiar e Silva) pôde observar, com argumentos
convincentes, que ciências da linguagem e ciências da literatura são duas partes de um
todo e não domínios alheios entre si, muito adversos.”
3
As alterações dos Programas de Português do Ensino Secundário quanto ao cânone de
leituras obrigatórias, o lugar de Os Lusíadas nos Ensinos Básico e Secundário, a
adopção de uma nova Terminologia Linguística, para dar apenas os exemplos mais
marcantes, constituiram-se em momentos de profunda conflitualidade não só no campo
universitário e intelectual, mas também no espaço público global disponibilizado pelos
media. Relembre-se o impacto das polémicas quer em jornais de referência como o
semanário Expresso, quer em programas de rádio de antena aberta, como os Foruns da
TSF, quer em blogs ou em plataformas disponibilizadas pelo Ministério da Educação,
como a Gramaticª.pt.
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aturado da gramática na escola. Mas o falante, todo o falante faz escolhas de que
resultam consequências para o sentido. No caso do discurso literário, essas opções são,
geralmente, inusitadas e produtivas e os efeitos imprevisíveis e eficazes. Nele, a língua
torna-se mais opaca e dá-se a ver com mais nitidez.
Não há pois ensino da língua que possa alhear-se quer do treino gramatical (em
sentido amplo, e não apenas naquele restrito de morfossintaxe), quer do convívio com
os chamados “bons autores”. O que deve ensinar-se é a língua e a sua aprendizagem não
pode ser desligada nem das regras que regem o seu funcionamento, nem dos textos em
que mais habilmente é usada (cf. Duarte, 2008).
Três exemplos concretos
Quando falamos em gramática, estamos a adoptar uma concepção alargada
como a preconizada por Neves (2006), que não se limite à observação do
funcionamento dos itens da língua até à unidade frase, mas tenha também em conta o
discurso e o texto, procurando perceber e analisar os usos efectivos da língua e não
apenas captar as regularidades do sistema, assepticamente consideradas.
No que respeita à interface gramática / literatura e à sua articulação com o
ensino da Língua Portuguesa, daremos exemplos de três itens de gramática que são
terreno fértil para o cruzamento de perspectivas literárias e linguísticas: (1) o estudo do
relato de discurso, nas suas versões mais canónicas ou mais discretas e subtis; (2) a
neologia e formação de palavras e, finalmente, (3) as unidades fraseológicas fixas.
1. O estudo do relato de discurso não pode ficar confinado ao explanar das
regras cientificamente discutíveis e de eficácia pedagógica duvidosa de passagem do
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discurso directo para o indirecto, como se aquele fosse o discurso original e fiel que,
mediante a aplicação mecânica de certas leis, permitisse obter, inequivocamente, o
equivalente em discurso indirecto (cf. Duarte, 2003). Sabemos hoje que nenhum desses
discursos é anterior ao outro, bem como nenhum deles é “fiel”: são apenas os dois
modos mais canónicos e tradicionais de representar um discurso num outro discurso. Há
muitas outras formas de relato, mais difusas, mais híbridas, procurando, por vezes,
atingir um maior grau de verosimilhança quando se trata de “imitar” ou “representar” a
vivacidade das palavras de um locutor (real ou fictício, pouco importa). Se a variedade
das formas de relatar discurso e o que nessa operação se joga devem ser objecto de
análise em todo o tipo de textos (incluindo, obviamente, os orais), o discurso literário
permite captá-las em vários matizes, sobretudo nas obras narrativas mais recentes, onde
a reutilização criativa de formas de relatar discurso se apurou, dando lugar a um
vozeamento colectivo e cruzado por vezes de difícil discriminação e compreensão para
o leitor. O que há de mais desafiador a nível de reprodução do discurso das
personagens, do que um romance de Lobo Antunes? Veja-se, por exemplo, a seguinte
sequência de Ontem não te vi em Babilónia4:
[...] A minha avó
– Não dás pela azinheira?
e eu
– A azinheira?
sem destrinçar qual das duas falava, um tronco tão antigo, a pele da casca, os ossos, era
a minha avó quem
- Não dás pela azinheira?
4
Antunes, A. Lobo (2006). Ontem não te vi em Babilónia. Lisboa: Dom Quixote, pp.
50-51
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ou era a azinheira, era eu, o meu tio
(ou o meu avô?)
a queimar o feno acolá, chamo-me Alice meu Deus, não permitais que as labaredas do
Inferno me cerquem e eu arda, não me escolhais entre os justos
- Alice
Quem fala aqui? Avó e neta? O avô, a azinheira, o tio? Quem de si próprio diz
“eu”? A primeira ocorrência do deíctico terá já como referente Alice, o locutor que,
quase no final, se dirige a Deus? Como até o verbo dicendi se suprime (“era a minha
avó quem”), podemos garantir que as personagens realmente falam? Não será
necessário um exemplo tão extremo de radical polifonia para nos apercebermos da
complexidade dos modos de relatar discurso na ficção contemporânea. Basta-nos
seleccionar ocorrências de relato de discurso em obras do cânone literário dos
Programas do Ensino Secundário português, como as de Eça de Queirós ou de José
Saramago.
Veja-se, num exemplo de Os Maias, o entrelaçar de formas de relato de discurso
directo e indirecto livre e um outro de Memorial do Convento5, onde nem as convenções
gráficas de marcação do discurso relatado são acatadas, como sabemos:
Vilaça murmurou com todo o sangue na face:
– Homem, o amigo mete-me numa....!
Não. Ega metia-o apenas naquilo em que o Vilaça, como procurador, logicamente e
profissionalmente devia estar.
O outro protestou, tão perturbado que gaguejava. Que diabo! Não era esquivar-se
aos seus deveres! Mas é que ele não sabia nada! Que podia dizer ao Sr. Carlos da
5
Saramago, José (1982). Memorial do Convento. Lisboa: Editorial Caminho, pp. 128129.
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Maia? «O amigo Ega veio-me contar isto, que lhe contou um tal Guimarães ontem à
noite no Loreto...» Não tinha a dizer mais...
– Pois diga isso. (cap. XVII)
Que foi que viste na hóstia, afinal não o iludira a ele, como seria possível se dormem
juntos e todas as noites se procuram e encontram, quer dizer, não serão todas, é certo
que há seis anos que vivem como marido e mulher, Vi uma nuvem fechada, respondeu
ela. [...] Não penses mais no que viste, Penso, como não hei-de pensar, se o que está
dentro da hóstia é o que está dentro do homem, que é a religião, afinal, falta-nos aqui o
padre Bartolomeu Lourenço, talvez ele soubesse explicar-nos este mistério, Talvez não
soubesse, talvez nem tudo possa ser explicado, quem sabe, e, mal foram estas palavras
ditas, pôs-se a chuva a cair com mais força [...]
No primeiro excerto, à réplica em discurso directo “relatando” palavras de
Vilaça, responde uma em discurso indirecto livre com a intervenção de Ega. Segue-se
nova resposta em discurso indirecto livre, no interior da qual, entre aspas, há palavras
em discurso directo que Vilaça imagina, com relutância, poder ter de vir a dizer a Carlos
(reportando-se a dois relatos anteriores encaixados: o de Guimarães a Ega e o deste a
Vilaça), assim se provando que o discurso directo não relata, de forma exacta, palavras
já ditas, porque estas de Vilaça são apenas uma hipótese, de concretização, aliás,
altamente improvável.
Na segunda ocorrência, as palavras em discurso directo estão misturadas, sem
qualquer demarcação gráfica, com os comentários do narrador, e as falas alternam sem
que se identifiquem os respectivos locutores e sem que se balize, com segurança, o final
de cada uma.
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O paralelismo das réplicas entre os interlocutores cujas palavras eram
ficcionadas em discurso directo num romance do século XIX como os de Júlio Dinis,
que serve ainda de exemplo para as composições dos alunos portugueses sempre que
têm de integrar nelas “diálogos”, não é nenhum modelo que espelhe a realidade das
trocas reais orais entre falantes, mas uma convenção, uma ficcionalização depurada,
simplificada e estereotipada, à maneira das conversas teatrais, procurando imitar, de
forma aliás pouco verosímil, intervenções reais. Veja-se um exemplo breve de As
pupilas do senhor reitor6:
– É verdade, ó Daniel, então você tem casamento contratado, e não dá parte à gente?
– Eu?!... Casamento?... exclamou Daniel, deveras admirado, e sentando-se no leito.
– Casamento, sim. Ainda agora mo asseguraram.
– E quem é a noiva que me destinam?
– Uma vizinha sua. É aqui a filha do João da Esquina.
–Ah! Isso sim – disse Daniel sorrindo-se e deitando-se outra vez.
Nos romances dos nossos dias, procura mimetizar-se a complexidade da
comunicação oral real através de diversos mecanismos de oralização do discurso, entre
eles a miscisgenação das formas tradicionais e das mais inovadoras de relatar palavras
de outros locutores.
2. O trabalho escolar na área do léxico é essencial para que os alunos passem a
ser capazes de deduzir significados de palavras desconhecidas a partir do valor dos
elementos que as constituem, efectuando antecipações sobre o significado, de modo a
acederem aos sentidos dos textos que lêem ou ouvem. A pobreza lexical condiciona a
6
Dinis, J. (2008) [1867]. As pupilas do senhor reitor. Matosinhos: Quidnovi, pp. 190191.
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produção (quer escrita quer oral) mas também, obviamente, a compreensão do que os
adolescentes ouvem ou lêem e é obrigação da escola alargar e aprofundar as destrezas
lexicais dos alunos de modo a que possam ultrapassar o “círculo de 500 palavras” onde
estão encerradas as suas limitadas possibilidades comunicativas. Se o aumento do
acervo lexical se consegue sobretudo fazendo dos alunos leitores, não dispensa, antes
exige um trabalho intencional e insistente nesta área concreta da gramática.
Nos textos literários, abundam exemplos de neologismos cujo significado
compreendemos porque a sua criação respeita as regras gerais da formação de palavras
em português e os elementos que os constituem têm um sentido estabilizado.
Obviamente descobriremos outros neologismos, em grande quantidade, variedade e
dando mostras de uma criatividade estimulante, no discurso jornalístico e no discurso da
publicidade. Veremos a produtividade lexicológica da língua em textos literários, e para
começarmos justamente por Eça, reparemos no célebre “gouvarinhar-se”, formado a
partir do nome dos condes de Gouvarinho. “Gouvarinhar” obtém-se colocando, à direita
do nome próprio, um afixo (–ar), sufixo aliás muito produtivo em português, que altera
a categoria morfológica do lexema: temos agora um verbo e ao procedimento que
interveio nesta operação chamamos verbalização denominal. Tal verbo, nas palavras de
Ega endereçadas a Carlos, significa ir a casa dos Gouvarinhos para um convívio leve e
colorido, intelectualmente pouco exigente.
Mas Mia Couto é o autor contemporâneo mais fértil em neologias e o mais
estudado (Carreira (2001), Figueiredo (2002) e Valente (2007)), fornecendo, às mãos
cheias, ocorrências expressivas de palavras constituídas por diferentes processos, a cujo
significado o leitor acede se conhecer algumas regras básicas da morfossintaxe do
português e o valor dos afixos derivacionais usados. Do conto “O Embondeiro que
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sonhava pássaros”7, seleccionámos alguns exemplos de verbos que têm por base
radicais nominais (verbalização denominal): “varandeando” (= passeando como se fosse
na varanda, de modo demorado), “harmonicar” (= tocar harmónica, talvez de forma
suave e repetida, o que a terminação -icar parece sugerir, imitando um sufixo de aspecto
iterativo) “madeirar-se” (=transformar-se em madeira) ou “envolucrar” (= meter-se num
envólucro, deixar-se “envolver”)8. Temos também verbos que se formaram a partir de
adjectivos (verbalização adjectival), como “repletar-se”, ou nomes que vêm igualmente
de adjectivos a que se acrescenta um sufixo, como “redondura” (nominalização
deadjectival). Há, dentro ainda da consideração das várias vertentes da neologia neste
conto, formas de negação imprevistas, resultantes do uso de um prefixo de negação
quando seria de esperar um outro: “desautenticar” é estranho, uma vez que o antónimo
de “autêntico” é “inautêntico” e não *desautêntico). Formar um quase-neologismo
juntando um afixo inabitual é um processo estilístico muito produtivo neste conto:
“vendedeiro” em vez de “vendedor” é sugestivo, porque é como se o masculino fosse
formado a partir da forma feminina “vendedeira”. Em vez de termos o feminino
“sonhadora”, podemos ler, na p. 64, que Tiago era uma “criança sonhadeira”. Mais
surpreendente ainda é o lexema “sobremisso” (e não “submisso”), caracterizando o
vendedor, que “assim [...] adiantava o mundo de outras compreensões” (p. 66). Mia
Couto poderia ter usado o adjectivo “insubmisso”, mas ao seleccionar o prefixo “sobre”,
sugere que o passarinheiro é superior aos colonos em dignidade e capacidade de sonhar.
7
in Couto, M. (1990). Todo o homem é uma raça. Lisboa: Editorial Caminho, pp. 5768.
8
Outros exemplos de verbalização denominal são: intercambiar, familiar-se,
continenciar-se.
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Vejamos ainda mais quatro ocorrências de neologismos, embora não valha a
pena acumular exemplos para provar a riqueza da criatividade lexical de Mia Couto.
“Sonolentidão”, “esvoavam”, “chilreino” e “indignatário” são compostos, palavras-mala
em que se condensam ou amalgamam dois lexemas9: sono + lentidão (os lexemas
apenas se somam sem perda de qualquer sílaba, nem dos acentos das palavras,
sugerindo a nova palavra a lentidão que decorre do estado de sonolência); chilreio +
reino, em que as palavras se fundem pela sílaba –rei, para remeter, hiperbolicamente,
para um reino de chilreios; “esvoavam”, misto de “esvoaçar” e “voar”, tendo em
comum o segmento –voa e a ideia de voar de forma leve, mais alto do que o significado
de “esvoaçar” indica, mas de modo mais leve do que um voo normal. Um
“indignatário” é um dignatário realmente indignado e que, dobrado pela força do
inexplicável que se abate sobre o seu até então inviolável armário, deixa de ser um
dignatário para ficar reduzido ao seu contrário, um “indignatário”. Assim, indignatário,
além de ser um dignatário indignado, como dissemos, é também um dignatário que
perdeu a dignidade e de dignatário já pouco conserva.
3. Quanto à utilização literária de unidades fraseológicas mais ou menos fixas,
que podemos incluir no vasto conjunto de “phénomènes de reprise et de circulation
discursifs” (KRIEG-PLANQUE, 2009, p. 7), tais como provérbios, expressões idiomáticas,
colocações e outras expressões cujo uso torna o discurso literário mais próximo do
“falar desataviado de todos os dias”, jogando com a afinal relativa fixidez de certas
9
Darei ainda outros exemplos: “arrombista” (nominalização deverbal, pois é do verbo
“arrombar” que se forma o nome), em que existe “arrombar” + “bombista”,
“barulhosos”, característica atribuída aos colonos que, além de barulhentos, são
“conflituosos” e “ademorou”, que significa “demorou”, dentro do tronco (p. 68), ou
seja, é uma mistura de “adentrou” + “demorou”; “encantante”, em vez de “encantador”,
relaciona o encanto provocado pelo canto dos pássaros com a sua natureza canora.
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expressões linguísticas, descontruindo-as e reconstruindo-as, sublinhe-se que tais
unidades fazem parte do elenco do léxico dos falantes, do mesmo modo que nele estão
armazenadas outras unidades menores, as palavras. A competência paremiológica faz
parte de uma mais ampla e englobante competência lexical. Mais uma vez, o que o
discurso literário faz (como aliás, o discurso jornalístico e o publicitário, porque
também neles tem particular relevância a função poética da linguagem, para retomar a
designação clássica de Jakobson), é jogar com a constituição de algumas dessas
unidades fraseológicas, alterando uma parte da sua forma, de modo a obter novos
significados que são desafiadores, porque implicam que se conheça o significado da
unidade primitiva armazenada no repositório lexical do falante, que se compreenda qual
foi a modificação formal introduzida e que se deduza, de todo este jogo, qual o novo
significado da unidade alterada. Segundo Helena Sereno (2008), cuja interessante tese
de doutoramento se debruçou sobre o uso do provérbio na obra de José Saramago, os
provérbios modificados são característicos da utilização que o escritor deles faz nas suas
narrativas.
“Em Abril, falas mil”10 – uma fórmula que se costuma considerar fixa altera-se
pela substituição de um lexema (“águas”) por outro (“falas”) com evidentes
semelhanças formais, mas a troca obriga a uma leitura metafórica da parémia
transformada. O provérbio modificado adapta-se, como Helena Sereno faz notar (cf.
2008: 283), ao contexto narrativo concreto em que surge em Levantado do Chão.
Estamos em Abril de 74, na contagem decrescente para a revolução dos cravos e por
todo o lado se conspira e murmura.
10
Saramago, J. (1980). Levantado do Chão. Lisboa: Editorial Caminho, p. 330.
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Quanto a “vão-se os dedos e fiquem-se os anéis”, Saramago procede a uma
espécie de inversão quiasmática dos nomes presentes no provérbio “Vão-se os anéis e
fiquem-se os dedos”. Se o sentido deste provérbio é que mais vale perder o que é
secundário e pouco importante para salvar o essencial, a fórmula alterada traduz o
egoismo da classe dominante terratenente que não se importa de sacrificar os
trabalhadores (aqui metaforicamente referidos pelo grupo nominal “os dedos”), desde
que conserve “os anéis”, a saber, metonimicamente, a riqueza material, mais importante
do que a vida humana dos servidores.
Quando em Memorial do Convento, a propósito das insistentes visitas nocturnas
de D. João V à rainha que não engravidara ainda, se diz ironicamente “O cântaro está à
espera da fonte” (p.13), retoma-se, adaptando-o, o provérbio “tantas vezes vai o cântaro
à fonte que um dia lá deixa a asa”, isto é: a insistência teimosa produz habitualmente
bons efeitos e é isso que se espera da do rei. Metaforicamente, a rainha é o “cântaro”,
pois ela será o recipiente onde o rei depositará a água da sua “fonte”.
Conclusão:
Reconhecer vozes que se cruzam numa narrativa, saber depreender o significado
de neologismos observando como são formados e que o léxico é composto também por
unidades fraseológicas complexas, analisar e explicar os efeitos de sentido que as
modificações dessas e doutras unidades lexicais provocam tem que ver com a
gramática, mas também com a Literatura.
Com a gramática, porque para tirar partido desses reconhecimentos é preciso
possuir competências linguísticas seguras que o sujeito incorpora e aprofunda, através
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da reflexão e do treino explícito de conceitos e regras gramaticais, reflexão e treino que
devem ser levados a cabo em sessões “oficinais” de gramática, como tem defendido
Inês Duarte (1992).
Com a literatura, porque ao jogar literariamente com as potencialidades previstas
nas regularidades sistemáticas da língua, os textos literários desvendam, de forma por
vezes luminosa, as regras que o sujeito usa e conhece, dando-as a ver, numa operação
que se traduz, para quem lê, simultaneamente em prazer pelo reconhecimento das
estruturas e regras dominadas, espanto perante o efeito imprevisto da utilização
inovadora e criativa dessas estruturas e regras e júbilo pela descoberta e partilha dos
novos sentidos propostos pelos textos.
Não pode aceitar-se, portanto, o empobrecimento que decorreria, para o ensino
do Português, da adopção de perspectivas reducionistas que dele propõem afastar ou o
ensino explícito da gramática ou o convívio íntimo com o texto literário. Como REIS
(2008, p. 239) escreveu nas recomendações finais da Conferência Internacional sobre o
Ensino do Português,
Estudos recentes têm acentuado a importância da reintrodução da gramática na
aprendizagem da língua; quando está em causa o trabalho com textos literários, a
singularidade destes e a sua tendência para a subversão da língua fomentam, em regime
de diálogo entre práticas textuais distintas, a reflexão sobre a normatividade do sistema
linguístico e das suas componentes gramaticais, sem pôr em causa, como é óbvio, a
especificidade estética dos ditos textos literários.
Referências bibliográficas:
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