RECURSOS ESPECIAIS REPETITIVOS: REFLEXOS DAS NOVAS
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RECURSOS ESPECIAIS REPETITIVOS: REFLEXOS DAS NOVAS
RECURSOS ESPECIAIS REPETITIVOS: REFLEXOS DAS NOVAS REGRAS (LEI 11.672/2008 E RESOLUÇÃO 8 DO STJ) NOS PROCESSOS COLETIVOS Luiz Rodrigues Wambier Rita de Cássia Corrêa de Vasconcelos Resumo: O estudo versa sobre a questão dos recursos especiais repetitivos, tratada no art. 543-C do CPC, introduzido pela Lei 11.672, de 08.05.2008. Mais precisamente, sobre a extensão e o alcance dessas novas regras nos processos que envolvem os direitos transindividuais. No texto se apresenta a nova disciplina legal e se analisa, também à luz da Resolução 8 do STJ (que estabelece os procedimentos para o processamento e julgamento dos recursos especiais repetitivos), em que medida ocorre sua interferência no processamento dos recursos especiais interpostos em face de acórdãos proferidos em julgamentos de ações coletivas. Definem-se os direitos que se podem veicular em ações coletivas, os principais problemas que cercam as ações dessa natureza (legitimidade, competência, ocorrência de litispendência ou conexão, e extensão territorial dos efeitos de suas decisões) e analisa-se, em especial, a escolha dos recursos especiais representativos da controvérsia. Palavras-chave: Recursos especiais repetitivos - Art. 543-C do CPC Regulamentação - Resolução 8 do STJ - Escolha - Processos coletivos. Abstract: The study is concerned with the repetitive special appeals, according to Art. 543-C of the Civil Procedural Code (CPC), introduced by Act 11.672 as of 8th of May, 2008. More precisely, it is about the extension and scope of these new rules in proceedings where collective rights are discussed. The texts present a new legal discipline and, also under Resolution 8 of the STJ (Supreme Court of Justice) (that determines the steps for the preparation and trial of the repetitive special appeals), they analyze the extension of its interference in the preparation of special appeals brought by judgments in collective actions. It defines the rights that can be presented in these actions, the main problems concerning the reasons of the actions (legitimacy, competence, event of lis pendens and territorial connection or extension of the decisions’ effects) and specially analyzes the special appeals’ choice representing the legal action involved. Keywords: Repetitive special appeals - Art. 543-C of the Civil Procedural Code (CPC) - Regulation - Resolution 8 of the STJ - Choice - Collective actions. 1 Sumário: 1 - Introdução; 2 - A disciplina do novo art. 543-C do CPC; 3 - A regulamentação, pelo STJ, do procedimento para o processamento e julgamento dos recursos especiais repetitivos; 4 - A escolha dos recursos representativos da controvérsia no âmbito dos processos coletivos; 5 - A aplicabilidade da disciplina instituída pela Lei 11.672/2008 às ações coletivas; 6 - Conclusão; 7 - Bibliografia. 1 - Introdução Muito se tem discutido, em especial em eventos científicos, acerca dos reflexos, nos processos coletivos, das alterações legislativas no âmbito do direito processual civil, desde que teve início, nos idos de 1992, a longa e desgastante movimentação legislativa voltada à modernização do sistema e prestação da tutela jurisdicional do Estado. São várias e intrincadas as dúvidas geradas pelas novas disposições legais. Neste ensaio, nossa proposta é a de analisar a aplicabilidade da reforma do CPC, operada em maio de 2008, às ações coletivas. Interessa-nos, no presente texto, analisar a questão dos recursos especiais repetitivos, tratada no art. 543-C do CPC, introduzido pela Lei 11.672, de 08.05.20081. Mais precisamente, interessa-nos saber a extensão e o alcance dessas novas regras e da respectiva regulamentação nos processos que envolvem os chamados direitos transindividuais. A Lei 11.672, de 08.05.2008, entrou em vigor em 08.08.2008 (90 dias após sua publicação), e o procedimento nela previsto se aplica aos recursos já interpostos por ocasião de sua entrada em vigor (art. 2º). O art. 543-C disciplina, em nove parágrafos, o processamento dos recursos de competência do STJ (ordinários e especiais) fundamentados em idênticas questões de direito. São regras semelhantes às do art. 543-B e seus parágrafos, introduzidos pela Lei 11.418, de 19.12.2006, em que o legislador instituiu o procedimento para a análise da repercussão geral, quando de multiplicidade de recursos extraordinários com fundamento em idêntica controvérsia se tratar. Mas, repita-se, o art. 543-C disciplina tão somente o “processamento” dos recursos dirigidos ao STJ, enquanto as regras do art. 543-B dizem respeito 1 A Lei 11.672, de 08.05.2008, entrou em vigor em 08.08.2008 (90 dias após sua publicação), e o procedimento nela previsto se aplica aos recursos já interpostos por ocasião de sua entrada em vigor (art. 2º). 2 à “admissibilidade” dos recursos extraordinários, considerando-se repercussão geral da questão constitucional através deles veiculada. a Neste texto, nosso propósito é o de apresentar a nova disciplina relativa ao recurso especial, instituída pela Lei 11.672/2008, para analisar, na sequência, em que medida ocorre sua interferência no processamento dos recursos especiais interpostos em face de acórdãos proferidos em julgamentos de ações coletivas. 2 - A Disciplina do Novo Art. 543-C do CPC O § 1º do art. 543-C dispõe que caberá ao presidente do tribunal de origem admitir um ou mais recursos representativos da controvérsia, os quais serão encaminhados ao STJ, ficando suspensos os demais recursos até o pronunciamento definitivo desse Tribunal Superior. Estabeleceu-se, portanto, que, se houver vários recursos que tratem da mesma questão de direito (independentemente de as decisões serem num mesmo sentido ou antagônicas), devem ser selecionados um ou mais desses recursos que, por melhor retratarem a questão debatida, deverão ser julgados em primeiro lugar pelo STJ, para que a respectiva decisão possa ser aplicada aos recursos cujo processamento esteja suspenso por força da aplicação da lei. Certamente, a intenção do legislador foi tornar mais rápido o trâmite de recursos repetitivos dirigidos ao STJ, de modo que se possa diminuir consideravelmente o volume de recursos encaminhados àquele Tribunal Superior. Ocorre que poderá haver dificuldade na identificação de questões substancialmente idênticas e, a despeito de a eventual suspensão indevida de um recurso ser passível de causar dano à parte, não foi previsto nenhum mecanismo processual de impugnação às decisões dos presidentes dos tribunais de origem. Tampouco no âmbito do STJ, na Resolução 8, de 07.08.2008 (que estabelece os procedimentos relativos ao processamento e julgamento de recursos especiais repetitivos), foi previsto mecanismo processual para veicular o inconformismo da parte com a suspensão indevida de seu recurso. A Resolução 8, de 07.08.2008, entrou em vigor em 08.08.2008, revogando a Resolução 7, de 14.07.2008, que também estabelecia procedimentos relativos ao processamento e julgamento de recursos especiais repetitivos, e entraria em vigor também em 08.08.2008. 3 É verdade que se a Lei 11.672/2008 silenciou a respeito também não dispôs que tais decisões seriam irrecorríveis (aliás, nem poderia fazê-lo). Estáse, assim, diante de situação análoga à das decisões que aplicam o regime de retenção aos recursos especial e extraordinário, previsto no art. 542, § 3º, do CPC. E, portanto, seria razoável a adoção das mesmas soluções para obter o processamento imediato desses recursos, que oscilam na doutrina e na jurisprudência entre uma simples petição, ação cautelar e agravo de instrumento ao Tribunal Superior (considerando-se que aplicar indevidamente o regime de retenção seria tão lesivo quanto negar seguimento aos recursos). Não é sem propósito mencionar que também em relação à situação da suspensão indevida dos recursos dirigidos ao STJ poderia incidir, quanto aos mecanismos de impugnação às decisões dos presidentes dos tribunais de origem, o princípio da fungibilidade, aplicável nos casos de retenção indevida dos recursos especial e extraordinário, como já sustentou um dos autores deste texto. “(...) devem ser considerados pelos tribunais, como adequados para promover o imediato processamento dos recursos especial e extraordinário interpostos contra acórdão proferido em agravo de instrumento, tanto a ação cautelar (recomendando-se, ante a urgência da medida pleiteada, que se admita o processamento da ação tanto no juízo a quo quanto no órgão ad quem) quanto o recurso de agravo, uma simples petição ou mesmo o mandado de segurança, pois entre o cabimento desses meios vem oscilando, ao longo do tempo, o entendimento dos tribunais superiores”. Vasconcelos, Rita de Cássia Corrêa de. Princípio da fungibilidade – hipóteses de incidência no processo civil brasileiro contemporâneo. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2007, p.243. Nos termos do que prevê o § 2º do art. 543-C, se o presidente do tribunal de origem deixar de cumprir o previsto no § 1º do referido dispositivo legal, no STJ, o Ministro Relator poderá determinar que os recursos repetitivos fiquem suspensos, no 2º grau de jurisdição, ao constatar que já há jurisprudência dominante sobre a respectiva questão de direito, ou que tal questão já está afeta ao colegiado, ou seja, que já há, na Seção ou na Corte Especial, recurso especial selecionado para julgamento. O relator poderá, inclusive, solicitar informações aos tribunais locais, a respeito da controvérsia, que deverão ser prestadas no prazo de 15 dias (art. 543-C, § 3º). Em relação à seleção do recurso especial, no STJ, a Resolução 8, de 07.08.2008, no art. 2º, §§ 1º e 2º, assim dispõe: “Art. 2º. (...) § 1º. A critério do Relator, poderão ser submetidos ao julgamento da Seção ou da Corte Especial, na forma deste artigo, recursos especiais já distribuídos que forem representativos de questão jurídica objeto de recursos repetitivos. § 2.º A decisão do Relator será comunicada aos demais Ministros e ao Presidente dos 4 Tribunais de Justiça e dos Tribunais Regionais Federais, conforme o caso, para suspender os recursos que versem sobre a mesma controvérsia”. Ainda entre as atribuições do Ministro Relator, está a de admitir respeitados os termos do Regimento Interno do STJ - a manifestação de terceiros (pessoas, órgãos ou entidades) com interesse na controvérsia (art. 543-C, § 4º), bem como a de abrir vista ao Ministério Público, pelo prazo de 15 dias (art. 543-C, § 5º). O julgamento do recurso (ou dos recursos) selecionado (ou selecionados) terá preferência sobre os demais, no STJ, ressalvados os que envolvam réu preso e pedidos de habeas corpus (art. 543-C, § 6º). E, julgado o recurso escolhido, duas destinações poderão ser dadas aos recursos cujo trâmite ficou suspenso: negativa de seguimento na hipótese de o acórdão recorrido coincidir com a decisão do STJ (art. 543-C, § 7º, I); ou atribuição de novo exame, pelo tribunal local, se o acórdão recorrido divergir da decisão do STJ (art. 543-C, § 7º, II). Nesse último caso, se o acórdão divergente for mantido pelo tribunal local, far-se-á o exame de admissibilidade - igualmente suspenso no tribunal local - do recurso especial para, se positivo, remetê-lo ao STJ (art. 543-C, § 8º). A despeito do silêncio da lei quanto à recorribilidade das decisões tomadas com base no art. 543-C, § 7º, parece-nos que, na situação do inciso I, ou seja, negativa de seguimento ao recurso que estava suspenso, não poderá ser negada a via recursal, permitindo-se a interposição de agravo de instrumento ao STJ (CPC, art. 544). Até porque é possível que se esteja diante de hipótese em que não haja identidade entre a questão veiculada no recurso sobrestado e a que se julgou no recurso escolhido. Nesse sentido: Talamini, Eduardo. Julgamento de recursos no STJ “por amostragem” – Lei 11.672/2008. Migalhas, 1898, artigo publicado em 15.05.2008. Na situação do inciso II do § 7º do art. 543-C, verifica-se verdadeira hipótese de juízo de retratação, uma vez que se permite, ao tribunal local, rever sua posição diante da orientação consolidada no STJ. A Resolução 8, anteriormente referida, dispõe, em seu art. 5º, III, que depois de julgados os recursos especiais selecionados os demais recursos, fundados em idêntica controvérsia, se sobrestados na origem, “terão seguimento na forma prevista nos §§ 7º e 8º do art. 543-C do CPC”. Prevê de forma indireta, portanto, o juízo de retratação pelo tribunal local, mas não o regula expressamente. A Resolução 7, por aquela revogada, deixava clara a possibilidade de retratação, ao dispor que competia ao órgão julgador competente no tribunal de origem “reconsiderar a decisão para ajustá-la à orientação firmada no acórdão paradigma”, e afirmava ser “incabível a interposição de outro recurso especial contra o novo julgamento” (art. 10, II). 5 Percebe-se que, diante da retratação, o STJ, num primeiro momento com a Resolução 7 -, havia obstado a possibilidade de a parte recorrida interpor recurso especial em face da nova decisão. Talvez percebendo que essa não seria a melhor solução, ao editar a Resolução 8, que revoga a anterior, não repetiu esse óbice. Em verdade, nada dispôs a respeito. Em nosso sentir, não poderá ser negado à parte recorrida, em razão da inversão de sua situação processual, o direito de interpor novo recurso especial, em que se poderá alegar, inclusive, que a questão debatida não é idêntica à que se decidiu no recurso escolhido para julgamento. Nesse sentido, em artigo publicado antes da edição das Resoluções 7 e 8 do STJ: Talamini, Eduardo. Julgamento de recursos no STJ “por amostragem” – Lei 11.672/2008. Migalhas, 1898, publicado em 15.05.2008. 3 - A Regulamentação, Pelo STJ, do Procedimento Para o Processamento e Julgamento dos Recursos Especiais Repetitivos A Lei 11.672/2008 previu, no art. 2º, a regulamentação dos procedimentos nela previstos pelos tribunais de 2º grau e pelo próprio STJ. No âmbito do STJ, editou-se em primeiro lugar a Resolução 7, de 14.07.2008, que estabelecia procedimentos relativos ao processamento e julgamento de recursos especiais repetitivos, e entraria em vigor em 08.08.2008. Em 07.08.2008, com a mesma finalidade e revogando a Resolução anterior, editouse a Resolução 8, que entrou em vigor em 08.08.2008. Essas Resoluções procuraram regular o que seriam os recursos “representativos da controvérsia” (CPC, art. 543-C, § 1º), que mereceriam encaminhamento imediato ao STJ. Em seu art. 1º, § 1º, a Resolução 8 do STJ (repetindo a disposição da Resolução 7) assim estabelece: “Serão selecionados, pelo menos 1 (um) processo de cada Relator e, dentre esses, os que contiverem maior diversidade de fundamentos no acórdão e de argumentos no recurso especial” (grifamos). No § 2º do mesmo artigo, esclarece-se que se levará em consideração apenas a “questão central discutida”. A revogada Resolução 7 dispunha que deveria ser levada em conta apenas a “questão central de mérito”. Têm-se, assim, de forma objetiva, os critérios de escolha na Presidência dos tribunais locais. Era mesmo esperado que se dissesse que os recursos selecionados deveriam conter o maior número de fundamentos, para propiciar a mais plena compreensão da questão de direito neles versada. 6 Como dissemos linhas acima, devem ser selecionados os recursos que melhor retratarem a questão discutida, independentemente de as decisões recorridas serem num mesmo sentido. Evidentemente, havendo acórdãos em sentidos opostos, devem ser selecionados recursos representativos em cada um dos sentidos, pois a simples existência de decisões antagônicas no âmbito dos tribunais locais já traduz a diversidade de fundamentos a justificar a análise e julgamento pelo Tribunal Superior. Espera-se, portanto, que sejam encaminhados ao STJ os recursos que permitam, tanto quanto possível, o conhecimento completo da controvérsia estabelecida nas instâncias ordinárias. Não é sem propósito mencionar que a Resolução 7 do STJ diferentemente da Resolução 8, que a revogou - estendia a suspensão aos demais recursos e, também, aos processos em andamento no 1º grau de jurisdição. Em seu art. 1º, § 3º, a Resolução 7 previa que o presidente do tribunal, “em decisão irrecorrível” (art. 1º, § 1º, da Resolução 8), poderia estender a suspensão aos demais recursos, “julgados ou não, mesmo antes da distribuição”. E no § 4º do mesmo artigo, dispunha que, determinada tal suspensão, esta alcançaria os processos em andamento no 1º grau de jurisdição que apresentassem igual matéria controvertida, independentemente da fase processual em que se encontrassem. Ainda que no § 4º não se tenha feito menção expressa à irrecorribilidade da decisão, a referência ao parágrafo anterior levava a crer que se estaria, também aqui, diante de ato irrecorrível. A Resolução 8, em vigor, felizmente não reproduziu essas regras, que certamente gerariam muita polêmica, em especial no tocante à irrecorribilidade das decisões. É inequívoco que a suspensão dos demais recursos, alcançando aqueles que sequer foram distribuídos e, também, os processos que tramitam no 1º grau, poderia causar à parte lesão grave e de difícil reparação. Pense-se, por exemplo, em casos em que devam ser deferidas medidas de urgência, não se podendo aguardar o julgamento do recurso especial escolhido, ainda que isto se dê respeitando-se o princípio constitucional da duração razoável do processo (CF, art. 5º, LXXVIII). A tutela de urgência, inclusive a antecipação da tutela recursal, deve ser concedida imediatamente, sob pena de se violar outra garantia constitucional: a da inafastabilidade do controle da jurisdição (CF, art. 5º, XXXV). Em boa hora, então, o STJ alterou a regra, antes presente na Resolução 7 (e agora, felizmente, ausente da Resolução 8), que permitia que se ampliasse a suspensão ao ponto máximo de atingir os recursos ainda não distribuídos e aos processos em trâmite no 1º grau de jurisdição. De qualquer modo, mesmo que assim não fosse (isto é, mesmo que a Resolução 7 não tivesse sido revogada), na hipótese de se ampliar - indevidamente - a suspensão, não poderia o STJ, em sede de Resolução, obstar à via recursal. 7 Estar-se-ia, aqui, diante de outra situação em que, por não se prever mecanismo processual de impugnação, se poderia lançar mão do mandado de segurança, ainda que não seja fácil estabelecer o juízo competente para processá-lo e julgá-lo. Na mesma ordem de ideias, é oportuno registrar que, de certa forma complementando a disposição que suspendia os processos no 1º grau de jurisdição, a - revogada - Resolução 7 previa, em seu art. 12, que os processos suspensos seriam decididos “de acordo com a orientação firmada pelo STJ, incidindo, quando cabível, o disposto nos arts. 285-A e 518, § 1º, do CPC”. Nos termos dessa disposição, o STJ conferia verdadeiro “efeito vinculante” às decisões tomadas nos recursos especiais selecionados. A Resolução 8, em vigor, nada dispõe a respeito. Para nós, foi acertada a supressão dessa regra na nova regulamentação. A vinculação dos juízes de 1º grau é ilegítima, pois, a teor da regra constitucional, somente o STF pode editar súmulas vinculantes. Ainda que sem a força da súmula vinculante do STF, seria legítima a disposição revogada se o STJ, logo após o julgamento, editasse súmula da jurisprudência dominante nessa Corte. Somente assim seria justificável - embora não obrigatória - a aplicação, pelos juízes de 1º grau, das regras mencionadas, em especial a do art. 518, § 1º, que condiciona o não recebimento do recurso de apelação à circunstância de a sentença apelada estar em conformidade com súmula dos Tribunais Superiores. Há muito que discutir em torno desses temas, todos potencialmente polêmicos. Nosso papel, todavia, neste texto, é o de fomentar a reflexão e a discussão a respeito dos temas relacionados à questão dos recursos repetitivos, como maneira de contribuir para o aperfeiçoamento do sistema, tendo em vista sempre o interesse da sociedade (que se sobrepõe aos interesses dos operadores, advogados, magistrados, etc.). Parece-nos que, de todos os aspectos de que trata essa última alteração do CPC (última até maio de 2008, observe-se necessariamente, dada a incontrolável ânsia reformista que ronda a matéria processual civil), o mais significativo (e central) é o que diz respeito à escolha dos recursos representativos da controvérsia. Passemos, então, a refletir sobre essa escolha nos casos de recurso especial interposto contra acórdão proferido em ação coletiva para, na sequência, apontar qual deve ser, a nosso ver, o alcance das novas regras nestes processos. 8 4 - A Escolha dos Recursos Representativos da Controvérsia no Âmbito dos Processos Coletivos Em primeiro lugar, perguntamo-nos por que razão o legislador, ao regular o processamento dos recursos especiais repetitivos, não teria feito menção aos processos que envolvem os direitos transindividuais. Note-se que tampouco o STJ, ao regulamentar os novos dispositivos legais, mencionou possível reflexo das novas regras nas ações coletivas. Seria, talvez, porque não deva ser considerada a existência de “ações coletivas repetitivas”? Ou porque não se cogitou da provável existência de questões de direito discutidas ao mesmo tempo em ações coletivas e em múltiplas ações individuais? A questão envolve não apenas a conceituação dos direitos coletivos lato sensu, mas, também, a análise de institutos processuais no contexto dos processos coletivos, tais como a legitimação e a competência, a litispendência e a conexão, a coisa julgada e a extensão territorial dos efeitos das decisões neles proferidas. Então, pergunta-se: a) que direitos seriam veiculados nas ações coletivas?; b) gerariam esses direitos “idênticas questões de direito”? Os direitos coletivos lato sensu, como já discorreu um dos autores deste texto, situam-se num campo dos direitos que pertencem a todos, mas que não são públicos, no sentido tradicional desse vocábulo. São, isto sim, transindividuais ou metaindividuais, derivados da massificação da vida em sociedade e do surgimento de novas “modalidades” de conflitos, em relação aos quais o sistema processual centrado na iniciativa exclusiva do titular do direito subjetivo não tem como fornecer respostas eficazes. Wambier, Luiz Rodrigues. Sentença civil: liquidação e cumprimento. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2006, p. 293 e ss. Cf. Mancuso, Rodolfo de Camargo. Defesa do consumidor – reflexões acerca da eventual concomitância de ações coletivas e individuais. RT 676/38. Esses direitos, que se desdobram em direitos difusos, direitos coletivos stricto sensu e direitos individuais homogêneos, já se firmaram no nosso sistema jurídico, restando aos estudiosos encontrar soluções criativas para os diversos problemas daí decorrentes. Afirma-se, na doutrina, que os direitos difusos e coletivos são “essencialmente coletivos”; os direitos individuais homogêneos, por sua vez, são considerados “acidentalmente coletivos”. Cf. Moreira, José Carlos Barbosa. Ações coletivas na Constituição Federal de 1988. RePro 61/188. Teori Albino Zavascki, a propósito, afirma que em relação aos direitos difusos e coletivos ocorre “defesa de direitos coletivos”, enquanto em relação aos direitos individuais homogêneos ocorre “defesa 9 coletiva de direitos” (Defesa de direitos coletivos e defesa coletiva de direitos. Revista Forense 329/149). Os direitos difusos são aqueles em que os seus titulares não são determinados ou, pelo menos, não são determináveis, pois embora digam respeito a um grupo de pessoas, não é possível precisar-lhes claramente a respectiva titularidade. Esses direitos estão definidos no inciso I do parágrafo único do art. 81 da Lei 8.078/90 (Código de Defesa do Consumidor), aplicandose essa definição não apenas aos direitos difusos em matéria de consumo, mas, por força do que dispõe o art. 117 do CDC, aos demais direitos difusos, nas matérias de que trata a Lei da Ação Civil Pública. Segundo esse dispositivo de lei, entendem-se por direitos difusos os transindividuais, de natureza indivisível, cuja titularidade pertença a pessoas não determinadas, ligadas umas às outras por meras e acidentais circunstâncias fáticas. A doutrina é uníssona no reconhecimento da fluidez desses direitos, cuja titularidade se espraia pela sociedade toda, e por todos os seus membros. Quanto ao tema dos direitos difusos, ver, por todos: Fiorillo, Celso Antonio Pacheco. Os sindicatos e a defesa dos interesses difusos no direito processual civil brasileiro. São Paulo: Revista dos Tribunais, 1995, p.56-91. O art. 117 do CDC incluiu um novo art. 21 na Lei 7.347/85, nos seguintes termos: “Aplicam-se à defesa dos direitos e interesses difusos, coletivos e individuais, no que for cabível, os dispositivos do Título III da Lei que instituiu o Código de Defesa do Consumidor”. Na opinião de Nelson Nery Junior (A ação civil pública. RePro 31/229), os direitos difusos são aqueles “que não têm um titular determinado, mas sim dizem respeito a toda uma coletividade ou sociedade, tendo como centro a qualidade de vida”. Para Celso Agrícola Barbi, os interesses difusos têm origem no direito francês, especialmente nos chamados interesses legítimos, cuja defesa se faz diante da Justiça Administrativa (Mandado de segurança coletivo. In: Gonçalves, Aroldo Plínio (Coord.). Mandado de segurança. Belo Horizonte: Del Rey, 1996, p.61). Os direitos coletivos são, via de regra, mais facilmente identificáveis do que os direitos difusos, justamente porque enquanto nestes a titularidade se perde na indefinição subjetiva, naqueles há condições perfeitas de se identificarem os titulares, em razão do necessário vínculo associativo ou corporativo que os prende. Há, entre os titulares do direito coletivo, um vínculo jurídico que determina a convergência dos respectivos interesses. O inciso II do parágrafo único do art. 81 da Lei 8.078/90 define os direitos coletivos como aqueles direitos transindividuais, indivisíveis por natureza, cuja titularidade pertença a grupo, categoria ou classe de pessoas, que tenham vínculo entre si 10 ou com o outro polo da assim chamada relação jurídica base. Trata-se, em verdade, de direito do grupo social, representado por associações ou corporações voltadas à defesa de determinados tipos de interesses da sociedade. É um tipo de direito metaindividual, porque transcende aos interesses de cada uma das pessoas vinculadas ao grupo associativo, para guardar sintonia com os próprios fins institucionais do grupo. Os direitos coletivos são, via de regra, mais facilmente identificáveis do que os direitos difusos, e não há, neles, a mesma fluidez. Na opinião de Luiza Dias Cassales (Ação civil pública. Revista da Ajufe 48/41), são exemplos de grupos em que seus componentes estão unidos pela relação jurídica base necessária para caracterizar os direitos coletivos, o condomínio, a família, os entes profissionais e os sindicatos. Os direitos individuais homogêneos, por sua vez, têm as mesmas características dos direitos coletivos, diferentes apenas pela divisibilidade do dano ou da responsabilidade que lhes afeta. Constituem um tipo de direito coletivo, porque também têm origem numa mesma situação jurídica. A definição legal, estampada no inciso III do parágrafo único do art. 81 do CDC, toma por característica desses direitos, de modo extremamente lacônico, a nosso ver, a sua origem comum. A interpretação desse dispositivo nos leva a concluir que a novidade está em se dar tratamento coletivo a direitos individuais. Essa terceira modalidade de direitos coletivos lato sensu se traduz nos mesmos direitos subjetivos individuais de há muito conhecidos em nossa ordem jurídica, que têm como seus titulares as pessoas individualmente consideradas. A diferença entre esta classe de direitos e aqueles já consagrados em nossa ordem jurídica reside justamente no modo como se pode realizar sua defesa em juízo. Na verdade, eles contam com um mecanismo a mais - ação coletiva -, através do qual se pode obter sua proteção. 5 - A Aplicabilidade da Disciplina Instituída pela Lei 11.672/2008 às Ações Coletivas Definidos os direitos que se podem veicular nas ações coletivas, deduzse facilmente que eles podem, sim, gerar idênticas questões de direito. Se considerarmos os direitos difusos, pode ocorrer que os entes legitimados provoquem o Judiciário para solucionar questões que atinjam toda a sociedade, fazendo-o de forma fracionada, em diferentes cidades do mesmo Estado da Federação, por exemplo. Ressalvadas eventuais peculiaridades regionais, que justificariam a propositura de diferentes ações coletivas num mesmo Estado da 11 Federação, é forçoso reconhecer que a questão de direito versada em cada uma delas pode ser idêntica. O mesmo acontece com os direitos coletivos em sentido estrito. É possível que sejam ajuizadas várias ações coletivas sobre a mesma questão jurídica, na defesa de direitos cuja titularidade pertença a grupo, categoria ou classe de pessoas unidas por uma relação jurídica base. Não é diferente a situação em matéria de direitos individuais homogêneos. Aqui, a nosso ver de modo mais evidente, existe a possibilidade de várias ações coletivas serem ajuizadas para a tutela de direitos que, nos termos da lei, têm origem comum. Afinal, são direitos que admitem tratamento coletivo - desde que inequívoca sua homogeneidade -, mas poderiam ser tutelados através do processo civil individual, uma vez que se trata dos mesmos direitos subjetivos individuais. O tratamento coletivo não elimina, portanto, a possibilidade de vários legitimados ingressarem em juízo para veicularem idênticas questões de direito, respeitadas as regras de competência e os limites territoriais dos efeitos das decisões proferidas nas diferentes demandas. Como se vê, a possibilidade de se considerar a existência de ações coletivas repetitivas está intimamente ligada à questão da legitimidade para a propositura dessas demandas, da competência para seu ajuizamento e de se saber se, diante da pluralidade de ações idênticas, haveria litispendência ou conexão. No tocante à legitimidade, como já sustentou um dos autores deste texto, enquanto para os direitos subjetivos individuais está reservada a legitimação para agir, nos termos do que dispõe o art. 6º do CPC, para a defesa dos direitos coletivos há regras gerais sobre legitimação no Código de Defesa do Consumidor e na Lei da Ação Civil Pública. Há na doutrina complexa discussão - a qual não nos cabe aprofundar nos limites deste texto - a respeito do modelo de legitimação, distinto do que adota o Código de Processo Civil, visivelmente inadequado para permitir o atendimento a todos esses novos movimentos vividos pelo Direito. É que, como adverte Ada Pellegrini Grinover:2 a “legitimação para a causa foi tradicionalmente comprimida, pela processualística clássica, nos limites da coincidência entre a titularidade do direito material e a titularidade da ação”, sendo necessária, em nosso entender, a criação de um novo sistema processual, capaz de conviver com o do Código, além de oferecer respostas aos novos tipos de conflitos. 2 O acesso à justiça no ano 2000. In: Marinoni, Luiz Guilherme (Coord.). O processo civil contemporâneo. Curitiba: Juruá, 1994, p.35. 12 Em breves palavras, a legitimação ordinária, disciplinada no Código de Processo Civil, é aquela em que o próprio titular da pretensão pode promover a sua defesa em juízo, porque detentor da capacidade de estar em juízo e, ao mesmo tempo, da legitimidade processual diante de um dado episódio em que a defesa (em sentido lato) de seu direito se faça necessária. A chamada legitimação extraordinária, por sua vez, é aquela em que existe verdadeira dissociação entre o titular do direito discutido e aquele que pode agir em juízo formulando pretensão. Trata-se, portanto, de situação excepcionalíssima e sempre dependente, para que possa acontecer, de expressa autorização legal, sem o que somente pode pleitear em juízo, a respeito de determinada pretensão, o próprio interessado em seu objeto. Indaga-se, aqui, que modelo de legitimação processual têm os legitimados para as ações coletivas. Na doutrina há quem afirme que se trata de hipótese de defesa de direito alheio em nome próprio, traduzindo-se, portanto, na legitimação extraordinária3. Nelson Nery Junior4 procura resolver a discussão sobre a natureza da legitimação para as ações coletivas entendendo existir, em sede de ações coletivas, verdadeira legitimação autônoma para a condução do processo. Antonio Gidi diz que se utilizar da clássica dicotomia entre legitimação ordinária e extraordinária, na matéria relativa às ações coletivas, é pragmaticamente inconsistente, “como de resto, com muitos dos institutos do direito processual individual”5. A nosso ver, nas ações coletivas (genuinamente coletivas) realmente não se trata de hipótese de defesa de direito próprio (legitimação ordinária) e nem mesmo de situação em que se possa buscar arrimo no instituto da legitimação extraordinária. Entendemos que a legitimação dos entes autorizados à defesa dos direitos difusos, coletivos em sentido estrito e individuais homogêneos deve ser tratada como uma legitimação especial, com contornos próprios, derivados da circunstância de se destinar, num novo momento da história, à defesa apropriada que se deva dar ao rol dos direitos novos. É adequada, portanto, sua caracterização como legitimação autônoma. Vejamos, então, quem são os legitimados para ajuizar as chamadas ações coletivas e em que juízo devem fazê-lo. 3 Cf. Braga, Carlos Eduardo Faraco. Ações coletivas. Revista de Direito do Consumidor 7/95. No mesmo sentido: Kroetz, Tarcísio Araújo. Efetividade da tutela jurídica processual no Código do Consumidor. Revista do Instituto dos Advogados do Paraná 25/327, nota 1. 4 Código Brasileiro de Defesa do Consumidor comentado pelos autores do anteprojeto. 2. ed. Rio de Janeiro: Forense Universitária, 1992, p.628, nota 17. 5 Coisa julgada e litispendência em ações coletivas. São Paulo: Saraiva, 1995, p.42. 13 Exceto na ação popular, para a qual está ativamente legitimado somente o cidadão, nas ações coletivas de modo geral é grande o rol de legitimados ativos, previstos tanto na Lei 7.347/85 (Lei da Ação Civil Pública) como no Código de Defesa do Consumidor. No rol do art. 5º da Lei 7.347/85, estão as pessoas jurídicas de direito público, as associações, o Ministério Público, as autarquias, empresas públicas, fundações e sociedades de economia mista. Nessa mesma linha, no art. 82 do CDC, constam como legitimados, concorrentemente: o Ministério Público ; a União, os Estados, os Municípios e o Distrito Federal; as entidades e órgãos da administração pública direta ou indireta; e as associações legalmente constituídas há pelo menos um ano e que incluam entre seus fins institucionais a defesa dos interesses e direitos protegidos pelo Código de Defesa do Consumidor. Registramos aqui nossa discordância com o entendimento de que o Ministério Público teria legitimidade também em relação aos direitos individuais homogêneos. A despeito da tendência que se observa no sentido de admitir-se a legitimidade do Ministério Público para as ações coletivas relativas a direitos individuais homogêneos, um dos autores deste texto já discorreu em sentido contrário (Wambier, Luiz Rodrigues. Sentença civil: liquidação e cumprimento. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2006, p.338-352), mantendo a opinião sustentada. Trata-se, como mencionamos, de legitimação concorrente. Assim, a princípio, cada um desses legitimados poderia propor, indistintamente, as demandas coletivas. Por isso é tão importante mencionar, ainda que brevemente, o requisito da “pertinência temática”, aplicável às associações, autarquias, empresas públicas, fundações e sociedades de economia mista e às entidades da administração pública direta ou indireta. Note-se que, para a atuação desses legitimados, a própria lei estabeleceu condições. No art. 5º da Lei 7.347/85, se exige, para a atuação das autarquias, empresas públicas, fundações e sociedades de economia, bem como das associações, que esteja incluída entre suas finalidades institucionais “a proteção ao meio ambiente, ao consumidor, à ordem econômica, à livre concorrência, ou ao patrimônio artístico, estético, histórico, turístico e paisagístico” (inciso II). Também o art. 82 do CDC estabeleceu como condição para a legitimidade das entidades e órgãos da administração pública direta ou indireta que estejam estes entes “destinados à defesa dos interesses e direitos protegidos por este Código” (inciso III). E para as associações, como visto linhas acima, que incluam entre seus fins institucionais a defesa dos interesses e direitos protegidos pelo Código de Defesa do Consumidor (inciso IV). Para Luiz Manoel Gomes Junior, há duas classes de legitimados para a defesa dos direitos coletivos lato sensu: a dos “legitimados ‘amplos’, que não se sujeitam ao requisito da pertinência temática - Ministério Público e entes de 14 Direito Público”; e a dos “legitimados ‘restritos’, que, de ordinário, tenham sido criados visando à defesa de tais interesses ou que sua atuação tenha um mínimo de correlação com o objeto tutelado”6. Embora tenha razão o citado autor, na prática nem sempre se verifica a observância dessa distinção e muitas vezes o próprio Judiciário desconsidera o requisito da pertinência temática, havendo um elevado número de ações coletivas ajuizadas por associações na defesa de interesses totalmente distintos de suas finalidades institucionais. É o caso, por exemplo, de associações constituídas para a defesa de interesses de donas de casa, de aposentados, e mesmo de consumidores a elas associados, que ingressam em juízo em face de instituições financeiras para defender supostos interesses de investidores em cadernetas de poupança. De todo modo, sendo muitos os legitimados e diversos os direitos a tutelar, é certo que devem ser respeitadas para a propositura das demandas coletivas, antes de mais nada, as regras de competência. Para as ações coletivas reguladas no Código de Defesa do Consumidor, a competência está prevista em seus arts. 93, I e II, e 101, I. A despeito de estar inserida no capítulo que trata dos direitos individuais homogêneos, entende-se que a regra do art. 93 se aplica também às ações que versam sobre direitos difusos e coletivos em sentido estrito7. Segundo essas regras, sendo o dano de âmbito local, a competência é do juízo local (arts. 93, I, e 101, I); se de âmbito regional ou nacional o dano, a competência é do juízo da Capital do Estado ou do Distrito Federal, respectivamente (art. 93, II). Mas a clareza dessas regras é apenas aparente. Há enorme discussão sobre qual o juízo competente para processar e julgar ações coletivas - na qual não nos cabe adentrar, aqui, com profundidade - e, apenas para registrar que a questão é realmente complexa, citamos a posição de Ada Pellegrini Grinover8, para quem, se o dano for “propriamente regional”, atingindo, exemplificativamente, duas comarcas, haverá competência concorrente de qualquer uma delas. Como se vê, não se exclui a possibilidade de serem ajuizadas por mais de um legitimado, em comarcas distintas, ações que veiculem a mesma questão jurídica. Seriam, verdadeiramente, ações coletivas repetitivas, em que há, de modo geral, pedido e causa de pedir idênticos. Mas, havendo várias 6 Curso de direito processual civil coletivo. 2.ed. São Paulo: SRS, 2008, p.161. 7 Nesse sentido: Grinover, Ada Pellegrini. Código Brasileiro de Defesa do Consumidor. Rio de Janeiro: Forense Universitária, 2001, p.804. No mesmo sentido: Gomes Junior, Luiz Manoel. Curso de direito processual civil coletivo. 2.ed. São Paulo: SRS, 2008, p.213. 8 Código Brasileiro de Defesa do Consumidor. Rio de Janeiro: Forense Universitária, 2001, p.808. 15 demandas coletivas envolvendo uma mesma questão de direito, todas elas devem prosperar? Há, aí, o risco de se adotarem entendimentos diferentes e, por conseguinte, de se proferirem decisões conflitantes, o que não é desejado pelo sistema jurídico. A solução para esse problema, para uns, é a reunião dos processos pela conexão. Para outros, haveria litispendência e, portanto, apenas uma delas poderia prosperar. Ada Pellegrini Grinover9 defende que haverá litispendência quando forem idênticos os pedidos e a causa de pedir. Nas palavras de Antonio Gidi, “a litispendência entre duas ações coletivas ocorre sempre que se esteja em defesa do mesmo direito. É o que acontece quando há identidade de causa de pedir e de pedido”.10 Nessa mesma ordem de ideias, Teresa Arruda Alvim Wambier11 sugere que somente a primeira ação coletiva deverá subsistir, pois nem sempre a melhor solução seria a reunião dos processos. Já Luiz Manoel Gomes Junior12 entende que a questão deve ser solucionada “com a utilização do instituto da ‘conexão’”, o que daria maior efetividade às ações coletivas, porque a reunião dos processos permitiria a obtenção de mais elementos para a proteção dos direitos nelas veiculados. Em nossa opinião - ainda que respeitemos todos os argumentos em sentido contrário -, haverá, sim, litispendência, devendo ser extinta a segunda ação coletiva, desde que idênticos o pedido e a causa de pedir. Até porque haverá, também, congruência absoluta de partes nas ações coletivas se os titulares do direito defendido forem os mesmos, independentemente do ente legitimado que as tenha proposto. Aplica-se, a essa situação, a regra inserida no art. 301 e parágrafos do Código de Processo Civil, de acordo com a qual há litispendência quando se repete ação que está em curso (§ 3º), considerandose idênticas para este fim as ações que tiverem as mesmas partes, pedido e causa de pedir (§ 2º). É comum, como afirmamos antes, que diferentes entes legitimados ajuízem demandas para a defesa dos mesmos direitos coletivos em várias comarcas ou em vários Estados da Federação. Não raro, todos pretendem que os efeitos territoriais das respectivas decisões ocorram em âmbito estadual, ou mesmo nacional (com o que não concordamos, como a seguir será evidenciado). Esta é uma questão verdadeiramente polêmica, mas, para nós, se a sentença proferida em ação coletiva, em especial a que veicula direitos 9 Idem, p.861. 10 Coisa julgada e litispendência nas ações coletivas. São Paulo: Saraiva, 1995, p.219. 11 Litispendência em ações coletivas. In: Mazzei, Rodrigo; Nolasco, Rita Dias (Coords.). Processo civil coletivo. São Paulo: Quartier Latin, 2005, p.294-295. 12 Curso de direito processual civil coletivo. 2.ed. São Paulo: SRS, 2008, p.194. 16 individuais homogêneos, proferida em um Estado da Federação, tiver eficácia em todo o território nacional (atingindo - ilegalmente, segundo pensamos todos os jurisdicionados do país), não se poderá permitir que continuem em curso outras ações coletivas, ajuizadas em outros Estados. Evidentemente, a solução a ser adotada para o problema aqui apontado está diretamente ligada ao entendimento que se tenha quanto à extensão territorial dos efeitos das decisões proferidas nas várias ações coletivas. Na hipótese de se entender que os efeitos das decisões se dariam em âmbito estadual, ou mesmo nacional (com o que não concordamos, repita-se), haveria de se reconhecer a litispendência em relação às demais ações coletivas. Poderia ser tolerada a existência de uma ação coletiva em cada comarca, por exemplo, desde que se estendam os efeitos de suas decisões aos limites da competência territorial do órgão julgador de cada uma delas, nos precisos termos da regra do art. 16 da Lei da Ação Civil Pública. O art. 16 da Lei 7.347/85, na redação que lhe foi dada pela Lei 9.494/97, estabelece o seguinte: “A sentença civil fará coisa julgada erga omnes, nos limites da competência territorial do órgão prolator, exceto se o pedido for julgado improcedente por insuficiência de provas, hipótese em que qualquer legitimado poderá intentar outra ação com idêntico fundamento, valendo-se de nova prova” (grifamos). O exame da letra do referido dispositivo legal permite que se extraia somente uma interpretação possível: proferida uma decisão judicial em ação civil pública, esta somente produzirá efeitos na “comarca” de competência do juízo. Note-se que essa norma reduz significativamente a abrangência do disposto no art. 103 do CDC, que não estabelece limitação territorial ao alcance da decisão judicial, que produzirá efeitos erga omnes ou ultra partes, conforme o caso. Diante disso, e considerando que as duas leis citadas formam um microssistema destinado a regular as ações coletivas (conforme estabelecem o art. 21 da Lei 7.347/85 e o art. 90 do CDC), é de se indagar se o citado art. 16, por ter sido alterado em época mais recente, restringiria também o disposto no art. 103 da Lei 8.078/90 (CDC). Nossa resposta a essa indagação é positiva, embora se trate de questão bastante polêmica, e que se encontra distante do alcance de entendimento uniforme. Na doutrina, há quem argumente que o art. 16 da Lei 7.347/85 seria inconstitucional por violação ao princípio da proporcionalidade e da razoabilidade13. Há quem afirme que o referido preceito legal não poderia ser aplicado em relação à tutela de direitos difusos, porquanto permitiria o surgimento de decisões contraditórias sobre questões relacionadas a um 13 Nesse sentido: Nery Junior, Nelson; Nery, Rosa Maria de Andrade. Código de Processo Civil comentado e legislação extravagante. 7.ed. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2003, p.1.349. 17 mesmo bem jurídico14. Outros defendem, ainda, que a nova redação do art. 16 da Lei 7.347/85 confundiu competência com coisa julgada, razão pela qual o dispositivo não poderia ser aplicado15. Por outro lado, há quem sustente que nada haveria de inconstitucional no referido art. 16, pois os limites territoriais dos efeitos da sentença proferida em ação civil pública devem mesmo ser definidos em atenção à competência do juiz de 1º grau que a julgar, e não em razão da competência do tribunal para julgamento do respectivo recurso16. Na jurisprudência, embora não se trate de posição majoritária, há diversos julgados que aplicam o art. 16, interpretando-o textualmente17. Outros julgados estendem a eficácia da decisão ao âmbito da competência territorial 14 Nesse sentido: Vigliar, José Marcelo Menezes. Tutela jurisdicional coletiva. 3.ed. São Paulo: Atlas, 2001, p.182-183. 15 Nesse sentido: Mazzilli, Hugo Nigro. Tutela dos interesses difusos e coletivos. 3.ed. São Paulo: EDJ, 2003, p.85-86. 16 Nesse sentido: Carvalho Filho, José Santos. Ação civil pública. 3.ed. Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2001, p.417-418. 17 TJRJ, 1ª Câm. Cív., Ap 2000.001.01873, Rel. Desemb. Benito Ferolla, j. 31.08.2000; TRF-1ª Reg., 3ª T., AgIn 2001.01.00.041042-7, Rel. Desemb. Olindo Menezes, j. 09.10.2002, DJ 25.10.2002, p.85; TRF-5ª Reg., 2ª T., AgIn 13323, Rel. Desemb. Petrucio Ferreira, j. 06.10.1998, DJ 15.01.1999, p.156; TRF-4ª Reg., 3ª T., AgIn 103817, Relª Juíza Marga Inge Barth Tessler, j. 17.12.2002, DJ 19.02.2002, p.602. No âmbito do STJ, também interpretando restritivamente a regra do art. 16, merece destaque o acórdão proferido em sede de recurso especial, assim ementado: “Processo Civil – Ação Civil Pública – Litispendência – Limites da Coisa Julgada – 1. A verificação da existência de litispendência enseja indagação antecedente e que diz respeito ao alcance da coisa julgada. Conforme os ditames da Lei 9.494/97, ‘a sentença civil fará coisa julgada erga omnes, nos limites da competência territorial do órgão prolator’. 2. As ações que têm objeto idêntico devem ser reunidas, inclusive quando houver uma demanda coletiva e diversas ações individuais, mas a reunião deve observar o limite da competência territorial da jurisdição do magistrado que proferiu a sentença. 3. Hipótese em que se nega a litispendência porque a primeira ação está limitada ao Município de Londrina e a segunda ao Município de Cascavel, ambos no Estado do Paraná. 4. Recurso especial provido”. Transcrevemos, por oportuno, trecho do voto da e. Relatora desse recurso especial, Ministra Eliana Calmon: “(...) a abrangência e o alcance dos efeitos da coisa julgada da ação coletiva vem sendo restringida pelo legislador, deixando os limites do efeito erga omnes no âmbito da competência territorial do juiz que proferiu a sentença, ou outorgou a liminar. Assim ficou assentado no STJ, no CComp 971-DF, relatado pelo Ministro Ilmar Galvão, sendo Relator para o acórdão o Ministro Vicente Cernicchiaro, em 13.02.1990, DJ 23.04.1990. Dentro desse entendimento firmou a jurisprudência entendimento uniforme no sentido de considerar que, em matéria de ação civil pública, as ações conexas deveriam ser reunidas perante um mesmo juiz e por ele decididas uniformemente, evitando dessa forma decisões contraditórias e que estimulassem a busca por liminares. Neste sentido são os precedentes seguintes: REsp 485.842-RS (2ª Turma), REsp 586.691-SC (1ª Turma) e REsp 293.407-SP (4ª Turma). Dentro do entendimento pretoriano não há litispendência, porque as ações referem-se a limites competenciais distintos, estando a primeira circunscrita aos limites da competência territorial do Município de Londrina e a segunda abrangendo os mutuários domiciliados no Município de Cascavel” (2ª T., REsp 642.462-PR, j. 08.03.2005, DJ 18.04.2005, p. 263 – grifamos.) 18 do tribunal local18. Em outras decisões, tem-se o dispositivo legal por inconstitucional, ainda que o STF, no bojo da ADIn 1576, não tenha vislumbrado inconstitucionalidade no art. 16, que está em plena vigência e eficácia. Por fim, há decisões que, sem se manifestar sobre a constitucionalidade do referido dispositivo, simplesmente deixam de aplicá-lo, ao fundamento de que a decisão afetaria relações jurídicas de qualquer parte do País19. A propósito, recentemente foi proferido acórdão, no STJ, estendendo a eficácia subjetiva da decisão, em ação coletiva, a todo o território nacional. Decidiu-se, no REsp 411.529-SP, pela inaplicabilidade do art. 16, porque a Lei da Ação Civil Pública só seria aplicável em relação aos direitos dos consumidores naquilo que não contrariasse as regras do Código de Defesa do Consumidor, que conteria, em seu art. 103, “disciplina exaustiva para regular a produção de efeitos pela sentença que decide uma relação de consumo”20. Parece-nos que, ao contrário do que se decidiu no julgamento do referido recurso, a intenção do legislador, ao editar a regra do art. 16 (na redação que lhe deu a Lei 9.494/97), foi justamente restringir a abrangência subjetiva dos efeitos da coisa julgada e, com isso, reduzir o âmbito de alcance das ações coletivas. Talvez porque a incidência do art. 16 da LACP vem evitar que, nas mãos de um único juiz, fique o destino de questões relevantes, estendendo-se a eficácia de sua decisão por todo o território nacional. 18 TJSC, 4ª Câm. Cív., AgIn 97.015543-3, Rel. Desemb. Nelson Schaeffer Martins, j. 24.06.1999; TRF-4ª Reg., 5ª T., AgIn 2002.04.01.051738-5, Rel. Juiz Paulo Afonso Brum Vaz, j. 09.04.2003, DJ 02.05.2003, p.426. 19 STJ, 4ª T., REsp 173.379-SP, Rel. Min. Sálvio de Figueiredo Teixeira, j. 04.12.2001, DJ 25.02.2002, p.382; STJ, 4ª T., REsp 293.407-SP, Rel. Min. Ruy Rosado de Aguiar, j. 22.10.2002, DJ 07.04.2003, p.290; STJ, 4ª T., REsp 253.589-SP, Rel. Min. Ruy Rosado de Aguiar, j. 16.08.2001, DJ 18.03.2002, p.255; TRF-3ª Reg., 1ª T., Ap. Cív. 96.03.75726-8, Rel. Juiz Souza Ribeiro, j. 03.10.2000, DJ 31.10.2000, p.365. STJ, 4ª T., REsp 173.379-SP, Rel. Min. Sálvio de Figueiredo Teixeira, j. 04.12.2001, DJ 25.02.2002, p.382; STJ, 4ª T., REsp 293.407-SP, Rel. Min. Ruy Rosado de Aguiar, j. 22.10.2002, DJ 07.04.2003, p.290; STJ, 4ª T., REsp 253.589-SP, Rel. Min. Ruy Rosado de Aguiar, j. 16.08.2001, DJ 18.03.2002, p.255; TRF3ª Reg., 1ª T., Ap. Cív. 96.03.75726-8, Rel. Juiz Souza Ribeiro, j. 03.10.2000, DJ 31.10.2000, p.365 TRF-4ª Reg., 5ª T., AgIn 2002.04.01.022377, Rel. Juiz Ramos de Oliveira, j. 06.02.2003, DJ 26.02.2003, p. 875 TJSC, 4ª Câm. Cív., AgIn 97.015543-3, Rel. Desemb. Nelson Schaeffer Martins, j. 24.06.1999; TRF-4ª Reg., 5ª T., AgIn 2002.04.01.051738-5, Rel. Juiz Paulo Afonso Brum Vaz, j. 09.04.2003, DJ 02.05.2003, p.426. 20 Acórdão relatado pela Ministra Nancy Andrighi, j. 24.06.2008, publicado em 05.08.2008. 19 Em verdade, precisamente porque os direitos individuais homogêneos são, como visto anteriormente, divisíveis e de titulares perfeitamente determináveis, é que a regra do art. 16 se volta mais diretamente às ações coletivas que envolvem esses direitos. De todo modo, está longe de ser pacificada a questão, o que nos faz conviver com situações que reclamam, não raro, soluções criativas, mas que não se afastem do sistema jurídico, sob pena de se incorrer em ilegalidades e mesmo inconstitucionalidades. É por isso que não há impropriedade em se afirmar que existem - repitase - ações coletivas repetitivas, propostas pelos vários legitimados em diferentes comarcas, em relação às quais não se reconheceu a litispendência e nem mesmo se determinou a reunião, por conexão. Em todas essas ações pode haver decisões que, mesmo inválidas (muitas vezes em razão da própria incoerência de se permitir que essas ações prosperem sem que se restrinjam os limites territoriais dos efeitos de suas decisões), produzam efeitos no mundo dos fatos. E são precisamente essas questões processuais controvertidas - e não propriamente questões centrais de mérito - que se espera sejam solucionadas satisfatoriamente pelo STJ (e eventualmente pelo STF, se de matéria constitucional se tratar). É evidente, portanto, a importância de se garantir o exame dessas ações pela via do recurso especial, no STJ, e do recurso extraordinário, no STF. Delimitados os principais problemas que cercam as ações coletivas, cumpre-nos enfrentar a questão da aplicabilidade ou não da disciplina legal instituída pela Lei 11.672, de 08.05.2008, aos processos que versam sobre os direitos coletivos lato sensu. Em primeiro lugar, indaga-se se deveriam os recursos especiais interpostos em face de acórdãos proferidos em ações coletivas ser, somente por tal circunstância, selecionados para julgamento pelo STJ. A resposta, para nós, é negativa. A situação de que ora se trata é diferente da regulada no art. 543-B do CPC, que dispõe sobre o requisito da repercussão geral da questão constitucional nos recursos extraordinários. Em relação à repercussão geral, um dos autores21 deste texto já defendeu que esse requisito deve ser pressuposto nas ações coletivas pelo simples fato de serem coletivas. Os recursos especiais, diferentemente, não deverão ser selecionados simplesmente porque contidos em demandas de natureza coletiva, mas, tão 21 Wambier, Luiz Rodrigues; Wambier, Teresa Arruda Alvim; Medina, José Miguel Garcia. Breves comentários à nova sistemática processual civil. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2007, v.3, p.246. 20 somente, quando realmente “representativos da controvérsia”, nos termos da nova lei22. No mesmo sentido já se manifestaram, em estudo sobre o novo art. 543C do CPC: Wambier, Teresa Arruda Alvim; Medina, José Miguel Garcia. Sobre o novo art. 543-C do CPC: sobrestamento de recursos especiais “com fundamento em idêntica questão de direito”. RePro 159/215. Há que se atentar para os mesmos critérios de escolha concebidos pelo legislador (recursos representativos da controvérsia - art. 543-C, § 1º) e pelo próprio STJ, na Resolução 8. Lembre-se que a Resolução do STJ, em seu art. 1º, § 1º, estabelece como critérios a “maior diversidade de fundamentos no acórdão e de argumentos no recurso especial”. Assim, mesmo em se tratando de ações coletivas, os recursos selecionados deverão conter o maior número de fundamentos para, como dissemos anteriormente, propiciar a mais plena compreensão da questão de direito neles versada. Pensamos, no entanto, na hipótese de, a respeito da mesma questão de direito, haver um grande número de ações individuais e coletivas (pouco importando o número de ações coletivas que veiculem a mesma matéria de direito) versando sobre idêntica questão de direito. Nessa hipótese, a nosso ver, ainda que seja escolhido pelo tribunal local - ou afetado pelo STJ - um recurso de ação individual, pela quantidade e qualidade de seus fundamentos, assim como por sua natureza (ressalve-se que, como sustentamos acima, não é o simples fato de se tratar de recurso interposto em ação coletiva que determinará sua escolha, mas porque, invariavelmente, trarão maior diversidade de fundamentos e argumentos), deve igual e necessariamente ser selecionado o da ação coletiva, porque certamente conterá fundamentos que poderão enriquecer a discussão, sobretudo em relação à natureza do direito em exame. Preocupa-nos, também, a regra do § 2º do art. 1º da Resolução 8, em que se esclarece que se “levará em consideração apenas a questão central discutida, sempre que o exame desta possa tornar prejudicada a análise de outras questões arguidas no mesmo recurso” (grifamos). 22 É que nas ações coletivas, como vimos, há muitas questões processuais relevantes, a ponto de justificarem, elas mesmas, a remessa do recurso especial para julgamento. É o caso da legitimação processual, da existência de litispendência ou conexão entre as demandas idênticas, ou, ainda, da restrição ou não dos limites territoriais da coisa julgada que se operou. 21 A solução para essa questão parece estar no próprio dispositivo acima transcrito. A contrario sensu, não se deve levar em consideração apenas a questão central discutida, se o exame desta não tornar prejudicada a análise de outras questões arguidas no mesmo recurso. Assim, deve-se levar em conta, para a escolha do recurso especial a ser encaminhado ao STJ, se de ações coletivas se estiver tratando, os argumentos e fundamentos relativos às questões processuais (até porque a questão central discutida poderá ser de natureza processual, como, por exemplo, a que diz respeito à legitimidade do proponente da ação coletiva) que estejam presentes concomitantemente com a questão central discutida (se, repita-se, a questão central não for de natureza processual), pois invariavelmente relevantes, como dissemos há pouco. Precisamente por isso, pensamos que o sobrestamento de recursos interpostos em ações individuais não deverá atingir automaticamente todas as ações coletivas que tratem da mesma questão de direito. Em nosso sentir, deverá haver a escolha ou a afetação de recursos especiais, levando-se em conta as peculiaridades das questões neles versadas. Mas não é só. Pensamos que se deve levar em conta, ainda, para a seleção dos recursos especiais a serem encaminhados ao STJ, a qualidade do ente legitimado que o interpôs. Lembre-se aqui do requisito da pertinência temática. Ainda que, objetivamente, haja a mesma “quantidade de fundamentos” em todos os recursos, não faria sentido selecionar o que tenha sido interposto por uma associação - por exemplo -, cujos fins institucionais não têm qualquer relação com o objeto tutelado. Certamente se espera do ente legitimado, cujos fins institucionais incluam a própria defesa dos interesses e direitos tutelados na ação coletiva, que tenha melhores condições de desenvolver os fundamentos a serem analisados pelo Tribunal Superior. Essa questão nos leva a refletir sobre outra previsão da nova lei, no sentido de que o Ministro Relator, “considerando a relevância da matéria, poderá admitir manifestação de pessoas, órgãos ou entidades com interesse na controvérsia” (art. 543-C, § 4º). Nos termos da Resolução 8 do STJ, essa manifestação deverá ser escrita e prestada no prazo de 15 dias (art. 3º, I). A nova disciplina legal assegura, assim, a intervenção do amicus curiae, a exemplo do previsto no § 6º do art. 543-A (que admite a manifestação de terceiros, limitada à análise da repercussão geral). No entanto, uma vez que a lei não estabeleceu - nem mesmo a Resolução - requisitos objetivos para a participação do terceiro, pensamos que poderão intervir todos aqueles que demonstrarem ser parte nos processos cujos recursos ficaram suspensos, pois poderão contribuir com subsídios para a solução da controvérsia. 22 É esse, também, o entendimento de Teresa Arruda Alvim Wambier e José Miguel Garcia Medina, para quem: “Podem aqueles que são parte no processo em que há recurso sobrestado ter outros argumentos que justifiquem o acolhimento ou rejeição da tese veiculada, argumentos estes não levados em consideração nos recursos escolhidos e nas respectivas contra-razões”23. Já para Eduardo Talamini, para ser admitido como amicus curiae, não basta que o terceiro “apenas demonstre ser parte em outro processo em que há recurso sobre a mesma questão”; precisa ele comprovar que tem algum argumento útil e relevante para “acrescentar à discussão já instaurada”24. Nosso entendimento é no sentido de não se restringir a manifestação de terceiros, nesse caso. Tal preocupação assume especial relevância em se tratando de ações coletivas. É que no Brasil, como anteriormente se expôs, as regras que preveem os legitimados ativos para as ações coletivas apresentam meramente condições (pertinência temática) para alguns dos legitimados (os que Luiz Manoel Gomes Junior denomina “legitimados restritos”). Não há, no nosso ordenamento jurídico, o instituto da “representação adequada”25. No sistema das class actions, a representação adequada é requisito essencial para legitimar a propositura de ação coletiva pelos representantes dos titulares dos direitos transindividuais. Precisam esses representantes demonstrar que têm condições de, verdadeiramente, tutelar o direito coletivo veiculado na demanda, fazendo-o da maneira o mais eficiente possível. Na lição de Antonio Gidi26, a finalidade desse requisito é “que o candidato a representante proteja adequadamente os interesses do grupo em juízo”. A adoção desse instituto, em nosso sistema processual coletivo, evitaria, por certo, que demandas coletivas fossem ajuizadas por quem não tem condições de bem conduzi-las, fazendo com que, pela deficiência na fundamentação e mesmo na produção de provas, venham a ser proferidas 23 Sobre o novo art. 543-C do CPC: sobrestamento de recursos especiais “com fundamento em idêntica questão de direito”. RePro 159/219. 24 Julgamento de recursos no STJ “por amostragem” – Lei 11.672/2008. Migalhas, 1898, artigo publicado em 15.05.2008. 25 Sobre o instituto da representação adequada, veja-se: Silva, Edward Carlyle. A representação adequada nas ações coletivas. Direito em foco 1, Rio de Janeiro, n.2, 31-41, jan. 2006. 26 A class action como instrumento de tutela coletiva dos direitos: as ações coletivas em uma perspectiva comparada. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2007, p.99. 23 decisões que prejudiquem os titulares dos direitos em jogo. Enquanto isso não ocorre, especialmente nos processos coletivos há que se permitir sem muita restrição - repita-se - que terceiros intervenham antes do julgamento dos recursos especiais selecionados, no STJ, contribuindo com fundamentos e subsídios para a análise da questão jurídica. Esses terceiros poderão ser, sem dúvida, os outros legitimados que, a despeito de mais qualificados para a condução da ação coletiva, ou não a ajuizaram, ou tiveram sua ação extinta por litispendência, ou, ainda, não tiveram seu recurso especial escolhido para remessa ao Tribunal Superior. 6 - Conclusão Com tais considerações, se chega ao final deste breve estudo. Ficam em aberto, todavia, diversas questões capazes de nos desafiar a reflexão. Há muito a ser debatido e solucionado pela doutrina e pela jurisprudência. Mas é possível afirmar, sem risco de erro, ao menos uma conclusão: a aplicação da nova disciplina legal deve ocorrer somente quando não houver dúvida de que se está tratando de questões de direito verdadeiramente “idênticas” (CPC, art. 543-C, caput), sob pena de se desvirtuar o sentido da lei e se incorrer em inconstitucionalidade por violação ao princípio do acesso à justiça. 7 - Bibliografia Barbi, Celso Agrícola. Mandado de segurança coletivo. In: Gonçalves, Aroldo Plínio (Coord.). Mandado de segurança. Belo Horizonte: Del Rey, 1996. Braga, Carlos Eduardo Faraco. Ações coletivas. Revista de Direito do Consumidor 7. São Paulo: Revista dos Tribunais, 1993. Carvalho Filho, José Santos. Ação civil pública. 3.ed. Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2001. Cassales, Luiza Dias. Ação civil pública. Revista da Ajufe, Brasília, 48, 1996. 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