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A China afasta-se do dólar James Kynge e Josh Noble Quando uma questão económica se torna global, Hollywood nunca está longe. No thriller futurístico Looper, Bruce Willis, um quadrilheiro na reforma, viaja para o passado, partindo do ano 2074. Ao encontrar-se consigo mesmo enquanto jovem, trata de se convencer a desistir de aprender francês e partir, em vez disso, para a China. No futuro, Xangai é o centro do mundo e o Renmimbi a moeda de opção. Se viagens no tempo e carros voadores não estão no horizonte, pelo menos um aspecto parece mais perto da realidade; os maus da fita não são os únicos a querer pôr as mãos nuns quantos “chinocas”. Vislumbra-se uma “idade do capital chinês”, como o Deutsche Bank lhe chama, colocando em perspectiva mudanças fundamentais no modo como o mundo da finança está organizado. Não apenas o capital circula com mais liberdade para fora da China, também os canais e destinos dessa circulação estão a mudar de forma significativa, em resposta às forças de mercado, e também devido a um grande plano de Pequim, afirmam diversos analistas e uma alta patente chinesa. Em resumo, três grandes mudanças, que se relacionam entre si, estão a caminho. O apetite chinês pelos fundos do tesouro dos EUA, pedra de toque da economia global há mais de uma década, está a diminuir. Pequim está a redefinir a sua agenda de desenvolvimento no estrangeiro para aumentar o retorno financeiro e servir interesses geopolíticos fundamentais. A promoção do Renmimbi como moeda internacional está a libertar gradualmente a China da zona de influência do dólar, dando-lhe mais espaço para se abrir a fluxos de investimentos estrangeiros em carteira. A reorientação da estratégia chinesa afastando-se dos títulos do Tesouro é uma tendência lenta mas que se intensificou o mês passado, depois de Li Keqiang, o Primeiro-ministro, ter anunciado um plano com dez pontos para a reforma financeira. Um dos pontos tem que ver com o investimento de 3,9 triliões de dólares em reservas de moeda estrangeira, de que algumas partes foram recicladas em títulos do tesouro por mais de uma década, ajudando a manter as taxas de juro dos EUA baixas e a sustentar o crescimento económico no Ocidente. Contudo, o novo plano diz: “deveria ser feita melhor utilização das reservas de câmbio estrangeiro para apoiar a economia interna e o desenvolvimento de um mercado no estrangeiro para bens e equipamentos topo de gama.” Um alto responsável chinês, que se recusou a ser identificado, explicou elaboradamente o que o plano provavelmente significa em termos práticos. “Esta é uma grande notícia e não pode acontecer muito rapidamente, mas queremos utilizar as nossas reservas mais construtivamente, investindo em projectos de desenvolvimento em todo mundo, em vez de comprar reflexivamente títulos do tesouro norteamericano ”, afirma. “Em todo o caso, normalmente perdemos dinheiro nos títulos dos EUA, portanto temos de descobrir formas de melhorar o nosso retorno nos investimentos”, diz. Redefinir a finança global Não apenas a vontade que a China tem de adquirir dívida norte-americana está a diminuir, mas também a sua própria capacidade para o fazer. Os anos ideais para aquisição de obrigações do Tesouro, durante os quais os títulos subiram 21 vezes durante um período de 13 anos, chegando aos 1,27 triliões no fim de 2013, foram impulsionados por um imperativo de reciclar os elevados excedentes de conta corrente de dólares norte-americanos da China. Mas estes excedentes estão a diminuir; do equivalente a 10,3% de PIB, no auge, em 2007, a 2,0% em 2013. De facto, se os fluxos financeiros forem tomados em consideração, a China, nos últimos quatro trimestres, deixou de ser um exportador líquido de capitais. O impacto nas aquisições de títulos do Tesouro é evidente na baixa da compra chinesa nos últimos três anos. Mas os analistas vêem forças estruturais a impulsionar uma curva descendente acentuada no futuro. “Tenho a certeza de que vamos ver excedentes de conta corrente chineses menores no futuro, devido a maiores investimentos da China no estrangeiro no turismo e serviços, e maior poder de compra internamente, que podem levar a mais importações”, afirma Jan Dehn, director de pesquisa de mercados emergentes no Grupo Ashmore. Tudo isto nos leva a uma questão premente: até que ponto terão impacto no financiamento da dívida dos EUA (e portanto nas taxas de juro a nível global global) as mudanças em curso na China? Os analistas têm interpretações diversas, desde os que vêm uma iminente explosão da tranquilidade financeira dos EUA, àqueles que prevêm mudanças menores, sem causas para preocupações. Entre estes dois extremos estão os que, como Michael Power, da Investec, vêm potencial para uma reorganização disruptiva dos fluxos do capital internacional, mas sem certezas quanto ao resultado. “Se a China encetar programas de investimento, por exemplo desenvolver as infraestruturas para regenerar a rota transasiática da seda, não irá continuar a investir a maior parte dos seus excedentes em títulos do Tesouro norteamericano”, afirma Power. Há uma década, Alan Greenspan, o então administrador da Reserva Federal, viu as suas tentativas de fazer subir as taxas de juro dos EUA negadas pelo facto de Pequim ter investido os seus excedentes em títulos do Tesouro. É discutível, afirma Power, mas tem-se verificado uma bolha de títulos desde então. “Se a China agora se prepara para redistribuir esses depósitos sob forma de investimento de capital pelo mundo fora, isso significa que o dilema de Greenspan será finalmente „resolvido‟, mas, será a custo de um mercado do Tesouro em implosão?”, pergunta Power. “Se assim for, isto levará à subida do custo do capital no Ocidente e porá mais um travão num crescimento do PIB no Ocidente, já de si débil.” Stephanie Pomboy, presidente da Macro Mavens, uma empresa de consultoria em pesquisa económica sedeada nos EUA, vê um perigo mais premente. “A convicção de que o resto do mundo [a China e o Japão em particular] não tem alternativa se não manter a sua ligação ao dólar norte-americano mantém-se”, afirma. “Atolados nesta ilusão, os investidores não vêm nenhuma ameaça a longo prazo ao estatuto do dólar, mesmo que a cada dia diminua o seu uso.” Bloqueados Outros, contudo, afirmam que a China está efectivamente obrigada a continuar o investimento no Tesouro norte-americano, porque qualquer súbita redução da sua enorme quantidade de títulos poderia pôr os preços em queda livre, fazendo cair assim o valor da posição de Pequim. Além disso, afirma Jonathan Anderson, do Emerging Advisors Group, os investimentos chineses no Tesouro são um subproduto da intervenção de Pequim nos mercados financeiros para impedir o tipo de subida no valor do Renmimbi que poderia prejudicar a competitividade das suas exportações. É claro é que a intenção de Pequim de diversificar a distribuição das suas reservas de câmbio estrangeiro está a reforçar-se. Durante os últimos seis meses, impulsionou a criação de três instituições internacionais dedicadas ao desenvolvimento financeiro: o New Development Bank, sedeado em Xangai, juntamente com o Brasil, Rússia, Índia e África do Sul; o Asian Infrastructure Investment Bank e o Silk Road Fund. É possível, ou poderá ser explicitamente designado, que cada uma delas receba financiamento das reservas de moeda estrangeira. A sua importância pode ser avaliada a partir da posição central que ocupam no objectivo do Presidente Xi Jinping de realizar o “sonho chinês” de recapturar o estatuto de que o país usufruiu durante os momentos da história em que se revelou mais poderoso, afirmam as autoridades chinesas. O Silk Road Fund de 40 mil milhões de dólares anunciado no mês passado demonstra claramente as ambições de Pequim. Devendo ser financiado com cerca de 65% de reservas estrangeiras, o fundo deverá poder atingir a visão de Xi Jinping, de construir uma “cintura económica da rota da seda” pela Ásia Central para a Europa e estabelecendo uma “rota da seda marítima para o século XXI” através das vias marítimas do sul do Mar da China e do Oceano Índico. “Construindo estradas e caminhos-de-ferro nas suas fronteiras e melhorando os seus portos na Ásia, Pequim contribui para a prosperidade das relações da China com os seus vizinhos”, afirma Tom Miller, analista experiente em assuntos asiáticos na Gavekal Dragonomics, uma consultora em pesquisa de mercados. “É uma tentativa de restaurar a posição chinesa no coração da Ásia.” O trabalho da infrastrutura irá beneficiar directamente as grandes companhias de construção e equipamento chinesas que têm contractos financiados por instituições apoiadas pela China. Isto por sua vez deverá melhorar as hipóteses que o país tem de concretizar a predição do Presidente Xi de que as empresas chinesas irão investir cerca de 1,25 triliões de dólares no estrangeiro durante a próxima década. O Renmimbi O lançamento destas instituições desenvolvidas é apenas parte do objectivo chinês para pôr a finança ao serviço de interesses geoestratégicos. Um elemento mais antigo, mas talvez mais importante, é a promoção do Renmimbi como moeda internacional. O impulso para a internacionalizar deriva da intenção de criar o espaço chinês dentro de um sistema financeiro global dominado pelos EUA. O processo acelerou com o rebentar da crise financeira global em 2008, quando os governantes em Pequim perceberam que o destino da sua economia estava umbilicalmente ligado ao da norte-americana. “We hate you guys” [Nós detestamos-vos]; foi assim que Luo Ping, funcionário da Comissão Reguladora dos Bancos Chineses expressou a sua frustração em 2009. Ele e outros chineses acreditavam que, à medida que a Reserva Federal dos EUA cunhava mais dinheiro para ressuscitar a procura norte-americana, o valor das reservas estrangeiras chinesas iria cair. “Uma vez que começam a emitir 1 trilião, 2 triliões… sabemos que o dólar vai desvalorizar, portanto detestamos-vos; mas não há nada mais que possamos fazer”, afirmou o Sr. Luo a uma audiência em Nova Iorque. Numa declaração de intenções, Wang Qishan, então vice-primeiro-ministro e actualmente um dos mais próximos aliados do Comité Permanente do Politburo, foi designado em 2009 para promover o uso do Renmimbi no estabelecimento de relações comerciais e investimento em todo o mundo. O processo é movido principalmente por um imperativo para dissociar gradualmente a China da sua relação de confiança com os EUA, e da influência de Washnigton na sua política monetária interna, dizem fontes oficiais. Para atingir este objectivo, a China está a obter uma proporção maior das suas receitas comerciais e financeiras em Renmimbi. Porque estes ganhos não têm de ser reciclados em activos denominados em dólares, podem ser reinvestidos na economia doméstica, beneficiando os mercados de capital chineses em vez dos norteamericanos. A evolução do Renmimbi tem sido mais rápida do que muitos esperavam. Em Outubro, mais de 22% do comércio chinês foi efectuado na sua própria moeda, de acordo com o Standard Chartered, e partiu de quase nada, há quase cinco anos. Dados do Swift, o sistema de compensação de moeda internacional, mostram que é agora a sétima moeda mais utilizada para pagamentos. Investidores em títulos estão a procurá-lo, em particular desde a abertura, no mês passado, do Shangai-Hong Kong Stock Connect, uma iniciativa que fornece o acesso com menos restrições até agora à bolsa de valores de Xangai para estrangeiros com Renmimbi offshore. Os governos ocidentais estão a patrocinar a moeda, com o Reino Unido, o estado australiano de New South Wales e a província canadiana de British Columbia a emitirem dívida denominada em Renmimbi nos últimos meses. Michael de Jong, ministro das finanças da província de British Columbia, afirma que a emissão de dívida cumpriu vários objectivos, incluindo a melhoria das relações com a China e a atracção de serviços financeiros dos EUA. “Prevejo a plena internacionalização do Renmimbi como inevitável; é uma questão de sabermos quando se dará”, afirma de Jong. Este optimismo será bem-vindo em Pequim, na medida em que esta prossegue um grande plano para se libertar do domínio dos EUA no mundo financeiro global e criar um sistema paralelo sino-cêntrico que toma o seu lugar com base numa moeda poderosa. Claro, muita coisa pode ainda acontecer que poderá deitar por terra as ambições da China. Mas mesmo que apenas metade do que de Jong prevê seja conseguido, o impacto do financiamento da dívida norte-americana, o futuro do financiamento do desenvolvimento e abertura dos mercados financeiros chineses ao capital internacional seriam profundos. Fonte: Financial Times, 9.12.2014 Tradução de André Rodrigues